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DOMINAÇÃO RACIONAL LEGAL NA SOCIOLOGIA DO DIREITO DE

MARIANNE WEBER: APONTAMENTOS


No documento Editora Fundação Fênix
(páginas 67-75)

https://doi.org/10.36592/9786581110550-05

Giulle Vieira da Mata1

Começo pelo duplo privilégio de falar depois da estimada Rita Aldenhoff-Hübinger. Sempre aprendo quando a

ouço e quando leio o que ela escreve. E todos hão de concordar que, depois de sua bela apresentação, temos

elementos suficientes para apreciar uma outra dimensão da presença de Marianne Weber em relação à

atualidade de Max Weber. Falo do significado do trabalho de Marianne para o que tem sido reconhecido

como sociologia “weberiana” do direito. Mas, tal qual nos ensinam os Weber, comecemos pelo “como

chegamos até aqui”, a um painel dedicado exclusivamente à Marianne Weber quando o tema é a atualidade

de Max, 100 anos depois de sua morte.

Iniciativas para restaurar a contribuição científica de Marianne têm aumentado e se fortalecido mutuamente

pelo menos desde os anos 2000. Sua

“presença”, por assim dizer, vem sendo gradualmente redimensionada e valorizada graças a pesquisadores

como Günther Roth, Bärbel Meurer, a própria Rita Aldenhoff-Hübinger, mas também Edith Hanke, Stephan

Buchholz, Theresa Wobbe, Klaus Lichtblau, Katja Eckhardt.

Fora da Alemanha, o mesmo interesse. Na Espanha, Montserrat Bascoy Lamelas (2012) revisitou a teoria do

casamento de Marianne onde central seria a descrição da vida conjugal como negociação constante sobre

poder e intimidade.

Fernando Alvarez Uria (1999), por sua vez, cuidou de apresentar o Durkheim crítico de Marianne Weber. Na

França, Michele Dupré e colaboradores (2016) têm enfatizado a importância de Marianne na abertura de

caminho para “uma teoria sociológica do ponto de vista dos excluídos da lei, da cidadania, da vida pública e

da política”. Nos EUA, Patricia Lengermann (2007) concentrou-se no modelo tripartite de análise da
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mudança social que Marianne desenvolveu a partir da relação entre valores, condições objetivas e teoria da

ação. Isso depois de Anne Rawls (2001) ter dedicado uma edição inteira de seu curso “Tópicos Selecionados da

Teoria Social” (na Wayne State University) à análise do pensamento de nossa autora. Ainda nos EUA, o nome

do mais recente projeto de Lori Pearson fala por si: “Sexualidade e ordem social:

Marianne Weber sobre religião e modernidade”.

Na América Latina, por outro lado, a curiosidade em relação ao impacto do argumento de Marianne no debate

sobre os direitos das mulheres na atualidade tem justificado o investimento em traduções de livros e artigos

no México, Argentina e Colômbia. Como Marianne entendeu a relação entre política e ciência? Como ela

analisou as consequências do movimento pela “nova ética sexual”? O que podemos aprender com sua análise

da problemática relação entre dominação e autonomia no casamento? E a partir de sua controvérsia com

Georg Simmel sobre o conceito de cultura? O que dizer do seu conceito “casamento de parceria”? Ideal ou

tipo ideal?

Como Marianne encarou a insuficiência da igualdade formal? Tudo chama a atenção de quem lê Marianne

Weber do ponto de vista latino-americano.

Mas hoje, eu gostaria de aproveitar a oportunidade para falar brevemente sobre o que chamou minha atenção

em particular na obra dessa intelectual: a nuance que a concepção de dominação racional legal assume se

comparamos sua teoria com a teoria da racionalização de Max Weber. Tomemos seu opus magnum “Esposa e

Mãe no desenvolvimento do direito” (1907), uma obra que evidencia a perspectiva jurídico-sociológica da

autora. Como foi ressaltado antes de minha fala, neste livro de quase 600 páginas temos acesso a algo muito
além de uma descrição histórica do desenvolvimento da lei sobre o status das mulheres na história do direito

ocidental. O que o Esposa e mãe nos fornece é sobretudo uma análise do significado prático do casamento

civil e do direito de família para a condição feminina na Alemanha no início do século 20. Sua tese central:

quando o direito finalmente se recusa a favorecer a expansão da dominação masculina, ele passa a funcionar

para enfraquecer a legitimidade da cultura patriarcal à medida que transvalora o casamento de “relação de

poder” em “relação de direito”.

Exemplos podem nos ajudar a identificar mais claramente essa espécie de

“genealogia afirmativa” (Hans Joas) que Marianne faz do casamento civil enquanto

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“relação de direito”. O reconhecimento do “princípio da presunção da paternidade” no interesse da criança,

por exemplo, e consequentemente, a obrigação de pagar pensão alimentícia. Por força de lei, ao marido

passou a ser negada a legitimidade jurídica da alegação de “abandono de lar” ou “doença mental incurável”

como justificativa suficiente para o divórcio. Foi também por força de lei que o privilégio masculino de livre

disposição sobre a herança da esposa e mesmo sobre o destino dos filhos foi sendo gradualmente minado.

Todos exemplos de como foi possível colocar limites à arbitrariedade do marido e pai usando como meio a

reforma da lei matrimonial e civil.

Já a nulidade do casamento na ausência do consentimento livre e esclarecido da mulher; ou a equiparação dos

direitos da filha em relação ao filho; a garantia do direito das mulheres de reter e dispor do próprio salário e

de trabalhar fora sem depender do consentimento do “homem da casa”; reformas que ilustram como o direito

poderia ser usado enquanto meio para expandir a esfera de livre ação das mulheres na vida conjugal e na

família.

Essa série de exemplos concretos nos convida a encarar a dominação racional legal com “outros olhos”. Isso

porque na sociologia weberiana de Marianne,

“racional” é apenas o que se coloca em função da liberdade da pessoa como diria Helmut Schelsky décadas

mais tarde; ou seja, somente o direito usado para fomentar e garantir mutuamente os limites das respectivas

esferas de ação autodeterminada dos indivíduos em interação. Aplicado ao casamento, somente quando e se o

direito matrimonial e civil se coloca em função do princípio de coexistência das liberdades na vida a dois

podemos falar em racionalização no sentido de Marianne Weber.


Se é assim, podemos afirmar que estamos diante de uma autêntica institucionalista. Ao considerar os efeitos da

reforma legal para os limites da esfera de livre ação das mulheres na família e no casamento, Marianne coloca

em relevo uma perspectiva da realidade que vinha sendo menosprezada na ciência e na política de seu tempo.

Na sociologia desta dedicada ativista pelos direitos da mulher, o estado (de direito) revela seu peso na

proteção do direito de autodeterminação individual enquanto baliza para a administração da justiça. Ou, nas

palavras de Marianne:

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A tarefa do legislador deve ser mitigar as dificuldades e atritos nos casamentos, que em aspectos particulares não são o que uma

consciência moral idealmente desenvolvida requer, e garantir também neles uma esfera de independência pessoal para a mulher (Weber,

1907, p. 495).

Mais especificamente no caso do código civil, que em lugar de ser mantido a serviço da dominação patriarcal,

deveria ser colocado em função da coexistência das liberdades de maneira que a distância entre o ideal de

parceria na vida a dois e o instituto jurídico em si fosse significativamente reduzida. A estratégia enfatiza a

relevância do fortalecimento institucional de um valor e também do princípio fundamental do liberalismo

político alemão, qual seja, a importância do direito na proteção do indivíduo contra arbitrariedades (contra as

arbitrariedades do grupo, inclusive).

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Nota-se que a investigação de Marianne nos permite identificar oportunidades e traçar estratégias para

deslegitimar o que seu marido apresentou como o exemplo mais bem acabado de dominação tradicional. Ao

verificarmos se e como o direito coloca limites à ânsia de poder por parte do marido e pai podemos justificar

como pauta, “o esforço para uma maior proteção [jurídica] da mulher contra o bárbaro arbítrio do marido”

(Weber, 1919, p. 68). Sem essa proteção não há que se falar em


“casamento” no sentido moderno (Weber, 1907, p. 52). E se é essa a tese de Marianne sobre o direito

matrimonial e de família, não há como ignorar sua presença nos primórdios de uma sociologia do direito

bastante específica e que viria a deitar raízes somente no pós-guerra. Uma Rechtssoziologie que parte do

estado de direito enquanto base institucional especializada para defender a igual dignidade da pessoa humana.

Todavia, devemos ser capazes de imaginar a resistência que por um lado essa perspectivação da função do

direito provocou. Isso, sem nos esquecermos da importância que Marianne atribuiu ao ideal de “casamento de

parceria” enquanto sinônimo de coexistência das liberdades na vida a dois. Temos notícia dessa resistência

dentro do próprio movimento feminino da época e podemos considerá-la também como fato no campo

disciplinar tal qual ele viria a se constituir. Comecemos

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pela aparente dificuldade do movimento feminino de identificar o potencial de Esposa e mãe na definição da

estratégia de luta.

Os expressivistas, defensores entusiasmados da “nova ética sexual”, e os marxistas com seu elogio ao

matriarcado dominavam a cena. As consequências desse protagonismo para o reconhecimento de uma

perspectiva como a de Marianne definitivamente não foram boas. Tomada a devida distância no tempo, tem-

se a impressão de que os diferentes grupos dentro do movimento, apoiados por perspectivas teóricas com

ambições, digamos, mais “prescritivas”, constituíram cada qual um front de defesa apaixonada do próprio

estandarte. De forma que nenhuma das agremiações conseguiu demonstrar “imaginação sociológica”

suficiente para superar a tendência a reduzir instituição a força coercitiva e modernidade a decadência e

dominação.

Tenho argumentado que, se quisermos entender o que levou à denegação do reconhecimento da “presença”

de Marianne Weber, devemos investir em um ajuizamento menos apressado sobre aquelas divisões dentro da

Frauenbewegung considerando inclusive o peso do caráter fragmentado do contexto de produção do

conhecimento (histórico, social e jurídico) sobre a condição feminina na época. Sem dúvida, um contexto de

vívida democratização, mas que parece ter deixado escapar a oportunidade de reconhecer o principal livro de

Marianne como o que ele de fato é:

uma análise dos efeitos práticos do desenvolvimento do direito enquanto forma cultural aprimorada para

favorecer a coexistência das liberdades na vida a dois.


No que se refere ao silêncio da nossa disciplina em relação ao seu trabalho enquanto sociologia do direito,

parece algo mais difícil de se justificar. Afinal, ao mesmo tempo que defendeu uma tese sobre o direito em

função da liberdade da pessoa, Marianne chamou atenção para a necessidade de se observar com mais rigor

os diferentes impactos no campo político e científico das diferentes perspectivas teóricas sobre condição

feminina, casamento e direito. Para citar suas próprias palavras:

Apesar do caos que pode surgir da discussão entre aqueles que se opõem a esse tipo de crítica ao casamento, é a discussão que lança luz

sobre a avaliação do papel do Estado e do direito face às relações conjugais, é a partir dela que se

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distinguem as exigências específicas a serem colocadas à legislação (Weber, 1907, p. 514).

Contudo, apesar da clareza de sua proposição e dos resultados de sua investigação, tenho a impressão de que

a tendência continua sendo a de

“instrumentalizar” Marianne para se chegar ao que realmente interessa ao cânone: o mito de Heidelberg. Em

lugar da consideração sociológica sobre “como o ‘direito’

matrimonial se relaciona com o ‘ideal’” (Weber, 1907, p. 531), o olhar disciplinar parece enfeitiçado por um

conceito. Ao que Marianne Weber responderia em viva voz se tivesse a chance:

Não são os ideais do individualismo ético em si, é claro, mas os meios para perseguir esses ideais que mudaram, ao menos em parte. Hoje,

não podemos contar somente com a boa vontade do indivíduo. A era do capitalismo exige que sejam erguidas barreiras legais seguras

contra o egoísmo individual. [...] Essa mudança nos meios, que a ordem jurídica precisa considerar, não altera em nada o fato de que,

ainda hoje, o fim só pode ser a garantia da dignidade humana também para as mulheres, o que por sua vez só pode significar a ‘liberdade

no cumprimento de um dever’ (Weber, 1907, p. 503).

Infelizmente, não temos dado ouvidos a esta mulher. Até porque quando se coloca a chance de ler o que ela

escreveu, não são poucos os que preferem tecer comentários sobre seu “estilo”, deixar claro um certo

incômodo com sua escrita, supostamente contaminada por um pathos que foge aos padrões acadêmicos

dominantes e que tem sido desde sempre associado à atitude de quem sacrifica o intelecto. Algo

“decepcionante”, especialmente se estamos falando da esposa do defensor da “ciência como vocação”, não é

mesmo?

Referências
VIEIRA DA MATA, Giulle. O liberalismo esclarecido de Marianne Weber. Caderno Estado da Arte. Estadão, 3 jul.

2021. Disponível em:

https://estadodaarte.estadao.com.br/dossie-liberalismo-giulle-vieira/

Giulle Vieira da Mata | 73 WEBER, Marianne. Ehefrau und Mutter in der Rechtsentwicklung: Eine Einführung.

Tübingen: Verlag von J.B. Mohr (Paul Siebeck), 1907.

WEBER, Marianne. Frauenfragen und Frauengedanken. Gesammelte Aufsätze.

Tübingen: Mohr Siebeck, 1919.

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OUTLINE
FILOSOFIA DA CONSCIÊNCIA E SOCIOLOGIA: FUNDAMENTOS DE UMA SOCIOLOGIA
COMPREENSIVA 1
A SÍNTESE MACRO-MICRO-MACRO NA SOCIOLOGIA DE WEBER: UM BALANÇO DA
DISCUSSÃO
COMENTÁRIOS SOBRE MARIANNNE WEBER: VIDA, OBRA, POLÍTICA, IMPACTO
DOMINAÇÃO RACIONAL LEGAL NA SOCIOLOGIA DO DIREITO DE MARIANNE WEBER:
APONTAMENTOS (Você está aqui)
Minha tese 3 é a seguinte: os tipos ideais de Max Weber podem ser definidos como modelos
teóricos idealizados com o status de definição. Somente com a
A TIPOLOGIA DA AÇÃO E A GÊNESE DO MODERNO SEGUNDO MAX WEBER
OBSERVAÇÕES SOBRE A RECEPÇÃO DE MAX WEBER NA CIÊNCIA POLÍTICA NA ALEMANHA
HERMANN LÜBBE E A FILOSOFIA POLÍTICA WEBERIANA NA ERA DOS EXTREMOS
APRESENTAÇÃO DA TRADUÇÃO
O DIREITO NATURAL ESTÓICO-CRISTÃO E O DIREITO NATURAL PROFANO 1
ESPOSA E MÃE NO DESENVOLVIMENTO JURÍDICO – EXCERTOS

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