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AMÓS OZ

FIMA

Tradução:

GEORGE SCHLESINGER
1

PROMESSA E GRAÇA

Cinco dias antes da desgraça, Fima teve um sonho que anotou no seu

caderninho. Eram cinco e meia da manhã. O caderninho de sonhos, de

cor marrom, ficava sempre debaixo da pilha de jornais e revistas

amontoados no chão ao pé da cama. Fima se habituara a anotar ainda

deitado, quando a primeira claridade do dia começasse a aparecer

entre as frestas da persiana, o que tinha visto durante a noite. Se não

tivesse visto nada, ou se tivesse visto e esquecido, mesmo assim

acendia a luz, espreguiçava-se um pouco, sentava-se na cama e,

colocando uma revista grossa sobre os joelhos dobrados para servir de

apoio, escrevia algo assim: “Vinte de dezembro — noite vazia”. Ou:

“Quatro de janeiro — algo como uma raposa e uma escada, mas os

detalhes sumiram”.

Escrevia sempre a data por extenso, e não em algarismos. Depois, se

levantava para ir ao banheiro, voltava depressa e se deitava de novo

até ouvir lá fora o ruído das pombas, um cachorro latindo e o piar de

um pássaro que soava surpreso com o que seus olhos viam. Fima

prometia a si mesmo levantar-se imediatamente, em alguns instantes,

no máximo em quinze minutos. Às vezes adormecia de novo, e não

acordava antes das oito ou das nove, já que seu trabalho na clínica só

começava à uma da tarde. Achava que o sono tinha menos falsidade do

que estar desperto. Ainda que tivesse descoberto havia muito tempo

que a verdade estava fora do seu alcance, queria se distanciar ao

máximo das pequenas mentiras que preenchem o dia a dia como uma
poeira fina, capaz de penetrar em todos os cantos, até os mais

escondidos.

Na segunda-feira de manhã, logo cedo, quando um brilho alaranjado

começou a entrar pela persiana, sentou-se na cama e fez as seguintes

anotações no caderno:

“Uma mulher, não bonita mas atraente, aproximou-se de mim; ela

não veio até a minha mesa de atendimento, mas apareceu como se

tivesse vindo por trás, apesar da placa dizendo ‘Entrada só para

funcionários’. Eu disse: ‘Minha senhora, perguntas pelo lado da frente,

por favor’. Ela deu risada e disse: ‘Já ouvimos, Efraim, já ouvimos’. Eu

disse: ‘Senhora, se não sair daqui, vou ter que tocar o meu sino’ (apesar

de não ter sino nenhum). E estas palavras provocaram novas risadas,

um riso gracioso e agradável, como uma fonte de água pura. A mulher

tinha ombros estreitos, um pescoço ligeiramente enrugado, mas o

busto e a barriga arredondados, e as pernas cobertas de meias de seda

com bordados curvos. A combinação entre as curvas e a fragilidade era

ao mesmo tempo sexy e comovente. Ou talvez fosse comovente o

contraste entre o corpo bem formado e o rosto de uma professora

sobrecarregada de trabalho. Ela disse: ‘Eu tive uma filhinha com você e

chegou a hora de a criança conhecer o pai’. Eu sabia que era proibido

deixar o trabalho, e perigoso segui-la, principalmente descalço, pois de

repente eu estava descalço. Mesmo assim, uma espécie de sinal se

formou dentro de mim: se ela jogar o cabelo sobre o ombro esquerdo

com a mão esquerda, seremos obrigados a ir. Ela sabia; com um ligeiro

movimento puxou o cabelo para a frente até cobrir o seio esquerdo, e

então disse: ‘Venha’. Eu a segui e passamos por diversas ruas e vielas,

alguns portões e lances de escadas, e mais pátios calçados na cidade

espanhola de Valladolid, mas era mais ou menos como o bairro dos

bukhárin aqui em Jerusalém. Mesmo que a mulher de vestido infantil

de algodão e meias de seda sensuais fosse uma estranha, mesmo que

eu jamais a tivesse visto na vida, ainda assim queria ver a menina.

Passamos por entradas de prédios que conduziram a pátios cheios de

varais carregados de roupas, e daí para novas vielas até chegarmos a

uma praça antiga iluminada por uma lâmpada de rua na chuva. Pois

tinha começado a chover, não forte, não uma tempestade, umas

poucas gotas apenas, como se a densa umidade do ar tivesse


escurecido. Não encontramos vivalma no caminho. Nem mesmo um

gato. E de repente a mulher parou num corredor que tinha vestígios de

grandiosidade decadente, como se fosse a entrada de um palácio

oriental, ou talvez apenas uma ligação entre dois pátios encharcados,

com caixas de correio arrebentadas e azulejos de cerâmica rachados.

Tirando meu relógio de pulso, ela apontou para um cobertor do

exército, rasgado, num vão debaixo da escada; foi como se tirar o meu

relógio significasse o início de uma nudez, e agora cabia a mim fazer

nascer uma filha, dela. Perguntei onde estávamos e onde estavam as

crianças, como se durante o caminho a filha tivesse se transformado em

diversos filhos. A mulher disse: ‘Gella’. Não consegui entender se Gella

era o nome da menina ou o nome da própria mulher, que pressionava

a minha mão sobre o seu seio. Ou se era um jeito de dizer que estava

gelada de frio por causa da nudez das filhas magras, ou se era um

convite para abraçá-la e aquecê-la. Quando a abracei, seu corpo

estremeceu inteiro, não de desejo mas de desespero, e ela sussurrou,

como que espantando o desespero: ‘Não tenha medo, Efraim, eu

conheço um caminho e vou conduzir você vivo até o lado ariano’. No

sonho, esta frase soou cheia de promessa e graça, e eu continuei

confiando nela, e acreditando, e seguindo-a com alegria extática, sem

acordar nem ficar surpreso quando ela se transformou na minha mãe, e

não havia mais nada de lado ariano. Até que chegamos na água. Na

beira d’água estava um homem fardado, de bigode loiro, com as pernas

bem abertas, que disse: ‘É preciso se separar’.

“Então ficou claro que era a água que a deixava gelada e a fazia

tremer de frio, e que eu não a veria mais. Acordei triste e até este

momento, ao encerrar estas anotações, a tristeza ainda não se foi.”


2

FIMA LEVANTA-SE PARA TRABALHAR

Efraim se levantou da cama com a roupa de baixo suada, entreabriu

um pouco a persiana e espiou o início de um dia de inverno em

Jerusalém. As casas próximas não lhe pareceram próximas, e sim

distantes dele e distantes uma da outra, e entre elas fios de neblina

baixa. Não havia sinal de vida lá fora. Como se o sonho continuasse. Só

que agora não havia pátios calçados, e sim uma rua miserável na

extremidade sudoeste de Kiryat Yovel, uma fileira de prédios, largos e

pesados, construídos no final dos anos 50. Os moradores tinham

fechado a maioria dos terraços com blocos de cimento, placas de

asbesto, alumínio ou vidro. Aqui e ali um caixilho vazio ou um canteiro

de plantas negligenciadas num parapeito enferrujado. Ao sul, as colinas

de Belém fundiam-se nesta manhã com as nuvens cinzentas, numa

aparência horrorosa, suja até, mais parecendo pilhas de dejetos

industriais do que colinas. Um dos vizinhos estava com dificuldade

para fazer o carro pegar, por causa do frio e da umidade. O motor de

arranque roncava sem parar, parecendo um doente dos pulmões

prestes a morrer mas que ainda insistia em fumar. Mais uma vez Fima

foi tomado pela sensação de que estava ali por engano, que deveria

estar num lugar totalmente diferente.

Mas qual era esse engano, ou onde era o lugar em que deveria estar,

não sabia nesta manhã. Aliás, não sabia nunca.

O ronco do carro despertou a sua tosse matutina, e ele se afastou da

janela, porque não queria começar o seu dia de forma tão insensata e

patética. Pelo mesmo motivo disse a si mesmo: “Preguiçoso!”, e


começou a fazer um pouco de ginástica, flexões e alongamentos, na

frente do espelho, repleto de manchas escuras que pareciam ilhas e

continentes. O espelho estava fixado na parte externa de uma das

portas do velho guarda-roupa marrom que seu pai lhe comprara cerca

de trinta anos antes. Talvez devesse ter perguntado à ex-mulher o que

podia separar para si, mas perdera a oportunidade.

De modo geral Fima detestava gente em pé ao lado da janela. De

modo particular, abominava a visão de uma mulher olhando pela

janela, de costas para o quarto e cabeça para fora. Antes de se

divorciar, frequentemente irritava Yael pedindo-lhe que não ficasse

daquele jeito, olhando para a rua ou para as colinas.

“O que é que há? Estou quebrando as regras?”

“Você sabe que isso me deixa aborrecido.”

“Problema seu, Effy.”

Mas esta manhã até a sua ginástica na frente do espelho o aborrecia e

cansava. Depois de dois ou três minutos parou, não sem antes chamar-

se mais uma vez de preguiçoso. Resfolegou e acrescentou zombando:

“Problema seu, companheiro”.

Estava com cinquenta e quatro anos. E durante os anos que estivera

vivendo sozinho, criou o hábito de falar consigo mesmo. Atribuía o

hábito a suas velhas manias de solteiro, junto com derramar a geleia,

aparar os pelos de uma das narinas e esquecer a outra, abrir a

braguilha a caminho do banheiro para economizar tempo, mas errar a

pontaria ao começar a mijar, ou puxar a descarga no meio, na

esperança de que o som da água corrente o ajudasse a esvaziar a

bexiga. Sempre tentava acabar enquanto a descarga ainda corria, de

modo que havia uma corrida entre sua própria água e a água do vaso.

Ele era sempre o perdedor, e se defrontava com a irritante alternativa

de ficar ali em pé, ferramenta na mão, até que o reservatório enchesse

e pudesse puxar novamente a descarga; ou então, admitir a derrota e

deixar o mijo no vaso até a próxima vez. Não gostava de admitir a

derrota, nem de perder tempo esperando a caixa encher, de modo que

ficava puxando a alavanca impacientemente antes de o reservatório

estar cheio. Isto provocava um fluxo prematuro, com o volume de água

insuficiente para a descarga total, e mais uma vez ele se deparava com
a incômoda escolha entre esperar mais um pouco ou desistir e ir

embora.

Ao longo da sua vida tivera diversos amores, ideias, um livro de

poemas que tinha gerado alguma expectativa, reflexões acerca do

sentido do universo, opiniões claras sobre os descaminhos do país,

uma fantasia detalhada sobre a criação de um novo movimento

político, saudades de coisas diversas, e a ânsia constante de abrir uma

página nova. E aí estava ele agora, neste apartamento escuro numa

manhã cinzenta e úmida, envolvido numa batalha humilhante para

soltar a ponta de sua camisa do zíper da calça. Enquanto lá fora um

pássaro molhado ficava repetindo a mesma frase musical de três notas,

como se tivesse chegado à conclusão de que ele era tão retardado que

jamais entenderia.

Desta forma, identificando e classificando meticulosamente os seus

hábitos de solteirão de meia-idade, Fima esperava distanciar-se de si

mesmo, abrindo espaço para a gozação, e desta maneira defender seus

anseios e o seu respeito próprio. Mas certas vezes, esta obcecada busca

do ridículo e do compulsivo em si mesmo lhe parecia, numa espécie de

iluminação, não uma linha de defesa entre si mesmo e o solteirão de

meia-idade, mas de fato um estratagema utilizado pelo solteirão para

livrar-se dele e tomar o seu lugar.

Decidiu voltar ao guarda-roupa e dar uma olhada em si mesmo no

espelho. E decidiu também não encarar seu corpo com repulsa,

desespero, ou autopiedade, mas com resignação. No espelho

identificou um burocrata pálido, um pouco gordo, com dobras de

gordura na cintura, cuja roupa de baixo não estava muito limpa, que

tinha pelos escuros e ralos sobre pernas brancas, finas demais em

relação à barriga, cabelo grisalho, ombros frágeis, e um peito

masculino flácido, que dava a impressão de seios, cheio de espinhas,

uma delas com uma mancha vermelha em volta. Ele espremia as

espinhas entre o polegar e o indicador, olhando no espelho. Quando a

espinha estourava espirrando o pus amarelo, ele sentia um vago e

irritável prazer. Durante cinquenta anos, como a gestação de um

elefante, este funcionário sem rosto estivera mamando no útero,

criança, jovem e adulto, e agora os cinquenta anos tinham se passado,


a gestação estava completa, o útero tinha se aberto, a borboleta tinha

virado crisálida. Era nesta crisálida que Fima se reconhecia.

Ele via também que agora os papéis estavam invertidos, que daí por

diante, nas profundezas do seu casulo, a criança de olhos grandes e

membros desajeitados estaria se escondendo para sempre.

A resignação acompanhada de um leve deboche às vezes contém o

seu oposto: um anseio interior pela criança, pela juventude e pelo

adulto de cujo útero a crisálida emergiu. E assim, às vezes ele

experimentava por um instante a restauração daquilo que jamais podia

ser restaurado, aquilo que era puro, consistente, imune à decadência, à

prova de tristeza e saudade. Como que aprisionado numa bolha de

vidro, por um instante o amor de Yael lhe era restaurado, com o toque

dos seus lábios e da sua língua atrás da orelha, e o seu sussurro: “Aqui,

me toca aqui”.

No banheiro, Fima ficou perplexo quando descobriu que sua espuma

de barba terminara, mas teve a brilhante ideia de se barbear com uma

grossa camada de sabonete comum. Só que o odor do sabonete era

azedo, como axilas num dia de calor. Barbeou os maxilares até ficarem

vermelhos, mas esqueceu-se de barbear os pelos sob o queixo. Aí

tomou um chuveiro quente e no final achou coragem para trinta

segundos de água gelada; por um momento sentiu-se fresco e

vigoroso, pronto a abrir um novo capítulo em sua vida, até que a

toalha, ainda úmida do dia anterior, e do dia anterior ao anterior, e do

outro e do outro, envolveu-o com seu próprio odor viciado, como se

ele tivesse vestido uma camisa suja.

Do chuveiro, foi até a cozinha e colocou água para o café; lavou uma

xícara suja da pia, pôs dois tabletes de sacarina e duas colheres de café

solúvel, e foi arrumar a cama. Sua briga com os lençóis durou vários

minutos. Ao voltar para a cozinha, viu que esquecera a porta da

geladeira aberta na noite anterior. Tirou a margarina, a geleia e um

iogurte que abrira na véspera, mas descobriu que um inseto débil

mental havia por alguma razão escolhido o iogurte para se suicidar.

Tentou pescar o cadáver com uma colher de chá, mas tudo o que

conseguiu foi afundá-lo de vez. Jogou o pote de iogurte no lixo e

contentou-se com café preto, presumindo, sem verificar, que o leite

azedara porque a porta da geladeira tinha ficado aberta.


Ocorreu-lhe ligar o rádio e ouvir o noticiário. O ministério tinha

ficado reunido até tarde da noite. Será que o comando especial de

paraquedistas tinha saltado em Damasco e capturado o presidente

Assad? Ou será que Yasser Arafat discursara diante do Knesset, o

Parlamento israelense, em Jerusalém? Fima imaginava que a maioria

das notícias seria acerca de uma desvalorização do shekel, ou sobre

algum caso de corrupção. Ele se viu convocando seu gabinete para

uma reunião noturna. Um velho sentimento revolucionário dos seus

dias de movimento juvenil fê-lo situar a reunião numa sala de aula

numa escola pública abandonada em Katamon, com bancos

descascados e contas de aritmética rabiscadas no quadro-negro. Ele

próprio, vestindo uma jaqueta de operário e calças puídas, não estava

sentado à mesa do professor, mas no peitoril da janela. Ele pintaria um

retrato impiedoso da realidade, deixaria os ministros atônitos com sua

descrição do desastre iminente. Ao amanhecer conseguiria assegurar

uma maioria a favor da decisão de retirar todas as nossas forças

armadas, como primeiro passo, da faixa de Gaza, mesmo sem um

acordo. “Se eles bombardearem nossos assentamentos, eu organizo

bombardeios aéreos. Mas se ficarem quietos, se demonstrarem que

estão falando sério em relação à paz, esperaremos um ou dois anos e aí

abriremos negociações sobre o futuro da Margem Ocidental.”

Depois do café, vestiu o velho pulôver marrom esfarrapado que Yael

lhe deixara, olhou o relógio e viu que tinha perdido o noticiário das

sete horas. Resolveu então descer para pegar o jornal na caixa de

correio. Mas esqueceu a chave, e teve que arrancar o jornal pela fresta,

rasgando a primeira página. Ao voltar para cima, lendo as manchetes

enquanto subia as escadas, concluiu que o país caíra nas mãos de um

bando de lunáticos, que ficavam o tempo todo martelando sobre Hitler

e o Holocausto mas sempre se apressavam em boicotar qualquer

possibilidade de paz, enxergando a paz como uma trama nazista

visando sua destruição. Quando chegou à sua porta, percebeu que

mais uma vez caíra em contradição, e advertiu a si próprio da histeria e

das lamúrias tão típicas da intelectualidade israelense: Temos que

tomar cuidado com a tentação tola de presumir que a história se

encarrega de punir o culpado. Preparou uma segunda xícara de café,

enquanto ensaiava o argumento que costumava usar em suas


discussões políticas com Uri Gefen e Tsvika e o resto do grupo:

precisamos aprender a existir e operar a longo prazo em circunstâncias

provisórias mas que podem se arrastar durante anos, em vez de reagir à

realidade com eternas reclamações. A nossa falta de preparo mental

para viver numa situação com final incerto, nosso desejo de chegar ao

fundo de imediato e decidir de uma vez como será o final, estas são

seguramente as causas da nossa impotência política.

Quando acabou de ler o que um crítico de TV tinha a dizer sobre um

programa a que tivera intenção de assistir na noite anterior mas

esquecera, já eram mais de oito horas e ele havia perdido o noticiário

mais uma vez. Zangado, decidiu que tinha que se sentar para trabalhar

imediatamente. Repetiu para si mesmo as palavras do sonho: “É preciso

se separar”. Mas se separar do quê? Uma voz quente e delicada, que

não era nem masculina nem feminina mas que continha uma profunda

compaixão, disse: “E onde está você, Efraim?”. Boa pergunta,

respondeu Fima.

Sentou-se à sua escrivaninha e viu as cartas não respondidas e a lista

de compras que fizera sábado à tarde, e lembrou-se de que tinha que

telefonar para alguém nesta manhã a respeito de algo que não podia

esperar, mas não conseguiu de jeito nenhum se lembrar de quem era.

Discou o número de Tsvika Kropotkin, acordou-o, e gaguejou uma

comprida e embaraçada desculpa, mas mesmo assim segurou Tsvi na

linha por uns bons vinte minutos falando sobre a tática da esquerda e

as novas mudanças na posição dos Estados Unidos, e a bomba-relógio

do fundamentalismo islâmico prestes a explodir à nossa volta, até que

Tsvi interrompeu: “Fima, sinto muito, não fique bravo, mas acontece

que eu tenho que me vestir. Estou atrasado para uma aula”. Fima

concluiu a conversa do mesmo jeito que iniciara, com um pedido de

desculpas longo demais. Até agora não conseguia se lembrar se tinha

que telefonar ou esperar o telefonema de alguém, que, aliás, talvez

tivesse perdido por causa da sua conversa com Tsvi. Foi mais um

monólogo do que uma conversa. Então abandonou a ideia de ligar

também para Uri Gefen, e verificou seu extrato bancário, mas não

conseguiu entender se haviam sido creditados na sua conta seiscentos

e cinquenta shekels e debitados quatrocentos e cinquenta, ou o

contrário. Deixou pender a cabeça, e diante de seus olhos fechados


passavam hordas de muçulmanos fanáticos entoando suras e berrando

slogans, destruindo e queimando tudo o que encontravam pelo

caminho. Aí a praça ficou vazia, apenas restos de papel amarelado

flutuando na brisa, e se misturando com a chuva contínua que caía

daqui até as colinas de Belém, imersas na névoa cinza. Onde está você,

Efraim? Onde está o lado ariano? E se ela gela, por que gela?

Fima despertou com o toque de uma pesada e quente mão. Abriu os

olhos e viu a mão bronzeada de seu pai apoiada sobre sua coxa, como

uma tartaruga. A mão era velha e grossa, com unhas amareladas. Tinha

vales e colinas e era repleta de veias azuis, com manchas de pigmentos

e esparsos tufos de pelos. Por um momento entrou em pânico. Então

percebeu que se tratava de sua própria mão. Acordou e releu, três

vezes seguidas, o título que anotara sábado à tarde para um artigo que

prometera entregar no máximo hoje. Mas o que pretendia escrever, o

assunto que excitara a sua veia polêmica, hoje parecia completamente

sem sentido. A própria necessidade de escrever desaparecera.

Uma reflexão rápida revelou que nem tudo estava perdido: não

passava de uma dificuldade técnica. Por causa do céu carregado e da

pesada névoa não havia luz suficiente na sala. Ele precisava de luz. Só

isso. Ligou o interruptor da lâmpada da escrivaninha, com esperança

de assim dar um novo início ao seu artigo, à sua manhã, à sua vida.

Mas a luminária estava quebrada. Ou talvez a lâmpada queimada.

Zangado, correu até o armário na entrada, onde, contrariando suas

expectativas, efetivamente achou uma lâmpada, e fez a troca. Mas a

lâmpada nova estava com defeito, ou talvez tivesse sofrido influência

de sua predecessora. Voltou ao armário, à procura de uma terceira

lâmpada, e no caminho teve a ideia de experimentar a luz no hall de

entrada; aí teve que desculpar as duas lâmpadas, porque na verdade

estava faltando luz. Para livrar-se do tédio decidiu ligar para Yael. Se o

marido atendesse, ele desligaria. Se ela estivesse em casa, a inspiração

do momento lhe diria o que falar. Como daquela vez, depois de uma

briga terrível, quando ele a amolecia com as palavras: “Se nós não

fôssemos casados, eu te pediria para ser minha esposa”, e ela, sorrindo,

respondera entre lágrimas: “Se você não fosse meu marido, eu penso

que diria sim”. Depois de dez ou vinte toques surdos, Fima


compreendeu que Yael não queria falar com ele, a não ser que Ted

estivesse do lado do telefone para impedi-la de atender.

Sentiu-se esgotado. Sua longa jornada noturna pelas vielas de

Valladolid havia arruinado inteiramente a sua manhã. À uma hora tinha

que estar no seu posto atrás da mesa de recepção de uma clínica

particular onde trabalhava, em Kiryat Shmuel, e já eram nove e vinte.

Fima amassou os títulos do seu artigo, a sua conta de luz, a sua lista de

compras, o seu extrato bancário, e jogou tudo na cesta de lixo:

finalmente estava limpando sua mesa para entrar em ação. Foi até a

cozinha para preparar uma nova xícara de café, e enquanto esperava a

água ferver, ficou em pé na semiescuridão recordando a luz noturna de

Jerusalém trinta anos atrás, na rua Agrippa, na frente do Cine Eden,

poucas semanas depois da sua viagem à Grécia. Yael dissera então:

“Sim, Effy, eu te amo mesmo, e gosto de te amar, e gosto do seu jeito

de falar, mas por que você acha que se parar de falar alguns minutos

você vai parar de existir?”. E ele calou a boca como uma criança

repreendida pela mãe.

Quando, depois de quinze minutos, a água no bule elétrico ainda

não estava fervendo, apesar de ele ter se lembrado duas vezes de enfiar

na tomada, finalmente percebeu que sem eletricidade jamais teria o seu

café. Então, deitou-se de novo, totalmente vestido sob o pesado

cobertor de inverno, acertou o despertador para quinze para o meio-

dia, escondeu o caderno de sonhos sob a pilha de jornais e revistas ao

pé da cama, cobriu-se até o queixo, e concentrou seus pensamentos

em mulheres até que conseguiu ficar excitado. Agarrou o pau com os

dez dedos, como um ladrão segurando uma calha, ou, e deu um

risinho de escárnio, como um náufrago agarrando-se a um pedaço de

pau. Mas o cansaço foi muito maior que o desejo, de modo que largou

o pau e adormeceu. Lá fora, a chuva aumentou.


3

UMA LATA DE MINHOCAS

No noticiário do meio-dia ele escutou que um jovem árabe fora

atingido e morto por uma bala plástica, aparentemente disparada pelo

rifle de um soldado no campo de refugiados de Jebeliyeh, no decorrer

de um apedrejamento, e que o cadáver fora furtado do hospital de

Gaza por jovens mascarados. As circunstâncias estavam sendo

investigadas. Fima refletia sobre o fraseado da notícia. Não gostava

particularmente da expressão “morto por uma bala plástica”. E fervia de

raiva com a palavra aparentemente. Também ficava aborrecido, de forma

mais geral, com os verbos passivos que começavam a tomar conta das

declarações oficiais, e pareciam estar infectando a linguagem como um

todo.

Na verdade isto talvez pudesse ser atribuído a um sadio e louvável

senso de vergonha, que nos impedia de simplesmente anunciar: um

soldado judeu atingiu e matou um adolescente árabe. Por outro lado,

essa linguagem poluída nos afirmava constantemente que a culpa era

do rifle, das circunstâncias que estavam sendo investigadas, da bala

plástica, como se todo o mal fosse culpa do Céu e tudo fosse

predestinado.

“E na verdade”, pensou ele, “quem pode saber?”

Afinal, há uma espécie de magia secreta nas palavras culpa do Céu.

Mas aí ficou bravo consigo próprio. Não havia magia, muito menos

secreta. Deixe o Céu em paz.

Fima apontou um garfo para sua testa, para sua têmpora, para sua

nuca, e tentou adivinhar a sensação do instante em que a bala


despedaça o crânio e explode: nenhuma dor, nenhum barulho, talvez,

imaginou ele, talvez apenas um fugaz lampejo de incredulidade, como

uma criança preparada para levar do pai um tapa no rosto e em vez

disso leva um soco no olho. Haverá uma fração, um átomo de tempo,

em que ocorra a iluminação? A luz dos sete céus? Quando tudo aquilo

que foi vago e fugaz a vida inteira momentaneamente se revela antes

que a escuridão desabe? Como se durante todos esses anos você

estivesse procurando uma solução complicada para um problema

complicado, e no instante final reluz numa faísca uma solução simples?

Aqui Fima disse indignado para si mesmo: “Pare de foder com sua

cabeça”. As palavras vago e fugaz lhe causavam nojo. Levantou-se e saiu,

trancando a porta do apartamento atrás de si, e prestando atenção no

bolso onde punha a chave. No saguão de entrada do prédio

vislumbrou a ponta branca de uma carta enfiada na sua caixa de

correio. Mas a única chave que tinha no bolso era a da porta da frente.

A chave da caixa possivelmente ainda estava sobre a sua escrivaninha.

A não ser que estivesse no bolso de outra calça. Ou no canto da mesa

da cozinha. Após um instante de hesitação, encolheu os ombros; a

carta provavelmente nada mais era do que a conta de água ou de

telefone, ou um folheto de propaganda.

Enquanto almoçava uma omelete de salame, uma salada e uma

compota de frutas no café do outro lado da rua, ficou surpreso ao ver

pela janela que havia luz no seu apartamento. Refletiu um pouco sobre

o fato, pesou a remota possibilidade de estar nos dois lugares ao

mesmo tempo, mas preferiu admitir que o problema fora sanado e a

eletricidade restaurada. Espiando no relógio, decidiu que se subisse até

o apartamento, desligasse a luz, achasse a chave da caixa de correio e

pegasse a carta, chegaria atrasado para o trabalho, de modo que pagou

a refeição dizendo: “Obrigado, senhora Schönberg”. Como sempre, ela

corrigiu:

“É Scheinman, doutor Nisan.”

“É claro”, respondeu Fima. “Desculpe. Quanto lhe devo? Já paguei?

Bem, só posso dizer que não deve ser por acaso. Acho que eu quis

pagar duas vezes, porque o schnitsel — foi um schnitsel, não foi — estava

especialmente saboroso. Desculpe. Obrigado. Até logo. Preciso correr

agora. Olhe só essa chuva. A senhora não está com aparência um


pouco cansada? Ou triste? Provavelmente é por causa do inverno. Não

faz mal. Deve clarear logo, logo. Até amanhã.”

Vinte minutos depois, quando o ônibus parou no Auditório Nacional,

ocorreu a Fima o quanto tinha sido ridículo sair num dia como este sem

guarda-chuva. Ou prometer à proprietária do café que logo, logo iria

clarear. Baseado em quê? De repente uma faixa brilhante de luz

avermelhada rasgou as nuvens; Fima ficou extasiado vendo aquela luz

incendiar uma janela no alto do edifício do Hilton Hotel. Embora

extasiado, pôde ver uma toalha balançando na grade de um terraço no

décimo ou vigésimo andar, e sentiu nas narinas o perfume exato da

mulher que acabara de se enxugar com aquela toalha. Veja, disse para

si mesmo, nada na verdade está perdido, nada é apagado, e raramente

existe um momento em que não aconteça algum pequeno milagre.

Talvez tudo seja para o melhor.

O apartamento de dois quartos em Kiryat Yovel fora comprado pelo

pai de Fima como presente, quando este se casou pela segunda vez,

em 1961, menos de um ano depois de Fima terminar com distinção seu

curso de história na universidade de Jerusalém. Naqueles dias seu pai

depositava grandes esperanças nele. Outras pessoas também

acreditavam no futuro de Fima. Ele ganhou uma bolsa, e quase seguiu

os estudos para o mestrado; havia até a ideia de doutorado e carreira

acadêmica. Mas no verão de 1960 a vida de Fima passou por uma série

de percalços ou dificuldades. Até hoje seus amigos sorriem

afetuosamente quando, na sua ausência, a conversa gira em torno do

“ano do desbunde do Fima”. No meio de julho, logo depois dos seus

exames finais, no jardim do Convento Ratisbonne, ele se apaixonou

pela guia francesa de um grupo de turistas católicos. Estava sentado

num banco do jardim esperando a namorada, uma estudante de

enfermagem chamada Shula, que dois anos depois se casou com seu

amigo Tsvi Kropotkin. Fima segurava entre os dedos um broto florido

de oleandro e os pássaros discutiam sobre sua cabeça. Nicole, sentada

no banco ao lado, se dirigiu a ele: “Será que há água por aqui? Você

fala francês?”. Fima respondeu afirmativamente às duas perguntas,

mesmo não tendo a menor ideia de onde achar água e sabendo apenas

umas poucas palavras de francês. A partir daquele momento, seguiu as

pegadas dela por toda parte em Jerusalém; não a deixava em paz


apesar dos educados pedidos dela; não desistiu nem quando o líder do

grupo o advertiu de que seria obrigado a registrar queixa contra ele.

Quando ela foi à missa na Abadia da Dormição, ele esperou do lado de

fora como um cachorro durante uma hora e meia. Toda vez que ela

saía do Kings’ Hotel, em frente ao Edifício Terra Sancta, encontrava

Fima diante da porta giratória, olhos brilhando. Quando ela ia ao

museu, lá estava ele à espreita em cada sala. Quando ela voltou para a

França, ele a seguiu até Paris e inclusive até sua casa em Lyon. Numa

noite de luar, já depois da meia-noite, assim corre a história em

Jerusalém, o pai dela saiu da casa e disparou um tiro com uma

espingarda de cano duplo, atingindo a perna de Fima. Durante os três

dias que passou num hospital franciscano procurou se informar do que

era preciso fazer para converter-se ao cristianismo. O pai de Nicole, ao

visitá-lo no hospital para se desculpar, ofereceu-se para ajudá-lo a se

converter. Entrementes, Nicole ficou farta também do pai, e fugiu de

ambos, primeiro para sua irmã em Madri, e depois para sua cunhada

em Málaga. Sujo, desesperado e maltrapilho, ele a perseguiu em trens e

ônibus poeirentos até que seu dinheiro acabou em Gibraltar e, com a

ajuda da Cruz Vermelha, foi devolvido quase à força para Israel a

bordo de um cargueiro panamenho. Ao chegar em Haifa foi detido, e

passou seis semanas numa prisão militar porque falsificara a data no

formulário de autorização para um soldado da reserva deixar o país.

Dizem que no início da paixão Fima pesava setenta e dois quilos, e em

setembro, no hospital da prisão, pesava menos de sessenta. Foi

libertado depois que seu pai intercedeu por ele junto a um oficial

veterano, cuja esposa em seguida se apaixonou perdidamente por

Fima; era uma mulher conhecida em Jerusalém, dona de uma famosa

coleção de gravuras, dez anos mais nova que o marido e pelo menos

oito anos mais velha que Fima. No outono ela engravidou dele e se

mudou para os seus aposentos em Mustara. Foram assunto de toda a

cidade. Em dezembro Fima pegou um outro cargueiro, iugoslavo desta

vez, e desembarcou em Malta, onde passou três meses trabalhando

numa criação de peixes tropicais e escrevendo seu ciclo de poemas, A

morte de Augustino e sua ressurreição nos braços de Dulcineia. Em janeiro a

proprietária do hotel onde ele estava hospedado em Valetta

apaixonou-se por ele e mudou a bagagem de Fima para o quarto dela.


Com medo de que ela pudesse engravidar também, decidiu casar-se

com ela — um casamento civil. O casamento durou menos de dois

meses, porque entrementes o pai de Fima, com a ajuda de amigos em

Roma, descobriu seu paradeiro. Fima foi informado de que sua mulher

em Jerusalém perdera o bebê, entrara em depressão, e voltara ao

marido e à sua coleção de gravuras. Fima decidiu que para ele não

havia perdão, resolveu abandonar a dona do hotel e afastar-se das

mulheres para sempre. Chegou à conclusão de que o amor conduz

inexoravelmente à desgraça, enquanto relações sem amor apenas

geram mágoa e humilhação. Deixou Malta sem um centavo, no convés

de um barco pesqueiro turco. Seu plano era retirar-se pelo menos por

um ano num certo mosteiro na ilha de Samos. No caminho foi

acometido de pânico pelo pensamento de que sua ex-esposa pudesse

também estar grávida e que teria que voltar para ela; ao mesmo tempo,

porém, sentiu ter agido sabiamente ao deixar para ela todo o seu

dinheiro, mas nenhum endereço onde pudesse ser encontrado.

Desembarcou em Tessalonica e passou a noite num albergue de

jovens, onde teve um sonho doce e dolorido com Nicole, seu primeiro

amor, cuja pista perdera em Gibraltar. No sonho o nome dela tinha

mudado para Thérèse, e Fima via seu próprio pai com uma espingarda

carregada mantendo-a, junto com seu bebê, prisioneira num porão da

Associação Cristã de Moços em Jerusalém, só que no fim do sonho ele

próprio tinha se tornado a criança cativa. Na manhã seguinte, propôs-

se a procurar uma sinagoga, embora jamais tivesse sido um judeu

praticante e tinha certeza de que Deus não era nada religioso e nem se

interessava por religião. Mas, como não tinha nenhum outro endereço,

resolveu tentar uma sinagoga. Na frente da sinagoga encontrou três

moças israelenses viajando de mochila pela Grécia e que tinham

decidido ir para as montanhas do Norte com a chegada da primavera.

Fima juntou-se a elas, e no caminho, assim contam, perdeu a cabeça

por uma das três, Ilia Abravanel, de Haifa; para ele, era a imagem de

Maria Madalena, numa pintura que vira em algum lugar, não se

lembrava onde e nem quem era o artista. Como Ilia não se rendeu às

suas investidas, ele dormiu algumas vezes com sua amiga, Liat Sirkin,

que o convidava a compartilhar seu sleeping-bag quando tinham que

passar a noite em algum vale montanhoso ou solo sagrado. Liat Sirkin


ensinou a Fima alguns prazeres incomuns e deliciosos; mas ele sentia,

além das emoções carnais, pálidas insinuações de uma elevação mais

espiritual: quase diariamente sentia-se tomado por um encanto mágico

secreto misturado com um senso de exaltação, que lhe

proporcionavam uma capacidade de visão elevada como jamais

experienciara antes e nem viria a experienciar depois. Durante aqueles

dias nas montanhas do Norte da Grécia era capaz de, ao olhar o nascer

do sol sobre as oliveiras, ver a criação do mundo. E saber com certeza

absoluta, ao passar por um rebanho de ovelhas no calor do meio-dia,

que esta não era a primeira vez que vivia. E estar sentado no terraço de

uma taverna da aldeia, sob uma pérgola coberta de parreiras, comendo

salada com queijo e tomando vinho, e ouvir de fato o rugir de uma

tempestade de neve nas planícies polares. Tocava melodias para as

moças numa flauta que ele próprio fizera de bambu, e não tinha

vergonha de pular e girar na frente delas como uma criança doida, até

provocar gargalhadas infantis e uma sensação simples de felicidade.

Naqueles dias não via contradição nenhuma entre desejar Ilia e dormir

com Liat, porém mal notava a terceira moça, que em geral preferia ficar

calada. Apesar disso, foi ela que enfaixou seu pé quando ele se cortou

ao pisar num pedaço de vidro quebrado. As três moças, juntamente

com as mulheres anteriores na sua vida, inclusive sua mãe, que

morrera quando ele tinha dez anos, quase se fundiam numa única

mulher em sua mente. Não porque achasse que uma mulher é apenas

uma mulher, mas porque, com a sua iluminação interior, às vezes

sentia que as diferenças entre as pessoas, quaisquer pessoas —

homens, mulheres ou crianças —, não tinham nenhuma importância a

não ser para a camada externa, a superfície efêmera. Da mesma

maneira que a água assumia a forma de neve, neblina ou vapor, ou um

cubo de gelo, ou nuvens, ou granizo. Ou como os sinos das igrejas e

dos mosteiros se diferenciavam apenas pelo tom ou pelo ritmo, mas

tinham todos o mesmo significado. Ele compartilhou seus pensamentos

com as moças, e duas delas acreditaram nele ao passo que a terceira o

chamou de simplório e se contentou em remendar sua camisa; também

nisso Fima enxergou apenas expressões diferentes de uma mesma

constatação. Esta terceira moça, Yael Levin, de Yavne’el, não deixava

de acompanhá-los quando nadavam nus nas noites de luar se


encontrassem uma fonte ou riacho. Uma vez, viram furtivamente, à

distância, um jovem pastor satisfazer suas necessidades com uma

cabra. Outra vez, viram duas velhas e pias mulheres, em trajes de

viúvas, com grandes cruzes de madeira no peito, sentadas

silenciosamente numa rocha no campo, em pleno calor do meio-dia,

imóveis, dedos entrelaçados. Uma noite ouviram sons de música

vindos de uma ruína vazia. E um dia passou por eles no sentido

contrário uma velho encarquilhado tocando um acordeão quebrado

que não emitia som algum. Na manhã seguinte caiu uma chuva forte e

breve, e o ar ficou tão claro que eles podiam ver as sombras das

árvores se movendo nos telhados vermelhos das pequenas aldeias em

vales distantes e quase podiam distinguir cada agulha dos ciprestes e

pinheiros nas encostas das montanhas. Um dos picos ainda mantinha

uma capa de neve, que parecia prateada, e não branca, contra o fundo

azul do céu. Bandos de pássaros executavam no alto uma espécie de

dança do véu. Fima, sem nenhuma razão especial, de repente disse

algo de que as três moças deram risada:

“Aqui”, disse, “está enterrado o cachorro.”

“Eu me sinto mais em sonho do que se estivesse sonhando, e mais

desperta do que quando estou desperta. Não consigo explicar isso.”

Liat disse:

“É a luz. Só isso.”

E Yael:

“Quem está com sede? Vamos descer até a água.”

Menos de um mês após o fim da viagem, Fima foi a Yavne’el à

procura da terceira garota. Descobriu que Yael Levin era formada pelo

Departamento de Engenharia Aeronáutica do Technion de Haifa, e

trabalhava numa instalação ultrassecreta da força aérea nas colinas a

oeste de Jerusalém. Depois de alguns encontros, descobriu que a

presença dela o deixava tranquilo, ao passo que a presença dele a

divertia na sua maneira plácida de ser. Quando ele perguntou,

hesitante, se ela achava que ambos combinavam, a resposta dela foi:

“Gosto do seu jeito de falar”. Ele viu nessa frase um indício de afeto,

que guardou no coração. A seguir procurou Liat Sirkin e ficou sentado

com ela durante meia hora num café à beira-mar, só para se certificar

de que não a tinha engravidado. Mas depois do café permitiu-se dormir


com ela mais uma vez num hotel barato em Bat Yam, de modo que

ficou novamente na dúvida. Em maio convidou todas as três para

conhecerem seu pai em Jerusalém. O velho encantou Ilia com seu

cavalheirismo à moda antiga, divertiu Liat com anedotas e fábulas com

moral, mas preferiu Yael, que demonstrava, pensou, “sinais de

profundidade”. Fima concordou com ele, embora não tivesse certeza

de quais seriam esses sinais. Continuou saindo com ela, até que um dia

ela disse: “Olhe só a sua camisa, metade dentro das calças e metade

fora. Espere. Vou arrumar para você”.

E em agosto de 1961 Yael e Efraim Nisan estavam casados no

pequeno apartamento que seu pai lhe comprara em Kiryat Yovel, nos

limites de Jerusalém. Isto depois de Fima ter concordado em assinar, na

presença de um escrivão, um documento redigido por seu pai

contendo um compromisso irretratável de refrear-se, daí em diante, de

qualquer ato que seu pai pudesse definir como “aventura”. Fima

também se comprometeu a começar, após um ano perdido, os estudos

para o mestrado. O pai, por sua vez, concordava em financiar os

estudos do filho bem como o estágio final do treinamento de Yael, e

até mesmo lhes garantia uma pequena mesada durante os primeiros

cinco anos de casamento. Daí por diante o nome de Fima não foi mais

mencionado nas fofocas de Jerusalém. As aventuras tinham chegado ao

fim. O ano do desbunde chegara ao fim, e tiveram início os anos de

lesma. Mas ele não voltou à universidade, exceto talvez com algumas

ideias que deu ao amigo Tsvi Kropotkin, que nesse meio-tempo

prosseguira sem parar, do mestrado para o doutorado, e já lançava as

fundações para um sólido edifício de artigos e livros no campo da

história.

Em 1962, sob a insistência de seus amigos e graças aos esforços

especiais por parte de Tsvika, Fima publicou o ciclo de poemas que

escrevera durante o seu breve casamento em Malta: A morte de Augustino e

sua ressurreição nos braços de Dulcineia. Durante um ou dois anos houve

críticos e leitores que viram em Efraim Nisan uma promessa a ser

realizada. Mas, após algum tempo, até mesmo a promessa feneceu,

porque a musa de Fima silenciou. Ele não escreveu mais poemas.

Toda manhã Yael era apanhada por um veículo militar, e levada para

o trabalho numa base cuja localização Fima não sabia, onde estava
envolvida no desenvolvimento de alguma novidade tecnológica que

Fima não entendia e pela qual não se interessava. Ele passava a manhã

inteira zanzando pelo apartamento, escutando todos os noticiários,

atacando a geladeira e comendo de pé, discutindo em voz alta consigo

mesmo e com os locutores dos noticiários, arrumando furiosamente a

cama que Yael não tinha conseguido arrumar antes de sair. Na

verdade, ela não tinha como arrumar, pois ele ainda estava dormindo.

Aí terminava de ler o jornal matutino, saía para comprar alguma coisa

na mercearia, voltava com dois jornais vespertinos, e mergulhava neles

até a noite, deixando suas folhas espalhadas pelo apartamento. Entre

ler jornais e ouvir noticiários, impunha a si mesmo a obrigação de

sentar-se à escrivaninha. Por um tempo ocupou-se com um livro

cristão, o Pugio Fidei, do padre Raymond Martini, publicado em Paris em

1651 para refutar de uma vez por todas a fé dos “Mouros e dos Judeus”.

Fima estava considerando um estudo renovado sobre as origens do

antissemitismo eclesiástico. Mas, de uma hora para outra, passou a ter

um profundo interesse pela ideia do Deus Oculto. Mergulhou então na

biografia do eremita Eusebius Sophronius Hieronimus, que aprendeu

hebraico com um professor judeu, estabeleceu-se em Belém em 386,

traduziu ambos os testamentos para o latim, e possivelmente

aprofundou a cisão entre judeus e cristãos. Mas este estudo não saciou

Fima. A lassidão tomou conta dele, e ele afundou no ócio. Folheava a

enciclopédia, esquecia o que estava procurando, e perdia duas ou três

horas lendo os verbetes em ordem alfabética. Quase todo final de tarde

vestia seu casaco surrado e saía para visitar os amigos, conversando até

de madrugada sobre o Caso Lavon, o julgamento de Eichmann, a crise

dos mísseis cubanos, os cientistas alemães no Egito, o significado da

visita do papa à Terra Santa. Quando Yael chegava antes e perguntava

se ele tinha comido, Fima respondia irritado: “Por quê? Onde está

escrito que eu preciso comer?”. E então, enquanto ela estava no

chuveiro, ele explicava pela porta fechada quem realmente estava por

trás do assassinato do presidente Kennedy. Mais tarde, quando ela

perguntava se ele estava saindo para discutir com Uri ou Tsvika,

respondia: “Não, vou para uma orgia”. E perguntava a si mesmo como

tinha permitido que seu pai o amarrasse a essa mulher. Porém, de

repente sentia-se novamente apaixonado pelos dedos fortes dela


esfregando seus quadris pequenos no fim do dia, ou pelo seu hábito de

acariciar as pálpebras, perdida em pensamentos; então ele a cortejava

como um jovem tímido e apaixonado até que ela permitisse a Fima lhe

dar prazer, e aí ele a fazia vibrar, com avidez e precisão, com uma

espécie de atenção profunda. Às vezes dizia a ela, quando alguma

briga mesquinha se desenhava: “Espere um pouco, Yael, isso vai

passar. Daqui a pouco acertamos a nossa vida”. Às vezes saíam sexta-

feira à noite para passear juntos nas ruas desertas de Jerusalém, e ele

falava com mal contida excitação sobre a união do corpo e da luz

segundo os místicos antigos. Isto despertava nela tanta alegria e

suavidade que se agarrava a ele e o perdoava por engordar, por

esquecer outra vez de trocar a camisa para o fim de semana, pelo seu

hábito de viver corrigindo o hebraico dela. Voltavam para casa e se

amavam como se o desespero tivesse ficado para trás.

Em 1965, Yael foi trabalhar, sob contrato especial, no centro de

pesquisas da Boeing, em Seattle, Noroeste dos Estados Unidos. Fima

abriu mão de acompanhá-la, argumentando que um período de

separação faria bem a ambos. Permaneceu sozinho no apartamento de

dois quartos em Kiryat Yovel. Tinha um posto modesto de

recepcionista numa clínica ginecológica particular no bairro de Kiryat

Shmuel. Mantinha-se afastado da vida acadêmica, a não ser quando

Tsvi Kropotkin o arrastava para uma conferência de dia inteiro sobre a

importância da personalidade na história, ou sobre o conceito do

historiador como testemunha ocular. Nas noites de Shabat aparecia na

casa de Nina e Uri Gefen, ou outros amigos, e era facilmente

aprisionado pelas suas discussões políticas; às vezes surpreendia todos

os presentes com algum comentário mordaz ou predição paradoxal,

mas nunca sabia como parar quando estava ganhando; continuava

como um jogador compulsivo, discutindo sobre assuntos dos quais não

entendia nada, sobre detalhes absolutamente insignificantes, e

cansando até mesmo seus amigos mais fiéis.

Às vezes chegava com alguns livros e tomava conta dos filhos dos

amigos, enquanto estes saíam para se divertir. Ou se oferecia

animadamente para ajudá-los em algum artigo, lendo as provas,

copidescando ou preparando uma sinopse. Às vezes agia como

diplomata servindo de mediador para um casal em briga. De vez em


quando publicava um artigo curto e mordaz no jornal Ha’arets, a respeito

de algum aspecto do cenário político atual. Uma vez ou outra tirava

alguns dias de férias sozinho num albergue em algum dos

assentamentos mais antigos bem ao norte. Todo verão, com

entusiasmo renovado, tentava aprender a guiar, e todo outono era

reprovado no exame de motorista. Uma vez ou outra alguma mulher

que conhecera na clínica ou por intermédio dos amigos conseguia abrir

caminho para o seu bagunçado apartamento de solteirão e ia parar na

sua cama, cujos lençóis precisavam ser trocados. Logo ela descobria

que Fima estava mais interessado no prazer dela do que no seu

próprio. Algumas mulheres achavam isso maravilhoso e comovente;

outras ficavam inquietas e se apressavam em desembaraçar-se da

situação. Ele era capaz de passar uma ou duas horas proporcionando

uma variedade interminável de sensações deliciosas, repletas de

inventividade e humor físico, antes de se permitir casualmente a sua

própria satisfação; e então, antes que a parceira percebesse que ele

cobrara sua modesta comissão, já estava novamente se dedicando a

ela. Qualquer mulher que tentasse um mínimo de continuidade ou

permanência com Fima, ou conseguisse dele a chave do apartamento,

faria com que ele, após uma ou duas semanas, se refugiasse num

albergue em Pardés Hanna ou Magdiel, e não voltasse enquanto ela

não tivesse desistido. Mas tais episódios tinham se tornado raros nos

últimos cinco ou seis anos.

Quando Yael lhe escreveu de Seattle, no início de 1966, para dizer

que havia outro homem na sua vida, Fima riu da expressão vulgar

“outro homem na minha vida”. Os casos amorosos do seu ano de

desbunde, seu casamento com Yael, a própria Yael, agora pareciam tão

vulgares, tão exagerados, tão infantis quanto a célula revolucionária

clandestina que ele tentara organizar na época de colégio. Decidiu

escrever duas ou três linhas apenas para desejar os melhores votos para

ela e para o outro homem em sua vida. Naquela tarde, sentou-se para

escrever, e não conseguiu parar até o meio-dia do dia seguinte: numa

carta febril de trinta e quatro páginas confessava quão profundo era o

amor que sentia por ela. Depois de reler a carta, rejeitou-a totalmente,

rasgou-a em pedaços, jogando-a no vaso e puxando a descarga. Não se

pode descrever o amor com palavras, e se for possível é sinal de que o


amor não existe mais. Ou está a caminho de não existir. No final,

arrancou uma página de um caderno quadriculado e rabiscou: “Não

posso parar de amá-la porque não depende de mim, mas obviamente

você é livre. Como tenho sido cego. Se há aqui em casa alguma coisa

que você necessite, escreva e mandarei. Por enquanto, estou lhe

mandando um pacote com três camisolas suas, os chinelos felpudos e

as fotos. Mas, se você não se importa, eu gostaria de ficar com a foto de

nós dois em Belém na Galileia”. Yael inferiu desta carta que Fima não

oporia nenhum obstáculo ao divórcio. Mas, quando retornou a

Jerusalém, apresentou um homem pálido e inexpressivo, que tinha um

maxilar largo demais e grossas sobrancelhas, como dois densos

bigodes, e disse: “Efraim Nisan, Ted Tobias, vamos ser todos amigos”.

Aí Fima mudou de ideia e recusou-se terminantemente a conceder o

divórcio. Então Ted e Yael voltaram para Seattle. Perderam contato, a

não ser por alguns postais e aerogramas acerca de assuntos práticos.

Passados muitos anos, no início de 1982, Ted e Yael apareceram no

apartamento de Fima numa tarde de inverno; vinham com seu filho de

três anos, um menino albino, ligeiramente vesgo, com jeito de filósofo

precoce e grossas lentes nos óculos, vestindo uma roupa de astronauta

americano com uma faixa de metal brilhante e a inscrição CHALLENGER.

O sujeitinho logo revelou enorme habilidade de elaborar complicadas

sentenças condicionais e formular perguntas delicadas. Fima se

derreteu imediatamente pelo pequeno Dimi Tobias. Arrependeu-se da

oposição inicial, e ofereceu a Yael e Ted o divórcio, sua ajuda e sua

amizade. Yael, porém, já não dava a menor importância ao divórcio

religioso, e não via motivo para amizade. Nos anos que tinham se

passado, deixara Ted duas vezes para ter casos com outros homens, até

que finalmente decidiu voltar para ele e ter Dimi, pois, na sua opinião,

estava chegando no limite de idade. Fima conquistou o coração do

pequeno Desafiante — Challenger — com uma história sobre um lobo

selvagem que decidiu deixar de ser selvagem e tentou se juntar a uma

colônia de coelhos. Quando a história terminou, Dimi sugeriu um final

diferente, que Fima julgou cheio de lógica, sensibilidade e humor.

Graças à intervenção do pai de Fima, o divórcio foi arranjado

discretamente. Ted e Yael se estabeleceram no subúrbio de Beit

Hakerem, ambos conseguiram emprego num instituto de pesquisas, e


dividiram o ano em três partes: o verão em Seattle, o outono em

Pasadena, o inverno e a primavera em Jerusalém. Às vezes convidavam

Fima na noite de Shabat, quando os Kropotkin, os Gefen e o resto do

grupo também estavam. Às vezes deixavam Dimi com Fima em Kiryat

Yovel e viajavam dois ou três dias para Eilat ou para a Alta Galileia.

Fima se tornou sua babá gratuita, porque sempre estava disponível e

porque uma amizade se desenvolvera entre ele e Dimi. Por alguma

lógica antiga, Dimi o chamava de vovô. E também chamava o pai de

Fima de vovô. Fima aprendeu a fazer casas, palácios e castelos com

palitos de fósforos, caixas de fósforos e cola. Isto estava em total

desacordo com a imagem de Fima cultivada pelos amigos, por Yael e

pejo próprio Fima, ou seja, um parvo desajeitado, que nascera com

duas mãos esquerdas e que não conseguia trocar uma válvula de

descarga ou costurar um botão.

Além de Dimi e seus pais, havia o grupo: gente agradável,

respeitável, alguns dos quais conheciam Fima desde os tempos de

escola e haviam se envolvido indiretamente nos episódios do ano do

desbunde; alguns ainda tinham esperança de que um dia o sujeito iria

acordar, tomar jeito e, de algum modo, conquistar Jerusalém. É

verdade, diziam, que às vezes ele dá nos nervos, exagera, não tem

senso de proporção; mas de outro lado, quando é brilhante, é brilhante

mesmo. Algum dia ele chega lá. Vale a pena investir nele. Sexta-feira

passada, por exemplo, no começo da noite, antes de começar a bancar

o ridículo com suas imitações de políticos, quando ele arrancou a

palavra ritual da boca do Tsvi, e nos enfeitiçou como criancinhas

quando subitamente disse: “Tudo é ritual”, e disparou a sua teoria à

queima-roupa. Falamos no assunto a semana inteira. Ou então aquela

comparação surpreendente entre Kafka e Gogol, e entre ambos e os

contos hassídicos.

Com o correr dos anos alguns deles aprenderam a apreciar em Fima

a especial combinação de presença de espírito e desligamento,

melancolia e entusiasmo, sensibilidade e impotência, profundidade e

palhaçadas. Além de tudo, sempre era possível recrutá-lo para uma

leitura de provas ou discussão de um esboço para um artigo. Nas suas

costas diziam, sem maldade: “Certo, é um sujeito — como dizer? — um

sujeito original e afetivo. O mal é que ele é preguiçoso. Não tem


ambição, Simplesmente não pensa no amanhã. E já não é tão jovem

assim”.

Apesar de tudo, havia algo no seu jeito desengonçado, no modo

ausente de andar e arrastar os pés, na sua testa alta e estreita, nos seus

ombros caídos, nos seus cabelos finos cada vez mais ralos, e nos seus

olhos gentis que pareciam sempre perdidos olhando para dentro ou

para além das montanhas e do deserto: havia algo na sua aparência

que os enchia de afeto e alegria, e provocava um largo sorriso mesmo

quando o viam ao longe, do outro lado da rua, vagando pelo centro da

cidade como se não soubesse quem o havia trazido ou como fazer para

voltar. E diziam: “Olhe, olhe lá o Fima, agitando os braços. Deve estar

tendo alguma discussão consigo mesmo, e deve estar ganhando”.

No decorrer dos anos estabeleceu-se um constrangimento amigável,

cheio de raiva e contradições, entre Fima e o pai, o conhecido

fabricante de cosméticos Baruch Nomberg, membro veterano do

partido de direita Herut. Mesmo agora, tendo Fima cinquenta e quatro

anos e o pai oitenta e dois, o velho ainda tinha a mania de enfiar duas

notas de dez shekels, ou uma de vinte, no bolso do filho ao final de

cada visita. Por sua vez, o pequeno segredo de Fima era que

depositava todo mês oitenta shekels numa caderneta de poupança em

nome do filho de Ted e Yael, que agora tinha dez anos mas ainda

parecia um menino de sete, sonhador e ingênuo. Às vezes, no ônibus,

estranhos notavam uma vaga semelhança entre Fima e o garoto, no

formato do queixo ou da testa, ou no jeito de andar. Na primavera

anterior, Dimi tinha pedido para criar duas tartarugas e alguns bichos-

da-seda num pequeno espaço que Fima e Ted tinham reservado para

ele no terraço da bagunçada cozinha do apartamento em Kiryat Yovel.

E mesmo que Fima fosse considerado pelos outros e até por si próprio

um preguiçoso e distraído incorrigível, o verão inteiro não esqueceu

um único dia sequer de cuidar daquilo que se acostumou a chamar de

“nossa lata de minhocas”. Mas agora, no inverno, os bichos-da-seda

estavam mortos, e as tartarugas tinham sido soltas no wadi, no local

onde subitamente termina Jerusalém e começam as rochas e a

desolação.
4

ESPERANÇAS DE ABRIR UMA NOVA PÁGINA

A entrada da clínica em Kiryat Shmuel era pelo lado de trás, passando

pelo jardim através de um pátio calçado com pedras típicas de

Jerusalém. Agora no inverno, o pátio estava coberto de folhas de

pinheiro, encharcadas e lisas por causa da chuva. Fima estava

totalmente absorto, refletindo se um pássaro gelado que acabara de ver

num galho conseguia ou não ouvir o trovão que rugia do Oeste para o

Leste; a cabeça e o bico do pássaro estavam totalmente enterrados na

plumagem de sua asa. Acometido pela dúvida, virou-se para ver se era

de fato um pássaro ou apenas uma pinha. Foi assim que escorregou e

caiu de joelhos. E permaneceu de quatro, não por causa da dor, e sim

zombando alegremente do seu próprio destino. Disse para si mesmo,

baixinho: “Parabéns, amigão”.

Por algum motivo, sentia merecer o tombo como uma espécie de

continuação do pequeno milagre que experienciara no caminho diante

do Hilton Hotel.

Quando por fim conseguiu pôr-se de pé, ficou parado na chuva

totalmente distraído, como alguém que não sabe de onde veio e não

tem ideia do lugar aonde tem que ir. Erguendo a cabeça, olhou para os

andares superiores, e viu apenas persianas baixadas e janelas com

cortinas fechadas. Aqui e ali, havia terraços com vasos de gerânios. A

chuva lhes dera um brilho sensual, fazendo recordar os lábios pintados

de uma mulher vulgar.

Ao lado da entrada da clínica, havia uma placa elegante, discreta,

feita de vidro negro com letras prateadas: DR. WAHRHAFTIG — DR. EITAN —
ESPECIALISTAS EM DOENÇAS FEMININAS. Pela milésima vez Fima sentiu-se

incomodado com a placa, perguntando-se porque não havia também

clínicas especializadas em doenças masculinas; e também por que a

placa continha uma construção que a língua hebraica não tolera.

Imediatamente sentiu-se ridículo com a expressão “a língua não tolera”,

que lhe parecia absurda sob todo ponto de vista. E sentiu vergonha e

confusão ao se lembrar da sua indignação ao ouvir as notícias,

indignação não por causa do rapaz árabe morto no campo de

Jebeliyeh, e sim por causa da frase “morto por uma bala plástica”.

Como se as balas tivessem mãos para matar.

E será que a sua cabeça já não está funcionando direito?

Voltou a convocar o seu ministério para outra reunião na sala de aula

caindo aos pedaços. Na entrada fez postar-se um sentinela corpulento

vestido de short cáqui, de kafiah e boné de tricô. Alguns dos ministros

estavam sentados no chão a seus pés, outros encostados na parede,

que estava coberta de diagramas educacionais. Em poucas e bem

escolhidas palavras Fima apresentou-lhes a opção de escolher entre os

territórios conquistados em 67 e a identidade em si. Então, enquanto

ainda discutiam excitados, pediu uma votação, e venceu;

imediatamente passou a detalhar instruções.

Antes de vencermos a Guerra dos Seis Dias, esclareceu, a situação

nacional era menos perigosa e destrutiva do que agora. Ou talvez não

fosse de fato menos perigosa, e sim menos desmoralizadora e menos

deprimente. Será que realmente era mais fácil encarar o perigo da

aniquilação do que ficar exposto enfrentando acusações da opinião

pública internacional? O perigo de aniquilação nos enchia de orgulho e

senso de união, ao passo que a exposição constante está agora

gradualmente vergando o nosso espírito. Mas esta não é a maneira

correta de apresentar as alternativas. Na verdade, as acusações

internacionais podem estar vergando o espírito apenas da

intelectualidade leiga de origem russa ou ocidental, enquanto as

massas comuns não sentem a menor saudade do tempo em que Davi

se orgulhava diante de Golias. De qualquer modo, a expressão “massas

comuns” é um clichê vazio. Entrementes, você não pode deixar de

sentir as calças cobertas de lama, e as mãos que limpam as calças

também estão enlameadas, e a chuva cai continuamente sobre a sua


cabeça. Já passam cinco minutos da uma hora. Por mais que você se

esforce para ser pontual, sempre chegará atrasado.

A clínica era formada por dois apartamentos térreos emendados. As

janelas, protegidas por grades de arabescos, davam para um típico

pátio jerosolimita, vazio e molhado, sombreado por densos pinheiros

em cujas bases repousavam aqui e ali alguns blocos de pedra

cinzentos. Qualquer brisa leve provocava o farfalhar das copas, que se

fazia ouvir do jardim. Agora, com o vento forte, ele tinha uma imagem

fugaz de um vilarejo na Polônia ou no Báltico, com tempestades

uivando na floresta em volta, cortando os campos cheios de neve,

castigando os telhados de palha e fazendo soar os sinos da igreja. E

lobos uivando nas proximidades. No seu íntimo, Fima já tinha uma

pequena história sobre esse vilarejo, sobre nazistas, judeus e partisans;

talvez contasse essa historinha ao Dimi hoje à noite, em lugar de um

besouro preso num pote de geleia ou de um foguete cortado numa

casca de laranja.

Do segundo andar vinha o som de piano, violino e celo tocados

pelas três senhoras idosas que lá moravam, e que viviam de aulas

particulares de música. Provavelmente também davam pequenos

recitais de vez em quando, em auditórios modestos, em comemorações

cívicas, na cerimônia de entrega de um prêmio de literatura iídiche, na

inauguração de um centro comunitário ou cultural para idosos. Embora

Fima já trabalhasse havia alguns anos na clínica, a música ainda tocava

seu coração, como se um celo interior respondesse ao celo de cima

com seu silencioso som de melancolia. Como se, com o correr dos

anos, ficasse cada vez mais forte um elo místico entre o que se fazia

aqui embaixo com os corpos femininos por meio de fórceps de aço

inoxidável e a melancolia do celo no andar de cima.

A visão de Fima, desengonçado e desgrenhado, sorrindo

ingenuamente, com as mãos e os joelhos cobertos de lama, encheu o

dr. Wahrhaftig, como sempre, de um misto de bom humor e afeição,

acompanhado de uma forte necessidade de repreendê-lo. Wahrhaftig

era um homem delicado, tímido, tão emotivo que às vezes tinha

dificuldade de conter as lágrimas, especialmente quando alguém lhe

pedia para ser perdoado. Talvez por causa disso cultivasse modos

severos, sempre tentando aterrorizar as pessoas em volta com berros e


reprimendas. Reprimendas que, no final das contas, eram suaves e

inofensivas.

“Ah! Excelência! Herr major-general Von Nisan! Direto das trincheiras,

vejo eu! Creio que merece uma medalha!”

“Estou um pouco atrasado”, replicou Fima envergonhado. “Sinto

muito. Escorreguei lá fora na entrada. Está chovendo forte.”

Wahrhaftig rugiu:

“Ah, sim! Mais uma vez o atraso fatal! Mais uma vez motivo de força

maior!” E contou pela centésima vez a piada do morto que chegou

atrasado para seu próprio funeral.

Era um homem atarracado, com aparência de contrabaixo, e o rosto

inchado e rosado de um alcoólatra, riscado por uma rede pouco

saudável de veias, as quais ficavam tão próximas da superfície que

quase era possível medir o pulso pelas suas expansões e contrações.

Ele tinha uma piada para cada ocasião, invariavelmente introduzida

com a expressão: “Existe uma conhecida história sobre”. E sempre

explodia em risadas quando chegava perto do fim. Fima, apesar de já

ter ouvido até enjoar por que o morto chegara atrasado para seu

próprio funeral, deixou escapar uma ligeira risada, porque gostava do

seu compassivo tirano. Wahrhaftig vivia dando longas palestras com

sua voz potente acerca de assuntos tais como a relação entre hábitos

alimentares e concepção de mundo, ou a respeito da economia

“socialista”, e como ela estimulava o ócio e a fraude, e portanto era

inadequada para um país civilizado. Wahrhaftig pronunciava as últimas

palavras num tom de preleção mística, como um verdadeiro fiel

tecendo louvores às palavras do Senhor.

Fima disse:

“Hoje está calmo aqui.”

Wahrhaftig respondeu que a qualquer momento deveria chegar uma

artista famosa com uma pequena obstrução nos tubos. A palavra tubos,

no contexto médico, fê-lo recordar-se de uma conhecida história, que

obviamente não deixou de contar a Fima.

Entrementes, sorrateiro como um gato, o dr. Gad Eitan surgiu do seu

consultório. Era seguido pela enfermeira, Tamar Greenwich, que tinha

a aparência de uma chalutsá, uma pioneira dos velhos tempos. Era uma

mulher de aproximadamente quarenta e cinco anos, com um vestido


de algodão azul-claro e o cabelo preso cuidadosamente num coque

que parecia um novelo de lã na nuca. Por um capricho de

pigmentação, tinha um dos olhos verde e o outro castanho. Ela

atravessou o saguão da recepção apoiando uma paciente pálida

enquanto a conduzia à sala de recuperação.

O dr. Eitan, ágil e musculoso, recostou-se no balcão mascando um

chiclete com um lento movimento dos maxilares. Fez um ligeiro gesto

com o queixo em resposta à saudação de Fima, ou então a uma

pergunta de Wahrhaftig, ou talvez a ambas ao mesmo tempo. Seus

olhos azuis estavam fixos num ponto no alto, acima da cópia de um

Modigliani na parede. Com sua expressão de autossatisfação e seu

bigodinho loiro, fazia Fima ter a impressão de um diplomata prussiano

arrogante designado para a Mongólia contra a sua vontade. Deixou

Wahrhaftig terminar outra história conhecida. Então se fez silêncio, e

em seguida, como um leopardo letárgico, quase sem mover os lábios,

disse baixinho: “Chega de falatório. Vamos em frente”.

Wahrhaftig obedeceu imediatamente e seguiu-o até a sala de

tratamento. A porta se fechou atrás deles. No rápido instante em que

permaneceu aberta, um odor forte e antisséptico se fez sentir.

Fima lavou as mãos e preparou uma xícara de café para a paciente na

sala de recuperação. Depois preparou outra xícara para Tamar e uma

para si mesmo, vestiu um jaleco branco curto, e sentou-se atrás do

balcão, começando a examinar o caderno em que mantinha o controle

das consultas das pacientes. Também aqui escrevia os números por

extenso, e não em algarismos. Anotou contas pagas ou atrasadas, datas

para testes de laboratório e seus resultados, e alterações nas datas de

consultas. Também tomava conta do arquivo que continha as fichas

médicas das pacientes, detalhes de prescrições, testes de ultrassom, e

raios X. Isto, acrescido da responsabilidade de atender ao telefone,

constituía a totalidade de suas tarefas. Além de fazer café a cada duas

horas para os dois médicos e para a enfermeira, e ocasionalmente para

alguma paciente se esta tivesse passado por algum tratamento

doloroso.

Do outro lado do saguão, em frente ao balcão dele, havia uma

mesinha de café, duas poltronas, um tapete, um Degas e um Modigliani

na parede: era a área de espera. Às vezes Fima ajudava alguma


paciente a passar o duro período de espera puxando uma conversa

leve sobre algum assunto neutro, como por exemplo o aumento do

custo de vida ou algum programa de TV exibido na noite anterior. A

maioria das pacientes, porém, preferia esperar em silêncio, folheando

revistas. Nesses casos, Fima enterrava os olhos na sua papelada e

procurava passar despercebido para evitar constrangimentos. O que se

passava atrás das portas fechadas das salas de tratamento? O que

causava os gemidos que às vezes Fima ouvia ou pensava ter ouvido? O

que expressavam os rostos das diversas pacientes quando chegavam e

quando saíam? Qual era a história que terminava nesta clínica? E a nova

história que aqui começava? Qual era a sombra masculina por trás

desta ou daquela mulher? E a criança que não nasceria — qual era o

sexo dela? O que ela se tornaria ao crescer? Eram estas coisas que Fima

às vezes tentava decifrar, ou inventar, debatendo-se entre a repulsa e o

sentimento de se sentir obrigado a participar, pelo menos na sua

imaginação, de toda e qualquer forma de sofrimento. Às vezes a

própria condição feminina lhe parecia uma injustiça gritante, quase

uma enfermidade cruel que afligia metade da raça humana, expondo-a

a degradações e humilhações que eram poupadas à outra metade. Mas

outras vezes, um leve ciúme despertava dentro dele uma sensação de

privação ou perda, como se tivesse sido excluído de um dom secreto

que permitia a elas relacionar-se com o mundo de uma forma que ele

jamais poderia. Quanto mais pensava nisso, menos era capaz de

distinguir entre seu sentimento de pena e sua inveja. O útero, a

concepção, a gravidez, o parto, a maternidade, a amamentação, até

mesmo a menstruação, até mesmo abortos naturais ou provocados —

tentava imaginar tudo isso, esforçando-se para sentir aquilo que não

estava destinado a sentir. Às vezes, enquanto pensava, passava

distraidamente os dedos pelos próprios mamilos. Eles pareciam uma

piada vazia, uma triste relíquia. Então era tomado por uma onda de

profunda compaixão por todos os homens e mulheres, como se a

separação entre os sexos nada mais fosse do que uma brincadeira

cruel. Sentia que era chegado o momento de se levantar e, por meio da

razão e da solidariedade, pôr um fim a tudo isso. Ou ao menos

minimizar o sofrimento resultante dessa situação. Então, sem que lhe

fosse pedido, levantava-se, ia até a geladeira, pegava um copo de água


gelada, e com um leve sorriso oferecia-o à mulher que estava

esperando sua vez, murmurando: “Não fique preocupada” ou “Beba

um pouco de água, vai se sentir melhor”. Em geral este gesto

provocava apenas uma ligeira surpresa, mas ocasionalmente gerava um

sorriso agradecido, que ele retribuía com um meneio, como se

dissesse: “É o mínimo que posso fazer”.

Quando tinha algum tempo livre entre atender o telefone e manter os

arquivos em dia, Fima lia um romance em inglês, ou a biografia de

algum estadista. No entanto, a maior parte das vezes, não lia livros e

sim devorava os dois jornais vespertinos que comprara no caminho,

tendo o cuidado de não deixar de ler nem as notas miúdas, os

comentários e as fofocas: melhorias na cooperativa de Safed, um caso

de bigamia em Ashquelon, uma história de amor não correspondido

em Kfar Saba. Tudo era motivo de atenção. Após a leitura dos jornais,

recostava-se para lembrar o que lera. Ou então convocava reuniões do

seu ministério, vestindo os ministros com trajes de guerrilheiros

revolucionários, dando sermões, profetizando ira e conforto, salvando

os filhos de Israel, quisessem eles ou não, e trazendo paz à nação.

Entre os tratamentos, quando os médicos e a enfermeira emergiam

para a pausa do café, Fima às vezes perdia a capacidade de ouvir.

Perguntava-se o que estava fazendo ali, o que tinha em comum com

aqueles estranhos. E onde deveria estar, se seu lugar não era esse. Mas

não conseguia encontrar resposta para esta pergunta. Ainda que

sentisse, sofridamente, que em algum lugar havia alguém esperando

por ele, surpreso por ele estar atrasado. Então, após fuçar os bolsos por

algum tempo, achava uma pastilha para azia, engolia a pastilha, e

continuava percorrendo os jornais com os olhos, caso tivesse deixado

de ler algo realmente importante.

Gad Eitan era ex-genro de Alfred Wahrhaftig: fora casado com a

única filha de Wahrhaftig, que fugira para o México com um poeta

visitante por quem se apaixonara enquanto trabalhava na Feira do

Livro de Jerusalém. Wahrhaftig, fundador da clínica e sócio mais antigo,

nutria por Gad Eitan uma estranha admiração: devotava a ele pequenos

gestos de submissão e deferência camuflados por educadas explosões

de raiva. O dr. Eitan, embora fosse na verdade especialista em

esterilidade, servia como anestesista sempre que necessário. Era um


homem frio e taciturno. Tinha o hábito de olhar dura e fixamente para

seus dedos. Era como se tivesse medo de perdê-los, ou como se a

existência deles não deixasse de lhe causar espanto. Os dedos em

questão eram longos e bem formados, e maravilhosamente musicais.

Ele também se movia como um lento animal selvagem, como se

estivesse acabando de acordar. Às vezes um sorriso fino e gelado se

desenhava no seu rosto: seus olhos aguados não participavam do

sorriso. Evidentemente, sua frieza despertava nas mulheres uma certa

confiança e excitamento, e uma necessidade de sacudi-lo para romper

sua indiferença ou derreter sua crueldade. Eitan ignorava qualquer

insinuação de abertura, e respondia a confissões de alguma paciente

com uma frase seca, do tipo: “Muito bem, sim, mas existe uma

alternativa”, ou: “O que se pode fazer; essas coisas acontecem”.

No meio das histórias de Wahrhaftig, às vezes Eitan dava um giro de

cento e oitenta graus, como se tivesse o mecanismo de um tanque, e

sumia silenciosamente através da porta do seu consultório. Parecia que

todas as pessoas, homens e mulheres, lhe causavam uma leve repulsa.

E como sabia que havia alguns anos Tamar estava apaixonada por ele,

tinha prazer em ocasionalmente jogar para ela algum comentário

maldoso: “Que cheiro é esse que você tem hoje?”. Ou: “Arrume a saia.

E pare de desperdiçar os seus joelhos conosco. Nós temos essa visão

pelo menos vinte vezes por dia”.

Desta vez, ele disse:

“Você me faria a gentileza de colocar a vagina e o colo dessa artista

na minha escrivaninha? Sim, da dama famosa que estamos esperando.

E, os resultados dos testes. O que foi que você pensou? Sim, os testes

dela, não tenho o que fazer com os seus.”

Os olhos de Tamar, o verde e o castanho, encheram-se de lágrimas. E

Fima, com ar de quem está salvando uma princesa das garras do

dragão, levantou-se e foi colocar os exames sobre a mesa do médico.

Eitan lançou-lhe um olhar vago, e voltou seus olhos gelados para os

próprios dedos. Sob as luzes fortes seus dedos femininos adquiriam um

brilho róseo pouco natural: pareciam quase transparentes. Julgou

apropriado dirigir um último tiro, desta vez para Fima:

“Você por acaso sabe o que significa menstruação? Então, por favor,

diga hoje à senhora Licht — sim, por telefone — que eu preciso que
ela esteja aqui exatamente dois dias depois que ela menstruar. E se isso

não soar elegante ao telefone, diga dois dias após as regras dela. Não me

importa o que você disser. Pode até dizer dois dias depois das

festividades dela. O importante é marcar a consulta para o dia correto.

Obrigado.”

Wahrhaftig, como alguém que acaba de perceber um incêndio e se

apressa a jogar o conteúdo do primeiro recipiente para apagar o fogo,

sem verificar se o recipiente contém água ou gasolina, interveio:

“Festividades — isso me lembra uma conhecida história sobre Begin

e Yasser Arafat.”

E pela milésima vez desandou a contar a história de como a astúcia

de Begin uma vez levou a melhor sobre a agressividade de Arafat.

Eitan retrucou:

“Por mim, enforcaria os dois.”

“Gad teve um dia difícil”, disse Tamar.

E Fima acrescentou a sua própria contribuição:

“De modo geral os tempos estão difíceis. Passamos o tempo todo

procurando ocultar e reprimir o que estamos fazendo nos Territórios

Ocupados, e a consequência é que o ar está cheio de raiva e agressão,

e todo mundo descarrega em todo mundo.”

Nesta altura, Wahrhaftig perguntou qual era a diferença entre

Ramallah e Monte Carlo, e embarcou noutra anedota. E começou a

gargalhar intensamente a meio caminho entre Monte Carlo e Ramallah.

Então, tomando consciência da sua posição, súbito endireitou-se,

corou profundamente ressaltando a rede de veias nas suas bochechas,

e rugiu cuidadoso:

“Por favor! O intervalo terminou. Sinto muito. Fima! Tamar! Vamos

fechar já este botequim! Este nosso país está mais asiático que a Ásia!

Aliás, nem a Ásia! A África! Mas pelo menos na minha clínica ainda

trabalhamos como num país civilizado.”

Tratava-se de uma exortação totalmente supérflua, uma vez que

nesse meio-tempo Gad Eitan já tinha ido para sua sala, Tamar fora lavar

o rosto, e Fima não tinha nem se movido da sua mesa.

Às cinco e meia, saiu uma mulher alta e loira, num lindo vestido

preto. Ela parou junto à mesa de Fima e perguntou se dava para


perceber alguma coisa. Se ela parecia assustada. Fima, que não tinha

escutado, respondeu por engano a outra pergunta:

“É claro, senhora Tadmor. É óbvio que ninguém vai descobrir. Pode

ficar sossegada. Aqui somos totalmente discretos.” Embora taticamente

evitasse olhar para ela, pôde perceber suas lágrimas, e acrescentou:

“Há lenços de papel na caixa.”

“Você também é médico?”

“Não, senhora. Sou só o recepcionista.”

“Faz tempo que está aqui?”

“Desde o começo. Desde que a clínica abriu.”

“Você deve ter presenciado cenas de todos os tipos.”

“Temos alguns momentos difíceis.”

“E você não é médico?”

“Não, senhora.”

“Quantos abortos vocês fazem por dia?”

“Sinto, mas não posso responder a essa pergunta.”

“Desculpe ter perguntado. De repente a vida me deu uma pancada

muito forte.”

“Compreendo. Eu lamento.”

“Não, você não compreende. Eu não fiz aborto. Só um pequeno

tratamento. Mas foi humilhante.”

“Lamento muito, mesmo. Vamos esperar que fique tudo bem.”

“Provavelmente você tem aí nos arquivos exatamente o que fizeram

comigo.”

“Nunca olho as anotações dos médicos, se é isto que a senhora quer

dizer.”

“Você tem sorte de não ter nascido mulher. Não faz ideia do que

você foi poupado.”

“Eu lamento muito. Posso lhe oferecer um pouco de café ou chá?”

“Você sempre lamenta. Por que você lamenta tanto? Você nem

sequer olha para mim. Fica olhando noutra direção.”

“Desculpe. Não reparei. Café turco ou nescafé?”

“Estranho, não? Eu seria capaz de jurar que você também é médico.

Não é o jaleco branco. Você é estudante? Estagiário?”

“Não, senhora. Sou só um funcionário. A senhora prefere um copo

d’água? Há água mineral na geladeira.”


“Qual é a sensação, diga, de trabalhar num lugar como este tanto

tempo? Que tipo de trabalho é esse para um homem? Você não cria

uma aversão a mulheres? Até mesmo uma aversão física?”

“Não acho. De qualquer maneira, só posso falar por mim.”

“Então, e você? Você não sente aversão por mulheres?”

“Não, senhora Tadmor. Ao contrário.”

“O contrário? Qual é o contrário de aversão?”

“Empatia, talvez? Curiosidade? É difícil explicar.”

“Por que você não olha para mim?”

“Não gosto de causar constrangimento. Olhe, a água está fervendo.

Então, o que vai querer? Café?”

“Constrangimento para você? Ou para mim?”

“Difícil dizer exatamente. Talvez ambos. Não tenho certeza.”

“Por acaso você tem nome?”

“Meu nome é Fima. Efraim.”

“Eu sou Annette. Você é casado?”

“Fui casado, senhora. Fui casado duas vezes. Quase três.”

“E eu estou me divorciando. Para ser mais exata, estão me

divorciando. Você é tímido demais para olhar para mim? Tem medo de

se decepcionar? Ou talvez só queira ter certeza de que não vai precisar

me cumprimentar se nos cruzarmos um dia no meio da rua?”

“Leite e açúcar, senhora Tadmor? Annette?”

“Na verdade você podia muito bem ser ginecologista. Melhor do que

aquele velho ridículo que não consegue nem enfiar em mim um dedo

metido numa luva de borracha sem tentar distrair minha atenção com

alguma piada sobre Francisco José, o imperador da Áustria, decidindo

punir Deus. Posso usar o telefone?”

“É claro. Fique à vontade. Estarei logo ali, na sala de arquivos.

Quando tiver acabado, é só me chamar para marcarmos a próxima

consulta. A senhora vai precisar?”

“Fima. Efraim. Por favor. Olhe para mim. Não tenha medo. Não vou

enfeitiçá-lo. Em outros tempos, quando eu era linda, os homens se

apaixonavam por mim como moscas; agora, nem mesmo o assistente

da clínica olha para mim.”

Fima ergueu os olhos. E imediatamente baixou de novo, porque a

angústia e o sarcasmo que viu no seu rosto despertaram nele um surto


de desejo. Mergulhou de novo na papelada e disse cuidadosamente:

“Mas a senhora ainda é uma bela mulher. Pelo menos, para mim. A

senhora não queria dar um telefonema?”

“Não quero mais. Mudei de ideia. Neste momento estou mudando de

ideia sobre muita coisa. Então não sou feia?”

“Ao contrário.”

“Você não é nenhuma maravilha. Pena ter feito o café. Eu não pedi.

Não faz mal. Pode beber você mesmo. E obrigada.” Ela parou junto à

porta e acrescentou: “Você tem meu número de telefone. Está na

ficha”.

Fima ponderou sobre isso. As palavras uma nova página pareciam

gratuitas, mas ele sabia muito bem que em outros tempos poderia ter

se apaixonado por essa Annette. Mas por que só em outros tempos?

Afinal, usando as palavras de Yael, disse a si mesmo: “Problema seu,

companheiro”.

E começou a guardar os papéis na gaveta, trancou a sala de arquivos,

lavou as xícaras e preparou-se para fechar.


5

FIMA FICA ENSOPADO NA ESCURIDÃO SOB A

TEMPESTADE

Após fechar a clínica, pegou um ônibus para o centro, e achou um

restaurante barato numa rua lateral, não muito longe da praça Tsion.

Comeu pizza de cogumelos e tomou uma Coca-Cola, completando a

refeição com sua pastilha contra azia. Como não tinha dinheiro

suficiente, pediu para pagar em cheque, mas se recusaram a receber.

Fima sugeriu ao funcionário deixar sua carteira de identidade e voltar

na manhã seguinte para pagar a dívida. Porém não conseguiu

encontrar o documento em nenhum de seus bolsos: no dia anterior, ou

no fim de semana passado, havia comprado um novo bule elétrico para

substituir aquele que queimara; como não tinha dinheiro suficiente,

deixara a carteira de identidade como garantia na loja de artigos

elétricos e se esquecera completamente de voltar para pegá-la. Ou será

que tinha sido na Livraria Steimatski? Por fim, quando já estava

desanimado, uma nota amassada de cinquenta shekels caiu do seu

bolso traseiro: provavelmente o pai a colocara ali algumas semanas

atrás.

Durante a busca, surgiu num dos bolsos uma ficha telefônica. Fima

localizou um telefone público diante do Edifício Sansur, na praça

Tsion, e ligou para Nina Gefen; lembrava-se vagamente de que seu

marido, Uri, estava de partida, ou já tinha partido, para Roma. Talvez

conseguisse convencê-la a ir com ele ao Cine Orion assistir à comédia

francesa com Jean Gabin. Tamar fizera comentários sobre o filme


durante o intervalo para o café. Fima não conseguia lembrar-se do

nome do filme.

Mas a voz que atendeu do outro lado foi a voz dura de Ted Tobias,

que perguntou secamente, com forte sotaque americano: ‘O que é que

aconteceu desta vez, Fima?”. Fima resmungou: “Nada. É a chuva”. Não

conseguiu imaginar o que Ted estaria fazendo na casa de Nina Gefen.

Então percebeu que distraidamente discara o número de Yael em vez

do número de Nina. Por que mentira e dissera que estava chovendo?

Não tinha chovido uma só gota desde a tarde. Finalmente conseguiu

recuperar sua presença de espírito e perguntou a Ted como estava

Dimi, e como estava o serviço de fechar a varanda. Ted lembrou a Fima

que haviam terminado o serviço no começo do inverno. Yael levara

Dimi a uma peça infantil, e não estariam de volta antes das dez. “Você

quer deixar algum recado?” Fima olhou para o relógio, percebeu que

ainda não eram oito horas, e subitamente, sem ter a menor intenção,

perguntou a Ted se podia invadi-lo, invadi-lo entre aspas, é claro; havia

algo que desejava discutir com ele. Rapidamente acrescentou que já

tinha jantado, e que de qualquer maneira não pretendia ficar mais de

meia hora.

“O.k.”, disse Ted. “Tudo bem. Dê um pulo aqui. Só leve em conta

que estamos um pouco ocupados esta noite.”

Fima entendeu que seria melhor não ir, e que não deveria, em

hipótese nenhuma, ficar até depois da meia-noite como costumava.

Não ficou ofendido; educadamente ofereceu-se para deixar para outra

vez. Mas Ted, firme e polido, manteve a situação.

“Meia hora, tudo bem.”

Fima estava especialmente feliz por não estar chovendo, pois não

tinha guarda-chuva e não queria visitar sua amada parecendo um

cachorro afogado. Também notou que estava esfriando, e concluiu que

poderia nevar. Isto o deixou ainda mais feliz. Em algum ponto perto do

mercado de Machané Yehuda, avistou pela janela do ônibus, à luz de

uma lâmpada de rua, uma frase pichada na parede: FORA ÁRABES!

Traduzindo para o alemão, e substituindo árabes por judeus, teve um

acesso de raiva. Ali mesmo, nomeou-se presidente e decidiu dar um

passo dramático: faria uma visita oficial à aldeia árabe de Deir Yassin

no aniversário do massacre, e faria um pronunciamento simples e


decidido entre as ruínas da aldeia. Sem entrar em detalhes sobre qual

dos lados é mais culpado, nós judeus israelenses compreendemos a

profundidade do sofrimento pelo qual têm passado os árabes

palestinos durante os últimos quarenta anos, e para colocar um ponto

final nesta situação estamos dispostos a fazer qualquer coisa razoável,

menos cometer suicídio. Tal discurso iria ecoar imediatamente em cada

habitação árabe; atiçaria a imaginação e representaria um impulso vital.

Por um momento Fima hesitou entre “impulso vital” e “avanço

irrestrito”. Qual das duas alternativas daria um título melhor para o

breve artigo que pretendia escrever na manhã seguinte para o caderno

de fim de semana? Aí, rejeitou ambas as alternativas e abandonou a

ideia do artigo.

No elevador, subindo para o sexto andar no edifício em Beit

Hakerem, decidiu se manter desta vez cordial e calmo, tentar conversar

com Ted de igual para igual, até mesmo sobre assuntos políticos;

geralmente se irritava com facilidade pelo jeito de falar do outro, seu

discurso calmo e equilibrado, seu sotaque americano e sua lógica

previsível, seu jeito de abotoar e desabotoar a malha de tricô, como se

fosse um porta-voz oficial do Departamento de Estado.

Fima ficou parado alguns minutos diante da porta antes de apertar a

campainha. Esfregou os sapatos no capacho para não sujar o

apartamento de lama. Enquanto estava no meio deste futebol sem bola,

a porta se abriu e Ted ajudou-o a tirar o sobretudo, que estava todo

embolado por causa de um rasgo no tecido.

Fima disse:

“Que tempo estúpido.”

Ted perguntou se tinha voltado a chover.

Ainda que a chuva tivesse parado antes de ele fechar a clínica, Fima

respondeu pateticamente:

“Chuva? Aquilo é um dilúvio!”

Sem esperar ser convidado, entrou e se dirigiu diretamente para o

escritório de Ted, deixando uma trilha de pegadas de lama pelo hall de

entrada. Prosseguiu com firmeza abrindo caminho entre pilhas de

livros, diagramas, desenhos e folhas de impressora espalhados pelo

chão, até ter seu trajeto bloqueado pela maciça escrivaninha onde

estava o processador de textos. Espiou sem permissão um misterioso


gráfico verde e preto que brilhava na tela. Fez uma piada sobre sua

irremediável falta de jeito com o computador, e pediu educadamente a

Ted, como se ele, Fima, fosse o anfitrião:

“Sente-se, Teddy, fique à vontade.”

E sem hesitar agarrou a cadeira de trabalho que estava diante do

computador.

Ted perguntou o que ele gostaria de beber. Fima respondeu:

“Qualquer coisa. Um copo d’água. Não perca tempo com isso. Ou

conhaque. Ou talvez alguma coisa quente. Não faz diferença. De

qualquer maneira, só vim por alguns minutos.”

Com seu acento forte e vagaroso, com o tom seco e impessoal de um

telefonista, sem ponto de interrogação no final da sentença, Ted Tobias

determinou:

“Muito bem. Vou lhe dar um conhaque. E você tem certeza,

positivamente, de que já jantou?”

Fima sentiu uma súbita necessidade de mentir, de dizer que não, que

na verdade estava morrendo de fome. Mas decidiu se conter.

Ted, sentado na cadeira de balanço, aguardava em meio ao silêncio e

à fumaça de tabaco. Apesar de ser como era, Fima gostava do cheiro

do fino tabaco de cachimbo. E notou que Ted o observava calmo, com

uma curiosidade ligeiramente antropológica. Ele dava a impressão de

que não ergueria uma sobrancelha se o seu visitante de repente

começasse a cantar. Ou chorar. Fima não fez nem uma coisa nem

outra. Em vez disso, comentou:

“Então a Yael saiu junto com o Dimi. Esqueci de trazer chocolate

para ele.”

“Certo”, disse Ted evitando um bocejo. E exalou outra nuvem de

gostosa fumaça azul.

Fima fixou os olhos na pilha de folhas impressas pelo computador,

observando-as como se fossem dele, prestou atenção especial nas

folhas 6 e 9, como se tivesse acabado de tomar a decisão de qualificar-

se ele mesmo, instantaneamente, como engenheiro aeronáutico.

“E o que você está planejando aqui para nós? Um avião que dispara

balas de borracha? Ou uma catapulta voadora?”

“É um artigo que estamos escrevendo para um jornal inglês. Na

verdade é uma coisa bem experimental: veículos com propulsão a jato.


Como você provavelmente já sabe, faz alguns anos que Yael e eu

estamos trabalhando nisso. Você já me pediu diversas vezes para eu

lhe explicar, mas depois de alguns minutos sempre me pede para

parar. Estou committed em terminar o artigo neste fim de semana. É o

deadline. Aliás, como é que se diz em hebraico committed e deadline? Já que

é poeta, você deve saber, não?”

Fima fez um esforço mental e quase conseguiu se recordar do

equivalente hebraico das duas expressões que Ted havia utilizado em

inglês. As palavras hebraicas pareciam lhe escapar no limiar da

memória, escorregando por entre os dedos como gatinhos, quando já

se tem a certeza de tê-los agarrado. Finalmente conseguiu se lembrar,

abriu a boca para responder e, quando ia começar a falar, elas fugiram

da ponta de sua língua e sumiram outra vez na escuridão. Embaraçado,

ele disse:

“Posso ajudar em alguma coisa?”

“Obrigado, Fima”, respondeu Ted. “Acho que não há necessidade.

Mas certamente você vai estar mais à vontade esperando na sala de

estar até que eles voltem, não é? Você pode assistir ao noticiário.”

“Me dê o Lego do Dimi”, disse Fima. “Vou construir a Torre de Davi

para ele. Ou talvez a Tumba de Raquel. Ou qualquer outra coisa. Não

vou atrapalhar você enquanto trabalha.”

“Não há problema”, disse Ted.

“O que você quer dizer com: ‘Não há problema’? Eu vim aqui falar

com você!”

“Então, fale”, disse Ted. “Aconteceu alguma coisa?”

“É o seguinte”, começou Fima, sem a menor ideia de como iria

prosseguir. Para seu próprio espanto, ouviu-se dizendo: “Você sabe

que a situação nos Territórios está insuportável”.

“Assim parece”, disse Ted calmamente, e neste exato momento Fima

teve uma vívida e devastadora imagem mental daquele imbecil, quase

sem cor de tão branco, com sobrancelhas que pareciam dois bigodes

sobre os olhos, acariciando o corpo nu de Yael com as suas mãos

pesadas, deitando por cima dela, esfregando seu pênis entre seus seios

pequenos e firmes num ritmo duro e invariável, como alguém usando

uma máquina de costura. Até os olhos de Yael se encherem de

lágrimas, e de repente os de Fima também. Rápido enfiou o nariz num


lenço amarrotado que, ao ser retirado do bolso, arrastou junto outra

nota, desta vez uma de vinte shekels, presumivelmente o troco do

restaurante perto da praça Tsion, ou um outro presente do seu pai.

Ted pegou a nota e estendeu-a para Fima. Em seguida apertou o

tabaco com o dedo e reacendeu o cachimbo, espalhando um fino véu

que Fima quis detestar mas viu-se gostando.

“Então”, disse Ted, “você estava falando sobre a situação nos

Territórios. Certamente é uma situação bastante complicada.”

“Que situação nos Territórios?”, explodiu Fima. “A que você se refere

com ‘situação nos Territórios’? Isso é só outro tipo de autoilusão. Eu

não estava falando da situação nos Territórios; estava falando da

situação bem aqui em Israel. Do lado de cá da Linha Verde. Dentro da

sociedade israelense. Os Territórios nada mais são do que o lado

escuro de nós mesmos. O que acontece lá todos os dias é

simplesmente a concretização do processo de degeneração pelo qual

temos passado desde a Guerra dos Seis Dias. Se não antes. Se não

desde o início. Sim, toda manhã lemos os jornais, escutamos notícias o

dia inteiro, à noite assistimos ao noticiário na TV, suspiramos, dizemos

um para o outro que isto simplesmente não pode continuar, de vez em

quando assinamos manifestos, e, de fato, não fazemos nada. Zero.

Nothing. Nada.”

“É mesmo”, disse Ted. E após alguns momentos de reflexão,

reacendeu o cachimbo novamente e acrescentou, de forma lenta,

intensa e cuidadosa: “Yael faz trabalho voluntário duas vezes por

semana no Conselho para Tolerância. Mas estão dizendo que vai haver

uma cisão no Conselho”. E perguntou, incerto da palavra hebraica que

Fima utilizara: “O que você quer dizer com ‘manifestos’?”.

“Manifesto?”, replicou Fima. “Um pedaço de papel. Masturbação.”

Estava com tanta raiva que sem querer bateu o punho no teclado.

“Ei, cuidado”, disse Ted. “Se você quebrar o meu computador, isso

não vai ajudar os árabes em nada.”

“Mas quem é que está falando em ajudar os árabes?”, explodiu Fima

num rugido feroz. “Estou falando de ajudar a nós mesmos. São só eles,

os doidos, a direita, que ficam tentando nos apresentar como se a

nossa intenção fosse ajudar os árabes!”


“Não entendi”, disse Ted coçando a cabeça num gesto típico

exagerado de uma pessoa com dificuldade de entender. “Você quer

dizer que não estamos tentando melhorar as condições de vida dos

árabes?”

Fima começou a exposição a partir do capítulo 1, reprimindo a raiva

com dificuldade. Explicou, em hebraico fácil, a sua visão acerca dos

fatores táticos e psicológicos que faziam a esquerda moderada parecer

identificada com o inimigo aos olhos da massa. Criticou-se novamente

por utilizar a expressão “a massa”. No decorrer da explanação notou

que Ted lançava olhares disfarçados aos diagramas espalhados no

tapete, enquanto seu dedo peludo continuava apertando o tabaco no

cachimbo. Seu anel de casamento brilhava no dedo.

Fima lutou em vão para se desfazer da imagem mental daquele

mesmo dedo fazendo aquele mesmo movimento nos lábios inferiores

de Yael. Imediatamente suspeitou de estar sendo ludibriado, que

estavam mentindo e que na verdade Yael estava escondida no quarto,

chorando baixinho, sacudindo os ombros, molhando o travesseiro com

suas lágrimas, como às vezes ela chorava em meio ao sexo, e também

como Dimi chorava baixinho quando ficava sabendo de alguma

injustiça cometida contra ele, contra seus pais ou contra Fima.

“Em qualquer país civilizado”, prosseguiu Fima, inconscientemente

tomando emprestada a frase predileta do dr. Wahrhaftig, “a esta altura

já haveria uma campanha pela desobediência civil. Uma frente comum

de trabalhadores e estudantes teria forçado o governo a pôr um fim a

este horror.”

“Vou pegar outro conhaque, Fima, para acalmar você.”

Fima tomou o conhaque febrilmente, num único gole, jogando a

cabeça para trás como os russos bebendo vodca nos filmes. Ele pôde

ver uma imagem detalhada daquele pedaço de pau com sobrancelhas

felpudas levando um copo de laranjada para Yael na cama num Shabat

de manhã. E teve uma imagem dela, preguiçosa, luxuriante, com os

olhos semifechados, estendendo a mão e acariciando a abertura do

pijama dele, que sem dúvida era feito de seda pura. A imagem não

despertou nem ciúme, nem raiva, nem fúria, e sim, para seu espanto,

uma profunda piedade por este homem correto e esforçado, que

lembrava um burro de carga, trabalhando dia e noite no seu


computador, pensando num meio de aperfeiçoar a propulsão a jato

dos veículos, e que mal tinha um único amigo em toda Jerusalém.

“O mais triste”, Fima disse, “é como a esquerda está paralisada.”

Ted respondeu:

“É verdade. Você tem razão. Foi a mesma coisa conosco no Vietnã.

Quer café?”

Fima seguiu Ted até a cozinha e continuou de forma acalorada:

“A comparação com o Vietnã — este é o nosso maior erro, Teddy.

Aqui não é o Vietnã e nós certamente não somos a geração do Flower

Power. O segundo erro é esperar que os americanos se encarreguem

da tarefa por nós, e nos tirem dos Territórios. O que importa aos

americanos se nós formos lentamente para o brejo?”

“É verdade”, disse Ted no mesmo tom que usava para elogiar Dimi

quando este acertava contas de aritmética. “Verdade demais. Ninguém

faz favor nenhum a ninguém. Todo mundo só pensa em si. E mesmo

para isso, nem sempre se tem competência suficiente.” Ligou o bule

elétrico e começou a esvaziar a lavadora de louça.

Fima, excitadíssimo, empurrou Ted para o lado e, sem ser solicitado,

começou a ajudá-lo com gestos espalhafatosos, como se para provar

que ele estava errado. Tirou um monte enorme de facas, garfos e

colheres da lavadora, e ficou zanzando pela cozinha com os talheres

nas mãos, abrindo portas de armários, puxando gavetas, enfim,

procurando um lugar onde despejar sua carga, sem interromper por

um instante sequer o seu discurso sobre a diferença entre Vietnã e

Gaza, e entre a síndrome de Nixon e a síndrome de Shamir. Algumas

peças escorregaram entre seus dedos e ficaram espalhadas no chão da

cozinha. Ted se abaixou para pegá-las, estranhando a palavra hebraica

que Fima usara para se referir a “síndrome”: era uma palavra recém-

criada?

“Sim, síndrome. Como a síndrome do Vietnã que vocês tiveram nos

Estados Unidos.”

“Você não acabou de dizer que a comparação com o Vietnã era um

erro?”

“Sim. Não. De certa forma, sim. Isto é, talvez tenhamos que

estabelecer uma diferença entre uma síndrome e um sintoma.”

“Aqui”, disse Ted, “coloque-os aqui na segunda gaveta.”


Mas Fima já tinha abandonado a luta, e largado o monte de talheres

em cima do micro-ondas. Puxando o lenço do bolso, limpou de novo o

nariz, e em seguida começou a limpar distraidamente também a mesa

da cozinha, enquanto Ted ainda separava os pratos conforme tipo e

tamanho, arrumando cada pilha no lugar certo dentro do armário.

“Fima, por que você não manda isso para os jornais? Você devia

publicar essas ideias para que mais gente possa ler. A sua linguagem é

tão rica. E também vai lhe fazer bem para a alma: todo mundo pode ver

o quanto você sofre com isso. Para você a política é uma questão

pessoal. Você leva a situação muito a sério. Yael vai chegar com Dimi

daqui uns quarenta e cinco minutos. Agora preciso trabalhar um

pouco. Como se diz mesmo deadline em hebraico? Talvez o melhor seja

você levar seu café para a sala. Vou ligar a TV para você. Ainda dá para

assistir a meia hora de noticiário. Tudo bem?”

Fima concordou imediatamente: ele não tinha a intenção de ser

invasivo a noite inteira. Mas em vez de pegar o café e ir para a sala,

esqueceu a caneca no secador na cozinha e insistiu em seguir Ted até o

corredor, até que este pediu desculpas e se trancou no banheiro. Fima

concluiu seu pensamento através da porta trancada.

“Com vocês, tudo bem. Vocês têm passaporte americano, podem

sempre fugir daqui com propulsão a jato. Mas o que vai acontecer

conosco? Tudo bem, vou assistir ao noticiário. Não vou mais

atormentar você. O único problema é que eu não tenho a menor ideia

de como ligar a sua televisão.”

Em vez de ir para a sala, entrou no dormitório do menino.

Instantaneamente foi tomado de um imenso cansaço. Incapaz de

encontrar o interruptor de luz, deitou-se no escuro sobre a pequena

cama cercada de sombras de robôs, aviões e máquinas do tempo, e

sobre a qual pairava uma gigantesca espaçonave fosforescente,

suspensa no teto por um fio invisível, com o bico apontando direto

para ele, girando lentamente, ameaçadoramente, como se fosse um

dedo acusador. Até que Fima fechou os olhos e disse súbito para si

mesmo: “Qual é o sentido de todo esse falatório? A sorte está lançada, e

o que está feito não pode ser desfeito”.

O sono tomou conta de Fima. Quando estava quase adormecendo,

teve uma vaga consciência de que Ted o cobria com um macio


cobertor de lã. Meio tonto, murmurou:

“A verdade, Teddy? Só entre nós dois? Os árabes evidentemente

perceberam que não podem nos jogar no mar. O triste é que, para os

judeus, é difícil viver sem alguém querendo jogá-los no mar.”

Ted sussurrou:

“Não. A situação parece que não está nada boa.” E saiu.

Fima se enrolou no cobertor. Tinha a intenção de pedir para ser

acordado quando Yael chegasse em casa. Estava tão cansado que o

que saiu foi:

“Não acorde a Yael.”

Dormiu cerca de vinte minutos, e quando o telefone tocou no quarto

ao lado, estendeu o braço e derrubou uma das torres de Lego do

menino. Tentou dobrar o cobertor, mas desistiu porque estava com

pressa de encontrar Ted. Ainda tinha que explicar o que o trouxera ali

naquela noite. Em vez de ir para o escritório, entrou no dormitório ao

lado, que estava iluminado por uma luz quente e avermelhada. Viu que

a cama estava pronta para a noite: dois travesseiros idênticos, dois

cobertores azuis em capas de seda, duas mesinhas de cabeceira, cada

uma com um livro aberto virado para baixo, e enfiou o rosto e a cabeça

inteira na camisola de Yael. Rapidamente se recompôs e saiu correndo

em busca do seu sobretudo. Procurou em todos os quartos como

sonâmbulo, mas não encontrou nem o sobretudo e nem Ted, embora

tivesse verificado em todos os lugares com luz acesa. Finalmente

deixou-se cair sobre um banquinho na cozinha, e olhou em volta à

procura das facas que não tinha conseguido guardar antes.

Ted Tobias surgiu do escuro com uma régua na mão, e anunciou

lenta e enfaticamente, como um soldado transmitindo uma mensagem

por rádio:

“Você deu uma cochilada. Isso mostra que está cansado. Posso

esquentar um café para você no micro-ondas.”

“Não, obrigado”, disse Fima. “Tenho que sair correndo; estou

atrasado.”

“Ah. Atrasado. Atrasado para quê?”

“Um encontro”, disse Fima, para sua própria surpresa, num tom de

homem para homem. “Eu me esqueci completamente que tenho um

encontro esta noite.” E dirigiu-se para a porta da frente e começou a se


debater com o trinco até que Ted teve pena dele e lhe estendeu o

sobretudo. Em seguida, abriu a porta dizendo baixinho e, assim

pareceu a Fima, com ar preocupado:

“Olhe, Fima, não é da minha conta, mas penso que você precisa de

umas férias. Você está com a aparência meio esgotada. O que é que eu

digo a Yael?”

Fima enfiou o braço esquerdo na manga rasgada do sobretudo, e não

entendeu por que a manga tinha virado aquela trouxa

incompreensível. Perdeu a cabeça, como se Teddy fosse o culpado da

confusão no interior das suas roupas. Sibilou:

“Não diga nada. Não há nada a dizer. De qualquer maneira, não vim

falar com ela, e sim com você, Teddy. Mas acontece que você é um

tapado.”

Ted Tobias não ficou ofendido. Era bem provável que ele não tivesse

entendido a última palavra em hebraico. Respondeu cuidadosamente

em inglês:

“Não seria melhor eu chamar um táxi para você?”

Fima sentiu de repente uma profunda vergonha e arrependimento.

“Obrigado, Teddy”, respondeu. “Não precisa. Desculpe se eu perdi o

controle. Tive um sonho ruim esta noite, e parece que hoje não é o

meu dia. Só consegui incomodar o seu trabalho. Diga a Yael que estou

livre para cuidar do garoto qualquer noite que vocês precisem. Posso

lhe dizer a palavra hebraica para committed, mas não consigo achar nada

para deadline. Talvez você possa traduzir literalmente. Aliás, para que

precisamos de veículos com propulsão a jato? Será que já não corremos

demais? Por que você não inventa algo que faça a gente simplesmente

ficar sentado quieto? Desculpe. Tchau, Teddy. Você não devia ter me

dado o conhaque. No meu estado normal já falo bastante bobagem.”

Ao sair do elevador topou em Yael no escuro. Ela estava carregando

Dimi, profundamente adormecido, envolto num casaco de aviador.

Yael soltou um breve grito de susto, e quase deixou cair a criança.

Então, reconhecendo Fima, disse numa voz cansada:

“Que idiota você é.”

Em vez de se desculpar, Fima abraçou a ambos com o braço livre e a

manga rasgada, e cobriu a cabeça do Challenger de beijinhos, mais

parecendo uma galinha faminta. E beijou Yael também, ou o que podia


encontrar dela no escuro; não achando seu rosto, curvou-se e beijou

suas costas molhadas, ferozmente, de um ombro a outro. Depois, em

busca do ponto de ônibus, saiu correndo na escuridão no meio da

tempestade. Pois nesse meio-tempo sua profecia se realizara, quando

dissera a Teddy: “Chuva? Aquilo é um dilúvio!”. E num instante ficou

ensopado até os ossos.


6

COMO SE ELA FOSSE SUA IRMÃ

E na verdade acabou tendo uma espécie de encontro naquela noite.

Pouco depois das dez e meia, gelado e encharcado, com os sapatos

cheios d’água, tocou a campainha no portão do jardim dos Gefen. Eles

viviam numa casa de pedra, protegida por grossas paredes, no Bairro

Alemão. A casa era rodeada por velhos pinheiros profundamente

enraizados num pátio enorme, cercado por um muro de pedra.

“Estava de passagem e vi uma luz acesa”, explicou ele para Nina num

tom hesitante, “então resolvi incomodar você por um ou dois minutos.

O tempo suficiente para pegar aquele livro sobre Leibowitz do Uri e

dizer a ele que, pensando bem, ambos estávamos certos sobre a guerra

Irã-Iraque. Devo voltar outra hora?”

Nina deu um sorriso irônico, agarrou Fima pelo braço e puxou-o para

dentro.

“Mas Uri está em Roma”, disse ela. “Você telefonou no sábado à noite

para se despedir, e deu por telefone uma verdadeira palestra sobre por

que seria melhor para nós se o Iraque derrotasse o Irã. Olhe só a sua

aparência! E eu devo realmente acreditar que você estava passeando

pela rua às onze da noite? O que vai ser de você, Fima?”

“Eu tive um encontro”, murmurou ele, lutando para se desfazer do

sobretudo encharcado. Explicou: “A manga está rasgada”.

Nina disse:

“Sente-se aqui perto do aquecedor. Você tem que se secar. Com

certeza também não comeu nada. Hoje eu estava pensando em você.”


“Eu também estava pensando em você. Estava pensando em seduzi-

la para ir comigo ver um filme no Orion, uma comédia com Jean

Gabin. Telefonei, mas ninguém atendeu.”

“Pensei que você tinha um encontro. Fiquei presa no escritório até as

nove. Um importador de artigos de sexo foi à falência, e eu entrei com

um processo contra ele. Os credores são um par de cunhados

ultrarreligiosos. Você pode imaginar o ridículo da situação. Não preciso

de Jean Gabin para rir. Não importa. Venha, tire essas roupas, você

parece um pinto molhado. Espere! Tome um gole de uísque primeiro.

É uma pena que você não possa se ver. Depois eu arranjo alguma coisa

para você comer.”

“O que fez você pensar em mim, hoje?”

“O seu artigo no jornal de sexta-feira. Bastante bom. Talvez um toque

um pouco histérico demais. Não sei se devia lhe contar isso, mas Tsvi

Kropotkin está secretamente armando um grupo de busca para invadir

o seu apartamento, revirar as suas gavetas e publicar os poemas que

ele tem certeza que você ainda escreve. Assim você não vai cair no

esquecimento total. Com quem foi o seu encontro? Com uma sereia?

Até a sua roupa de baixo está ensopada.”

Fima havia tirado a roupa e estava de ceroulas e uma amarelada

camiseta de inverno. Riu.

“Pelo que me diz respeito, podem me deixar no esquecimento. Eu

mesmo já esqueci de mim. O que, é para tirar a roupa de baixo

também? Por que, você está processando o sex shop? Você está

planejando me dar como pagamento para seus ultracredores?”

Nina era advogada, amiga e contemporânea de Yael, fumante

inveterada dos cigarros Nelson, e seus óculos lhe davam um ar amargo.

Seu cabelo grisalho e fino estava bastante maltratado. Ela era pequena

e magra, parecia uma raposinha faminta. Sua face triangular fazia Fima

pensar numa raposa acuada. Mas seus seios eram grandes e atraentes, e

tinha mãos muito bonitas, parecidas com as de uma jovem do Extremo

Oriente. Ela deu a Fima um monte de roupas do marido, recém-

passadas e com cheiro de limpas.

“Vista”, ordenou. “E beba isto. E venha sentar-se junto ao fogo. Tente

não falar por alguns minutos. O Iraque está ganhando a guerra sem a
sua ajuda. Vou preparar uma omelete e uma salada para você. Ou será

que é melhor esquentar um pouco de sopa?”

“Não prepare nada para mim”, disse Fima. “Vou embora em cinco

minutos.”

“Você tem outro encontro, é?”

“Deixei as luzes do meu apartamento acesas esta manhã. E, de

qualquer maneira...”

“Eu levo você para casa”, disse Nina. “Depois de você se secar, se

esquentar e ter comido alguma coisa.”

“Yael telefonou”, acrescentou ela. “Ela me disse que você não tinha

jantado. Disse que você ficou perturbando Teddy. Você é o Eugene

Onegin de Kiryat Yovel. Agora fique quieto. Não diga nada.”

Uri Gefen, marido de Nina, tinha sido outrora um famoso piloto de

combate, e mais tarde trabalhou como piloto na El-Al. Em 1971, abriu

seu próprio negócio, dando início a uma complexa rede de

importações. Em Jerusalém, tinha fama de caçador de mulheres

casadas. A cidade inteira sabia que Nina havia se conformado com suas

aventuras, e que havia já alguns anos o casamento dos dois era

puramente platônico. Às vezes as amantes de Uri acabavam amigas de

Nina. Uri e Nina não tinham filhos, mas a sua casa simpática e

acolhedora se tornara ponto de encontro de um grupo que se reunia

nas noites de sexta-feira, composto de advogados, oficiais do exército,

funcionários do governo, artistas e intelectuais. Fima gostava de ambos,

porque os dois, cada um à sua maneira, o tinham acolhido sob suas

asas. Sentia-se próximo de qualquer pessoa que conseguisse se

relacionar com ele, e nutria um afeto irrestrito por aquele círculo de

amigos queridos que ainda continuavam acreditando nele e se

propunham a incentivá-lo, lamentando como desperdiçava seu talento.

Sobre o aparador, sobre o console da lareira e nas estantes de livros

havia fotos de Uri, em trajes militares e civis. Era um homem grande,

largo, robusto, que exalava um calor físico selvagem, capaz de

proporcionar às mulheres e crianças, e até mesmo aos homens, um

sentimento de contato em relação a ele. De rosto, tinha uma leve

semelhança com Anthony Quinn. Seus modos eram sempre

exuberantes e calorosos. Tinha o hábito de tocar as pessoas com quem

estava conversando, tanto homens como mulheres, dando um


soquinho na barriga, passando o braço em volta do ombro, ou

descansando sua mão enorme no joelho do outro. Quando estava

inspirado, era capaz de fazer uma sala repleta de gente chorar de rir,

imitando a entonação de um comerciante no mercado central,

encarnando Abba Eban se dirigindo a uma plateia de imigrantes, ou

analisando naturalmente o impacto de um artigo de Fima sobre Albert

Camus. Às vezes revelava com franqueza, na companhia dos amigos e

na presença da esposa, detalhes de suas conquistas amorosas. Falava

com gosto, entusiasmo, sem fazer piada de suas amantes e sem revelar

suas identidades. Não se vangloriava, narrando o desenrolar do

romance com inspiração e bom humor, como alguém que havia muito

aprendera que amor e ridículo estão intimamente ligados; como tanto

sedutor quanto seduzida são guiados por rituais fixos; como era infantil

a sua necessidade infatigável de conquista, em que o aspecto carnal

desempenhava apenas uma pequena parte; como mentiras,

maneirismos e fingimentos se entrelaçam no tecido do verdadeiro

amor; e como o passar dos anos nos rouba a capacidade de vibrar e de

ansiar, uma vez que tudo se desgasta e desaparece. Ele próprio

aparecia neste Decameron das sextas-feiras sob uma luz um tanto

artificial, como se Uri Gefen, o narrador, estivesse examinando Uri

Gefen, o amante, ao microscópio, separando desapaixonadamente o

componente cômico. Às vezes dizia: “Quando você começa a descobrir

o sentido de algo, seu prazo terminou”. Ou: “Existe um provérbio

búlgaro: ‘A coisa mais importante que um gato velho lembra é como

miar’. Era na presença de Uri, e não nos braços de Nina, que Fima

sempre sentia uma confusa exaltação sensual. Uri despertava nele um

impulso avassalador de impressionar ou até mesmo chocar aquele

magnífico exemplar masculino. De levar a melhor numa discussão. De

sentir aquela mão poderosa agarrando seu cotovelo. Mas nem sempre

Fima conseguia levar a melhor, porque também Uri era dono de um

intelecto penetrante, não menos penetrante que o de Fima. E tinham

em comum a tendência de passar com facilidade, quase casualmente,

do ridículo para o trágico e de volta; bem como de demolir, com um

par de sentenças, argumentos que tinham levado mais de meia hora

para elaborar.
Nas noites de sexta-feira na casa de Uri e Nina era quando Fima se

sentia melhor. Sempre que se soltava, era capaz de cativar e entreter

até de madrugada com uma série de paradoxos, causar admiração com

sua análise política, e provocar risos e animação. “Só existe um Fima”,

dizia Uri com afeto paternal.

E Fima, por sua vez, terminava a frase:

“...e um já é demais.”

E Nina dizia:

“Olhem só esses dois. Romeu e Júlio. Ou, melhor, Laurel e Hardy, o

Gordo e o Magro.”

Fima não duvidava de que Uri sabia havia muito tempo que ele e

Nina ocasionalmente transavam. Talvez ele achasse interessante. Ou

comovente. Talvez ele tivesse sido na verdade o autor, diretor e

produtor dessa pequena comédia. Às vezes Fima imaginava a cena: Uri

Gefen levanta-se pela manhã, faz a barba com um barbeador moderno,

senta-se para o café da manhã com um guardanapo branco no colo,

olha a agenda e percebe a cruzinha que aparece a cada dois meses. Aí,

enquanto toma café escondido atrás do jornal, comenta com Nina que

está na hora de prestar a Fima o seu serviço regular, para garantir que

ele não seque totalmente. Esta suspeita não diminuía nem um pouco

seu afeto por Uri, nem o prazer físico e a euforia que sempre

experimentava na companhia de seu carismático amigo.

A cada intervalo de tantas semanas Nina aparecia sem avisar às dez

ou onze da manhã, estacionando o seu Fiat empoeirado na frente do

bloco de apartamentos em Kiryat Yovel. Levava duas cestas cheias de

comida e material de limpeza, compradas na volta do escritório. Ela

parecia uma assistente social assumindo responsabilidades ao passar

pelas fronteiras da privação. Depois de tomar café, levantava-se e tirava

a roupa deixando claros seus propósitos, quase sem dizer nada. Eles

transavam apressadamente, e se levantavam logo em seguida, como

um par de soldados numa trincheira, alimentando-se ávidos entre os

bombardeios.

Imediatamente depois de transar, Nina se trancava no banheiro. Após

esfregar seu corpinho magro, prosseguia esfregando o boxe e a pia. Só

depois, ambos se sentavam e tomavam outra xícara de café,

conversando sobre poesia engajada ou sobre a coalizão de unidade


nacional. Nina fumava sem parar e Fima engolia uma fatia de pão preto

com geleia depois da outra. Ele não conseguia resistir ao consistente

pão preto que ela levava para ele ainda morno.

A cozinha de Fima sempre dava a impressão de ter sido abandonada

às pressas. Garrafas vazias e cascas de ovos sob a pia, vasilhas abertas

sobre a prateleira, nódoas de geleia endurecida, iogurtes pela metade,

leite azedo, migalhas e talheres melados sobre a mesa. Às vezes, Nina,

imbuída de fervor missionário, arregaçava as mangas, calçava luvas de

borracha, e, com um cigarro aceso pendurado no canto da boca,

aparentemente grudado no lábio inferior, dava um jeito nos armários,

na geladeira, nas superfícies e nos ladrilhos. Em meia hora, era capaz

de transformar Calcutá em Zurique. Durante este combate, Fima ficava

apoiado na porta da cozinha, cheio de boa vontade, e só. Discutia com

Nina e consigo mesmo o colapso do comunismo ou a escola de

pensamento que rejeita as teorias linguísticas de Chomsky. Quando ela

ia embora, ele ficava tomado por uma mistura de vergonha, afeto,

saudade e gratidão; queria correr atrás dela com lágrimas nos olhos, e

dizer: “Obrigado, minha amada, eu não mereço tanta bondade”, mas

recompunha-se e depressa abria a janela para deixar sair a fumaça de

cigarro que poluía a sua cozinha. Tinha uma vaga fantasia sobre estar

doente na cama e Nina cuidando dele, ou então, Nina em seu leito de

morte e ele próprio umedecendo os lábios dela e enxugando-lhe o

suor da testa.

Dez minutos depois de entrar vindo da chuva, Fima vestia uma

camisa, calças e um pulôver vermelho de Uri, grande demais porém

gostoso de usar; estava sentado na poltrona de Uri, uma poltrona

engenhosa, que Nina descrevia como “o cruzamento entre uma rede e

um berço”. Nina serviu uma sopa de ervilhas quente e bem temperada,

e encheu de novo o copo de uísque. Os pés de Fima haviam sido

enfiados num par de chinelos felpudos que Uri trouxera de Portugal.

As suas roupas estavam penduradas para secar numa cadeira junto ao

fogo. Conversaram sobre literatura latino-americana, sobre realismo

mágico, que Nina via como uma continuação da tradição de Kafka, ao

passo que Fima tendia a atribuí-lo a uma vulgarizarão da herança de

Cervantes e Lope de Vega. Ele conseguiu aborrecer Nina afirmando

que, da sua parte, deixaria de lado todo esse circo sul-americano, com
seus fogos de artifício e algodão-doce, por uma única página de

Tchekhov. Cem anos de solidão por apenas uma Dama com o cãozinho.

Nina acendeu outro cigarro e disse:

“Paradoxos. Muito bem. Mas o que vai ser de você?” E acrescentou:

“Quando é que você vai tomar as rédeas da sua vida nas mãos?

Quando você vai parar de fugir?”

Fima respondeu:

“Ultimamente notei pelo menos dois sinais de que Shamir está

começando a perceber que sem a OLP nada vai dar certo.”

E Nina, através das suas grossas lentes e da névoa do cigarro:

“Às vezes acho que você é um caso perdido.”

Ao que Fima retrucou:

“Nós todos somos, Nina.”

Naquele momento sentiu muito carinho e afeto por aquela pessoa

sentada na sua frente, vestindo jeans bem gastos e uma camisa de

homem; era o que sentiria se ela fosse sua própria irmã. Sua falta de

beleza e feminilidade de repente lhe pareceu dolorosamente feminina

e atraente. Seus seios grandes e macios pediam-lhe que recostasse sua

cabeça neles. O cabelo curto e grisalho atraiu seus dedos. E ele sabia

precisamente como espantar aquele olhar de raposa atormentada da

sua face, e substituí-lo por uma expressão de garotinha mimada. A esta

altura sentiu seu pau endurecer. Para Fima, delicadeza, generosidade e

compaixão por uma mulher sempre despertavam a excitação. Suas

entranhas ardiam de desejo, um desejo quase próximo à dor: fazia dois

meses que ele dormira com uma mulher. O cheiro da lã molhada que

sentira ao beijar as costas de Yael na entrada escura do seu prédio

misturava-se agora com o cheiro de suas roupas secando junto ao fogo.

Sua respiração ficou mais rápida, seus lábios se entreabriram e

tremeram. Como se fosse uma criança. Nina percebeu, e disse:

“Só um momento, Fima. Deixe-me terminar o cigarro. Me dê mais um

ou dois minutos.”

Mas Fima, envergonhado, porém ardendo de piedade e desejo,

ignorou o pedido, ajoelhou-se diante dela e puxou suas pernas até que

conseguiu arrastá-la para perto de si sobre o tapete. Um emaranhado

de roupas, suas e dela, ainda mais atrapalhado pelas pernas da mesa.

Com alguma dificuldade, livrou-se do cigarro e dos óculos, enquanto


se esfregava ininterruptamente contra suas coxas e cobria-lhe o rosto

de beijos, como se para desviar a atenção dela da fricção cada vez mais

furiosa. Até que ela conseguiu empurrá-lo e libertar a ambos de suas

roupas, cochichando: “Devagar, Fima; você está me devorando viva”.

Porém, sem o menor cuidado, deitou-se sobre ela com todo o seu

peso, ainda beijando-lhe o rosto, ainda sussurrando agrados e

gaguejando desculpas. Quando ela enfim acedeu e disse: “Muito bem,

então venha”, seu pau subitamente amoleceu. Recolheu-se para o

recesso de sua morada como uma tartaruga assustada.

Mesmo assim, não parou de beijá-la e abraçá-la e desculpar-se pelo

seu cansaço. Ele tivera um sonho na noite anterior, e nesta noite Ted o

mandara embora depois de fazê-lo beber conhaque. E agora o uísque.

Parecia que hoje não era mesmo o seu dia.

Duas lágrimas apareceram nos cantos dos olhos míopes de Nina. Sem

os óculos, ela parecia frágil e sonhadora, como se sua face estivesse

muito mais despida que o corpo. Ficaram deitados por um bom tempo,

abraçando-se com força sem se mover, como soldados numa trincheira

sob bombardeio. Humilhados, e unidos na humilhação. Até que ela se

soltou, procurou um cigarro, acendeu-o, e tentou dizer: “Não faz mal,

menino”, e procurou fazê-lo entender que naquele momento ele estava

chegando mais fundo nela do que conseguiria trepando. Mais uma vez

o chamou de “menino” e disse: “Venha se lavar, e vamos botar você na

cama”.

Fima, consolado e choroso, apoiou a cabeça no ombro de Nina, mas

tirou seus óculos, porque tinha vergonha de seus corpos nus, tinha

vergonha do pau amolecido, querendo apenas afagá-la. Não queria vê-

la nem ser visto. Quietos e agarrados, ficaram deitados sobre o tapete

junto à lareira que ia se apagando, escutando o vento forte, a chuva

batendo nas janelas e o ruído da água nas calhas. Ambos moles e

satisfeitos, como se tivessem feito amor suavemente e dado prazer um

ao outro. Súbito, Fima julgou apropriado perguntar:

“O que você acha, Nina; Yael e Uri já transaram?”

O encanto se quebrou. Nina se livrou bruscamente do seu abraço,

pegou os óculos, embrulhou-se na toalha de mesa, acendeu agressiva

outro Nelson, e disse:


“Me diga uma coisa. Por que você não consegue manter essa boca

fechada por cinco minutos?”

Aí ele lhe perguntou o que exatamente ela havia gostado no seu

artigo no jornal de sexta-feira.

Nina disse:

“Espere aí.”

Ele ouviu uma porta bater. No instante seguinte ouviu o som de água

enchendo a banheira. Revirou a sua pilha de roupas, vasculhando

todos os bolsos em busca de uma pastilha contra azia. Num tom de

autodeboche, repetiu as palavras de Ted: “Você está com a aparência

meio esgotada”. E as de Yael: “Que idiota você é”.

Vinte minutos depois Nina saiu do banho, limpa, escovada,

perfumada, vestindo um roupão marrom, pronta para se recompor,

encontrou as roupas do marido espalhadas pelo chão, o fogo

morrendo, e os chinelos que Uri comprara em Portugal jogados como

gatinhos mortos ao lado da porta. Fima desaparecera. Mas ela notou

que ele terminara seu uísque e esquecera o livro sobre Leibowitz, e

também uma de suas meias, ainda pendurada no encosto da cadeira

junto ao fogo. Uma última chama brilhou com mais força por um

momento, e em seguida apagou. Nina apanhou as roupas e os

chinelos, recolheu o copo, o prato fundo de sopa, a meia, e endireitou

um canto do tapete. Seus dedos finos e bem formados, como os de

uma criança chinesa, buscaram um cigarro. Por entre as lágrimas, ela

sorria.
7

COM PUNHOS FINOS

Às seis e quinze da manhã anotou no seu caderninho de sonhos

marrom o que vira durante a noite. Para escrever, usou como apoio

sobre os joelhos um livro artístico a respeito de Jerusalém, escrito em

poesia hebraica. Como sempre, escreveu a data por extenso, e não em

algarismos.

No sonho, a guerra tinha irrompido. O cenário lembrava as colinas

de Golan, só que mais áridas. Ele estava fardado, mas não tinha arma

nem cinto. Caminhava por uma trilha de terra deserta, e sabia que, de

ambos os lados, havia linhas minadas. Recordava-se particularmente de

que o ar estava muito denso e cinzento, como se uma tempestade

estivesse se aproximando. Ao longe um sino soava lentamente, com

longas pausas entre os toques, o som ecoando através de vales

invisíveis. Não havia outra alma viva. Nem um pássaro sequer. Nem

sinal de habitação humana. Mais uma vez nos pegaram de surpresa.

Uma coluna de tanques inimigos aproximava-se firmemente de uma

estreita passagem entre as montanhas, uma espécie de ravina que Fima

podia divisar um pouco mais acima na estrada, onde tinham início as

montanhas mais íngremes. Ele percebeu que o cinzento do ar na

verdade era a poeira levantada pelo movimento dos tanques. Ao tomar

consciência disso, começou a ouvir ao fundo, por trás do soar dos

sinos, um ruído grave de motores. De certa forma sabia que a sua tarefa

era esperar por eles na ravina, no ponto onde a estrada cruzava as

montanhas. O objetivo era retardá-los, conversar com eles até que

chegassem reforços para bloquear a passagem. Começou a correr o


mais rápido que podia. Estava suando abundantemente. O sangue

pulsava nas suas têmporas. Os pulmões doíam. Sentia uma dor aguda

do lado. Embora estivesse forçando seus músculos ao máximo, mal se

movia, corria sem quase sair do lugar, e o tempo todo procurando

freneticamente palavras que pudesse usar para retardar o inimigo.

Precisava achar alguma coisa, uma frase, uma ideia, uma mensagem,

talvez até algo engraçado, enfim, palavras que pudessem brecar uma

coluna de tanques avançando contra ele, que fizessem surgir de dentro

dos blindados cabeças que escutassem o que tinha a dizer. Se não

conseguisse mudar suas opiniões, ao menos ganharia tempo. Sem isso

não havia esperança. Mas começava a fraquejar, seus pés tropeçavam e

a cabeça estava completamente vazia de ideias. Não lhe ocorria uma

palavra sequer. O ruído dos motores se aproximava, ficava mais forte;

ele já podia ouvir o trovão dos canhões e o repicar das metralhadoras

logo atrás de uma curva. E podia ver raios luminosos faiscando no

meio da nuvem de fumaça que tomava conta da ravina, turvando-lhe

os olhos e fazendo arder a garganta. Era tarde demais. Ele não chegaria

a tempo. Não havia palavras no mundo capazes de conter o touro

furioso que avançava em sua direção. Em poucos instantes estaria

esmagado. E a coisa mais terrível não era o medo; era a vergonha de

fracassar, de lhe faltarem as palavras. A sua corrida desenfreada foi

diminuindo em ritmo, e se transformou num andar cambaleante, pois

um peso enorme havia se instalado sobre seus ombros. Quando

conseguiu virar a cabeça, descobriu que havia uma criança montada

neles, batendo-lhe na cabeça com punhos finos e maldosos, forçando

sua cabeça a ficar entre os joelhos. Até que começou a soluçar.

Fima também anotou no caderno: “Minha roupa de cama fede.

Preciso levar uma trouxa de roupa para a lavanderia hoje. Mas uma

coisa havia: sobrou uma saudade daquelas montanhas úmidas e

daquela luz estranha, e principalmente dos sinos ecoando pelos vales

desertos com longas pausas entre os toques, e que pareciam chegar a

mim vindos de muito longe”.


8

DISCORDÂNCIA DE OPINIÕES SOBRE QUEM SÃO

DE FATO OS INDIANOS

Às dez da manhã, enquanto estava junto à janela contando as gotas

de chuva, Fima viu Baruch Nomberg descendo do táxi. O pai de Fima

era um velho vaidoso, que usava terno e gravata-borboleta, e tinha

uma barba branca que se curvava para cima, como uma cimitarra

muçulmana. Aos oitenta e dois anos ainda mantinha um firme controle

sobre seu reino, a fábrica de cosméticos que fundara nos anos 30.

Seu pai estava debruçado sobre a janela do táxi, aparentemente

dando algum sermão no motorista. Seu cabelo branco esvoaçava com a

brisa, e ele trazia o chapéu na mão esquerda e a bengala entalhada

com punho de prata na outra mão. Fima sabia que o velho não estava

reclamando do preço da corrida, nem esperando o troco; estava

terminando de contar uma anedota iniciada durante o caminho. Já fazia

cinquenta anos que ele dirigia um seminário extensivo para os

motoristas de táxi de Jerusalém, acerca de contos hassídicos e histórias

religiosas. Era um contador de histórias dedicado. E tinha o hábito

arraigado de fazer comentários sobre cada anedota e assinalar a moral

da história. Sempre que contava uma piada, prosseguia após o final

para explicar o sentido da mesma. Algumas vezes chegava a explicar o

sentido aparente e o sentido real. Seus comentários sempre

despertavam risos nos ouvintes, e isto o estimulava a contar mais

histórias e explicá-las também. Estava convencido de que ninguém


entendia o sentido das histórias e que era seu dever abrir os olhos das

pessoas.

Quando jovem, Baruch Nomberg fugira dos bolcheviques em

Kharkov e estudara química em Praga; depois viera para Jerusalém e

começara a fabricar batons e pó de arroz num pequeno laboratório

doméstico. Deste início simples surgiu uma conhecida fábrica de

cosméticos. Era um velho galante e namorador. Viúvo havia algumas

décadas, vivia cercado de amigas e companheiras. As fofocas de

Jerusalém diziam que elas se interessavam apenas pelo seu dinheiro.

Fima pensava diferente: considerava o pai, apesar de toda a sua

empáfia, um homem bom e generoso. Nesses anos todos sempre tivera

o hábito de emprestar apoio financeiro a toda e qualquer causa que o

comovesse ou que julgasse merecer. Era membro de incontáveis

comitês, conselhos, sociedades, associações e grupos. Participava

regularmente de campanhas para levantar fundos para desabrigados,

absorção de imigrantes, pessoas que necessitassem de difíceis

operações cirúrgicas no exterior, aquisição de terras nos Territórios

Ocupados, produção de obras comemorativas, restauração de ruínas

históricas, criação de lares para crianças abandonadas ou abrigos para

esposas vítimas de violência. Oferecia seu apoio a artistas necessitados,

à interrupção das experiências com animais de laboratório, à aquisição

de cadeiras de rodas e à prevenção da poluição ambiental. Não via

incoerência entre sustentar valores tradicionais em educação e ao

mesmo tempo financiar uma campanha contra a coerção dos religiosos.

Fornecia verbas para estudantes de grupos minoritários, para vítimas

de crimes violentos, e também para a reabilitação de criminosos

violentos. O velho dava somas modestas para cada uma dessas

iniciativas, mas a soma parecia corresponder aproximadamente a cerca

de metade dos rendimentos totais da fábrica de cosméticos, bem como

a maior parte do seu tempo. Além disso, tinha uma paixão, quase um

vício, por qualquer coisa que tivesse a ver com contratos e acordos

jurídicos. Sempre que precisava adquirir novos produtos químicos ou

se desfazer de equipamento obsoleto, convocava um verdadeiro

exército de advogados, consultores e contadores, no sentido de cobrir

toda e qualquer falha concebível. Acordos judiciais, notificações


cartoriais, cópias de atas e memorandos registrados, tudo isso

estimulava nele uma vibração que beirava a realização artística.

Passava o tempo livre na companhia de mulheres. Mesmo agora, com

mais de oitenta anos, ainda adorava ficar sentado em cafés. Tanto no

verão como no inverno usava terno e gravata-borboleta, e um lencinho

triangular de seda branca que brilhava no bolso superior do paletó

como um floco de neve ao sol, abotoaduras de prata, um anel de valor

no dedo mínimo, e sua barba branca apontava para a frente como um

dedo admoestador; deixava sua bengala com castão de prata presa

entre os joelhos, e o chapéu sobre a mesa diante dele. Um velho

rosado, limpo e perfumado, estava invariavelmente na companhia de

uma divorciada elegante ou de uma viúva bem conservada, sempre

mulheres europeias cultas e de maneiras refinadas, na casa dos

cinquenta ou pouco mais de sessenta anos. Às vezes ficava sentado no

café com duas ou três delas. Pedia café expresso e strudel para elas,

enquanto tomava um licor e mantinha um prato de frutas frescas na sua

frente.

Quando o táxi se foi, o velho se despediu acenando com o chapéu.

Um antigo hábito, pois para ele, como bom sentimental, toda

despedida era um fim. Fima saiu ao seu encontro. Quase podia ouvir o

pai cantarolando baixinho uma canção hassídica enquanto subia as

escadas. Sempre que estava só, e até mesmo às vezes quando lhe

dirigiam a palavra, vivia entoando o característico “ia-ba-ba-ba-ban”

das canções hassídicas. Fima de vez em quando se perguntava se ele

também cantarolava dormindo: como uma espécie de líquido musical

jorrando de uma fonte quente invisível, transbordando do corpo miúdo

do pai, ou escapando por entre as minúsculas frestas causadas pela

velhice. Fima também conseguia quase sentir o cheiro do pai

emanando escada acima, aquele cheiro que o fazia recordar sua

infância e que ele era capaz de identificar até mesmo numa sala repleta

de estranhos: o odor de salas fechadas sem ar, mobília antiga, peixe

cozido com cenouras, camas de penas, e licor melado.

Enquanto pai e filho trocavam um abraço formal, esse aroma da

Europa Oriental provocou em Fima uma repulsa misturada com

vergonha de estar sentindo repulsa, acompanhada de uma antiga

necessidade de provocar uma briga com o pai, de questionar algum


princípio sacrossanto dele, de expor as irritantes contradições entre

seus pontos de vista, enfim, de enervá-lo um pouco.

“Nu”, começou o velho usando a antiga interjeição em iídiche. Estava

ofegante e suado pelo esforço da subida, mas prosseguiu: “Então o que

é que o meu estimado professor tem hoje para me contar? Tsion já tem

um redentor? Os árabes mudaram de opinião e decidiram nos amar?”.

“Shalom, Baruch.” Fima procurou se controlar.

“Sim. Shalom, meu caro.”

“O que há novo? Suas costas ainda estão incomodando?”

“Minhas costas?”, disse o velho. “Felizmente as minhas costas estão

condenadas a ficar sempre atrás de mim. Eu estou aqui, elas estão lá

atrás; elas nunca vão tomar o meu lugar. E se algum dia isso acontecer,

que Deus proíba, simplesmente vou virar as costas e pronto. Mas

minha respiração está mais curta. Como a minha paciência. E aqui os

papéis se invertem: não é ela que está atrás de mim, sou eu que estou

atrás dela. E então, com que herr Efraim tem se ocupado nestes dias

terríveis? Ainda se dedicando a deixar o mundo de prontidão para o

Reinado do Senhor?”

“Nada de novo”, disse Fima pegando a bengala e o chapéu do pai. E

achou apropriado acrescentar: “A não ser que o país está indo para o

brejo”.

O velho encolheu os ombros. “Tenho ouvido essas profecias

desastrosas há cinquenta anos — o país isso, o país aquilo — e

entrementes os profetas já estão enterrados e o país está cada dia

melhor. Apesar dos seus protestos a verdade é que quanto mais o país

é ameaçado, mais ele floresce. Não me interrompa, Efraim. Vou lhe

contar uma pequena história. Certa vez em Kharkov, antes da

Revolução leninista, um anarquista tolo rabiscou uma frase na parede

de uma igreja no meio da noite: DEUS ESTÁ MORTO, ASSINADO: FRIEDRICH

NIETZSCHE. É óbvio que se referia ao falecido filósofo maluco, nu. Então,

na noite seguinte vem alguém mais esperto e escreve: FRIEDRICH

NIETZSCHE ESTÁ MORTO, ASSINADO: DEUS. Espere um pouco — não terminei

ainda. Faça-me a gentileza e permita-me explicar o sentido desta

historinha. E, enquanto isso, ponha um pouco de água para ferver e me

sirva uma gotinha daquele Cointreau que eu lhe dei na semana

passada. Aliás, está na hora de você dar um jeito nesta velha ruína,
Fimuchka. Antes que os espíritos malignos tomem conta dela. Chame

um decorador e me mande a conta. Onde estávamos? Ah, sim, uma

xícara de chá. O seu amado Nietzsche é uma praga contagiosa. Vou lhe

contar uma história real que aconteceu com Nietzsche e Nachman

Krochmal quando se encontraram uma vez num trem para Viena.”

Como de costume, seu pai insistiu em acrescentar uma explicação

sobre o sentido da história. Fima riu: ao contrário da história em si, a

explicação era divertida. Seu pai, deliciado com a reação de Fima,

sentiu-se estimulado a contar mais uma anedota sobre uma viagem de

trem, desta vez sobre um casal em lua de mel que se viu obrigado a

pedir a ajuda do guarda. “E você percebe, Fima, que o ponto

importante não foi o comportamento da noiva, e sim a inexperiência

do noivo. Ele era um verdadeiro shlemazel.”

Fima repetiu para si próprio as palavras que ouvira o dr. Eitan

pronunciar no dia anterior: “Por mim, enforcaria os dois”.

“Sabe a diferença entre um shlemiel e um shlemazel, Efraim? O shlemiel

derrama o chá, e o chá sempre cai em cima do shlemazel. É o que dizem.

Mas, na verdade, por trás desta piada existe algo misterioso e

profundo. O shlemiel e o shlemazel são ambos imortais. De mãos dadas

eles vagam de país em país, de século em século, de história em

história. Como Caim e Abel. Como Jacó e Esaú. Como Raskolnikov e

Svidrigailov. Ou como Rabin e Peres. Ou talvez, quem sabe, como

Deus e Nietzsche. E já que estamos falando de trens, vou lhe contar

uma história real. Era uma vez um diretor da nossa rede ferroviária que

foi participar de uma reunião internacional de dirigentes de ferrovias.

Uma espécie de Konferenz. Então Deus abriu a boca do asno, e o palhaço

falou, falou e falou; não conseguia parar. Não descia da tribuna. Até

que o dirigente americano se encheu. Levantou a mão e perguntou ao

nosso homem: ‘Com todo o respeito, senhor Cohen, me desculpe, mas

quantos quilômetros de trilhos o senhor tem em Israel para falar tanto?’.

Nu, o nosso delegado não perde a presença de espírito; com a ajuda do

Senhor, que dá discernimento até para um simples galo, responde:

‘Não consigo me lembrar exatamente do comprimento, mister Smith,

mas a largura é exatamente a mesma que a sua’. Aliás, certa vez ouvi

esta história contada por um bobão que por engano disse Rússia em

vez de Estados Unidos. Ele estragou toda a história, porque as ferrovias


russas têm uma bitola diferente da nossa; na verdade, é diferente do

resto do mundo. Não há motivo, é só para ser diferente. Ou então é

para o caso de Napoleão Bonaparte voltar e tentar invadir a Rússia

outra vez, assim não vai conseguir levar seus vagões até Moscou. Onde

estávamos? Ah, sim, o casal em lua de mel. Realmente, Fima, não há

razão para você não tomar jeito e arranjar uma bela mulher para se

casar. Se você quiser, terei o maior prazer em ajudá-lo a encontrar a

moça etc. etc. Mas trate de se mexer, meu caro; afinal, você não é mais

um garoto de vinte anos. Quanto a mim, nu, qualquer dia desses um

vento sopra e me leva daqui. Baruch Nomberg está morto, assinado:

Deus. A coisa engraçada na história do casal em lua de mel não é o

noivo ter que pedir ao guarda instruções sobre como lidar com a noiva.

Não, senhor. E a associação com perfurar os bilhetes. Se bem que,

pensando bem, qual é a graça? Existe alguma coisa para se rir? Você

não se envergonha de achar graça? É triste, é de partir o coração. A

maioria das piadas na verdade se baseia no prazer inadequado que

sentimos com a desgraça dos outros. Por que isso, Fimuchka? Talvez

você possa gentilmente me explicar, já que você é um historiador, um

poeta, um pensador, por que as desgraças dos outros nos dão prazer?

Nos fazem dar risada? Nos proporcionam esta curiosa satisfação? O

homem é um paradoxo, meu caro. Realmente uma criatura muito

esquisita. Exótica. Ele chora quando deveria rir. Vive sem sentido e

morre sem forças. Frágil homem, seus dias são como a relva. Diga-me,

você tem visto Yael ultimamente? Não? E o menino? Mais tarde você

tem que me lembrar de lhe contar uma história maravilhosa do Rabi

Elimelech de Lizensk, uma parábola que fala de divórcio e saudades. A

intenção era fazer uma parábola acerca da relação entre a comunidade

de Israel e a Presença Divina. Mas eu tenho a minha própria

interpretação. Mas antes conte-me a respeito da sua vida e do que você

anda fazendo. Está tudo errado, Efraim: eis-me aqui falando como

nosso prezado chefe ferroviário, e você calado. Como a história do

cantor de sinagoga numa ilha deserta. Depois eu conto. Só não me

deixe esquecer. O cantor que se viu exilado numa ilha deserta durante

os Grandes Dias Santos. Não deve acontecer conosco! Mas aí vou eu de

novo, jogando conversa fora enquanto você fica calado. Diga alguma

coisa. Fale-me de Yael e daquele menino melancólico. Só não deixe de


me lembrar da história do cantor; afinal, de um jeito ou de outro,

somos todos cantores numa ilha deserta, e, num certo dia, todos os dias

são Grandes Dias Santos.”

Fima ouvia um leve chiado, quase um rosnado de gato, vindo do

peito de seu pai quando ele tomava fôlego. Como se o velho tivesse

colocado um apito na garganta de brincadeira.

“Beba o chá, Baruch. Está esfriando.”

O velho disse:

“Eu pedi chá, Efraim? Eu pedi para você falar. Pedi para você me

contar sobre o coitado daquele menino que você insiste em fingir

diante de todos que é filho daquele boboca americano. Eu lhe pedi que

pusesse um pouco de ordem na sua vida. Que virasse gente. Que, para

variar um pouco, se preocupasse com o futuro em vez de se preocupar

dia e noite com os nossos amados árabes.”

“Não estou preocupado com os árabes”, corrigiu Fima. “Já lhe

expliquei milhares de vezes. Estou preocupado conosco.”

“É claro, Efraim, é claro. Ninguém pode questionar a pureza das

nossas intenções. O problema é que vocês só levam em conta vocês

mesmos. Como se os seus árabes estivessem pedindo educadamente

para receber de volta Nablus e Hebron, e depois disso irão para casa

felizes para sempre, pazes feitas entre Israel e Ismael. Mas não é isso

que eles querem de nós. Eles querem Jerusalém, Fimuchka, e Jafa, e

Haifa, e Ramla. Apertar um pouco nossos pescoços, é isso que eles

querem. Acabar conosco. Se você se desse ao trabalho de escutar um

pouco o que eles dizem entre eles. O problema é que vocês se ouvem

a si próprios. Só a si próprios.” Outro leve assobio escapou do peito do

velho, como se ele estivesse admirado da ingenuidade do filho.

“Na verdade, pai, eles têm dito coisas bastante diferentes

ultimamente.”

“Eles têm dito. Bom que digam. Deixe que digam para se convencer.

Falar é fácil. Eles simplesmente aprenderam com vocês as regras de

como falar de maneira simpática. Eloquência. Palavras cativantes. Não

importa o que estão dizendo. O que importa é o que de fato desejam. É

isso que Ben Gurion, aquele fanfarrão, costumava dizer sobre judeus e

não judeus.” Aparentemente o velho ia prolongar o assunto, mas foi

acometido por uma falta de ar e soltou um chiado que terminou num


acesso de tosse. Como se no seu interior uma porta quebrada, com

dobradiças rangendo, estivesse batendo sem parar.

“Eles querem encontrar a solução para um acordo, Baruch. E agora

nós é que somos o lado intransigente que se recusa a fazer concessões

e não concorda sequer em conversar.”

“Acordo. É claro. Belas palavras. Acordo é uma coisa ótima. A vida

inteira depende de acordos. A propósito, há uma história maravilhosa

sobre o Rabi Mendel de Kotsk. Mas com quem você vai fazer o acordo?

Com os assassinos que há tempos juraram nos destruir? Agora chame

um táxi para mim, para eu não me atrasar, e enquanto esperamos vou

lhe contar uma história verdadeira sobre o encontro de Jabotinski com

o ministro do Interior da Rússia czarista, Plehve, que era antissemita. E

sabe o que Jabotinski disse a ele?”

“Foi Herzl, pai. Não Jabotinski.”

“Seria melhor para você, sabichão, não pronunciar os nomes de

Herzl e Jabotinski em vão. Tire os sapatos quando pisar no chão

sagrado deles. Eles devem se revirar no túmulo toda vez que você e

seus amigos abrem a boca para falar mal do sionismo.”

Fima subitamente ficou fora de si, esqueceu sua promessa de se

controlar, e quase sucumbiu à irresistível necessidade de puxar a

gravata-borboleta do pai, ou quebrar a xícara de chá que nem fora

tocada. Explodiu:

“Baruch, você é cego e surdo. Agora somos nós os cossacos, e os

árabes são diariamente vítimas de pogroms; sim, todo dia, toda hora.”

“Os cossacos”, refletiu o pai com irônica indiferença. “Nu? E daí? E que

mal há em que finalmente sejamos cossacos para variar? Onde é que

está escrito que a Torá proíbe judeus e não judeus de trocar de funções

de vez em quando? Uma vez em cada milênio, ou algo assim? Se você,

meu caro, fosse um pouco mais cossaco e um pouco menos shlemazel. E

o seu menino é exatamente igual: cordeiro em pele de cordeiro.”

E tendo esquecido o início da conversa, explicou de novo, enquanto

Fima quebrava furiosamente um fósforo atrás do outro, a diferença

entre shlemiel e shlemazel, e como ambos constituem um par imortal,

vagando de mãos dadas pelo mundo. Então fez Fima se recordar de

que os árabes possuem quarenta países enormes, da Índia à Abissínia,

enquanto nós temos apenas o nosso minúsculo país, que cabe na


palma da mão. E começou a enumerar os países árabes pelo nome,

usando seus dedos esqueléticos para a contagem. Quando mencionou

o Irã e a Índia, Fima não aguentou mais ficar em silêncio. Interrompeu

o pai com um grito firme e autoritário, bateu o pé, e exclamou com

petulância que Irã e Índia não são Estados árabes.

“Nu? E daí? Que diferença faz?”, recitou o velho num tom ritual, com

um ar matreiro e bem-humorado. “Será que finalmente conseguimos

achar uma solução satisfatória para a trágica questão de quem é judeu,

de modo que já podemos começar a quebrar a cabeça sobre quem é

árabe?”

Fima, totalmente desesperado, pulou da cadeira e correu em busca

da enciclopédia, na esperança de calar o pai de uma vez por todas por

meio de uma derrota fragorosa. Porém, como num pesadelo, não tinha

a menor ideia de onde começar a procurar uma lista dos Estados

árabes. Nem mesmo qual volume da enciclopédia. Ainda estava

resmungando e puxando freneticamente um volume atrás do outro,

quando de repente percebeu que seu pai estava de pé, cantarolando

baixinho uma melodia hassídica, misturada com uma leve tosse seca.

Ele tinha pegado o chapéu e a bengala, e em meio à retirada tentava

furtivamente enfiar dinheiro dobrado no bolso traseiro da calça do

filho.

“Não é possível”, murmurou Fima. “Simplesmente não posso

acreditar. Isto não está acontecendo. É loucura.”

Mas não tentou explicar o que não estava acontecendo, porque seu

pai, parado junto à porta, acrescentou:

“Nu, não faz mal. Eu desisto. Esqueça os indianos. Que sejam apenas

trinta e nove. Já é mais que suficiente e muito mais do que eles

merecem. Não devemos permitir que os árabes se interponham entre

nós, Fimuchka. Não vamos lhes dar esse prazer. O amor, se assim

podemos dizer, sempre supera a discórdia. Meu táxi provavelmente

está esperando lá fora, e não devemos atrapalhar o trabalho de um

homem. E nem chegamos ao ponto mais importante. O importante é

que meu coração está fraco e cansado. Em breve, Fimuchka, vou seguir

meu caminho, assinado: Deus Todo-Poderoso. E então o que vai ser de

você, meu querido? O que vai ser do seu doce filho? Pense um pouco,

Efraim. Dê um pouco de atenção a isso. Afinal, você é um pensador e


poeta. Pense com cuidado e me diga, por favor: para onde vamos

todos nós? Por minha culpa não tenho outros filhos e filhas. E vocês

aparentemente não têm ninguém além de mim. Os dias passam sem

propósito, sem alegria e sem recompensas. Daqui a cinquenta ou cem

anos certamente haverá nesta sala pessoas que ainda nem nasceram,

uma geração forte e poderosa. E para essas pessoas, saber se um dia

você e eu vivemos aqui ou não, e — se vivemos — para que vivemos,

o que fizemos com as nossas vidas, se foram dignas ou indignas, felizes

ou infelizes, se praticamos o bem ou não, tudo isso vai ter menos

importância do que um grão de areia. Não vão perder um segundo

para se recordar de nós. Simplesmente estarão aqui, vivendo suas

próprias vidas, como se você e eu e todos nós não fôssemos mais do

que os flocos de neve do ano passado. Um punhado de poeira. Você

aqui também não tem ar para respirar. O ar está viciado. Você não

precisa só de um decorador, você precisa de todo um exército de gente

trabalhando. Mande-me a conta. Quanto aos cossacos, Efraim, deixe-os

em paz. O que um homem jovem como você sabe sobre os cossacos?

Em vez de se preocupar com os cossacos, melhor seria parar de

desperdiçar o rico tesouro da vida. Como uma tamareira silvestre.

Adeus.”

Sem esperar por Fima, que tencionava acompanhá-lo, o velho

acenou com seu chapéu como se estivesse partindo para sempre, e

começou a descer as escadas batendo ritmadamente com a bengala nos

degraus, e emitindo um som musical enquanto respirava.


9

“HÁ TANTAS COISAS SOBRE AS QUAIS

PODERÍAMOS CONVERSAR. COMPARAR...”

Fima ainda tinha umas duas horas antes de ir para o trabalho. Pensou

em trocar os lençóis e, já que tinha começado, trocar também a camisa

e a roupa de baixo, os panos de prato e as toalhas, e largar tudo na

lavanderia a caminho da clínica. Quando entrou na cozinha para pegar

o pano de prato pendurado, viu a pia cheia de louça suja, e uma

frigideira com restos de comida no escorredor, enquanto sobre a mesa

havia um pote sem tampa, com a geleia endurecida. Uma maçã podre

atraía um enxame de moscas perto da janela. Fima pegou a maçã

infecta com o polegar e o indicador, como se ela fosse contagiosa, e

jogou-a na lata de lixo sob a pia atulhada. Mas a lata também estava

cheia até a borda. A maçã infectada deslizou sobre o cume da pilha de

lixo, e conseguiu achar um esconderijo entre velhas garrafas e frascos

de material de limpeza. Só era possível alcançá-la ficando de quatro.

Fima decidiu que desta vez não havia acordo, ele não iria desistir como

sempre, iria recapturar a fugitiva a todo custo. Se conseguisse,

interpretaria como um sinal verde, e manteria o impulso levando a lata

de lixo para baixo a fim de esvaziá-la. Na volta, iria se lembrar de

finalmente pescar o jornal e as cartas da sua caixa de correio.

Prosseguiria lavando e arrumando a geladeira, e, mesmo correndo o

risco de se atrasar, trocaria a roupa de cama.

Mas quando se prostrou e começou a busca da maçã perdida atrás da

lata de lixo, descobriu meio pãozinho, uma embalagem de margarina


toda melada, e a lâmpada queimada do dia anterior; de repente lhe

ocorreu que a lâmpada talvez não estivesse queimada, pois tinha

faltado eletricidade. Súbito uma barata avançou na sua direção, com ar

cansado e indiferente. Ela não tentou fugir. Num instante Fima foi

dominado pela emoção da caçada. Ainda de joelhos, tirou um sapato e

brandiu-o no ar, mas arrependeu-se quando se lembrou que foi

exatamente assim, com uma martelada na cabeça, que os agentes de

Stalin tinham assassinado o exilado Trotski. E ficou pasmado ao

descobrir a semelhança entre Trotski nas suas últimas fotos e o seu pai,

que havia poucos instantes ali estava pedindo-lhe que se casasse. O

sapato ficou congelado na sua mão. Ele observou atônito as antenas do

bicho, que descreviam lentos semicírculos no ar. Viu tufos de pelos,

como um bigode. Estudou as pernas longas e finas, aparentemente

cheias de juntas. A formação delicada das asas alongadas. Foi tomado

de reverência pela constituição artística, precisa e detalhada daquele

bicho, que não lhe parecia mais um estorvo e sim uma obra

maravilhosamente perfeita: o representante de uma raça odiada,

perseguida e confinada nos esgotos, perita na arte da sobrevivência,

ágil e astuta na escuridão; uma raça vítima de um ódio primevo,

nascido do medo, da simples crueldade, de preconceitos herdados.

Seria precisamente a capacidade de evasão dessa raça, sua humildade e

simplicidade, sua poderosa vitalidade, a responsável por despertar em

nós tanto horror? Horror pelo instinto assassino que a sua simples

presença estimulava? Horror pela misteriosa longevidade de uma

criatura que não era capaz de cantar nem morder, e sempre se

mantinha à distância? Fima, portanto, recuou em respeitoso silêncio.

Calçou de novo o sapato, ignorando o fedor de sua meia. E fechou

com delicadeza o armário sob a pia, para não assustar a criatura. Em

seguida, levantou-se com um grunhido e resolveu deixar os afazeres

domésticos para outro dia, pois havia tanta coisa a fazer e tudo parecia

tão cansativo.

Ligou o bule elétrico para preparar um café, sintonizou o rádio num

programa musical, e conseguiu ouvir o início do Réquiem de Fauré, cujas

trágicas notas de abertura o fizeram espiar pela janela por um instante,

na direção das colinas de Belém. Aquelas pessoas do futuro que seu

pai mencionara, que daqui a cem anos morariam neste mesmo


apartamento sem saber nada sobre ele e sua vida, será que realmente

nunca sentiriam curiosidade de saber quem vivera aqui no começo de

1989? Mas por que haveriam de sentir? Será que a sua vida tinha alguma

coisa que pudesse ser útil a pessoas cujos pais não tinham sequer

nascido? Algo que pelo menos oferecesse alimento para o espírito

quando estivessem junto à janela numa manhã de inverno de 2089?

Sem dúvida daqui a cem anos os veículos a jato teriam se tornado algo

tão comum que as pessoas não teriam motivo especial para se lembrar

de Teddy e Yael, nem de Nina e Uri e sua turma, nem de Tamar e dos

dois ginecologistas. Até mesmo a pesquisa histórica de Tsvi Kropotkin

já estaria obsoleta. O máximo que restaria dela seria uma nota de

rodapé em algum livro antiquado. Sua inveja de Tsvi parecia sem

sentido, vã, e ridícula. Essa inveja que ele sistematicamente negava, até

mesmo para si próprio, e cujas investidas insidiosas ele silenciava com

intermináveis discussões, telefonando para Tsvi e tirando perguntas do

ar, como por exemplo algo sobre o rei da Albânia que estava exilado,

envolvendo a ambos numa mal-humorada discussão sobre o islamismo

albanês ou sobre a história dos Bálcãs. Afinal, nos exames de

graduação, Fima tirara notas ligeiramente melhores que as do seu

amigo. E fora ele que tivera certos lampejos brilhantes que Tsvi

utilizara depois, fazendo questão, apesar dos protestos de Fima, de

reconhecer sua contribuição em notas de rodapé. Se conseguisse

apenas superar seu cansaço. Ainda tinha dentro de si um desejo de ir

adiante, recuperar o tempo perdido no ano do desbunde, e dentro de

poucos anos superar aquele professor convencional, de ar afetado, de

blazer esporte, que vivia exibindo seus afáveis truísmos. Não restaria

pedra sobre pedra das construções de Kropotkin. Fima arrasaria tudo

como um furacão. Provocaria um terremoto e assentaria fundações

novas. Mas qual era o sentido? No máximo algum estudante, no fim do

próximo século, iria se referir de passagem, entre parênteses talvez, ao

enfoque obsoleto da escola de pensamento Nisan-Kropotkin, que

andara na moda em Jerusalém no final do século XX, na fase decadente

do período socioempírico, caracterizado pelo hiperemocionalismo e

pela utilização de ferramentas intelectuais inadequadas. O estudante

nem sequer se daria ao trabalho de estabelecer uma distinção entre


ambos. Seria perfeitamente possível uni-los por meio de um hífen antes

de fechar os parênteses sobre ambos.

O estudante, que viveria neste apartamento daqui a um século,

assumiu de repente o nome de Yoezer na cabeça de Fima. Este era

capaz de visualizá-lo, parado junto a esta mesma janela, olhando estas

mesmas colinas. E disse ao estudante: “Não deboche. É graças a nós

que você está aqui”. Certa vez houve uma cerimônia de plantio de

árvores na cidade de Ramat Gan. O primeiro prefeito, o velho Avraham

Krinitzi, parado diante de milhares de crianças, de todas as creches,

cada uma segurando uma muda de árvore. O prefeito também tinha

uma muda na mão. Tinha a obrigação de fazer um discurso para as

crianças, e não sabia o que dizer. De repente, das profundezas da sua

mente, surgiu um discurso de uma única frase, com forte sotaque

russo: “Crianças queriidas mias: voceis são as árvoris; nôs samos o

esterco”. Haveria sentido em riscar as paredes com esta frase, como um

prisioneiro nas paredes de sua cela, para o arrogante Yoezer ler? Para

forçá-lo a pensar em nós. Mas até então decerto as paredes já teriam

sido novamente pintadas, masseadas, talvez até reconstruídas. Em cem

anos a vida será mais vital, mais vigorosa, mais razoável, e mais alegre.

As guerras com os árabes serão lembradas com desdém, consideradas

uma espécie de ciclo absurdo de obscuras escaramuças tribais. Como a

história dos Bálcãs. Não creio que Yoezer desperdice suas manhãs

caçando baratas, nem suas noites em restaurantes vagabundos atrás da

praça Tsion. Que provavelmente terá sido arrasada e reconstruída num

estilo mais vibrante e otimista. Em vez de comer gordurosos ovos fritos,

geleia e iogurte, provavelmente engolirão uma ou duas cápsulas a cada

intervalo de tantas horas. Nada de cozinhas imundas, nada de formigas

e baratas. As pessoas se ocuparão o dia inteiro com coisas úteis e

estimulantes, e suas noites serão dedicadas ao estudo e à beleza.

Viverão suas vidas sob a esplendorosa luz da razão, e se em algum

momento surgirem sensações de amor, com certeza haverá um jeito de

trocar impulsos eletromagnéticos imediatos à distância, para saber se é

apropriado ou não traduzir esse amor em intimidade física. A chuva de

inverno terá sido banida para sempre de Jerusalém. Será desviada para

as regiões agrícolas. Todo mundo será conduzido em segurança para o


lado ariano, por assim dizer. Ninguém, nada vai cheirar mal. A palavra

sofrimento soará para eles do mesmo modo que alquimia soa para nós.

Tivemos outro corte de eletricidade. As luzes se acenderam de novo

depois de alguns minutos. Provavelmente é um sinal para mim de que

devo ir ao banco pagar minha conta, senão vão cortar de vez e me

deixar no escuro. Também devo dinheiro na mercearia. E será que

ontem paguei o schnitzel para a sra. Schneider, ou pedi outra vez para

anotar? Esqueci de pegar aquele livro para o Dimi. O que é que está

nos segurando? Por que ainda estamos aqui? Por que não nos

levantamos e abandonamos Jerusalém para aqueles que virão depois

de nós? Boa pergunta, disse Fima baixinho.

Desta vez convocou a reunião de gabinete para o velho hospital de

Shaarei Tsedek, na rua Jaffa, uma esplêndida construção abandonada

que estava se deteriorando desde que o hospital se mudara para um

local novo. À luz de lampiões, entre restos de bancos quebrados e

pedaços de camas, dispôs seus ministros num semicírculo. Pediu a

cada um que fizesse um resumo da situação nos seus vários

departamentos. Aí surpreendeu a todos anunciando que tinha a

intenção de voar a Túnis pela manhã e se dirigir ao Conselho Nacional

Palestino. Depositaria a maior parte do fardo da responsabilidade

histórica pelas carências dos árabes palestinos sobre os ombros das

suas próprias lideranças extremistas desde a década de 20. Não

pouparia a sua ira. No entanto, estaria disposto a romper o sangrento

círculo vicioso e começar a construir em conjunto um futuro razoável

baseado em acordo e conciliação. A única condição para começar a

negociar seria a cessação total das hostilidades de ambos os lados. No

final da sessão, já de madrugada, nomeou Uri Gefen ministro da

Defesa. Gad Eitan recebeu a pasta de Assuntos Externos. Tsvi seria

responsável pela Educação, Nina pela pasta de Finanças, Wahrhaftig

ficou encarregado do Bem-Estar Social, e Ted e Yael ficaram

responsáveis por Ciência, Tecnologia e Energia. O Ministério das

Informações e da Segurança Interna ainda mantinha para si. E daí por

diante o gabinete seria rebatizado de Conselho Revolucionário. O

processo revolucionário estaria completado em seis meses. Até aí a paz

teria lido estabelecida. E imediatamente depois podemos todos voltar

às nossas ocupações e não interferir mais no trabalho do governo


eleito. Eu próprio pretendo me recolher para um anonimato total.

Agora dispersemos pelas entradas laterais.

Que tal incluir também Dimi?

Durante as férias de inverno o menino passara uma manhã no

laboratório da fábrica de cosméticos em Romema. Quando Fima

chegou para levá-lo ao Zoológico Bíblico, descobriu que o velho se

trancara com Dimi no laboratório, ensinando-o a usar acetona para

fabricar explosivos. Fima ficou furioso com o pai por corromper a

criança. Será que já não temos assassinos suficientes? Por que

envenenar a alma dele? Mas Dimi interrompeu a discussão comentando

delicadamente, como um mediador:

“Os explosivos do vovô só servem para pintar as unhas.”

E todos caíram na gargalhada.

Na parede à esquerda da janela, a cerca de um metro e pouco, num

canto onde a tinta descascava, Fima viu um lagarto cinzento, imóvel,

olhando fixamente, como ele próprio, as colinas de Belém. Ou

observando uma mosca invisível para Fima. Muito tempo antes,

naquelas colinas e vales sinuosos, caminharam juízes e reis,

conquistadores, profetas da ira e do consolo, salvadores, reformadores

do mundo, impostores, sonhadores, sacerdotes e videntes, traidores,

messias, prefeitos romanos, governadores bizantinos, generais

muçulmanos, e príncipes cruzados, e ascetas, eremitas, milagreiros e

sofredores. Até hoje Jerusalém ainda ressoa a memória deles no

badalar dos sinos das Igrejas, ainda balbucia seus nomes nos topos dos

minaretes, e os conjura de volta com encantações cabalísticas. E agora,

neste momento, parecia não haver uma única alma viva na cidade, a

não ser ele e o lagarto e a luz.

Quando era mais jovem, também ele costumava fantasiar que podia

ouvir vozes ao caminhar entre os pátios, ruelas e becos. Tentava até

mesmo registrar em palavras o que fantasiava ter ouvido. Naqueles dias

ainda era capaz de derreter corações. Mesmo agora às vezes ainda

conseguia fascinar algumas almas, em especial mulheres, nas reuniões

de sexta-feira na casa dos Tobias ou dos Gefen. Às vezes lançava uma

ideia surpreendente, e por um instante a sala inteira ficava na

expectativa. Suas ideias então percorriam o caminho até a boca e se

transformavam em palavras, e ocasionalmente até chegavam às colunas


dos jornais. Algumas vezes, quando estava inspirado, conseguia cunhar

uma expressão nova, formular uma percepção da situação em palavras

que ainda não haviam sido utilizadas, proferir alguma observação

arguta que circulava pela cidade, até que alguns dias depois a ouvia no

rádio, separada dele e do seu nome, e muitas vezes distorcida. Seus

amigos gostavam de lhe recordar, numa espécie de crítica delicada,

como uma ou duas vezes ele realmente demonstrara capacidade

profética; como por exemplo em 73, quando andava de um lado a

outro lamentando o ridículo da cegueira que afligia Israel, a catástrofe

iminente. Ou às vésperas da invasão do Líbano. Ou antes da onda do

fundamentalismo islâmico. Sempre que seus amigos recordavam essas

profecias, Fima se retraía respondendo com um sorriso amarelo que

não era nada, que tudo já estava escrito na parede e que qualquer

criança podia ler.

Tsvi Kropotkin às vezes recortava para ele trechos de algum jornal ou

suplemento literário que fazia referência à Morte de Augustino, quando

alguns críticos se davam ao trabalho de tirar esses poemas do

esquecimento com o objetivo de usá-los como munição adicional

numa campanha contra as tendências atuais da poesia moderna ou a

favor delas. Fima encolhia os ombros e murmurava: “Basta, Tsvika,

esqueça isso”. Seus poemas, assim como suas profecias, lhe pareciam

remotos e irrelevantes. Quais são os anseios da alma se a alma nem

sequer sabe que anseia? O que realmente existe e o que só parece

existir? Onde procurar algo perdido se se esqueceu o que se perdeu?

Certa vez, no ano do desbunde, durante o breve casamento com a

proprietária do hotel em Valetta, estava sentado num café à beira-mar,

observando dois pescadores jogando gamão. Na verdade não estava de

fato observando os pescadores, e sim um pastor-alemão sentado,

atento, numa cadeira entre ambos. As orelhas do cão apontavam

seriamente para a frente, como se estivesse escutando atento a próxima

jogada, e ficava seguindo os dedos dos jogadores, e o rolar dos dados e

o movimento das pedras; seus olhos deram a Fima a impressão de

estarem repletos de concentração e fascínio. Fima jamais vira, antes ou

depois, um esforço tão profundo para entender o ininteligível, como

se, na sua ansiedade de decifrar o jogo, o cão tivesse conseguido um

certo grau de desincorporação. Com certeza é assim que devemos


olhar para o que está além de nós. Apreender o máximo que

pudermos, ou ao menos apreender a nossa incapacidade de apreender.

Fima às vezes retratava o criador do universo, em quem não acreditava

totalmente, como um mercador jerosolimita de origem oriental, com

cerca de sessenta anos, curvado, bronzeado e enrugado, e uma camisa

branca não muito limpa, abotoada até em cima, mas sem gravata, e

sapatos marrons gastos e um paletó fora de moda, um pouco pequeno

para ele. Este criador fica sentado preguiçosamente num banquinho,

de frente para o sol, olhos semicerrados, cabeça caída para a frente, na

entrada de sua lojinha em Zichron Moshe. Uma ponta de cigarro pende

do lábio inferior, e um rosário âmbar está pendurado entre seus dedos,

onde um largo anel brilha de vez em quando. Fima para e ousa se

dirigir a ele, com polidez exagerada, na terceira pessoa, hesitante:

Poderia eu ter a permissão de perturbar o Venerável apenas com uma

pergunta? Uma faísca de ironia brilha no rosto enrugado e duro. Talvez

apenas uma mosca zumbindo? Será que o Venerável poderia se dignar

considerar os Irmãos Karamazov? A discussão entre Ivan e o Diabo? O

sonho de Mitya? Ou o episódio do Grande Inquisidor? Não? E qual seria

a resposta que o Venerável se dignaria dar a esta pergunta? Vão e

vazio, tudo é vão? Será que o Venerável seria capaz de recorrer

novamente aos velhos argumentos: Onde estavas quando lancei as

fundações do mundo? Sou o que sou. O velho solta um bafo de tabaco

e áraque, vira as palmas das duas mãos para cima, calejadas como as

de um pedreiro, e abre-as sobre os joelhos. Apenas o anel brilha por

um momento. Será que ele está mascando algo? Sorrindo? Cochilando?

Fima abandona o questionamento. Desculpando-se, prossegue no seu

caminho. Sem correr, sem se apressar. Porém, como alguém que está

fugindo e sabe que está fugindo, e sabe também que não adianta fugir.

Da sua janela Fima avista o sol tentando se libertar das nuvens, Uma

mudança sutil estava tomando conta das ruas e colinas. Não

exatamente clareando, e sim uma leve oscilação de tons, como se o

próprio ar estivesse sujeito a dúvidas e hesitações. Todas as coisas que

preenchiam as vidas do grupo — Uri, Tsvi, Teddy, e o resto —, as

coisas que despertavam vontade e entusiasmo, pareciam a Fima tão

frágeis como as folhas mortas apodrecendo sob a árvore pelada no

jardim. Em algum lugar por aqui existe uma terra prometida esquecida.
Não, não uma terra, nem prometida, nem mesmo esquecida de fato,

mas alguma coisa chamando. Perguntou a si mesmo se se importaria de

morrer hoje. A pergunta não despertou sentimento nenhum: nem

preocupação nem desejo. A morte parecia tão chata quanto uma das

histórias de Wahrhaftig. Como se sua vida diária fosse tão previsível e

cansativa quanto as lições de moral do seu pai. No seu íntimo, súbito

concordou com o velho; não acerca da identidade dos indianos, mas

quando ele disse que os dias passam sem alegria ou propósito. O

shlemiel e seu amigo realmente mereciam piedade, e não risos. Mas o

que significavam para ele? Decerto ele, Fima, estava cheio de poderes

incríveis, e era somente o cansaço que o impedia de exercê-los. Como

alguém à espera do momento exato. Ou que um golpe arrebente a

crosta interna. Ele podia, por exemplo, largar o emprego na clínica,

tirar mil dólares do velho, e embarcar num cargueiro para começar

uma vida nova. Na Islândia. Em Creta. Em Safed. Podia se trancar

naquele albergue em Magdiel e escrever uma peça de teatro. Ou uma

confissão. Podia redigir um programa político, arranjar alguns

seguidores, e dar início a um novo movimento capaz de abalar o

estado de indiferença e espalhar-se pelo público como fogo renovado.

Ou podia aderir a um dos partidos existentes, dedicar-se a atividades

públicas por cinco ou seis anos, passar de um ramo a outro, lançando

uma nova luz sobre a situação nacional até que os corações mais duros

ficassem sensibilizados, e talvez chegasse ao comando e pudesse trazer

paz ao país. Em 1977, um cidadão comum chamado Lange ou Longe

tinha conseguido se eleger para o Parlamento da Nova Zelândia, e em

1982 detinha todas as chaves do poder. Ou então Fima podia se

apaixonar, ou assumir a indústria do pai e transformar a fábrica de

cosméticos no núcleo de um conglomerado industrial. Ou podia se

dedicar à carreira acadêmica, substituir Tsvi e seus amigos, conseguir

uma cátedra, fundar uma nova escola. Podia causar tumulto em

Jerusalém publicando um novo livro de poemas. Que expressão

ridícula “causar tumulto em Jerusalém”. Ou podia ganhar Yael de volta.

E Dimi. Ou podia vender esta ruína onde vivia e usar o dinheiro para

recuperar uma casa abandonada nos arredores de uma aldeia

longínqua nas montanhas da Alta Galileia. Ou fazer o contrário: trazer


pedreiros, carpinteiros, decoradores, reformar o apartamento inteiro,

mandar a conta para o seu pai, e abrir um capítulo novo.

O sol saiu repentinamente de trás das nuvens que cobriam Gilo, e

uma luz suave e preciosa se espalhou sobre uma das colinas. Desta vez

Fima não achou exagerada a expressão “luz preciosa”, mas resolveu

descartá-la. Não sem antes dizer as palavras em voz alta, sentindo um

fluxo de prazer e alerta interior. Prosseguiu dizendo as palavras macia e

brilhante, e mais uma vez experimentou um prazer misturado com

deboche. Um caco de vidro reluziu no jardim abaixo dele, como se

tivesse encontrado o caminho e sinalizasse a Fima para que o seguisse.

Fima repetiu mentalmente as palavras do pai. Flocos do ano passado.

Um punhado de pó. Mas em vez de dizer “flocos do ano passado” disse

por engano “ossos do ano passado”.

O que teriam em comum o lagarto, imóvel na parede, e a barata

debaixo da pia? E o que teriam de diferente? Aparentemente, nenhum

dos dois desperdiçava o tesouro da vida. Mesmo que ambos também

estivessem sujeitos à lei férrea de Baruch Nomberg acerca de viver sem

sentido e morrer sem libido. Mas pelo menos não tinham fantasias

sobre conquistar o poder ou trazer a paz ao país.

Furtivamente, Fima abriu a janela, tomando todo o cuidado para não

atrapalhar a meditação do lagarto. Mesmo que seus amigos, e ele

próprio, o considerassem um palerma desajeitado, conseguiu abrir o

vidro sem fazer nenhum ruído. Agora tinha certeza de que o bicho

estava focalizando algum ponto no espaço para o qual ele também

deveria estar olhando. De que remoto território do reino evolucionário,

de que paisagem primeva repleta de vulcões vomitando nuvens de

fumaça e selvas imersas em névoas oriundas do solo, muito antes do

surgimento da linguagem e do conhecimento, eras inteiras antes de

todos os reis e profetas e redentores percorrerem as colinas de Belém,

viera esta criatura que agora fixava o olhar em Fima, a pouco menos de

um metro, com uma espécie de ansiosa afeição? Como um parente

distante preocupado com a sua saúde. Sim, um perfeito dinossauro, um

dinossauro reduzido ao tamanho de um lagarto de quintal. Fima

parecia intrigar o bicho, senão, por que outra razão mexia a cabeça

lentamente de um lado a outro como se dissesse: Estou realmente


surpreso com você. Ou como se lamentasse o fato de Fima estar agindo

de forma inadequada, mas nada podendo fazer para ajudá-lo.

E na verdade é um parente distante: não há dúvida de que pertence a

um ramo longínquo da família. Entre mim e você, companheiro, e

entre nós dois e Trotski, existem muito mais coisas em comum do que

diferenças: cabeça pescoço espinha curiosidade membros desejo

sexual capacidade de distinguir a luz das trevas e o frio do calor,

costelas pulmões velhice sistema digestivo e excretor nervos para sentir

dor metabolismo memória senso de perigo um labirinto de vasos

sanguíneos um mecanismo reprodutor e um mecanismo para

regeneração limitada programado em última instância para

autodestruição. Também um coração funcionando como uma

complexa bomba o sentido de olfato e um instinto de autopreservação

e um talento para fugir e se esconder e se camuflar e também sistemas

de orientação e um cérebro, e aparentemente também solidão. Há

tantas coisas sobre as quais poderíamos conversar que poderíamos

comparar, aprender e ensinar mutuamente. Talvez também tenhamos

que levar em consideração um elo mais antigo que une nós três ao

reino vegetal. Coloque a mão sobre uma folha de figueira, por

exemplo, ou uma folha de parreira. Só uma pessoa cega seria capaz de

negar a semelhanças de formas, os dedos abertos, os vasos e nervos

que se ramificam, cuja função é nutrir e eliminar matéria usada. E quem

pode dizer se por trás desse parentesco não existe outro ainda mais

sutil entre todos nós e os minerais em especial, e o mundo inanimado

de forma geral? Cada célula viva é composta de uma massa de

substâncias inanimadas, que na verdade não são inanimadas, pois

estão constantemente pulsando com cargas elétricas. Elétrons.

Nêutrons. Talvez ali também haja um padrão de masculino e feminino

que não podem se juntar nem se separar? Fima sorriu. Seria melhor,

concluiu, chegar a um bom termo com o jovem Yoezer, parado junto à

janela daqui a cem anos, olhando seu próprio lagarto. Para ele, vou ter

menos importância que um grão de sal. Talvez algo de mim, uma

molécula, um átomo, um nêutron, esteja presente na sala, quem sabe

realmente num grão de sal. Presumindo que daqui a cem anos as

pessoas ainda usem sal.

E por que não?


Dimi é a única pessoa com quem eu seria capaz de conversar sobre

estas fantasias.

Em todo caso, melhor encher a cabeça dele com profetas, lagartos e

folhas de parreira do que com bombas feitas de esmalte de unhas.

Num instante o lagarto sumira e se escondera dentro ou atrás da

calha. Desaparecera de forma ágil e rápida. O Réquiem de Fauré tinha

terminado, sendo seguido pelas Danças polovetsianas de Borodin, que não

agradavam a Fima. E a claridade cada vez mais forte estava começando

a incomodar seus olhos. Fechou a janela e começou a procurar um

agasalho, mas era tarde demais para salvar o bule elétrico, cuja água

fervera por completo algum tempo antes, e que agora cheirava a

fumaça e borracha queimada. Fima teria que optar entre levá-lo ao

conserto no caminho do trabalho ou comprar um novo.

“Problema seu, companheiro.”

Mascou uma pastilha contra azia e optou pela liberdade. Ligou para a

clínica e disse a Tamar que não iria hoje. Não, não estava doente. Sim,

tinha certeza. Tudo estava perfeitamente bem. Sim, era um assunto

pessoal. Não, não havia nada errado e ele não precisava de ajuda.

Obrigado de qualquer forma, e por favor diga que sinto muito. Olhou

na lista telefônica e, surpresa, na letra T achou Tadmor, Annette e

Yeroham, num dos subúrbios, Mevasseret.

Foi a própria Annette quem atendeu. Fima disse:

“Sinto muito incomodá-la. É o recepcionista da clínica de ontem.

Efraim. Fima. Lembra-se? Conversamos na clínica. Eu pensei que...”

Annette lembrava-se bem. Disse que estava feliz. E sugeriu um

encontro na cidade.

“Daqui a uma hora, pode ser? Hora e meia? Está bom para você,

Efraim? Eu sabia que você ia ligar hoje. Não pergunte como. Tinha uma

sensação. Havia alguma coisa, digamos, inacabada entre nós. Então,

daqui a uma hora? No Café Savion? Se eu atrasar um pouco, não

desista.”
10

FIMA PERDOA E ESQUECE

Fima esperou cerca de quinze minutos numa mesa lateral do café.

Passados os quinze minutos, pediu café e bolo. A uma mesa próxima

estava sentado um membro do Knesset, pertencente a um partido de

direita. Acompanhava-o um jovem magro, de barba e boa aparência,

que dava a impressão de ser um ativista a favor dos assentamentos

judaicos nos Territórios. O jovem disse:

“Vocês também não têm colhões. Vocês se esqueceram de onde

vieram e quem os colocou onde estão.”

E começaram a falar mais baixo.

Fima se lembrou de como havia deixado a casa de Nina na noite

anterior, como havia se desmoralizado aos olhos dela, como havia se

desmoralizado no escritório de Ted, como envergonhara Yael e a si

próprio no escuro do hall. Na verdade, seria bem interessante arranjar

agora uma discussão com esses dois conspiradores. Ele podia

estraçalhá-los sem a menor dificuldade. Presumiu que Annette Tadmor

mudara de ideia, pensara melhor, resolvera não vir ao encontro. Por

que haveria de vir? Seu corpo vistoso, curvilíneo, seu sofrimento, seu

vestido simples de algodão que parecia um uniforme escolar, tudo isso

despertava em Fima uma ponta de desejo misturada com autoironia.

Pensou: Ainda bem que ela mudou de opinião; poupou a você outro

vexame.

O jovem colonizador se levantou e, com dois passos largos,

aproximou-se da mesa de Fima. Este ficou assustado ao ver que o

jovem tinha uma arma no cinto.


“Desculpe, mas por acaso é o advogado Prag?”

Fima refletiu sobre a pergunta, e por um momento viu-se tentado a

responder que sim. Sempre tivera uma queda por Praga.

“Não creio.”

O colonizador disse:

“Marcamos um encontro com alguém que nunca vimos. Pensei que

talvez pudesse ser você. Desculpe.”

“Eu não sou”, declarou Fima agressivamente, como se estivesse

dando o primeiro tiro numa guerra civil, “um de vocês. Eu acho que

vocês são uma desgraça.”

O jovem, com um sorriso doce e inocente, e um olhar que sugeria a

solidariedade judaica, disse:

“Por que não economizar expressões como essa para o inimigo? Foi o

ódio infundado que causou a destruição do Templo. Não faria mal a

ninguém tentar de vez em quando um pouco de amor gratuito.”

Uma deliciosa expectativa de discussão percorreu o corpo de Fima

como vinho, e ele já tinha uma resposta devastadora na ponta da

língua, quando viu Annette na entrada, olhando em volta vagamente.

Quase ficou desapontado. Mas foi obrigado a acenar e esquecer o

jovem colonizador. Ela se desculpou do atraso. Assim que ela se sentou

na sua frente, Fima disse que ela chegara bem a tempo de salvá-lo do

Hezbollah. Ou melhor, de salvar o Hezbollah das mãos dele. E prosseguiu,

descarregando o conteúdo das suas opiniões. Só então, lembrou-se de

pedir desculpas por ter feito o pedido sem esperar que ela chegasse.

Perguntou o que ela queria tomar. Para sua surpresa, ela respondeu

vodca, e começou imediatamente a contar sobre o seu divórcio, após

vinte e seis anos de um casamento que ela considerava perfeito. Pelo

menos era o que parecia. Fima pediu a vodca e mais um café para si.

Pediu também um pouco de pão e queijo, e um sanduíche de ovo, pois

ainda sentia fome. Continuou escutando a história de Annette, mas sua

atenção estava dividida, já que nesse ínterim um homem careca

vestindo uma capa de chuva cinza sentara-se na mesa ao lado.

Provavelmente era o advogado Prag. A impressão de Fima era que os

três estavam planejando uma ação de interferência no departamento do

procurador de Estado, e se esforçava para captar a conversa. Sem muita

consciência do que dizia, comentou com Annette que para ele era
difícil acreditar que ela fora casada vinte e seis anos, porque não

parecia ter mais de quarenta.

“Gentil da sua parte”, respondeu Annette. “Há alguma coisa em você

que irradia delicadeza. Acredito que se eu conseguir contar a história

toda, do começo ao fim, para alguém que saiba simplesmente escutar,

isso vai me ajudar a pôr as ideias em ordem. Entender o que me

aconteceu. Mesmo sabendo que depois de contar vou entender menos

ainda. Você tem paciência?”

O político disse:

“Vamos tentar ganhar tempo pelo menos; não pode fazer mal.”

E o homem de capa cinza, provavelmente o advogado Prag:

“Pode parecer muito fácil para você. Na verdade, não é tão fácil

assim.”

“É como se Yeri e eu estivéssemos há um tempão parados em

silêncio num terraço”, disse Annette, “debruçados sobre o parapeito,

olhando o jardim lá embaixo, e o bosque, juntos, ombro a ombro, e de

repente ele me agarra e me joga para baixo. Como uma caixa velha.”

Fima disse:

“É triste.” E logo em seguida: “Terrível”.

Colocou sua mão sobre a mão de Annette, que se mantinha fechada

no canto da mesa, porque havia novamente lágrimas em seus olhos.

“Então estamos de acordo”, disse o colonizador. “Vamos manter

contato. Só tenham cuidado ao falar por telefone.”

“Veja”, disse Annette. “Em romances, peças de teatro, filmes, sempre

há mulheres misteriosas. Cheias de caprichos, imprevisíveis. Elas se

apaixonam como sonâmbulas, e voam para longe como pássaros.

Greta Garbo. Marlene Dietrich. Liv Ullmann. Todo tipo de femme fatale.

Os segredos do coração feminino. Não ache graça de eu beber vodca

no meio do dia. Afinal, você também não parece ser dos mais felizes.

Estou aborrecendo você?”

Fima chamou o garçom e pediu outra vodca. Pediu também uma

garrafa de água mineral e um pouco mais de pão e queijo. Os três

conspiradores se levantaram para ir embora. Ao passarem pela sua

mesa, o jovem deu um sorriso doce e condescendente, como se

pudesse enxergar seu coração e o perdoasse. E disse:


“Tchau, e tudo de bom. Não se esqueça: no final das contas estamos

todos no mesmo barco.”

Mentalmente Fima transportou este momento para um café em

Berlim, nos últimos dias da República de Weimar, colocando-se no

papel de um mártir: Carl von Ossietzki, Kurt Tucholski. Logo a seguir,

cancelou a imagem inteira, pois a comparação lhe pareceu ridícula,

quase histérica. Disse a Annette:

“Dê uma boa olhada neles. Essas são as criaturas que estão nos

arrastando para o fundo do poço.”

Annette respondeu:

“Eu já estou no fundo do poço.”

E Fima:

“Continue. Você estava falando de mulheres fatais.”

Annette esvaziou o segundo copo. Seus olhos brilhavam, e uma

ponta de sedução tomou conta de suas palavras:

“O que eu gosto em você, Efraim, é que você realmente não dá a

mínima para a impressão que eu causo. Não estou acostumada a isso.

Em geral, quando converso com um homem, a coisa mais importante é

a impressão que ele me causa. Nunca me aconteceu antes ficar sentada

com um estranho, e falar tão livremente, sem ficar detectando sinais,

sabe o que eu quero dizer. Só uma pessoa conversando com a outra.

Você não fica ofendido?”

Fima sorriu inconscientemente quando ela usou a expressão “um

estranho”. Ela notou o sorriso e se curvou na direção dele, como uma

criança consolada depois de chorar. Disse:

“Não quis dizer que você não seja masculino, mas que eu posso

conversar com você como se fosse um irmão. Nós temos que aguentar

tanta besteira dos poetas: as Beatrizes, as mães-terras, as gazelas, as

panteras, as gaivotas, cisnes, e toda essa bobagem. Vou lhe dizer, Fima,

acho que é mil vezes mais complicado ser homem. Ou talvez não haja

complicação nenhuma, só uma porcaria de uma troca. Você me dá

sexo, eu lhe dou um pouco de carinho. Ou impressão de carinho. Seja

puta e mãe. Um cãozinho dócil de dia e uma gata à noite. Às vezes

tenho a sensação de que os homens adoram sexo mas detestam as

mulheres. Não se ofenda, Efraim. Só estou generalizando. Deve haver


exceções. Como você, por exemplo. Agora me sinto bem, do jeito que

você está me escutando.”

Fima debruçou-se para acender o cigarro que ela tirara da bolsa.

Estava pensando: Naquela hora, em plena luz do dia, no meio de

Jerusalém, eles já estão andando por aí com as armas no cinto. Será

que a doença já estava implícita na ideia sionista desde o começo? Não

haveria meio de os judeus voltarem ao palco da história sem se

transformarem naquela escória? Será que toda criança maltratada

precisa necessariamente se transformar num adulto violento? E não

seriamos já escória antes de retornarmos ao palco da história? Temos

que ser sempre ou vítimas ou algozes? Não existe uma terceira

alternativa?

“Aos vinte e cinco anos”, prosseguiu Annette, “depois de me formar

em história da arte, alguns casos amorosos e um aborto, conheci

aquele jovem cirurgião ortopedista. Um homem quieto, tímido, que

nem parecia israelense, sabe o que eu quero dizer. Uma pessoa

delicada, que me aborda com sensibilidade e até me manda uma carta

de amor por dia, mas nunca tenta me tocar. Um homem honesto e

trabalhador. Ele gosta de mexer o café para mim. A imagem que tem de

si mesmo é a de um sujeito comum, na média. Como médico jovem,

trabalha feito louco, horas e horas no emprego, consultas, plantões.

Com um pequeno grupo de amigos íntimos muito parecidos com ele,

todos filhos de pais refugiados, cultos e bem-educados como ele. Em

menos de um ano, estávamos casados. Sem grande estardalhaço, sem

altos e baixos. Ele cuida de mim como se eu fosse de vidro, sabe o que

eu quero dizer.”

Fima quase a interrompeu para dizer: Mas todos nós somos assim;

por isso é que perdemos nosso país. Mas se conteve e não disse nada.

Simplesmente teve o cuidado de apagar o toco de cigarro que Annette

deixara fumegando na borda do cinzeiro. Terminou o sanduíche e

ainda estava com fome.

“Juntamos as nossas economias, a pensão de nossos pais, e

compramos um apartamentinho em Givat Shaul; compramos a mobília,

uma geladeira, um fogão, escolhemos juntos as cortinas. Jamais

discordamos. Tratamo-nos com respeito e amizade. Ele simplesmente

adora fazer as coisas como eu gosto, pelo menos é assim que eu penso
na época. A palavra certa é mesmo amizade. Ambos nos esforçamos ao

máximo, queremos ser bons o tempo todo. Queremos ser justos.

Competimos para ver quem considera mais o outro. Aí nasce a nossa

filha, e, dois anos depois, nosso filho. Yeri, obviamente, é um pai

razoável, dedicado. Consistente. Estável. A palavra correta é confiável.

Fica feliz lavando as fraldas, sabe como limpar o mosquiteiro do berço,

lê livros e aprende a preparar uma refeição e cuidar de plantas. Leva as

crianças para passear na cidade sempre que o trabalho permite. Com o

passar do tempo, até melhora seu desempenho na cama. Aos poucos

vai percebendo que eu não sou feita de vidro, sabe o que quero dizer.

Às vezes conta alguma história engraçada durante a refeição. Mas, ao

mesmo tempo, começa a desenvolver algumas pequenas manias.

Irritantes. Pequenas manias que não somem. Ficar batendo os dedos

nos objetos, por exemplo. Não as batidinhas que um médico dá

quando examina o peito de um paciente. Parecem mais batidas na

porta. Ele está sentado lendo jornal, e fica o tempo todo batendo

inconscientemente no braço da poltrona. Como se quisesse entrar. Ele

se tranca no banheiro, demora meia hora para tomar banho, e fica o

tempo todo batendo nos azulejos, como se estivesse procurando uma

passagem secreta. Ou a mania de dizer Azoy, em iídiche, em vez de

responder ao que você está dizendo. Digo a ele que achei um erro na

conta de luz, e ele diz Azoy. Nossa filhinha diz que a boneca está

zangada com ela, ele sorri e diz Azoy. Eu intervenho e digo: ‘Por que de

vez em quando você não escuta o que os seus filhos dizem?’. E tudo o

que ele consegue dizer é Azoy. É isso aí. Ou o assobio sarcástico que ele

solta pelo vão dos dentes da frente; provavelmente não é assobio,

muito menos sarcástico, deve ser só o ar passando entre os dentes. Não

importa quantas vezes eu digo que ele está me deixando louca, ele não

consegue parar. Parece que ele nem nota que assobiou de novo. Mas,

afinal de contas, essas manias irritantes acabam sendo coisas sem

importância: aprende-se a conviver com elas. Há maridos bêbados,

maridos preguiçosos, adúlteros violentos, pervertidos, doidos. De

qualquer maneira, é bem possível que eu também tenha manias que

ele não gosta, só que ele não diz nada. Não há motivo para criar

confusão por causa de umas batidinhas ou assobios, que, aliás, ele não

consegue nem controlar. E assim os anos vão se passando. Decidimos


fechar a varanda e fazer mais um quarto; viajamos para a Europa,

compramos um carrinho, trocamos a mobília antiga. Até compramos

um pastor-alemão. Ajeitamos a vida dos pais dele e dos meus num bom

lar de idosos particular. Yeri faz a parte dele; procura me deixar feliz,

tem prazer com tudo o que nós conseguimos juntos. Pelo menos é

assim que eu penso. E lá vai ele, assobiando, dando batidinhas e de

vez em quando murmurando Azoy.”

Fima estava pensando: A sede do Knesset, o Parlamento, cercada de

tanques, paraquedistas tomando a estação de rádio governamental, um

golpe militar — não, não é isso que vai acontecer aqui. Aqui

simplesmente vai ocorrer uma deterioração lenta. Um centímetro por

dia. As pessoas nem sequer vão perceber as luzes se apagando. Porque

elas não vão se apagar: elas vão ficar cada vez mais fracas. Até que por

fim resolvamos agir juntos e precipitar deliberadamente uma séria crise

nacional; ou então, não haverá um momento definido de crise. E disse:

“Você descreve tudo tão vividamente. Posso até visualizar.”

“Não estou chateando você? Não fique zangado se eu fumar de novo.

Para mim, é difícil falar disso. Devo estar com uma aparência terrível;

não paro de chorar. Seja gentil e não olhe para mim.”

“Ao contrário”, disse Fima. E, após um instante de hesitação,

acrescentou: “Seus brincos também são lindos. Especiais. Como dois

vaga-lumes. Apesar de eu não ter a menor ideia de como é um vaga-

lume”.

“É bom estar com você”, disse Annette. “É a primeira vez em muito

tempo que me sinto tão bem. Mesmo que você não diga quase nada, só

ouça e entenda. Yeri me encoraja a pegar um emprego de meio

período na Prefeitura de Jerusalém, quando as crianças ficam um

pouco mais velhas. Começamos a juntar algum dinheiro. Compramos

um carro novo. Sonhamos em construir uma casa de telhado vermelho,

com um jardim de verdade, fora da cidade, em Mevasseret. Às vezes,

de noite, quando as crianças estão na cama, sentamos e ficamos

olhando revistas de decoração americanas, fazendo planos. Às vezes

ele dá as batidinhas com os dedos nos nossos desenhos, como se para

testar a solidez dos planos. Nossos dois filhos revelam talento musical,

e nós resolvemos investir em aulas de música, professores particulares,

conservatório. Passamos as férias de verão na praia, todos os quatro,


em Naharyia. Em dezembro, deixamos as crianças sozinhas e alugamos

um chalé em Eilat. Dez anos atrás vendemos o apartamento dos pais

deles e compramos o chalé. Nas noites de sábado geralmente

convidamos alguns casais. Não tenha vergonha de me interromper,

Efraim, se estiver cansado de escutar. Será que estou entrando muito

em detalhes? Então esse homem confiável é indicado vice-diretor do

seu departamento. Começa a visitar pacientes particulares em casa. Aí o

sonho da casa com jardim em Mevasseret começa a se tornar realidade.

Ficamos os dois peritos em mármore e cerâmica e telhados, sabe o que

eu quero dizer. Esses anos todos, fora algumas briguinhas superficiais,

nem uma sombra se ergueu entre nós. Pelo menos é assim que eu

penso. Todas as brigas terminam com desculpas de ambas as partes.

Ele pede desculpas, eu peço desculpas, e ele murmura Azoy. E aí vamos

juntos trocar a roupa de cama e preparar o jantar.”

Cinco mil homens, pensou Fima, cinco mil de nós simplesmente se

recusando a prestar o serviço de reservista nos Territórios — isso

bastaria. Toda a Ocupação cairia por terra. Mas são justamente esses

cinco mil que se tornaram peritos em telhados. Aqueles filhos da puta

estão certos quando dizem que para eles basta ganhar tempo. No final

da história, ela irá para a cama comigo. Ela está se preparando para

isso.

“Durante alguns anos, no inverno”, prosseguiu Annette, com um leve

traço surgindo no canto da boca, como se ela pudesse ler a mente de

Fima, “ele passa uma noite por semana em Beer Sheva, porque lhe

pediram que ensinasse uma ou outra matéria na escola de medicina

local. Jamais passou pela minha cabeça a ideia de alguma outra mulher

na vida dele. Eu achava que uma coisa dessas simplesmente não

combinava com ele. Sobretudo porque as suas atividades domésticas

nessa área foram diminuindo com o tempo, sabe o que eu quero dizer.

O que faria ele com uma amante? Do mesmo modo que nunca me

ocorreria imaginar que ele fosse, digamos, um espião sírio. Era

simplesmente impossível. Eu sabia tudo sobre ele. Ou pelo menos era

assim que eu pensava. E o aceitava como era, inclusive o assobio

sarcástico, que naquela altura eu já estava convencida de que não era

assobio, muito menos sarcástico. Por outro lado — fico sem graça de

lhe contar isso, mas realmente estou com vontade de contar tudo —,
oito anos atrás, no verão, fui passar três semanas com uma prima

minha em Amsterdã, e tive um caso relâmpago com um loiro idiota,

oficial de segurança da embaixada, vinte anos mais novo que eu. Um

verdadeiro animal na cama, sabe o que eu quero dizer, mas

rapidamente se revelou um narcisista imbecil. Você pode rir ao saber

que existe gente que acha que as mulheres ficam excitadas com a

barriga lambuzada de mel. Imagine só! Em poucas palavras, era um

jovenzinho perturbado. Não valia nem o dedinho do meu marido.”

Fima pediu outra vodca para ela, sem perguntar. E, curvando-se às

exigências da sua fome, outro prato de pão e queijo para si. O último.

Por dentro, tomou a decisão de ser paciente e delicado. De não

avançar sobre ela. De deixar a política de lado. De falar apenas sobre

poesia e solidão de forma genérica. E, acima de tudo, de ter paciência.

“Voltei de Amsterdã cheia de culpa. Foi muito difícil resistir à

necessidade de contar tudo a ele. Mas ele não suspeitou de nada. Ao

contrário. Com o passar dos anos, criamos o hábito de ficar deitados na

cama, as crianças já dormindo, lendo revistas juntos. Nessas revistas,

aprendemos a fazer muitas coisas que não sabíamos. É verdade que o

comodismo e as concessões deram à nossa vida uma tonalidade pálida

e desvitalizada. Não tínhamos mais muito o que conversar. Afinal, não

me interesso tanto por ortopedia. Mas nunca ficamos incomodados

com o silêncio. Podemos passar a noite toda lendo, ouvindo música,

vendo televisão. Às vezes até tomamos um drinque antes de deitar. Às

vezes acordo depois de dormir só um pouquinho, pois ele tem

dificuldade de adormecer e fica batendo distraído na cabeceira da

cama. Peço-lhe para parar. Ele se desculpa, para de bater, eu volto a

dormir e ele adormece também. Ou assim me parece. Ficamos nos

lembrando mutuamente de manter a dieta, porque ambos temos

tendência a engordar. Estou meio gorda, Efraim? Você tem certeza?

Nesse meio-tempo compramos todos os tipos de equipamentos

elétricos para a casa. Contratamos uma empregada três vezes por

semana. Visitamos os pais dele e os meus. Ele vai a um congresso

médico no Canadá sem mim, mas me convida a acompanhá-lo numa

conferência sobre ortopedia em Frankfurt. Ali, até mesmo saímos uma

noite para ver como era um strip-tease. Fiquei meio enojada, mas hoje

acho que foi um erro dizer isso a ele. Devia ter ficado de boca fechada.
O fato, Efraim, é que tenho medo do que você vai pensar de mim se eu

lhe pedir que peça mais uma vodca. Só mais uma e pronto. É tão difícil.

E você é tão bom ouvinte. Um anjo. Bom, então seis anos atrás afinal

nos mudamos para a casa em Mevasseret. Nós mesmos a construímos,

e ela ficou exatamente igual ao nosso sonho, com uma ala separada

para as crianças, e um dormitório sob um telhado triangular,

exatamente como um chalé nos Alpes.”

Um anjo, com uma ereção igual ao chifre de um rinoceronte, pensou

Fima, e sorriu para si mesmo. Mais uma vez sentiu como a compaixão

era acompanhada de desejo, e junto com o desejo vinha a vergonha, a

raiva e o autodeboche. E enquanto visualizava o rinoceronte, recordou-

se da imobilidade do lagarto pré-histórico que lhe fizera um sinal com

a cabeça naquela manhã. E lembrou do Rinoceronte de Ionesco e, embora

cuidadoso com comparações superficiais, teve que sorrir, porque o

advogado Prag mais parecia um búfalo do que um rinoceronte.

“Diga-me, Annette, você não está com fome? Aqui estou eu

devorando pão e queijo sem parar, e você nem tocou no seu pedaço

de bolo. Quer dar uma olhada no cardápio?”

Mas Annette não deu nenhum sinal de ter ouvido e acendeu outro

cigarro. Fima passou-lhe o cinzeiro que o garçom tinha esvaziado e a

vodca recém-chegada.

“Café, talvez?”

“Não, realmente não”, respondeu ela. “Você me faz me sentir bem.

Só nos conhecemos ontem e é como se eu tivesse encontrado um

irmão.”

Fima, no seu íntimo, quase utilizou a expressão favorita do marido,

Azoy. Mas se conteve, e estendendo o braço quase inconscientemente,

acariciou sua face.

“Continue, Annette”, disse ele. “Você estava falando sobre os Alpes.”

“Fui uma boba. Cega. Pensei que a nova casa era a materialização da

felicidade. Como estávamos animados de viver fora do centro! A vista,

a paz, a quietude. No fim do dia saíamos para o jardim para ver quanto

as mudas tinham crescido. Com os últimos raios de sol, ficávamos

sentados na varanda vendo as colinas escurecerem. Quase sem falar, e

ainda assim, amigos. Pelo menos era assim que eu pensava. Como um

par de companheiros de armas, que não precisam mais trocar palavras,


entende. Agora, vejo que até isso foi um erro. Que as batidinhas no

parapeito da varanda eram a tentativa de expressar algo, uma espécie

de código Morse, à espera de uma resposta minha. Às vezes ele olhava

para mim por sobre as lentes dos óculos, com o queixo apoiado no

peito, com uma ligeira expressão de surpresa, como se eu fosse nova

para ele, como se eu tivesse mudado totalmente, e ele deixava escapar

um leve assobio. Se eu não o conhecesse há tantos anos, poderia

imaginar que estivesse se interessando por mulheres, flertando. Hoje

acho que não consegui entender nada daquele olhar. Então nossa filha

vai para o exército, e menos de um ano depois nosso filho também; ele

foi aceito na orquestra do exército. A casa parece vazia. Em geral

vamos para a cama às dez e meia. Deixamos uma luz no jardim, para

não ficar escuro de todo à noite. Os dois carros lá fora, silenciosos sob

o abrigo. Duas vezes por semana ele dá plantão no hospital e eu fico

na frente da TV até acabar a programação. Recentemente comecei a

pintar. Só por distração, para mim mesma. Sem nenhuma pretensão.

Ainda que Yeri tenha sugerido mostrar minhas pinturas para alguém

que entende, quem sabe elas tenham algum valor. Não me interessa

saber se elas valem ou não alguma coisa. Ele respondeu Azoy. E de

repente alguma coisa me atingiu. Um dia, um Shabat de manhã, um mês

e meio atrás — se pelo menos eu tivesse mordido a língua e ficado

calada — eu disse: ‘Yeri, se envelhecer é assim, então por que se

preocupar? O que há de errado?’. Ele de repente se levanta, fica parado

diante do quadro Comedores de borboletas, de Yossel Bregner — você

conhece o quadro? —, ele me deu a gravura de presente de aniversário.

Bom, de qualquer maneira, lá está ele de pé, tenso e retesado, deixa

escapar um assobiozinho entre os dentes, como se tivesse acabado de

notar um traço que não havia antes na gravura, ou que ele nunca tinha

visto, e diz: ‘Fale por você mesma. Eu ainda não estou nem pensando

em envelhecer’. E há alguma coisa na voz dele, na postura das suas

costas, que parecia ter se enrijecido e curvado, como uma hiena, e no

vermelho da sua nuca — eu nunca tinha notado o quanto ela era

vermelha — que faz com que eu me encolha cheia de medo na minha

poltrona. ‘Aconteceu alguma coisa, Yeri?’ ‘É o seguinte’, diz ele, ‘sinto

muito, mas eu tenho que ir embora. Não aguento mais. Simplesmente

tenho que sair. Há vinte e seis anos tenho dançado conforme a sua
música, como um urso amestrado. Agora, para variar um pouco, quero

dançar ao som da minha própria música. Já aluguei um pequeno

apartamento. Está tudo arrumado. Fora as minhas roupas e os meus

livros, e o cachorro, não vou levar nada comigo. Você tem que

entender: não tenho escolha. Já estou cheio de mentir.’ Então ele se

vira, vai até o escritório, e volta carregando duas malas — ele deve ter

arrumado as malas durante a noite —, e se dirige para a porta da frente.

‘Mas o que foi que eu fiz, Yeri?’ ‘Você tem que entender’, diz ele, ‘não é

você, é ela. Ela não suporta mais as mentiras. Ela não suporta me ver

como seu capacho. E eu não posso viver sem ela. Eu sugiro’, diz ele já

na porta, ‘que você procure não causar dificuldades, Annette. Não faça

cenas. Vai ser melhor para as crianças. Imagine que eu morri. Você tem

que entender. Estou sufocado.’ Aí, ele dá umas batidinhas na porta,

assobia para o cachorro, liga o Peugeot e desaparece. Tudo não levou

mais que quinze minutos. No dia seguinte, quando ele telefonou, eu

desliguei. Dois dias depois ele telefonou outra vez; eu quis desligar,

mas não tive força. Em vez disso implorei: ‘Por favor, volte, eu prometo

melhorar. Diga o que eu fiz de errado, e não vou repetir’. E ele

continuou repetindo, na sua voz de médico, como se eu fosse uma

paciente histérica: ‘Você tem que entender, acabou tudo’. Não estou

chorando porque estou zangada, Efraim. Estou chorando porque me

sinto insultada, humilhada. Duas semanas atrás ele envia esse

advogadozinho, todo educado, ao que parece de origem persa. Ele

senta empertigado na cadeira de Yeri, e eu chego a ficar surpresa de

não ver batidinhas no braço nem ouvir assobios entre os dentes, e

começa a explicar: ‘Veja bem, senhora, a senhora receberá dele pelo

menos o dobro que qualquer corte civil ou tribunal rabínico sonharia

em lhe dar. Se eu fosse a senhora, aceitaria correndo a nossa proposta,

porque a verdade é, minha senhora, que em toda a minha vida

profissional nunca encontrei ninguém disposto a abrir mão

imediatamente da totalidade das propriedades conjuntas, como oferta

inicial. Excluindo o Peugeot e o chalé em Eilat, é claro. Mas todo o

restante é seu, apesar de tudo o que ele teve que engolir da sua parte.

Se ele pedisse uma separação litigiosa, alegaria crueldade mental e com

certeza ganharia a causa’. Mal ouvi o que ele dizia; roguei àquele

macaco que simplesmente me dissesse onde estava meu marido, que


me deixasse vê-lo, que ao menos me desse o seu número de telefone.

Mas ele começou a me explicar por que na atual conjuntura seria

preferível não fazê-lo, e que, de qualquer maneira, meu marido e sua

amiga estavam de partida para a Itália naquela noite, e que passariam

dois meses fora. Só mais uma vodca, Efraim. Depois não bebo mais.

Prometo. Já fiquei até sem cigarros. Agora estou chorando por você,

não por ele, porque estou me lembrando de como você foi

maravilhoso comigo ontem na clínica. Agora diga só para eu me

acalmar, por favor, e me explique que coisas assim acontecem em

Israel a cada nove minutos, ou algo do gênero. Não ligue para o meu

choro. Na verdade, já me sinto melhor. Desde que voltei ontem da

clínica, não parei de me fazer a mesma pergunta: Será que ele vai

telefonar? Eu tinha a sensação de que você telefonaria, mas tinha medo

de ter esperança em vão. Você também não é divorciado? Você não me

disse que já foi casado duas vezes? Por que foi que você as chutou?

Você quer me contar?”

Fima disse:

“Eu não chutei ninguém. Foi exatamente o contrário.”

Annette disse:

“De qualquer modo, me conte. Mas uma outra vez. Não hoje. Hoje

não vou conseguir absorver. Eu preciso lhe contar toda a verdade.

Estou sendo chata? Egoísta? Sem noção de realidade? Repulsiva? Você

acha meu corpo repulsivo?”

Fima disse:

“Ao contrário. Acho que não sou bom o bastante para você. E,

mesmo assim, não consigo deixar de sentir que estamos no mesmo

barco. Mas veja, Annette, o tempo abriu. Estes dias lindos de inverno

em Jerusalém, o sol brilhando entre uma chuva e outra, como se o céu

estivesse cantando. Vamos dar um passeio? Não precisamos ir a

nenhum lugar especial, só dar uma caminhada. Que tal? Agora são

quatro e meia: logo vai escurecer. Se eu fosse mais direto,

simplesmente lhe diria que você é uma mulher linda, muito atraente.

Não me interprete mal. Vamos? Só um passeio, apreciar a luz do

entardecer. Você não vai sentir frio?”

“Não, obrigada. Já tomei horas do seu tempo. Na verdade, sim.

Vamos dar uma volta. Se você não estiver ocupado demais. É lindo isso
que você disse, o céu cantando. Tudo o que você diz sai de uma

maneira tão linda. Só prometa que você não está esperando nada de

mim, para não ficar desapontado. Veja, eu não consigo. Não faz mal.

Eu não devia ter dito isso. Desculpe. Vamos continuar conversando

enquanto andamos.”

Mais tarde naquela noite, Fima estava cheio de vergonha e

arrependimento por não ter trocado seus lençóis imundos, embaraçado

por não ter nada a oferecer a não ser uma omelete e um único tomate

mole, e o licor que seu pai trouxera. Com consideração e cuidado,

despiu as roupas de Annette, como um pai preparando a filha para

dormir. Emprestou-lhe um pijama de flanela usado: cheirou o pijama

ao tirá-lo do armário, hesitou, mas não tinha outro. Envolveu-a com

seu cobertor, e ajoelhou-se diante dela no chão frio, desculpando-se

pelo aquecedor elétrico que não aquecia o suficiente, e pelo colchão,

repleto de montanhas e vales. Ela puxou a palma da mão dele para

junto do rosto, e por um instante seus lábios tocaram-lhe as costas da

mão. Ele a recompensou generosamente, beijando-lhe a testa, as

sobrancelhas, o queixo, sem ousar aproximar-se dos lábios, enquanto

alisava e afagava seus longos cabelos. Ao acariciá-la, sussurrou: “Chore.

Não faz mal”. Depois de ela ter chorado a ponto de ficar feia, com o

rosto parecendo uma beterraba, Fima apagou a luz. Com muito

cuidado tocou seus ombros, seu pescoço, aguardando quase um

quarto de hora antes de prosseguir ladeira abaixo rumo aos seios, e

contendo-se para não roçar os bicos. O tempo todo continuou com

seus beijos paternais, na esperança de que eles desviassem a atenção

dela dos dedos que deslizavam entre seus joelhos. “Eu me sinto mal,

Efraim, me sinto mal, sinto que não valho nada.” Fima sussurrou: “Você

é maravilhosa, Annette, você me emociona”, e enquanto falava seu

dedo chegou mais perto do sexo dela, e parou, pronto para ser

imediatamente repelido. Quando ficou claro que ela estava absorta por

completo no seu infortúnio, descrevendo repetidas vezes em sussurros

a injustiça que sofrera, como se não estivesse percebendo o que ele

estava prestes a fazer, ele começou a brincar com delicadeza no seu

sexo, lutando para afastar a imagem do marido dando suas batidinhas,

até que ela suspirou e pôs a mão na sua nuca, dizendo: “Você é tão

bom”. Ao ouvir essas palavras, ele criou coragem de tocar totalmente


seus seios, e de encostar o seu próprio sexo desejoso na parte lateral

do corpo dela, mas sem ousar ainda se esfregar. Simplesmente

continuou a lhe fazer carinhos aqui e ali, descobrindo seus pontos,

cochichando palavras de conforto que ele próprio não escutava. Até

que afinal percebeu que a sua paciência estava começando a ser

retribuída: sentiu uma contração, um ligeiro arquear do corpo, um

tremor, ainda que ela continuasse falando, se queixando, explicando a

si mesma e a Fima onde errara, como fizera Yeri odiá-la, como fizera

mal ao marido e aos filhos, e confessando no escuro que, além do

episódio de Amsterdã, tivera mais dois casos, com dois amigos dele,

casos frívolos, tolos, mas que com certeza significavam que ela merecia

o que tinha acontecido. Entrementes, seu dedo descobrira o ritmo certo

e os suspiros eram intercalados por grunhidos, e ela não protestou

quando ele se pôs a esfregar a ereção na sua coxa. Fima continuou

fazendo o jogo da tristeza e do sofrimento, de modo que ela nem

notou quando suas roupas de baixo começaram a ser tiradas, seu corpo

ainda estimulado e as coxas apertando os dedos que ali tocavam,

enquanto seus próprios dedos acariciavam o pescoço de Fima. Mas no

momento exato em que decidiu ter chegado a sua hora, que a fruta

estava madura, e se achava a ponto de colocar o corpo em lugar do

dedo, o corpo dela se arqueou e ela soltou um grito leve e infantil de

surpresa e prazer. E no instante seguinte ela relaxou. E explodiu em

lágrimas outra vez. Febrilmente golpeou seu peito, em prantos. Por que

você fez isso comigo? Por que você me humilhou? Eu fui um desastre,

até mesmo sem você. Em seguida, virou as costas para Fima, e chorou

baixinho, como criança. Fima entendeu que era tarde demais. Tinha

perdido a hora. Por um instante, sentiu dentro de si uma mistura de

riso e raiva e frustração e graça de si mesmo: naquele momento teria

sido capaz de matar o jovenzinho colonizador com seu sorriso doce e

seu advogado e seu membro do Parlamento, enquanto chamava a si

mesmo de idiota. Então se recompôs, e se reconciliou com a

necessidade de perdoar e esquecer.

Levantou-se, cobriu Annette, e perguntou gentilmente se ela queria

mais uma dose de licor. Ou será que ela queria chá?

Ela se sentou abruptamente, puxando o lençol amarrotado de modo

a cobrir o peito, procurou um cigarro, acendeu furiosa, e disse:


“Seu grandíssimo sacana!”

Fima, debatendo-se para cobrir seu chifre de rinoceronte, murmurou

como um menino que acabou de ser castigado:

“Mas o que foi que eu fiz? Eu não lhe fiz nada.”

Ele sabia que essas palavras eram ao mesmo tempo verdade e

mentira, e quase caiu numa gargalhada, quase disse Azoy. Porém, se

controlou, se desculpou, repreendeu a si mesmo, não conseguia

entender o que sucedera consigo, por estar com ela perdera a noção e

esquecera de si mesmo, será que ela seria capaz de perdoá-lo?

Ela se vestiu apressada e rudemente, como uma velha zangada, de

costas para Fima. Penteou o cabelo com gestos zangados, as lágrimas

secaram. Acendeu um novo cigarro e pediu a Fima que chamasse um

táxi, e nunca mais lhe telefonasse outra vez. Quando ele perguntou se

podia acompanhá-la até lá embaixo, ela retrucou numa voz seca e

gelada:

“Não é necessário. Adeus.”

Fima entrou no chuveiro. Mesmo na água morna, quase fria, lavou-

se, esfregou-se cuidadosamente, e permaneceu um bom tempo no

banho. O verdadeiro bandido da história, refletiu, era o advogado.

Então vestiu uma cueca e uma camiseta limpas, juntando furioso os

lençóis e toalhas sujos, bem como sua camisa e os panos de prato,

meteu tudo num saco plástico e colocou o saco junto à porta da frente

para não esquecer de levá-lo à lavanderia na manhã seguinte.

Enquanto arrumava a cama com lençóis limpos, tentou assobiar entre

os dentes da frente, mas não conseguiu. O jovem colonizador dissera:

“Estamos todos no mesmo barco”, e Fima descobriu, para sua própria

surpresa, que de certo modo ele tinha razão.


11

ATÉ O ÚLTIMO POSTE DE LUZ

Ao terminar de preparar a roupa para a lavanderia, foi até a cozinha

jogar fora os restos dos cigarros de Annette. Ao abrir a portinhola do

compartimento sob a pia, encontrou a barata, Trotski, morta, de pernas

para cima ao lado da lata de lixo atulhada. O que teria causado a sua

morte? Não havia sinal de violência. E nem pensar na possibilidade de

uma barata morrer de fome numa cozinha como essa. Refletindo sobre

o assunto, Fima concluiu que a diferença entre uma barata e uma

borboleta não passava de variações sobre um mesmo tema, e que

certamente não se tratava de uma diferença tão significativa que

justificasse o fato de a borboleta simbolizar para nós liberdade, beleza,

pureza, ao passo que a barata é vista como a personificação do nojo.

Então, qual teria sido a causa da morte? Fima recordou-se que de

manhã, ao brandir o sapato sobre a cabeça de Trotski e depois mudar

de ideia, a criatura não fizera o menor esforço para fugir do seu

destino. Talvez já estivesse doente naquele momento, e ele nada fizera

para ajudar.

Fima se abaixou e pegou a barata utilizando um jornal enrolado em

forma de funil. Em vez de jogá-la no lixo, cavou uma sepultura no vaso

sem plantas que ficava no parapeito. Após o funeral, atacou a pilha de

pratos na pia. Lavou os pratos e as xícaras. Quando chegou a vez da

frigideira, com uma grossa camada de gordura endurecida, cansou-se

da tarefa e decidiu que a frigideira teria que esperar pacientemente até

o dia seguinte, junto com o restante da louça suja. Fima não pôde fazer

chá porque o bule elétrico tinha secado e queimado enquanto ele


mergulhava nas profundezas do processo evolucionário à procura de

um denominador comum. Foi mijar, mas perdeu a paciência e puxou a

descarga no meio do processo, como forma de ajudar sua bexiga

vacilante. Mais uma vez, perdeu a corrida, mas não esperou o

reservatório ficar cheio; deu meia-volta, e apagou a luz do banheiro. É

preciso ganhar tempo, disse para si mesmo. E acrescentou, sabe o que

eu quero dizer.

Pouco antes da meia-noite, vestiu o pijama de flanela que Annette

jogara sobre o tapete, foi para a cama, e gozou os lençóis limpos ao

começar a ler o artigo de Tsvi Kropotkin no jornal Ha’arets. O artigo lhe

pareceu acadêmico e insípido, como o próprio Tsvika, mas ele

esperava que a leitura o ajudasse a adormecer. Quando apagou a luz,

lembrou-se do leve grito de prazer, cheio de excitamento infantil, que

subitamente saíra da garganta de Annette enquanto as coxas dela

apertavam seus dedos com mais força. Mais uma vez o desejo veio à

tona, acompanhado de ressentimento e uma sensação de tristeza. Já

fazia quase dois meses que dormira com uma mulher, e agora tinha

perdido duas oportunidades em duas noites sucessivas, embora ambas

as mulheres tivessem estado em seus braços. Por causa do egoísmo

delas, agora não conseguiria pegar no sono. Por um momento pensou

que Yeri, o dr. Tadmor, tivera razão em abandonar Annette, pois estava

sufocado pelas mentiras. E quase ao mesmo tempo disse para si

mesmo: Seu sacana. Inconscientemente, começou a consolar devagar o

seu pênis. Então, um estranho, um homem moderado e razoável, cujos

pais ainda nem sequer tinham nascido, o homem que estaria neste

quarto numa noite de inverno daqui a cinquenta anos, espiava-o no

escuro, com um olhar cético, um pouco curioso, quase divertido. Essa

foi a impressão de Fima, que imediatamente soltou o pênis e reclamou

em voz alta:

“Você, não venha me julgar.” E acrescentou, irônico: “Em todo caso,

daqui a cem anos não vai existir mais nada aqui. Tudo terá sido

destruído”. E ainda:

“Cale a boca. Quem falou com você?”

Então ambos se calaram, Yoezer e ele, e o desejo também silenciou.

Em seu lugar eclodiu um surto de energia noturna, uma lucidez

aguçada, ultraconsciente, um fluxo de força interior e clareza mental.


Naquele momento Fima foi capaz de pegar aqueles três conspiradores

no Café Savion e derrotá-los com facilidade; escreveria um poema

épico, fundaria um partido político, ou redigiria um tratado de paz.

Palavras e trechos de frases se formavam na sua mente, reluzindo com

clareza e precisão. Jogou o cobertor para o lado, correu para a

escrivaninha, e, em vez de convocar o Conselho Revolucionário para

uma reunião noturna, escreveu em meia hora, sem riscar nem trocar

nada, um artigo para o jornal do fim de semana: uma resposta a Tsvi

Kropotkin acerca da questão do preço da moralidade e do preço da

imoralidade nas circunstâncias da violência cotidiana. Nos dias de hoje,

há todo tipo de lobos e lobisomens pregando um darwinismo

primitivo, uivando que em tempos de guerra a moralidade, assim como

as mulheres e crianças, deve permanecer em casa, e que, se

conseguíssemos nos livrar do fardo da moralidade sobre os nossos

ombros, conseguiríamos esmagar com facilidade quem quer que

tentasse bloquear nosso caminho. Tsvi se atrapalha na tentativa de se

opor a esta atitude com argumentos pragmáticos: O mundo

esclarecido, diz ele, nos punirá se continuarmos agindo como lobos.

Mas a verdade é que, em última análise, todos os regimes opressivos

caem por terra e desaparecem, enquanto as sociedades e nações que

sobrevivem são precisamente aquelas que cultivam os valores da

moralidade humana. Do ponto de vista histórico, escreveu Fima, em

vez de defendermos a moralidade é ela que nos defende, e, em

especial por causa disso, até as garras afiadas dos lobos mais ferozes e

inescrupulosos estão destinadas a apodrecer e cair.

Então, vestiu as calças e uma camisa limpa, o suéter surrado, herança

de Yael, e o sobretudo, desta vez com agilidade suficiente para evitar a

armadilha da manga. Mascou uma pastilha contra azia, e desceu para a

rua, dois degraus por vez, entusiasmado com uma feliz sensação de

responsabilidade.

Ágil, saltitante, desperto, alheio ao frio da noite, embriagado de

silêncio e vazio, Fima caminhou pelo bairro como se marchasse ao som

de uma banda invisível. Não havia vivalma nas ruas molhadas.

Jerusalém lhe fora concedida, para que ele a protegesse de si mesma.

Os blocos de apartamentos se erguiam pesados e maciços na

escuridão. As luzes da rua estavam envoltas numa pálida névoa


amarelada. Em cada entrada os números luziam com um tênue brilho

elétrico, que se refletia aqui e ali no vidro de algum carro estacionado

na rua. Vida automática, pensou, uma vida de conforto e conquistas,

acumulando posses e honras, e a rotina de comer, transar, gastar

dinheiro das pessoas bem estabelecidas, a alma afundando sob

camadas de carne, os rituais das posições sociais; era a isto que o autor

dos Salmos se referia quando escreveu: “O coração deles é grosseiro

como gordura”. Eis o coração satisfeito, que não lida com a morte e

cuja única preocupação é manter-se satisfeito. Aqui residia a tragédia

de Annette e Yeri. O espírito esmagado que, ano após ano, batia em

vão sobre objetos inanimados, pedindo que a porta trancada se

reabrisse. Assobiando com sarcasmo pela fresta entre os dentes. Os

flocos do ano passado. Os ossos do ano passado. O que temos a ver

com o lado ariano?

E quanto a você, meu caro primeiro-ministro? O que você já fez na

vida? O que você fez hoje? Ou ontem?

Semiconsciente, Fima chutou uma lata que rolou pela rua e assustou

um gato numa lata de lixo. Você zombou da pobre Tamar Greenwich

só porque, devido a um capricho da pigmentação, ela nasceu com um

olho castanho e um olho verde. Você detesta Eitan e Wahrhaftig, mas

quanto exatamente você é melhor do que eles? Você foi

injustificadamente rude com Ted Tobias, um homem honesto e

trabalhador, que nunca lhe fez mal. Qualquer outro no lugar dele nem

o deixaria pôr os pés na sua casa. Sem mencionar o fato de que graças

a ele e a Yael logo teremos veículos a jato.

O que foi que você fez com o tesouro da vida? O que você fez de

bom? Além de assinar manifestos.

Como se não bastasse, você aflige desnecessariamente o seu pai, que

o alimenta e cuja generosidade beneficia todos os dias dezenas de

pessoas. Quando você ouviu no rádio a notícia da morte do menino

em Gaza, que nós matamos com um tiro na cabeça, o que você fez

exatamente? Ficou preocupado com o estilo da notícia. E a forma como

você humilhou Nina, depois que ela recolheu você da rua, ensopado e

imundo no meio da noite, oferecendo luz e calor, e até mesmo o seu

corpo? E o seu ódio por aquele jovem colonizador, que, afinal, mesmo

considerando a estupidez do governo e a cegueira da massa, não tem


escolha a não ser carregar uma arma porque de fato corre risco de vida

ao viajar à noite de Hebron a Belém? O que você quer que ele faça —

estique o pescoço para ser degolado? E em relação a Annette, seu

guardião da moralidade? Que confiou em você ao primeiro olhar. Que

teve fé nos seus poderes de cura, como uma simples camponesa se

prostrando diante de um beato num mosteiro ortodoxo, e abrindo seu

coração a ele. A única mulher na sua vida a chamá-lo de irmão. Jamais

você terá outra dádiva como essa, ser chamado de irmão por uma

mulher estranha. Ela confiou em você sem o conhecer, a ponto de

permitir que você a despisse e colocasse na sua cama, e chamou-o de

anjo, e você premeditadamente se disfarçou de santo para ocultar a sua

luxúria. Para não mencionar o gato que você assustou um segundo

atrás. E esta é, mais ou menos, a soma das suas últimas conquistas,

senhor chefe do Conselho Revolucionário, provedor da paz a Israel,

consolador de esposas abandonadas. E podemos ainda acrescentar a

falta ao trabalho sob falsas desculpas, e um ato de onanismo não

consumado. Além do mijo que ainda está no vaso, e o funeral que você

proporcionou ao primeiro inseto na história a morrer de sujeira.

Com isso, Fima chegou ao último poste de luz no final da rua, que

era também o final do bairro e o final de Jerusalém. Daí em diante,

estendia-se um terreno lamacento. Ele sentiu necessidade de continuar

andando no escuro, atravessar o wadi, subir a colina do outro lado,

prosseguir até onde suas forças permitissem, cumprindo o dever para

que fora designado, o guardião noturno de Jerusalém. Mas nas trevas

fez-se ouvir um latido distante, e dois tiros perdidos separados por um

intervalo de silêncio. Após o segundo tiro, começou a soprar uma brisa

do Oeste, trazendo um estranho ruído de folhas e um cheiro de terra

molhada. Atrás dele, na rua estreita, ouviam-se batidas indistintas,

como se um cego estivesse procurando o caminho com seu bastão.

Uma chuva fina tomou conta do ar.

Fima tremeu e voltou para casa. Como uma espécie de autopunição,

terminou de lavar os pratos, inclusive a frigideira gordurenta; limpou

todas as superfícies na cozinha e puxou a descarga no banheiro. A

única coisa que não fez foi levar o lixo para baixo — porque já eram

quinze para as duas da madrugada, porque estava com medo do cego


procurando o caminho na escuridão lá fora. E por que não deixar algo

para amanhã?
12

A DISTÂNCIA FIXA ENTRE ELE E ELA

No sonho dessa noite viu a sua mãe. O lugar era um jardim cinzento,

semiabandonado, que se estendia ao longo de algumas colinas não

muito altas. O terreno estava coberto de grama crescida, com tufos de

mato que em alguns pontos se tornavam espinhos. E havia algumas

árvores desfolhadas e restos de canteiros de flores. Debaixo dele, na

encosta, havia um banco quebrado, e junto ao banco viu a sua mãe. A

morte a transformara numa escolar, aluna de uma escola religiosa. De

costas parecia muito jovem, uma garota religiosa de vestido austero e

de mangas longas, que lhe chegava abaixo dos joelhos. Ela estava

caminhando ao longo de um cano de irrigação enferrujado. Em

intervalos regulares parava e se abaixava para abrir um registro. As

duchas não giravam, apenas espirravam um fraco jato de água suja. A

tarefa de Fima era segui-la colina abaixo e fechar cada registro que ela

abrira. Desta maneira, só podia vê-la por trás. A morte a tornara leve e

graciosa. Dera aos seus movimentos uma delicadeza, mas também uma

certa falta de jeito, tipicamente infantil. O tipo de mistura entre

agilidade e desajeitamento que se pode ver em gatinhos recém-

nascidos. Ele a chamou, pelo seu nome russo, Lizaveta, pelo apelido,

Liza, e pelo seu nome hebraico, Elisheva. Não adiantou nada. Sua mãe

não reagiu nem se virou. Então ele começou a correr. A cada sete ou

oito passos tinha que parar, se abaixar e fechar um registro. Os

registros eram feitos de algo mole, esquisito de tocar, como uma

medusa. E não era água que pingava, e sim um líquido pegajoso,

parecido com gelatina de peixe. Apesar de toda a corrida, sem fôlego,


como uma criança gorda, apesar de todos os seus gritos que ecoavam

tímidos na distância cinzenta, às vezes misturados com um som agudo

que lembrava uma corda vibrando, foi impossível reduzir a distância

fixa entre ele e ela. Ele foi tomado pelo pavor de que o cano jamais

teria fim. Mas no limite do bosque ela parou e se virou para ele. Sua

linda face era a face de um anjo morto. Sua testa brilhava ao luar. Uma

palidez cadavérica cobria suas bochechas afundadas. Seus dentes sem

lábios reluziam. Sua trança fina era feita de palha seca. Seus olhos

estavam ocultos pelos óculos escuros de um cego. No uniforme escolar

de menina religiosa ele pôde ver sangue seco nos pontos onde os fios

a tinham ferido: nos joelhos, na barriga, na garganta. Era como se ela

tivesse se transformado num espantalho. Ela balançou tristemente a

cabeça para Fima, e disse: “Veja o que fizeram com você, imbecil”.

Ergueu os dedos secos para remover os óculos escuros. Aterrorizado,

Fima virou o rosto. E acordou.


13

A RAIZ DE TODO O MAL

Quando terminou suas anotações no caderno de sonhos, levantou-se

e foi até a janela. Viu uma manhã límpida e radiante. Num galho sem

folhas estava deitado um gato que subira para ouvir o que os pássaros

cantam. “Não vá cair, companheiro”, disse Fima afetuosamente. Até

mesmo as colinas de Belém pareciam ao alcance da mão. Os edifícios e

jardins próximos estavam banhados por uma luz fria e clara. Terraços,

muros, carros, tudo reluzia após a chuva que caíra durante a noite.

Mesmo tendo dormido menos de cinco horas, Fima sentiu-se

revigorado e cheio de energia. Fez sua ginástica diante do espelho,

discutindo o tempo todo com a arrogante apresentadora do noticiário

das sete, que era capaz de declarar sem hesitação o que os sírios

estavam planejando fazer e se julgava apta até mesmo a sugerir uma

contrainvestida. Mais em tom desafiador do que zangado, Fima

respondeu: “Você não é das mais espertas, minha cara”. E julgou

apropriado acrescentar: “Mas veja como está gostoso lá fora. O céu está

cantando. Que tal dar um passeio comigo? Vamos andar pela rua, vagar

entre os bosques e vales, e, enquanto caminhamos, vou lhe explicar a

política que realmente deveríamos estar adotando com os sírios, e onde

é o calcanhar de aquiles deles, e onde é o nosso próprio ponto cego”.

A partir daí, Fima prosseguiu pensando sobre a vida dessa

apresentadora, obrigada a sair da cama às cinco e meia numa cruel

manhã de inverno, para chegar ao estúdio a tempo de apresentar o

noticiário das sete. E se numa certa manhã o seu despertador falhasse?

E se tocasse, mas ela cedesse à tentação de cochilar mais alguns


minutos e adormecesse perdendo a hora? E se o carro dela não desse

partida por causa do frio, como acontecia toda manhã com o vizinho

do motor de arranque que latia? Ou talvez a moça — Fima a visualizou:

baixinha, sardenta, olhos grandes e alegres, cabelo enrolado —

dormisse à noite numa cama de campanha montada no estúdio. Como

os médicos de plantão num hospital. Como é que o seu marido, o

vendedor de seguros, lidava com esse fato? Passaria ele as suas noites

solitárias imaginando cenas insólitas entre sua esposa e os técnicos?

Ninguém é digno de inveja, concluiu Fima. Exceto, talvez, Yoezer.

Foi por culpa de Yoezer que Fima se cortou enquanto se barbeava.

Tentou sem sucesso estancar o sangue com um pedaço de papel

higiênico, com um chumaço de algodão, e finalmente com um lenço

úmido. Como consequência, esqueceu-se de barbear as dobras de pele

sob o queixo. Que, de qualquer maneira, detestava barbear, porque

lembravam um papo de galinha. Pressionando o lenço contra o rosto

como se estivesse com dor de dente, foi se vestir. E chegou à conclusão

de que o lado positivo da desgraça da noite anterior era que pelo

menos podia ter certeza de não ter engravidado Annette.

Enquanto procurava o suéter surrado que herdara de Yael, seu olho

súbito captou de relance um pequeno inseto brilhando no assento da

poltrona. Seria realmente possível que algum vaga-lume idiota tivesse

esquecido de se desligar no final da noite? Na verdade, havia pelo

menos quarenta anos que não via um vaga-lume, e não fazia ideia da

aparência do bicho. Com a destreza de um caçador experiente, Fima se

curvou e executou um movimento relâmpago com a mão direita,

começando com um “tapa” e terminando com o punho fechado; desse

modo, conseguiu capturar a criatura sem machucá-la. A rapidez e

precisão do movimento traíam a sua reputação de palerma

desengonçado. Abrindo os dedos para examinar a sua presa, ficou se

perguntando se seria um dos brincos de Annette, uma fivela de Nina,

uma peça de um dos brinquedos de Dimi, ou uma das abotoaduras de

prata do seu pai. Após uma inspeção cuidadosa, optou pela última

alternativa. Embora alguma dúvida permanecesse.

Dirigindo-se à cozinha, abriu a geladeira e ficou parado pensativo

segurando a porta aberta, fascinado pela luz mística que brilhava atrás

do leite e dos queijos, reexaminando mentalmente a expressão “o


preço da moralidade” no título do artigo que escrevera durante a noite.

Não viu motivo para revisar nem alterar o título. Havia um preço para a

moralidade, um preço para a imoralidade, e a questão real era: Qual é

o preço desse preço, isto é, qual é o sentido e o propósito da vida?

Todo o resto era derivado dessa questão. Ou deveria ser. Incluindo

nosso comportamento nos Territórios Ocupados.

Fechando a geladeira, Fima decidiu que nesta manhã sairia para

tomar seu desjejum, no pequeno café da sra. Scheinbaum, do outro

lado da rua, em parte porque não queria estragar o brilho impecável da

sua cozinha recém-limpa, em parte porque o pão estava duro e a

margarina lembrava os horríveis registros pegajosos do sonho, e, acima

de tudo, porque o bule elétrico estava queimado desde o dia anterior, e

sem bule não havia café.

Às oito e quinze deixou o apartamento sem perceber o pedacinho de

algodão ensanguentado pendurado no corte no seu rosto. Mas, sim,

lembrou-se de levar o lixo para baixo, e também de enfiar no bolso o

envelope contendo o artigo que escrevera. E também não se esqueceu

de levar a chave da caixa de correio. No centrinho comercial a três

quadras dali comprou pão fresco, queijo, tomates, geleia, ovos, iogurte,

café, três lâmpadas, para ter de reserva, e também um bule elétrico

novo. Logo se arrependeu de não ter verificado se era feito na

Alemanha; ele fazia o possível para não comprar produtos alemães.

Para seu alívio, descobriu que era feito na Coreia do Sul.

Desembrulhando as compras, mudou de ideia e decidiu deixar a sra.

Scheinbaum de lado e tomar seu café da manhã em casa. Embora,

pensando bem, a Coreia do Sul também fosse um país notoriamente

repressivo, famoso por esmagar cérebros de estudantes em

manifestações. Enquanto esperava a água ferver, reconstituiu

mentalmente a Guerra da Coreia, a era Truman, MacArthur, e

McCarthy, e terminou com a destruição de Hiroshima e Nagasaki. O

próximo holocausto nuclear não terá início com as superpotências, terá

início bem aqui, pensou. Com o nosso conflito regional. Os sírios

invadirão as colinas de Golan com milhares de tanques, nós

bombardearemos Damasco, eles lançarão uma descarga de mísseis

sobre as nossas cidades costeiras, e então nós detonaremos o


cogumelo do apocalipse. Durante cem anos não haverá vivalma por

aqui. Nem Yoezer, nem lagarto, nem barata.

Mas Fima rejeitou a palavra holocausto porque também podia ser

associada com desastres naturais, como enchentes, epidemias e

terremotos. O que os nazistas fizeram foi, ao contrário, um crime

organizado, premeditado, que deveria ser chamado pelo nome correto:

assassinato. E a guerra nuclear também será um ato criminoso. Nem

holocausto nem apocalipse. Fima também eliminou a palavra conflito, que era

adequada para descrever os assuntos entre Annette e seu marido, ou

entre Tsvi Kropotkin e seu assistente, mas não a guerra sangrenta entre

nós e os árabes. Na verdade, até mesmo o triste caso de Annette e Yeri

mal podia ser classificado sob um termo tão estéril como conflito.

Quanto à expressão “guerra sangrenta”, era um chavão gasto. Até

mesmo “chavão gasto” era um chavão gasto. Você se encurralou num

beco sem saída, amigão.

De repente ficou enjoado com seus preciosismos linguísticos.

Devorando grossas fatias de pão com geleia, engolindo o segundo

café, disse a si mesmo: Quando todo o planeta tiver sido destruído por

bombas atômicas, que diferença fará se descrevermos a situação como

conflito, holocausto, apocalipse, ou guerra sangrenta? E quem sobrará

para decidir qual é a descrição mais adequada? Então Baruch estava

certo ao utilizar as expressões “um punhado de poeira”, “uma gota

pútrida”, “uma sombra passageira”. E o deputado do Likud, o partido

de direita, estava certo em recomendar que se deveria ganhar tempo.

Até mesmo a depravada apresentadora de rádio estava certa ao dizer

que havia lições a aprender.

Mas que lições? Que bendita e preciosa luz?

Os flocos do ano passado. Os ossos do ano passado.

Por mim, enforcaria os dois.

Veja o que fizeram com você, imbecil.

Problema seu, companheiro.

Seguramente esta é a raiz de todo o mal, berrou Fima de repente, só

em sua cozinha, como se tivesse recebido uma revelação estarrecedora,

como se lhe tivesse ocorrido uma solução simples para a propulsão a

jato em terra. Este é o pecado original. O Outro Lado é a fonte de todos

os nossos infortúnios. Porque não existe essa coisa de problema seu,

É
problema meu, problema dela, problema dele, problema deles. É tudo

problema nosso. Olha aí, o bule elétrico coreano fervendo a água outra

vez, e se você não desligar, ele vai seguir o caminho do seu

predecessor. Em todo caso, quem pediu café? Eu já tomei duas xícaras.

Em vez de ficar bebendo café você deveria voltar ao centro comercial,

porque apesar de ter selado o envelope com o artigo e ter enfiado o

envelope no bolso, você se esqueceu de tirá-lo do bolso e colocá-lo no

correio quando foi comprar o bule. O que vai ser de você, meu senhor?

Quando é que você vai virar gente?


14

DESCOBRINDO A IDENTIDADE DE UM FAMOSO

GENERAL FINLANDÊS

Numa das noites de sexta-feira, a inspiração tomara conta de Fima, e

ele entreteve todo o grupo contando a história de como fora

convocado para a reserva durante a Guerra dos Seis Dias, e despejado,

junto com um pintor e dois professores universitários, num morro

deserto nos arredores de Arnona. Receberam um par de binóculos, um

telefone de campanha, e instruções para não dormir. No morro em

frente alguns soldados jordanianos preparavam morteiros e uma

metralhadora; faziam o serviço calmamente, como escoteiros em

acampamento. Quando terminaram os preparativos, deitaram-se no

chão e abriram fogo contra Fima e seus companheiros. “Vocês podem

imaginar”, perguntou Fima, “qual foi o meu primeiro pensamento? Não,

não foi fugir. E nem responder fogo. Não. Foi apenas telefonar para a

polícia e fazer uma reclamação de que havia uns loucos atirando em

nós. Ainda que pudessem ver perfeitamente bem que havia gente

nesse morro. O que achavam que eu era, um amigo, um conhecido?

Será que achavam que eu tinha seduzido as mulheres deles? O que

sabiam a meu respeito? Eu tinha que chamar a polícia de imediato para

cuidar deles. Foi assim que me senti.”

Havia uma notícia no Ha’arets que parecia indicar uma ligeira

flexibilização da posição governamental. Uma espécie de sinal de

disposição para repensar pelo menos um item da linha oficial. Fima viu

nesse indício uma confirmação de sua teoria a respeito de movimentos


minúsculos. Portanto, convocou o Conselho Revolucionário para uma

breve reunião na sala de palestras de Tsvika, no campus do monte

Scopus. Anunciou que mudara de ideia e decidira não mais voar para

Túnis. Desta vez o processo de paz não deve ter início com um

espetáculo teatral, no estilo Sadat e Begin, e sim com uma troca de

pequenos gestos que possam gradualmente derrubar as barreiras de

raiva e ódio. Ou pôr em movimento os primeiros lances de uma trégua

emocional. Pequenos avanços joycianos em lugar de uma investida

shakespeariana. Tropismo em vez de cataclismo. A proposta na agenda

é a seguinte: A OLP concorda em ajudar a resgatar os judeus

remanescentes na Etiópia. Ou no Iêmen. Nós enviamos uma carta de

agradecimento ao seu quartel-general em Túnis, desta maneira

provocando a ruptura do impasse. Tsvi está errado em esperar pressão

dos Estados Unidos. E Uri Gefen está decididamente enganado em

sustentar que a situação precisa ficar muito pior antes de haver alguma

mudança para melhor. Ambas as atitudes exprimem uma inclinação

tácita da esquerda moderada de esperar resignada mudanças na

realidade, em vez de se levantar e fazer algo. Mesmo que seja algo

limitado.

De repente sentiu saudades da presença de Uri: seus ombros largos,

suas piadas, seu riso caloroso e profundo, suas maneiras de líder

juvenil, seu hábito espontâneo de abraçar os ombros, dar socos na

barriga, e dizer, por exemplo: “Venha cá, senhor Salman Rushdie; onde

você anda se escondendo?”. E após fazer um ruído, como se estivesse

cheirando algo, e tampar o nariz ostensivamente: “Quando foi a última

vez que você trocou de camisa? Para o enterro do Ben Gurion?”. E

mais: “Tudo bem, tudo bem, se não tem jeito, vá em frente; pode dar a

sua palestra sobre as seitas ascetas do cristianismo. Mas antes sirva-se

de uma fatia desse presunto defumado. Ou será que você virou

muçulmano?”.

A saudade da voz e do corpo caloroso de Uri trouxe consigo um

desejo de colocar seus próprios dedos pálidos sobre a enorme mão do

amigo, calejada como a de um pedreiro, e de fazer rápidos comentários

espirituosos, capazes de dar à discussão rumos surpreendentes a cada

momento. Como há três semanas, nos Kropotkin, quando Shula

manifestou seu medo do fundamentalismo islâmico, e Fima a


interrompeu e espantou a todos argumentando que a nossa rixa com

os árabes é um mero episódio circunstancial, que mal dura cem anos,

uma trivial disputa de terras, ao passo que o verdadeiro perigo era e

ainda é o abismo sem fundo que existe entre os judeus e a Cruz.

Apesar das saudades, Fima torceu para que Uri ainda estivesse em

Roma. Discou o número do escritório de Nina, e aguardou

pacientemente até a secretária passar para a voz rouca de fumo de

Nina: “Sim, Fima, mas seja breve; estou numa reunião”. Ele tentou

seduzi-la a sair naquela noite, para irem assistir ao filme com Jean

Gabin, no Orion. “Anteontem à noite banquei o idiota”, disse ele, “mas

hoje vou me comportar de forma exemplar. Você vai ver, eu prometo.”

Nina disse:

“Acontece que hoje eu tenho um longo dia pela frente. Mas por que

você não me telefona aqui para o escritório entre sete e meia e oito

horas? Aí vamos ver como estão as coisas. Enquanto isso, Fima, vá

contando quantas meias você está usando.”

Fima não ficou ofendido, mas começou a lhe contar os pontos

principais do seu novo artigo sobre o preço da moralidade e o preço

de se abandonar a moralidade, e os diferentes significados do termo

preço para pessoas com sistemas de valores diferentes. Nina o

interrompeu: “Neste momento estamos numa reunião, a sala está cheia

de gente, conversamos outra hora”. Ele ia começar a perguntar se a

reunião era acerca do sex shop ultrarreligioso, mas pensou melhor e se

despediu, e se conteve cerca de quinze minutos antes de telefonar a

Tsvi Kropotkin e lhe contar sobre o artigo que escrevera durante a

noite em resposta ao dele. Secretamente almejava conseguir uma

agradável vitória telefônica: xeque-mate em quatro ou cinco

movimentos. Mas Tsvi tinha que dar uma aula e já estava atrasado: “Por

que não falamos depois, Fima, quando eu já tiver lido o seu novo

evangelho no jornal?”.

Teve a ideia de telefonar para seu pai, de ler por telefone as

informações sobre a Índia, de forçá-lo a admitir seu erro, e de lhe dizer

que esquecera uma das abotoaduras. A não ser que o vaga-lume

realmente fosse um dos brincos de Annette. Resolveu abandonar a

ideia de ligar a Baruch, para não correr riscos.


Já não restava mais ninguém para telefonar; Fima permaneceu mais

alguns minutos na cozinha, catando as migalhas do café da manhã para

preservar a nova aparência de limpeza, e admirando o brilho do bule

novo. Um pouco de força de vontade, pensou, um pouco de energia,

um pouco de perseverança: não é tão difícil começar uma página nova.

Tendo chegado a esta conclusão, telefonou a Yael. Esperava que não

fosse Ted quem atendesse o telefone. E confiou que a inspiração do

momento colocaria as palavras certas na sua boca e ele saberia o que

dizer a ela.

“Deve ser telepatia”, exclamou Yael. “Neste minuto eu estava

dizendo ao Teddy para lhe dar um telefonema. Você se antecipou em

meio minuto. É o seguinte. Teddy e eu vamos a uma conferência na

Indústria Aeronáutica, e só voltamos à noite. Não sei a que horas. A

nossa vizinha vai pegar o Dimi na escola e tomar conta dele o resto do

dia. Você seria bonzinho de ir buscá-lo na casa dela depois do

trabalho? E colocá-lo na cama e dar uma olhada nele até nós voltarmos?

Ele já vai ter jantado e tem a chave no bolso. O que faríamos sem você?

Desculpe, preciso desligar agora. O Teddy está lá embaixo me

chamando, já vieram nos buscar. Você é maravilhoso. Tenho que sair

correndo. Muito, muito obrigada, e nos vemos à noite. Pode dar meio

Valium se ele não conseguir dormir. Sirva-se do que quiser na

geladeira.”

Fima saboreou as palavras nos vemos à noite como se elas contivessem

uma promessa secreta. Após um momento, riu de si mesmo pelo prazer

que sentira, e pôs mãos à obra arrumando a pilha de revistas e jornais

empoeirados ao pé da cama. Mas o olhar recaiu sobre um velho artigo

de Yehoshaphat Harkabi, e Fima começou a lê-lo e a refletir sobre o

fracasso da revolta dos judeus contra os romanos. Considerou a

analogia com os nossos próprios tempos brilhante e original, um

pouco simplista sob alguns aspectos.

No ônibus a caminho do trabalho viu uma mulher, uma imigrante de

um país árabe, soluçando no banco de trás, enquanto uma garotinha,

provavelmente sua filha, de sete ou oito anos de idade, a consolava

repetindo sem parar: “Ele não fez de propósito”. Naquele momento a

palavra propósito, bons propósitos, maus propósitos, sem ser de

propósito, súbito lhe pareceu conter um dos segredos da existência:


amor e morte, solidão, desejo, e ciúme, as maravilhas da luz e da

floresta, das montanhas, planícies e águas — existe ou não propósito

em tudo isso? Existe ou não propósito na semelhança básica entre você

e o lagarto, e uma folha de parreira e a sua mão? Existe ou não

propósito no fato de que a sua vida está se esvaindo dia a dia entre

bules queimados, baratas mortas e as lições da Grande Revolta? A

palavra esvaindo, com a qual tantas vezes se deparara anos antes nos

Pensamentos de Pascal, lhe pareceu de uma precisão cruel, como se

Pascal a tivesse escolhido depois de mergulhar na vida dele, Fima, da

mesma forma que ele estudava a vida de Yoezer ainda que seus pais

nem sequer tivessem nascido. E aquele enrugado ancião sefardita,

cochilando num banquinho defronte de sua lojinha de miudezas, o que

pensaria a respeito da aposta de Pascal, na qual, segundo seu autor, o

apostador não perde jamais? E será que uma aposta onde sempre se

sabe o resultado pode ser chamada de aposta? E, aliás, será que o

Venerável poderia por favor explicar Hiroshima e Auschwitz? Ou a

morte do menino árabe? Ou o sacrifício de Ismael e Isaac? Ou o destino

de Trotski? Eu sou o que sou? Onde estavas quando lancei as

fundações do mundo? O Venerável permanece em silêncio. O

Venerável está cochilando. O Venerável está sorrindo. O Venerável

está achando graça. Amém. Entrementes, Fima perdeu o ponto onde

deveria descer, e se apressou para não perder o seguinte. Apesar de

tudo, não se esqueceu de agradecer ao motorista e dizer adeus. Como

sempre fazia.

Na clínica encontrou Tamar Greenwich sozinha. Os dois médicos

tinham saído para resolver um assunto na Secretaria da Fazenda, e só

voltariam por volta das quatro horas. “Ontem, quando você não veio

trabalhar”, disse Tamar, “foi um dia de louco. E hoje está totalmente

sossegado. Não há o que fazer a não ser atender o telefone.

Poderíamos fazer uma orgia. Só que a sua camisa está abotoada errado.

Você perdeu um botão. Diga, Fima, você conhece algum rio na Europa

Oriental, três letras, começando com b?”

Ela estava sentada no lugar dele junto à mesa de recepção,

debruçada sobre uma revista de palavras cruzadas. Tinha ombros

eretos e quadrados, como um velho militar, um corpo robusto, um

rosto aberto e delicado, e o seu esplêndido cabelo era sedoso, macio e


brilhante. Toda e qualquer parte visível do seu corpo era coberta de

sardas. Provavelmente elas também cobriam as partes ocultas. O

inusitado truque de pigmentação que lhe dera um olho verde e um

castanho não despertava em Fima um motivo para achar graça, e sim

admiração e até mesmo um certo respeito. Ele próprio poderia ter

nascido com uma orelha do pai e outra da mãe. Poderia ter herdado,

das profundezas do abismo evolucionário, a cauda do lagarto ou as

antenas da barata. A história de Kafka sobre Gregor Samsa, que um dia

acordou e descobriu que se transformara numa gigantesca barata, não

pareceu a Fima uma parábola, e tampouco uma alegoria, e sim uma

possibilidade realista. Tamar não conhecia a história, mas recordava-se

vagamente de que Kafka era um pobre iugoslavo que morreu

combatendo os burocratas. Fima não conseguiu se conter: falou-lhe de

Kafka e dos seus diversos casos amorosos. Quando se sentiu satisfeito,

contou a Tamar um resumo da Metamorfose. Disse a ela que a tradução

hebraica do título não era uma tradução acurada, mas não conseguiu

explicar exatamente o que estava errado, nem como deveria ser a

tradução correta.

Sem levantar os olhos das palavras cruzadas, Tamar disse:

“Mas o que ele queria dizer? Que o pai era mesmo um assassino?

Talvez estivesse tentando escrever algo engraçado, mas eu não vejo

graça nenhuma. Eu estou exatamente na mesma situação. Não se passa

um único dia sem que ele faça gracejos comigo. Ele nunca perde a

oportunidade de me humilhar. Na verdade, ontem, quando você não

estava, ele quase não me insultou. Tratou-me quase como um ser

humano. Até me ofereceu uma pastilha para garganta. Você conhece

algum pássaro com sete letras terminando em a?”

Fima descascou uma velha laranja que achou sob o balcão:

conseguiu não cortar os dedos, mas provocou um desastre na laranja.

Oferecendo alguns gomos a Tamar, respondeu:

“Talvez ele não estivesse se sentindo bem ontem, algo assim.”

“Pare você também de fazer piada. Não percebe que magoa? Por que

você não fala com ele sobre isso? Você não pode lhe perguntar por que

ele é sempre tão cruel comigo?”

“Deve ser gaivota”, disse Fima. “Mas, em primeiro lugar, por que

você se envolveu com esse monstro? Ele odeia a humanidade em geral,


e mulheres em particular. ”

Tamar disse:

“Você precisa entender. Não depende de mim.”

“Liberte-se”, disse Fima. “O que é que ele tem para ser amado? Ou

talvez você não esteja apaixonada por ele, e sim pelo seu próprio amor

não correspondido?”

“Filosofia barata?”, disse Tamar. “Fima, quando você tenta bancar o

esperto, você é um verdadeiro idiota.”

“Sim, um idiota”, disse Fima, um sorriso tímido nos lábios. “Eu sei. E

mesmo assim acho que encontrei a resposta para você. Bug.”

“Não entendo”, disse Tamar. “Por que você não cala essa boca e me

deixa terminar estas palavras cruzadas?”

“Bug, querida. O rio da Europa Oriental com três letras. Aliás,

historicamente falando, o rio Bug...”

“Pare, Fima. Uma vez no ano eu digo duas palavras sobre mim

mesma; por que você precisa mudar de assunto e falar historicamente?

Por que não é capaz de ouvir um pouco? Eu nunca consigo falar nada.

Com ninguém.”

Fima pediu desculpas. Não tinha intenção de fazer mal. Ele fiaria uma

xícara de chá para ela; e para si próprio, um café. E ficaria calado como

uma parede. Ele a ajudaria nas palavras cruzadas e prometia não

filosofar.

Mas depois, quando já estavam sentados bebendo juntos, Fima não

conseguiu se controlar. Começou a expor seu plano de paz a Tamar:

esta mesma noite ele convocaria uma reunião do gabinete e

descreveria impiedosamente aos ministros a cirurgia necessária para

salvar o Estado. Ao dizer “cirurgia”, teve de súbito uma vívida imagem

da expressão de arrogância prussiana no rosto de Gad Eitan. Talvez

devido ao fato de o dr. Eitan não ser apenas um excelente

ginecologista, mas também o anestesista da clínica. Quando se fazia

necessário, anestesiava as suas pacientes, e as de Wahrhaftig.

Tamar disse:

“Minha desgraça, Fima, é que eu não consigo deixar de amá-lo.

Mesmo não tendo a menor chance com ele, mesmo sabendo há muito

tempo que ele é cruel e que me detesta. O que posso fazer se sinto o

tempo todo, já há anos, que sob essa crueldade existe um menininho


ferido procurando se esconder, um menininho solitário que não odeia

as mulheres, que tem medo delas, que tem medo de simplesmente não

suportar outra decepção? Pode ser apenas psicologia barata. Ou talvez

ele ainda ame a mulher que o abandonou. Talvez esteja esperando que

ela volte para ele. Talvez ele seja tão venenoso porque o seu íntimo

está cheio de lágrimas. Ou você acha que assisti a filmes românticos

demais? Frequentemente, quando ele me atormenta, sinto que na

verdade ele está recorrendo a mim como um menino perdido.

Experimente discutir com os seus sentimentos. Um país na África, onze

letras, a segunda letra é um u, e a última também é u?”

Os olhos de Fima exploraram a sala de recuperação através da porta

aberta, a área de recepção, a escrivaninha, como se estivesse

procurando uma resposta à pergunta dela. Um condicionador de ar.

Reproduções de Degas e Modigliani. Duas plantas vulgares em

embalagem hidropônica. Uma lâmpada branca fluorescente. Um

carpete verde-claro cobrindo o chão todo. Um relógio com algarismos

romanos. Um telefone. Um porta-casacos que também servia para

guarda-chuvas. Uma cesta cheia de revistas. Algumas revistas sobre a

mesa. Um folheto azul: “Osteoporose — Deterioração Acelerada dos

Ossos: Um Guia para Mulheres. Quais são as mulheres especialmente

vulneráveis? Grupos de alto risco: Mulheres excessivamente magras!

Mulheres com estrutura óssea delgada. Mulheres que sofreram

remoção de ovários. Mulheres que passaram por radioterapia e

deixaram de produzir estrogênio. Mulheres que nunca engravidaram.

Mulheres com história familiar da doença. Mulheres que passaram por

dietas com pouco teor de cálcio. Mulheres que fumam. Mulheres que

não fazem exercícios físicos suficientes, ou cujo consumo de álcool seja

excessivo, ou que sofram de hipertiroidismo”.

Espiou outro folheto explicativo, um vermelho desta vez, na mesa em

sua frente. “Meu Pequeno Segredo, a Menopausa: Terapia de

Reposição Hormonal. O que é menopausa? Quais são os hormônios

femininos e como são produzidos? Quais são os sinais característicos

do início da menopausa? Quais são as mudanças resultantes do

decréscimo da produção de hormônios femininos? Gráfico comparativo

entre estrogênio e progesterona. O que são os surtos de calor e quando

esperá-los? Qual é a relação entre estrogênio, níveis elevados de

É
gordura no sangue, e doenças cardíacas? É possível aumentar a sua

capacidade de lidar emocionalmente com as mudanças no seu corpo

nessa época da sua vida?”

Fima se contentou em ler os títulos principais. Lágrimas de

compaixão subitamente inundaram seus olhos, não por uma mulher

específica, Nina, Yael, Annette, Tamar, mas pelas mulheres em geral. A

separação da humanidade em dois sexos lhe causou a impressão de

um ato de crueldade e uma injustiça irreparável. Sentiu que tinha

participação nessa injustiça e que, portanto, era culpado por se

beneficiar, mesmo que não intencionalmente, das consequências.

Então pensou um instante sobre a pontuação do folheto, e como

poderia ser melhorada. O responsável por esses folhetos se esquecia

que às vezes os homens também vêm à clínica, inclusive homens

religiosos: problemas de esterilidade e coisas do tipo. Panfletos como

esses podiam deixá-los embaraçados. Até mesmo as mulheres podiam

ficar embaraçadas, esperando e vendo um homem ler esse tipo de

literatura. Então se lembrou que o responsável pelos folhetos era ele

mesmo; só que nunca tinha olhado para eles. E também, apesar do

risco de embaraço ou da falta de tato, havia quadros, ornamentos e

lembranças espalhadas nas paredes e prateleiras contendo mensagens

de agradecimento de pacientes satisfeitas. Elas assinavam apenas com

as iniciais, ou o primeiro nome inteiro e a primeira letra do sobrenome,

como por exemplo o prato de bronze de Carmela L, “com eterna

gratidão à maravilhosa e dedicada equipe”. Fima não havia esquecido

essa Carmela, porque um dia ouviu que ela se suicidara. Ainda que

sempre tivesse dado a impressão de ser uma pessoa extremamente

corajosa e cheia de vida. O prefeito de Jerusalém deveria proibir o uso

da palavra eterno, pelo menos dentro dos limites da cidade.

Começou a percorrer mentalmente o mapa da África de norte a sul,

do Egito à Namíbia, e depois mais uma vez de leste a oeste, de

Madagáscar à Mauritânia, em busca do país que estava emperrando o

jogo de palavras cruzadas de Tamar. Enquanto procurava, conjurou

uma visão de Gad Eitan, o arrogante viking felino, como uma criança

carente e mal-amada, vagando perdida pelas selvas e desertos

africanos. Não conseguiu achar a resposta. Mas perguntou a si mesmo

se aqueles que virão depois de nós, Yoezer e seus contemporâneos,


vivendo em Jerusalém daqui a cem anos, também se dedicariam a

resolver palavras cruzadas. Será que eles também sofreriam a

humilhação de amor não correspondido? Abotoariam errado suas

camisas? Estariam condenados à falta de estrogênio? E as crianças

abandonadas daqui a cem anos, continuariam vagando pelo equador?

Fima sentiu a tristeza crescendo. Na sua tristeza estava pronto a abraçar

Tamar. Apertar o rosto largo dela contra seu peito. Afagar seu lindo

cabelo, que estava preso num coque, como uma pioneira da geração

passada. Se ele sugerisse que se deitassem juntos aqui e agora, no sofá

da sala de recuperação, ela sem dúvida ficaria vermelha e branca de

susto, mas no fim não recusaria. Afinal, estariam sozinhos até as quatro

horas, pelo menos. Ele poderia lhe dar mais prazer que ela jamais

conhecera em toda a sua vida, e provocar risos, pedidos, soluços,

sussurros, pequenos gemidos de surpresa, sons que provocariam nele

também o prazer mais doce que conhecia: o prazer do altruísmo. E daí

que ela não fosse bonita? Mulheres bonitas só faziam com que se

sentisse desajeitado e submisso. Apenas as indesejadas e rejeitadas

eram capazes de despertar nele a faísca de generosidade que sempre

movia o seu desejo. Mas e se ela não estivesse se cuidando? E se ela

engravidasse aqui, em pleno inferno dos abortos? Em vez de amor,

ofereceu-lhe uma laranja, embora tenha se esquecido de verificar

primeiro se havia mais uma na gaveta sob o balcão. Deixou-a surpresa

ao acrescentar que a saia azul-clara realçava sua figura, e que deveria

usá-la com mais frequência. E achava o cabelo dela lindo.

Tamar disse:

“Pare, Fima. Não tem graça.”

Fima respondeu:

“Suponho que seja como um peixe: só quando é tirado da água pela

primeira vez percebe que precisa estar na água para viver. Não faz mal.

Só quero lhe dizer que não estava fazendo piada. Eu quis dizer

exatamente o que disse sobre a saia azul-clara e o seu cabelo.”

“Você é mesmo querido”, disse Tamar timidamente. “Você é muito

perspicaz, é um poeta, e tudo mais. Um bom homem. O problema é

que você é uma criança. É incrível como você é infantil. Às vezes sinto

vontade de ver você de manhã, me aproximar, barbeá-lo eu mesma


para você não se cortar, não cortar seu queixo nem as suas bochechas.

Veja, você se cortou de novo hoje. Você não passa de um bebê.”

Depois disso, ficaram sentados um diante do outro e mal se falaram.

Ela se concentrou nas palavras cruzadas, enquanto ele folheou um

número antigo da revista Mulher, que tirou da cesta de revistas. Achou

um artigo sobre uma ex-garota de programa que se casou com um belo

milionário canadense, e depois o deixou para se juntar a um grupo de

hassidim em Safed.

Depois de um período de silêncio, Tamar disse:

“Acabei de me lembrar. Gad nos pediu para limpar e arrumar a sua

sala. E Wahrhaftig disse para esterilizar os fórceps e os espéculos, e

ferver as toalhas e os aventais. Só que não tenho a menor vontade de

me mexer daqui. Vou terminar essas palavras cruzadas primeiro.”

“Esqueça”, disse Fima com entusiasmo. “Fique aí sentada quieta,

como uma rainha. Eu faço isso. Você vai ver, vai dar tudo certo.”

A seguir, levantou e se dirigiu à sala do dr. Eitan, empunhando o

pano de pó. Primeiro trocou os rolos de lençóis de papel,

agradavelmente ásperos aos seus dedos. Depois arrumou o armário de

remédios, lembrando da anedota que o pai contara acerca do

comprimento e da largura dos trilhos da ferrovia. Descobriu que tinha

uma simpatia pelo representante de Israel: pelo fato de se recusar a

ceder ao colega americano, improvisou uma resposta devastadora. A

anedota só parecia engraçada na superfície: na verdade, a posição

americana é que era ridícula. Como se houvesse alguma lógica na sua

alegação implícita de que numa reunião internacional de chefes

ferroviários o tamanho dos discursos deveria ser proporcional à

extensão de trilhos no país. Tal abordagem era moralmente

insustentável e racionalmente absurda. Ao se alongar nessa linha de

pensamento, tentou distraído medir sua própria pressão com o

aparelho encontrado na mesa de Eitan. Quem sabe porque tivesse feito

o comentário jocoso com Tamar, dizendo que talvez Gad Eitan não

estivesse se sentindo bem no dia anterior, já que não a maltratara. Por

mais que Fima se esforçasse em prender o tubo de borracha em torno

do braço utilizando a mão livre, não conseguiu fazê-lo e abandonou a

iniciativa. Contemplou um pôster colorido na parede: a figura

engraçada de um homem grávido segurando um bebê rechonchudo no


colo, os dois sorrindo de prazer. As palavras diziam: “Materna 160 — o

seu suplemento vitamínico. Fácil de tomar. Inodoro. Sem sabor. O

produto de liderança no mercado. Amplamente recomendado por

mulheres grávidas nos EUA. Estritamente sob recomendação médica

apenas”. Uma das duas palavras, estritamente ou apenas, era redundante.

Fima refletiu, mas por alguma razão não conseguiu decidir qual apagar.

A expressão “produto de liderança” lhe causou uma impressão

grosseira, enquanto “amplamente recomendado por mulheres

grávidas” era seguramente ofensivo.

Seguindo adiante, espanou uma crosta de poeira imaginária da

cadeira ginecológica. Lutou ferozmente contra a súbita necessidade de

se recostar por um ou dois minutos na cadeira com as pernas

separadas, só para experimentar a sensação. Tinha certeza de que

deveria haver um erro nas palavras cruzadas de Tamar: o único país de

onze letras que conseguia lembrar era África do Sul, mas não servia

porque não tinha dois us. E até parece que se tivesse dois us, tudo lá

seria perfeito!

Fima olhou o espéculo de aço inoxidável destinado a colher material

cervical. Quando visualizou a misteriosa entrada exposta e dilatada por

meio de garras metálicas, sentiu o estômago revirar. Fez um ruído

puxando o ar com dentes cerrados e os lábios apenas entreabertos,

como se tivesse sofrido uma queimadura mas estivesse determinado a

não gritar. Ao lado dos espéculos, estavam colocados com obsessiva

precisão os fórceps, tesouras de lâminas longas, DIUs hermeticamente

fechados em plásticos esterilizados. À esquerda, ao lado da mesa do

médico, num pequeno carrinho, ficava a bomba de sucção que era

utilizada, Fima sabia, para pôr fim a uma gravidez por meio de sucção.

Suas entranhas se remexeram com o irônico pensamento de que se

tratava de um enema invertido, e que a condição feminina era uma

injustiça irreparável.

E o que faziam com os fetos? Colocavam num saco plástico e

jogavam na lata de lixo que ele ou Tamar esvaziavam no fim do dia?

Comida para gatos de rua? Ou jogavam pela privada, puxavam a

descarga e limpavam com desinfetante? Os flocos do ano passado. Se a

luz em você se transformar em trevas, está escrito, quão grandiosas

serão essas trevas.


Numa pequena estante ficava o aparelho para ressuscitar, uma

máscara e um tubo de oxigênio. Ao lado, o equipamento de anestesia.

Fima ligou o aquecedor elétrico e esperou os elementos ficarem

vermelhos com o calor. Contou os saquinhos procurando entender a

fórmula impressa, glucose e cloridreto de sódio. Com o pano de pó na

mão, meditou sobre anestesia e ressurreição, fertilidade e morte, ombro

a ombro nesta pequena sala. Havia algo de absurdo, algo insuportável

nisso tudo, mas ele não soube dizer o quê.

Após um momento, Fima se recompôs e alisou a tela do aparelho de

ultrassom com o pano de pó. Não parecia muito diferente da tela do

computador do Ted. Quando Ted lhe perguntara como se dizia deadline

em hebraico, não conseguiu encontrar a resposta. O único equivalente

que lhe ocorreu soava artificial e anêmico. “Inodoro e sem sabor”,

como o produto líder de mercado que era amplamente recomendado

por mães grávidas nos EUA. Nesse ínterim, derrubou uma pilha bem-

arrumada de luvas de borracha transparentes fabricadas por uma firma

chamada Pollack, cada par num invólucro plástico também

transparente. Ao refazer cuidadosamente a pilha, perguntou a si

mesmo o que isso significaria, essa transparência tão predominante

aqui, como se fosse um aquário.

Finalmente dirigiu-se para a sala de serviço, um cubículo aberto

formado com um balcão fechado com vidro opaco. Colocou um monte

de toalhas na lavadora, enfiou o pano de pó também, leu e releu as

instruções, e surpreendeu a si mesmo conseguindo fazer a máquina

funcionar. À esquerda da lavadora ficava o esterilizador, com as

instruções impressas num painel em inglês: 200 graus centígrados, 110

minutos. Fima decidiu ainda não ligar essa máquina, apesar de ela já

conter dois pares de tesouras e vários fórceps, bem como alguns

recipientes de aço inoxidável. Talvez tivesse se assustado porque as

temperaturas lhe pareceram letais. Entrando no lavatório, inalou com

estranho prazer a insólita mistura de odores desinfetantes. Tentou

mijar, mas não conseguiu, talvez por pensar nas almas das crianças

mortas. Zangado, desistiu, xingou seu pênis, fechou o zíper, voltou a

Tamar, e, retomando a conversa anterior, disse:

“Por que você não experimenta romper contato? Ignore as grosserias

dele. Não demonstre nada a não ser completa indiferença. Tirei o pó e

É
arrumei tudo, e liguei a lavadora. É assim que você deve tratá-lo: como

se ele não existisse.”

“Como posso, Fima? Estou apaixonada por ele. Será que você não

entende? Mas, realmente, há uma coisa que eu deveria fazer: em vez de

ficar aborrecida, eu deveria dar um tapa na cara dele. Às vezes, tenho a

sensação de que ele só está esperando que eu faça isso. Acho que vai

fazer bem a ele.”

“A verdade é”, e Fima sorriu, “que ele merece um belo tapa seu.

Como é mesmo que o Wahrhaftig diz: ‘Num país civilizado’. Eu bem

que gostaria de ver a cena. Mesmo que por princípio eu não seja muito

favorável à violência. Pronto, achei para você.”

“Achou o que para mim?”

“O seu país africano. Experimente Guiné-Bissau. Não liguei o

esterilizador porque estava quase vazio. Desperdício de eletricidade.”

Tamar disse:

“Deixar de amá-lo. Essa é a única coisa que pode me salvar. Assim,

da noite para o dia. Mas como? Diga-me, você sabe tudo. Você pode

me dizer como fazer isso?”

Ele riu, encolheu os ombros, murmurou algo, lamentou, finalmente

se recompôs e disse:

“O que eu entendo de amor? Certa época eu pensava que amor era o

ponto onde crueldade e compaixão se encontram. Agora acho que isso

é conversa mole. Agora me parece que nunca entendi nada. Eu me

consolo pensando que aparentemente as outras pessoas entendem

ainda menos do que eu. Tudo bem, Tamar, pode chorar, não se segure,

você vai se sentir melhor. Vou preparar um chá para você. Não

importa. Daqui a cem anos amor e sofrimento serão pré-história, junto

com as lutas sangrentas, as crinolinas e os espartilhos. Homens e

mulheres vão se acasalar trocando pequenos impulsos eletroquímicos.

Não haverá erros. Quer um biscoito também?”

Depois de preparar o chá, e após alguma hesitação, contou a ela a

história da reunião dos chefes de estação, e explicou por que, na sua

opinião, o sr. Cohen estava certo e o sr. Smith errado, até que ela sorriu

levemente em meio às lágrimas. Na gaveta de sua escrivaninha

encontrou um apontador, um lápis, alguns clipes, uma régua e um

abridor de cartas, mas não havia mais laranjas nem biscoitos. Tamar
disse que não tinha importância, obrigada. Já estava se sentindo

melhor. Ele tinha um coração tão bom. Seu pomo de adão saliente era

mais trágico do que cômico. E por causa desse sentimento trágico,

Fima começou a duvidar se aqueles que estavam por vir, Yoezer e seus

amigos, realmente conseguiriam viver uma vida mais racional que a

nossa. Na melhor das hipóteses, crueldade e estupidez adotariam

formas mais sofisticadas. Qual é a utilidade de veículos movidos a jato

para alguém que tem consciência de que o seu lugar não o conhece?

Esta expressão bíblica, “o seu lugar não o conhece”, comoveu-o e

fascinou-o tanto que ele sentiu necessidade de repeti-la em voz baixa.

De súbito, iluminado, conseguiu enxergar toda uma utopia, sublime e

ilusória, envolta nessa frase cotidiana. Decidiu não falar com Tamar

sobre esse assunto, para não acrescentar insultos ao sofrimento dela.

Ela disse:

“Olhe: o aquecedor a querosene está quase vazio. Por que você está

falando sozinho?”

Fima disse:

“Coloquei o aquecedor elétrico na sala de Gad. Nem cheguei a entrar

na sala do Wahrhaftig. Vou entrar já.”

Então captou o que lhe estava sendo pedido, e saiu para encher o

reservatório de querosene. Quando voltou, ouviu-se ressoar um trovão,

como se uma batalha de tanques tivesse começado. Fima recordou-se

do texto: “O Senhor tocou as montanhas e elas fumegaram”, e quase

conseguiu visualizar a cena. Do apartamento de cima vinha o som do

celo, lento, solene, as mesmas duas frases musicais sempre repetidas.

Embora ainda fossem três e meia, a sala tinha ficado tão escura que

Tamar precisou acender a luz para enxergar melhor suas palavras

cruzadas. Ao vê-la ali, de costas para ele, Fima decidiu aproximar-se

dela por trás e abraçá-la, puxar sua cabeça cansada contra o peito,

desligar seus pensamentos, beijar sua nuca e as raízes dos belos

cabelos presos num coque, que podia ser desfeito. Mas pensou melhor,

e ambos passaram algum tempo tentando adivinhar a identidade de um

famoso general finlandês, dez letras. Neste momento, Fima se resignou

ao fato de que, no final das contas, ele não era feito da mesma matéria

que os grandes líderes, capazes de fazer história, pôr fim a guerras,

cicatrizar o coração da massa consumida pela suspeita e pelo


desespero. Consolou-se com a ideia de que os atuais líderes políticos

também não são feitos da mesma matéria. Talvez de matéria ainda pior.
15

HISTÓRIAS DE NINAR

Dimi Tobias era um menino albino, que tinha pequenos olhinhos

vermelhos e usava óculos de lentes bem grossas. Tinha dez anos, mas

parecia mais novo. Falava pouco e sempre com educação, sentenças

equilibradas, às vezes surpreendendo os adultos com expressões

complicadas e também com sua cultivada engenhosidade, em que

Fima imaginava detectar um leve traço de ironia. Seu pai às vezes o

chamava de “Einstein levantino”, mas Yael se queixava de estar criando

um filho calculista e manipulador.

Ele estava sentado na sala de estar, encolhido quieto num canto da

larga poltrona de seu pai, e parecia um pacote comprido abandonado

num banco de parque. Fima tentava em vão fazê-lo dizer qual era o

problema. A noite toda Dimi ficou sentado imóvel, com exceção dos

olhos de coelho que piscavam sem parar por trás dos óculos. Estava

com sede? Queria um copo de leite? Suco? Fima decidira que o menino

estava se desidratando e precisava de líquidos. Água gelada, talvez? Ou

uísque?

Dimi disse:

“Pare com isso.”

Fima, que tinha certeza de não estar fazendo a coisa certa mas não

conseguia de jeito nenhum descobrir o que deveria dizer ou fazer,

abriu a janela para deixar entrar um pouco de ar fresco. Então lhe

ocorreu que talvez o menino estivesse prestes a ficar gripado, de modo

que fechou a janela apressadamente. Pegou para si mesmo um copo de


água mineral na cozinha, e voltou para a sala bebendo, na esperança

de que Dimi talvez seguisse seu exemplo e bebesse algo também.

“Tem certeza de que não está com sede?”

Dimi ergueu um pouco seu rosto branco e fitou Fima com

preocupação e pesar, como alguém que vê um adulto em apuros e não

tem como ajudá-lo. Fima experimentou outra alternativa:

“Bom, então vamos jogar cartas. Ou que tal jogar Monopólio? Ou

você prefere assistir ao noticiário comigo? Me ensine como se liga a TV

de vocês.”

“É só apertar o botão, o botão de cima”, disse Dimi. E acrescentou:

“Não se oferece bebida alcoólica para crianças”.

Fima respondeu:

“Claro que não. Eu só estava tentando fazer você rir. Me diga o que

você está com vontade de fazer. Quer que eu faça uma imitação de

Shamir e Peres?”

“Nada. Já lhe disse três vezes.”

Em vão Fima sugeriu uma história de aventuras, um videogame,

piadas, guerra de travesseiros, jogar dominó. Alguma coisa pesava

sobre o menino, e, embora Fima perguntasse sobre a escola, sobre a

tarde na casa da vizinha, cansaço, dor de barriga, o programa espacial

norte-americano, o máximo que conseguia de Dimi era: “Pare com

isso”. Seria o início de uma amidalite? Pneumonia? Meningite? Fima se

espremeu na poltrona, forçando o magro Challenger a se encolher

ainda mais no seu canto. Passou o braço em tomo dos pequenos

ombros, e insistiu:

“Conte o que aconteceu.”

“Nada”, respondeu Dimi.

“Onde está doendo?”

“Não está doendo nada.”

“Vamos fazer um pouco de bagunça? Ou você está preferindo ir

dormir? A sua mãe disse para lhe dar meio Valium. Quer ouvir uma

história?”

“Você já perguntou.”

Fima se sentia incomodado. Alguma coisa ruim, séria e talvez até

perigosa estava acontecendo diante de seus olhos, e ele não conseguia


descobrir o que fazer. O que faria Teddy se estivesse aqui? Correu os

dedos pelo cabelo albino, e murmurou:

“Mas você obviamente não está bem. Onde é que eles guardam o

Valium? Diga para mim. ”

Dimi rejeitou o carinho, e escorregou para fora da poltrona, como

um gato cujo descanso é perturbado. Cambaleou em direção à outra

poltrona, afundou debaixo de uma pilha de almofadas, de tal maneira

que só sua cabeça e seus sapatos ficaram de fora. Seus olhos piscaram

atrás das grossas lentes.

Fima, cuja ansiedade se transformara em pânico misturado com uma

raiva crescente, disse:

“Vou chamar um médico. Mas antes vamos tirar sua temperatura.

Onde fica guardado o termômetro?”

“Basta”, disse Dimi, “deixe de palhaçada. Por que você não vai

assistir ao noticiário?”

Como se tivesse levado um tapa na cara, Fima levantou-se de um

salto, frenético e atrapalhado, e tentou ligar a televisão, mas apertou o

botão errado. Imediatamente, percebendo que estava sendo feito de

bobo, arrependeu-se de estar mimando a criança e berrou:

“Você tem sessenta segundos para me dizer o que há, ou deixo você

aqui sozinho.”

“Pode ir embora,” concordou Dimi.

“Muito bem, então.” E Fima pôs o dedo em riste procurando imitar a

severidade de Ted, e até mesmo o seu sotaque. “Tudo bem, estou indo.

Mas antes de eu ir, você tem exatamente quatro minutos para se

aprontar e ir para a cama. E sem fazer onda. Dentes, copo de leite,

pijama, Valium, tudo. E chega de cenas ridículas.”

“Você é que está fazendo uma cena ridícula”, disse Dimi.

Fima saiu da sala e se dirigiu ao escritório de Ted. Não tinha a menor

intenção de deixar o menino doente sozinho. Por outro lado, não fazia

ideia de como retirar seu ultimato. Sentou-se na cadeira de Teddy

diante do computador, sem acender a luz, e se propôs a pensar

racionalmente. Havia apenas duas possibilidades: ou a criança estava

prestes a ficar doente e precisava de tratamento imediato, ou o estava

atormentando de propósito, e ele, Fima, estava fazendo papel de

palhaço. De repente, sentiu uma pena imensa daquele Challenger


pálido e sofrido. E também sentiu pena de si mesmo: “Eles nem se

preocuparam em deixar um número de telefone. Provavelmente foram

fazer um programa noturno em Tel Aviv, estão se divertindo num

restaurante exótico ou numa boate, e simplesmente se esqueceram de

nós. E se acontecer algo muito ruim? Como posso entrar em contato

com eles? E se ele tiver engolido alguma coisa? Ou tiver contraído um

vírus letal? Apendicite? Poliomielite? Ou talvez os pais estejam em

apuros? Um acidente no caminho de volta para Jerusalém? Ou um

atentado terrorista?”.

Fima resolveu pedir ajuda à vizinha de baixo. Depois, pensando

melhor, viu que não sabia o que dizer, e ficou com medo de fazer outra

vez papel de bobo.

Então voltou soturno para a sala de estar, e apelou:

“Você está zangado comigo, Dimi? Por que está fazendo isso

comigo?”

Um sorriso melancólico, um sorriso cansado e envelhecido, surgiu

por um momento nos lábios do menino. E ele comentou em tom

casual:

“Você está me perturbando.”

“Neste caso”, disse Fima, controlando com dificuldade uma nova

onda de fúria, uma vontade avassaladora de dar um tapa no rosto

daquele pequeno ser, maldoso e impertinente, “neste caso fique aí

sozinho com sua chatice. Boa noite. Até amanhã. Encheu o saco!”

Mas em vez de ir embora, tirou febrilmente da prateleira o primeiro

livro que seus dedos encontraram. Tratava-se de um volume

alaranjado, em inglês, sobre a história do Alasca no século XVIII ou XIX.

Atirou-se sobre o sofá e começou a folhear o livro, esforçando-se para

absorver pelo menos as figuras. Decidiu não prestar atenção no

pequeno inimigo. Mas não conseguia se concentrar. A todo momento

olhava o relógio. E eram sempre nove e vinte e cinco. E ele ficou

furioso, não só porque o tempo parecia ter parado, mas também

porque havia perdido o noticiário. Sentiu uma desgraça pesando no

peito, como se fosse uma pedra. Alguma coisa muito ruim está

acontecendo. Alguma coisa que você vai lamentar profundamente.

Alguma coisa que vai devorá-lo por dias e anos a fio, e você vai desejar

em vão poder voltar a roda do tempo até este exato momento, e


corrigir o terrível erro. Fazer a coisa simples e óbvia que só um cego ou

um idiota não faria agora. Mas que coisa é esta? Vez por outra olhava

furtivamente para Dimi, que permanecia deitado no seu ninho de

almofadas na poltrona, piscando. Por fim conseguiu se prender ao

episódio dos primeiros caçadores de baleias que chegaram ao Alasca

vindos da Nova Inglaterra, e construíram estações à beira-mar que

eram frequentemente atacadas por nômades selvagens que

atravessavam o estreito de Bering, vindos da Sibéria. E súbito Dimi

perguntou:

“Me diga uma coisa. O que é um edema?”

“Não sei direito”, respondeu Fima. “É o nome de uma doença. Por

quê?”

“Que tipo de doença?”

“Mostre onde está doendo. Pegue o termômetro. Vou chamar um

médico.”

“Não sou eu”, disse Dimi. “É o Winston.”

“Quem é o Winston?”

Fima imaginou que talvez o menino estivesse delirando. Para sua

surpresa, essa possibilidade o deixou um pouco mais aliviado. Agora,

onde encontrar um médico? Ligar para Tamar e pedir o conselho dela.

Seguramente não os nossos médicos. E tampouco o marido de Annette.

E, na verdade, o que era edema?

“Winston é um cachorro. É o cachorro do Tslil Weintraub.”

“O cachorro está doente?”

“Estava.”

“E você está com medo de ter pego a doença?”

“Não. Nós o matamos.”

“Mataram? Por que vocês fizeram isso?”

“Disseram que ele estava com um edema.”

“Quem o matou?”

“Só que ele não está morto.”

“Não está vivo e não está morto?”

“Está vivo e está morto.”

“Explique.”

“Não dá para explicar.”


Fima se levantou e pôs uma das mãos na testa de Dimi, e a outra na

própria testa. Não sentiu a menor diferença. Talvez estejamos doentes

os dois?

“Foi assassinato”, disse Dimi.

E de repente, horrorizado com o que tinha acabado de sair da sua

boca, agarrou outra almofada e, escondendo o rosto nela, começou a

chorar. Um pranto abafado, interrompido, que se parecia com soluços.

Fima tentou puxar a almofada, mas Dimi segurava com força e não

queria soltar. Então Fima desistiu. E compreendeu que não havia

doença, não havia febre, e sim um sofrimento que exigia silêncio e

paciência. Sentou-se no tapete diante da poltrona e pegou a mão de

Dimi, sentindo que também estava prestes a chorar e que amava esse

menino estranho de óculos grossos e cabelo cor de papel, a sua

teimosia, a sua esperteza, o seu constante ar de velhice prematura e

solitária. O corpo de Fima doía pelo esforço de se controlar para não

agarrar o menino em prantos e apertá-lo contra o seu peito com toda a

força. Nunca em toda a sua vida sentira um desejo tão forte de se

apertar contra uma mulher como sentia agora de abraçar Dimi. Porém,

se conteve, e não se mexeu enquanto continuaram os soluços. Até que

Dimi parou. E, exatamente quando Dimi ficou em silêncio, Fima disse:

“Basta, Dimi.”

De repente o menino escorregou da poltrona e caiu nos braços de

Fima. Apertou tão forte que parecia estar buscando refúgio no interior

de Fima. E disse:

“Vou contar.”

E começou a falar, numa voz firme, clara e macia, sem soluços e sem

parar um único momento para achar uma palavra, piscando menos do

que antes. Contou como tinham encontrado o cão se arrastando na

sujeira entre as latas de lixo. Um cão asqueroso, com as costas peladas,

feridas abertas e moscas numa das patas traseiras. O cão já pertencera a

um amigo, Tslil Weintraub, mas desde que os Weintraub tinham se

mudado para o exterior, não tinha mais dono. Vivia de restos. O

cachorro estava deitado de lado, atrás das latas, tossindo como alguém

que fuma demais. Fizeram exame médico nele, e Yaniv disse: “Ele vai

morrer logo. Está com um edema”. Então abriram a sua boca à força, e

o fizeram engolir um remédio inventado por Ninja Marmelstein: água


lamacenta da lagoa misturada com um pouco de areia e folhas e um pó

de cimento e um pouco de aspirina da mãe de Yaniv. Então resolveram

carregá-lo para o wadi num cobertor, e fazer com ele o sacrifício de

Isaac, tal como tinham aprendido na Bíblia. Foi ideia de Ronen, e ele

correu até sua casa e pegou uma faca de pão. Durante toda a

caminhada até o wadi Winston ficou deitado quieto no cobertor. Até

parecia feliz, e agitava a cauda agradecido. Talvez pensasse que o

estivessem levando para o veterinário. Quem se aproximasse recebia

uma lambida no rosto ou nas mãos. No wadi, juntaram pedras e erigiram

um altar, e lá depositaram o cão, que não ofereceu a menor resistência.

Olhava para todos com um ar curioso, como um bebê, crédulo, como

se tivesse certeza de estar entre amigos queridos, ou como se

entendesse a brincadeira e estivesse contente de estar brincando. Suas

feridas eram repugnantes, mas a cara era limpa, olhos castanhos que

demonstravam senso e sentimento. “Existe isso — não é, Fima? —, que

às vezes a gente olha para um animal e pensa que ele consegue

lembrar coisas que os seres humanos esqueceram. Pelo menos parece.”

Em todo caso, era um cachorro sujo e irritante, cheio de pulgas e

carrapatos, sempre grudado em todo mundo; ele adorava botar a

cabeça nos joelhos da gente e babar.

A ideia de Dimi foi colher algumas plantas e flores e decorar o altar.

Até providenciou uma pequena coroa para a cabeça do Winston, como

fazem na creche quando é aniversário de alguém. Eles amarraram as

quatro patas juntas, com força, e mesmo assim ele não deixou de ficar

contente e abanar o rabo o tempo todo, como se estivesse feliz de ser o

centro das atenções. Quem não tomasse cuidado, levava uma lambida.

Depois, sortearam as funções. Ninja Marmelstein ficou encarregado das

orações, Ronen cavaria a sepultura e coube a ele, Dimi, a tarefa de

matar o animal. A princípio tentou se esquivar — tinha a desculpa de

que não enxergava muito bem —, mas zombaram dele, ficaram bravos

e disseram que sorteio é sorteio, deixe de ser tão sentimental. Então

não teve escolha. Só que não ia dar certo. A faca tremia na sua mão e o

cachorro não parava de se mexer. Em vez de cortar a garganta, cortou

metade da orelha. O cachorro enlouqueceu e começou a chorar feito

um bebê, e morder o ar. Dimi teve que fazer outro corte, rápido, para

fazer cessar os uivos. Mas desta vez, em lugar da garganta, a faca


entrou em algo mole perto da barriga, pois Winston se contorceu e

guinchou e sangrou muito. Yaniv disse: “E então? Não é tão terrível

assim; é só um velho cão árabe fedorento”. E Ninja disse: “E está com

um edema; vai morrer de qualquer jeito”. Na terceira vez Dimi golpeou

com toda a força, mas acertou uma pedra e a faca se quebrou ao meio.

Ficou apenas com o cabo na mão. Ninja e Yaniv agarraram a cabeça do

Winston e disseram: “Vamos logo, depressa, seu bobão. Pegue a

lâmina e corte rápido”. Mas não tinha sobrado muita coisa da lâmina; e

foi impossível serrar a garganta: a lâmina estava escorregadia de

sangue. E toda vez cortava no lugar errado. No final, estavam todos

cobertos de sangue. Como era possível um cachorro ter tanto sangue?

Talvez por causa do edema. Yaniv, Ninja e Ronen começaram a correr,

e o cão mordeu a corda e se livrou, mas só as patas da frente; as

traseiras ficaram amarradas, e com gritos agudos, que não pareciam

gritos de cachorro, pareciam mais gritos de mulher, arrastou-se sobre a

barriga e desapareceu nos arbustos. Quando Dimi percebeu que os

outros não estavam mais lá, correu atrás deles em pânico. Por fim, os

encontrou escondidos na garagem sob o bloco de apartamentos. Havia

uma torneira e eles tinham conseguido lavar o sangue, mas não

deixaram Dimi se lavar, e jogaram nele toda a culpa. Era por culpa dele

que Winston não estava nem vivo nem morto, crueldade com animais

inocentes, culpa sua a faca do Ronen ter se quebrado, e o culparam

porque ele com certeza contaria tudo, eles o conheciam, e começaram

a chutá-lo e pegaram mais um pedaço de corda, e Ninja disse: “Agora

isso aqui virou uma intifada. Vamos enforcar o Dimi”. Só Ronen foi

relativamente justo e disse: “Primeiro deixem-me colocar os óculos dele

em algum lugar para não se quebrarem”. Foi por isso que não viu

quem o amarrou e quem, depois de o surrarem, ficou em pé ao seu

lado e mijou em cima. E assim o deixaram amarrado ali na garagem, e

fugiram, berrando que ele merecia o castigo, por que tinha matado o

Winston? Ele não contou nada à vizinha que deveria estar tomando

conta dele. Simplesmente disse que se sujara na lagoa. Se seus pais

descobrissem, seria o fim.

“Você vai contar para eles?”

Fima pensou no caso. Durante toda a confissão não tinha parado de

afagar o cabelo do menino. Como num pesadelo, sentiu que o cão,


Dimi e ele tinham se tornado um só. O mesmo salmo que diz: “O

coração deles é grosseiro como gordura”, diz também: “Minha alma

goteja de tristeza”. Declarou seriamente:

“Não, Dimi. Não vou contar.”

O garoto olhou de lado para Fima. Seus olhos de coelho atrás das

lentes grossas pareciam angustiados, e mesmo assim cheios de

confiança, como se ele quisesse demonstrar o que descrevera antes

acerca dos olhos do cachorro. Então amor é isso.

Fima estremeceu, como se lá fora, das profundezas das trevas, do

vento e da chuva, seus ouvidos tivessem captado o eco fugaz de um

uivo longínquo.

Acariciou a cabeça do pequeno Challenger, e o puxou para dentro

do seu pulôver deformado. Como se estivesse grávido do garoto. Após

um instante, Dimi se libertou e perguntou:

“Mas por quê?”

“Por que o quê?”

“Por que você topou não contar?”

“Porque não iria ajudar o Winston e você já sofreu demais.”

“Você é legal, Fima.” E depois: “Ainda que você seja um cara

engraçado. Às vezes chamam você de palhaço nas suas costas. E você

parece mesmo palhaço, um pouco.”

“Agora, Dimi, você vai tomar um copo de leite. E me diga onde posso

achar o tal do Valium que a sua mãe disse para você tomar.”

“Eu também sou um pouco palhaço. Mas eu não sou legal. Eu devia

ter dito não. Não devia ter deixado eles me arrastarem.”

“Mas eles obrigaram você.”

“Mesmo assim, foi assassinato.”

“Você não pode saber”, arriscou Fima, “talvez ele esteja só ferido.”

“Ele perdeu muito sangue. Um mar de sangue.”

“Às vezes a gente perde muito sangue até mesmo por um corte

pequeno. Uma vez, quando eu era pequeno, estava me equilibrando

num muro e caí, e sangrei horrores, e só tinha um cortezinho na

cabeça. O vovô Baruch quase desmaiou.”

“Eu odeio eles.”

“São só crianças, Dimi. As crianças às vezes fazem coisas muito

cruéis, simplesmente porque não têm imaginação suficiente para


entender o que é a dor.”

Dimi disse:

“Não as crianças. Eles. Se eles pudessem ter escolhido, não me teriam

tido. E eu também não teria escolhido eles. Não é justo: você pode

escolher com quem casar, mas não pode escolher seus pais. E também

não pode se divorciar deles. Fima?”

“Sim.”

“Vamos pegar uma lanterna? Vamos pegar bandagens e mertiolate?

Vamos sair e procurar o Winston no wadi?”

“Na escuridão e na chuva não há esperança de achá-lo.”

“Verdade”, disse Dimi. “Você tem razão. Não temos esperança. Mas

vamos sair e procurar de qualquer maneira. Pelo menos vamos ter a

sensação de que tentamos e falhamos.” Ao dizer isso, olhou para Fima

como uma edição de bolso do seu racional e controlado pai. Até

mesmo sua entonação era reflexo de Ted: a voz calma de um homem

solitário e equilibrado. Dimi limpou os óculos e acrescentou: “A culpa

também é da família do Tslil. Por que foram embora e deixaram o

cachorro se ele já estava doente? Podiam ter levado junto. Podiam pelo

menos ter arranjado algum lugar para ele. Por que jogaram o cachorro

no lixo desse jeito? Os índios cherokees têm uma lei que diz que não se

pode jogar nada fora. Eles guardam até um pote quebrado. Você não

pode se desfazer de nada que já usou um dia. A coisa ainda pode

precisar de você. Eles têm até uma espécie de dez mandamentos, ou

menos de dez, e o primeiro é: Não jogarás fora. Eu tenho um baú no

depósito cheio de brinquedos de quando eu era desse tamanhinho.

Eles, você sabe quem, estão sempre berrando comigo para eu jogar os

brinquedos fora, quem precisa deles?, só ocupam espaço, juntam

poeira, mas eu não concordo: ‘Jogar fora é como matar’, disse Filha da

Neve para Lago do Vento Sussurrante, apertando seus dedos delicados

em torno da pedra de lobos.”

“O que é isso?”

“É uma história de uma menina cherokee. Lago do Vento Sussurrante

era o chefe da tribo banida.”

“Conte-me essa história.”

“Não posso. Não consigo pensar em outra coisa. Aquele cachorro fica

uivando para mim, os olhos castanhos tão obedientes, tão


domesticados, tão feliz de ser o centro das atenções, e abanando o

rabo, e lambendo quem chegasse perto. Mesmo quando o Ronen

estava amarrando suas patas, Winston deu uma lambida nele. E a sua

orelha saiu e caiu no chão como uma fatia de pão. Fico ouvindo ele

chorar o tempo todo na minha cabeça, e talvez ele ainda esteja vivo,

morrendo numa fresta entre as rochas do wadi, chorando e esperando o

veterinário. À noite Deus virá me matar por causa disso. A melhor coisa

para mim é nem ir dormir. Ou me matará porque eu os odeio, e é

proibido odiar os pais. Quem foi que mandou eles me terem? Eu não

pedi favor nenhum. Em todo caso, não há nada para fazer aqui. Tudo o

que se faz sai errado. Só problemas e berros. Tudo o que eu faço,

problemas e berros. Você foi casado um dia com a minha mãe e não a

quis mais. Ou ela não quis você. Problemas e berros. Papai disse que

aconteceu porque você é meio palhaço. Ele me disse em inglês. Eu

também não tenho muita utilidade para eles. Estão sempre precisando

de sossego e silêncio no apartamento, tudo arrumado e no lugar certo,

e não se pode bater a porta. Toda vez que uma porta bate ela grita

comigo e com o papai. Toda vez que uma caneta não está onde

deveria estar, ele grita comigo e com a mamãe. Toda vez que o tubo de

pasta de dentes não é apertado da forma correta, os dois gritam

comigo. Não, não gritam; só fazem questão de dizer. Assim: seria

preferível que, no futuro... Ou ele diz para ela em inglês: ‘Faça alguma

coisa para o menino não ficar grudado nos meus pés’. E ela diz: ‘É seu

filho, senhor’. Fima, quando você era pequeno, você nunca desejou,

bem lá no fundo, que seus pais morressem? Você nunca quis ser um

órfão, livre como Huckleberry Finn? Você não era um palhacinho?”

Fima respondeu:

“Toda criança tem pensamentos como esse de vez em quando. É

natural. Mas não querem que aconteça de verdade.”

Dimi ficou em silêncio. Seus olhos de albino começaram a piscar de

novo, rapidamente, como se a luz estivesse incomodando. E voltou a

falar:

“Diga, Fima, você precisa de um filho, não é? Que tal fugirmos juntos,

você e eu, para o arquipélago de Galápagos e construirmos uma

cabana de galhos? Podemos pescar, pegar caranguejos, plantar


verduras. Podemos seguir as tartarugas de mil anos. Como você me

contou uma vez.”

Aí vamos nós de novo, pensou Fima: mais saudades do lado ariano.

De Gella. Ergueu Dimi nos braços e levou-o para o quarto. Tirou sua

roupa e vestiu-lhe o pijama. Em Galápagos não há inverno. É sempre

primavera. E as tartarugas de mil anos são quase tão grandes quanto

esta mesa porque não caçam, não sonham e não fazem som nenhum.

Como se tudo fosse certo e direto. Pegou o menino novamente, e

levou-o para escovar os dentes. Então ficaram em pé, um ao lado do

outro diante da privada, e Fima disse: “Um, dois eeeee três!” e

apostaram para ver quem terminaria antes de mijar. O tempo todo Fima

murmurava confusas frases de encorajamento, que ele próprio mal

escutava: “Não faz mal, menino, logo a chuva vai parar, logo o inverno

vai acabar, logo a primavera estará aí, vamos dormir como tartarugas, e

vamos nos levantar e plantar verduras e estaremos todos bem e você

verá como vai ser bom”.

Apesar das frases de encorajamento ambos estavam à beira das

lágrimas. Abraçaram-se como se o frio tivesse aumentado. Em vez de

colocá-lo na cama, Fima carregou de cavalinho o garoto em seu pijama

de flanela verde, levando-o até o quarto dos pais. Ali deitou-se ao lado

dele na cama de casal, tirando-lhe cuidadosamente os óculos, e os dois

se cobriram juntos com um único cobertor, enquanto Fima contava

uma história depois da outra, sobre lagartos, sobre o abismo

evolucionário, sobre o fracasso da desnecessária revolta dos judeus

contra Roma, sobre a conferência dos chefes ferroviários e a largura

dos trilhos, sobre as florestas de Guiné-Bissau na África, sobre caçadas

de baleias no Alasca, sobre templos em ruínas nas montanhas do Norte

da Grécia, sobre a criação de peixes tropicais em piscinas aquecidas

em Valetta, capital de Malta, sobre santo Agostinho, sobre o pobre

cantor de sinagoga que se viu sozinho numa ilha deserta nas Grandes

Festas. Às quinze para uma, quando Ted e Yael voltaram de Tel Aviv,

encontraram Fima dormindo totalmente vestido, enrolado como um

feto num cobertor na cama de casal, com a cabeça na camisola de Yael,

e Dimi no seu pijama verde sentado diante do computador no

escritório do pai, com um olhar muito sério no seu rosto de coruja,


derrotando toda uma quadrilha de piratas num complicado jogo

estratégico.
16

FIMA CHEGA À CONCLUSÃO DE QUE AINDA HÁ

UMA CHANCE

Pouco depois da uma hora, a caminho de casa no táxi que Teddy

chamara para ele, Fima recordou a última visita do pai. Tinha sido

anteontem? Ou ontem de manhã? Lembrou como o velho começara

com Nietzsche e terminara com as ferrovias russas, que eram

construídas de tal forma que não podiam ser utilizadas por invasores.

O que estivera seu pai tentando lhe dizer? Neste momento Fima teve a

impressão de que a conversa havia girado em torno de algum ponto

que ele não ousava ou não conseguia expressar diretamente. Em meio

a todas aquelas histórias e morais, em meio aos cossacos e indianos,

Fima deixara de prestar atenção no fato de que o velho se queixara de

falta de ar. E além disso, nunca seu pai falara sobre doenças, com

exceção das habituais queixas de dores nas costas. Agora Fima se

recordava da respiração ofegante, da tosse, do assobio que vinha da

garganta ou do peito. E, na despedida, parecia que o velho estava

tentando dizer alguma coisa, que Fima não quis escutar. Você preferiu

brigar por bobagens como Herzl e a Índia, pensou Fima. O que é que

ele estava tentando insinuar no meio de todos aqueles jogos de

palavras? Por outro lado, as suas despedidas sempre têm um toque

grandioso. Se ele vai até o café por meia hora, deseja a você uma vida

repleta de significado. Se vai comprar jornal, adverte para não

desperdiçar o rico tesouro da vida. O que ele estava tentando dizer

desta vez? Você deixou escapar. Estava vibrando demais com a


possibilidade de ganhar a discussão acerca do futuro dos Territórios.

Como sempre. Como se bastasse levar a melhor numa discussão com

ele e os obstáculos à paz estariam removidos, e uma nova era teria

início. Como na sua infância: um garoto azedo, cabeça-dura, que não

tinha prazer maior do que surpreender um adulto num erro ou deslize

de linguagem. Ganhar uma discussão, forçar o adulto a erguer uma

bandeira branca. Se algum amigo dos pais dissesse, por exemplo, “a

maior parte da maioria da população”, você exultava, e fazia questão

de frisar que “a maior parte da maioria” significava na verdade vinte e

cinco vírgula um por cento, ou seja, uma minoria e não maioria. Se o

seu pai dissesse, por exemplo, que Ben Gurion fazia discursos

arrasadores, você assinalava que, se eram arrasadores, era porque ele

preferia usar a força bruta, e portanto não podia ser muito inteligente.

Ontem, durante a visita, houve momentos em que a sua voz de tenor

quase sumia por causa da falta de ar. É verdade que ele é um velho

tagarela, metido a grã-fino, galanteador, sabe-tudo e irritante, além de

sofrer de cegueira política e achar que tem sempre razão, o que, aliás,

o torna ainda mais irritante. E no entanto, à sua própria maneira, é um

homem generoso e de bom coração. Ele enfia dinheiro nos seus bolsos

enquanto fica bisbilhotando a sua vida amorosa, e tenta administrar a

vida que você leva. E onde você estaria agora sem ele?

O táxi parou no farol do cruzamento do monte Herzl. O motorista

disse:

“Que gelo! O meu aquecedor está quebrado. Esse farol desgraçado

também não funciona. Este país está todo fodido!”

Fima disse:

“Por que exagerar? Talvez existam no mundo vinte e cinco países

mais decentes que o nosso, mas, por outro lado, existem mais de cem

onde você seria fuzilado se falasse desse jeito.”

O motorista:

“Os goyim podem ir para o inferno, todos eles. São todos podres.

Todos nos odeiam.”

Luzes estranhas se refletiram na rua molhada. Podia-se ver a neblina

entre os edifícios escuros. Perto do farol, onde a luz alaranjada

iluminava a névoa, formava-se um brilho fantasmagórico. Fima pensou:

“Nugá shelô mealmá hadin — o Brilho que não é do nosso mundo”. A antiga
expressão aramaica o deixou subitamente tonto. Como se as próprias

palavras viessem de lá de outros mundos. Nenhum carro passava. Não

se via uma única janela iluminada. O asfalto desolado, a claridade dos

postes de luz, os pinheiros sombrios imersos na chuva como se todos

os portões tivessem se fechado para sempre, tudo despertava em Fima

um estranho pavor. Como se a sua própria vida estivesse cintilando lá

fora, na névoa úmida e gelada. Como se alguém estivesse agonizando

em algum lugar próximo, atrás de algum daqueles muros de pedra

molhados.

O motorista disse:

“Que noite fodida! E o farol não abre.”

Fima disse com segurança:

“Por que a pressa? Nós podemos esperar mais um ou dois minutos.

Não se preocupe: eu estou pagando.”

Fima estava com dez anos quando a sua mãe morreu de hemorragia

cerebral. Baruch Nomberg, com seu ímpeto habitual, não esperou nem

uma semana; no Shabat seguinte ao funeral, jogou todos os pertences

dela em caixas e engradados, todos os vestidos, sapatos e livros, todas

as toalhas de mesa junto com o espelho redondo da Rússia, toda a

roupa de cama bordada com as iniciais dela. E doou tudo rapidamente

para um asilo em Talbiyeh. Apagou cada traço da existência dela, como

se a sua morte tivesse sido um ato de traição. Como se ela tivesse

fugido com um amante. Mas mandou ampliar a foto de formatura dela,

e a pendurou sobre o aparador. De lá, ao longo dos anos, ela olhava

para os dois com um sorriso triste, cético, e com os olhos timidamente

baixos, como se admitisse o erro e se arrependesse. Logo após o

funeral, Baruch assumiu a educação do filho com uma severidade

displicente, inesperadas demonstrações de emoção, tirânico bom

humor. Toda manhã verificava caderno por caderno na mala escolar de

Fima. Toda noite ficava parado no banheiro de braços cruzados

enquanto Fima escovava os dentes. Impôs ao menino professores

particulares de matemática, inglês, e até mesmo de tradição judaica.

Por meios espertos e sutis, passou a subornar dois ou três colegas de

classe de Fima para que viessem brincar com ele de vez em quando,

para que não ficasse tão sozinho. Infelizmente, tinha o hábito de vir

participar das brincadeiras e dos jogos e, mesmo quando por razões


pedagógicas propunha-se a perder, envolvia-se e esquecia suas boas

intenções, vangloriando-se quando ganhava. Comprou a larga

escrivaninha que Fima usava até hoje. Tanto no inverno quanto no

verão forçava o menino a vestir roupas quentes demais. Todos esses

anos, o samovar elétrico ficava fumegando até uma ou duas da manhã.

Divorciadas elegantes e viúvas cultas de certa idade vinham para visitas

que se estendiam por quatro ou cinco horas. Do quarto dos pais, Fima

podia ouvir até dormindo as fortes vozes eslavas, entremeadas de risos,

choros ou canções a duas vozes. À força, como se puxasse o menino

pelos cabelos, o pai arrastava Fima de uma aula para outra. Confiscou

todos os livros de leitura que o jovem gostava, substituindo-os apenas

por livros de estudo. Obrigou-o a enfrentar todos os tipos de exames

escolares imagináveis. Não hesitou em usar uma verdadeira rede de

influências para evitar que o filho servisse no exército numa unidade

de combate, arranjando uma função de encarregado de atividades

culturais no Campo Schneller em Jerusalém. Depois do serviço militar

Fima se interessou pela possibilidade de entrar para a marinha

mercante, pelo menos por um ou dois anos: estava encantado com o

mar. Mas seu pai vetou a ideia e o condenou a estudar administração

de empresas, com o objetivo de fazê-lo participar da direção da

indústria de cosméticos. Só depois de muitos atritos, chegaram a um

acordo, e Fima foi estudar história. Logo que Fima recebeu seus

excelentes resultados de graduação, seu pai, eufórico, decidiu mandá-

lo para uma famosa universidade britânica para continuar os estudos.

Mas Fima se rebelou, se apaixonou, se apaixonou de novo, e o ano do

desbunde eclodiu, e os estudos tiveram que ser adiados. Foi Baruch

que o resgatou de suas sucessivas confusões, de Gibraltar, de Malta, até

mesmo da prisão militar. Disse ele: “Mulheres, sim. Decididamente.

Mas para o prazer, e não para se sacrificar. Sob certos aspectos, Fima,

as mulheres são exatamente como nós; mas, sob outros aspectos, são

totalmente diferentes. Mas quais são os aspectos iguais e quais são os

diferentes, esta é uma questão que até mesmo eu ainda não consegui

responder”.

Foi Baruch quem comprou o apartamento em Kiryat Yovel, e casou

Fima com Yael depois de reprovar as outras duas candidatas, Ilia

Abravanel de Haifa, que se parecia com Maria Madalena numa pintura


antiga, e a bela Liat Sirkin, que havia adoçado as noites de Fima em seu

saco de dormir nas montanhas do Norte da Grécia. E foi ele quem,

quando tudo estava terminado, providenciou o divórcio. Até mesmo o

sobretudo com a armadilha na manga havia sido dele.

Fima se lembrou vagamente de uma das anedotas favoritas do velho,

sobre um famoso tsadik hassídico e um notório ladrão de cavalos que

trocaram seus casacos, e de certa forma, suas identidades e, portanto,

também seus destinos de forma tragicômica. Mas qual teria sido,

segundo o velho, o sentido real da história, em oposição ao sentido

aparente? Por mais que tentasse lembrar, o máximo que conseguiu foi

um lampejo, uma visão momentânea de um albergue, construído com

troncos grosseiros, numa estrada ucraniana na escuridão da noite,

numa planície coberta de neve e tomada pelo uivar dos ventos e dos

lobos. O motorista disse:

“Que é isso? Vamos ficar aqui parados a noite toda?”

E pisou fundo, avançou com o farol vermelho e, como se quisesse

compensar a si mesmo e a Fima pelo tempo perdido, guiou feito louco

pelas ruas desertas, freando bruscamente nos cruzamentos e cantando

pneus. Fima disse:

“O que é isso? A Guerra dos Seis Minutos?”

E o motorista:

“Que assim seja, amém.”

Amanhã de manhã, a primeira coisa que vou fazer é levá-lo ao

hospital para uns exames. À força, se for preciso. Esse chiado é novo. A

menos que ele esteja ampliando o repertório, criando imitações

cômicas de trens para acompanhar as histórias sobre ferrovias. Ou

talvez seja apenas um leve resfriado e eu esteja perdendo meu senso

de proporção. Agora, como é que posso perder algo que nunca tive?

Aliás, ele também nunca teve.

Acho que deveria primeiro dar uma ligada para o Tsvi: o irmão dele

atende no Hospital Hadassah, no Monte Scopus. Vou tentar arranjar um

quarto individual, e todos os pequenos luxos indispensáveis. Aquele

revisionista cabeça-dura é tão teimoso que não vai nem querer ouvir a

palavra hospital. Ele é capaz de explodir, como um vulcão. Pensando

bem, por que não pedir à Yael que dê uma amaciada nele antes? Ele

tem uma velha queda pela Yael. É o que ele chama de ponto fraco.
Talvez seja só porque meteu na cabeça que o Dimi é seu neto. Assim

como meteu na cabeça que a Índia é um país árabe, e que Krochmal se

encontrou com Nietzsche, e que eu sou uma espécie de Toynbee

fracassado ou um Púchkin que saiu dos trilhos. Enganos típicos e

ridículos de um homem que se recusa a encarar a realidade e olhá-la

diretamente nos olhos.

Quando as palavras “diretamente nos olhos” cruzaram sua mente,

Fima lembrou-se subitamente do cachorro que estava sangrando até a

morte no negro wadi. Teve uma imagem vívida dos últimos jorros de

sangue saindo das feridas abertas, e dos espasmos agonizantes do

animal moribundo. Num instante de iluminação, percebeu que também

esse horror era resultado do que estava acontecendo nos Territórios.

“Precisamos fazer a paz”, disse Fima ao motorista. “Não podemos

continuar assim. Você não acha que vale a pena fazer um esforço e

começar a falar com eles? O que há de tão terrível em falar? Falar não

mata ninguém. E além disso, nós somos mil vezes melhores do que

eles para falar.”

O motorista respondeu:

“Nós deveríamos matá-los quando eles são pequenos. Não deixá-los

levantar a cabeça. Fazê-los amaldiçoar o dia em que resolveram se

meter conosco. É aqui que você mora?”

Fima entrou em pânico, porque não estava seguro de ter dinheiro

suficiente para a corrida. Decidiu que daria sua carteira de identidade

ao motorista e que na manhã seguinte iria até a companhia de táxis

para pagar. Só tinha que conseguir achar a carteira de identidade. Mas

parecia que Ted Tobias tinha contado com essa possibilidade, e pago o

táxi adiantado. Fima agradeceu ao motorista, desejou-lhe boa sorte, e

perguntou ao sair:

“Agora diga-me: quanto tempo você acha que devemos continuar

nos matando uns aos outros?”

O motorista respondeu:

“Mais cem anos se for necessário. Assim era nos tempos bíblicos. Não

existe esse negócio de paz entre judeus e goyim. Ou eles estão por cima

e nós por baixo, ou então eles estão por baixo e nós sentados em cima.

Talvez quando o Messias chegar ele lhes mostre o lugar que merecem.

Boa noite, senhor. Não precisa ter pena deles. Será melhor para este

É
país quando judeus começarem a ter pena de judeus. É esse o nosso

problema.”

No saguão de entrada, perto do pé da escada, Fima viu um homem

corpulento, embrulhado numa pesada manta, sentado junto às caixas

de correio sem se mover. Ficou tão assustado que quase se virou e

correu atrás do táxi, que estava manobrando para voltar um pouco

mais adiante na rua. Por um momento considerou a possibilidade de

que aquele infeliz fosse ninguém mais do que ele próprio, sentado

esperando o amanhecer por ter perdido a chave do apartamento. Em

seguida atribuiu esse pensamento ao seu cansaço: afinal, não era uma

pessoa, apenas um colchão que um dos vizinhos abandonara ali.

Entretanto, acendeu a luz e vasculhou freneticamente os bolsos até

encontrar a chave. Havia uma folha de papel, ou carta, aparecendo

pela abertura da sua caixa, mas ele decidiu esperar até de manhã. Não

fosse a fadiga, não fosse a confusão mental, não fosse o adiantado da

hora, não teria desistido tão fácil. Jamais deveria ter perdido essa

oportunidade. Era seu dever tentar mudar a opinião do motorista com

calma, argumentos fundamentados, e sem perder a paciência. Lá no

fundo, sob diversas camadas envenenadas de crueldade e medo,

certamente deveria existir alguma centelha de razão. Devemos

acreditar que é possível escavar o entulho e resgatar a bondade

soterrada sob ele. Ainda há uma chance de modificar algumas opiniões

e abrir aqui uma página nova. Em todo caso, nossa obrigação é

continuar tentando. Não podemos desistir.


17

VIDA NOTURNA

E já que o motorista do táxi usara a expressão “matá-los quando eles

são pequenos”, Fima se lembrou da estranha morte de Trotski. Foi até a

cozinha pegar um copo d’água antes de se recolher, e espiou a lata de

lixo sob a pia para ver se havia mais cadáveres. Notando o alumínio

reluzente do novo bule elétrico coreano, resolveu fazer um chá.

Enquanto esperava a água ferver, preparou três ou quatro fatias de pão

com geleia. E imediatamente teve que engolir uma pastilha para azia.

Parado diante da geladeira aberta, refletiu sobre o infortúnio de

Annette. Sentiu que conseguia se identificar com a cruel injustiça que

ela sofrera; podia compartilhar sua humilhação e desespero. Porém, ao

mesmo tempo, e sem nenhuma contradição, conseguia entender o

marido, o médico, o homem fiel e trabalhador que se reprimiu durante

décadas, assobiando ocasionalmente entre os dentes, dando batidinhas

delicadas em objetos inanimados, até que sentiu o medo da velhice

chegando e percebeu que era sua última oportunidade de parar de

dançar conforme a música cansativa de sua esposa e começar a viver a

sua própria vida. Neste exato momento ele está dormindo nos braços

da sua jovem namorada em algum hotel italiano, seu joelho entre os

joelhos dela, um homem rejuvenescido; mas em breve ele descobrirá

que ela também usa absorvente sob as calcinhas, passa desodorante

perfumado para encobrir o cheiro do seu suor e outras secreções,

lambuza a cara de cremes gordurosos em frente ao espelho, e talvez

até se deite ao seu lado com os cabelos enrolados, como a esposa. E

pendura suas roupas íntimas para secar no boxe do banheiro, de modo


que ficam pingando e molhando tudo. E alega enxaqueca e outros

maneirismos irritantes justamente quando seu desejo começa a se

manifestar.

“Mannerheim!”, Fima exclamou de repente em voz alta, deliciado: os

maneirismos da namorada fizeram-no recordar o nome do general

finlandês que se interpôs entre Tamar e a solução das palavras

cruzadas. Resolveu lhe telefonar, embora já fossem quase duas da

manhã. Ou deveria telefonar para Annette? Em terceira instância, pegou

seu chá, que já estava frio, sentou-se à escrivaninha, e em menos de

meia hora tinha escrito um pequeno artigo para o suplemento de fim se

semana sobre a estreita relação entre a deteriorada situação nos

Territórios e a insensibilidade assustadora que se manifesta, por

exemplo, no tratamento de pacientes cardíacos, muitos deles

condenados à morte — literalmente — por conta de operações

desnecessárias ou por causa de discórdias entre patrões e empregados

acerca dos turnos e plantões hospitalares. Ou que se manifesta na

nossa indiferença ao sofrimento dos desempregados, dos imigrantes

recém-chegados, das esposas vítimas de violência. Ou na humilhação

que infligimos aos idosos sem teto, aos deficientes mentais, às pessoas

solitárias que foram vítimas de circunstâncias difíceis. Porém, acima de

tudo, nossa brutalização se manifesta na rude agressividade que vemos

todos os dias nos órgãos burocráticos, nas ruas, nas filas de ônibus, e,

muito provavelmente, na privacidade dos nossos quartos de dormir.

Em Beer Yacov, um homem sofrendo de câncer assassinou sua esposa

e seus filhos porque não podia aceitar o conforto que ela passou a

buscar na religião. Quatro adolescentes de boa família em Hod

Hasharon mantiveram uma aleijada doente mental prisioneira num

porão e a violentaram sem parar durante três dias e três noites. Um pai

furioso se descontrolou numa escola em Afula, feriu seis professores e

deixou o diretor-geral inconsciente, só porque a filha não tinha

passado no seu exame de inglês avançado. Em Holon, a polícia

capturou uma gangue de arruaceiros que viviam aterrorizando dezenas

de pensionistas idosos e roubando suas poucas economias. Tudo isso

estava no jornal de ontem. Fima concluiu o artigo com uma dura

predição: “Insensibilidade, violência e crueldade fluem continuamente

nos dois sentidos, do país para os Territórios e dos Territórios para o


país, adquirindo um impulso desastroso, crescendo em progressão

geométrica, causando devastação em ambos os lados da Linha Verde.

Não há saída para este círculo vicioso, a menos que nos encaminhemos

decididamente e sem demora para uma situação abrangente do

conflito, segundo as linhas básicas estabelecidas há cento e um anos

por Micha Josef Berdyczewski nestas simples palavras: ‘Prioridade aos

judeus, não ao judaísmo; prioridade aos vivos, não à herança ancestral’.

Nada mais a acrescentar”.

Fima descobrira essa citação vários anos antes num ensaio intitulado

“Demolição e construção”, num velho jornal que descobrira na casa do

pai de Yael; copiara o ensaio e o colara na frente do rádio, e estava

feliz porque finalmente fizera uso dele. Ao reexaminar o artigo que

tinha escrito, riscou “conflito” e “círculo vicioso”. Depois, irritado,

eliminou “progressão geométrica” e “impulso desastroso”, mas não

conseguiu descobrir o que pôr no lugar. No fim, deixou para o dia

seguinte. Apesar do chá e das pastilhas contra azia, ainda sentia um

mal-estar. Ele realmente devia fazer o que Dimi havia sugerido, pegar

uma lanterna, procurar o cão ferido, tentar salvá-lo. Se possível.

Às duas e meia despiu-se e tomou um banho, porque estava enjoado.

Não conseguiu se refrescar com o jato d’água. O sabão e até mesmo a

água pareciam pegajosos. Ficou parado diante do espelho, nu e mal-

humorado, tremendo de frio e desviando os olhos da brancura pouco

saudável da sua pele, com seus pelos escuros crescendo

incessantemente e o anel de gordura em torno da cintura.

Automaticamente começou a espremer as espinhas vermelhas no peito,

até que conseguiu explodir alguns pontos brancos no meio da gordura.

Na adolescência, essas espinhas começaram a aparecer no rosto e na

testa. Baruch o proibiu de espremê-las. Certa vez disse a Fima: “Elas

vão sumir da noite para o dia quando você tiver uma namorada. Se

você não arranjar uma até os dezessete anos, meu caro, e há razões

para supor que não, eu mesmo vou lhe arranjar uma”. Um sorriso

amarelo e doentio se desenhou nos lábios de Fima ao se lembrar da

noite anterior ao seu décimo sétimo aniversário: como ficara desperto

esperando que o pai esquecesse a promessa, e ao mesmo tempo

rezando para que não esquecesse. O velho, como sempre, só tinha


feito uma brincadeira. E você, como sempre, não conseguiu captar o

sentido real.

E agora, meu caro primeiro-ministro? Será que vai ter início uma

segunda adolescência? Ou quem sabe a primeira ainda não terminou?

Num mesmo dia você teve duas mulheres nos braços, e conseguiu

perder as duas e causar constrangimento, ou melhor, humilhação a

ambas. É claro que você vai ter que continuar esperando seu pai

cumprir a promessa a longo prazo. Veja o que fizeram com você,

imbecil, dissera sua mãe no sonho. E agora, tarde da noite, parado nu e

tremendo de frio diante do espelho do banheiro, ele respondeu a ela

em tom impertinente: “Basta. Deixe-me em paz”.

Ao dizer isso, teve uma visão do rosto de Yael contraído de choque e

nojo ao acender a luz do seu dormitório duas horas antes, e descobri-lo

dormindo completamente vestido debaixo do seu cobertor, com a sua

camisola nas mãos. Ela ergueu a voz exasperada: “Depressa, Teddy,

venha ver isto aqui”. Como se um inseto, uma espécie de Gregor

Samsa, estivesse ocupando a sua cama. Fima devia estar parecendo um

idiota, ou melhor, um doido, quando acordou desnorteado,

espreguiçou-se, sentou-se na cama todo amarrotado de sono, e tentou

explicar-lhes o que havia sucedido. Parecia ter esperanças de que, se

conseguisse se explicar, eles teriam pena e o deixariam voltar a dormir.

Mas só conseguiu se emaranhar mais e mais na sua explicação,

alegando inicialmente que Dimi não tinha se sentido muito bem, para

logo em seguida enfraquecer e mudar sua linha de defesa,

apresentando uma versão invertida dos fatos: Dimi estava bem, mas ele

próprio tivera um mal-estar.

Tobias, como sempre, manteve o autocontrole. Pronunciou uma

única sentença, gelada:

“Desta vez, Fima, acho que você foi longe demais.”

E enquanto Yael punha Dimi na cama, Ted chamou um táxi e até

ajudou Fima a enfiar o braço pela manga do sobretudo, pegou seu

capote, acompanhou-o até embaixo, e deu pessoalmente o endereço

de Fima ao motorista, como se quisesse se certificar, sem sombra de

dúvida, de que Fima não mudaria de ideia e voltaria para bater à sua

porta.

E na verdade, por que não?


Ele lhes devia uma explicação completa.

Naquele momento, parado nu no banheiro, decidiu se vestir

depressa, chamar um táxi, voltar à casa deles, acordá-los e conversar

com eles seriamente, até o amanhecer, se necessário. Era seu dever

alertá-los para o sofrimento do filho. Para o sofrimento em geral. Agitá-

los, confrontá-los com a urgência total do perigo. Com todo o respeito

a veículos movidos a jato, a nossa responsabilidade primeira é com o

menino. Desta vez não desistiria, também abriria os olhos do motorista

do táxi no caminho para lá, abalando qualquer teimosia e crueldade:

contra-atacaria toda aquela lavagem cerebral, e forçaria todos a

reconhecerem como a desgraça estava próxima.

Mas não houve resposta da companhia de táxi e ele então mudou de

ideia e telefonou para Annette Tadmor. Após dois toques, desistiu. Às

três horas meteu-se na cama com a história do Alasca em inglês, que

distraidamente levara consigo da casa de Ted e Yael, sem pedir

permissão. Folheou o livro até que seus olhos se fixaram num capítulo

curioso acerca dos hábitos sexuais dos esquimós: toda primavera

escolhiam uma mulher madura que ficara viúva durante o inverno, e a

ofereciam aos rapazes adolescentes como parte dos ritos de iniciação.

Dez minutos depois desligou a luz, encolheu-se, ordenou a si e ao

seu pau que se acalmassem, e se dispôs a dormir. Porém, mais uma vez

teve a impressão de que um homem cego vagava lá fora pela rua

deserta, batendo com sua bengala no asfalto e nas paredes. Fima saiu

da cama, decidido a se vestir e ir lá fora ver o que realmente ocorria em

Jerusalém quando ninguém estava olhando. Sentiu, com uma espécie

de lucidez noturna, que precisava prestar contas de tudo o que

acontecia em Jerusalém. A expressão banal “vida noturna” subitamente

fugiu do seu sentido literal. Na mente de Fima, separou-se dos cafés

cheios de gente e bulevares iluminados, dos teatros, praças, cabarés;

“vida noturna” adquiriu um sentido diferente, aguçado, gelado, sem

lugar para frivolidades. A antiga expressão aramaica sitra de-itkasia, “o

lado oculto, encoberto”, passou por Fima como uma única nota de celo

vinda do coração das trevas. Um tremor de medo percorreu seu corpo.

Então acendeu a luz, saiu da cama e sentou-se de ceroulas

amareladas no chão em frente ao guarda-roupa marrom. Teve de usar a

força para abrir a gaveta de baixo que vivia emperrada! Durante cerca
de vinte minutos examinou velhos cadernos, panfletos, documentos,

fotografias, anotações e recortes de jornais, até que se deparou com

uma pasta em péssimo estado, em que se lia: “Ministério do Interior —

Departamento do Governo Local”.

Fima tirou do fichário um monte de cartas velhas nos seus envelopes

originais. Examinou sistematicamente um envelope de cada vez,

determinado a não se distrair nem se dispersar. Afinal, encontrou a

carta de despedida de Yael. As páginas estavam numeradas, 2, 3, 4.

Aparentemente a primeira página se perdera. Ou, talvez, tivesse ido

parar noutro envelope. Fima percebeu que o final da carta também

estava faltando. Deitado no chão de ceroulas, começou a ler o que Yael

lhe escrevera quando viajou para Seattle em 1965. Sua caligrafia era

miúda, lembrava um colar, nem feminina nem masculina, porém

redonda e fluente. Talvez fosse este o tipo de caligrafia ensinado em

escolas respeitáveis no século passado. Mentalmente Fima comparou

esta escrita casta com seus próprios garranchos, que se assemelhavam

a um grupo desorganizado de soldados em pânico empurrando-se uns

aos outros enquanto fugiam da batalha.


18

“VOCÊ ESQUECEU DE SI MESMO”

“... terrível em você, e eu simplesmente não entendi. Até agora ainda

não entendo. Não há nenhuma semelhança entre o jovem vibrante e

sonhador, que inspirou e divertiu três moças nas montanhas do Norte

da Grécia, e o funcionário preguiçoso e tagarela que resmunga toda

manhã pelo apartamento, discute consigo mesmo, escuta o noticiário a

cada hora, lê três jornais e os espalha pela casa toda, abre os armários

da cozinha e esquece de fechá-los, mete a cara na geladeira e se queixa

de que não tem isso e não tem aquilo. E que escapa toda noite para a

casa dos amigos, e vai entrando sem ser convidado, de colarinho

imundo, casaco da Guerra da Independência, procurando discussões

políticas com todo mundo até altas horas da madrugada, até que as

pessoas estejam literalmente rogando para você ir embora. Até a sua

aparência externa tem um ar de segunda mão. Você engordou, Effy.

Talvez não seja culpa sua. Aqueles seus olhos vivos e sonhadores

começaram a se voltar para dentro, e agora estão totalmente apagados.

Na Grécia, você conseguia manter Liat, eu e Ilia fascinadas do anoitecer

até o amanhecer, contando histórias sobre os mistérios de Elêusis, o

culto a Dioniso, as Erínias, deusas da vingança, e as Moiras, deusas do

destino, Perséfone no Inferno, e rios fabulosos chamados Estige e Lete.

Não esqueci nada daquilo, Effy: sou uma boa aluna. Embora às vezes

me pergunte se você consegue se lembrar de alguma coisa. Você

esqueceu de si mesmo.

“Nós ficávamos deitadas no chão, perto de uma fonte, e você tocava

flauta. Você era uma nova surpresa a cada momento. Achávamos você
encantador, e também um pouco assustador. Lembro-me de uma noite,

quando Ilia e Liat fizeram uma coroa de folhas de carvalho e puseram

na sua cabeça. Naquele momento eu não me importaria se você tivesse

dormido com uma delas na frente dos meus olhos. Ou até mesmo com

as duas. Na Grécia, naquela primavera de quatro anos atrás, você era

um poeta, mesmo sem escrever uma única palavra. Agora você fica

sentado toda noite, escrevendo páginas e páginas, mas o poeta já se

foi.

“O que nos encantava era o seu desamparo. De um lado você era tão

enigmático, e de outro lado um palhacinho. Uma espécie de criança. A

gente podia ter certeza de que, se houvesse um único caco de vidro em

todo o vale, você seguramente pisaria nele com o pé descalço; se

houvesse uma única pedra solta em toda a Grécia, ela certamente cairia

na sua cabeça; se houvesse uma única vespa, era você que ela iria

picar. Quando você tocava flauta na porta de uma cabana ou na

entrada de uma gruta, a gente às vezes tinha a sensação de que o seu

corpo não era um corpo, e sim um pensamento. E vice-versa: toda vez

que você nos falava à noite sobre pensamentos, podíamos sentir como

se fosse possível tocá-los. Nós três amávamos você, mas em vez de

sentir ciúmes, a cada dia que passava crescia cada vez mais o amor

entre nós. Era um milagre. Liat dormia com você à noite, como se fosse

em nome das três: por meio de Liat você dormia também com Ilia e

comigo. Não tenho explicação para isso, e não necessito de explicação.

Você podia ter tido qualquer uma ou todas nós. Mas no momento em

que você fez a sua escolha, mesmo que a vencedora tenha sido eu, o

encanto se quebrou. Quando você nos convidou a ir a Jerusalém para

conhecer seu pai, a magia tinha desaparecido. Aí, quando começaram

os preparativos para o casamento, você foi ficando cansado e distraído.

Uma vez, me esqueceu no banco. Uma vez, me chamou de Ilia.

Quando assinou aquele contrato maluco com o seu pai, na presença do

escrivão, de repente você disse: ‘Goethe tinha que estar aqui para ver

como o diabo vende a sua alma por um prato de lentilhas’. Seu pai deu

risada e eu me contive para não chorar. Seu pai e eu cuidamos de

todos os preparativos, e você resmungava que a sua vida estava

naufragando em meio a castiçais e frigideiras. Certa vez você se irritou

e berrou comigo dizendo que não suportava um dormitório sem


cortinas: até num bordel havia cortinas. E bateu o pé feito um moleque

mimado. Não que eu me importasse: não tenho nada contra cortinas.

Mas aquele momento foi o fim da Grécia. A sua mesquinhez tinha

começado. Numa ocasião você armou uma cena por causa que eu

estava gastando o dinheiro do seu pai; noutra ocasião, por causa que o

dinheiro do seu pai não tinha chegado a tempo, e em diversas ocasiões

por causa que eu deveria parar de dizer ‘por causa que’ e começar a

dizer ‘porque’. A cada sentença você achava um jeito de me corrigir.

“Não é fácil viver com você. Quando alinho as sobrancelhas ou faço

depilação nas pernas, você fica olhando como se tivesse encontrado

uma aranha na salada. Mas se eu digo que as suas meias fedem,

começa a resmungar que eu deixei de amar você. Toda noite você

reclama, de quem é a vez de levar o lixo para baixo ou quem lavou a

louça ontem, ou que ontem havia mais louça suja do que hoje. E aí

pergunta por que nesta casa só sabemos falar de lixo e louça suja. Eu

sei, Effy, que são coisas pequenas. Poderíamos trabalhar essas coisas.

Poderíamos deixar de lado. Poderíamos nos acostumar. Não se desfaz

uma família por causa do fedor das meias. Eu já nem me incomodo

mais com os seus constantes gracejos sobre aerodinâmica e motores a

jato, que, aos seus olhos, aparentemente só servem para guerras e

matanças. É como se a sua esposa trabalhasse para um sindicato de

assassinos. Dei um jeito de me acostumar com seus gracejos infelizes. E

com os seus resmungos o dia inteiro. E com seus lenços imundos sobre

a mesa na hora da refeição. E com a porta aberta da geladeira, que

você sempre deixa. E com as suas intermináveis teorias sobre quem

matou Kennedy, e por quê. Você virou um falastrão inveterado, Effy.

Você é capaz até de discutir com o rádio, e corrigir a gramática dos

locutores.

“Se você me perguntar quando comecei a me desligar de você,

exatamente em que momento, ou o que você fez de errado comigo,

não saberei responder. A resposta é: eu não sei. O que sei é que na

Grécia você era cheio de vida, e aqui em Jerusalém é como se não

vivesse. Você simplesmente existe, e é como se a sua própria existência

fosse um estorvo. Você é um velho de trinta anos infantil. Quase uma

cópia do seu pai, mas sem o charme europeu, sem a generosidade,

sem o cavalheirismo, e, pelo menos por enquanto, sem o cavanhaque.


Até na cama, você começou a substituir amor por submissão. Você

virou meio bajulador, mas só com mulheres. Com Uri, Micha, Tsvika e

o resto dos seus amigos você vive em constante pé de guerra durante

os seus debates noturnos. De vez em quando você se lembra de fazer

um elogio para mim, Nina ou Shula, aliás, o mesmo elogio a qualquer

uma das três, indistintamente, um pequeno agrado como forma de

pagamento: o bolo estava excelente, belo penteado novo, uma planta

muito bonita. Mesmo que o bolo seja comprado, o penteado não seja

novo, e a planta seja na verdade um vaso de flores. Só para nos manter

caladas e nos impedir de interromper você e seus amigos em suas

eternas discussões sobre o Caso Lavon, ou a queda de Cartago, ou a

crise dos mísseis cubanos, ou o julgamento de Eichmann, ou o

antissemitismo em Pound e Eliot, ou quem fez a previsão correta numa

discussão que vocês tiveram no começo do inverno.

“Em Chanuká, quando fomos à casa do Uri e da Nina para a festa

surpresa que a Shula organizou para comemorar o doutorado do Tsvi,

você tomou conta da noite. Você teve um ataque de inveja. Notei que

toda vez que eu começava a dizer algo, você olhava para mim como

um gato olhando um inseto. Ficava esperando eu interromper um

instante, fazer uma pausa para respirar ou escolher uma palavra, e

então avançava, roubando a minha frase e terminando-a em meu lugar.

Para evitar, Deus me livre, que eu dissesse uma bobagem. Ou desse

uma opinião alinhada com os seus adversários. Ou fizesse você perder

seu tempo. Ou roubasse de você alguma ideia, mínima que fosse.

Porque o espetáculo era todo seu. A noite era toda sua. Como sempre.

O que não impedia que você me acariciasse enquanto falava, por

obrigação. E Nina e Shula também. Você brincava dizendo que era eu

quem mantinha a força aérea no ar, mas nessa discussão você não fez a

menor questão de cobertura aérea. E se saiu muito bem. À uma da

manhã não restava pedra sobre pedra da tese do Tsvika, mesmo que

ele tivesse feito questão de agradecer a você nos reconhecimentos, e o

citasse nas notas de rodapé. E aí você estarreceu a todos construindo

uma tese totalmente nova a partir do entulho. Como um castelo de

cartas. Uma contratese. Quanto mais o Tsvika tentava se defender, mais

rude e impiedoso você ia ficando. Não o deixava terminar uma única

frase. Até que o Uri se levantou, soprou um apito imaginário, e


declarou que você tinha vencido por nocaute e que o Tsvika podia sair

procurando emprego de motorista de ônibus. E você disse: ‘Por que

motorista de ônibus? Talvez a Yael possa colocá-lo num foguete e

despachá-lo para a corte de Fernando e Isabel, para descobrir o que

aconteceu lá e escrever uma nova tese de doutorado’. Quando por fim

a Nina conseguiu mudar o assunto, e passamos a conversar sobre o

filme de Fernandel, você simplesmente adormeceu na poltrona. E

roncou. Com dificuldade arrastei você para casa. Mas quando

chegamos, às três da manhã, você de repente estava totalmente

acordado, agressivo, gozando todo mundo, e começou a reconstituir,

passo a passo, todas as etapas do seu ataque e da sua vitória. E então

declarou que tinha direito a uma foda real, a qual fizera por merecer

com todo o seu esforço e todo o seu suor. Uma foda como as que eram

concedidas aos samurais vitoriosos no Japão antigo. Olhei para você, e

de repente não foi um samurai que vi na minha frente, e sim uma

espécie de estudante rabínico não religioso, corrompido por sofismas e

casuísmos, vibrante porém tolo. Você tinha esquecido completamente

de si mesmo.

“Entenda, Effy: não estou lembrando você da sua grande noite na

casa dos Gefen para me explicar. Ainda não consegui me explicar nem

para mim. Pelo menos não por palavras. Afinal, não é culpa sua ter

criado uma pequena barriga. Não se desmancha um casamento só

porque um dos parceiros corta os pelos de uma das narinas e esquece

a outra. Ou esquece de puxar a descarga. Principalmente porque eu sei

que, apesar da sua mesquinhez e dos seus comentários maldosos, você

ainda é apaixonado por mim, do seu jeito. Talvez mais agora do que na

época em que voltamos da Grécia, e quis o destino que eu fosse a

escolhida, apesar de você mal distinguir entre nós três. Talvez seja algo

assim: você é apaixonado, mas não me ama. Sem dúvida você vai dizer

que isso não passa de um jogo de palavras. ‘Trocadilho’, como diria

numa das suas pequenas discussões com o seu pai. O que eu quero

dizer é que, para você, ser apaixonado é como ser um bebê. É ser

alimentado, trocado e, acima de tudo, adorado o dia inteiro sem parar.

Dia e noite. Vinte e quatro horas.

“Sei que estou me contradizendo: é verdade que me casei com você

porque me senti atraída pela sua infantilidade grega, e agora que estou
deixando você, reclamo que você seja infantil. Certo, você me pegou

em contradição. Divirta-se. Às vezes penso que se você tivesse que

escolher entre o prazer do sexo e o prazer de me pegar em

contradição, esta segunda alternativa lhe daria mais estímulo e prazer.

Principalmente porque não há risco de engravidar. Todo mês você fica

tão histérico, achando que eu o tapeei e que vou lhe jogar um bebê no

colo. Mas isso não o impede de às vezes insinuar aos seus amigos que

o verdadeiro motivo é que os motores a jato são o bebê da Yael.

“Alguns meses atrás — acho que você já se esqueceu — acordei

antes de clarear o dia e disse: ‘Effy, já basta. Eu vou embora daqui’.

Você não perguntou por quê, não perguntou aonde eu ia, perguntou:

‘Vai como? Numa vassoura a jato?’. E isso traz à tona o seu ciúme do

meu trabalho. Que se manifesta nos seus comentários maldosos. É

verdade, não estou autorizada a divulgar detalhes do projeto. Mas você

enxerga este segredo como uma traição. Como se eu tivesse um

amante. E não um amante qualquer, mas alguém inferior, desprezível.

Como é possível que a mulher que teve a rara honra de se tornar sua

esposa não se contente com isso? Como é possível que ela tenha algum

outro interesse além de você? E ainda mais, um trabalho tão escuso?

Não que você quisesse entender o projeto mesmo que pudesse lhe

contar. Você não demonstraria o mínimo interesse. Ao contrário,

depois de uns dois minutos a sua atenção começaria a se dispersar,

provavelmente você adormeceria ou mudaria de assunto. Afinal, você

não consegue entender nem como funciona um ventilador elétrico.

Certo. Estamos chegando ao ponto.

“Seis semanas atrás, quando recebi o convite de Seattle, e aqueles

dois coronéis da força aérea vieram no sábado à noite conversar com

você, explicar que na verdade o convite tinha sido iniciativa deles, e

que o meu trabalho com os americanos nos próximos anos era de

importância nacional, você simplesmente zombou deles e de mim.

Começou a despejar uma aula sobre a insanidade histórica associada à

expressão ‘importância nacional’. Você se comportou como um xeque

árabe. Encerrou a conversa dizendo mais ou menos para eles tirarem as

mãos da sua propriedade, e expulsando-os do apartamento. Até aquela

noite, havia pelo menos uma parte de mim que queria convencê-lo a

vir comigo. Dizem que a paisagem de Seattle é um sonho. Fiordes,


montanhas cobertas de neve. Você poderia assistir a palestras na

universidade. Quem sabe a mudança de ar e de paisagem, o

desligamento dos jornais e noticiários israelenses, fizesse a fonte voltar

a jorrar. Quem sabe longe do seu pai e dos seus amigos, e de

Jerusalém, você fosse capaz de voltar a escrever algo de verdade. Em

vez de polêmicas mesquinhas repletas de mordidas e ferroadas.

“Procure entender, Effy. Eu sei muito bem o que sempre fui aos seus

olhos: Yael Levin, a menininha de Yavne’el. Meio bobinha, mas

bastante agradável. Simpática, porém limitada. No entanto, os nossos

especialistas, e também os americanos, acreditam que o meu projeto

pode resultar em algo significativo. Para eles, eu tenho importância. É

por isso que decidi ir. Para você, eu não tenho importância, mesmo

que seja apaixonado por mim. Ou apaixonado por ser apaixonado por

mim. Ou tão absorto em suas próprias coisas que não pode perder

tempo ou energia deixando de me amar.

“Se quiser, pode vir junto. Mando-lhe a passagem. Ou o seu pai pode

pagar. E se não quiser, vamos ver o que o tempo nos traz. De propósito

não mencionei aqui a minha dor mais profunda. A coisa que aos seus

olhos pode ser corrigida rapidamente, de uma hora para outra. E sobre

isso eu não digo nada, e nem você. Talvez seja melhor que estejamos

separados. Às vezes me parece que só um golpe duro, uma verdadeira

desgraça, poderia tirar você do seu nevoeiro: seus jornais, discussões,

noticiários. Você já foi profundo, agora parece viver superficialmente a

maior parte do tempo. Não se ofenda, Effy. E não comece a procurar

meios de contradizer tudo o que eu escrevi, nem contra-argumentar,

nem desmontar a carta até não restar pedra sobre pedra. Não procure

me derrotar. Não sou sua inimiga. Derrotar-me não vai lhe adiantar

nada. Talvez a minha viagem para a América seja o choque capaz de

trazer você de volta para si mesmo. Tudo bem, é um chavão. Eu sabia

que você iria dizer isso. Quando eu tiver ido embora, você estará livre

para se apaixonar. Ou pode continuar apaixonado por mim sem ter

que aguentar as minhas calcinhas secando na frente do aquecedor no

inverno. E mais uma coisa: Tente se concentrar. Procure não passar o

dia todo jogando palavras fora, implicando e corrigindo tudo e todos.

Não se torne um resmungão amargurado. De qualquer forma, ninguém

presta atenção. Quem sabe você não deva ir procurar Liat? Ou Ilia? Ou

À
voltar para a Grécia? Às vezes, quando tenho que ficar no trabalho dois

dias seguidos, trabalhando sozinha à noite, dando só umas cochiladas

para não perder muito tempo, de repente tenho...”

Fima dobrou novamente a carta interrompida, colocando-a de volta

no envelope. Depois pôs o envelope de volta na pasta do Ministério do

Interior — Departamento do Governo Local. Recolocou a pasta na

gaveta inferior. Eram três e meia. Um galo cantava ao longe, um cão

latia insistentemente no escuro, e o cego ainda batia com sua bengala

na rua deserta. Após um instante, julgou ouvir o muezim chamando os

fiéis na aldeia de Beit Safafa. Voltou para a cama, apagou a luz, e

começou a compor mentalmente o final da carta que estava faltando.

No instante seguinte adormeceu. Tivera um longo dia.


19

NO MOSTEIRO

No sonho Uri apareceu no meio de uma tempestade de neve para

intimá-lo a deixar Annette, que estava morrendo de uma complicação

de parto num hospital naval inglês. Viajaram de trenó através de uma

floresta branca até chegarem a uma construção que se assemelhava

vagamente ao Mosteiro da Cruz, em Jerusalém. Pessoas feridas e

moribundas, com os membros esmagados, bloqueavam o caminho,

rolando pelo chão nos corredores, gemendo, sangrando. Uri disse:

“São apenas cossacos; pode pisar neles”. Finalmente, atrás do mosteiro,

descobriram um pequeno e gostoso jardim, onde havia uma taverna

grega com um terraço coberto por folhas de videira, e mesas postas

para a refeição. Entre as mesas, havia uma espécie de liteira. Quando

Fima afastou as cortinas de veludo, viu sua esposa amando, aos prantos

porém cheia de desejo, um homem escuro e enrugado, deitado

debaixo dela enquanto emitia débeis gemidos. De repente, num

lampejo de horror, ocorreu-lhe que ela estava copulando com um

cadáver. Era o cadáver do jovem árabe do noticiário, assassinado em

Gaza com uma bala na cabeça.


20

FIMA SE PERDE NA FLORESTA

Após anotar o sonho no seu caderno, cochilou até as sete horas.

Amarrotado, desgrenhado, detestando o cheiro noturno do seu corpo,

obrigou-se a levantar. Deixou de lado os exercícios na frente do

espelho. Barbeou-se sem se cortar. Tomou duas xícaras de café. A

simples ideia de pão com geleia ou iogurte já lhe deu azia. Recordava-

se vagamente de que nessa manhã precisava cuidar de um assunto

específico que não podia ser adiado, mas não houve jeito de se lembrar

o que era, e nem por que era tão urgente. Então resolveu descer até a

caixa de correio para pegar a carta que vira ao chegar de madrugada, e

também para buscar o jornal. Decidiu também que dedicaria no

máximo quinze minutos à leitura das notícias. Depois se sentaria

imediatamente para elaborar sem delongas o artigo que não conseguira

terminar durante a noite.

Então ligou o rádio e descobriu que o noticiário já estava no fim.

Esperava-se que o tempo abrisse em alguns pontos durante o dia. Ao

longo da planície costeira havia possibilidade de chuvas isoladas,

enquanto nos vales da região norte havia sérios riscos de geada. Os

motoristas foram advertidos dos perigos de circular em estradas

molhadas, e solicitados a reduzir a velocidade bem como evitar freadas

bruscas e conversões súbitas.

“O que há com eles?”, resmungou Fima. “Por que não me deixam em

paz? O que acham que eu sou? Motorista? Agricultor nos vales do

Norte? Banhista da região costeira? Por que somos advertidos e

solicitados, quando alguém deveria assumir a responsabilidade e dizer:

É
‘Eu advirto. Eu solicito’. É loucura. O país está desmoronando, e eles se

preocupam com uma geada. Na realidade, talvez a salvação do desastre

seja exatamente uma freada brusca e uma súbita mudança de rumo.

Mas até isso é muito duvidoso.”

Fima desligou o rádio e telefonou para Annette Tadmor: devia-lhe

um pedido de desculpas pelo seu comportamento. Na pior das

hipóteses, devia mostrar algum interesse pelo seu bem-estar. Sabe-se

lá, talvez o marido já tivesse enjoado da sua novela italiana, voltado

mansamente no meio da noite, arrastando as malas, envergonhado,

cheio de culpa, prostrando-se e beijando seus pés. Seria possível que

ela confessasse a ele o que sucedera? Seria possível o marido aparecer

aqui com um revólver carregado?

Por causa do hábito ou da distração matinal, discou por engano o

número de Tsvi Kropotkin. Tsvi soltou um risinho e disse que, embora

estivesse se barbeando naquele momento, já tinha se perguntado o que

teria acontecido com Fima: será que ele esqueceu de nós?

Fima não captou o sarcasmo do amigo:

“O que é isso, Tsvika? Não esqueci e não vou esquecer. Só achei que,

para variar, não deveria telefonar tão cedo. Está percebendo, pouco a

pouco eu vou melhorando. Quem sabe ainda haja esperança para

mim.”

Tsvi prometeu ligar em cinco minutos, logo que acabasse de se

barbear.

Meia hora depois Fima engoliu seu orgulho e telefonou de novo:

“E aí? Quem esqueceu quem? Você pode me dar uns dois minutos?”

E sem esperar resposta disse que precisava de conselho sobre um

artigo que começara a escrever durante a noite, e agora pela manhã

não tinha mais certeza se concordava consigo mesmo. A questão era a

seguinte. Dois dias antes o jornal Ha’arets publicara uma notícia sobre

um discurso que Günter Grass fizera para um público estudantil em

Berlim. Fora um discurso decente, corajoso. Grass denunciara o

período nazista e prosseguira denunciando paralelos entre os crimes de

Hitler e atrocidades praticadas nos nossos dias, incluindo a habitual

comparação com Israel e a África do Sul. Até aqui tudo bem.

“Fima”, disse Tsvi, “eu li a reportagem. Nós conversamos sobre ela

anteontem. Vá direto ao assunto. Explique o seu problema.”


“Já”, disse Fima, “já estou chegando lá. Mas, antes, me explique só

uma coisa, Tsvika. Por que esse Grass insiste em se referir aos nazis

como ‘eles’, enquanto você e eu, esses anos todos, sempre que

escrevemos sobre a opressão nos Territórios, até mesmo sobre a

Guerra no Líbano, sempre e sem exceção usamos o pronome nós? E

Grass chegou realmente a ser um soldado nazista! Vestiu o uniforme da

Wehrmacht! Tanto ele como aquele outro, Heinrich Böll. Usava

suástica e tinha que fazer a saudação nazista todas as manhãs, e berrar

‘Heil Hitler’ junto com todos os outros. E agora diz ‘eles’. Ao passo que

eu, que jamais pus os pés no Líbano, que nunca servi nos Territórios,

de modo que a minha consciência está mais limpa que a de Günter

Grass, digo e escrevo regularmente ‘nós’. ‘Os nossos erros.’ E até

mesmo ‘o sangue inocente que nós derramamos’. O que significa esse

‘nós’? Algo que restou da Guerra da Independência? Estamos sempre

prontos, estamos aqui, somos o Palmach?1 Que história é essa de ‘nós’?

Em todo caso, quem é esse ‘nós’? Eu e o rabino Levinger? Você e o

rabino Kahane? O que significa isso? Já pensou nisso, professor? Talvez

tenha chegado o momento de você e eu e todos nós seguirmos o

exemplo de Grass e Böll. Talvez devamos todos começar a dizer, de

forma consciente e enfática: ‘eles’. O que você acha?”

“Veja”, disse Tsvi Kropotkin com voz cansada, “no caso deles tudo já

terminou, enquanto aqui isso ainda se arrasta, portanto...”

“Você ficou louco?”, interrompeu Fima numa explosão de raiva.

“Você sabe o que está dizendo? O que quer dizer isso, ‘no caso deles

tudo já terminou, enquanto aqui isso ainda se arrasta’? Que diabos você

quer dizer com a palavra isso? E, segundo você, o que é exatamente que

já terminou em Berlim e ainda se arrasta em Jerusalém? Você está

doido, professor? Você está apenas colocando eles e nós exatamente

no mesmo nível! Pior ainda, pode-se deduzir das suas palavras que

neste momento os alemães têm uma vantagem moral sobre nós,

porque eles já terminaram, e nós, pobrezinhos, ainda arrastamos a

situação. Quem você pensa que é? George Steiner? A rádio de

Damasco? Este é precisamente o tipo de comparação tendenciosa que

até Grass, o veterano da Wehrmacht, despreza e considera demagogia!”

A paixão de Fima arrefeceu. No seu lugar surgiu tristeza. E ele disse

no tom que se usa para falar com uma criança que se machucou com a
chave de fenda porque se recusou obstinadamente a ouvir os

conselhos dos adultos:

“Você pode ver por si mesmo, Tsvika, como é fácil cair na armadilha.

Veja como é fina a linha sobre a qual temos que caminhar.”

“Calma, Fima”, pediu Tsvi Kropotkin, embora Fima já estivesse

calmo. “Não são nem oito da manhã. Por que está saltando por cima de

mim desse jeito? Passe aqui uma noite dessas; vamos sentar e conversar

sobre o assunto com calma. Tenho um pouco de conhaque francês

Napoleón. A irmã da Shula trouxe de presente quando voltou. Mas não

esta semana. É final de semestre e eu estou por aqui de trabalho. Estão

me nomeando chefe do departamento. Quem sabe você vem na

próxima semana? Você parece que não está bem, Fima, e também a

Nina disse para a Shula que você está outra vez meio deprimido.”

“E daí, qual é o problema de ainda serem oito horas? Será que a

nossa responsabilidade pela língua só existe durante o expediente?

Será que ela só funciona nos dias de semana, das oito às quatro, com

uma pausa de uma hora para o almoço? Estou falando sério. Esqueça a

Shula e a Nina e o seu conhaque por um momento. É uma época boa

para tomar conhaque. E eu estou deprimido só porque vocês não me

parecem suficientemente deprimidos considerando a seriedade da

situação. Você já leu o jornal hoje? Eu gostaria que você considerasse o

que eu disse como uma proposta para a sua agenda de hoje. No

contexto da defesa da linguagem contra a poluição crescente. Estou

sugerindo que, de agora em diante, pelo menos com referência às

atrocidades nos Territórios, paremos de usar a palavra nós.

“Fima”, disse Tsvi, “espere um minuto. Tente botar um pouco de

ordem na sua cabeça. Qual é o primeiro ‘nós’ e qual é o segundo? Você

se complicou, meu caro. Mas vamos deixar isso de lado por enquanto.

Vamos conversar sobre o assunto na semana que vem. Pessoalmente.

Não podemos chegar a uma conclusão assim às pressas, por telefone. E

eu já tenho que correr.”

Fima não estava disposto a desistir nem deixar de lado.

“Você se lembra daquele verso famoso do poema de Amir Gilboa:

‘De súbito um homem acorda de manhã, e sente que é um povo, e

começa a andar’? É exatamente a este absurdo que eu estou me

referindo. Em primeiro lugar, professor, a verdade, mão no coração.


Alguma vez você já acordou de manhã e sentiu que era um povo? No

máximo depois do almoço. Quem é que consegue acordar de manhã e

sentir que é um povo? E começar a andar? Talvez a Geula Cohen

consiga. Quem é que acorda de manhã e não se sente uma merda?”

Tsvi Kropotkin caiu na gargalhada. O que estimulou Fima a um novo

discurso:

“Mas escute. É sério. Chegou a hora de parar de se sentir como um

povo. Chegou a hora de nem começar a andar. Vamos acabar com essa

baboseira. ‘Uma voz me chamou e eu fui.’ ‘Aonde nos enviarem — lá

iremos.’ Essas frases têm uma motivação semifascista. Você não é um

povo inteiro. Eu não sou um povo. Ninguém é um povo. Nem de

manhã nem de noite. E, por falar nisso, não somos mesmo um povo.

No máximo, talvez uma tribo.”

“Lá vem você de novo com o seu ‘nós’”, ironizou Tsvi. “Você não está

dizendo coisa com coisa, Fima. Decida-se: Nós somos ‘nós’ ou nós não

somos ‘nós’? Não se fala de corda em casa de enforcado. Não faz mal.

Sinto muito, mas agora tenho mesmo que desligar e correr. Aliás, ouvi

dizer que o Uri vai estar de volta neste fim de semana. Vamos combinar

alguma coisa para o sábado à noite. Tchau.”

“É claro que não somos um povo”, insistiu Fima, surdo e flamejante,

cheio de razão. “Somos uma tribo primitiva. Escória, isso é o que

somos. Mas aqueles alemães, franceses e ingleses que não venham nos

dar lição de moral. Comparados a eles, nós somos santos. Para não

falar do resto. Você viu o jornal hoje? As bobagens que Shamir disse

ontem em Netanyia? E o que fizeram com aquele velho árabe na praia

de Ashdod?”

Quando Tsvi se desculpou e desligou, Fima continuou o seu

monólogo com o ruído agudo e indiferente que vinha do telefone:

“E além do mais, estamos ferrados.”

Nesse instante, estava se referindo simultaneamente ao Estado de

Israel, à esquerda moderada, a si mesmo e ao amigo. Mas após colocar

o fone no gancho, pensou melhor e mudou de opinião: não devemos

ficar histéricos. Quase ligou novamente para Tsvika para adverti-lo do

perigo do desespero e da histeria, à espreita por toda parte nos dias de

hoje. Envergonhou-se da sua grosseria com o amigo de tantos anos,

um homem tão erudito e inteligente, e uma das últimas vozes a manter


a sanidade. Mesmo que ficasse um pouco entristecido com o

pensamento de que aquele acadêmico medíocre seria agora chefe de

departamento e sentaria na mesma cadeira que seus ilustres

predecessores, comparado aos quais ele não passava de um pigmeu.

Nessa altura Fima de repente se lembrou de como, dezoito meses

antes, ao ser internado no Hospital Hadassh para uma operação de

apêndice, Tsvika recrutara a ajuda do seu irmão médico. E também

recrutara a si mesmo e a Shula. De fato, os dois mal se afastaram da

cabeceira de Fima. Quando teve alta, Tsvi, com os Gefen e Teddy,

organizou um revezamento vinte e quatro horas por dia para cuidarem

dele. Na época Fima teve febre alta, comportou-se como uma criança

mimada e atormentou a todos incessantemente. E agora, aqui estava

ele não só magoando Tsvi mas também interrompendo-o enquanto se

barbeava e talvez fazendo com que se atrasasse para sua aula na

universidade. E justamente quando ele estava prestes a se tornar chefe

de departamento. Nessa mesma noite, decidiu Fima, telefonaria de

novo. Pediria desculpas, mas ainda tentaria explicar sua posição desde

o início. Mas dessa vez com calma e utilizando uma lógica fria e

racional. E não se esqueceria de mandar um beijo para Shula.

Fima correu para a cozinha porque lhe pareceu que, antes da sua

conversa com Tsvika, colocara água para ferver no seu novo bule

elétrico, que, nessa altura, provavelmente já havia seguido o caminho

do seu antecessor. A meio caminho, foi interrompido pelo toque do

telefone, e ficou empacado, não sabendo o que fazer primeiro. Após

um momento de hesitação, pegou o telefone e disse para o pai:

“Só um momento, Baruch. Há algo queimando na cozinha.”

Saiu em disparada para encontrar o bule novo inteiro e saudável,

reluzindo sobre o tampo de mármore da pia. Mais um alarme falso.

Mas, na pressa, Fima derrubou o rádio da prateleira e ele se quebrou.

Voltou ao telefone e disse, ofegante:

“Tudo bem. Estou escutando.”

O velho só queria avisar que tinha encontrado os pedreiros para

Fima, e que eles viriam na semana seguinte para fazer o serviço de

massear e pintar o apartamento. “São árabes do povoado de Abu Dis,

de modo que, do seu ponto de vista, é estritamente kasher.” O que fez o

velho imediatamente se lembrar de uma encantadora história hassídica.


Por que, segundo a tradição judaica, os justos no Paraíso têm o direito

de escolher entre um banquete onde seja servido o Leviatã e outro

onde seja servido o touro selvagem? A resposta é que sempre poderá

existir um judeu ultraexigente que insista em comer peixe, achando

que nem o Todo-Poderoso, Bendito seja, é confiável para manter a

carne kasher.

E foi em frente, explicando a Fima o sentido aparente e o sentido real

da anedota, até Fima ter a impressão de que o cheiro característico de

seu pai tinha conseguido se infiltrar nos fios telefônicos: um odor

europeu, contendo perfume suave misturado com nuances de roupas

não arejadas, cheiro de peixe cozido com cenouras, e a fragrância de

licores adocicados. Sentiu uma súbita repugnância, e logo em seguida

envergonhou-se. Sentiu uma necessidade ancestral de provocar o pai,

de desafiar tudo o que fosse sagrado para ele, até fazê-lo perder a

paciência. E disse:

“Escute, papai. Preste atenção. Em primeiro lugar, sobre o assunto

dos árabes. Já lhe expliquei mil vezes que eu não acho que eles sejam

santos. Por favor, entenda que a diferença entre nós não tem nada a ver

com kasher e não kasher, nem com inferno e paraíso. É simplesmente uma

questão de imagem humana, papai. Nossa e deles.”

Baruch concordou de imediato:

“Naturalmente”, respondeu num tom musical, “ninguém nega que o

árabe também seja criado à imagem do Senhor. Exceto os próprios

árabes, Fimuchka: infelizmente, para nosso pesar, eles não se

comportam como seres humanos criados à imagem de Deus.”

Fima esqueceu instantaneamente o seu voto solene de evitar a todo

custo discussões políticas com o pai. Começou a explicar

apaixonadamente, de uma vez por todas, que não devemos nos tornar

como o carteiro ucraniano bêbado que bateu no seu cavalo até matar

quando este parou de puxar a carroça. Será que os árabes nos

Territórios são os nossos burros de carga? Você achava o quê, que eles

concordariam para sempre em ser nossos lenhadores e fornecedores

de água? Que concordariam em ser nossos servos domésticos por toda

a eternidade, amém? Será que eles não são seres humanos? Qualquer

Zâmbia e Gâmbia são países independentes hoje em dia, e só os árabes

nos Territórios têm que continuar até a última geração a limpar calados
a merda dos nossos banheiros, varrer as nossas ruas, lavar os nossos

pratos nos restaurantes, e limpar as bundas em nossos asilos de idosos,

e ainda dizer muito obrigado? Você concordaria se o mais ínfimo dos

antissemitas ucranianos planejasse um futuro como esse para os

judeus?

A expressão “servos domésticos”, ou talvez “o mais ínfimo dos

antissemitas ucranianos”, fez o velho se lembrar de uma história que se

passava num pequeno vilarejo na Ucrânia. Como de hábito, na

narrativa trouxe junto uma sequência de explicações e lições de moral.

Finalmente Fima desistiu e berrou que não precisava de decoradores

e que Baruch parasse de uma vez por todas de se meter na sua vida, de

oferecer dinheiro, de reformar o apartamento, de arranjar uma mulher

para ele.

“Talvez você tenha se esquecido, papai, mas afinal já sou um homem

de cinquenta e quatro anos.”

Quando Fima terminou, o pai respondeu placidamente:

“Muito bem, meu caro. Muito, muito bem. Pelo jeito eu me enganei.

Errei. Pequei. Transgredi. E assim por diante. Neste caso, vou tentar

arranjar um bom pintor judeu kasher. Sem ranço de exploração

colonialista. Só espero que ainda haja no nosso país um exemplar

desse quilate.”

“É exatamente isso!”, exclamou Fima triunfante. “Em todo este nosso

miserável país, não se consegue encontrar um único pedreiro judeu,

nem um enfermeiro nem um jardineiro. Foi isto que os seus Territórios

fizeram com o sonho sionista! Os árabes estão construindo a terra,

enquanto ficamos sentados conversando sobre o Leviatã e o touro

selvagem. E depois os matamos diariamente, e também os filhos deles,

só porque eles têm o atrevimento de não se sentirem felizes e

agradecidos pelo privilégio de limpar os esgotos do povo eleito até a

chegada do Messias!”

“O Messias”, refletiu Baruch com tristeza. “Talvez ele já esteja entre

nós. Alguns dizem que sim. E talvez, só por causa de sujeitos

maravilhosos como você, ele ainda esteja se ocultando. Há uma

história sobre o rabi Uri de Strelisk, o Santo Serafim, avô do poeta Uri

Tsvi Grinberg, que um dia estava vagando perdido na floresta...”


“Que continue vagando!”, interrompeu Fima. “Que fique perdido na

floresta para sempre! Ele e o neto! E também o Messias e também o

burro dele!”

O velho tossiu e limpou o pigarro na garganta, como um professor

prestes a começar uma palestra, mas em vez de dar uma palestra, ele

perguntou tristemente:

“Então este é o seu humanismo? Esta a voz dos acordos de paz? O

amante da humanidade espera que os seus semelhantes fiquem

perdidos na floresta? O defensor do islã roga para que judeus

santificados pereçam?”

Fima ficou momentaneamente atônito. Arrependeu-se de desejar que

a desgraça se abatesse sobre o rabino perdido na floresta. Mas se

recompôs depressa e reagiu com um contra-ataque inesperado pelos

flancos:

“Escute, Baruch. Preste atenção. A propósito do islã. Quero ler

palavra por palavra o que está escrito aqui na enciclopédia sobre a

Índia.”

“‘Aíndia’ vem você me perturbar!”, replicou o velho com um

trocadilho inesperado. “O que é que a Índia tem a ver com isso? O

fantasma que tomou conta de vocês, Fimuchka, de você e dos seus

amigos, não é um fantasma indiano; é um fantasma bem europeu. É

uma desgraça imensa que jovens valorosos como vocês tenham

decidido vender toda a herança judaica por um pote de lentilhas de

pacifismo europeu falsificado. Vocês querem ser Jesus de Nazaré.

Querem ensinar aos cristãos como se dá a outra face. Amam nossos

inimigos e odeiam Uri Tsvi e até mesmo o seu avô, o Santo Serafim.

Mas nós já estamos cheios desse famoso humanismo europeu. As

nossas costas já provaram bastante o sabor da sua querida civilização

ocidental. Cansamos de experimentar, de Kishinev a Auschwitz. Vou

lhe contar uma história real sobre um cantor de sinagoga que uma vez

naufragou — que Deus nos livre! — numa ilha deserta nas Grandes

Festas. E lá está um judeu solitário, no meio do mundo e no meio dos

tempos, e se pergunta...”

“Espere um minuto”, interrompeu Fima, “você com seus

maravilhosos cantores de sinagoga. Chmielnicki e Hitler equivalem à

civilização ocidental tanto quanto a Índia equivale a um país árabe.


Que ideia ridícula! Para sua informação, meu caro senhor, se não fosse

a civilização ocidental não restaria de nós nem mesmo o mijo na

parede. Quem você acha que sacrificou dez milhões de vidas para

derrotar Hitler? Não foi a civilização ocidental? Inclusive a Rússia?

Inclusive os Estados Unidos? Quem foi que nos salvou, o seu Santo

Rabi de Strelisk? Foi o Messias quem nos deu o Estado? É Uri Tsvi quem

nos dá tanques e jatos de presente, e despeja três bilhões de dólares

por ano, em dinheiro, para que possamos continuar nos comportando

como vândalos? Tome nota, pai: toda vez na história em que os judeus

perderam a cabeça e começaram a navegar pelo mundo com ajuda de

mapas messiânicos, em vez de mapas reais, universais, milhões

pagaram com suas vidas. E, aparentemente, até agora ainda não

conseguimos meter nas nossas teimosas cabeças judias que o Messias é

na verdade o nosso anjo da morte. Esta é a verdade em poucas

palavras, Baruch: o Messias é o nosso anjo da morte. Portanto, é válido

discutir entre nós mesmos qual o caminho a seguir; é um tema de

análise legítimo. Mas sob uma condição absoluta: aonde quer que

decidamos ir, devemos utilizar mapas reais, universais. E não mapas

messiânicos.”

O velho de repente soltou um assobio, como que surpreso com a

sabedoria de Fima e sua própria tolice. Tossiu, gemeu, talvez quisesse

dizer alguma coisa, mas Fima, entusiasmado com a sua própria

eloquência, prosseguiu:

“Por que diabos todos nós sofremos lavagem cerebral para nos fazer

acreditar que o conceito de igualdade humana é alheio ao judaísmo,

um artigo gói que não está de acordo com os nossos preceitos, um

pacifismo cristão tendencioso? Por outro lado a mistura confusa de

ideias inventadas por qualquer rabino messiânico, o avô do Gush

Emunim, que tenha costurado uma colcha de retalhos de Hegel, Judá

Halevi e o rabi Lev de Praga, é súbito considerada a pura essência do

judaísmo, vinda diretamente do monte Sinai? O que é isso? É loucura!

Segundo vocês, o mandamento ‘Não matarás’ é um conceito estranho

ao judaísmo, um conceito pacifista cristão, proibido. Enquanto o rabi

Georg Wilhelm Friedrich Hegel, o protonazista, é de repente o legítimo

herdeiro do ensinamento judaico! Vou lhe dizer, pai, Yosef Haim

Brenner tinha mais judaísmo no seu dedo mínimo do que todos os seus
fósseis encapotados e os seus psicopatas de solidéus de tricô. Uns

cagam e andam no Estado porque dizem que o Messias ainda não

chegou; os outros cagam e andam para o Estado porque dizem que é

uma situação provisória que podemos desmanchar agora que o Messias

já está batendo à nossa porta. Ambos os grupos cagam e andam para o

mandamento ‘Não matarás’ porque acham que há coisas mais

importantes: eliminar autópsias ou descobrir a tumba da nossa

ancestral Jezabel.”

“Fimuchka”, suspirou o pai, “tenha piedade. Eu sou um velho judeu.

Não tenho nada a ver com esses mistérios. Talvez eu seja um

anacronismo, quem sabe? Meu próprio filho é como um golem que se

voltou contra o seu criador. Não fique bravo, querido. Só usei a palavra

golem porque você mencionou o rabi Lev de Praga. Aliás, gostei muito

do que você disse sobre os mapas universais. Amém, que assim seja.

Astuto. Você acertou em cheio. Mas e daí? Talvez o nosso rabi possa

nos ensinar em que loja podemos comprar esses mapas? Será que o

rabi pode abrir os meus olhos? Fazer uma verdadeira bondade para o

seu pai? Não? Não tem importância. Vou lhe contar uma coisa linda e

profunda que o rabi Lev de Praga disse certa vez quando passou pela

catedral. Aliás, você sabe o sentido original da expressão ‘verdadeira

bondade’?”

“Tudo bem, tudo bem”, concedeu Fima. “Que assim seja. Você me

poupa da história do rabi Lev e em troca eu aceito os seus pintores.

Mande-os no domingo de manhã, e pronto.” E para impedir a resposta

do pai, apressou-se em repetir as palavras que o amigo utilizara antes:

“Vamos conversar sobre o outro assunto pessoalmente. Agora preciso

correr”.

Tinha a intenção de mascar uma pastilha contra azia e descer até o

centro comercial para mandar consertar o rádio quebrado, ou comprar

outro se necessário. Mas subitamente surgiu diante de seus olhos, tão

vividamente que quase podia tocá-la, a imagem de um frágil judeu da

Europa Oriental, olhos míopes, envolto no xale de orações, vagando

numa floresta escura, murmurando versos bíblicos para si mesmo,

ferindo os pés nas pedras pontiagudas, enquanto a neve caía suave e

silenciosamente, uma ave noturna emitia um grito sinistro, e os lobos

uivavam na escuridão.
Fima foi tomado pelo pavor.

No instante em que colocou o rádio de volta em seu lugar, ocorreu-

lhe que não tinha perguntado ao pai como estava de saúde. Esquecera

sua intenção de levá-lo ao hospital para exames. Até se esquecera de

notar se o velho ainda tinha um assobio no peito. Imaginou ter ouvido

um chiado pequeno, mas não tinha certeza: podia ser apenas um

ligeiro resfriado. Ou podia ser que o pai estivesse cantarolando uma

cantiga hassídica em tom agudo. Ou talvez o ruído fosse apenas um

defeito na ligação telefônica. Todos os sistemas do país estavam ruindo

e ninguém se importava. Este também era um subproduto da nossa

obsessão dos Territórios. A verdade irônica era, conforme algum

historiador no futuro iria descobrir, que na realidade foi Nasser quem

ganhou a Guerra dos Seis Dias. A nossa vitória nos condenou à

destruição. O gênio messiânico que o sionismo tinha conseguido

prender na garrafa saltou livre no dia em que o Shofar soou no Muro das

Lamentações. Foi ele quem riu por último. E mais do que isso, para

seguir resolutamente esta linha de raciocínio até o seu amargo fim, sem

fugir da verdade mais indigesta, talvez tenha sido Hitler, e não Nasser,

a dar a risada final. No fim das contas, ele continua a perseguir o povo

judeu impiedosamente. Tudo o que acontece agora conosco provém

de Hitler, de um modo ou de outro. Agora, o que é que eu ia fazer?

Telefonar. Era algo urgente. Mas para quem? O que resta a dizer? Eu

também estou perdido na floresta. Como o velho e santo rabino.


21

MAS O VAGA-LUME SUMIU

E por ter se esquecido de trancar a porta quando trouxera o jornal

para cima de manhã cedo, e por estar absorto numa tentativa inútil de

consertar o rádio, de repente olhou para cima e viu Annette Tadmor

em pé na sua frente, de casaco vermelho e boina azul-marinho, que lhe

dava um ar de jovem camponesa francesa. Os olhos lacrimejavam e as

bochechas estavam vermelhas por causa do frio lá fora. Causou a Fima

uma impressão infantil, pura, dócil e dolorosamente atraente. De

imediato lembrou-se do que lhe fizera dois dias antes e se sentiu sujo.

A fragrância do seu perfume caro, talvez ligeiramente misturada com

um toque de bebida alcoólica, despertou nele uma combinação de

arrependimento e desejo.

“Passei a manhã toda tentando telefonar para você”, disse ela, “mas o

telefone estava ocupado o tempo todo. Pode-se pensar que você dirige

uma comissão de paz aqui da sua casa. Desculpe invadir assim. Vou

ficar só um minuto, de verdade. Você por acaso não tem um gole de

vodca em casa? Não faz mal. Escute, acho que esqueci um brinco aqui.

Eu estava tão confusa. Você deve achar que eu sou louca. O que eu

gosto em você, Fima, é que não ligo a mínima para o que você pensa

de mim. É como se fôssemos irmão e irmã. Não consegui me lembrar

de quase nada do que eu disse aqui. E você é tão gentil, não riu de

nenhuma das bobagens que eu disse. Você não achou um brinco?

Prateado, comprido, com uma pedrinha brilhante?”

Fima hesitou, tomou a decisão, afastou o jornal que estava ocupando

a poltrona, e fez Annette se sentar. Em seguida, fez com que se


levantasse de novo e ajudou-a a se desvencilhar das mangas do casaco

vermelho. Esta manhã ela parecia maravilhosa, inteligente, cheia de

tato e muito atraente. Correu para a cozinha, ligou o bule e verificou se

restava alguma coisa do Cointreau. Na volta, disse:

“Sonhei com você a noite passada. Você estava tão linda e feliz

porque seu marido tinha voltado e você o perdoou por tudo. Agora

você está ainda mais linda do que no sonho. Você fica realmente bem

de azul-marinho. Deveria usar com mais frequência. Que tal

colocarmos uma pedra sobre o que aconteceu anteontem? Estou com

tanta vergonha de mim. A sua presença mexeu comigo, e parece que

eu me comportei como o famoso Estuprador Chorão. Fazia mais de

dois meses que eu não deitava com uma mulher. Não que isso seja

desculpa para eu me comportar como um porco. Você quer me dizer

como eu posso corrigir o que fiz com você?”

Annette respondeu:

“Basta. Pare com isso. Você está me fazendo chorar outra vez. Você

me ajudou tanto, Fima. Você sabe escutar, é cheio de compreensão e

empatia. Acho que homem nenhum no mundo algum dia me escutou

como você. E eu fui tão esquisita, tão egoísta, tão absorvida pelos meus

próprios problemas. Lamento ter magoado você.”

Acrescentou que sempre acreditara muito nos sonhos. E que, de fato,

naquela mesma noite, enquanto Fima sonhava com ela, Yeri telefonara

de Milão. Parecia um pouco sem graça. Disse que não tinha ideia do

que iria acontecer, que só o tempo diria, e que ela deveria procurar

não odiá-lo.

“Tempo...”, começou Fima, mas Annette tapou sua boca com as

mãos.

“Não vamos falar. Falamos bastante naquela noite. Vamos ficar uns

dois minutos sentados quietos, e aí vou seguir meu caminho. Tenho

um milhão de coisas para fazer na cidade. Mas gosto de ficar perto de

você.”

Ficaram em silêncio. Fima se sentou no braço da almofada, seu

próprio braço quase tocando o ombro de Annette, envergonhado da

bagunça, a camiseta de mangas compridas jogada sobre o sofá, a

gaveta inferior que ele não tinha fechado, as xícaras de café vazias

sobre a escrivaninha, jornais por toda parte. Amaldiçoou mentalmente


o desejo que começava a sentir, e jurou a si mesmo que dessa vez a sua

conduta seria irrepreensível.

Annette falou, pensativa, mais para si própria do que para ele:

“Fui injusta com você.”

Estas palavras quase trouxeram lágrimas aos olhos de Fima. Desde os

tempos de infância, sempre sentia alegria e doçura toda vez que um

adulto lhe dizia palavras como essas. Teve dificuldade de resistir ao

impulso de se ajoelhar diante dela, exatamente como o seu marido no

sonho. Embora, para ser preciso, não tenha sido um sonho e sim as

suas divagações matinais. Mas não viu diferença nenhuma.

“Tenho boas notícias para você”, disse ele. “Achei o seu brinco. Na

mesma poltrona onde você está sentada agora. Sou um idiota: quando

abri os olhos de manhã, com os primeiros raios do dia, pensei que

fosse um vaga-lume que tinha esquecido de se desligar.” Encheu-se de

coragem, e acrescentou: “Sabe, eu sou um chantagista. Não vou

devolver o brinco de graça”.

Annette caiu na gargalhada. Continuou rindo enquanto ele se

debruçava. Ela o puxou para si pelo cabelo, beijou a ponta do seu

nariz, como se ele fosse um bebê.

“Isso é suficiente? Agora você me devolve o brinco?”

Fima respondeu:

“É mais do que eu mereço. Vou até lhe dar troco.”

E para a sua própria surpresa, de súbito agarrou os joelhos dela e

arrastou seu corpo para o chão, desesperadamente tonto de desejo,

sem se importar com as roupas, tentando abrir caminho cegamente, e

com uma confiança cega também. Num instante conseguiu penetrá-la,

sentindo que não era apenas seu pau, e sim todo o seu ser, envolvido e

dissolvido no útero dela. Num piscar de olhos explodiu em gozo e

rugidos. Quando conseguiu retornar à superfície, sentindo-se leve e

vazio como um raio de luz, como se tivesse deixado a sua massa

corporal dentro dela, foi tomado de horror ao perceber como mais uma

vez degradara a ela e a si mesmo. Compreendeu que dessa vez

destruíra tudo para sempre. Então Annette começou, lenta e

delicadamente, a afagar sua cabeça e seu pescoço, até provocar um

delicioso tremor e sua pele se arrepiar.

“O Estuprador Chorão”, disse ela. E sussurrou: “Shshshsh, criança”.


E mais uma vez perguntou se havia vodca. Por algum motivo Fima

receou que ela pudesse estar gelada. Tentou desajeitadamente arrumar

suas roupas. E procurou dizer algo. Porém, mais uma vez ela tapou sua

boca com a mão, e disse:

“Quieto, seu pequeno tagarela.”

Enquanto penteava seus lindos cabelos diante do espelho,

acrescentou:

“Vou embora agora. Tenho um milhão de coisas para fazer na cidade.

Por favor, devolva meu brinco. Eu o ganhei honestamente. Telefono

para você à noite. Vamos ao cinema. Há uma ótima comédia francesa

com Jean Gabin passando no Orion.”

Fima foi até a cozinha e serviu o resto do Cointreau para ela. Salvou o

bule elétrico no último minuto. Mas por mais que se esforçasse, não

conseguiu se lembrar o que fizera com o brinco. Jurou que viraria o

apartamento de pernas para o ar e lhe devolveria o vaga-lume mágico

são e salvo quando se encontrassem à noite. Ao acompanhá-la até a

porta, murmurou cabisbaixo que jamais se perdoaria.

Annette riu.
22

“EU ME SINTO BEM COM VOCÊ ASSIM”

Cruzaram-se na escada. Mal Annette saíra, aparece Nina Gefen, com

seu cabelo grisalho preso de forma austera, carregando uma pesada

cesta de compras, que depositou com firmeza sobre a escrivaninha no

meio da papelada, dos potes de iogurte e das xícaras de café sujas.

Num movimento duro acendeu um Nelson, e apagou o fósforo

sacudindo, e não soprando. Soltou duas baforadas de fumaça pelas

narinas. Fima sorriu inconscientemente. O revezamento entre suas

visitas femininas o fez recordar a procissão de amigas que viviam

entrando e saindo do apartamento do pai. Quem sabe chegara a hora

de Fima usar uma bengala com cabo de prata?

Nina perguntou:

“Qual é a graça?”

Em meio à fumaça, suas narinas devem ter captado um resíduo de

perfume feminino. Sem esperar resposta, acrescentou:

“A dama de vermelho que encontrei na entrada do prédio também

estava sorrindo sozinha como um gato satisfeito. Por acaso você

recebeu alguma visita?”

Fima esteve a ponto de negar. Desde quando ele recebia visitas?

Havia oito apartamentos no prédio. Mas algo o impediu de mentir para

essa mulher frágil e amargurada que parecia uma raposa acuada, essa

mulher a quem ele às vezes chamava de “minha amante” e cujo marido

amava. Baixou os olhos e se justificou:

“Uma paciente. Está em tratamento na clínica. Ficamos meio amigos.”

“Estão abrindo uma filial da clínica aqui na sua casa?”

É
“É o seguinte”, disse Fima, enquanto seus dedos tentavam em vão

juntar as duas partes do rádio. “O marido dela foi embora. Ela me

procurou em busca de um conselho.”

“Tratamento para corações partidos”, disse Nina, procurando

mostrar-se espirituosa, mas dando a impressão de estar prestes a

chorar. “De fato, o santo padroeiro das esposas abandonadas. Daqui a

pouco você vai ser obrigado a manter uma lista de consultas. Visitas só

com hora marcada.”

Foi até a cozinha e tirou da cesta de compras um saco cheio de

material de limpeza, que colocou provisoriamente em cima do

aparador. Fima teve a impressão de que seus lábios, apertando o

cigarro, estavam tremendo. Desembrulhou algumas provisões que

trouxera, abriu a porta da geladeira, e recuou horrorizada.

“Que imundície!”, exclamou.

Fima explicou mansamente que na verdade fizera uma limpeza

radical mas não tivera tempo de limpar a geladeira.

E quando Uri voltaria?

Do fundo da cesta de compras Nina tirou um pequeno saco plástico.

“Sexta-feira, tarde da noite. Ou seja, amanhã. Certamente vocês dois

mal podem esperar. Bem, poderão ter uma lua de mel sábado à noite.

Aqui, trouxe o livro sobre Leibowitz. Você fugiu correndo e o esqueceu

sobre o tapete. O que vai ser de você, Fima? Olhe só a sua aparência.”

E de fato Fima se esquecera de enfiar a fralda da camisa para dentro

depois da saída de Annette, e a sua camiseta de flanela amarelada

estava exposta para fora do suéter surrado.

Nina esvaziou a geladeira, jogou fora sem clemência os restos de

verduras estragadas, atum, pedaços de queijo endurecido que já

estavam criando mofo, e uma lata de sardinhas aberta. Atacou as

prateleiras e divisões com um pano mergulhado em detergente. Nesse

meio-tempo, Fima passou manteiga em várias fatias do cheiroso pão

preto que ela trouxera, espalhou generosas porções de geleia, e

começou a mastigar com toda a voracidade. Enquanto isso, proferiu

uma breve palestra sobre as lições a serem aprendidas em Israel a partir

do colapso dos partidos de esquerda na Inglaterra, Escandinávia, e, na

verdade, em todo Norte da Europa. De repente, no meio da sentença,

disse num tom de voz diferente:


“Olhe, Nina, sobre anteontem à noite. Não, foi a noite antes de

anteontem. Entrei feito louco parecendo um cachorro encharcado, falei

besteiras, pulei em cima de você, deixei você chateada, e fugi sem dar

explicação. Estou envergonhado. Não tenho ideia do que você pode

estar pensando de mim. Só não queria que você pensasse que eu... não

me sinto atraído por você, ou algo assim. Não é isso, Nina. Ao

contrário. Eu me sinto sim, mais do que nunca. Acontece que eu tinha

tido um dia ruim. Esta semana inteira não é a minha semana. Tenho

uma sensação estranha, é como se eu não estivesse vivendo. Só

existindo. Me arrastando de um dia para outro. Sem sentido e sem

vontade. Há um versículo dos Salmos: Minha alma goteja de tristeza. É

exatamente isso: gotejar. Às vezes não faço a menor ideia do motivo

por que ainda continuo por aí como flocos de neve do inverno

passado. Indo e vindo. Escrevendo e riscando. Preenchendo fichas no

consultório. Vestindo as roupas e despindo outra vez. Dando

telefonemas. Incomodando a todos, deixando vocês loucos.

Alfinetando meu pai de propósito. Como é possível que ainda haja

gente que consiga me suportar? Como é possível que você ainda não

tenha me mandado para o inferno? Você quer me dizer como eu posso

corrigir o que fiz com você?”

Nina respondeu:

“Quieto, Fima. Simplesmente pare de falar.”

Entrementes, ela ia arrumando as novas provisões nas prateleiras da

geladeira, que agora reluzia de limpeza. Seus ombros frágeis tremiam.

Com o rabo dos olhos, olhou para Fima como um animalzinho preso

numa jaula, e ele sentiu carinho por ela. Ainda de costas, ela

prosseguiu:

“Eu também não entendo. Veja. Há uma hora e meia, no escritório,

de repente tive uma sensação de que você estava em apuros. Que algo

ruim tinha acontecido com você. Talvez você estivesse doente, aqui

deitado sozinho com febre. Tentei telefonar, mas estava sempre

ocupado. Pensei que talvez você tivesse esquecido o telefone fora do

gancho, mais uma vez. Saí correndo no meio de uma reunião

importante sobre uma companhia de seguros que faliu, e vim direto

para cá. Ou melhor, parei no caminho para fazer umas compras, para

você não morrer de fome. É quase como se o Uri e eu tivéssemos


adotado você como filho. Só que o Uri parece gostar da brincadeira,

enquanto eu fico deprimida. O tempo inteiro. Repetidas vezes tenho

essa sensação de que algo terrível sucedeu com você, largo tudo e

venho voando. É uma sensação horrível, como se você estivesse me

chamando ao longe: Nina, venha depressa. Não há explicação. Faça-

me um favor, Fima. Pare de se entupir de pão. Veja como está ficando

gordo. E, de qualquer maneira, neste momento não sinto a menor força

ou vontade de ouvir as suas estrondosas teorias sobre Mitterrand e o

Partido Trabalhista britânico. Guarde as suas ideias para o Uri, sábado à

noite. Só quero que você me diga o que é que está errado. O que é que

está acontecendo com você? Algo estranho está se passando, e você

está escondendo de mim. Algo mais estranho que o habitual. Como se

você estivesse ligeiramente drogado.”

Fima obedeceu imediatamente. Parou de enfiar boca abaixo o

pedaço de pão que segurava, e o colocou distraidamente sobre a pia

como se fosse uma xícara usada. Começou a gaguejar dizendo que o

que havia de maravilhoso nela é que não se sentia envergonhado. Não

tinha medo de parecer ridículo. Nem sequer se importava se parecia

infeliz ou idiota na sua presença, como naquela noite. Era como se ela

fosse sua irmã. E agora ia dizer algo fútil, mas e daí? “Fútil” não é

necessariamente o contrário de “verdadeiro”. Ele queria dizer que, aos

seus olhos, ela era... uma boa pessoa. E que tinha os dedos mais lindos

que já vira.

Ainda de costas, debruçada sobre a pia, esfregando os azulejos e as

torneiras, Nina lavou cuidadosamente as mãos, pegou o pedaço de pão

que Fima havia largado, e disse com tristeza:

“Você esqueceu uma meia na minha casa, Fima.” E depois: “Faz

muito tempo que a gente não deita junto”.

Ela apagou o cigarro, pegou o braço dele com a sua mão magnífica, a

mão de uma jovem do Extremo Oriente, e sussurrou:

“Agora venha. Tenho que estar de volta no escritório em menos de

uma hora.”

A caminho da cama Fima ficou contente por Nina ser míope, porque

detectou um brilho momentâneo no cinzeiro onde o cigarro fora

apagado. Deduziu que se tratava do brinco perdido de Annette.


Nina fechou as cortinas, enrolou a colcha que cobria a cama, ajeitou

os travesseiros, e tirou os óculos. Seus gestos eram diretos e

econômicos, como se ela estivesse se aprontando para ser examinada

por um médico. Quando começou a se despir, Fima virou de costas e

hesitou um pouco, até perceber que não tinha saída, teria que tirar suas

roupas também. E disse para si mesmo, numa espécie de satisfação:

“Quando não é seca, é enchente”. E mergulhou rápido entre os lençóis

para que ela não percebesse a sua falta de excitação. Lembrando-se de

como a desapontara da última vez, no tapete da sua casa, foi tomado

de culpa e vergonha que mal conseguiu suportar. Apertou fortemente

seu corpo contra o dela, mas seu pau estava mole e insensível como

um lenço amarrotado. Enfiou a cabeça entre seus seios fartos e

quentes, como se estivesse tentando se esconder dentro dela. Ficaram

deitados imóveis, agarrando-se um no outro como um par de soldados

numa trincheira sob bombardeio.

Ela pediu num sussurro:

“Não fale. Não diga nada. Eu me sinto bem com você assim.”

Fima teve uma clara visão do cachorro ferido, agonizante, esvaindo-

se em sangue e ganidos, sob uma mureta de pedra entre arbustos

molhados e lixo. Como em transe profundo, murmurou entre os seus

seios palavras que ela não ouviu: “De volta à Grécia, Yael. Lá vamos

encontrar amor. E compaixão”.

Nina olhou o relógio: onze e meia. Beijou-o na testa, e sacudindo os

ombros disse afetuosamente:

“Acorde, menino. É hora. Você adormeceu.”

E se vestiu abruptamente, pôs os óculos, acendeu outro cigarro,

sacudindo o fósforo em vez de soprar.

Antes de sair, juntou as duas partes do rádio quebrado com um leve

estalo. Virou o dial até que a voz de Rabin, o ministro da Defesa,

tomou conta do quarto:

“O lado que demonstrar mais energia vencerá.”

“Pronto, está consertado”, disse Nina, “preciso ir.”

Fima disse:

“Não fique zangada comigo. Há dias tenho uma sensação de

sufocamento. Como se fosse ocorrer uma desgraça. Mal consigo dormir

à noite. Fico escrevendo artigos como se houvesse alguém escutando.


Não há ninguém escutando e tudo parece perdido. O que será de nós

todos, Nina? Talvez você saiba. Não?”

Nina, já na porta, virou seu rosto de raposa de óculos para Fima, e

disse:

“Esta noite pode ser que eu termine o trabalho cedo. Venha direto da

clínica para o meu escritório, e vamos ao concerto na Associação Cristã

de Moços. Ou então vamos assistir àquele filme com Jean Gabin. E de

lá para a minha casa. Não fique melancólico.”


23

FIMA ESQUECE O QUE ESQUECEU

Fima voltou para a cozinha. Devorou mais quatro fatias do pão preto

de Nina, generosamente forradas com geleia de damasco. O ministro

da Defesa dizia:

“Aconselho a todos nós não percorrer caminhos duvidosos.”

A última palavra foi ligeiramente mal pronunciada. E Fima, com a

boca cheia de pão com geleia, respondeu parodiando:

“E todos nós aconselhamos a você não cometer desatinos

espinhosos.”

Imediatamente arrependeu-se do jogo de palavras. Ao desligar o

rádio, desculpou-se a Rabin:

“Preciso correr. Estou atrasado para o trabalho.” E, mascando uma

pastilha contra azia, involuntariamente guardou no bolso o brinco de

Annette, que encontrara no cinzeiro entre os tocos dos cigarros de

Nina. Vestiu o casaco, tomando cuidado especial para não prender o

braço nos retalhos internos da manga. E já que o pão não havia saciado

a sua fome, uma vez que o considerou como desjejum, entrou no café

do outro lado da rua para um rápido almoço. Não conseguiu se

lembrar se o nome da proprietária era sra. Schneidmann ou

simplesmente sra. Schneider. Decidiu que era Schneidermann. Como

de hábito, ela não se ofendeu e sorriu com um brilho alegre nos seus

olhos infantis. O sorriso dela parecia a imagem de uma santa da Igreja

Ortodoxa russa. Ela disse:

“É Scheinmann, doutor Nisan. Não faz mal. Não tem a menor

importância. O importante é que Deus dê saúde e prosperidade a todo

É
o povo judeu. E que finalmente haja paz neste nosso querido país. É

duro ter que suportar mortes o tempo todo. Hoje vai gulash para o

doutor? Ou prefere frango?”

Fima refletiu sobre o assunto, e pediu o gulash e uma omelete, uma

salada mista, e uma compota de frutas. Noutra mesa estava sentado um

homenzinho enrugado, de aparência deprimida e doentia. Estava lendo

displicentemente o jornal Yediot Aharonot; virava a página, olhava, palitava

os dentes, e virava a página outra vez. O cabelo parecia estar colado à

testa com graxa. Por um instante Fima considerou a possibilidade de

ser ele próprio, grudado àquela mesa desde o dia anterior, o dia

anterior ao anterior, e que todos os fatos ocorridos durante a noite e a

manhã jamais tinham se passado. Ou que haviam acontecido com

outra pessoa, que se parecia com ele sob alguns aspectos mas que era

diferente em certos detalhes que não tinham importância.

Toda a diferenciação entre possibilidades abertas e eventos

encerrados fechados era simplista. Afinal, talvez seu pai tivesse razão:

não existe um mapa universal da realidade; não pode existir. Cada

pessoa precisa encontrar o seu próprio caminho pela floresta com o

auxílio de mapas imprecisos e pouco confiáveis; nós nascemos

embrulhados nesses mapas, ou então vamos catá-los aqui e ali ao

longo do caminho. É por isso que estamos perdidos, vagando em

círculos, tropeçando uns nos outros sem perceber, e perdendo-nos uns

dos outros na escuridão, recebendo apenas um brilho distante da

luminosidade suprema.

Fima quase se sentiu tentado a perguntar à proprietária quem era o

outro cavalheiro, e quanto tempo fazia que estava lá sentado,

desperdiçando o rico tesouro da vida naquela mesa coberta de toalha

verde e branca respingada de óleo. Mas acabou resolvendo perguntar a

ela o que ela pensava que deveria ser feito para trazer a paz mais

depressa.

A sra. Scheinmann reagiu desconfiada. Olhou em volta com

apreensão, antes de responder timidamente:

“O que sabemos nós? Que os graúdos decidam. Os generais do nosso

governo. Que Deus lhes dê saúde. E que também lhes dê bom senso.”

“Devemos fazer concessões aos árabes?”


Aparentemente com medo de espiões, ou de se atrapalhar, ou das

próprias palavras, ela olhou na direção da porta e da cortina que

separava a sala da cozinha, e respondeu sussurrando:

“Precisamos ter compaixão. É tudo o que precisamos.”

Fima insistiu:

“Compaixão com os árabes ou com nós mesmos?”

Ela lançou um outro sorriso tímido e gracioso, como uma camponesa

desconcertada por uma pergunta inesperada acerca da cor das suas

calcinhas ou da distância daqui até a Lua. Respondeu com sinceridade:

“Compaixão é compaixão.”

O homem na mesa ao lado, de aparência débil e torturada, com o

cabelo seboso grudado na testa, que Fima visualizava como um

funcionário público sofrendo de hemorroidas, talvez um aposentado

do Departamento de Esgotos, interveio na conversa. Tinha sotaque

romeno e uma entonação linear, e não parava de palitar os dentes:

“Meu senhor. Desculpe. Por favor. Que árabes? Que paz? Que país?

Quem precisa disso? Enquanto vivemos, temos que viver a vida. Para

que quebrar a cabeça com o resto do mundo? Será que o resto do

mundo quebra a cabeça para você? Aproveitar, isso sim. Todo o resto,

perda de tempo. Desculpe intrometer.”

Fima ponderou que seu interlocutor não parecia muito alguém que

aproveitava a vida; parecia mais alguém que ganhava um dinheiro

extra denunciando vizinhos ao Imposto de Renda. Parecia sofrer de um

tremor crônico nas mãos.

Fima indagou educadamente:

“O senhor está sugerindo que devemos confiar totalmente no

governo? Que devemos cuidar dos nossos próprios assuntos e não

devemos nos meter em questões públicas?”

O triste informante respondeu:

“Melhor o governo também ir aproveitar a vida. E o governo dos

árabes também. E a mesma coisa os goyim. Todo mundo felizes todo dia.

No fim, todo mundo morremos mesmo.”

A sra. Scheinman lançou um sorriso cúmplice para Fima, ignorando o

infeliz funcionário público. Obsequiosamente, como se desculpando

pelo que ele estava sendo obrigado a ouvir, disse:


“Não preste atenção, doutor. A filhinha dele morreu, a esposa está

morta, os irmãos também morreram. E além disso, ele não tem um

centavo. Ele não fala com a cabeça. Eis um homem esquecido por

Deus.”

Fima vasculhou seus bolsos, mas achou apenas uns trocados soltos,

de modo que pediu à proprietária que anotasse na sua conta. Na

semana que vem, quando recebesse o salário... Mas ela interrompeu

calorosamente:

“Não faz mal. Não se preocupe. Está tudo bem.”

E sem que ele pedisse, trouxe-lhe um copo de chá doce com limão, e

acrescentou:

“De qualquer maneira, tudo vem do Céu.”

Ele não concordou com esta última afirmação, mas a melodia das

suas palavras o tocou como uma carícia, e ele subitamente encostou

seus dedos sobre a mão dela e agradeceu. Elogiou a comida e

expressou total concordância com o que ela dissera antes:

“Compaixão é compaixão.”

Certa vez, quando Dimi tinha oito anos, Ted e Yael lhe telefonaram

em pânico às dez da manhã pedindo ajuda para procurar o menino,

que aparentemente havia fugido da escola porque outras crianças o

estavam provocando. Sem hesitar um instante, Fima chamou um táxi e

voou para a fábrica de cosméticos em Romema. E de fato encontrou

Dimi e Baruch trancados no pequeno laboratório, curvados sobre uma

bancada, cabelos grisalhos tocando os cachos albinos; estavam

destilando um líquido azulado num tubo de ensaio sobre o fogo.

Quando Fima entrou, o velho e o garoto ficaram quietos, como

conspiradores surpreendidos em flagrante. Naquela época, Dimi ainda

tinha o hábito de chamar tanto Baruch quanto Fima de “vovô”. O pai,

com a sua barba tipo Trotski, com a ponta virada para cima como uma

cimitarra, recusou-se a contar para Fima a natureza da experiência: não

havia como saber de que lado ele estava. Mas Dimi, em tom sério e

confidencial, disse que confiava em Fima, que ele não os denunciaria.

Vovô e eu estamos fabricando um spray antiestupidez. Onde houver

estupidez, você pega um frasquinho, solta um jato, e ela some. Fima

disse: Vocês vão ter que fabricar pelo menos cem mil toneladas no

primeiro lote. Baruch disse: Talvez estejamos perdendo tempo,


Diminka. Gente esperta não precisa do tratamento, e quanto aos tolos,

digam-me, meus queridos, por que temos que nos desgastar com eles?

Em vez disso, vamos nos divertir um pouco. No mesmo momento,

encomendou uma bandeja de doces, nozes e frutas. Com um suspiro,

tirou da gaveta um punhado de varetas e mandou o menino trancar a

porta; os três passaram o resto da manhã mergulhados num jogo de

pega-varetas. A lembrança daquela diversão ilícita brilhou na mente de

Fima; fora um momento de felicidade como ele jamais conhecera na

sua própria infância. Então, ao meio-dia, tivera que se recompor e

devolver Dimi aos pais. Ted condenou o garoto a duas horas de

confinamento solitário no banheiro e a mais dois dias de prisão

domiciliar. Fima também sofreu uma repreensão. Chegou a lamentar

que tivessem abandonado os trabalhos de pesquisa do spray

antiestupidez.

No ônibus a caminho do trabalho, refletiu sobre o que a sra.

Scheinmann dissera a respeito do melancólico informante, e disse para

si mesmo: “Ser esquecido por Deus não significa necessariamente estar

perdido. Ao contrário, pode significar tornar-se leve e livre como um

lagarto no deserto”. A palavra esquecimento fez Fima lembrar-se de

“fenecimento”. Realmente a sonoridade de ambas em hebraico é muito

semelhante. E o pior destino não é o esquecimento, e sim o

fenecimento. Vontade, saudades, lembranças, desejos carnais,

curiosidade, paixão, alegria, generosidade; tudo fenece aos poucos.

Como o vento fenece nas montanhas, também a alma fenece. De fato,

até mesmo a dor fenece um pouco com a passagem dos anos, mas,

junto com a dor, fenecem outros sinais de vida. As coisas simples,

primordiais, silentes, as coisas que toda criança recebe com entusiasmo

e excitamento, como a sucessão das estações do ano, um gato

brincando no quintal, uma porta girando em torno das dobradiças, o

ciclo de vida das plantas, o amadurecer das frutas, o sussurrar dos

pinheiros, uma fileira de formigas na varanda, o jogo de luzes nos vales

e colinas, o brilho da lua e o halo à sua volta, teias de aranha

carregadas de pequenas gotas de orvalho pela manhã, o milagre da

respiração, a fala, o crepúsculo, água fervendo e água se congelando, o

reluzir do sol do meio-dia num minúsculo caco de vidro, tantas coisas

primordiais que já tivemos e que perdemos. Coisas que não voltarão


jamais. Ou, pior, voltarão raramente, brilhando ao longe, enquanto a

excitação original terá desaparecido para sempre. E tudo fenece e se

dissolve. A própria vida vai aos poucos se turvando de pó e fuligem.

Quem ganhará as eleições na França? O que vai decidir o comitê

central do Likud? Por que o artigo foi recusado? Quanto ganha um

diretor administrativo? Como o ministro vai responder às acusações

levantadas contra ele? Esta manhã me disseram, e eu disse também:

“Estou atrasado. Preciso correr”. Mas por quê? Correr para onde? Para

quê? Com certeza até o ministro Rabin deve ter se entusiasmado

alguma vez por essas coisas primordiais, mil anos atrás, um menino

ruivo e tímido, magro, sardento, descalço, num quintal numa casa em

Tel Aviv, no meio das roupas penduradas no varal, às seis da manhã

num dia de outono quando subitamente um bando de gaivotas voa

sobre a sua cabeça, brancas em contraste com as nuvens da aurora,

prometendo a ele, como a mim, um mundo puro, repleto de silêncio e

azul, distante de palavras e mentiras, se tivermos simplesmente a

coragem de deixar tudo para atrás, levantar e ir embora. Mas aqui

estamos nós, esse ministro da Defesa e nós que o atacamos dia a dia

nos jornais. Todos já esquecemos. E também fenecemos. Somos todos

almas mortas. Para onde quer que nos voltemos deixamos atrás de nós

um rastro de palavras sem vida, e delas um curto caminho para os

cadáveres das crianças árabes assassinadas todos os dias nos

Territórios. Um curto caminho também para o fato de que um homem

como eu simplesmente ignora, sem pensar, as crianças da família de

colonizadores queimadas vivas anteontem por um coquetel Molotov

lançado na estrada de Alfei Menashe. Como pude ignorar? Será que são

crianças menos puras? Indignas de entrar para o memorial do

sofrimento, do qual nos tornamos uma espécie de guardiões? Será que

é só porque os colonizadores me assustam e enfurecem, ao passo que

as crianças árabes pesam na minha consciência? Será que um homem

indigno como eu desceu a um nível tão baixo a ponto de fazer

distinção entre a matança intolerável de crianças e a matança não tão

intolerável de crianças? A própria justiça falou pela boca da sra.

Schönberg quando ela simplesmente me disse: “Compaixão é

compaixão”. O ministro da Defesa Rabin está traindo os nossos valores

básicos etc. etc. enquanto na opinião de Rabin eu e os meus estamos


traindo os princípios fundamentais etc. etc. Mas em relação ao

chamado distante do esplendor dos primeiros raios de uma manhã de

outono, em relação ao voo das gaivotas, certamente somos todos

traidores. Não há diferença entre o ministro e eu. Envenenamos até

mesmo Dimi e seus amigos. Portanto, devo escrever algumas linhas a

Rabin, para me desculpar, para tentar explicar que estamos todos no

mesmo barco afinal. Ou quem sabe pedir um encontro?

“Basta”, sorriu Fima, um sorriso amarelo. “Pecamos. Transgredimos.

Basta.”

Ao descer do ônibus, resmungava como um velho rabugento: “Jogo

de palavras. Jogo de palavras vazio”. De repente a associação de

“esquecer” com “fenecer” lhe pareceu tão gratuita que nem chegou a

agradecer e se despedir do motorista ao descer do ônibus; era um

hábito que fazia questão de manter, mesmo em momentos de

distração, como no dia anterior, quando, inadvertidamente, descera no

ponto errado.

Fima permaneceu alguns momentos parado na rua cinzenta, em

meio a folhas mortas e pedaços de papel voando com o vento.

Concentrou-se no sussurro dos pinheiros atrás dos muros de pedra, e

olhou para o ônibus que se afastava. O que teria esquecido no ônibus?

Um livro? Um guarda-chuva? Um envelope? Talvez um pequeno

pacote? Algo pertencente a Tamar? Ou a Annette Tadmor? “Gaivotas

voam e viajam”: um verso esquecido de uma antiga canção infantil

veio-lhe à mente. Consolou-se com a esperança de que esquecera no

ônibus apenas o jornal Ma’ariv que tinha encontrado lá mesmo. Graças

ao ministro e às gaivotas, não conseguiu se lembrar sequer das

manchetes.
24

VERGONHA E CULPA

No pátio, enquanto caminhava pela trilha de asfalto que contornava

o edifício e conduzia à clínica, parou um instante porque, do segundo

andar, por entre as janelas fechadas, o vento e o ruído dos pinheiros,

chegou aos seus ouvidos o som do celo. Era uma das velhas musicistas

que tocava, ou talvez um aluno praticando, repetindo as mesmas

escalas vezes e vezes seguidas.

Fima tentou em vão identificar a música. Ali parado e escutando,

parecia um homem que não sabe de onde vem nem para onde tem que

ir. Se naquele instante ele pudesse mudar seu estado físico:

transformar-se em vapor, ou pedra, ou gaivota. Um celo interior

começava a ser tocado, respondendo ao celo de cima na sua própria

linguagem, um som de ironia e nostalgia de si mesmo.

Diante de seus olhos formou-se uma imagem quase tangível da vida

das três velhas musicistas, que rodavam horas de táxi pelas ruas

molhadas de inverno para dar um recital em algum kibutz longínquo

na Alta Galileia, ou na cerimônia de abertura de um encontro de

veteranos de guerra. Como passariam as suas noites livres no inverno?

Depois de lavar a louça e limpar a cozinha, talvez se juntassem as três

na sala comunal. Fima retratou mentalmente uma sala austera,

estritamente puritana, contendo um relógio de pêndulo com as horas

em algarismos romanos. E um aparador, uma pesada mesa de jantar

com as pernas bem grossas e cadeiras escuras com encostos retos e

altos. Um enorme poodle cinzento e peludo encolhido no tapete num

canto da sala. Sobre o grande piano fechado, sobre a mesa e sobre o


gaveteiro, havia toalhinhas de renda espalhadas, como aquelas que

cobriam cada espaço vazio no apartamento do pai em Rehavia. Havia

também um antigo e pesado aparelho de rádio, e flores artificiais azuis

num vaso alto. As cortinas puxadas, as venezianas bem fechadas, e

uma chama azul luzindo no aquecedor, que vez ou outra borbulhava

quando o querosene descia do reservatório para o pavio. Uma das

mulheres, possivelmente em revezamento, lia em voz baixa para as

outras trechos de um velho romance alemão, Lotte in Weimar; por

exemplo. Não se ouvia um único som a noite inteira, a não ser a voz da

leitora, o tique-taque do relógio e o borbulhar do aquecedor. Às onze

horas em ponto, elas se levantavam e iam cada uma para o seu

respectivo quarto de dormir. As três portas se fechavam e assim

permaneciam até o amanhecer. E na sala principal, no profundo

silêncio das trevas, o relógio continuava batendo incessantemente, e

soando baixo uma vez a cada hora.

Na entrada da clínica Fima viu a elegante placa com a inscrição DR.

WAHRHAFTIG — DR. EITAN — ESPECIALISTAS EM DOENÇAS FEMININAS. Como

sempre, ficou irritado com a construção gramatical que o hebraico não

tolera. E resmungou:

“Então que não tolere. E daí?”

E Nora, a filha única de Wahrhaftig, que fora casada com Gad Eitan e

fugira dez anos antes com um poeta latino-americano, será que às

vezes sentia saudade? Peso na consciência? Acessos de culpa e

vergonha? Seu nome jamais era mencionado. Nem indiretamente. Nem

sequer insinuado. Era como se ela nunca tivesse existido. Só Tamar de

vez em quando cochichava alguma coisa para Fima, acerca de uma

carta devolvida ao remetente, ou de um telefone desligado sem que se

tivesse dito nada. Tamar insistia em tentar convencê-lo de que Gad não

era na verdade uma pessoa má, só alguém muito assustado e magoado.

Exceto quando dizia exatamente o oposto: qualquer mulher teria

abandonado uma víbora como essa.

Fima vestiu seu jaleco branco, sentou-se atrás do balcão da recepção,

e olhou a agenda de consultas. Como se estivesse procurando

adivinhar qual das pacientes ali anotadas se materializaria na sua vida

como a próxima Annette Tadmor.

Tamar disse:
“Há duas pacientes lá dentro. A que está com o doutor Contrabaixo

se parece um pouco com Margaret Thatcher; a que está com o Gad

parece uma escolar, bem bonitinha.”

Fima disse:

“Quase telefonei para você no meio da noite. Consegui descobrir o

seu general finlandês, aquele que começa e termina com m. É

Mannerheim. Na verdade, ele se chamava Von Mannerheim. Um nome

alemão. Foi ele que deixou o mundo inteiro admirado impedindo a

invasão de Stalin em 1938. Conseguiu sustentar posições com seu

minúsculo exército finlandês contra as forças soviéticas infinitamente

superiores.”

Tamar disse:

“Você sabe qualquer coisa. Bem que poderia ter sido um professor

universitário. Ou ministro.”

Fima refletiu um pouco, concordou com ela no seu íntimo, e

respondeu afetuosamente:

“Você é a mulher ideal, Tamar. É uma vergonha para o sexo

masculino que ninguém ainda tenha roubado você de nós. Só que,

pensando bem, não existe homem sobre a face da terra digno de você.”

Seu corpo robusto e atarracado, seu cabelo liso e macio preso em

coque na base do pescoço, até mesmo seu olho verde e o outro

castanho, subitamente lhe deram uma comovente aparência infantil.

Fima perguntou a si mesmo por que não ir até ela, apertar seus

ombros, e apertar a cabeça dela contra o seu peito, como se fosse sua

filha. Mas a necessidade de consolar estava misturada com outra:

gabar-se de que duas mulheres haviam feito romaria ao seu

apartamento naquela manhã, oferecendo-se a ele, uma após a outra.

Hesitou, ficou sério e nada disse. Quando teria sido aquele corpo

tocado pela última vez por mãos masculinas? Como reagiria ela se ele

de repente esticasse os braços e agarrasse seus seios com as duas

mãos? Ficaria chocada? Ofendida? Render-se-ia, imersa em culpa?

Bobão, disse ele ao seu pau, agora você está atento. E como se

pudesse sentir os bicos de Tamar na palma de cada mão, apertou os

punhos e sorriu.

Tamar disse:

“Posso pedir outra coisa?”


Fima não se lembrava qual tinha sido a pergunta anterior, mas

respondeu de modo expansivo e simpático, como se imitasse os gestos

senhoriais do pai:

“Até metade do meu reino.”

“Ilha no Pacífico, também traje de banho.”

“Perdão?”

“É o que está escrito aqui. Talvez seja erro de impressão. ‘Ilha no

Pacífico, também traje de banho.’ Seis letras. É quase a última palavra

que falta.”

“Não sei”, disse Fima. “Experimente Tahiti. Tenho um menino que

fica me pedindo para levá-lo embora para o Pacífico. Ele quer construir

uma cabana de palha, e viver de peixe e frutas. Não estou dizendo que

o menino seja meu. Bem, é e não é. Não importa. Experimente Hawaii.

Quer vir conosco, Tamar? Morar numa cabana de palha, e só comer

peixe e frutas? Longe da crueldade e da estupidez? Longe dessa chuva?”

“Tahiti se escreve com ou sem h? De qualquer jeito não serve, porque

a segunda letra tem que ser i e a terceira k. Você está se referindo ao

filhinho da Yael, o Dimi? O seu Challenger? Talvez eu não deva me

meter, Fima, mas você devia pensar direito se não está complicando

muito a vida do menino tentando ser um segundo pai para ele. Às

vezes eu acho...”

“Bikini”, disse Fima. “O traje de banho foi batizado por causa da

catástrofe. Bikini era uma ilhota que foi evacuada e destruída com

bombas atômicas. Foi o campo de testes da catástrofe. No Pacífico Sul.

Vamos ter que procurar outra ilha. Outro oceano talvez. Em todo caso,

como posso construir uma cabana de palha? Não consigo nem montar

uma estante de livros. É Uri Gefen que monta minhas estantes para

mim. Por favor, Tamar, não fique parada ao lado da janela desse jeito,

com as costas para mim e para a sala. Já lhe disse mil vezes, não

suporto isso. É problema meu, eu sei.”

“O que há com você, Fima? Às vezes você é muito engraçado. Eu

estava só puxando as cortinas porque estou cheia de ficar olhando para

a chuva. Não precisamos procurar outra ilha: Bikini serve. Qual você

acha que é, o nome do partido do governo na Nicarágua?”

Fima estava com a resposta na ponta da língua, mas neste instante

uma voz feminina irrompeu atrás da porta fechada do dr. Eitan. Foi um
grito breve, dilacerado, cheio de terror e humilhação, como se tivesse

sido arrancado da garganta de uma criança vítima de uma injustiça

atroz. Quem estaria sendo assassinado lá dentro? Talvez alguém

destinado a ser o pai ou o avô de Yoezer. Fima ficou tenso, num

esforço máximo de se recolher, de se fortalecer, de não imaginar o que

aquelas mãos em luvas de borracha estavam fazendo, sobre aquela

cadeira ginecológica coberta com um encerado branco e um lençol de

papel áspero descartável, com um carrinho ao lado contendo um

conjunto de escalpelos, espéculos, tesouras de diferentes tamanhos,

fórceps, seringas, uma lâmina, agulha e linha especiais para costurar

carne humana, braçadeiras, máscaras de oxigênio, e frascos de soro. E

a feminilidade exposta em toda a sua profundidade, sem esconderijos,

inundada de luz clara gerada pela poderosa lâmpada atrás da cabeça

do doutor; literalmente nua e crua, sangrando como uma ferida,

parecendo uma boca aberta desdentada expelindo sangue escuro.

Enquanto lutava para banir essa imagem da sua mente, para não ver

não ouvir e não sentir, Tamar disse gentilmente:

“Pode relaxar agora. Já acabou.”

Mas Fima sentiu vergonha. De certa forma, não muito clara para ele,

sentiu que não estava totalmente livre de culpa. Que também era

responsável pela agonia existente atrás da porta fechada. Que havia

uma relação entre a humilhação que impusera a Annette naquela

manhã, e depois a Nina, e a dor e a vergonha deitadas sobre aquele

lençol imaculado, que agora com certeza estava longe de imaculado,

cheio de sangue e outras secreções. Seu pênis encolheu e se retraiu

como um ladrão acuado. Uma dor vaga, repulsiva, subitamente se

instalou nos seus testículos. Se Tamar não estivesse lá, ele certamente

meteria a mão nas calças para aliviar o aperto. Mas na verdade era

melhor assim. Ele tinha que abandonar a sua tentativa patética de

convencer o Tsvi de que todos temos o direito de nos desvencilhar da

responsabilidade pelas atrocidades cometidas em nosso nome. Temos

que admitir a culpa. Temos que aceitar que o sofrimento de todos

repousa sobre os nossos ombros. A opressão nos Territórios, o

infortúnio dos velhos revolvendo latas de lixo, o cego batendo sua

bengala à noite nas ruas desertas, a infelicidade das crianças autistas

em instituições decadentes, o assassinato do cão com edema, as


provações do Dimi, a humilhação de Annette e Nina, a solidão do

Teddy, as viagens intermináveis do Uri, o procedimento cirúrgico que

acabara de ter lugar do outro lado da parede, fórceps de aço inoxidável

enfiados no fundo de uma vagina ferida, tudo está sobre os nossos

ombros. Inútil sonho de fugir para Mururoa ou Galápagos. Até mesmo

Bikini, envenenada por uma nuvem radioativa, está sobre os nossos

ombros. Por um momento, ponderou sobre a relação que existe em

hebraico entre as palavras compaixão [rahamim] e útero [rehem], ou entre

as palavras fórceps [melkahaim] e ensinamento [lekah]. Mas imediatamente

censurou a si mesmo pelo jogo de palavras, e pelas suas obsessões

estético-verbais, que não eram menos desprezíveis do que o ministro

da Defesa dizer “preço” quando na verdade quer dizer “morte”.

“Num dos poemas de Alterman”, disse a Tamar, “existe uma estrofe

chamada ‘O canto das pragas do Egito’, e é mais ou menos assim:

Juntou-se a multidão sem lei/ O peso da culpa tolhendo a mão/

Enforcaram os ministros e o rei/ Livraram-se assim do seu grilhão’. Esta

é mais ou menos a linha básica de toda a História. É o relato de todos

nós, condensado em uma dúzia de palavras. Vamos preparar um café

para ela. E para Gad e Alfred também.”

Tamar disse:

“Tudo bem. Você está liberado. Vou colocar água no bule. De

qualquer maneira, vai levar algum tempo até ela se recompor e ficar de

pé. Você também está dispensado de limpar. Eu limpo, só quero que

você cuide do esterilizador e da máquina de lavar. Como é que você

consegue lembrar tudo de cor? Alterman, Bikini e todo o resto? De um

lado, você é tão distraído que não consegue nem abotoar a camisa

direito; de outro, é capaz de virar o mundo de ponta-cabeça para achar

uma palavra nas palavras cruzadas. E organiza a vida de todo mundo.

Olhe só o seu suéter: metade para dentro, metade para fora das calças.

E o colarinho da sua camisa também, metade para dentro, metade para

fora. Como um bebê.”

Em seguida ficou calada, mas o sorriso caloroso continuou a iluminar

o seu rosto largo e franco, como se tivesse sido esquecido ali. Depois

de passar alguns instantes absorta em pensamentos, acrescentou com

tristeza, sem explicar qual era a ligação:


“Meu pai se enforcou no Hotel Metrópole, em Alexandria. Foi em 46.

Não acharam nenhuma carta. Eu tinha cinco anos e meio. Mal consigo

me lembrar dele. Recordo que ele fumava cigarros da marca Simon

Arzt. E me lembro do relógio de pulso que ele usava: amarelo,

quadrado, com ponteiros fosforescentes que brilhavam no escuro

como olhos de fantasma. Tenho um retrato dele com o uniforme do

exército inglês, mas ele não tem cara de soldado. Parece tão

desleixado. E cansado. No retrato ele até tem um cabelo bonito, está

sorrindo, dentes brancos lindos e uma porção de ruguinhas simpáticas

nos cantos dos olhos. Ele não parece triste, só cansado. E está

segurando um gato. Eu fico me perguntando se ele também sofria de

amor não correspondido. Minha mãe nunca falava dele. A única coisa

que dizia era: ‘Ele também não pensava em nós’. E mudava de assunto.

Tinha um amante, um capitão australiano, alto, com um braço de

madeira e um nome russo, Serafim. Eles me explicaram uma vez que o

nome vinha do hebraico seraf, que é ‘serafim’. Depois ela arranjou um

banqueiro chorão que a levou para o Canadá e a abandonou. No final

ela me escreveu de Toronto em polonês. Tive que mandar traduzir a

carta; ela nunca conseguiu aprender a escrever em hebraico. Dizia que

queria voltar a Nes Tsiona e começar vida nova. Mas nunca voltou.

Morreu de câncer no fígado. Eu fui criada em internatos da Associação

das Trabalhadoras. E Alterman, me diga Fima, é verdade o que dizem,

que ele tem duas mulheres?”

“Ele morreu”, respondeu Fima, “cerca de vinte anos atrás.”

E estava prestes a prosseguir e disparar um seminário sobre

Alterman, quando a porta do dr. Eitan se abriu, liberando um odor

asséptico, e o rosto do médico surgiu dizendo para Tamar:

“Venha cá, Brigitte Bardot. Venha depressa e me traga uma ampola

de Dolestin.”

De modo que Fima foi obrigado a adiar sua palestra. Desligou o bule

elétrico, e decidiu colocar um aquecedor na sala de recuperação. Então

atendeu duas ligações telefônicas seguidas: marcou uma consulta para

a sra. Bergson para o final do mês, e explicou para Gila Maimon que

jamais davam o resultado dos exames por telefone, de forma que ela

teria que vir e saber a resposta da boca do dr. Wahrhaftig. Por algum

motivo, dirigiu-se a ambas com toda a humildade, como se tivesse feito


algo errado. Concordou mentalmente com Annette Tadmor quando ela

ironizara os clichês das mulheres misteriosas, Greta Garbo, Beatriz,

Marlene Dietrich, Dulcineia; mas ela estava errada quando jogava a

capa do mistério sobre os ombros do sexo masculino. Somos todos

cúmplices na falsidade. Todos nós fingimos. A verdade pura e simples

é que todos nós sabemos exatamente o que é compaixão, e quando

devemos demonstrá-la, porque cada um de nós anseia por um pouco

de compaixão. Mas quando chega o momento em que temos que abrir

as comportas da compaixão, fingimos que não sabemos de nada. Ou

que compaixão e piedade são apenas formas de paternalizar os outros,

algo muito antigo e sentimental. Ou que é assim mesmo e o que se

pode fazer e por que justo eu? Foi provavelmente a isso que Pascal se

referiu como “morte da alma”, e que a agonia do homem é como a

agonia de um rei destronado. Seu esforço para não imaginar o que se

passava do outro lado lhe pareceu uma atitude covarde, ignóbil,

horrorosa. Assim como a sua tentativa de desviar os pensamentos da

morte do pai de Tamar para as fofocas sobre a vida de Alterman.

Seguramente é obrigação de todos nós pelo menos encarar o

sofrimento de frente. Se ele fosse primeiro-ministro, faria cada membro

do gabinete passar uma semana com uma unidade de reservistas em

Gaza ou Hebron, desfrutar algum tempo dentro dos limites de um

campo de prisioneiros no Neguev, internar-se pelo menos dois dias

num pavilhão psicogeriátrico num hospital negligenciado, ficar deitado

na lama e na chuva uma noite inteira de inverno, do pôr do sol ao

amanhecer, junto à cerca elétrica na fronteira com o Líbano, ou juntar-

se a Eitan e Wahrhaftig, sem nenhuma parede divisória, nesse inferno

de abortos, que agora mais uma vez era preenchido pelos sons do

piano e do celo do andar superior.

No instante seguinte suas reflexões lhe causaram náuseas, porque,

pensando melhor, lhe pareceram a corporificação do kitsch russo do

século passado. A própria expressão “inferno de abortos” era uma

injustiça: afinal, havia vezes em que a vida era efetivamente criada

aqui. Fima recordou-se de uma paciente chamada Sarah Matalon, que

fora aconselhada por especialistas a desistir e adotar uma criança, e

apenas Gad Eitan insistiu durante quatro anos, até que por fim o seu

útero se abriu. Toda a equipe da clínica foi convidada para a


circuncisão do filho. O pai de súbito anunciou que o menino se

chamaria Gad, e Fima notou o dr. Eitan mordendo com força a pulseira

de couro do seu relógio. De fato, por um momento, também os seus

olhos se encheram de lágrimas. E conseguiram satisfazer também

Wahrhaftig, que se alegrou com a honraria de segurar o bebê.

Fima se adiantou para ajudar a Tamar, que estava ajudando a uma

jovem, de cerca de dezessete anos, branca feito papel e magra como

um palito, a caminhar cambaleante até a sala de recuperação.

Parecendo disposto a pagar os pecados de todo o sexo masculino,

Fima corria de um lado a outro, apressando-se em trazer um cobertor

macio, um copo de água mineral com uma fatia de limão, lenços de

papel, aspirina. Mais tarde, chamou um táxi para a moça.

Às quatro e meia, a pausa para o café. O dr. Wahrhaftig veio e se

debruçou sobre o balcão, exalando um odor de remédio e desinfetante

junto ao rosto de Fima. O peito maciço, inflado como o de um

governador-geral da Rússia czarista, e os seus quadris largos e

redondos de fato davam ao seu corpo pesado uma aparência de

contrabaixo. As maçãs do rosto eram recortadas por uma rede de vasos

sanguíneos azulados, vermelhos e rosados, tão próximos à superfície

que quase se podia sentir o pulso através deles.

Lépido e silencioso, com movimentos aveludados de gato pisando

em zinco quente, chegou o dr. Eitan. Mascava chicletes lentamente,

impassível, sem abrir a boca. Seus lábios eram finos e grudados.

Wahrhaftig disse:

“Que coisinha esquisita! Ainda bem que você costurou firme.”

Eitan disse:

“Tiramos a moça dessa. A cara não estava nada boa.”

Wahrhaftig disse:

“Com relação à transfusão, você estava absolutamente certo.”

Eitan disse:

“Grande coisa. Para mim foi óbvio logo que vi.”

E Wahrhaftig disse:

“Deus lhe deu dedos espertos, Gad.”

Fima interrompeu delicadamente:

“Tomem o café. Está esfriando.”


“Herr Exzellenz von Nisan!”, trovejou Wahrhaftig. “E onde Vossa

Excelência tem se escondido esses dias todos? Anda escrevendo um

novo Fausto para nós? Ou um Kohlhaas? Quase esquecemos como é a sua

cara.” E prosseguiu, pronto a contar de novo “uma conhecida piada”

sobre três vagabundos. Mas não conseguiu se conter e caiu na

gargalhada antes de chegar ao terceiro vagabundo.

Gad Eitan, imerso em pensamentos, de súbito comentou:

“Mesmo assim, não devíamos ter feito aqui, com anestesia local.

Devia ter sido feito num hospital, com anestesia geral. Quase vira

complicação. Temos que pensar nisso, Alfred.”

Wahrhaftig, com voz alterada, disse:

“O quê? Você está preocupado?”

Eitan não se apressou em responder. Fez uma pausa, e depois disse:

“Não. Agora estou totalmente tranquilo.”

Tamar hesitou, sua boca se abriu e se fechou duas vezes, e

finalmente disse cautelosa:

“Você fica bem com essa malha branca de gola olímpica, Gad.

Prefere chá com limão em vez de café?”

Eitan respondeu:

“Sim, mas sem rebolar.”

Wahrhaftig, um desajeitado mediador de paz, rapidamente mudou a

conversa para temas atuais:

“Então, o que me dizem daquele polonês antissemita? Eles não

aprenderam nada e não esqueceram nada. Vocês ouviram no rádio o

que o cardeal de Varsóvia disse sobre o convento de Auschwitz? É uma

repetição exata da velha ladainha deles: Por que os judeus são tão

exigentes, por que os judeus estão criando tanta confusão, por que os

judeus estão incitando o mundo inteiro contra a pobre Polônia, por

que os judeus estão outra vez querendo tirar proveito dos seus mortos?

Afinal, também morreram milhões de poloneses. E o nosso lindo

governo passa por cima disso com a tradicional submissão da diáspora.

Em qualquer país civilizado, teríamos mandado embora o encarregado

de Assuntos Estrangeiros deles com um chute vocês sabem onde.”

Eitan disse:

“Não se preocupe, Alfred. Não vamos ficar de braços cruzados. Uma

noite dessas despejamos uma unidade de comandos aéreos sobre eles.


Um ataque relâmpago. Um Entebe em Auschwitz. Vamos explodir

aquele convento, e todas as nossas forças regressarão sãs e salvas para

a base. A surpresa será total. O mundo ficará na expectativa, como nos

velhos bons tempos. E então o senhor Shamir e o senhor Sharon

poderão se gabar do longo braço do exército de Israel, e da renovada

capacidade israelense de dissuasão. Poderão batizá-la de Operação Paz

para os Crematórios.”

No mesmo instante o pavio se acendeu. Se eu fosse primeiro-

ministro, pensou Fima, mas antes de completar o pensamento,

explodiu furiosamente:

“Pelos diabos, quem precisa disso? Nós perdemos a cabeça. Saímos

completamente dos eixos. Será que não temos mais nada a fazer do

que ficar discutindo com os poloneses sobre a quem pertence

Auschwitz? Já está começando a soar como extensão da nossa

conhecida história de ‘direitos ancestrais’ e ‘herança dos pais’ e ‘jamais

devolveremos territórios que libertamos’. A qualquer momento nossos

heroicos pioneiros lá estarão fundando novas colônias no meio dos

fornos crematórios. Cerca e torre, como nos bons tempos.

Estabelecendo fatos consumados nos territórios em litígio. Em todo

caso, quem disse que Auschwitz é um sítio judaico? É um sítio nazista.

Um sítio alemão. Na verdade, deveria se tornar um sítio cristão, para a

cristandade em geral e o catolicismo polonês em particular. Ao

contrário: que eles cubram todo o campo da morte com conventos,

cruzes e sinos. De muro a muro. Com um Jesus em cada chaminé. Não

há lugar no mundo mais adequado para a cristandade comungar

consigo mesma. Eles, não nós. Que façam peregrinações para lá, seja

para bater no peito e expiar seus pecados, ou, ao contrário, para

celebrar a maior vitória teológica da sua história. Por mim, podem

batizar o seu convento de Auschwitz de A Doce Vingança de Jesus. O

que estamos fazendo ali com cartazes e protestos? Enlouquecemos de

vez? Está muito certo; um judeu que vá para lá comungar com a

memória das vítimas deve mesmo ver uma floresta de cruzes em volta e

ouvir apenas os sinos das igrejas. Para entender que exatamente ali está

o verdadeiro coração da Polônia. O coração dos corações da Europa

cristã. Por mim, podiam muito bem mudar o Vaticano para lá. Por que
não? Que o papa fique lá sentado até a Ressurreição, num trono

dourado entre as chaminés. E além disso...”

“E além disso sai do seu transe”, sibilou Eitan, examinando os seus

dedos longos e elegantes junto à luz, como se subitamente temesse que

eles tivessem sofrido alguma mutação. Não se deu o trabalho de

explicar se sua opinião era outra.

“Em qualquer país civilizado”, disse Wahrhaftig, procurando trazer a

conversa de volta aos trilhos, “em qualquer país civilizado nenhum de

vocês dois teria permissão de dizer palavras tão macabras sobre um

assunto tão trágico. Há certas coisas com as quais não se deve brincar

nem numa conversa particular a portas fechadas. Mas o nosso Fima é

doente por paradoxos, enquanto você, Gad, só fica feliz quando tem a

chance de caçoar do governo, de Auschwitz, da operação Entebe, dos

seis milhões, qualquer coisa que irrite os outros. Você está morto por

dentro. Se for por você, que morram todos. O carrasco da rua Alfasi. E

é porque vocês dois odeiam o país, em vez de se levantarem todo dia

de manhã e agradecerem de joelhos por tudo o que temos aqui,

inclusive os asiáticos e o bolchevismo. Vocês só enxergam os buracos,

não enxergam o queijo.” E de repente, numa fúria calculada, como se

tivesse resolvido representar o papel de um tirano feroz e cruel, o

velho médico enrubesceu, sua face de bêbado tremia, seus vasos

sanguíneos pareciam a ponto de estourar, e berrou educadamente: “Já

basta! Chega de tagarelar! Todo mundo rápido de volta para o trabalho!

A minha clínica não é o Parlamento!”.

Mal separando os lábios, Eitan sibilou sob o bigode loiro:

“É justamente o Parlamento. Cheio de gente caduca. Alfred, entre na

minha sala. E preciso de você também, sua Rainha da Beleza carente,

com a ficha da senhora Bergman.”

“O que foi que eu lhe fiz?”, sussurrou Tamar com os olhos cheios de

lágrimas. “Por que você me atormenta o tempo todo?” E com um

lampejo de ousadia acrescentou: “Qualquer hora dessas ainda lhe dou

um tapa”.

“Ótimo.” Eitan sorriu. “Estou à sua disposição. Até apresento a outra

face, se isso ajudá-la a acalmar um pouco os seus hormônios. E então o

nosso santo Agostinho aqui pode consolar a você e a mim, junto com

todos os enlutados de Sion e Jerusalém, amém.” Dizendo isso, virou-se


com precisão militar e afastou-se lepidamente, ajeitando a malha

branca e deixando silêncio atrás de si.

Os dois médicos desapareceram na sala de Eitan. Fima enfiou a mão

no bolso e conseguiu achar um lenço, amassado e não muito limpo,

que se achava prestes a oferecer a Tamar, cujos olhos estavam

encharcados de lágrimas. Porém, sem que ele percebesse, um pequeno

objeto caiu das dobras do lenço e aterrissou no chão. Tamar se curvou,

pegou o objeto e devolveu-o a Fima, sorrindo por entre as lágrimas.

Era o brinco de Annette. Então, enxugou os olhos na manga, o

castanho e o verde, puxou os arquivos solicitados, e correu atrás dos

médicos. Na porta virou seu rosto sofrido para Fima, e disse em tom

imponente, como se estivesse jurando pelo que lhe fosse mais caro na

vida:

“Um dia desses vou pegar uma tesoura e matá-lo. E depois eu me

mato.”

Fima não acreditou, mas mesmo assim pegou o abridor de cartas e o

escondeu na gaveta. Pôs o lenço e o brinco cuidadosamente de volta

no bolso. Depois, destacou uma folha de papel e a colocou na sua

frente, pensando em registrar seus pensamentos acerca do coração da

cristandade. Talvez se transformasse num artigo para o suplemento do

fim de semana.

Mas os seus pensamentos vagavam. Tinha dormido menos de três

horas, e pela manhã sua energia fora sugada pelas suas infatigáveis

amantes. O que é que elas viam nele? Uma criança indefesa que

despertava seus instintos maternais, uma criança para cuidar e

proteger? Um irmão para enxugar as lágrimas? Um poeta apagado a

quem ansiavam servir de musa? E o que estimulava nas mulheres um

grosseirão estúpido como Gad? Ou um galanteador empostado como

seu pai? Fima se admirou e sorriu. Quem sabe, afinal Annette estivesse

errada, e exista sim um lado misterioso? O enigma do que as mulheres

preferem? Ou quem sabe ela não tivesse se enganado, apenas estivesse

escondendo um segredo do inimigo? Talvez dissimulando habilmente a

própria existência do segredo? E está claro que ela não me queria esta

manhã, somente teve pena de mim e decidiu se entregar, e se

entregou. Enquanto eu, meia hora depois, não desejava Nina, mas tive
pena dela e tentei me entregar, mas a natureza recusou para mim o que

torna possível para as mulheres sem nenhuma dificuldade.

E resmungou:

“Mas não é justo.” E então, zombando de si mesmo: “E aí, por que

não assinar um manifesto?”.

Sua mão cansada rabiscava o papel na sua frente, desenhando

círculos e triângulos, cruzes, estrelas de davi, mísseis, e grandes seios.

Entre os rabiscos escreveu a frase que havia lhe ocorrido antes:

“Gaivotas voam e viajam”. Embaixo escreveu: “As notas soam em si

ajam”. E riscou. Amassou e jogou a folha no cesto de papéis. E errou.

Então, pensou em fazer uso do seu tempo livre para redigir duas

cartas: uma carta aberta, uma resposta a Günter Grass a respeito de

culpa e responsabilidade; e uma carta particular, uma resposta atrasada

para a carta de despedida de Yael, vinte e dois anos atrás. Para ele, era

especificamente importante explicar a Yael e a si mesmo por que fora

tão rude com os dois coronéis da força aérea que tinham vindo

naquele sábado à noite especialmente para convencê-lo de que a ida

de Yael para trabalhar em Seattle ou Pasadena era de importância

nacional. Ainda permanecia inabalado na sua convicção de que a

expressão “interesse nacional” servia em geral de cobertura para todo

tipo de monstruosidades. Mas agora, meia vida depois, não se via mais

no direito de dar lições de moral. Com que direito? O que foi que você

conseguiu na vida? Terá alguma serventia para Yoezer e seus amigos,

que viverão daqui a cem anos, o fato de ter vivido aqui em Jerusalém

um vagabundo criador de casos, que irritava a todos com as suas

mesquinhas correções de linguagem? Que fornicava com mulheres

casadas? Que humilhava e insultava ministros do gabinete? Que

discutia com lagartos e baratas? Ao passo que até mesmo vilões como

Gad Eitan curavam mulheres doentes e faziam brotar úteros estéreis?

Quando o telefone tocou, em lugar da saudação habitual: “Clínica,

boa tarde”, escaparam de sua boca as palavras: “Clínica, já é tarde”.

Imediatamente se desculpou, gaguejou, tentou encobrir o deslize com

uma anedota insípida, fez a maior confusão, corrigiu-se, procurou

explicar a correção, e marcou uma consulta urgente para Rachel Pinto

para a próxima semana. Ela só pedira um exame de rotina.


Quem sabe? Quem sabe o marido também a abandonara? Ou

encontrara uma amante jovem? Ou fora morto durante o serviço de

reservista nos Territórios e não havia ninguém para consolá-la?


25

DEDOS QUE NÃO SÃO DEDOS

Às sete horas fecharam as persianas e trancaram a clínica. A chuva e

o vento tinham parado. Um frio límpido e vítreo descera sobre

Jerusalém. As estrelas brilhavam com uma luminosidade penetrante e

invernal. E do Leste, os sinos cristãos emitiam um som forte e solitário,

como se a crucificação estivesse ocorrendo na Gólgota naquele exato

momento.

O dr. Wahrhaftig foi para casa de táxi, levando junto Tamar, pois se

oferecera, como de hábito, para deixá-la em frente ao Colégio Rehavia.

Eitan embrenhou-se pela escuridão da rua lateral onde deixara seu

carro esporte. E Fima, sob o peso do sobretudo com a gola virada para

cima, e o boné de pano, sujo e amarrotado, na cabeça, ficou cerca de

dez minutos no ponto de ônibus na rua deserta esperando um milagre.

Sentiu necessidade de ir para o apartamento de Tsvi e Shula Kropotkin,

ali perto na rua de Gaza, aceitar o conhaque Napoleón que Tsvi lhe

prometera, deixar os pés perto do aquecedor, e expor a sua teoria

sobre a cisão judaico-cristã, explicando que ela era tão profunda

porque no final tudo estava em família. Nossa briga com o islã, por

outro lado, é meramente uma efêmera disputa de terras, que estará

esquecida dentro de trinta ou quarenta anos. Mas daqui a mil anos, os

cristãos ainda irão nos considerar deicidas, e se relacionar conosco

como com um amaldiçoado irmão mais velho. Esta última frase de

repente dilacerou seu coração, fazendo-o lembrar do bebê que sua

mãe tivera cinquenta anos atrás, quando ele tinha quatro. O bebê

morreu apenas três semanas depois, sofrendo de um defeito congênito


sobre o qual Fima nada soube: nunca se discutiu o assunto na sua

presença. Não tinha recordações do bebê nem da perda, mas guardava

uma vívida imagem de um pequenino capuz de tricô azul-claro sobre a

mesinha de cabeceira da sua mãe. Quando o pai, após a morte da

esposa, jogou fora todos os pertences dela, o capuzinho azul se foi

também. Teria Baruch dado o capuz para o hospital de leprosos em

Talbiyeh, junto com todas as outras coisas?

Fima perdeu a paciência e desistiu de esperar o ônibus, começando a

caminhar na direção de Rehavia. Procurou em vão se lembrar se

prometera a Nina buscá-la no escritório após o trabalho e levá-la para

assistir ao filme com Jean Gabin, ou se haviam combinado encontrar-se

no cinema. Ou será que tinha combinado com Annette Tadmor? Seria

possível que num ataque de distração tivesse marcado encontro com

ambas? Não conseguiu achar nenhuma ficha telefônica em nenhum dos

seus bolsos, de modo que prosseguiu andando pelas ruas desertas, de

vez em quando iluminadas por uma luz amarela de rua envolta em

névoas. Caminhou, alheio ao frio cortante, e pensou na sua mãe, que

também gostava do frio e detestava o verão. E o que estaria fazendo

em Roma o seu bom amigo Uri Gefen? Provavelmente estaria sentado

num café cheio de gente numa das lindas praças, cercado de homens

espirituosos e mulheres bonitas e provocantes. Estaria falando em voz

alta, entretendo a audiência com relatos de batalhas aéreas das quais

participara, ou de aventuras amorosas no Extremo Oriente, deixando

escapar, como sempre, alguma generalização deturpada acerca dos

caprichos do desejo, descrevendo em palavras muito bem escolhidas a

imperiosa sombra do ridículo que acompanha cada ação e

inevitavelmente oculta os verdadeiros motivos. Concluiria com algum

chavão indulgente, como um véu de ironia conciliatória envolvendo

sua história, seus amores, suas mentiras e a generalização que utilizara

minutos antes.

Fima sentiu falta do toque da mão larga e pesada de Uri na sua nuca.

Sentiu falta das suas imitações, do seu cheiro, da sua respiração forte e

da sua risada calorosa. Ao mesmo tempo, e sem nenhuma contradição,

lamentou que o amigo estivesse voltando do exterior em mais dois

dias. Envergonhou-se do seu caso com Nina, mesmo suspeitando que

Uri havia muito tinha conhecimento dessa obra de bem-estar sexual,


sendo até possível que ele próprio a tivesse sugerido, pelo afeto e pela

consideração que tinha por ambos, Fima e Nina. E quem sabe também

por um alienado senso de diversão ou ironia? Seria possível que ele

pedisse a Nina e recebesse dela um relatório detalhado após cada

sessão? Ficariam recostados passando o filme em câmara lenta,

sorrindo um para o outro com simpatia e tolerância? Duas ou três

noites atrás ele tinha falhado com Nina, no tapete da casa dele, e nesta

manhã, graças a Annette, falhara de novo na sua própria cama. Sentiu o

coração apertar quando se lembrou de como ela lhe afagara a testa

com seus dedos maravilhosos, e cochichou no seu ouvido dizendo que

desse jeito, com o pau mole, estava chegando mais fundo dentro dela

do que numa penetração real. Raras, quase místicas, assim soavam

agora essas palavras, que pareciam reluzir com uma preciosa

luminosidade ao serem lembradas. E Fima almejou consertar o que

estragara, dar a Nina, a Annette, a Tamar, a Yael e a cada mulher do

mundo, inclusive às feias e indesejadas, um amor carnal correto, um

amor paternal e fraternal, e um amor espiritual.

De um pátio escuro veio o latido furioso de um cão invisível. Fima,

surpreso, replicou:

“O que é que há? O que foi que eu fiz?” E acrescentou indignado:

“Desculpe, mas nós não nos conhecemos”.

Imaginou a vida doméstica de inverno por trás daquelas fachadas,

por trás das venezianas, janelas e cortinas. Um homem sentado

confortavelmente na sua poltrona, de chinelos, lendo um livro sobre a

história das represas. Há um pequeno copo de conhaque no braço da

poltrona. Sua esposa sai do chuveiro de cabelo molhado, rosada e

cheirosa, vestida num penhoar de flanela azul. Sobre o tapete, uma

criança pequena joga silenciosamente dominó. Uma delicada flor de

chamas brota suave na lareira. Em breve irão jantar em frente à

televisão, assistindo a uma comédia familiar. Depois, a criança será

posta na cama com uma história e um beijo de boa-noite. Logo, ambos

irão se sentar lado a lado no sofá da sala de estar, com meias nos pés e

os pés em cima da mesinha de centro, falando baixinho um com o

outro para depois ficarem em silêncio, talvez de mãos dadas. A sirene

de uma ambulância soa lá fora; depois, só o trovão e o vento. O

homem se levanta para se certificar de que a janela da cozinha está


bem fechada. Volta trazendo uma bandeja com dois copos de chá com

limão, e um prato de laranjas descascadas. Um pequeno abajur lança

um brilho doméstico alaranjado sobre os dois.

No escuro Fima sentiu uma aflição. Estas imagens não só

despertavam saudades de Yael, mas também evocavam um estranho

sentimento de nostalgia em relação a si mesmo. Como se uma dessas

janelas iluminadas ocultasse um outro Fima, verdadeiro, não gordo,

não irritante, não ficando careca, não de ceroulas amareladas, e sim um

Fima diligente e correto, vivendo de maneira racional sem mentiras ou

vergonha. Um Fima calmo e objetivo. Embora havia muito tivesse

compreendido que a verdade não estava ao seu alcance, lá no fundo

ainda ansiava por fugir à falsidade que, como poeira fina, penetra em

cada canto da sua vida, mesmo nos recantos mais íntimos.

O outro, o Fima verdadeiro, estava sentado nesse momento num

estúdio de trabalho acolhedor, cercado de estantes de livros, entre as

quais se viam quadros e gravuras de Jerusalém vista por viajantes e

peregrinos dos séculos passados. Sua cabeça flutuava numa esfera de

luz produzida por uma lâmpada de mesa. Sua mão esquerda repousava

sobre o joelho da esposa, sentada junto a ele na borda da escrivaninha,

pernas balançando, enquanto trocavam ideias acerca de alguma nova

teoria sobre o sistema imunológico ou física quântica. Não que Fima

possuísse alguma compreensão do sistema imunológico ou da física

quântica, mas imaginou que o Fima verdadeiro e sua esposa, ali no

estúdio morno e acolhedor, entendiam de um assunto ou de ambos.

Trabalhavam juntos desenvolvendo alguma ideia nova capaz de

reduzir o sofrimento no mundo. Seria este estúdio o local a que Gella,

ou sua mãe, se referia no sonho quando o chamou convidando-o a

passar para o lado ariano?

Na esquina da rua Smolenski, diante da residência oficial do

primeiro-ministro Shamir, Fima percebeu uma criancinha sobre uma

pilha de cobertores perto das latas de lixo. Estaria em greve de fome?

Havia desmaiado? Estaria morta? Teria sido depositada aqui por sua

mãe, vinda de Belém, abalada pela morte da menina que nós

assassinamos? Assustado, curvou-se para ver a criança, e descobriu que

nada mais era do que uma pilha molhada de restos aparados de jardim,

embrulhados num saco. Fima ficou parado. A ideia de se deitar aqui e


dar início à sua própria greve de fome subitamente o entusiasmou:

pareceu-lhe prazerosa e relevante. Olhou para cima e viu uma luz

amarela solitária atrás de uma cortina fechada no último quarto do

andar superior. Imaginou Yitzhak Shamir andando de um lado a outro,

entre a janela e a porta, mãos às costas, preocupado com um telegrama

na sua frente, no parapeito, sem saber o que responder, talvez sentindo

as dores do inverno e da velhice nos ombros e nas costas. Afinal, não

era mais um homem jovem. Também tivera seus anos revolucionários

na clandestinidade. Quem sabe seria simpático esquecer por um

momento as animosidades? Entrar lá agora, encorajá-lo e aliviar um

pouco a sua solidão? Conversar com ele a noite toda, de homem para

homem? Sem confrontos mesquinhos, sem críticas, sem acusações, mas

como um bom amigo tentando abrir os olhos de alguém envolvido por

gente má em situações muito ruins, situações das quais aparentemente

não há saída mas na verdade possuem uma solução lógica, simples e

possível, que pode ser explicada para a cabeça mais teimosa em

poucas horas de conversa. Conversa calma e tranquila. Contanto que o

amigo em apuros não se tranque nem se refugie atrás de uma barricada

de mentiras e argumentos. Mas que abra sua mente, ouça com

humildade, e considere uma gama de possibilidades que jamais

imaginou, não por arrogância, mas por preconceitos, vícios de

pensamento fossilizados, e temores arraigados profundamente. O que

há de errado em fazer concessões, senhor Shamir? Cada uma das partes

recebe só a metade do que julga ter direito, porém o pesadelo tem fim.

As feridas começam a cicatrizar. E o senhor mesmo não conseguiu essa

sua posição atual como uma espécie de candidato meio-termo? E o

senhor não faz vez por outra concessões para os seus colegas? Para a

sua esposa? Não?

E, de fato, por que não bater à porta? Seria recebido com uma xícara

de chá quente? Tiraria o casaco e explicaria de uma vez por todas os

ditados da razão e em qual direção a história aponta? Ou, ao contrário,

conseguiria persuadir o primeiro-ministro a vestir seu casaco e

acompanhá-lo num passeio noturno, para uma conversa longa e franca

nas ruas desertas e lavadas de chuva, iluminadas aqui e ali por um

poste de luz envolto em névoa e melancolia? Cidade austera e ascética,

Jerusalém nas noites de inverno. Mas, senhor, nada está perdido. Ainda
há esperança de abrir uma nova página. A introdução sangrenta

ocupou cem anos até aqui, e agora vamos fazer uma concessão e

passar para o corpo da história principal. Que o povo judeu comece a

viver como uma nação que encontrou repouso na sua própria terra, e

revela a longo prazo os poderes inatos de criatividade e renovação

soterrados sob camadas escuras de medo e ressentimento, pogroms,

perseguições, aniquilação. Vamos fazer uma tentativa, senhor? Com

cuidado? Com passos pequenos e bem pensados?

O guarda sentado na guarita diante da residência pôs a cabeça para

fora e perguntou:

“Ei, você. Está procurando alguma coisa?”

Fima respondeu:

“Sim. Estou procurando o amanhã.”

O guarda aconselhou gentilmente:

“Então, senhor, por favor, continue procurando em outro lugar. Vá

andando, por favor. Não se pode ficar parado aqui.”

Fima decidiu aceitar o conselho. Ir andando. Seguir andando. Não

desistir. Continuar lutando enquanto tiver forças para juntar uma

palavra à outra e distinguir ideias. A questão é: para onde seguir? Seguir

fazendo o quê? A verdade era que ele não tinha sequer começado. Mas

começado o quê? E onde? E como? Naquele momento ouviu por perto

uma voz calma, prosaica, sensata, chamando seu nome: “Fima, onde

está você?”.

Parou e respondeu depressa, com devoção:

“Sim. Aqui. Escutando.”

Mas o único som que se ouviu foram os gatos nos muros de pedra

molhados. E depois, como uma esponja que limpa tudo, o vento

soprando nos ciprestes e pátios vazios.

Sitra de-itkasia: o lado oculto.

Continuou andando lentamente. Passou pelo Edifício Terra Sancta,

onde não se via nenhuma luz acesa. Na praça Paris, ficou alguns

minutos parado esperando o farol abrir. Depois, sem pressa, pegou a

rua King George tomando o rumo do centro. Não deu atenção para o

frio cortante que atravessava seu sobretudo, nem para o boné

totalmente úmido na cabeça, nem para os poucos transeuntes que

passavam por ele, todos andando depressa, alguns talvez olhando de


soslaio essa figura esquisita, encapotada, arrastando-se pesadamente e

aparentemente absorta numa violenta discussão consigo mesma,

acompanhada de gestos e murmúrios.

Era muito ruim ele ter esquecido de tomar precauções naquela

manhã. E se Annette Tadmor engravidasse? Ele teria que pegar um

vapor barato e fugir mais uma vez. Para a Grécia. Para Nínive. Para o

Alasca. Ou para Galápagos. Na penumbra do ventre de Annette, num

escuro labirinto de canais úmidos, seu espermatozoide cego estava

agora forçando passagem com ridículos movimentos de cauda,

saltando de um lado a outro num líquido morno; era uma espécie de

cabeça-de-Fima, redonda, careca, possivelmente vestindo um

microscópico jaleco de pano molhado, sem cérebro, sem olhos,

avançando às cegas das profundezas e ansiando chegar à fonte oculta

de calor, apenas uma cabeça e uma cauda e o impulso de penetrar e se

aninhar, romper a crosta do óvulo, parecendo-se sob todos os aspectos

com seu pai, que almejava se recolher para todo o sempre num colo

feminino, e lá se aconchegar confortavelmente e adormecer. Fima se

encheu de preocupação, mas também de uma estranha inveja do seu

próprio sêmen. Sob uma luz amarela em frente à Sinagoga de

Yeshurun, parou e olhou o relógio. Ainda poderia pegar a segunda

sessão no Orion. Jean Gabin com certeza não o desapontaria. Mas

onde, exatamente, tinha ficado de buscar Annette? Ou seria Nina? Ou

elas é que tinham ficado de buscá-lo? Parecia que a noite estava

condenada a desapontar Jean Gabin. Um rapaz e uma moça, jovens e

barulhentos, passaram por ele enquanto se movia devagar passando

por Beit Hama’alot, perto do Parlamento antigo. O rapaz disse:

“Está bem, então vamos ceder os dois.”

E a moça:

“Agora já não adianta mais.”

Fima acelerou o passo, na esperança de roubar mais algumas frases

da conversa. Por algum motivo, sentiu necessidade de saber em que

tinham que ceder e por que não adiantava mais. Teriam também

esquecido de tomar as precauções nesta noite? Mas de repente o rapaz

deu a volta furiosamente, saltou para a borda do passeio, e ergueu o

braço. Imediatamente um táxi parou, o rapaz se curvou e começou a

entrar no táxi sem sequer olhar para a companheira. Fima percebeu


num relance que daí a um ou dois instantes essa moça estaria sozinha e

abandonada numa rua molhada, e já tinha algumas palavras de

abertura prontas na ponta da língua, palavras de encorajamento ditas

com cuidado para não assustá-la, uma frase triste e sábia, que a faria

sorrir entre as lágrimas. Mas não teve a oportunidade.

A moça gritou:

“Volte, Yoav. Eu cedo.”

E o rapaz, sem se preocupar em fechar a porta do táxi, correu na

direção dela e passou os braços em torno da sua cintura, sussurrando

algo que fez com que ambos dessem risada. O motorista saiu atrás

dele, e Fima, sem se perguntar por quê, decidiu que a sua obrigação

era acertar as coisas para o motorista. De modo que entrou no táxi,

fechou a porta, e disse:

“Desculpe a confusão. Kiryat Yovel, por favor.”

O motorista, um homem robusto com cabelo grisalho oleoso, olhos

pequenos, e um estreito bigode latino, resmungou irritado:

“O que é isso aqui? Primeiro vocês param um táxi, depois não

conseguem se decidir? Vocês não sabem o que querem?”

Fima percebeu que o motorista imaginou que ele estava com o casal.

Murmurou suas desculpas:

“Que é que há? Qual é o problema? Levamos meio minuto para

decidir. Havia uma divergência de opiniões. Você não tem por que

ficar irritado.”

Fima considerou a possibilidade e decidiu dar início a outra

discussão política. Só que dessa vez não permaneceria calado diante de

atitudes selvagens e sanguinárias, mas reagiria com todas as suas forças

por meio de argumentos claros e explícitos, e de uma lógica irrefutável.

Estava prestes a retomar o sermão que estava proferindo ao primeiro-

ministro. Mas, quando começou a sentir o terreno, cautelosamente,

como um dentista cutucando para sentir a origem da dor, para saber o

que o motorista achava sobre a questão dos Territórios e da paz, o

homem interrompeu amigável:

“Deixa para lá, meu amigo. As minhas opiniões em geral deixam as

pessoas nervosas. Começam a me escutar e pronto! — ficam atacadas.

É por isso que eu parei de ter discussões há muito tempo. Não vale a

pena se aborrecer. Se o país estivesse nas minhas mãos, em três meses


estaria nos eixos. Mas as pessoas aqui em Israel faz tempo que não

pensam mais com a cabeça. Só pensam com a barriga. E com as bolas

do saco. Então por que desperdiçar a minha saúde por nada? Toda vez

que entro numa discussão, me dá nos nervos. Não tem jeito. Aqui é a

lei de quem faz mais barulho. Pior que os árabes.”

Fima disse:

“E se eu prometer não ficar nervoso, e não deixar você nervoso? Na

pior das hipóteses, podemos concordar que não concordamos.”

“Então tudo bem”, disse o motorista, “só lembre que quem pediu foi

você. Bom, para mim é o seguinte: por uma paz real, com dizem, como

certezas e garantias e salvaguardas, por uma paz dessas eu devolveria

todos os Territórios exceto o Muro Ocidental, e ainda agradeceria por

tirarem Ramallah e Gaza das minhas costas. Desde que essa merda caiu

na nossa cabeça, em 67, o país está indo para o brejo. Bom, e aí? Estou

acabando com a sua saúde dizendo isso? Você vai começar a peidar

versículos da Bíblia para mim?”

Fima teve dificuldade em conter seus sentimentos:

“E como, se posso perguntar, você chegou a essa conclusão?”

“No final”, disse o motorista em tom cansado, “todo mundo vai

chegar. Talvez só depois de perdermos mais alguns milhares de vidas.

Não há outro jeito, amigo. O árabe não vai evaporar, e nem nós, e

somos tão capazes de viver juntos como um gato e um rato. Essa é a

realidade, essa também é a justiça. Na Torá está escrito: se dois

fregueses estão agarrando um mesmo talit,2 berrando que o talit é seu,

então deve-se pegar uma tesoura e cortar o talit ao meio. Isso foi o que

o próprio Moisés decidiu, e ele não era nenhum idiota. É melhor cortar

o talit do que continuar cortando bebês. Qual é a rua mesmo?”

Fima disse:

“Parabéns!”

E o motorista:

“O que quer dizer com parabéns? Por que está me dando parabéns?

O que você acha que eu sou, um gato que aprendeu a voar? Se você

por acaso tem a mesma opinião, não vou lhe dar os parabéns só por

causa disso. O que vou dizer, sim, e escute bem, é que só existe um

homem neste país que tem força suficiente para cortar o talit sem ficar
ele próprio cortado ao meio. Esse homem é Arik Sharon. Ninguém

mais tem força para isso. Só aceitariam isso dele.”

“Apesar de ele ter as mãos cheias de sangue?”

“Não apesar, e sim por causa disso. Em primeiro lugar, não são as

mãos dele que estão cheias de sangue, e sim as mãos do país inteiro.

Também as minhas e as suas. Não vamos colocar tudo nele. Além

disso, eu não tenho nenhum peso na consciência por causa desse

sangue. Tristeza, sim, mas não vergonha. Vergonha é para os árabes,

não para nós. Por acaso nós queríamos derramar sangue? Os árabes

nos obrigaram. Desde o começo. Da nossa parte nunca quisemos

começar com a violência. Até Menahem Begin, um patriota de verdade.

Na hora em que Sadat veio diante do Knesset para pedir desculpas,

Begin deu o que ele queria, contanto que a violência acabasse. Se

Arafat viesse se desculpar também diante do Knesset, certamente

também conseguiria alguma coisa. E então? Que Arik vá fechar um

acordo com ele, de bandido para bandido. O que você acha? Que um

sentimental do tipo Yossi Sarid vai conseguir fazer negócio com a

porcaria do Arafat? Yossi Sarid, os árabes iriam devorá-lo em

pedacinhos, e depois viria alguém do nosso lado, daria um golpe de

misericórdia, e pronto. É melhor o Arik ir cortar o talit. Sempre que se

precisa lidar com uma fera selvagem, é melhor contratar um caçador. E

não uma dançarina do ventre. Aqui é a sua casa?”

Quando Fima viu que não tinha dinheiro suficiente para pagar a

corrida, ofereceu-se para deixar a sua carteira de identidade; ou então,

se o motorista não se incomodasse em esperar alguns minutos, pediria

algum dinheiro emprestado para um dos vizinhos. O motorista

respondeu:

“Deixa para lá. Não é o fim do mundo. Amanhã ou depois, deixe oito

shekels no ponto de táxis Eliahu. Diga que é para Tsion. Você por

acaso não é da Liga pela Bíblia, ou algo assim, é?”

“Não”, disse Fima. “Por quê?”

“Tenho a sensação de já ter visto você. Deve ser alguém parecido.

Também falava bonito. Só um minuto, amigo. Você esqueceu seu

chapéu. Onde arranjou uma coisa dessas? O que é isso, restos do

Holocausto?”
Fima passou pela sua caixa de correio sem parar, mesmo vendo que

havia algo nela. Deu uma volta para se desviar do colchão enrolado.

Quando chegou à luz das escadas e tirou a chave, viu cair uma nota de

dez shekels dobrada num quadradinho. Voltou correndo, na esperança

de ainda alcançar o táxi antes que ele acabasse de fazer a manobra no

fim da rua. O motorista sorriu no escuro:

“O que foi? Qual é a pressa? Está com medo que eu deixe o país? Que

eu vá embora amanhã? Que a escória vá embora. Eu vou ficar até o fim

do filme. Quero ver o que vai acontecer. Boa noite, amigo. Não fique

se remoendo.”

Fima resolveu encaixar aquele homem no seu governo. Tiraria Tsvi

imediatamente da pasta das Informações, e passaria o cargo ao

motorista. E já que ele dissera “fim do filme”, de súbito se lembrou que

Annette provavelmente estava esperando seu telefonema em casa. A

menos que estivesse à sua espera na frente do cinema. Ou a menos

que fosse Nina quem estava esperando. Mas ele não tinha prometido a

Nina buscá-la no escritório? Ou seria Tamar? Fima sentiu um mal-estar

por saber que mais uma vez teria que ficar se derramando em mentiras

e desculpas. Ele teria que ligar e explicar. Desfazer o nó, com todo o

cuidado. Desculpar-se com Nina e correr para encontrar Annette. Ou

vice-versa.

Mas e se, afinal, tivesse marcado encontro com apenas uma delas? E

quando começasse a sua ladainha de mentiras ao telefone, o que

conseguiria além de afundar mais e mais na lama e de bancar o bobo?

E se naquele exato momento estivessem ambas no saguão do cinema à

sua espera, sem se reconhecer, sem sonhar que o mesmo idiota deixara

as duas na mão?

Na verdade, ao inferno com as mentiras. De agora em diante abriria

uma página nova. De agora em diante viveria a sua vida abertamente,

de forma racional e honesta. Como tinham sido mesmo as palavras do

motorista? “Nenhum peso na consciência.” Não havia razão para

esconder uma amante da outra. Se as duas gostam de mim, por que

não haveriam de gostar uma da outra? Quase com certeza vão se tornar

amigas de imediato, e poderão se apoiar mutuamente. Afinal, elas

possuem tantas coisas em comum. Ambas são compassivas, seres

humanos de coração grande e generoso. Ambas apreciam o fato de eu


parecer desamparado. Por coincidência, se é que de fato é

coincidência, ambos os maridos estão desfrutando a vida na Itália.

Quem sabe? Talvez os maridos tenham se conhecido. Talvez neste

exato instante Yeri Tadmor e Uri Gefen estejam sentados num animado

grupo de israelenses e estrangeiros no mesmo café em Roma, trocando

histórias picantes acerca de amor e desespero. Ou discutindo o futuro

do Oriente Médio, com Uri usando argumentos emprestados de mim.

Ao passo que o meu papel nesta farsa do destino, diretamente extraída

de Stefan Zweig ou Somerset Maugham, é juntar as duas esposas

abandonadas, que estão prestes a se conhecer esta noite, e estabelecer

uma amizade. Solidariedade. Até mesmo um grau de intimidade, pois

ambas me querem bem.

Na sua imaginação, visualizou-se sentado no escuro do cinema, Jean

Gabin metendo-se em confusão com uma quadrilha de bandidos

cruéis, e ele, Fima, com o braço esquerdo em torno de Annette e os

dedos da mão direita sobre os seios de Nina. Numa versão popular das

imitações de Uri Gefen. Depois do filme, convidaria a ambas para o

pequeno restaurante atrás da praça Tsion. Leve, solto e animado,

presentearia as duas com histórias eróticas espirituosas, brilhantes

malabarismos mentais, e ideias aguçadas capazes de lançar nova luz

sobre antigas questões. Quando ele pedisse licença para ir um instante

ao banheiro, as duas mulheres conversariam uma com a outra em

animados sussurros. Comentando a situação dele. Combinando uma

divisão de tarefas, um revezamento, um horário de trabalho para o

serviço de assistência a Fima.

Essas fantasias o deliciaram. Desde pequeno, adorava sentir que

havia adultos, pessoas responsáveis, que discutiam na sua ausência

como fazer o melhor por ele, esperando que adormecesse para ultimar

os preparativos para o seu aniversário, passando a falar russo para

comentar qual o melhor presente. Se, no fim de noite no restaurante,

criasse coragem para sugerir a Annette e Nina que viessem ambas ao

seu apartamento e passassem a noite os três juntos, poderia haver um

embaraço momentâneo, mas no final a proposta não seria recusada.

Ele havia aprendido com Uri que essas combinações hipnotizam

também a imaginação feminina. E assim, finalmente, poderia antecipar


uma excitante noite grega. Ficaria rejuvenescido. Um novo ano de

desbunde teria início.

Durante alguns instantes ficou imaginando os detalhes, distribuindo

os papéis e dirigindo as cenas. Então pegou o telefone e ligou para o

escritório de Nina. Como o telefone não deu sinal, tentou Annette. Mais

uma vez, silêncio total. Discou alternadamente os dois números cinco

ou seis vezes. De nada adiantou. Todos os sistemas deste país estão

ruindo por terra. Linhas de comunicação congestionadas, hospitais

paralisados, rede de energia elétrica precária, universidades falidas,

fábricas fechando uma atrás da outra, ciência e educação caindo ao

nível da Índia, serviços públicos em colapso, e tudo por causa dessa

obsessão dos Territórios, que está gradualmente nos arruinando. Como

foi mesmo que o motorista do táxi disse? “Desde que essa merda caiu

na nossa cabeça, em 67, o país está indo para o brejo.” Fima balançou

o telefone no ar, bateu com ele na mesa, sacudiu, girou, pediu, rogou,

implorou, xingou, golpeou, mas não adiantou nada. Então lhe ocorreu

que só podia culpar a si próprio: quantas vezes tinha ignorado os

avisos impressos colocados na caixa de correio advertindo do não

pagamento da conta. Agora estavam vingados. Ele estava desligado do

mundo. Como um cantor de sinagoga numa ilha deserta.

Teimoso, procurou ligar mais uma vez, lenta e delicadamente, como

um gatuno, como um amante. Não conseguia se lembrar se o código

de emergência para situações sem telefone era 14, 18, ou justamente

100. Estava pronto e disposto a quitar o débito naquele exato

momento, a se desculpar pessoalmente ou por escrito, a dar uma

palestra aos funcionários da companhia telefônica sobre misticismo

cristão, a pagar uma multa ou um suborno, qualquer coisa para que

viessem de imediato e ressuscitassem o seu telefone. Amanhã de

manhã, a primeira coisa que faria era ir direto ao banco. Ou era a

agência de correio? Pagaria a conta e seria resgatado de sua ilha

deserta. Mas amanhã, lembrou-se Fima, é sexta-feira. Todas as

repartições públicas estão fechadas. Talvez devesse telefonar para o

seu pai e pedir que ele usasse os seus relacionamentos. Na semana que

vem, seu pai estaria despejando os seus pedreiros e pintores no

apartamento. Talvez devesse fugir para Chipre? Ou para Galápagos? Ou

pelo menos para aquele albergue em Magdiel?


Mudou de ideia. Viu a situação sob uma luz totalmente nova. Sentiu-

se melhor no mesmo instante. Eis uma intervenção do próprio destino

para salvá-lo de Jean Gabin e da orgia noturna. As palavras “ilha

deserta” encheram-no de alegria. Seria maravilhoso passar uma noite

sossegada em casa. Lá fora, a tempestade podia golpear a janela à

vontade: você vai acender seu aquecedor a querosene, sentar-se na sua

poltrona e tentar chegar um pouco mais perto do outro Fima, o

verdadeiro, em vez de se desgastar com esforços diplomáticos para

amaciar duas mulheres ofendidas e depois se exaurir a noite toda para

satisfazer os seus apetites. Ficou particularmente satisfeito por se ver

livre, como num passe de mágica, da obrigação de vestir outra vez o

casaco e o chapéu, e sair para a cidade vazia, molhada e gelada. Teria

mesmo se decidido a fazer o papel de Uri Gefen? A calçar os sapatos do

pai? A sair por aí desbundando outra vez, um velho urso roto e

atrapalhado como ele? Primeiro vamos ver se você é capaz de dar uma

mijada inteira sem interrompê-la nem vacilar.

Em vez de bancar o bobo, melhor se sentar agora à escrivaninha,

acender a lâmpada, e redigir uma devastadora resposta ao discurso de

Günter Grass. Ou uma carta a Yitzhak Rabin. Ou escrever aquele artigo

sobre o coração da cristandade. E uma vez na vida poderia assistir ao

noticiário das nove sem interrupção. Ou adormecer em frente à

televisão durante um melodrama bobo. Ou, melhor ainda, meter-se na

cama, enrolar-se nos cobertores com o livro que Ted lhe emprestara,

estudar a vida dos caçadores de baleias no Alasca, imaginar a

simplicidade dos primitivos nômades, desfrutar os estranhos hábitos

sexuais dos esquimós. O costume de oferecer uma viúva recente aos

rapazes adolescentes como parte de ritos de iniciação de repente

provocou uma agradável agitação nos seus quadris. Amanhã de manhã

explicaria tudo às suas amantes e elas seguramente o perdoariam.

Afinal, era mais ou menos um motivo de força maior.

Além da sensação de alívio e do sinal dos quadris, sentiu também se

abrir o apetite. Não havia comido nada até agora. Então foi até a

cozinha, e, mesmo de pé, devorou cinco fatias de pão com geleia,

comeu um pote de iogurte, engoliu duas xícaras de chá com mel, e

arrematou com uma pastilha contra azia. Para estimular a sua bexiga

vacilante, puxou a descarga no meio, perdeu a corrida, e teve que


esperar o reservatório se encher. Porém cansou-se de esperar,

percorreu o apartamento apagando as luzes, depois ficou junto à janela

para examinar o que havia de novo nos campos vazios que se

estendiam até Belém: talvez houvesse algum sinal de um brilho

distante. Escutou com prazer as batidas da janela sob o castigo do forte

vento noturno.

Aqui e ali, nas encostas escuras, brilhavam luzes pálidas: casas de

pedra árabes espalhadas entre os pomares e os penhascos. As sombras

das colinas o iludiam, como se estivessem trocando carícias

imaginárias, não carícias do nosso mundo. Era uma vez um tempo em

que reis e profetas, redentores, reformadores do mundo, loucos que

ouviam vozes, zelotes, ascetas e sonhadores andavam por Jerusalém. E

um dia no futuro, daqui a cem anos ou mais, novos homens,

totalmente diferentes de nós, aqui estariam em nosso lugar. Homens

sábios e moderados. Sem dúvida, julgariam nossos problemas

estranhos, incompreensíveis, estarrecedores. Entrementes, no tempo

presente, entre o passado e o futuro, nós fomos designados para

habitar Jerusalém. A cidade foi confiada à nossa supervisão. E nós a

enchemos de opressão, imbecilidade e tristeza. Infligimos humilhação,

frustração, tortura, uns aos outros, não por arrogância, mas

simplesmente por preguiça e medo. Perseguimos o bem e causamos o

mal. Temos intenção de consolar, e em vez disso magoamos.

Buscamos aumentar o conhecimento, e em vez disso aumentamos a

dor.

“Não me julgue!”, disse Fima em voz alta e zangada virando-se para

Yoezer. “Fique quieto. De qualquer maneira, o que pode saber você,

um sujeitinho tão insípido? E, além disso, quem lhe dirigiu a palavra?”

Grandes estrelas brilhantes reluziam diante dos seus olhos. Fima não

sabia os nomes, tampouco sabia qual era Marte ou Júpiter ou Saturno.

Mas ansiava saber de onde vinha aquele sentimento vago, pois não era

a primeira vez. Que tinha estado aqui antes, muito tempo atrás. Que já

vira aquelas estrelas brilhando numa noite de inverno fria e deserta.

Não da janela deste apartamento, mas talvez da porta de uma das

pequenas casas de pedra entre os penhascos do lado oposto. E naquela

ocasião perguntara a si mesmo o que as estrelas no céu queriam de nós

e o que dizia a sombra das colinas na escuridão. E a resposta era


simples. E fora esquecida. Apagada. Embora, por um momento, tivesse

a sensação de que a resposta estava se debatendo no limiar da sua

memória, tão perto que podia estender a mão e tocá-la. Encostou a

cabeça no vidro, e tremeu de frio. Bialik, por exemplo, alegou que as

estrelas o tapearam. Prometeram e não cumpriram. Marcaram um

encontro e não apareceram. Mas, na verdade, é o contrário: não foram

elas que nos tapearam, fomos nós que tapeamos as estrelas. Fomos nós

que prometemos e não cumprimos. Elas nos chamaram, e esquecemos

de ir. Falaram, e nos recusamos a ouvir. Gaivotas voam, e se vão.

Digam uma palavra. Só uma pequena indicação, uma pista, um sinal,

um indício, e no mesmo instante eu me levanto e vou. Não paro nem

mesmo para trocar de camisa. Levanto e vou. Já. Ou me jogo aos seus

pés. Caio em transe.

Lá fora, o vento soprou mais forte. Rajadas de água golpearam sua

testa através da vidraça. O buraco nas nuvens sobre as colinas de

Belém, através do qual as estrelas tinham brilhado, também estava

escuro agora. De repente imaginou ter ouvido um choro estridente ao

longe, como se um bebê tivesse sido abandonado num cobertor

molhado nas encostas do wadi. Como se ele precisasse sair correndo

imediatamente e ajudar a mãe a procurar o seu filho perdido. Porém

disse a si mesmo que provavelmente nada mais era do que uma

veneziana rangendo. Ou uma das crianças da vizinhança. Ou um gato

se congelando no quintal. Por mais que forçasse o olhar, só conseguia

ver a escuridão. Nenhum sinal, nem nas colinas, nem nas pálidas luzes

das casas de pedra espalhadas pela encosta oposta, nem nas trevas do

céu. Sim, é injusto, cruel, chamar-me assim e não dar ao menos uma

pequena indicação de onde ir. De onde será o encontro. Se haverá

encontro ou não. Se quem está sendo chamado sou eu ou um dos

meus vizinhos. Se há ou não há alguma coisa no meio dessa escuridão.

E de fato, nesse momento, Fima sentiu todo o peso das trevas sobre

Jerusalém. Trevas sobre cúpulas e campanários, trevas sobre torres e

muros, trevas sobre pátios de pedra e bosques de pinheiros antigos,

sobre conventos e oliveiras, sobre mesquitas e grutas e sepulcros,

sobre tumbas de reis e de profetas verdadeiros e falsos, trevas sobre

ruas tortuosas, trevas sobre os prédios do governo e sobre ruínas e

portões e sobre campos cheios de pedras e sobre terrenos espinhosos,


trevas sobre as tramas, desejos e delírios enlouquecidos, trevas sobre as

colinas e sobre o deserto.

A sudoeste, acima das elevações que cercam a aldeia de Ein Karem,

as nuvens começaram a se mexer, como se uma mão invisível estivesse

puxando uma cortina. Como a sua mãe, que costumava puxar todas as

cortinas do apartamento nas noites de inverno. Uma noite, quando

Fima estava com três ou quatro anos, ela esqueceu de fechar a cortina

do seu quarto. Ele acordou e viu uma figura tênue do lado de fora,

olhando imóvel para ele. Uma figura fina, alta, envolvida por um

círculo de luz pálida. Então a figura se apagou. E se materializou de

novo na outra janela, como uma névoa tocada pelo luar. E se apagou

de novo. Lembrava-se de como tinha despertado em pânico, sentado

na cama e chorado. Sua mãe veio e se curvou sobre ele vestindo uma

camisola com um cheiro gostoso. Ela também parecia alta e branca e

tocada pelo luar. Ela o segurou nos braços e lhe jurou que não havia

nada lá, que a figura era só um sonho. Fechou as duas cortinas

cuidadosamente, arrumou os lençóis e cobertores, e deu-lhe um beijo

na testa. Mesmo tendo parado de chorar e se escondido debaixo do

cobertor, mesmo que ela tenha ficado no quarto até ele adormecer de

novo, Fima sabia, mesmo agora, com certeza total e absoluta, que não

tinha sido um sonho, e que a sua mãe também sabia disso e havia

mentido. Mesmo agora, cinquenta anos depois, estava convencido de

que um estranho estivera sim ali. Não em sonho, mas realmente lá fora,

do outro lado da vidraça. E que a sua mãe também o tinha visto. E ele

sabia que aquela havia sido a pior mentira entre todas as mentiras que

lhe contaram na vida. Foi essa mentira que levou embora o seu

irmãozinho, e condenou a sua mãe a desaparecer na flor da idade, e a

ele mesmo estar aqui e não estar aqui todos esses anos, procurando em

vão o que não havia realmente perdido, e sem a menor ideia do que

era e qual a sua aparência, e onde e como procurar.

Mesmo que algum dia encontrasse, como poderia saber?

E se já tivesse encontrado, largado e seguido adiante, continuando a

procurar como um cego?

Gaivotas voam e viajam e se vão.

O vento cessou seus uivos. Um silêncio gelado passou a reinar. Às

quinze para as onze Fima mudou de ideia, vestiu o chapéu e o casaco,


saiu para a rua deserta, o frio agudo e cortante. Foi até um telefone

público no lado oposto do centro comercial. Mas ao erguer o fone do

gancho, também esse aparelho só emitiu um silêncio mortal. Quem

sabe não era um problema de toda a região? Teriam depredado o

telefone? Ou estaria toda Jerusalém novamente desligada de si mesma e

do mundo exterior? Fima desistiu e delicadamente recolocou o fone no

gancho. Encolheu os ombros e disse: “Parabéns, companheiro”, pois se

lembrara de que, de qualquer maneira, não tinha ficha telefônica.

Amanhã acordaria cedo e explicaria tudo para as suas duas amantes.

Ou sairia e iria embora.

O sussurrar dos pinheiros encharcados, o frio úmido, o vazio das

ruas, tudo isso combinava com Fima. E ele passou a vagar rumo às

encostas e os campos. Sua mãe tinha o estranho hábito de soprar sua

comida, mesmo que ela já tivesse esfriado, mesmo que fosse comida

fria, como salada ou compota de frutas. Ao soprar, os lábios dela se

fechavam num beijo. Seu coração sentiu uma dor profunda, pois

naquele momento, quarenta e cinco anos após a sua morte, Fima quis

beijá-la de volta. Sentiu vontade de virar o mundo de ponta-cabeça e

encontrar o capuzinho azul com o pompom solto, e devolvê-lo à sua

mãe.

Quando chegou ao fim da rua, que era também o fim do bairro e o

fim da cidade, Fima tomou consciência de algo transparente

preenchendo todo o universo. Como se milhares de pegadas de seda

macia estivessem cochichando de todos os lados. Como se a sua face

estivesse sendo tocada por dedos que não são dedos. Quando a

sensação de encantamento passou, ele conseguiu identificar finos

flocos de neve. Uma neve muito fina começava a cair sobre Jerusalém.

Embora derretesse imediatamente ao tocar em algo. Não tinha o poder

de branquear a cidade cinzenta.

Fima voltou para casa e começou a procurar no cesto de papéis sob a

escrivaninha a conta que tinha amassado e jogado fora ontem ou

anteontem. Não achou a conta, mas achou sim uma folha amassada do

jornal Ha’arets. Desamassou a folha e a levou junto para a cama. Leu a

respeito de um falso messias atual até que seus olhos se fecharam e ele

adormeceu com o jornal cobrindo-lhe o rosto. Às duas da madrugada

parou de nevar. Jerusalém permaneceu gelada e vazia no escuro, como


se uma desgraça já tivesse ocorrido e o povo todo tivesse sido exilado

novamente.
26

GELLA

No sonho Gad Eitan chegava num jipe militar com uma metralhadora

montada na capota para convocá-lo a uma reunião com o presidente.

O gabinete presidencial se localizava num porão onde havia uma

pequena sinagoga, nos limites do campo russo atrás da central de

polícia. Junto à escrivaninha estava sentado um arrogante oficial

britânico, vestindo um uniforme preto com um cinto de couro. Ele

aconselhou Fima a assinar uma confissão voluntária de culpa do

assassinato de um cão, que, no sonho, se transformara numa mulher

cujo cadáver estava jogado aos pés da Arca Santa, embrulhado num

lençol infectado de manchas de sangue enegrecido. Fima solicitou

permissão para ver o rosto da mulher morta. O inquisidor sorriu e

replicou: Para quê? Não é uma pena acordá-la? É Gella outra vez. Ela

arriscou a vida por você, fez você chegar ao lado ariano, salvou a sua

vida repetidas vezes, e você a traiu. Quando Fima tomou coragem para

perguntar a punição que o aguardava, o ministro da Defesa respondeu:

Veja que imbecil você é. O crime é que é a punição.


27

FIMA SE RECUSA A CAPITULAR

Às seis e meia da manhã despertou com um susto porque um objeto

pesado caiu no andar de cima e logo em seguida ouviu-se um grito de

mulher, não um grito longo nem particularmente alto, mas terrível,

desesperado, como se ela tivesse visto a sua própria morte. Fima saltou

da cama e enfiou as calças, depois saiu correndo para o terraço da

cozinha para ouvir melhor. Não ouviu nenhum som vindo do andar

superior. Só um pássaro invisível, repetindo as mesmas três delicadas

sílabas, como se tivesse chegado à conclusão de que Fima era tão lerdo

para captar as coisas que seguramente não iria entender. Será que

deveria subir depressa para ver o que tinha ocorrido? Oferecer ajuda?

Telefonar já para a polícia ou chamar uma ambulância? Porém, se

lembrou de que seu telefone estava desligado, de modo que estava

liberado da obrigação de intervir. Além disso, era possível que a queda

e o grito tivessem acontecido no sonho, e ele apenas causaria

constrangimento e faria papel ridículo.

Em vez de voltar para a cama, continuou parado no terraço da

cozinha, de camiseta de mangas compridas, entre os remanescentes de

gaiolas, vasos e caixas onde ele e Dimi tinham mantido uma vez a sua

lata de minhocas. Agora, exalavam um cheiro de deterioração, de

serragem molhada misturada com restos enegrecidos de comida podre:

cascas de pepinos e cenouras, folhas de alface e repolho. No início do

inverno, Dimi decidira libertar no wadi as tartarugas, insetos e minhocas

da coleção.

E a neve da noite passada?


Era como se não tivesse sido.

Nem vestígios restaram.

Os morros vazios ao sul de Jerusalém estavam límpidos, inundados

por uma luminosidade azul, de modo que era quase possível distinguir

brilhos prateados no lado de baixo das folhas das oliveiras distantes ao

longo da serra de Beit Jalla. Era uma luz fria, penetrante, cristalina, uma

luz que talvez nos fosse enviada como uma antecipação do longínquo

fim dos dias, quando não haverá mais sofrimento no mundo, Jerusalém

será libertada de seus tormentos, e as pessoas que tomarão nossos

lugares viverão sua vida em tranquilidade, consideração, bom senso e

prazer: então a luz no céu será assim para sempre.

O frio estava amargo, cortante, mas Fima, na sua camiseta de inverno

amarela, não sentia. Ficou parado, debruçado na grade, enchendo os

pulmões de um ar saboroso, admirando-se da existência do sofrimento

em meio a tanta beleza. Um pequeno milagre ocorrera logo abaixo, no

pátio dos fundos. Uma amendoeira excêntrica, impaciente, resolveu

subitamente florescer, como se o seu calendário estivesse totalmente

alterado. Estava coberta de minúsculos vaga-lumes que haviam

esquecido de se apagar com o amanhecer. Uma miríade de gotículas

de chuva brilhava nos brotos rosados. A amendoeira recordava a Fima

uma mulher magra, bonita, que chorou a noite inteira e não enxugou

as lágrimas. Esta imagem despertou nele uma alegria infantil, e amor, e

saudades de Yael, de todas as mulheres, sem distinção, e a resolução

firme de abrir uma página nova na sua vida, a partir desta manhã: ser

de agora em diante um homem racional e direto, um homem bom,

limpo de mentiras e livre de fingimentos. Então vestiu uma camisa

limpa e o suéter de Yael. Com uma determinação que o deixou

surpreso, subiu as escadas e apertou com firmeza o botão da

campainha da vizinha. Após alguns instantes, a sra. Pizanti abriu a

porta vestindo um roupão semidesabotoado por cima da camisola. Sua

face larga, infantil, deu a Fima a impressão de estar distorcida, como se

ela tivesse apanhado. Mas talvez fosse mais ou menos essa a aparência

de qualquer pessoa ao acordar. Atrás dela, na luz fraca de neon do hall

de entrada, os olhos do marido brilhavam. Era um sujeito hirsuto e de

porte atlético, muito mais alto que a mulher. Ela perguntou se tinha

acontecido alguma coisa. Fima disse:


“Ao contrário... desculpe... nada... pensei que alguma... coisa talvez

tenha caído aqui? Ou quebrado? Parece, eu acho que ouvi... algo assim?

Parece que eu me enganei. Talvez tenha sido só uma explosão lá

longe. Talvez os Fiéis do Messias tenham dinamitado todo o monte do

Templo. E no lugar tenha restado apenas o vale do Pranto.”

“Perdão?”, disse a vizinha, fitando Fima estarrecida e ligeiramente

apreensiva.

O sr. Pizanti, ex-técnico de raios X, respondeu por trás dela num tom

em que Fima pôde sentir cheiro de mentira:

“Aqui está tudo cem por cento, senhor Nisan. Quando o senhor

tocou a campainha eu pensei: quem sabe o senhor está com algum

problema? Não? Está precisando de alguma coisa? Acabou o café de

novo? Queimou um fusível? Quer que eu desça e troque para o

senhor?”

“Obrigado”, disse Fima, “é muito gentil da sua parte. Tenho bastante

café e a eletricidade está em ordem. E só o meu telefone que está

quebrado, mas, na realidade, estou até contente; afinal, eu posso ter

um pouco de sossego. Mais uma vez desculpem eu incomodar tão

cedo de manhã. Só pensei que, talvez... não importa. Obrigado e

desculpem.”

“Não há problema”, disse Pizanti calorosamente. “De qualquer modo,

nós sempre acordamos às seis e quinze. Se quiser dar um telefonema,

fique à vontade. Por conta da casa. Ou talvez, o senhor quer que eu

desça e dê uma verificada nos seus contatos? Quem sabe haja algum fio

solto?”

“Eu estava pensando”, disse Fima atônito com as palavras que ouviu

saindo da sua boca, “em ligar para uma amiga minha que talvez tenha

ficado me esperando desde ontem à noite. Na verdade, duas amigas.

Mas, agora, não acho que seja tão ruim deixá-las esperar. Que

esperem. Não é urgente. Desculpem ter incomodado.”

Quando estava prestes a ir embora, a sra. Pizanti disse com hesitação:

“Pode ser que o vento tenha derrubado alguma coisa lá fora. Alguma

bacia ou algo assim. Mas conosco está tudo bem.”

Estas palavras deixaram Fima convencido de que estavam mentindo.

Mas perdoou aos vizinhos, porque não tinha motivo para esperar que

eles lhe contassem sobre a briga que provavelmente estavam tendo, e


também porque ele próprio não dissera a verdade acerca de telefonar

para suas amigas. De volta ao seu apartamento, disse:

“Como você é idiota!”

Mas imediatamente perdoou também a si mesmo, porque a intenção

tinha sido boa.

Durante uns dez minutos fez a sua ginástica na frente do espelho,

barbeou-se, vestiu-se, passou um pente no cabelo, ferveu água no bule

elétrico novo, fez a cama, e dessa vez conseguiu executar corretamente

todas essas tarefas. Ele bateu nela, pensou, e pode ser que até tenha

batido a cabeça dela contra a parede; ele podia ter matado a mulher, e

quem sabe se um dia desses não vai matá-la, talvez ainda hoje de

manhã. O que Hitler fez conosco não terminou em 1945; ainda

continua, e aparentemente vai continuar para sempre. Atrás de cada

porta acontecem fatos sombrios, atos de crueldade e desespero. A

insanidade está borbulhando debaixo do país inteiro. Três vezes por

semana o nosso longo braço captura os assassinos em seu ninho. Não

conseguimos adormecer antes de infligir um pequeno pogrom aos

cossacos. Toda manhã sequestramos Eichmann e toda noite

eliminamos Hitler pela raiz. No basquete derrotamos Chmielnicki, e na

Eurovision vingamos Kishinev. Mas que direito tenho eu de me meter?

Teria o maior prazer de chegar galopando num cavalo branco e salvar

aquela dona Pizanti. Ou os dois. Ou o país inteiro se eu soubesse

como. Se eu tivesse uma ideia de como começar. Lá vem o Baruch com

seu cavanhaque de Trotski e a sua bengala entalhada. Ele faz a sua

parte para endireitar o mundo, com doações e verbas. Enquanto eu,

tudo o que faço é assinar manifestos. Quem sabe eu deveria ter

persuadido aquele guarda ontem à noite a me deixar entrar e falar com

Shamir? Para um papo franco e aberto. Ou apresentar Shamir ao meu

motorista de táxi?

Ocorreu-lhe que deveria se sentar e redigir um apelo breve, porém

sincero, para a direita radical. Sugerir-lhes em poucas linhas, no Ha’arets,

um esboço genérico para um consenso nacional parcial. Um pacto

novo entre os moderados e o elemento radical não messiânico, que

talvez esteja disposto, apesar de tudo, a engolir uma devolução parcial

dos Territórios não fosse o fato de que essa postura se desenha como

uma tendência da esquerda a uma pacificação desmedida. O motorista


estava certo: Nosso maior erro nos últimos vinte anos tem sido não

levar a sério as sensibilidades de Pizanti e sua mulher e centenas de

milhares de outros israelenses como eles, nos quais os árabes

despertam sentimentos genuínos de raiva, medo e suspeita. Tais

sentimentos merecem ser tratados não com agressividade, e sim com

um esforço racional, progressivo, de apaziguá-los por meio de

argumentos inteligentes. Em vez de raciocinar em conjunto,

esvaziamos sobre eles uma bacia enorme cheia de paternalizações

ridículas. Portanto, faz sentido tentar um acordo que defina os limites

precisos da disposição que nós, os moderados, temos para as

concessões territoriais aos árabes. De modo que não imaginem, como

Baruch, que estamos pregando, por assim dizer, uma liquidação total.

De modo que saibam que nós, a esquerda, estamos até preparados

para ir de novo à guerra se percebermos que o lado árabe está nos

tapeando ou enrolando. Dessa maneira, temos a possibilidade de

conseguir apaziguar alguns dos radicais e romper o impasse.

A palavra impasse fê-lo recordar que havia esquecido de acender o

aquecedor. Curvou-se e, para seu alívio, descobriu que ainda havia

bastante querosene. Depois de acender o aquecedor, sentiu

necessidade de consultar Tsvi Kropotkin antes de se sentar para redigir

o apelo. Em seu entusiasmo, não se importou de incomodar Tsvi outra

vez no meio da barba, pois sentia que esta sua nova ideia era

potencialmente frutífera e benéfica e, na verdade, bastante urgente.

Porém, mais uma vez o telefone estava mudo. Fima teve a impressão

de que o silêncio era menos profundo do que o silêncio da noite

anterior. Uma espécie de ruído fraco, áspero, como um ranger de

dentes, parecia se fazer ouvir. Um lamento das profundezas. Fima

interpretou o ruído como um primeiro sinal de recuperação. Estava

seguro de que o aparelho não estava morto, apenas em coma

profundo, e que agora, mesmo que ainda não tivesse recobrado a

consciência, começava a dar uma débil resposta, um leve gemido de

dor, um pulso fraco dando motivos para esperança. Mesmo levando

em consideração o fato de que a geladeira começara a rugir na

cozinha. Portanto, podia-se esperar que a esperança não fosse

prematura demais.
Até mesmo a expressão “elemento radical” subitamente lhe pareceu

repugnante: era errado caracterizar seres humanos como “elementos”.

Além disso, julgou ridículo colocar os pensadores da direita no divã do

psiquiatra: como se o nosso campo fosse a personificação da saúde

mental. Nós também estamos confusos pelo desespero, frustração e

raiva. Nós também estamos presos numa armadilha emocional, não

menos do que os nossos adversários. Não menos que os árabes. Além

disso, a expressão “nosso campo” é totalmente ridícula. O que significa

“nosso campo”? O país inteiro é uma frente de batalha, toda a nação é

um exército. Tudo está dividido em campos. As forças da paz. Os

batalhões da moderação. As tropas de choque da coexistência. As

unidades do desarmamento. Os comandos da fraternidade dos povos.

A ponta de lança da reconciliação.

Em vez de redigir o apelo, Fima foi até a janela para botar as ideias

em ordem. Observou a luz de inverno se espalhar como uma

substância nobre sobre os morros e encostas. Ele conhecia e adorava o

conceito de “metais nobres”, embora não tivesse a menor noção de

quais eram. Certa vez, no apartamento do pai em Rehavia, Baruch e

Dimi tentaram forçá-lo a uma aula de química básica. Fima, como uma

criança, teimosa, defendeu-se com gracejos e jogos de palavras, até que

Dimi disse: “Esqueça, vovô. Não é para ele”. E os dois embarcaram sem

ele para uma viagem pelo mundo dos ácidos e álcalis, que Fima

detestou por causa da sua azia.

A luz beijou os picos, inundou os vales, despertando em cada rocha e

árvore a sua capacidade de brilhar, tantos dias encoberta pelas

camadas de rotina cinzenta e sem vida. Era como se, aqui em

Jerusalém, há milhares de anos a terra tivesse perdido o poder de se

renovar a partir do seu interior. Como se apenas o toque gracioso dessa

luz encantada pudesse restaurar, ainda que fugazmente, a qualidade

primordial soterrada nos dias da Antiguidade. O Venerável poderia me

agraciar com o favor de um leve meneio de cabeça se eu me prostrar

de joelhos e oferecer minhas humildes orações de gratidão? Existe algo

que o Venerável gostaria que eu fizesse? Será que o Venerável está de

alguma forma interessado em nós todos? Por que o Venerável nos

colocou aqui? Por que nos escolheu? Por que escolheu Jerusalém? O

Venerável ainda está escutando? O Venerável está sorrindo?


As antigas expressões aramaicas correspondentes a termos como

“dias da Antiguidade”, “não do nosso mundo” e “o lado oculto”

enchiam Fima de um senso de mistério, reverência e temor. Por um

momento perguntou a si mesmo se não seria possível que, afinal, a luz

e a lama, os vaga-lumes na amendoeira e o céu radiante, a terra árida

que se estendia para Leste, daqui até a Mesopotâmia, e para o Sul até

Bab el-Mandeb na ponta da península Arábica, e também o seu

apartamento desarrumado e o seu corpo envelhecendo e até mesmo o

seu telefone quebrado, fossem apenas manifestações do mesmo ser,

um ser condenado a viver dividido em infinitas, imperfeitas e

perecíveis materializações, mesmo que ele em si fosse uno, total e

eterno. Só mesmo numa manhã de inverno como essa, sob o véu

nupcial da luz cristalina, que talvez seja a que se refere a expressão

aramaica “luminosidade superna” — nehorá maaliá —, é que a terra, junto

com os seus olhos observadores, recupera a vibração do toque

primordial. E tudo retorna ao estado de inocência original. Como no

dia da Criação. E por um instante desaparece o manto sombrio da

melancolia e da ilusão.

E assim os pensamentos de Fima chegaram ao velho conceito da

“Jerusalém celeste”, ao qual ele deu a sua própria interpretação, válida

apenas para o que sentia naquele momento específico. Refletiu sobre o

fato de que em certas ocasiões o estado de sono parecia menos tingido

de falsidade do que o estar desperto, e em outras ocasiões parecia o

contrário, e que a vigília extrema se torna o estado ideal tão almejado.

Agora chegava ao pensamento de que talvez se tratasse não de dois

estados, e sim de três: sono, vigília e essa luz que o estava inundando

por fora e por dentro desde que despertara nessa manhã. Por desejar

um nome adequado definiu a luz para si mesmo: o Terceiro Estado. E

sentiu que não era apenas uma questão de pura luz sobre as colinas, e

que era sim a luz também fluindo realmente a partir das colinas e a

partir dele próprio, e que justo na fusão daqueles raios de luz criava-se

o Terceiro Estado, equidistante do estado de todo desperto e do sono

mais profundo, e, no entanto, distinto de ambos.

Não há no mundo perda mais trágica, pensou, do que perder o

Terceiro Estado. Isso acontece por causa do noticiário no rádio, por

causa dos negócios, por causa de desejos vãos e da busca de


trivialidades. Todo o sofrimento, disse Fima a si mesmo, tudo o que é

ridículo e obsceno, é mera consequência da perda do Terceiro Estado,

ou daquela sensação vaga e onipresente que nos faz recordar, de

tempos em tempos, que existe, fora e dentro, quase ao nosso alcance,

algo fundamental para onde estamos sempre nos dirigindo, e sempre

acabamos errando o caminho. Chamaram, e você não foi. Falaram, e

você não ouviu. Abriram a porta, e você se atrasou porque sempre opta

por satisfazer um ou outro capricho. “O mar do silêncio devora

segredos”, mas você se preocupou com assuntos banais. Preferiu tentar

impressionar alguém, que por sua vez também se perdeu porque

preferiu impressionar um outro, que também... e assim por diante. Ao

pó. Repetidas vezes você rejeitou o que existe em favor do que não

existe, nunca existiu, e não pode existir. Gad Eitan estava certo quando

disse que aqui reina o desperdício. A esposa dele estava certa em ir

embora enquanto podia. A sequência de prioridades, disse Fima para si

mesmo em voz alta e triste, está totalmente errada. Que pena, por

exemplo, que Tsvi Kropotkin, um homem trabalhador, tenha passado

três anos caçando os detalhes das atitudes da Igreja Católica em relação

às viagens de Magalhães e Colombo, como alguém costurando botões

em roupas que há muito tempo viraram trapos. Ou Uri Gefen, pulando

de um caso amoroso para outro, bem desperto mas com o coração

dormindo.

Com isso, Fima decidiu parar de ficar ociosamente em pé junto à

janela e começar a deixar o lugar pronto para receber os pintores, que

viriam logo após o fim de semana. É preciso tirar os quadros das

paredes. E também o mapa de Israel, sobre o qual desenhara certa vez

fronteiras razoáveis para um acordo. É preciso juntar toda a mobília no

meio da sala, e cobri-la com pedaços de plástico. É preciso guardar os

livros. E também todos os pratos, vasilhas e panelas. Por que não

aproveitar a oportunidade para se livrar das pilhas de jornais velhos,

revistas, panfletos e folhetos? É preciso desmontar as estantes, e isso

significa pedir a ajuda de Uri, que está para voltar, quem sabe esta

noite? Ou amanhã? Ou depois de amanhã? E então Nina poderá dar o

seu relatório detalhado de como tentou, não uma mas duas vezes,

prestar o seu serviço regular de assistência a mim, e encontrou a

torneira entupida. Talvez possamos convocar Shula Kropotkin como


reforço para guardar os objetos de cozinha. Talvez Annette Tadmor

ficasse feliz em dar uma ajuda. E os Pizanti também manifestaram

disposição em ajudar, contanto que não se matem antes um ao outro. E

Teddy, sem dúvida, terá o maior prazer em vir tirar as cortinas e as

luminárias. Talvez traga Dimi junto. O velho tem razão: Faz mais de

vinte anos que este ninho recebeu um trato pela última vez. O teto está

imundo, preto por causa do aquecedor a querosene. Há teias de aranha

nos cantos. Há mofo no banheiro. Os azulejos estão rachados. A

pintura está descascando. Há manchas de umidade. E um cheiro

úmido, de suor azedo, o ano inteiro. Um cheiro de solteirão. Não é só a

lata de minhocas no terraço que cheira mal. Você está tão acostumado

que nem repara mais.

Seguramente o hábito é a raiz de todo mal. Era justo nisso que Pascal

estava pensando quando escreveu sobre a morte da alma.

Num canto da escrivaninha Fima achou um folheto verde

anunciando descontos enormes no supermercado local. Num dos

cantos do anúncio rabiscou as palavras:

Hábito é o começo da morte. Os hábitos são a quinta coluna.

E embaixo:

Rotina = falsidade.

Habituar — desgastar — deteriorar.

Sua intenção era lembrar a si mesmo a necessidade de aperfeiçoar e

desenvolver tais conceitos durante o fim de semana. E já que tinha

lembrado que amanhã era Shabat, deduziu que hoje é sexta-feira, de

onde inferiu que terá que fazer algumas compras. Mas sexta-feira é o

seu dia de folga, a clínica está fechada, então por que se apressar? Por

que começar a arrastar mobília às sete da manhã? Melhor esperar os

reforços. Não há urgência. Mesmo que, ao olhar o relógio, tenha visto

que não são sete horas, e sim oito e vinte. Hora de trocar uma ou duas

palavras com Tsvika, que a esta altura certamente já terá terminado o

ritual de se barbear.

Teria havido alguma melhora adicional na condição do telefone?

Fima tentou outra vez. Conseguiu ouvir um leve som mas que ainda

não tinha chegado ao nível de ser um sinal de discar. Apesar de tudo,

discou o número de Yael. E concluiu que teria que esperar a

recuperação total do paciente, pois as suas tentativas impacientes


poderiam retardar o processo. Ou estaria o telefone de Yael também

quebrado? Estaria toda a cidade desligada? Seria uma greve?

Sabotagem? Represálias? Teriam explodido a central telefônica durante

a noite? Teria um grupo terrorista de direita assumido o controle dos

meios de comunicação e dos outros centros governamentais? Teria

havido um ataque de mísseis sírios? A menos que Ted Tobias estivesse

novamente perto do telefone proibindo Yael de atender. Fima sentiu-se

mal, não por causa de Ted, mas pelos seus próprios jogos de palavras.

Amassou o folheto do supermercado e o jogou no cesto de papéis.

Errou o alvo, mas não se incomodou em se agachar debaixo da mesa

para procurá-lo. Para quê? De qualquer modo daqui a pouco isto aqui

vai virar um caos.

Preparou outra xícara de café para si, comeu alguns pedaços de pão

com geleia para matar a fome, tomou duas pastilhas para matar a azia.

Depois foi dar uma mijada. Ficou furioso com seu corpo, sempre o

incomodando com as suas necessidades, impedindo-o de seguir uma

linha de pensamento ou observação. Ficou em pé alguns instantes sem

se mexer, cabeça virada para o lado, boca semiaberta, como que

imerso em meditação profunda, e o pau na mão. Apesar da pressão da

bexiga, foi incapaz de soltar uma só gota. Recorreu ao subterfúgio

habitual, puxando a descarga na esperança de que o ruído da água

correndo fizesse o seu órgão se lembrar dos seus deveres. Mas este se

recusou a ceder ao velho e gasto estratagema. Parecia dizer: Está na

hora de arranjar uma brincadeira nova para mim. Relutante, liberou um

jato breve e fino, como favor especial. Logo que a descarga acabou, o

jato patético parou também. A sua bexiga permanecia aflitivamente

cheia. Fima sacudiu o órgão contraventor, primeiro com delicadeza,

depois com mais violência, porém nada aconteceu. Finalmente puxou

a descarga mais uma vez, mas o reservatório ainda não tivera tempo de

se encher, de modo que em vez do rugir da correnteza forte, ouviu-se

um grunhido oco, debochado, como se a descarga estivesse zombando

das desgraças de Fima. Como se na sua atitude de desafio estivesse se

solidarizando com o telefone.

Mesmo assim persistiu. Não recuou. Desencadearia uma guerra de

desgaste contra o seu órgão recalcitrante. Muito bem, vamos ver quem

se dobra antes. O pedaço de carne mole entre seus dedos de repente


lhe pareceu um lagarto, uma espécie de criatura grotesca surgida das

profundezas do processo evolucionário e agora pendurada

irritantemente ao seu corpo. Daqui um ou dois séculos as pessoas

provavelmente poderão substituir esse problemático apêndice por um

simples dispositivo mecânico, capaz de drenar os líquidos supérfluos

do corpo com um simples toque. Toda a absurda associação entre os

processos de urinar e copular por meio de um mesmo órgão pareceu a

Fima uma expressão crua de vulgar humor adolescente, e de mau

gosto: não seria muito pior se os seres humanos se reproduzissem

cuspindo um na boca do outro, ou enfiando a ponta do nariz na orelha

da parceira.

Entrementes, o reservatório ficou cheio. Fima puxou mais uma vez a

descarga, e conseguiu soltar outro jato intermitente, que mais uma vez

parou no instante em que cessou o ruído da água. Ficou bravo: e

pensar em todos os esforços sobre-humanos que fizera nos últimos

trinta anos para satisfazer a cada capricho e apetite desse réptil

insaciável, mimado, egoísta, corrupto, que transforma você num mero

veículo criado com o único propósito de transportá-lo

confortavelmente de uma mulher para outra, e no final, é com essa

ingratidão que ele retribui.

Como se estivesse se dirigindo a uma criança caprichosa, Fima disse:

“Muito bem. Você tem exatamente um minuto para se decidir. Pelo

meu relógio, daqui a cinquenta e cinco segundos fecho o zíper e me

vou. E não me importa se você tiver que aguentar até estourar.”

A ameaça serviu apenas para reforçar a recusa do réptil: ele pareceu

se agitar entre os seus dedos. Fima resolvera que desta vez não faria

concessões. Furiosamente puxou o zíper e bateu com força a tampa do

vaso. Bateu a porta do banheiro atrás de si. Cinco minutos depois,

bateu a porta do apartamento, passou pisando duro ao lado da caixa

de correio sem sucumbir à tentação de pegar o jornal, e marchou

resoluto rumo ao centro comercial. Decidiu passar primeiro no banco

para quatro operações diferentes, que ficou recitando para si mesmo

no caminho para não esquecer. Primeiro, tirar algum dinheiro. Estava

cheio de andar por aí sem um centavo no bolso. Segundo, pagar as

contas: telefone, água, querosene, esgoto, gás, eletricidade. Terceiro,

saber finalmente a situação da sua conta. Quando chegou à papelaria


da esquina, já tinha esquecido o quarto item. Fez um esforço mental,

mas não adiantou. Por outro lado, notou uma nova edição da revista

Política exposta no interior da loja. Entrou e folheou a revista durante

quinze minutos, chocado ao ler o artigo de Tsvi Kropotkin, que

sustentava que as chances de paz eram nulas, pelo menos num futuro

próximo. Era preciso visitar Tsvika ainda esta manhã, e conversar com

ele coisas muito sérias sobre o derrotismo da intelectualidade: não o

derrotismo bobo do qual nos acusam os nossos adversários da extrema

direita, e sim algo diferente, algo mais profundo e, a longo prazo,

muito mais grave.

Seu acesso de fúria trouxe algum benefício: saindo da papelaria,

Fima abandona a calçada, entra num terreno baldio, passa por um

prédio em construção, e mal tem tempo de abrir o zíper antes que a

sua bexiga se esvazie com um sonoro ruído. Sente um triunfo tão

grande que não se importa de sujar de lama os sapatos e a barra da

calça. Rumando em direção ao norte, passa pelo banco sem reparar

nele, mas observa com excitação que a amendoeira no seu quintal dos

fundos não é a única que floresceu sem esperar o Tu Bishvat — a festa de

Ano Novo das árvores. Embora, pensando bem, não esteja muito certo

disso, porque não sabe qual é a data de hoje segundo o calendário

judaico. Aliás, não consegue se lembrar da data nem pelo calendário

laico. Em todo caso, não há dúvida de que ainda estamos em fevereiro,

e já a primavera ergue a cabeça. Fima sentiu aqui um simbolismo: não

se perguntou o que estava sendo simbolizado, mas sente que há lugar

para se sentir feliz. Como se tivesse sido nomeado, sem pedir,

responsável por toda a cidade, e para sua surpresa descobrisse não ter

fracassado totalmente no desempenho de suas funções. O azul-pálido

do amanhecer havia se transformado num azul-escuro, como se o mar

tivesse sido suspenso sobre a cidade alegrando-a com um colorido

infantil. Gerânios e primaveras brotavam nos jardins. Os baixos muros

de pedra brilhavam como se estivessem sendo acariciados. “Nada mau,

hein?”, disse Fima mentalmente para um turista ou hóspede invisível.

No trevo para Bayit Vagan estava um jovem vestido com um capotão

do exército, uma submetralhadora no ombro e cercado de ramos de

flores. Sugeriu que Fima levasse um buquê de crisântemos para o

Shabat. Fima perguntou a si mesmo se não seria um colonizador dos


Territórios que criava suas flores na terra de outra pessoa.

Imediatamente concluiu que alguém que estava disposto a fazer a paz

com Arafat não deveria lançar destruição sobre os seus oponentes

domésticos. Embora pudesse ver motivos para tanto. Mas não

conseguiu encontrar nem raiva nem ódio no seu coração, talvez por

causa da luz do dia. Nessa manhã, Jerusalém parecia um lugar onde

todos deveriam respeitar as diferentes opiniões dos outros, então

enfiou a mão no bolso e achou três moedas de um shekel, sem dúvida

o troco que recebera na noite anterior do seu novo ministro das

Informações. Apertou as flores contra o peito como se quisesse

protegê-las do frio.

“Perdão?”, disse Fima. “Você disse alguma coisa? Sinto muito. Eu não

ouvi.”

O rapaz que estava vendendo flores disse com um sorriso:

“Eu só disse Shabat Shalom — um bom Shabat.”

“Certo”, concordou Fima, lançando as fundações para um novo

consenso nacional. “Obrigado. Para você também, Shabat Shalom.”

O ar estava frio, vítreo, mesmo sem vento. Como se a própria luz

contivesse um elemento ártico ofuscante. A palavra ofuscante provocou

um arrepio estranho e misterioso. É preciso evitar a malevolência,

pensou, mesmo quando ela se oculta sob o disfarce de um princípio.

Ele precisava repetir e repetir para si próprio que o verdadeiro inimigo

era o desespero. Era vital não ceder ao desespero, não se submeter a

ele. O jovem Yoezer e seus contemporâneos, as pessoas moderadas e

razoáveis que viverão suas vidas cuidadosamente regradas em

Jerusalém depois de nós, ficarão atônitos com o sofrimento que

causamos a nós mesmos. Mas no final não se lembrarão de nós com

raiva. Nós não capitulamos sem lutar. Mantivemo-nos em Jerusalém o

quanto pudemos, contra forças incomparavelmente superiores e mais

poderosas. Não sucumbimos pacificamente. E, mesmo que no final

tenhamos sido sobrepujados, ainda temos a vantagem do “junco

pensante” de Pascal.

E foi assim que, excitado e despenteado, com os sapatos cheios de

lama, às dez e quinze da manhã, agarrado a um maço de crisântemos e

tremendo de frio, Fima tocou a campainha da casa de Ted e Yael.


Quando Yael atendeu, vestindo calças de veludo cinza e um suéter cor

de vinho, ele disse a ela sem o menor constrangimento:

“Eu estava de passagem e resolvi dar uma paradinha, só um minuto,

para desejar Shabat Shalom. Espero não estar atrapalhando. Devo voltar

amanhã? Semana que vem tenho pintores em casa. Não faz mal. Trouxe

umas flores para você, para o Shabat. Posso entrar por um ou dois

minutos?”
28

EM ÍTACA, À BEIRA-MAR

“Tudo bem”, disse Yael, “entre. Mas lembre-se de que eu tenho que

sair daqui a pouco. Espere um pouco, deixe-me abotoar a sua camisa

direito. Diga, quando foi a última vez que você trocou de camisa?”

Fima disse:

“Eu e você temos que conversar.”

Yael disse:

“Ah não. Outra vez não.”

Ele a seguiu até a cozinha. No caminho espiou dentro do quarto.

Tinha uma vaga esperança de ainda ver a si mesmo dormindo naquela

cama desde anteontem à noite. Mas a cama estava arrumada e coberta

com uma colcha de lã azul-escura. De cada lado, havia duas lâmpadas

iguais sobre dois criados-mudos iguais. E sobre cada criado-mudo um

único livro solitário e, como num hotel, um copo d’água, um

bloquinho de notas e um lápis. Havia até dois relógios despertadores

iguais.

Fima disse:

“O Dimi não está bem. Não podemos continuar fingindo que não há

nada de errado com ele. É melhor colocar as flores logo na água, são

para você, para o Shabat. Comprei de um morador dos assentamentos

novos. Além disso, você faz aniversário agora, no fim de fevereiro.

Você não quer fazer um café para mim? Vim a pé desde Kiiyat Yovel e

estou congelando de frio. O meu vizinho de cima tentou assassinar a

mulher às cinco da manhã. Subi correndo para ajudar e só fiz papel de


bobo. Não faz mal. Vim conversar com você sobre o Dimi. Aquela

noite, quando vocês saíram e eu fiquei tomando conta dele...”

“Escute, Efraim”, interrompeu Yael, “por que você tem que se meter

na vida de todo mundo? Eu sei que o Dimi não está bem. Ou que nós

não estamos nos saindo bem com ele. Você não está me dizendo nada

de novo. Até aí, você também não está lá aquelas coisas.”

Fima entendeu que deveria dizer adeus e ir embora. Mas sentou-se

num banquinho da cozinha, olhou para Yael com devoção canina,

piscou seus olhos castanhos, e começou a explicar que Dimi era uma

criança infeliz e perigosamente solitária. Naquela noite, enquanto

tomava conta do menino, algo viera à tona, não importam os detalhes,

mas ele tinha ficado com a impressão de que o garoto, como dizer,

estava precisando de ajuda.

Yael ligou o bule elétrico na tomada. Colocou café solúvel em dois

copos. Fima teve a sensação de que ela estava abrindo e fechando mais

portas e gavetas do que o necessário. Ela disse:

“Ótimo. Maravilhoso. Então você veio para me dar uma aula sobre os

problemas da educação infantil. Teddy tem um amigo, um psicólogo

infantil da África do Sul, e de vez em quando o consultamos. Então

pare de ficar procurando problemas e desgraças. Pare de atormentar

todo mundo.”

Quando Yael mencionou a África do Sul, Fima teve dificuldade de

conter o súbito impulso de explicar a sua concepção do que estava se

desenhando para um futuro próximo, quando o regime do apartheid

fosse derrubado. Estava convencido de que haveria um banho de

sangue, não só entre pretos e brancos, mas também entre brancos e

brancos e pretos e pretos. Quem podia afirmar que Israel não corria um

perigo similar? Mas a expressão “banho de sangue” lhe pareceu um

chavão gasto.

Ao seu lado na cozinha estava um pacote aberto de biscoitos de

manteiga. Inconscientemente, seus dedos se estenderam na direção do

pacote e ele começou a comê-los um por um. Enquanto Yael lhe servia

o café com leite, ele contou a ela, de forma não de todo direta, o que

acontecera duas noites antes, e como ele viera a adormecer na cama

dela enquanto Dimi ainda estava desperto à uma da manhã. Vocês

também não agiram direito: saíram para se divertir em Tel Aviv e nem
se incomodaram em deixar um telefone de emergência. E se o menino

tivesse uma dor de barriga? Ou levasse um choque elétrico? Ou se

envenenasse? Fima se atrapalhou porque não queria mencionar, nem

indiretamente, a história do sacrifício do cachorro. No entanto,

murmurou algo acerca de como os meninos vizinhos infernizavam a

vida de Dimi.

“Sabe, Yael, ele não é como o resto, ele usa óculos, é um menino

sério, é albino, é míope, pode-se dizer quase cego, é muito pequeno

para a sua idade, talvez por causa de algum distúrbio hormonal que

você deveria tratar, é hipersensível, é uma criança interna, não, interna

não, introvertida, “introvertida” também não é a palavra certa, talvez,

espiritual, de alma forte, não é fácil definir o Dimi. Ele é criativo. Ou,

mais precisamente, é um menino original e interessante, pode-se dizer

até mesmo um menino profundo.”

Depois Fima passou a falar sobre as dificuldades de se crescer num

tempo de crueldade e violência geral: noite após noite Dimi assiste

conosco aos noticiários na televisão, noite após noite o assassinato é

banalizado na tela. Falou também de si mesmo quando tinha a idade

de Dimi: também havia sido um menino introvertido, também não

tinha tido mãe, e o seu pai tentava sistematicamente enlouquecê-lo. E

disse que aparentemente o único laço emocional que o menino

formara tinha sido, entre todas as pessoas, com ele, Fima. Mesmo que

Yael soubesse perfeitamente bem que ele jamais havia se considerado

do tipo paternal. A paternidade sempre o deixara apavorado, embora

às vezes tivesse a sensação de que este fora um erro trágico, que as

coisas poderiam ter sido totalmente diferentes, se...

Yael o interrompeu secamente outra vez. Disse fria:

“Termine o café, Efraim. Preciso ir.”

Fima perguntou aonde ela precisava ir. Teria prazer em acompanhá-

la. A qualquer lugar. Não há mesmo nada para fazer nessa manhã.

Poderiam continuar a conversa. Ele acredita que é vital e urgente. Ou

seria melhor ele ficar e esperar a volta dela, e então poderiam

prosseguir? Ele não se importa de esperar. É sexta-feira, seu dia de

folga, a clínica está fechada, e no domingo virão os pintores, de modo

que a única perspectiva em casa é a tarefa deprimente de desmontar e

embrulhar. O que ela acha? Será que poderia emprestar o Teddy por
uma ou duas horas no sábado de manhã, para ajudá-lo a... Não

importa. Ele sabe que tudo isso é ridículo e irrelevante. Poderia passar

um pouco de roupa até ela voltar? Ou separar a roupa para lavar?

Numa outra vez, em breve, ele gostaria de lhe contar sobre uma ideia

que lhe ocorreu recentemente, uma ideia que ele chamava de Terceiro

Estado. Não, não é uma ideia política. É mais ou menos uma ideia

existencial, se é que se pode dizer “existencial” sem soar piegas.

“Procure me lembrar, basta dizer ‘Terceiro Estado’, e eu lhe explicarei

imediatamente. Talvez seja bobagem. Não é importante agora. Afinal,

aqui em Jerusalém, quase todo mundo que se vê é meio profeta e meio

primeiro-ministro. Inclusive Tsvika Kropotkin, inclusive o próprio

Shamir, esse nosso Brejnev. É mais um asilo de loucos do que uma

cidade. Mas não vim aqui falar de Shamir e Brejnev. Vim aqui falar do

Dimi. Dimi diz que você e o Teddy me chamam de palhaço nas minhas

costas. Por acaso você sabe que o seu filho tem chamado a si próprio

de palhacinho também? Você não fica um pouco abalada com isso? Eu

não me importo de ser chamado de palhaço. É apropriado para alguém

cujo próprio pai o considera um shlemiel e um shlemazel. Embora ele

mesmo também seja ridículo. Estou me referindo ao velho, Baruch. Sob

alguns aspectos ele é até mais ridículo do que eu ou o Dimi. É mais um

profeta de Jerusalém, com a sua fórmula pessoal de salvação em três

passos. Ele tem uma fábula, sobre um cantor que naufragou numa ilha

deserta nas Grandes Festas. Não importa. Aliás, ultimamente ele tem

assobiado um pouco. Quer dizer, a respiração dele. Chiando. Estou um

pouco preocupado. Ou talvez seja só impressão minha. O que você

acha, Yael? Quem sabe uma hora dessas você tem uma conversa com

ele, e o leva para o hospital para fazer uns exames? Ele sempre teve um

fraco por você. Você é a única pessoa capaz de dobrar a obstinação

revisionista dele. E este é um bom exemplo daquilo que eu disse sobre

todo jerosolimita querer ser o Messias. Mas e daí? Todos nós devemos

parecer ridículos para um observador imparcial. Até mesmo você, Yael,

com seus motores a jato. Quem precisa de motores a jato por aqui

quando carecemos de compaixão e bom senso? E nós todos, inclusive

o observador imparcial, somos ridículos quando observados pelas

montanhas. Ou pelo deserto. Você não diria que o Teddy é ridículo?

Aquela caixa ambulante? E o Tsvika? Esta manhã eu estava lendo um


artigo histérico dele, que procura provar cientificamente que o governo

está desligado da realidade. Como se a realidade morasse no bolsinho

dele, Tsvika. Agora, não dá para negar que o governo está cheio de

gente bem esquisita, e alguns chegam a ser desequilibrados. Mas como

foi que chegamos ao governo? É sempre isto que acontece conosco:

resolvemos ter uma conversa séria sobre nós mesmos, sobre o menino,

sobre questões efetivamente importantes, e o governo sempre dá um

jeito de se intrometer. Aonde você tem que ir com tanta pressa? Você

não precisa ir a lugar nenhum. E mentira. Sexta-feira também é o seu

dia de folga. Você está mentindo para se ver livre de mim. Você quer

que vá embora. Você está com medo, Yael. Mas medo de quê? De

começar a pensar enfim por que o Dimi começou a se chamar de

palhacinho?”

De costas para Fima, dobrando panos de prato e guardando-os um a

um na gaveta, Yael respondeu calmamente:

“Effy, de uma vez por todas: você não é o pai do Dimi. Agora acabe o

seu café e vá embora. Tenho hora no cabeleireiro. O filho que você

poderia ter tido vinte e cinco anos atrás, esse filho eu matei porque

você não o queria. Então, não me venha agora. Às vezes me sinto

como se nunca tivesse acordado direito da anestesia. E agora você vem

aqui me atormentar. Saiba que se o Teddy não fosse tão tolerante, essa

caixa ambulante como você diz, você já teria sido expulso desta casa

há muito tempo. Você não tem o que procurar aqui. Principalmente

depois do que fez naquela noite. Aqui já não é fácil mesmo sem você.

Você é um sujeito difícil, Efraim. Difícil e irritante. E eu ainda não estou

convencida de que você não é uma das causas da confusão mental do

Dimi: devagarinho, mas com certeza, você está deixando o menino

louco.” Após um momento, acrescentou: “E é difícil saber se é alguma

jogada sua ou sai da sua boca sem pensar. Você fica falando, falando o

tempo todo: você fala tanto que talvez tenha se convencido de que

possui sentimentos. De que está amando. De que é meio pai do Dimi.

Um monte de bobagens como essas. Mas por que estou conversando

com você sobre sentimentos, sobre amor? Você nunca entendeu nem o

sentido dessas palavras. Numa época, quando você lia livros e não

jornais, deve ter lido algo sobre amor e sofrimento, e desde então fica

circulando pelas ruas de Jerusalém discursando sobre o assunto. Há


pouco eu quase ia dizendo que você só ama a si mesmo, mas nem isso

é verdade. Você não ama nem a si mesmo. Você não ama nada. Talvez

só ame ganhar discussões. Não importa. Vista o seu casaco. Estou

atrasada por sua causa”.

“Você não me permite esperar aqui? Terei toda a paciência. Até de

noite, se precisar.”

“Na esperança de que o Teddy volte antes? E encontre você

dormindo na nossa cama outra vez, debaixo do meu cobertor?”

“Eu prometo”, sussurrou Fima, “que desta vez vou me comportar.”

Como se quisesse provar o que dissera, levantou-se de um salto e

correu para jogar o café na pia. Não tinha bebido nada, embora tivesse

comido distraidamente todos os biscoitos de manteiga. Notou que a pia

estava cheia de pratos e panelas sujas, arregaçou uma das mangas e

abriu a torneira. Ansioso, esperou a água esquentar. Mesmo quando

Yael disse: “Você está louco, Efraim, deixe isso para lá, vamos botar

tudo na lava-louças depois do almoço”, Fima não prestou atenção e

começou a lavar com entusiasmo, colocando os pratos cheios de sabão

sobre o tampo de mármore.

“Isso me relaxa”, disse. “Acabo em cinco minutos. Com a condição de

que a água quente venha logo. Tenho o maior prazer de lhe poupar

ligar a máquina. E os pratos ficam muito mais limpos assim. E por

enquanto podemos ir conversando mais um pouco. Qual das duas é a

água fria e qual é a quente? Onde estamos? Na América? Aqui é tudo ao

contrário? Mas se você precisa mesmo ir, por mim tudo bem. Vá e

volte, Yael. Prometo me restringir à cozinha. Não vou ficar passeando

pelo apartamento. Não vou nem usar o banheiro. Quer que eu dê

brilho nos garfos e nas facas? Ou quer que eu limpe a geladeira? Vou

ficar exatamente aqui e esperar, pode demorar o tempo que quiser.

Como um Solveig masculino. Estou lendo esse livro sobre os caçadores

de baleias no Alasca, e o livro fala do costume... Não importa. Não se

preocupe comigo, Yael. Não me incomodo em esperar o dia inteiro.

Em vez de se preocupar comigo, preocupe-se um pouco com o Dimi.

Para usar a expressão engraçada do Ted, pode dizer que o Dimi está

‘pra baixo’. Na minha opinião, a primeira coisa que deveríamos fazer é

achar um contexto social totalmente diferente para ele. Talvez um


colégio interno para crianças bem-dotadas? Ou talvez, ao contrário,

começar a educar por aqui um ou outro dos garotos vizinhos...”

De repente, traduzindo a sua revolta em fúria, Yael derrubou da sua

mão a frigideira e a esponja que Fima estava segurando.

“Basta. Acabou. Estou cheia dessa palhaçada. O que é que vocês

querem, que história é essa de vir aqui lavar a minha louça. De ficar o

tempo todo querendo despertar a minha compaixão. Não sinto a

menor compaixão por vocês. Não quero ser mãe de todo mundo. Esse

menino, o tempo todo maquinando alguma coisa. Mesmo que eu não

entenda o que ainda lhe falta, o que não compramos, vídeo, Atari,

compact disc, uma viagem aos Estados Unidos todo ano, e na semana

que vem uma televisão no quarto dele. Parece que estamos criando um

príncipe. E aí vem você o tempo todo, deixando o menino louco e

fazendo com que eu me sinta culpada, que tipo de pais somos nós,

enchendo a cabeça do Dimi com as mesmas ideias malucas que voam

na sua cabeça. Estou por aqui. Encheu. Acabou. Não apareça mais

aqui, Fima. Você finge que vive sozinho mas está sempre se agarrando

às outras pessoas. E eu sou exatamente o contrário; todo mundo se

agarra a mim, quando a única coisa que quero na verdade é ficar só. Vá

embora já, Efraim. Não tenho nada para dar para você nem para

ninguém. E não daria mesmo que tivesse. E eu não tenho queixa de

ninguém. O Teddy é sempre cem por cento. Nunca noventa e nove.

Ele é como um cronograma que diz o que é preciso fazer, e quando

tudo está feito, você apaga e anota compromissos novos. Hoje de

manhã ele se propôs a trocar o sistema de fiação do apartamento para

um sistema trifásico. Como presente de aniversário para mim. Você já

ouviu alguma vez um marido dar um sistema trifásico de presente de

aniversário para a esposa? E o Dimi rega as plantas da casa de manhã e

de noite, de manhã e de noite, até que elas morrem, e o Teddy compra

plantas novas, e elas também morrem afogadas. O Dimi sabe até

mesmo manejar o aspirador de pó; uma vez o Teddy ensinou para ele.

Ele passa o aspirador em tudo, até nos quadros e espelhos. Até nos

nossos pés. É impossível fazê-lo parar. Você se lembra do meu pai, o

querido e dedicado camarada Naftali Tsvi Levin, membro fundador da

histórica colônia de Yavne’el? Agora ele já é um pioneiro idoso, tem

oitenta e três anos e está completamente gagá. Fica sentado na sala dos
idosos em Afula, olhando o dia inteiro para a parede, e se você

pergunta alguma coisa para ele, do tipo como vai você, o que há de

novo, o que você precisa, quem é você, quem sou eu, onde está

doendo, ele invariavelmente responde com a mesma pergunta de três

palavras: ‘Em que sentido?’. E diz isso com uma entonação iídiche.

Essas três palavras são tudo o que restou a ele da Torá, do Talmude, do

Midrash, dos contos hassídicos, da Haskalá, de Bialik, e Buber e todas

as outras fontes de cultura judaica que um dia ele soube de cor. Estou

lhe dizendo, Efraim, em breve eu também vou ter apenas três palavras.

Não ‘Em que sentido?’ mas ‘Me deixem sozinha’. Me deixe sozinha,

Efraim. Eu não sou a sua mãe. Eu tenho um projeto que está se

arrastando há anos porque um bando de chorões vive me puxando

pela manga para limpar o nariz. Uma vez, quando eu era pequena, o

meu pai pioneiro me disse para eu me lembrar de que os homens eram

na verdade o sexo frágil. Era uma piada. Bom, posso lhe dizer uma

coisa, agora que já perdi o cabeleireiro por sua causa? Se eu soubesse

naquela época o que eu sei hoje, teria entrado para um convento. Ou

casado com um motor a jato. Teria passado longe do sexo frágil com o

maior prazer. Você dá um dedo, eles querem a mão. Você dá a mão

inteira, e eles não querem mais nem o dedo. Basta ficar sentada quieta,

fazer o café e não interromper. Não chamar a atenção sobre si. Lavar e

passar, fornecer sexo e calar a boca. Dê uma folga a eles... e daqui a

uma semana eles estarão de volta, de quatro. O que é exatamente que

você veio pedir hoje de mim, Efraim? Uma pequena foda matinal, em

memória dos bons tempos? O fato é que nem isso vocês querem,

nenhum de vocês. Dez por cento de desejo e noventa por cento de

atuação. Você aparece aqui quando acha que o Teddy saiu, carregado

de flores e frases bonitas, um perito em consolar órfãos e viúvas,

esperando que desta vez eu tenha pena de você e leve você para a

cama por quinze minutos. Como suborno para você ir embora. Eu

dormi com você cinco anos, e tudo o que você queria, noventa por

cento das vezes, era chegar logo ao ato, descarregar, se limpar, acender

a luz, e continuar a ler o seu jornal. Vá embora agora, Efraim. Sou uma

mulher de quarenta e nove anos, e você também já é um rapaz meio

velho. Essa história acabou. Não há segunda época. Eu tinha um filho

seu e você não quis. Na época, banquei a boa menina e assassinei a


criança para não estragar o seu destino poético. Por que você insiste

em ficar me perturbando, a mim e a todo mundo? O que mais você

quer de mim? Eu tenho culpa de você ter jogado fora tudo o que tinha,

que podia ter tido, tudo o que encontrou na Grécia? Eu tenho culpa de

que a vida passa e o tempo corrói todas as coisas? Eu tenho culpa de

que todos nós morremos um pouco todo dia? O que mais você quer de

mim?”

Fima se levantou, envergonhado, humilhado, cabisbaixo, gaguejou

uma desculpa vazia, começou a procurar o casaco, e de súbito disse,

timidamente:

“É fevereiro, Yael: logo vai ser o seu aniversário. Eu me esqueci. Ou

talvez já tenha sido. Não me lembro que dia é hoje. Não tenho nem três

fases para lhe dar de presente.”

“É sexta-feira, 16 de fevereiro de 1989. São onze e dez da manhã. E

daí?”

“Você disse que todos nós queremos alguma coisa de você e que

você não tem mais nada para dar.”

“Que milagre! Pelo jeito você conseguiu absorver meia sentença

apesar de tudo.”

“O fato é, Yael, que eu não quero nada de você. Ao contrário. Quero

encontrar alguma coisa que lhe dê um pouco de alegria.”

“Você não tem nada para dar. As suas mãos estão vazias. Em todo

caso, não se preocupe em me alegrar. Acontece que eu tenho uma

festa por dia. Quase todo dia. No trabalho, na minha prancheta, ou no

túnel de vento. Essa é a minha vida. Esse é o único lugar onde eu

posso realmente existir um pouco. Talvez seja hora de você começar a

fazer alguma coisa, Efraim. O seu problema é esse, você não faz nada,

só lê jornais e se aborrece. Por que você não vai dar aulas particulares,

se apresentar como voluntário para a defesa civil, fazer traduções, dar

palestras para os soldados sobre o significado da ética judaica?”

“Alguém, acho que foi Schopenhauer, escreveu que o intelecto

divide tudo em partes, enquanto a intuição restaura o todo perdido.

Mas eu lhe digo, Yael, que a nossa comédia não se divide em dois mas,

como sempre diz Rabin, em três. Schopenhauer e os outros ignoram o

Terceiro Estado. Espere, não interrompa. Me dê dois minutos para

explicar.”
Porém, ao dizer essas palavras, silenciou, mesmo que desta vez Yael

não o tivesse interrompido.

Disse:

“Vou lhe dar tudo o que tenho. Sei que é pouca coisa.”

“Você não tem nada, Effy. Só os restos que você mendiga de nós.”

“Você não quer voltar para mim? Você e o Dimi? Podemos ir para a

Grécia.”

“E viver de néctar e ambrosia?”

“Eu arranjo um emprego. Vou trabalhar de vendedor para a firma do

meu pai. Guarda-noturno. Até como garçom.”

“É claro, garçom. Você vai derrubar tudo.”

“Ou então, vamos os três viver em Yavne’el. No sítio que era dos seus

pais. Podemos ter uma criação de flores em estufa, como a sua irmã e o

marido. E reviver o pomar. Baruch nos dará dinheiro, e pouco a pouco

vamos conseguir restaurar as ruínas. Vai ser um sítio-modelo. Durante

o dia, o Dimi e eu tomamos conta dos animais. Construímos um

estúdio para você, com prancheta e computadores. E um túnel de

vento, se você me explicar o que é. Ao entardecer, na hora do

crepúsculo, vamos passear juntos pelo pomar. Nós três. Escurecendo,

colhemos o mel nas colmeias. Se você realmente quiser levar o Teddy

junto, não farei objeção. Teremos uma pequena comunidade. Vamos

viver sem mentiras, e sem a menor sombra de inveja. Você vai ver: o

Dimi vai se desenvolver e florescer de fato. E você e eu...”

“Sim, é claro, você vai acordar às quatro e meia da manhã todo dia,

de botas, foice, enxada, uma canção no coração e uma planta na mão,

e vai drenar os pântanos e conquistar a terra desolada de mãos vazias.”

“Não faça gozação, Yael. Eu reconheço que preciso aprender a amar

você a partir do nada. Então, tudo bem, vou aprender aos poucos.

Você vai ver.”

“Claro que vai. Um curso por correspondência. Ou na Universidade

Aberta.”

“Você vai me ensinar.” E então, ainda que timidamente, teve a súbita

coragem de acrescentar: “Você sabe muito bem que aquilo que você

disse antes não é totalmente verdade. Você também não queria o bebê.

Você nem queria o Dimi. Desculpe ter dito isso. Eu não tinha intenção.
Escapou da minha boca. Mas eu quero o Dimi. Eu o amo mais do que a

minha própria vida”.

Ela ficou de pé na frente de Fima no seu banquinho, com as suas

calças de veludo já gastas e o suéter vermelho meio desfiado, como se

estivesse fazendo todo o esforço do mundo para não dar um tapa

naquela cara rechonchuda. Seu rosto estava velho e cheio de rugas, os

olhos secos e faiscantes. Era como se não fosse Yael, e sim a mãe dela,

a se curvar sobre Fima, cheirando a pão preto, azeitona e sabonete

barato. E disse com espanto, com um estranho sorriso, não para ele,

nem para si mesma, e sim para o espaço vazio:

“Também foi no inverno. Também fevereiro. Dois dias depois do

meu aniversário. Em 1963. Quando você e o Uri estavam totalmente

absorvidos no Caso Lavon. A amendoeira atrás da nossa cozinha em

Kiryat Yovel já tinha começado a florir. E o céu estava bem como hoje,

perfeitamente claro e azul. Havia um programa de rádio com Shoshana

Damari. E eu peguei um táxi caindo aos pedaços, e fui para aquele

ginecologista russo na rua dos Profetas, que disse que eu me parecia

com Giulietta Masina. Duas horas e meia depois voltei para casa, e por

acaso no mesmo táxi com a pequena foto da princesa Grace de

Mônaco sobre a cabeça do motorista. E foi só. Lembro que fechei as

venezianas, puxei as cortinas e me deitei na cama escutando o

impromptu de Schubert no rádio, e depois uma aula sobre o Tibete e o

dalai-lama, e não levantei até de noite, e aí tinha começado a chover

outra vez. Você tinha saído cedo com o Tsvi para uma conferência de

história na Universidade de Tel Aviv. É verdade que você se ofereceu

para faltar e vir comigo. E é verdade que eu disse: ‘Pelo amor de Deus,

não é pior do que arrancar um dente de siso’. E de noite você chegou

brilhando de contentamento porque tinha conseguido surpreender o

professor Talmon numa contradição sem importância. Nós o matamos,

e não dissemos nada. Até hoje eu não quero saber o que fazem com

eles. Menor do que um franguinho de leite. O que eles fazem? Jogam

na privada e puxam a descarga? Nós dois o matamos. Só que você não

quis saber; nem quando, nem onde, nem como. Só quis ouvir de mim

que tudo estava acabado. E pronto. Mas o que você realmente queria

me contar era como tinha feito o grande Talmon ficar parado ali na

frente, confuso como um aluno de primeiro ano levando bomba num


exame oral. E na mesma noite você correu para a casa do Tsvika,

porque, no ônibus de volta para Jerusalém, vocês dois não tinham tido

tempo de terminar a discussão sobre as implicações do Caso Lavon.

Agora ele seria um rapaz de vinte e seis anos. Já poderia até ser pai de

um ou dois filhos. O mais velho teria a idade do Dimi. E você e eu

iríamos até o centro comprar um aquário e algum peixe tropical para os

nossos netos. Aonde você acha que deságuam os esgotos de Jerusalém?

No Mediterrâneo, via Nahal Shorek? E o mar chega até a Grécia, e ali a

filha do rei de Ítaca poderia tê-lo tirado das ondas. Agora ele é um

jovem de cabelos encaracolados sentado tocando lira sob a lua à beira-

mar em Ítaca. Acho que Talmon morreu alguns anos atrás. Ou foi

Prawer? E Giulietta Masina, não morreu também? Vou fazer um pouco

mais de café. Já perdi o cabeleireiro. Você podia muito bem cortar o

cabelo. Mesmo que não faça grande diferença para você. Pelo menos

você ainda se lembra de Shoshana Damari? ‘No céu brilha uma estrela,/

No wadi uiva o chacal.’ Lembra? Ela também está completamente

esquecida.”

Fima havia fechado os olhos. Ficou tenso, não com medo de levar

um tapa, ao contrário, como se esperasse por ele ansiosamente. Como

se não fosse Yael, nem a mãe de Yael, e sim a sua própria mãe

debruçada na sua frente exigindo que ele devolvesse já o capuzinho

azul que tinha escondido. Mas o que a fazia pensar que tinha sido ele?

E por que Yael acha que era um menino? E se fosse uma menina? Uma

pequena Yael com um cabelo longo e macio e rosto de Giulietta

Masina? Pôs os braços sobre a mesa e, sem abrir os olhos, escondeu

sua cabeça cansada entre eles. Podia praticamente ouvir a voz nasalada

e erudita do professor Talmon declarando que a compreensão que Karl

Marx tinha da natureza humana era ingênua e dogmática, para não

dizer primitiva, e, em todo caso, unidimensional. Fima respondeu

mentalmente com a pergunta perpétua do velho pai de Yael: Em que

sentido?

Quanto mais pensava nisso, menos conseguia achar resposta. No

entanto, do outro lado da parede, no apartamento vizinho, uma jovem

estava cantando uma canção esquecida que estivera nos lábios de

todos alguns anos antes. Falava de um homem chamado Johnny: “Não

havia homem como Johnny/ o homem que chamavam de Johnny


Guitar”. Tênue, infantil, quase ridícula, assim lhe pareceu a canção; e a

moça também não cantava bem. Fima de repente se lembrou de uma

vez que ele e Yael tinham feito amor, meia vida atrás. Era de tarde, eles

estavam numa pensãozinha no monte Carmel; ele a tinha

acompanhado para uma conferência no Technion de Haifa. Ela

fantasiou que ele era um estranho e ela uma moça que nunca tinha

sido tocada antes, tímida, inocente, nervosa. Ele tinha que seduzi-la,

com toda a calma e paciência. E ele conseguiu dar a Yael um prazer

próximo da dor. Conseguiu arrancar gritos de socorro, pedidos,

delicadas exclamações de surpresa. Quanto mais ele entrava no papel

do estranho, mais intenso e profundo se tornava o prazer. Até que um

misterioso sentido de percepção se fez sentir na ponta dos seus dedos,

em cada célula do seu corpo, proporcionando-lhe a capacidade de

saber exatamente o que dava prazer a ela, como se tivesse introduzido

um espião dentro do feixe de nervos da sua medula. Ou como se ele e

ela tivessem se tornado uma só carne. Até que cessaram de se tocar

como homem e mulher, e se tornaram um ser único saciando a sua

sede. Naquela tarde, ele se sentiu não como um homem tendo uma

relação com uma mulher, mas como se tivesse sempre vivido dentro

dela, como se o útero não fosse mais só dela e sim de ambos, o pênis

não mais só dele mas de ambos, e a pele de cada um como se fosse

uma só pele envolvendo os dois.

Ao entardecer, vestiram-se e foram dar um passeio por um dos

verdes vales nas encostas do monte Carmel. Caminharam em meio à

rica vegetação sem se falar nem se tocar, até o cair da noite, até uma

ave noturna cantar uma frase curta e terna. E Fima imitou o canto do

pássaro com perfeição, e Yael, num riso quente e suave, disse: “Meu

senhor, o senhor tem alguma explicação plausível do porquê eu de

repente o amo, embora não sejamos parentes nem nada?”.

Fima abriu os olhos e viu a sua ex-mulher, encolhida, quase curvada,

uma Giulietta Masina envelhecendo, de calças relaxadas de veludo e

suéter vermelho-escuro, ainda de costas para ele dobrando panos de

prato. Não é possível, pensou, que ela tenha tantos panos que possa

ficar dobrando-os para sempre. A não ser que esteja dobrando tudo de

novo porque não ficou satisfeita com o modo como ficaram da

primeira vez. Então se levantou, com a firmeza de um homem que sabe


exatamente o que fazer, e a abraçou por trás, pondo uma das mãos

sobre os seus olhos e a outra sobre a sua boca, e beijou-lhe o pescoço,

as raízes dos cabelos, as costas. O cheiro de sabonete e vestígios do

tabaco de Ted tomaram conta de suas narinas, provocando uma ligeira

vertigem de desejo, acompanhada de uma tristeza que o espantou.

Tomou nos braços o seu corpinho magro de menina, da mesma

maneira que havia carregado seu filho dois dias antes; agora, carregou

Yael e a deitou na mesma cama no mesmo quarto, e, da mesma

maneira que afagara Dimi, afagou suas bochechas. Mas não removeu a

colcha, nem tentou tirar suas roupas e as dela, mas apertou todo o

corpo dela contra o seu, e puxou a cabeça dela para o vazio dos seus

ombros. Em vez de dizer: “Você me faz falta”, por causa do cansaço

disse: “Você me dá culpa”. Ficaram deitados um ao lado do outro,

perto mas sem se abraçar, sem se mover, sem falar, o corpo de um

irradiando calor para o corpo do outro. Até que ela disse baixinho:

“Está bom. Agora seja bonzinho e vá.”

Fima obedeceu em silêncio. Levantou-se e encontrou o casaco,

tomou o resto do segundo café, que tinha esfriado como o anterior. Ela

me disse para ir até o centro comprar um aquário e um peixe tropical

para o Dimi, pensou, e é isso que eu vou fazer. Na saída conseguiu

fechar a porta com tanto cuidado que não fez um único som. Então, ao

tomar a direção norte, reinava o mesmo silêncio na rua e nos seus

pensamentos. Caminhou devagar ao longo de toda a rua Hehalutz, e

para sua própria surpresa tentou assobiar a melodia da velha canção

sobre o homem chamado Johnny Guitar. Então, refletiu, pode-se dizer

que tudo está perdido ou que nada está perdido, e, definitivamente, as

duas coisas não se excluem mutuamente. A situação parecia estranha,

porém maravilhosa: não dormira com a ex-mulher, mas não sentia falta

do seu corpo, ao contrário, sentia uma excitação, uma euforia, uma

sensação de preenchimento, como se, de alguma forma misteriosa,

tivesse havido uma relação sexual exata e profunda. Como se nessa

relação tivesse gerado o seu filho, seu único filho.

Mas em que sentido?

A pergunta parecia sem sentido. Num sentido sem sentido. E aí?

Quando chegou à rua Herzl, a chuva fina o fez perceber que

esquecera o boné na casa de Yael, na borda da mesa da cozinha. Mas


não ficou ansioso, porque sabia que voltaria. Ainda precisava explicar a

ela e a Dimi, e por que não a Ted, o segredo do Terceiro Estado. Mas

não agora. Não hoje. Não há pressa. Mesmo quando pensou em

Yoezer e as outras pessoas sadias e sensatas que viverão em Jerusalém

daqui a cem anos, ocupando o nosso lugar, não sentiu angústia, mas,

ao contrário, uma espécie de tímido sorriso interior. O que é que há?

Qual é a pressa? Que esperem. Que tenham paciência até chegar a sua

vez. Nós decididamente ainda não terminamos o nosso assunto aqui. É

um assunto lento, um assunto complicado, não há como negar, mas de

um jeito ou de outro ainda não demos a nossa última palavra.

Depois de alguns instantes, pegou o primeiro ônibus que apareceu,

sem se preocupar com o número ou o destino. Sentou-se atrás do

motorista e cantarolou baixinho, sem a menor vergonha de estar fora

de tom, a canção de Johnny Guitar. Não viu razão para descer antes do

ponto final, que era a rua Profeta Samuel. Apesar do frio e do vento,

Fima se sentia muito bem.


29

ANTES DO SHABAT

Estava tão feliz que não sentia fome, apesar de não ter comido nada

desde cedo, exceto os biscoitos que beliscou na cozinha de Yael.

Quando saltou do ônibus, a chuva tinha parado. Entre os tufos de

nuvens cinzentas, surgiam ilhas de céu azul. Por algum motivo, teve a

impressão de que as nuvens estavam paradas e as ilhas azuis flutuando

para oeste. E sentiu que o azul se dirigia a ele, chamando-o para que

também seguisse.

Fima começou a andar pela rua Ezequiel. Os dois primeiros versos da

canção sobre Johnny Guitar ainda ressoavam no seu peito. Mas como

era a continuação? Em que parte do mundo Johnny foi parar? Onde

está tocando agora?

Havia um cheiro de véspera de Shabat no bairro Bukhárim, apesar de

ainda ser meio-dia e meia. Fima tentou identificar os componentes

desse cheiro denso que lhe trazia recordações da infância e da fina

excitação que tomava conta dele e de Jerusalém à medida que se

aproximava o Shabat. O cheiro às vezes se espalhava já na quinta-feira à

tarde, com as atividades de lavar, esfregar e cozinhar. A empregada

costumava cozinhar pescoços de galinha recheados, costurados com

agulha e linha. A mãe fazia compota de ameixas, doce e melada como

cola. E cenouras doces cozidas, e peixe recheado — gefilte fish —, e

tortas ou strudel, ou pasteizinhos doces recheados de passas. E vários

tipos de geleias e doces, um deles chamado varyenne em russo. À

medida que andava, pôde sentir o cheiro do borsht e veio-lhe à mente a

imagem clara daquela sopa de beterrabas cor de vinho, com pedaços


de gordura flutuando como anéis dourados, e que ele costumava

pescar com a colher quando pequeno.

E toda sexta-feira sua mãe costumava esperá-lo exatamente ao meio-

dia no portão da escola, com a sua trança loura emoldurando o rosto

como uma grinalda e uma fivela de tartaruga marrom prendendo seu

cabelo dourado. Iam juntos fazer as compras de última hora no

mercado de Mahané Yehuda, ele de mochila nas costas e ela

carregando a sua pesada cesta de compras, com um anel de safira

reluzindo no dedo. Os odores do mercado, fortes, odores de

especiarias orientais, enchiam mãe e filho de um entusiasmo infantil.

Era como se estivessem conspirando secretamente contra a consistente

doçura europeia das tortas e bolos, das cenouras doces, do strudel e da

compota e das geleias meladas. E, de fato, seu pai desaprovava essas

corridas de sexta-feira ao mercado. Resmungava sarcástico que o

menino devia estar fazendo a lição de casa, ou melhorando a forma

física com alguma ginástica, e eles pagavam uma fortuna para ter

empregada, cuja função era precisamente fazer as compras, e com

certeza era possível comprar tudo nas proximidades, em Rehavia, de

modo que não havia necessidade de arrastar a criança para o meio

daquelas barracas fedorentas com líquidos imundos escorrendo pelo

calçamento. O Levante estava pululando de germes, e todos aqueles

temperos fortes com seus odores intensos nada mais eram do que um

disfarce para a sujeira. Ele costumava fazer uma piada sobre a atração

que a esposa sentia pelas Mil e uma noites, e chamava a ida ao mercado de

procura semanal por Ali Babá. Fima estremeceu por dentro com a

lembrança da emoção ilícita de ajudar sua mãe a escolher entre as

diversas qualidades de azeitonas pretas, com seu aroma quase

indecente e sabor forte, vibrante. Às vezes notava o olhar ardente de

um dos feirantes fixo na sua mãe, e embora fosse novo demais para

entender o significado, podia sentir de leve, como num sonho, o eco

de um tremor que percorria o corpo da mãe e parecia inundá-la e fluir

para o seu próprio corpo. Ali caminhando, conseguiu ouvir a voz dela

ao longe: “Veja o que fizeram com você, imbecil”. Mas dessa vez

respondeu com entusiasmo: “Não faz mal, você vai ver que eu ainda

não disse a minha última palavra”.


No caminho de volta para casa, ele sempre insistia em carregar a

cesta. E a outra mão, grudada na mão dela. Às sextas-feiras sempre

almoçavam num pequeno restaurante vegetariano na rua King George,

um restaurante de cortinas vermelhas que lhe davam a sensação de

estar no estrangeiro, conforme costumava ver no cinema. Os

proprietários eram um casal de refugiados de guerra, o sr. e a sra.

Danzig, pessoas muito delicadas e simpáticas, que se pareciam tanto

um com o outro que se podia pensar que eram irmão e irmã. Talvez

sejam mesmo, pensava Fima; quem pode saber? Seus modos educados

faziam a mãe de Fima sorrir como um raio de luz. Sentiu uma imensa

saudade ao se lembrar. No final da refeição, a sra. Danzig sempre

colocava diante de Fima dois exatos quadradinhos de chocolate com

amêndoas. E dizia sorrindo: “Isto é para bom menino que não deixou

nada no prato”.

Dizia “bom menino” sem colocar nenhum artigo, como se fosse o

nome dele. Quanto ao sr. Danzig, era um homem redondo com uma

das bochechas parecendo um pedaço de carne crua. Fima não sabia se

ele tinha uma doença de pele crônica ou um estranho sinal de

nascença, ou se eram vestígios de uma enorme queimadura. No final

dos almoços de sexta-feira, o sr. Danzig costumava entoar para Fima

sempre os mesmos versos, como um ritual:

Efrraim, filho igual não tem

Comer tudo, comer bem

Vai serr forrte e também

O herrói daqui...

Daqui onde?

A função de Fima, como se estivesse dizendo um texto numa peça

séria e precisa, era responder: “Jerusalém!”.

Mas uma vez se rebelou e respondeu, perversamente: “Danzig!”, pois

a conhecia por meio da coleção de selos do pai, e também por meio do

pesado atlas alemão que ele costumava folhear horas a fio, estirado no

tapete num canto da sala, principalmente nas noites de inverno. A

resposta fez o sr. Danzig dar um sorriso sem graça e dizer algo que

terminava com mein kind. Nesse meio-tempo os olhos da sua mãe por
algum motivo se encheram de lágrimas, e ela trouxe rapidamente a

cabeça de Fima para o seu colo e cobriu-o de beijos.

O que teria acontecido com o casal Danzig? Devem ter morrido

muito tempo atrás. Uma agência bancária já ocupava fazia alguns anos

o lugar daquele restaurantezinho sempre brilhando de tão limpo; uma

limpeza que mesmo agora, mil anos depois, Fima ainda sentia nas

narinas e que, por alguma razão, lembrava o cheiro da neve fresca. Em

cada mesa, sobre a toalha branca impecável, havia sempre uma rosa

num copo de vidro. As paredes eram decoradas com tranquilas

paisagens de lagos e florestas. Às vezes, numa mesa de canto perto do

vaso de palmeiras, um magro oficial britânico almoçava sozinho.

Sentava-se ereto, e deixava o quepe pontudo em cima da mesa, ao lado

do copo com a rosa. Aonde teriam ido aqueles quadros com lagos e

florestas? Em que lugar do mundo estará almoçando agora o solitário

oficial britânico? Uma cidade de saudades e loucura. Um campo de

refugiados, não uma cidade.

Mas você ainda pode levantar-se e fugir dela. Levar daqui o Dimi e a

Yael e ir para um kibutz no deserto. Levantar-se e pedir a mão de

Tamar, ou de Annette Tadmor. E se estabelecer com ela em Magdiel e

trabalhar como funcionário num banco, ou no serviço de saúde, ou na

previdência social, e voltar a escrever poesia à noite. Abrir uma página

nova. Aproximar-se um pouco do Terceiro Estado.

Seus pés o conduziram por conta própria pelo labirinto de ruelas

estreitas do bairro Bukhárim. Lentamente arrastou-se sob os varais

espalhafatosos e coloridos estendidos de lado a lado sobre a rua

cinzenta. Nos terraços com suas balaustradas de ferro ricamente

decoradas pôde ver folhas secas de palmeira, ainda restos da festa de

Sucot, ferro-velho, sucata, bacias de cobre, caixotes desmontados,

latas, todo o refugo das habitações deterioradas. Quase toda janela

tinha cortinas em cores berrantes. Nos parapeitos viam-se potes de

vidro com pepinos absorvendo lentamente a essência de alho, salsa e

dil. Fima de repente sentiu que esses lugares guturais, construídos em

torno de pátios com antigos poços de pedra, recendendo a carne

temperada, cebola, massas, assados e fumaça, lhe forneciam uma

resposta simples e direta para uma pergunta que ele se esquecera por

completo de formular. Mas sentia algo apertando seu peito, tanto por
fora como por dentro. Algo vindo à tona e submergindo, como a

esquecida canção de Johnny Guitar, como os lagos e florestas nas

paredes do pequeno restaurante aonde sua mãe costumava levá-lo às

sextas-feiras depois das compras no mercado. E disse para si mesmo:

“Já basta. Esqueça.”

Como alguém coçando uma ferida, sabendo que deve parar mas

incapaz de parar.

Na rua Rabenu Gershon cruzou com três mulheres baixas,

atarracadas, tão parecidas que Fima supôs serem irmãs, ou talvez mãe e

filhas. Fitou-as com um olhar intrigado. Eram mulheres opulentas, de

carnes generosas, de formas arredondadas como as escravas nas

pinturas de palácios orientais. Sua imaginação visualizou a nudez

abundante e expansiva delas, e depois a sua submissão e obediência,

como garçonetes servindo pratos quentes para uma fila de famintos

sem se dar o trabalho de distinguir o conteúdo dos recipientes,

concedendo a dádiva do seu corpo com indiferença, por hábito, e com

uma pitada de tédio. Nesse momento, o tédio e a indiferença

pareceram a Fima muito mais sexuais e provocantes do que toda a

estimulação erótica do mundo. No momento seguinte, surgiu uma

onda de vergonha que extinguiu a excitação. Por que desistira do

corpo de Yael nessa manhã? Se tivesse investido só um pouco mais de

sutileza e paciência, se tivesse persistido um pouco mais, certamente

ela teria cedido. Sem sentir nenhum desejo, mas e daí? E por acaso está

se falando de desejo?

Mas então, no fundo, está se falando de quê?

As três mulheres dobraram a esquina e desapareceram, mas Fima

ficou plantado no lugar, com olhar vago, excitado e envergonhado. A

verdade era que nessa manhã não tinha almejado o corpo macio de

Yael. Não, ansiara vagamente por um outro tipo de união, não uma

união sexual, não uma união entre mãe e filho, nem mesmo uma

união, algo a que Fima nem sabia que nome dar, mas mesmo assim

sentia que essa coisa, por mais que fosse fugaz e difícil de ser definida,

se ele pudesse ser abençoado com ela uma única vez, essa coisa

mudaria a sua vida para melhor.

Pensando melhor, as palavras “mudaria sua vida para melhor”

pareciam adequadas para um adolescente confuso e cheio de espinhas,


e não para um homem capaz de liderar uma nação para tirá-la da crise

e conduzi-la ao caminho da paz.

Pouco depois, ao lado de uma loja de sapatos que fazia também

consertos, Fima resolveu respirar fundo e sentir o cheiro da intoxicante

cola de sapateiro. Nesse ínterim, captou fragmentos de uma conversa

entre um senhor religioso de meia-idade, que parecia tesoureiro de

uma instituição de caridade ou funcionário de sinagoga, e um reservista

gordo, desarrumado, com a barba por fazer e a farda de campo

desleixada. O soldado disse:

“Na casa deles o rapaz sempre toma conta da avó. Não sai do lado

dela o dia inteiro. De trinta em trinta segundos ele verifica se ela não

sumiu de novo. Deus a proteja! A cabeça dela já não serve para nada,

mas ainda tem as pernas, e eu lhe digo, quando ela resolve usá-las é

rápida como um gato.”

O tesoureiro de meia-idade comentou com tristeza:

“O cérebro dentro da cabeça é como um pedaço de queijo. Branco-

amarelado, com pregas. Mostraram na televisão. Quando a memória

foge, hoje em dia os cientistas já sabem que é por causa da sujeira.

Aparecem uns vermezinhos que entram e começam lentamente a

comer o queijo do cérebro. Até ele ficar todo podre. Às vezes podemos

até sentir um pouco o odor.”

O soldado corrigiu com sabedoria:

“Não são vermes, são bactérias. Do tamanho de um grão de areia.

São difíceis de enxergar até mesmo com lente de aumento, e nascem

centenas e centenas delas a toda hora.”

Fima seguiu caminho ponderando acerca do que acabara de ouvir.

Por um momento suas narinas quase conseguiram capturar o odor de

queijo podre. Depois parou junto à porta da quitanda. Sobre a calçada

havia caixotes de berinjelas, cebolas, alface, tangerinas e laranjas; e

moscas voando em volta, e duas abelhas. Seria bom vir um dia aqui,

caminhar com o Dimi por estas ruas. Fima pôde sentir o calor da mão

do menino na sua mão vazia. E procurou imaginar os comentários

perspicazes que escutaria da boca do arguto Challenger quando

passeassem juntos; certamente passaria a olhar o bairro sob uma nova

luz. Dimi certamente perceberia aspectos que ele não enxergava, pois

não tinha a capacidade de observação do menino. De quem teria ele


adquirido essa habilidade? Teddy e Yael estavam sempre concentrados

nas tarefas que tinham pela frente, enquanto Baruch vivia absorto em

suas próprias fábulas e piadas. Talvez o melhor plano de ação seria

mudar-se para a casa deles. Poderia começar, por exemplo, com uma

invasão temporária, uma cabeça de ponte, usando os pintores como

desculpa, assegurando de antemão a eles que se tratava apenas de um

ou dois dias, no máximo uma semana, ele não seria estorvo, dormiria

de bom grado num colchão no quarto de serviço junto ao terraço da

cozinha. Logo que chegasse, começaria a cozinhar, lavar, passar a

ferro, tomar conta do Dimi enquanto estivessem fora, ajudar o menino

na lição de casa, lavar as roupas íntimas de Yael, limpar o cachimbo de

Ted; afinal de contas, eles passavam grande parte do dia fora, enquanto

ele era uma pessoa ociosa. Após alguns dias, teriam se acostumado ao

esquema. Apreciariam as vantagens. Ficariam dependentes dos

serviços domésticos de Fima. Não seriam capazes de se ajeitar sem ele.

Possivelmente seria justo Ted, um indivíduo de mente aberta e sem

preconceitos, um cientista de visão esclarecida, o primeiro a

reconhecer os benefícios para todas as partes. Dimi não precisaria mais

ficar solto o dia inteiro, dependendo da gentileza dos vizinhos, à mercê

de meninos agressores, ou condenado a uma reclusão solitária diante

da tela do computador. O próprio Ted seria aliviado da carga de viver

o tempo todo frente a frente com Yael. Ele também se sentiria um

pouco mais livre. E quanto a Yael, difícil prever: poderia aceitar o novo

arranjo encolhendo os ombros com indiferença, poderia dar

simplesmente uma das suas ocasionais risadas silenciosas, ou poderia

sair e voltar para Pasadena, deixando o Dimi para o Ted e para mim.

Esta última alternativa inundou a mente de Fima com um brilho de luz

superior. Parecia mesmo excitante: uma comuna, um kibutz urbano,

três amigos homens dedicados um ao outro, cheios de consideração,

unidos entre si por laços de afeto e atenção mútua.

O bairro todo fervia com os preparativos febris para o Shabat. Donas

de casa carregando cestas repletas de compras, comerciantes

anunciando aos berros os seus produtos, uma caminhonete maltratada,

com um farol traseiro quebrado parecendo uma venda de olho,

manobrando para trás e para a frente quatro ou cinco vezes, até que

por fim conseguiu milagrosamente se espremer numa vaga em cima da


calçada, entre dois caminhões igualmente maltratados. Fima se

rejubilou com o sucesso do chofer, como se fosse um presságio de que

também para ele uma oportunidade se abriria.

Um homem europeu, branco, de ombros caídos e olhos saltados,

parecendo sofrer de úlcera, ou talvez de uma doença terminal, ofegava

fortemente ao empurrar ladeira acima um ruidoso carrinho de bebê

carregado de provisões em sacos de plástico ou de papel, além de um

pelotão inteiro de refrigerantes. No topo da pilha havia um jornal

vespertino, cujas folhas se agitavam ao vento. Fima lançou um olhar

rápido nas manchetes quando estendeu o braço, pegou o jornal,

dobrou-o e o colocou no meio das garrafas, para que não voasse.

O homem simplesmente disse, em iídiche:

“Nu. Shoin.”

Um cachorro de cor indefinida aproximou-se com andar cauteloso,

rabo entre as pernas, farejou timidamente as barras da calça de um

Fima apreensivo, não achou nada de especial, e se afastou com um

rosnado inaudível. Seria possível, refletiu Fima, que este cão fosse o

filho do filho da filha da filha do famoso Balak, que oito anos atrás

ficou louco e aterrorizou estas mesmas ruas antes de morrer em agonia?

Num quintal viu os restos de um castelo construído por crianças com

caixas de papelão e caixotes de madeira quebrados. Depois, na parede

de uma sinagoga chamada Redenção de Sion — Santuário Menor da

Comunidade de Mashed, viu diversas pichações que parou para

inspecionar. “Lembra-te do dia do Shabat e santifica-o.” Fima julgou ter

detectado um pequeno erro de hebraico, embora, para sua decepção,

não tivesse certeza do erro. “Kahana é o maior — trabalhistas é pior.”

“Aos delatores não haja esperança.” Haja? Que haja? Haverá? Mais uma

vez não teve certeza, e resolveu verificar mais tarde, quando chegasse

em casa. “Shulamit Aloni trepa com Arafat.” “Lembra-se que pó tu és.”

Fima concordou com a última frase, e até fez um meneio de aprovação.

“Rachel Babaioff é uma puta.” À esquerda desta inscrição, Fima leu

com dor no coração: “Paz agora — paga lá fora”. Porém, ele sempre

soube que havia necessidade de chegar à base. E: “Olho por olho por”,

que fez Fima sorrir e se perguntar o que o poeta quisera dizer. Outra

mão escrevera: “Malmilian traidor vendeu à mãe!”. Fima, quando

percebeu a crase desnecessária, achou o erro interessante, já que


mudava totalmente o sentido da frase. Como se uma inspiração poética

tivesse guiado a mão do autor para produzir algo que não podia

entender mas que mesmo assim o satisfez.

Do lado oposto à sinagoga Redenção de Sion havia uma minúscula

papelaria, não mais do que um buraco na parede. A vidraça estava toda

pontilhada de moscas mortas, e ainda trazia as marcas da fita colada em

cruz para proteção contra explosões, recordação de uma das guerras

vencidas em vão. Atrás da pequena vidraça, estavam expostos vários

tipos de cadernos empoeirados, cadernos de exercícios com capas se

enrolando de tão velhas, uma foto apagada de Moshe Dayan na sua

farda de general diante do Muro das Lamentações, foto que também

não fora poupada das moscas, e compassos, réguas, e estojos de

plástico baratos, alguns dos quais traziam fotos de enrugados rabinos

ashkenazim ou sábios estudiosos sefaradim em vestes ornamentadas. Em

meio a tudo isso, o olhar de Fima pousou sobre um grosso caderno de

exercícios com uma capa de papelão cinza, contendo várias centenas

de páginas, do tipo que certamente era utilizado por escritores e

pensadores das gerações passadas. Sentiu uma súbita saudade da sua

escrivaninha, e um profundo ressentimento com os pintores que

estavam ameaçando a sua rotina.

Daqui a três ou quatro horas a sirene estaria tocando para anunciar a

chegada do Shabat. O corre-corre nas ruas iria desaparecer por

completo. Uma quietude linda e suave, o silêncio dos pinheiros e das

pedras e das gelosias, desceria das encostas das montanhas em torno

da cidade e tomaria conta de toda Jerusalém. Homens e rapazes em

vestes festivas, levando seus saquinhos bordados contendo os talitim —

os xales de orações —, caminhariam com toda a tranquilidade rumo às

incontáveis pequenas sinagogas espalhadas pelas ruas estreitas para

dizer as preces da noite. As donas de casa acenderiam velas, e os

chefes de família entoariam as bênçãos numa agradável melodia

oriental. Famílias se reuniriam em volta da mesa de jantar: gente pobre,

trabalhadora, que depositava sua confiança na observância dos

mandamentos, sem mergulhar em questões profundas demais, gente

que esperava o melhor, que sabia a sua obrigação, e que acreditava

com toda a segurança que os poderosos também sabiam as suas

obrigações, e que agiriam com sabedoria para cumpri-las.


Quitandeiros, merceeiros, comerciantes e mascates, aprendizes,

funcionários do baixo escalão da municipalidade e do governo,

funcionários dos correios, vendedores, corretores, trabalhadores em

toda sorte de ofícios. Fima procurou visualizar o dia a dia num bairro

como este e o encantamento do Shabat e das festas. Embora não se

esquecesse que os habitantes daqui sem dúvida ganhavam os seus

minguados rendimentos com o suor do rosto e viviam sobrecarregados

de dívidas, preocupações com o dinheiro no final do mês, hipotecas,

mesmo assim sentia que eles viviam uma vida decente, autêntica,

tranquila, com uma alegria serena que ele jamais conhecera e jamais

conheceria, até o dia da sua morte. De repente sentiu saudade de estar

sentado no seu quarto, ou talvez na elegante sala do apartamento do

pai, em Rehavia, cercado de mobília laqueada, tapetes orientais,

candelabros da Europa Central, e livros e porcelana fina e cristais,

concentrando-se finalmente no que é importante.

Mas o que é de fato importante? O que, em nome de Deus, é

importante?

Talvez isto: sair e fugir de uma só vez, a partir de hoje, a partir do

início do Shabat, de todo o falatório inútil, do desperdício, da mentira

sob a qual a sua vida está enterrada. Fima estava disposto a aceitar

humildemente o sofrimento, a se reconciliar enfim com a solidão que

trouxera para si mesmo com as próprias mãos, até o fim, sem direito à

apelação. Daí em diante viveria em silêncio, se desligaria do mundo,

romperia seus repugnantes laços com todas as mulheres boazinhas que

giravam pelo seu apartamento e pela sua vida, e cessaria de atormentar

Tsvi e Uri e o resto da turma com discussões sobre o inverso do

inverso. Amaria Yael à distância, sem ser um estorvo. Possivelmente

nem se preocuparia em mandar consertar o telefone: que também ele

permaneça em silêncio. Que ele pare de se gabar e de mentir.

E Dimi?

Fima dedicaria seu livro a ele. Porque, a partir da semana que vem

passaria diariamente cinco ou seis horas toda manhã, antes de ir para a

clínica, no salão de leitura da Biblioteca Nacional. Pesquisaria todas as

fontes sistematicamente desde o começo, inclusive as mais obscuras e

esotéricas, e em poucos anos estaria em posição de escrever um relato

objetivo e desapaixonado sobre a Ascensão e Queda do Sonho


Sionista. Ou talvez, em vez disso, escrevesse um romance espirituoso,

meio louco, sobre a vida, morte e ressurreição de Judas Iscariotes,

baseado nele próprio.

Porém, melhor não escrever. Melhor se despedir para sempre dos

jornais, do rádio e da televisão. No máximo escutaria programas de

música clássica. Toda manhã, verão ou inverno, acordaria com o nascer

do sol e caminharia uma hora no campo de oliveiras no wadi atrás da

sua casa. Aí teria um régio café da manhã: verduras, frutas e uma única

fatia de pão preto, sem geleia. Faria a barba, não, para que fazer a

barba? Deixaria crescer a barba rebelde, e se sentaria para ler e pensar.

Toda tarde, após o trabalho, dedicaria uma ou duas horas a passear

pela cidade. Aprenderia a conhecer Jerusalém sistematicamente. Aos

poucos descobriria os seus tesouros ocultos. Exploraria cada viela,

cada pátio, cada recanto; saberia o que se esconde atrás de cada muro

de pedra. Não aceitaria mais um único centavo do seu pai maluco. E à

noite, ficaria parado junto à janela escutando a sua voz interior, que até

agora sempre tentara silenciar com palhaçadas e asneiras. Aprenderia a

lição do pai senil de Yael, o veterano pioneiro Naftali Tsvi Levin, que

passava o tempo todo sentado olhando a parede, respondendo a todo

comentário com a pergunta: “Em que sentido?”. Uma pergunta nada

má, realmente. Mas pensando bem até mesmo esta pergunta pode ser

dispensada, já que o termo sentido é, por si só, vazio e desprovido de

sentido.

Os flocos do ano passado.

Azoy.

Fima lembrou com desprazer como na sexta-feira passada,

exatamente uma semana atrás, na casa de Tsvi e Shula Kropotkin,

depois da meia-noite a conversa passara a girar em torno do

componente russo, que tivera uma influência tão forte em várias

correntes do sionismo. Tsvika fez um comentário irônico acerca do

tolstoísmo ingênuo de A. D. Gordon e seus discípulos, e Uri Gefen

lembrou como o país já estivera repleto de fãs de Stalin e canções

sobre a cavalaria de Budyonny. Aí Fima se levantou, marchou

levemente, e fez a sala inteira rolar de rir quando começou a declamar,

com sotaque pegajoso e arredondado, uma passagem típica de uma

antiga transcrição da literatura russa: “Habitais vós também aqui, meu


bom homem? Ao lado de Spasov habito, nas proximidades do Mosteiro

B, a serviço de Martha Sergeyvna, irmã de Avdotia Sergeyvna ela é, se

Sua Honra se dignar a recordar, sua perna se quebrou, ao saltar ela de

uma carruagem, ao grande baile ela ia então. Agora habita ela junto ao

mosteiro, e eu... em sua casa.”

Uri dissera:

“Você bem podia fazer uma turnê pelo país. Apresentar o espetáculo

ao grande público.”

E Teddy dissera:

“Parece tirado diretamente da cena de casamento do Caçador de cervos

— como é mesmo o nome em hebraico?”

Enquanto Yael comentava secamente, quase para si mesma:

“Por que todos vocês o estimulam? Vejam o que ele está fazendo com

ele próprio.”

Agora Fima recebeu essas palavras como um tapa na cara, o que

trouxe lágrimas de gratidão aos seus olhos. E resolveu que nunca mais

bancaria o bobo na presença de Yael. Nem na presença de outros. De

agora em diante iria se manter concentrado.

Enquanto estava parado ali, programando a sua nova vida, examinou

os nomes dos moradores escritos numa fileira de velhas caixas de

correspondência na entrada de um prédio de pedras cinzentas. Ficou

surpreso de encontrar também aqui uma família Pizanti, e meio

surpreso ao não ver o seu próprio nome imediatamente abaixo. Um

estudante rabínico sefaradi, jovem, de óculos, vestido com roupas de um

religioso ashkenazi, se dirigiu a ele polidamente, cautelosamente, como

que receando uma reação violenta por parte de Fima, e o incitou a

seguir o mandamento de colocar, ali mesmo, os tefilin — filactérios.

Fima respondeu:

“Nu, e na sua opinião isso vai acelerar a vinda do Messias?”

O jovem replicou de imediato, avidamente, como se tivesse se

preparado para aquela exata pergunta, com um sotaque da África do

Norte porém com entonação iídiche:

“Fará bem para a sua alma. Você sentirá alívio e alegria

imediatamente. É impressionante.”

“Em que sentido?”, perguntou Fima.

É
“É um fato conhecido, senhor. Verificado e testado. Os tefilin do braço

limpam as impurezas do corpo, e os da cabeça purificam toda a sujeira

da alma.”

“E como você sabe que eu tenho um corpo impuro e uma alma suja?”

“Que o céu me proíba de dizer uma coisa tão horrível. Que eu não

peque pelos meus lábios. Todo judeu, mesmo sendo pecador — que

não aconteça conosco! —, a alma dele estava presente no monte Sinai.

É fato conhecido. É por isso que a alma de todo judeu brilha com a

luminosidade celestial. Entretanto, às vezes sucede, infelizmente, por

conta de todos os nossos problemas, por conta de toda a imundície

que toda a vida neste mundo inferior lança sobre nós, que a

luminosidade celestial dentro da alma se suja, por assim dizer. O que

uma pessoa faz quando entra sujeira no motor do carro? Bem, ela tira o

motor para limpar. Esta é uma metáfora para a sujeira da alma. O

mandamento de colocar tefilin é para se limpar instantaneamente. Num

instante o senhor se sentirá como novo.”

“E de que adianta um ateu colocar tefilin uma única vez e continuar

por aí pecando?”

“Bem, senhor, veja, é assim. Em primeiro lugar, mesmo uma única

vez ajuda. Melhora a manutenção. Um mandamento conduz a outro.

Também é como um carro: depois de tantos quilômetros, manda-se

fazer uma revisão, limpar o carburador, trocar o óleo e tudo mais.

Naturalmente, depois de ter investido um pouco na manutenção,

começa-se a cuidar melhor do carro. Para não desvalorizar. Aos poucos

começa-se a estabelecer uma rotina de manutenção diária, por assim

dizer. Só estou lhe dando esse exemplo para o senhor captar um pouco

a ideia.”

“Eu não tenho carro”, disse Fima.

“Não mesmo? Veja, é verdade o que dizem, que tudo vem do Céu. Eu

tenho um carro para o senhor. Uma pechincha que não se encontra por

aí. Uma oportunidade única. Mas primeiro estabelecer a diferença entre

sacro e profano.”

“Eu não sei guiar”, disse Fima.

“Vamos fazer o senhor passar no teste por trezentos dólares ao todo.

Número de aulas ilimitado. Ou damos um jeito de incluir no preço do


carro. Uma oferta especial. Só para o senhor. Mas, primeiro, os tefilin: o

senhor vai ver, vai se sentir como um leão.”

Fima riu:

“De qualquer modo, Deus se esqueceu de mim.”

“Em segundo lugar”, prosseguiu o jovem, alheio, com crescente

entusiasmo, “nunca se deve dizer ‘ateu’. Não existe isso de ateu.

Nenhum judeu do mundo pode dizer que é ateu. A palavra em si já é

uma injúria, até mesmo — que o Céu proíba! — uma blasfêmia.

Conforme está escrito, um homem não deve considerar a si próprio

perverso.”

“Acontece”, insistiu Fima, “que eu sou cem por cento ateu. Não

respeito um único mandamento. São só seiscentas e treze

transgressões.”

“Engano seu”, o jovem respondeu educadamente, porém com

firmeza, “o senhor está totalmente enganado. Não há no mundo inteiro

nenhum judeu que não siga alguns mandamentos. Nunca houve. Uns

seguem mais, outros seguem menos. Como diz o nosso rabino, é uma

questão de quantidade, não de qualidade. Da mesma forma que não

existe justo que nunca peque, não existe pecador que não cometa

alguns atos corretos. Mesmo poucos. Até o senhor, com o devido

respeito, observa diariamente alguns mandamentos, pelo menos.

Mesmo que uma pessoa se considere um completo herege, mesmo

assim ainda observa alguns mandamentos. Por exemplo, o fato de estar

vivo, com isso já está respeitando o mandamento: ‘Escolherás a vida’. A

cada uma ou duas horas, toda vez que o senhor atravessa a rua, está

escolhendo a vida, mesmo que pudesse ter escolhido o contrário. Que

o Céu proíba! Estou certo? E o fato de o senhor ter filhos — que se

conservem saudáveis —, com isso já observou o mandamento: ‘Crescei

e multiplicai’. E o fato de viver na terra de Israel — só aí já são mais

meia dúzia de mandamentos. E então, se às vezes o senhor se sente

feliz, é mais um. Todo mundo sai ganhando. Pode ser que às vezes o

senhor tenha algum déficit lá em cima, mas eles nunca cortam o

crédito. Crédito ilimitado, é isso. E nesse meio-tempo, para os poucos

mandamentos que o senhor observa, tem a sua própria poupança, e

cada dia investe um pouco mais, um pouquinho mais, e todo dia são

creditados juros e o seu capital vai aumentando. O senhor ficará


admirado da riqueza que tem sem saber. Conforme está escrito, o livro

da contabilidade fica aberto, e a mão vai anotando. Cinco minutos para

colocar tefilin, até menos de cinco minutos — creia-me, não vai doer —

e o senhor vai acumular um dividendo especial para o Shabat. Qualquer

que seja o seu ramo de negócios no mundo inferior, creia-me, não

existe investimento de cinco minutos que possa trazer um lucro tão

grande. Verificado e testado. Não. Bem, não é tão terrível. Talvez seja

porque ainda não tenha chegado a sua hora de pôr tefilin. Quando

chegar, o senhor saberá. Receberá um sinal inconfundível. O

importante é, senhor, não esqueça: Os portões do retorno estão

sempre abertos. Vinte e quatro horas por dia, como dizem. Inclusive no

Shabat e nas festas. Agora, com relação ao negócio do carro e do teste

de habilitação, pegue esses dois números de telefone.”

Fima disse:

“Neste momento não tenho nem telefone.”

O proselitista lançou um olhar lateral, pensativo, como se estivesse

fazendo alguma avaliação mental, e, hesitante, numa voz próxima a um

sussurro, disse:

“Que o Céu proíba, mas o senhor está metido em alguma confusão?

Devemos procurar alguém por aqui para ver o que podemos fazer para

ajudar? Não tenha vergonha de dizer. Ou talvez, o melhor seja dizer,

por que não vem passar o Shabat conosco? Sentir uma vez como é estar

no meio de irmãos?”

Fima disse:

“Não, obrigado.” Dessa vez havia algo em sua voz que fez o jovem

desejar-lhe timidamente um bom Shabat, e se afastar. Depois, ainda se

virou duas vezes, como se para se certificar de não estar sendo

seguido.

Por um instante, Fima lamentou não ter dado a esse mascate de atos

piedosos e carros usados uma resposta altissonante, um nocaute

teológico que ele não esqueceria jamais. Poderia ter lhe perguntado,

por exemplo, se recebia cinco pontos de crédito lá em cima por matar

uma menina árabe de cinco anos. Ou se trazer ao mundo uma criança

indesejada pela mãe era um ato virtuoso ou uma transgressão. Após

um momento, para sua própria surpresa, sentiu um pouco de

arrependimento por não ter dito sim, mesmo que fosse apenas para
proporcionar algum prazer a esse jovem norte-africano em trajes da

Rússia ou da Polônia, que, apesar da sua astúcia transparente, parecia

inocente e bem-intencionado. Sem dúvida estava, à sua própria

maneira, tentando consertar o que não pode ser consertado.

Entrementes, passou lentamente por uma carpintaria, por uma

mercearia com cheiro forte de peixe salgado, por um açougue cujo

dono lhe pareceu um assassino sanguinário, por uma lojinha sombria

que vendia perucas e fitas de cabelo, e parou numa banca de jornais

próxima para comprar as edições de fim de semana dos jornais Yediot,

Hadashot e Ma’ariv. Resolveu comprar dessa vez também, por mera

curiosidade, o jornal ultrarreligioso Yated Ne’eman. E assim, carregando

uma verdadeira montanha de jornais, entrou num pequeno café na

esquina da rua Zephaniah. Era um restaurante familiar, com três mesas

cobertas de fórmica rosa descascando, e iluminado por uma única

lâmpada muito fraca que lançava no ambiente uma luz amarela

doentia. Moscas vadias esvoaçavam por toda parte. Um homem com

jeito de urso cochilava atrás do balcão, barba entre os dentes, e Fima

ponderou por um momento acerca da possibilidade de na verdade ser

ele próprio atrás da mesa de recepção da clínica, transportado para cá

por algum tipo de magia. Sentou-se numa cadeira de plástico que não

lhe pareceu das mais limpas, e se esforçou para recordar o que a sua

mãe costumava pedir para ele mil anos atrás, às sextas-feiras no

restaurante dos Danzig. Acabou pedindo sopa de galinha, cozido,

salada mista, pão árabe e picles, e uma garrafa de água mineral.

Enquanto comia, manuseava a pilha de jornais, até os dedos ficarem

totalmente pretos e as folhas, por sua vez, cheias de manchas de

gordura.

No Ma’ariv; na segunda página, leu a notícia sobre um jovem árabe em

Jenin que tinha se queimado até morrer tentando incendiar um jipe

militar estacionado na rua principal da cidade. A investigação mostrou,

dizia a notícia, que uma multidão árabe que se reunira em volta do

jovem em chamas impediu a equipe militar de prestar os primeiros

socorros e não permitiu que os soldados se aproximassem o suficiente

para apagar as chamas, aparentemente acreditando que o jovem se

queimando até morrer na sua frente era um soldado israelense. O rapaz

ficou cerca de dez minutos assando no fogo que ele próprio ateara,
emitindo “berros aterradores” antes de enfim expirar. Na cidade de Or

Akiva, por sua vez, havia ocorrido um pequeno milagre. Um menino

de cinco anos que caíra de um andar elevado, ferindo-se seriamente,

mantivera-se inconsciente desde o Yom Kipur — o Dia do Perdão. Os

médicos haviam retirado o garoto do hospital e o tinham deixado numa

casa de saúde, onde esperavam que vivesse o resto dos seus dias como

vegetal. Mas a mãe, uma mulher simples que não sabia ler nem

escrever, recusou-se a abandonar as esperanças. Quando os médicos

lhe disseram que o filho não tinha chances e que só um milagre

poderia salvá-lo, prostrou-se aos pés de um famoso rabino em Bnei

Berak, que lhe disse que procurasse um certo discípulo rabínico, ele

próprio portador de lesão cerebral, e o fizesse repetir dia e noite no

ouvido da criança uma passagem do Zohar — o importante livro

cabalístico — que falava de Abraão e Isaac, sendo que o próprio

menino se chamava Isaac, Ytzhak em hebraico. E de fato, após quatro

dias e quatro noites, o garoto começou a dar sinais de vida. E agora

estava totalmente recuperado e saudável, correndo e cantando

louvores, estudando num internato religioso, onde recebera uma bolsa

de estudo especial e adquirira fama de futuro gênio. Por que não tentar

ler a mesma passagem do Zohar nos ouvidos de Ytzhak Rabin ou Ytzhak

Shamir, pensou Fima, sorrindo para si mesmo para em seguida xingar

por ter derramado molho na calça.

No jornal religioso, Yated Ne’eman, passou os olhos por várias notas

malévolas acerca das deserções dos kibutzim. Segundo o jornal, a

geração mais jovem nascida no kibutz estava toda viajando pelo

Extremo Oriente e pelas montanhas da Índia, aderindo a toda sorte de

seitas pagãs. E, no Ma’ariv, um articulista tradicional mais uma vez

argumentava que o governo não devia se apressar em recorrer a todo

tipo de conferências de paz duvidosas. Devemos adiar o processo pelo

menos até que a posição israelense esteja sedimentada. Não devemos ir

para a mesa de negociações numa posição inferior, com a espada da

intifada na nossa garganta, por assim dizer. Discussões acerca da paz

são desejáveis, mas apenas quando os árabes finalmente reconhecerem

que não possuem chance nenhuma, nem política nem militar, e vierem

implorando paz com o rabo no meio das pernas.


No Hadashot leu um artigo satírico sugerindo que em vez de enforcar

Eichmann deveríamos ter a premonição de poupá-lo, para podermos

utilizar a sua experiência e a sua capacidade de organização na

presente conjuntura. Eichmann com certeza seria bem recebido entre

os torturadores de árabes e entre aqueles que pregam deportar os

árabes em massa para o Leste. Como se sabe, trata-se de um tipo de

operação na qual Eichmann possuía especial conhecimento. E na

revista semanal do Yediot Aharonot, deparou-se com um artigo, ilustrado

com fotografias coloridas, sobre as provações de uma cantora que já

fora muito popular e que ficara viciada em drogas, e justamente agora,

quando estava lutando para se livrar do vício, um juiz desalmado lhe

tirou a guarda da filhinha que tivera com um famoso astro de futebol

que se recusara a assumir a paternidade. O juiz decretou que o bebê

deveria ser dado a uma família adotiva, apesar dos protestos da cantora

de que o pai adotivo era na verdade um iugoslavo que não se

convertera segundo as regras corretas, e talvez não fosse sequer

circuncidado. Depois de vasculhar todos os bolsos das suas calças,

camisa, sobretudo, e quase desistir, casualmente pescou do bolso

interno do casaco, lugar absurdo, uma nota dobrada de vinte shekels

que Baruch tinha conseguido enfiar sem que ele percebesse. Pagou e

saiu murmurando um pedido de desculpas. Deixou todos os jornais

sobre a mesa.

Fora do restaurante, descobriu que o frio tinha apertado. Já havia um

jeito de noite no ar, ainda que a tarde só estivesse no meio. O asfalto

rachado, os portões enferrujados, alguns com a palavra Sion trabalhada

no ferro, as placas das lojas, das oficinas, das escolas religiosas, das

agências imobiliárias e das instituições de caridade, a fileira de latas de

lixo ao longo da rua, a visão distante das colinas por entre os vãos dos

jardins abandonados, tudo começava a ficar encoberto por diversas

tonalidades de cinza. Vez ou outra sons estranhos invadiam o

burburinho das ruas: sinos de igrejas, altos e lentos, pausados, graves,

estridentes, pesados e elegíacos, e também um alto-falante ao longe, e

perfuradoras de ar comprimido, e o longínquo toque de uma sirene.

Todos esses sons não conseguiam superar o silêncio de Jerusalém, o

silêncio subjacente e permanente, que sempre pode ser encontrado

quando se procura por ele sob qualquer ruído de Jerusalém. Um velho


e um menino passaram lentamente, talvez avô e neto. O menino

perguntou:

“Mas você disse que no meio da terra tem fogo, então por que o chão

não está quente?”

E o avô:

“Primeiro você tem que estudar, Yossel. Quanto mais você aprender,

mais você entenderá que a melhor coisa para nós é não fazer

perguntas.”

Fima se lembrou de que, quando era criança, havia um velho que

percorria as ruas de Jerusalém arrastando um carrinho de mão

quebrado que rangia, com um saco nas costas, comprando e vendendo

roupas e mobílias usadas. Fima recordou no seu íntimo a voz do velho,

que soava como um grito de desespero. No início ouvia-se algumas

quadras ao longe, indistinta e agourenta, aflitiva, enfeitiçada. Pouco a

pouco, como se o homem estivesse se arrastando de ruela em ruela, os

gritos iam ficando mais próximos, ásperos e aterradores, “al-te za-chen,

al-te za-chen”, e havia algo de cortante e desolador, como um pedido

de socorro, como se alguém estivesse sendo assassinado. Por algum

motivo, na mente de Fima esse grito estava associado ao outono, com

céus carregados, trovões e as primeiras gotas de chuva misturadas com

poeira, os pinheiros sacudindo-se, uma luz cinzenta esquisita, ruas

vazias e jardins abandonados ao vento. O medo tomava conta dele e às

vezes invadia seus sonhos à noite. Como um aviso final de um desastre

que já tinha começado. Por muito tempo não entendeu o sentido das

palavras al-te za-chen. Julgava tratar-se de aviso da terrível voz dirigindo-

se a ele em hebraico, dizendo “Al tezaken!” — “Não envelheça!”. Até

mesmo depois que sua mãe lhe explicou que alte zachen em iídiche

queria dizer “coisas velhas”, Fima permaneceu sob o feitiço da

aterradora profecia que avançava pelas ruas, uma a uma, chegando

mais e mais perto, batendo nos portões das casas, advertindo-o de

longe sobre a chegada da velhice e da morte, o grito de alguém que já

caíra vítima do terrível destino avisando os outros de que chegaria a

hora de cada um.

Agora, ao lembrar-se daquele fantasma, sorriu e se consolou com a

palavras do infeliz frequentador do café da sra. Scheinfeld, o homem

de quem Deus se esquecera: “No fim, todo mundo morremos mesmo”.


Subindo a rua Strauss, Fima passou pela vitrine extravagante de uma

agência de viagens ultrarreligiosa chamada Asas de Águias. Passou

alguns momentos contemplando um pôster colorido retratando a torre

Eiffel entre o Big Ben e o Empire State Building. Ao lado, a torre de

Pisa se inclinava na direção das outras, e junto a ela um moinho de

vento holandês, com um par de vacas pastando embaixo. O texto no

pôster dizia: “Com ajuda de D’us, VENHA VIAJAR COMO SÓ UM REI PODE

SONHAR!”. Logo abaixo, nos caracteres geralmente reservados para os

livros sagrados: “Pague em seis prestações, sem juros”. Havia também

uma foto aérea de montanhas cobertas de neve, com uma faixa

impressa em letras azuis: A VIAGEM QUE VOCÊ QUER — ESTRITAMENTE KASHER.

Fima decidiu entrar e perguntar o preço de uma passagem em

promoção para Roma. Seu pai certamente não se recusaria a lhe

emprestar o dinheiro, e em poucos dias estaria sentado junto com Uri

Gefen e o marido de Annette num delicioso café na via Veneto, na

companhia de mulheres desinibidas, permissivas, amantes do prazer,

tomando um cappuccino, discursando inteligentemente sobre Salman

Rushdie e o islã, e brindando seus olhos com as beldades romanas. Ou

ficaria sentado sozinho junto a uma janela num pequeno albergo com

antigas venezianas verdes de madeira, olhando as velhas paredes, com

um bloco de anotações na sua frente, e de tempos em tempos

registraria impressões e reflexões espirituosas. Talvez se abrisse uma

fenda naquela fonte entupida, e jorrassem alguns poemas novos.

Poderiam ocorrer alguns encontros leves e fáceis, descompromissados,

sem laços, relações levianas impossíveis aqui nesta Jerusalém de tantos

profetas insanos. Recentemente lera num jornal que as agências de

viagem religiosas sabiam arranjar as coisas de tal maneira que

conseguiam vender passagens por uma ninharia. Ali em Roma, entre

impecáveis palazzos e piazzas pavimentadas, a vida era alegre e

despreocupada, cheia de prazer e livre de culpa e vergonha, e mesmo

que ocorressem atos de crueldade, a injustiça não era responsabilidade

nossa e o sofrimento não pesava na nossa consciência.

Um rapaz gordo, de óculos, com bochechas rosadas e barbeadas,

mas com um largo solidéu na cabeça, ergueu seus olhos infantis,

escondeu rapidamente o livro que estava lendo atrás de uma cópia da

revista Hamodiá, e saudou Fima com um sotaque europeu presunçoso:


“Shalom, que a paz esteja com o senhor.”

Não tinha mais do que vinte e cinco anos, mas tinha um ar patronal,

próspero, orgulhoso e ávido por agradar.

“Por gentileza, o que podemos fazer pelo ilustre senhor?”

Fima descobriu que além de viagens para o exterior a agência

também vendia bilhetes da loteria federal e de várias outras loterias.

Folheou os prospectos de “pacotes de viagem” que ofereciam

esplêndidas estadias em hotéis religiosos em Safed e Tiberíades,

combinando tratamento para o corpo aos cuidados de equipes médicas

especializadas com purificação da alma por meio de orações “nas

Sagradas Tumbas dos Leões da Torá e das Águias da Sabedoria”. Nesse

momento, talvez por ter percebido que a camisa branca engomada do

jovem agente de viagens estava puída nos punhos e no colarinho,

como a sua própria, Fima mudou de ideia e decidiu adiar a viagem a

Roma. Pelo menos até ter oportunidade de conversar com o pai e

consultar Uri Gefen, que estava voltando hoje ou amanhã. Ou seria no

domingo? Mesmo assim, demorou-se tranquilamente, folheou outro

prospecto com fotos de hotéis kasher na “esplendorosa Suíça”, hesitou

entre a loteria federal e a loteria esportiva, e decidiu por fim comprar

uma rifa da Magen David Adom — a Cruz Vermelha israelense — para

não desapontar o agente, que esperava com paciência e polidez que

ele tomasse a sua decisão. Mas Fima teve que se conformar em não

comprar nem a rifa, pois tudo o que conseguiu encontrar no bolso,

além do brinco de Annette, foram seis shekels, o troco da refeição no

café cheio de moscas da rua Zephaniah. Portanto, aceitou e ainda

agradeceu alguns folhetos ilustrados contendo itinerários e detalhes de

excursões organizadas para os grupos de judeus religiosos. Num deles,

escrito em hebraico, inglês e iídiche, leu que com a graça de D’us

Todo-Poderoso era de novo possível fazer as orações nas tumbas dos

“temíveis justos” na Polônia e na Hungria, e visitar os “Santos Locais

destruídos pelos perseguidores, que o seu nome seja esquecido!”, e

desfrutar “as belezas de Jafet, capazes de enriquecer a mente do

homem — tudo numa atmosfera judaica autêntica e rigorosamente

kasher; sob a orientação de guias qualificados, religiosos e

conscienciosos, e tudo com as recomendações dos Proeminentes

Sábios da Torá”. O agente de viagens disse:


“Talvez o senhor mude de ideia e venha nos procurar novamente

quando tiver pensado melhor?”

Fima disse:

“Talvez. Veremos. Em todo caso muito obrigado, e desculpe.”

“Não há de quê, senhor. O prazer e a honra são nossos. Desejo-lhe

um Shabat Shalom.”

Ao seguir caminhando em direção ao edifício da Histadrut — a

central sindical — ocorreu a Fima que este jovem obeso e obsequioso,

com dedos de salsicha e camisa engomada que tinha punhos e

colarinho puídos, tinha a mesma idade que o filho do qual Yael se

livrara em alguma clínica a menos de dois minutos daqui, na rua dos

Profetas. E sorriu tristemente porque, apesar do solidéu e da afetada

voz de tenor, era possível que um observador imparcial descobrisse

alguma semelhança entre ele, Fima, e aquele jovem agente de viagens

de fala macia, rechonchudo e gorduroso, tão ávido por agradar. Mas

será que Yael poderia sentir algum afeto maternal por aquela criatura

volumosa, com seus maliciosos olhinhos azuis atrás de grossos óculos

e suas bochechas rosadas? Seria capaz de se sentar e tricotar um

capuzinho azul de lã com um pompom? Poderia andar de braços dados

com ele e deixá-lo escolher azeitonas pretas em conserva no mercado

de Mahane Yehuda? E você? Sentiria de vez em quando a necessidade

de enfiar uma nota dobrada nos bolsos dele? Ou arranjar pintores para

ele? Ou quem provar que Yael estava certa. Como sempre. Ela havia

nascido estando certa.

No entanto, pensou Fima, poderia ter sido uma menina. Uma

pequena Giulietta Masina, de cabelos macios e brilhantes. Poderia ter o

nome da sua mãe, Liza, ou seu correspondente hebraico Elisheva.

Embora quase com certeza Yael teria vetado a ideia.

Uma mulher fria, amarga, disse ele surpreso.

Será que foi mesmo só culpa sua? Só por causa do que você fez para

ela? Só por causa da promessa grega que você não cumpriu e que não

poderia ter cumprido e que ninguém poderia ter cumprido? Certa vez,

junto à cama de Nina Gefen, Fima viu um velho romance traduzido,

numa gasta edição de bolso, Mulher sem amor. Seria de François Mauriac?

André Maurois? Alberto Moravia? É preciso perguntar a Nina se falava

de uma mulher que não encontrava o amor ou de uma mulher incapaz


de amar. O título podia ser interpretado dos dois jeitos. Embora nesse

momento a diferença lhe parecesse insignificante. Ele e Yael tinham

usado a palavra amor muito raramente. Com a possível exceção do

período da viagem à Grécia, mas naquela época nem ele nem as três

moças davam muita importância à escolha das palavras.

Gaivotas voam. E somem.

Ao atravessar a rua, ouviu o ruído de freios. O chofer do furgão

xingou Fima e gritou:

“Você aí, está maluco?”

Fima considerou a pergunta, reagiu com atraso, e murmurou

humildemente:

“Desculpe. Sinto muito. Desculpe mesmo.”

O chofer berrou:

“Seu retardado. Você tem mais sorte do que miolos.”

Fima também refletiu sobre isso, e quando chegou ao outro lado já

tinha concordado com o chofer. E com Yael, que decidira não ter um

filho seu. E também sobre a possibilidade de ser atropelado aqui nessa

rua na véspera do Shabat em vez de fugir para Roma. Como o menino

árabe que matamos dois dias atrás em Gaza. Simplesmente ser

desligado. Transformado em pedra. Reencarnado, talvez como lagarto.

Deixando Jerusalém para Yoezer. E resolveu que nessa noite

telefonaria ao seu pai e cancelaria a pintura. De qualquer maneira,

breve iria embora. Dessa vez não haveria acordo; faria pé firme e tiraria

de uma vez por todas os dedos de Baruch de dentro dos seus bolsos e

da sua vida.

Perto do Centro Médico na esquina da rua Strauss com a rua dos

Profetas uma pequena multidão se juntara. Fima aproximou-se e

perguntou o que tinha ocorrido. Um homenzinho com nariz pontudo e

sotaque búlgaro informou que haviam encontrado um objeto suspeito,

e que estavam esperando a chegada dos peritos em explosivos da

polícia. Uma moça de óculos disse: “O que você está dizendo? Não é

nada disso. Uma mulher grávida desmaiou na rua, e a ambulância está

chegando”. Fima abriu caminho para o meio do ajuntamento, porque

estava curioso para saber qual das duas versões estaria mais próxima

da realidade. Embora acreditasse que ambas pudessem estar erradas.


Ou ambas certas. E se uma mulher grávida tivesse descoberto o objeto

suspeito e desmaiado de susto?

O carro de polícia chegou com a sirene ligada e as luzes piscando. A

voz de um megafone pedia à multidão que dispersasse. Fima, com

reflexo de bom cidadão, obedeceu sem vacilar, porém mesmo assim

foi empurrado por um suarento policial de meia-idade cujo chapéu

estava virado para trás num ângulo engraçado.

Fima ficou furioso.

“Tudo bem, tudo bem, não precisa empurrar, eu já dispersei.”

O policial berrou com um típico sotaque romeno:

“É melhor não bancar o espertinho, vamos logo, senão vai levar.”

Fima se controlou e tomou o rumo do Hospital Bikur Holim.

Perguntou a si mesmo se continuaria a dispersar até um dia desabar na

rua, ou morrer em casa como uma barata, no chão da cozinha, só

sendo descoberto uma semana depois, quando o cheiro se espalhasse

pelo prédio, chegando aos vizinhos de cima, os Pizanti, que chamariam

a polícia e o seu pai. Este certamente se lembraria de alguma história

hassídica sobre morte instantânea, indolor, muitas vezes chamada de

“morte por beijo”. Ou faria o seu comentário habitual sobre o paradoxo

do homem, que ri quando deve chorar e chora quando deve rir,

vivendo sem sentido e morrendo sem desejo. Pobre homem, seus dias

são como a relva. Haveria ainda uma chance de interromper essa

dispersão? Concentrar-se a longo prazo no que fosse de fato

importante? Mas, se fosse possível, como começar? E, pelo amor de

Deus, o que é de fato importante?

Quando chegou à loja de departamentos Shtub Ma’ayan na esquina

da rua Jaffa, distraidamente virou à direita rumando para a praça

Davidka. E como seus pés estavam doendo, pegou o último ônibus

para Kiryat Yovel. Não se esqueceu de desejar Shabat Shalom ao

motorista.

Eram quinze para as quatro, e o início do Shabat estava próximo. Fima

desceu do ônibus na rua perto da sua. Lembrou-se de agradecer e se

despedir do motorista. O crepúsculo precoce já começava a tingir de

dourado as nuvens sobre as colinas de Belém. E subitamente Fima

percebeu, com dor, que mais um dia se passara para sempre. Não se
via vivalma na sua rua além de um menino escuro que lhe apontou

uma metralhadora de madeira fazendo-o erguer os braços em rendição.

A ideia do seu apartamento provocou-lhe mal-estar: essa árida faixa

de tempo de agora até a noite, aliás, até sábado à noite, quando o

grupo certamente se reuniria na casa de Shula e Tsvi. Não fizera nada

do que tinha programado fazer hoje, e agora era tarde demais:

compras, o correio, o telefone, dinheiro no banco, Annette. E mais

alguma coisa que ele sabia que era urgente, mas não se recordava o

que. Além disso, ainda tinha que se aprontar para os pintores. Mudar

os móveis de lugar, e cobri-los. Empacotar os livros e objetos de

cozinha. Tirar os quadros da parede, sem esquecer o mapa do país

com as fronteiras de um acordo rabiscadas. Pedir ao sr. Pizanti para

desmontar as estantes de livros. Mas antes de tudo, decidiu ele,

telefonar imediatamente para Tsvi Kropotkin. Explicar-lhe com muito

tato, dessa vez sem ofendê-lo, sem ser sarcástico, como o seu artigo no

último número da Política baseava-se numa premissa falsa e simplista.

Considerando que o telefone já tivesse convalescido.

Em frente à entrada do seu edifício, dentro de um carro branco com

as janelas fechadas, estava sentado um homem corpulento curvado

com os braços sobre o volante e a cabeça entre os braços,

aparentemente cochilando. E se fosse um ataque cardíaco? Assassinato?

Uma ação terrorista? Suicídio. Reunindo coragem, Fima bateu

delicadamente na janela. Uri Gefen se endireitou de uma vez, baixou a

janela e disse:

“Você chegou. Até que enfim.”

Atônito, Fima procurou responder com alguma observação jocosa,

mas Uri o interrompeu. Disse delicadamente:

“Vamos subir. Precisamos conversar.”

Nina lhe contou tudo. Que eu transei com ela. Que eu não consegui.

Que eu a humilhei. Mas, de qualquer modo, o que ele está fazendo

aqui? Não deveria estar em Roma? Ou será que ele tem um duplo

secreto?

“Olhe aqui, Uri”, disse, sentindo o sangue lhe fugir da face e escoar-

se todo pelo fígado. “Eu não sei o que a Nina lhe disse, mas o fato é

que já faz algum tempo...”

“Dê um tempo. Vamos conversar lá em cima.”


“O fato é: faz algum tempo estou querendo...”

“Vamos conversar lá dentro, Fima.”

“Mas quando você voltou?”

“Esta manhã. Às dez e meia. E o seu telefone não está funcionando.”

“Há quanto tempo você está me esperando lá fora?”

“Mais ou menos uns quarenta e cinco minutos.”

“Aconteceu alguma coisa?”

“Só um minuto. Vamos conversar lá em cima.”

Quando estavam dentro do apartamento, Fima se ofereceu para fazer

um café. Mesmo que o leite estivesse estragado. Uri parecia tão

cansado e pensativo que Fima se envergonhou de levantar o assunto

de desmontar as prateleiras. Disse:

“Vou colocar a água.”

Uri disse:

“Só um momento. Sente aí. Preste bem atenção. Tenho más notícias.”

E ao dizer essas palavras, colocou sua mão enorme e calorosa, mão de

camponês, áspera como o tronco de uma oliveira, no pescoço e nos

ombros de Fima. Como sempre, o toque da mão do amigo deu a Fima

uma sensação de prazer. Fechou os olhos como um gato afagado. E Uri

disse:

“Estamos procurando você desde o meio-dia. Tsvi já esteve aqui duas

vezes e deixou um bilhete na porta. Sexta-feira a clínica de vocês está

fechada, por isso Shula e Teddy estão correndo de um lado a outro

procurando localizar os médicos. Nós não sabíamos onde você se

meteu depois de sair da casa da Yael. E eu cheguei, joguei a mala e vim

para cá para pegar você assim que chegasse.”

Fima abriu os olhos. Olhou para o vulto enorme de Uri com

expressão infantil, ansiosa e assustada. Não ficou surpreso porque, de

algum modo, sempre estivera à espera dessa desgraça. Só com os

lábios, sem nenhum som, perguntou:

“Dimi?”

“Dimi está bem.”

“Yael?”

“Seu pai.”

“Doente. Eu sei. Já faz alguns dias...”

Uri disse:
“Sim. Não. Pior.”

De maneira estranha e maravilhosa foi tomado pelo autocontrole que

Uri Gefen geralmente projetava à sua volta. E perguntou em voz baixa:

“Aconteceu exatamente quando?”

“Ao meio-dia. Quatro horas atrás.”

“Onde?”

“Na casa dele. Estava sentado na poltrona tomando chá russo com

duas senhoras idosas que pelo visto tinham ido pedir uma doação.

Associação dos Cegos ou algo assim. Disseram que ele estava prestes a

contar uma piada ou uma história, quando de repente soltou um

gemido e faleceu. Assim. Sentado na poltrona. Não teve tempo de

sofrer nada. E desde aquela hora estamos todos procurando você.”

“Entendi”, disse Fima, voltando a vestir o sobretudo. Era uma

sensação estranhamente doce perceber seu coração se enchendo não

de dor nem de pesar, e sim de uma descarga de força, de energia

lúcida e prática.

“Onde ele está agora?”

“Ainda em casa. Na poltrona. A polícia esteve lá. Houve um certo

atraso para tirá-lo de lá — não importa agora. A vizinha de baixo, que é

médica, esteve lá poucos minutos depois, e verificou que tudo tinha

terminado. Aparentemente ela também era boa amiga dele. Tsvi, Shula

e Teddy devem estar esperando você lá. Nina vai direto do escritório

para lá assim que terminar de acertar todas as formalidades.”

“Ótimo”, disse Fima. “Obrigado. Vamos para lá.”

Depois de um instante acrescentou:

“E você, Uri? Veio direto do avião? Deixou a mala em casa e veio aqui

me procurar?”

“Não sabíamos onde você tinha se metido.”

Fima disse:

“Pelo menos eu devia ter lhe dado uma xícara de café.”

Uri disse:

“Esqueça. Só se concentre um minuto e veja se você precisa levar

alguma coisa daqui.”

“Nada”, respondeu Fima depressa em tom militar, com uma firmeza

pouco característica sua. “Não há tempo a perder. Vamos andando.

Conversamos no caminho.”
30

PELO MENOS O MÁXIMO POSSÍVEL

Eram cinco e quinze quando Uri estacionou o carro na avenida Ben

Maimon. O sol desaparecera atrás dos pinheiros e ciprestes, mas uma

luz cinzenta estranha e oscilante ainda banhava o céu, uma luz que não

era diurna nem noturna. Sobre a avenida e as construções de pedra se

derramava uma fina e pungente melancolia de véspera de Shabat. Como

se Jerusalém tivesse deixado de ser uma cidade e voltado a ser um

sonho ruim.

A chuva não retornara. O ar estava saturado e o olfato de Fima

captou o odor de folhas podres. Recordou-se de uma vez, quando

criança, numa véspera de Shabat parecida com esta, em que estava

andando de bicicleta, subindo e descendo a rua deserta. Olhando para

cima deste mesmo prédio viu sua mãe e seu pai no terraço. Ambos

eretos, mesma altura, ambos de roupas escuras, parados bem perto um

do outro, mas sem se tocar. Como um par de bonecos de cera. E Fima

teve a impressão de que ambos estavam lamentando a ausência de um

visitante que havia muito tinham desistido de esperar mas que no

entanto continuavam esperando. Pela primeira vez na vida sentiu a

profundidade da vergonha oculta no silêncio entre eles, ao longo de

toda a sua infância. Sem brigas ou queixas ou desentendimentos. Um

silêncio polido. Desceu da bicicleta e perguntou timidamente se era

hora de entrar.

Baruch disse:

“Como você quiser.”

A sua mãe não disse nada.


Esta lembrança despertou em Fima uma necessidade urgente de

esclarecer algo, de perguntar a Uri, de fazer indagações. Tinha a

sensação de que se esquecera de verificar o mais importante. Mas não

sabia o que era o mais importante. Embora sentisse que agora a sua

ignorância estava mais delgada que de costume, como uma cortina de

renda atrás da qual sombras tênues se movimentam. Ou um traje em

farrapos, que cobre o corpo mas não mais o agasalha. Ao mesmo

tempo que sabia no seu íntimo o quanto ansiava continuar não

sabendo.

Ao subirem as escadas para o terceiro andar, Fima pôs a mão no

ombro de Uri. Uri parecia cansado e soturno. Fima sentiu necessidade

de encorajar, com seu toque, seu corpulento amigo, que já fora um

conhecido piloto de combate e ainda caminhava com a cabeça

agressivamente para a frente, um sofisticado relógio da força aérea no

pulso, e os olhos às vezes dando a impressão de que via tudo de cima

para baixo.

E no entanto era um amigo honesto, afetivo e devotado.

Na porta havia uma placa de bronze com a inscrição: FAMÍLIA NOMBERG.

Debaixo dela, num pedaço de cartolina quadrado, Baruch escrevera

com a sua caligrafia firme: “Por favor, abstenha-se de tocar a

campainha entre a 1h e as 5h da tarde”. Inconscientemente Fima olhou

o relógio. Mas, de qualquer maneira, não havia necessidade de tocar: a

porta estava escancarada.

Tsvi Kropotkin foi ao encontro deles e retardou-os alguns minutos no

hall. Como um ajudante de ordens consciencioso instruído a informar

os recém-chegados antes de serem admitidos na central de operações.

Apesar da greve dos motoristas de ambulância e da proximidade do

Shabat, disse ele, a incansável Nina havia conseguido, por meio de um

telefonema no seu escritório, que seu pai fosse removido para o

necrotério do Hospital Hadassah. Fima sentiu uma afeição renovada

pelo embaraço tímido de Tsvi: ele não parecia um historiador famoso e

chefe de departamento na universidade, e sim um líder de movimento

juvenil cujos ombros tinham começado a alargar, ou um professor

numa escola distante. Fima também gostava de como os olhos de Tsvi

piscavam atrás das grossas lentes, como se a luz de repente fosse forte

demais. E do seu hábito de apalpar distraído tudo o que lhe vinha às


mãos, pratos, móveis, livros, pessoas, como se estivesse o tempo todo

lutando contra uma secreta dúvida acerca da solidez das coisas. Se não

fosse a sua verdadeira loucura por Jerusalém, se não fosse Hitler, se

não fosse a sua obsessão da responsabilidade judaica, este estudioso

discreto poderia muito bem ter se estabelecido em Cambridge ou

Oxford, e vivido serenamente até os cem anos de idade, dividindo o

tempo entre os campos de golfe e as cruzadas, ou entre o tênis e

Tennyson.

Fima disse:

“Vocês fizeram bem em removê-lo. O que teria feito aqui todo o fim

de semana?”

Na ampla sala da casa foi cercado pelos amigos, que surgiam de todo

lado, estendiam gentilmente o braço pelos seus ombros, afagavam suas

bochechas, seus cabelos, como se em virtude da morte do pai ele

tivesse herdado o papel de inválido. Como se o dever deles fosse

verificar cuidadosamente se ele estava quente demais ou frio demais ou

tremendo, ou planejando secretamente ir embora sem avisá-los. Shula

depositou na sua mão uma xícara de chá de limão com mel. E Teddy

sentou-se com delicadeza numa das pontas do sofá com forro de

brocado sobre o qual se espalhavam almofadas bordadas. Todos

pareciam esperar que ele dissesse alguma coisa. Fima correspondeu às

expectativas:

“Vocês todos são maravilhosos. Lamento estragar a noite de sexta-

feira desse jeito.”

A poltrona do pai estava exatamente na sua frente: larga, funda,

coberta de couro vermelho e com um encosto de cabeça de couro

vermelho, parecendo feita de carne viva. O banquinho para os pés

parecia ter sido ligeiramente puxado para um dos lados. Como um

cetro real, a bengala com castão de prata apoiada no braço direito da

poltrona.

Shula disse:

“Em todo caso, uma coisa é certa: ele não sofreu nada. Não levou

mais do que um segundo. É o que costumavam chamar de morte por

beijo: só os justos merecem uma morte dessas, é o que se dizia.”

Fima sorriu:
“Justos ou não, beijos sempre foram parte importante do repertório

dele.”

Ao dizer isso, observou algo que jamais notara antes: Shula, que fora

sua namorada mais de trinta anos atrás, antes do ano de desbunde, e

que na época tinha uma frágil beleza adolescente, envelhecera e ficara

grisalha. Suas coxas tinham crescido tanto que ela parecia uma mulher

religiosa, desgastada pela maternidade e pela criação dos filhos, mas

que aceita a sua decadência com resignação.

Um cheiro denso e próximo de tapetes grossos e mobília antiga, que

estivera respirando seu próprio ar muitos anos, tomava conta da sala.

Fima teve que se lembrar de que o cheiro sempre estivera lá e que não

era o odor da idade avançada da frau professora Kropotkin. Ao mesmo

tempo as suas narinas captaram resquícios de fumaça. Olhando em

volta, notou um cigarro na borda do cinzeiro: fora apagado logo depois

de ter sido aceso. Fima perguntou quem estivera fumando. Ficou

sabendo que uma das duas senhoras idosas, amigas do pai, que aqui

estiveram em missão de levantamento de fundos, apagara o cigarro

pouco depois de acender. Teria apagado logo que viu Baruch

agonizando? Ou quando tudo tinha terminado? Ou no momento exato

em que ele tinha gemido e expirado? Fima pediu que o cinzeiro fosse

retirado. E se deleitou em ver como Teddy saltou para cumprir a sua

determinação. Tsvi perguntou, apalpando os canos de aquecimento

com seus longos dedos, se ele queria ser levado até lá. Fima não

entendeu a pergunta. Tsvi, mal conseguindo controlar seu

constrangimento, explicou:

“Lá. Até o Hadassah. Para vê-lo. Talvez...”

Fima encolheu os ombros.

“O que há lá para ver? Na certa ele está elegante como sempre. Não

vale a pena incomodá-lo.” E orientou Shula a fazer um forte café preto

para Uri, porque ele não tinha parado um segundo desde que descera

do avião naquela manhã. “Na verdade, você também deveria dar a ele

algo para comer: ele deve estar faminto. Calculo que ele tenha saído do

hotel mais ou menos às três da madrugada, então acho que teve um dia

bem longo e duro. Pensando bem, você também parece bem cansada,

Shula. Na verdade, exausta. E onde estão Yael e Dimi? Quero Yael

aqui. E Dimi também.”


“Eles estão em casa”, disse Teddy se desculpando. “Foi um golpe

duro para o menino. Pode-se dizer que ele tinha uma ligação bastante

especial com o seu pai.” Prosseguiu contando que Dimi se trancara no

quarto de serviço, e eles tiveram que telefonar a um amigo, o psicólogo

infantil da África do Sul, e perguntar o que fazer. Ele lhes disse para

deixar o menino em paz. E, com certeza, pouco depois Dimi saiu, e

ficou grudado no computador. O amigo sul-africano os aconselhara...

Fima disse:

“Besteira.” E em seguida, com calma e firmeza:

“Quero os dois aqui.”

Ao falar, ficou surpreso com esta nova assertividade adquirida desde

a morte do pai. Como se tivesse sido inesperadamente promovido,

tendo de agora em diante o direito de dar ordens à vontade e exigir

obediência imediata.

Ted disse:

“Claro. Podemos ir buscá-los. Mas pelo que o psicólogo disse, acho

que apesar de tudo seria melhor...”

Fima cortou o argumento pela raiz:

“Estou pedindo.”

Ted hesitou, confabulou aos sussurros com Tsvi, olhou o relógio e

disse:

“Está bem, Fima. Como quiser. Tudo bem. Vou dar um pulo e pegar

o Dimi. Só que preciso das chaves do Uri, porque o nosso carro está

com a Yael.”

“A Yael também, por favor.”

“Certo. Devo telefonar para ela? Ver se ela pode vir?”

“É claro que sim. Diga-lhe que eu pedi.”

Ted saiu, e naquele exato momento Nina chegou. Pequena e magra,

prática, movimentos precisos, seu rosto estreito de raposa irradiando

bom senso e astúcia, vibrando de energia, como se tivesse passado o

dia resgatando feridos sob fogo inimigo e não fazendo preparativos

para um enterro. Vestia um terninho cinza-claro, os óculos brilhavam, e

ela carregava uma pasta executiva, que não soltou nem quando deu

um rápido abraço de lado em Fima e um beijo na testa. Mas não

encontrou palavras.

Shula disse:
“Vou até a cozinha preparar alguma coisa para todo mundo beber.

Quem quer o quê? Alguém por acaso quer também omelete? Ou uma

fatia de pão com alguma coisa?”

Tsvi comentou hesitante:

“E ele era um homem forte. Cheio de energia. Com um riso constante

nos olhos. E um prazer de viver, prazer pela boa comida, negócios,

mulheres, política, tudo. Não faz muito tempo ele apareceu um dia no

meu escritório no Monte Scopus, e me passou um sermão furioso sobre

como Yeshayahu Leibowitz está tirando proveito demagógico de

Maimônides. Sem mais nem menos. Quando tentei discordar, defender

Leibowitz, ele embarcou numa história sobre um rabi de Drohovitz que

viu Maimônides em sonho. Eu diria: um profundo gosto pela vida. Eu

sempre pensei que ele fosse ter uma velhice longa.”

Fima, como proferindo o veredicto final de uma discussão que ele

não começara, declarou:

“E teve. Afinal, não se pode dizer que ele morreu na flor da idade.”

Nina disse:

“Foi milagre termos conseguido acertar todos os preparativos. Está

tudo arranjado para domingo. Acreditem, foi uma corrida louca contra

o relógio, por causa da chegada do Shabat. Esta Jerusalém está ficando

pior do que Teerã. Você não está zangado por eu não ter esperado

você, não é, Fima? Você simplesmente desapareceu. Foi por isso que

eu tomei a liberdade de tratar das formalidades. Para lhe poupar dor de

cabeça. Botei anúncio no Ha’arets e no Ma’ariv de domingo. Talvez

devesse ter colocado também em outros jornais, mas simplesmente não

deu tempo. Marcamos o enterro para depois de amanhã às três da

tarde. Acontece que ele comprou um lote, não em Sanhedriya, junto à

sua mãe, mas no Monte das Oliveiras. Aliás, comprou um lote ao lado

para você. Bem do lado dele. E deixou no testamento instruções

detalhadas e precisas sobre os procedimentos do funeral. Escolheu até

o cantor litúrgico, um compatriota dele. Foi puro milagre eu ter

conseguido localizá-lo e contatá-lo por telefone um minuto e meio

antes do Shabat começar. Ele deixou até o texto a ser gravado no

túmulo. Sei que é um verso rimado. Mas isso pode esperar até o final

dos trinta dias, ou até o primeiro aniversário. Se um quarto das pessoas

beneficiadas com a filantropia dele quiserem vir ao funeral, temos que


pensar em pelo menos meio milhão de pessoas. Inclusive o prefeito, e

todo tipo de rabinos e políticos, para não mencionar todas as viúvas e

divorciadas.”

Fima esperou Nina terminar. Só então perguntou em voz baixa:

“Você mesma abriu o testamento?”

“No escritório. Na presença de testemunhas. Simplesmente

pensamos...”

“Quem lhe deu permissão?”

“A verdade é...”

“Onde está o testamento?”

“Aqui, na minha pasta.”

“Me dê.”

“Agora?”

Fima se levantou e tirou a pasta executiva das mãos dela. Abriu-a e

tirou um envelope marrom. Silenciosamente saiu e ficou sozinho no

terraço, no local exato onde seus pais haviam estado naquela tarde de

sexta-feira mil anos atrás, parecendo um par de náufragos

sobreviventes numa ilha deserta. Os últimos raios de luz há muito

tinham desaparecido. Uma quietude se erguia da avenida. As luzes da

rua tremulavam com uma luminosidade amarela oscilante misturada

com esparsos focos de neblina. As construções de pedra permaneciam

silenciosas, venezianas todas fechadas. Nenhum som se ouvia. Como

se o momento presente tivesse sido transformado numa lembrança

distante. Uma lufada de vento trouxe o som de um latido vindo do vale

da Cruz. O Terceiro Estado é uma graça que só pode ser alcançada

renunciando-se a toda a vontade, permanecendo-se sob o céu da noite

sem idade, sem sexo, sem tempo, sem povo, sem nada.

Mas quem é capaz de permanecer assim?

Certa vez, nos tempos de infância, viviam aqui em Rehavia

estudiosos educados, pequeninos, como miniaturas de porcelana.

Tinham o hábito de se cumprimentarem na rua erguendo o chapéu.

Como se dessa maneira apagassem Hitler. Como se para conjurar uma

Alemanha que nunca existiu. E como preferiam ser considerados

distraídos ou ridículos, mas nunca mal-educados, erguiam o chapéu

mesmo quando não tinham certeza de que a pessoa que se aproximava

era um amigo ou conhecido, ou apenas alguém parecido.


Um dia, quando Fima tinha nove anos, pouco antes de sua mãe

morrer, estava caminhando pela rua Alfasi com seu pai. Baruch parou e

começou uma longa conversa, em alemão ou talvez tcheco, com um

velho robusto, refinado, vestindo um terno antiquado e uma gravata-

borboleta marrom. A paciência do menino se esgotou, e ele começou a

bater o pé e a puxar o braço do pai. Seu pai lhe bateu e berrou: “Ty

durak, ty smarkatch”. Mais tarde, explicou a Fima que o outro senhor

era um professor e estudioso de fama mundial. Explicou o que queria

dizer “fama mundial”, e como se conseguia. Fima nunca esqueceu

aquela explicação. A expressão ainda despertava nele uma mistura de

reverência e agressividade. E uma vez, sete ou oito anos depois, às seis

e meia da manhã, estava novamente caminhando com o pai, na rua

Rashbam, quando viram se aproximando na sua direção, com passos

curtos e vigorosos, o primeiro-ministro Ben Gurion, que naquela época

morava na esquina da Ben Maimon com a Ussishkin, e gostava de

iniciar o dia com uma vigorosa caminhada matinal. Baruch Nomberg

ergueu o chapéu e disse:

“Senhor, faria a gentileza de me dar um minuto do seu tempo?”

Ben Gurion parou e exclamou:

“Lupatin! O que você está fazendo em Jerusalém? Quem está

guardando a Galileia?”

Baruch respondeu calmamente:

“Eu não sou Lupatin, e o senhor não é o Messias. Apesar do que os

seus discípulos obtusos certamente sussurram no seu ouvido.

Aconselho o senhor a não acreditar neles.”

O primeiro-ministro disse:

“O quê? Você não é Grisha Lupatin? Será que não está enganado?

Parecido. É muito parecido. Duas pessoas quase iguais não são a

mesma. Nesse caso, quem é você?”

Baruch disse:

“Acontece que eu estou do lado oposto.”

“Oposto a quem? A Lupatin?”

“Não, ao senhor. E se eu me permitir a liberdade de dizer...”

Ben Gurion já tinha recomeçado a andar, e só disse ao ir embora:

“Nu, pode se opor, pode se opor. Mas não perca tanto tempo se

opondo de modo a esquecer de criar esse garoto simpático e torná-lo


um amante fiel de Israel e um defensor do seu povo na sua terra. O

resto é irrelevante.” E dizendo isso, continuou caminhando, seguido

pelo homem de boa aparência cuja função era, pelo visto, protegê-lo

de ser perturbado.

Baruch disse:

“Gêngis Khan!”

E acrescentou:

“Olhe para si, Efraim, a quem a Providência elegeu para salvar Israel:

essa é a amoreira que saiu direto da parábola de Jotam.”

Fima, que na época tinha dezesseis anos, sorriu no escuro ao se

lembrar de como ficara admirado ao descobrir que Ben Gurion era

mais baixo que ele, e barrigudo, e tinha uma enorme cara vermelha e

pernas de anão, e uma voz alta e rouca como um peixeiro no mercado.

O que o seu pai tentara dizer ao primeiro-ministro? O que ele próprio

diria agora, depois de tudo? E quem era o Lupatin ou Lupatkin que

negligenciara a defesa da Galileia?

Seria possível que o filho que Yael não quisera tivesse crescido e

conseguido fama mundial?

E Dimi?

De repente, como por iluminação, Fima percebeu que na verdade

era Yael, com a sua pesquisa de veículos a jato, a pessoa entre nós que

teria mais probabilidade de atingir o que Baruch jamais deixara de

sonhar para ele. E se perguntou se não era ele próprio a amoreira da

parábola de Jotam. Tsvika, Uri, Teddy, Nina, Yael — todos eles são

árvores frutíferas, e só você, sr. Eugene Onegin de Kiryat Yovel, passa

pela vida e gera tolices e falsidades. Fala sem parar e perturba a todos.

Discute com baratas e lagartos.

Por que não dedicar o resto dos seus dias, começando hoje, ou

amanhã, a facilitar o caminho deles? Assumiria o fardo de criar o

menino. Aprenderia a cozinhar e a lavar roupa. Toda manhã apontaria

todos os lápis coloridos do estojo de desenho. De tempos em tempos

trocaria a fita do computador. Se é que os computadores têm fita. E

assim, humilde como o soldado desconhecido, daria a sua modesta

contribuição para o desenvolvimento da propulsão a jato e da

aquisição da fama mundial.


Na sua infância, nas cálidas noites de verão em Rehavia, o som

solitário de um piano podia ser ouvido entre as venezianas fechadas.

Até o ar carregado parecia zombar desses sons. Agora estavam

desaparecidos e esquecidos. Ben Gurion e Lupatin estavam mortos. Os

estudiosos refugiados com seus chapéus e borboletas estavam mortos.

E, entre eles e Yoezer, estamos nós, fornicando e matando. O que

resta? Pinheiros e silêncio. E alguns volumes alemães com os títulos

dourados no dorso já desaparecendo.

Subitamente, Fima precisou conter lágrimas de saudade. Não

saudade dos mortos, ou daquilo que um dia tinha existido aqui e não

existia mais, mas do que poderia ter sido e não foi, e jamais seria.

Vieram à sua mente as palavras “o seu lugar não o conhece”. Mas por

mais que se esforçasse, não conseguiu se lembrar de quem ouvira

pronunciar essa frase tão terrível nos últimos dois ou três dias.

Pareceu-lhe agora precisa e penetrante.

Os minaretes nos topos das colinas em torno de Jerusalém, as ruínas

e muros de pedra cercando conventos cheios de segredos, as cúpulas

de vidro quebrado, os pesados portões de ferro, as grades de ferro

trabalhadas, os porões, as criptas sombrias, uma Jerusalém amordaçada

e ressentida, submersa até o pescoço em pesadelos de profetas

apedrejados e salvadores crucificados e redentores dilacerados,

circundada por uma cadeia de colinas áridas e rochosas, o vazio das

encostas salpicado de grutas e desfiladeiros, oliveiras rebeldes que

quase cessaram de ser árvores e passaram a pertencer ao reino dos

seres inanimados, habitações solitárias de pedra ocultas nas pregas dos

vales rasgados, e mais adiante as grandes áreas desérticas estendendo-

se ao sul até o Bab el-Mandeb e ao leste até a Mesopotâmia e ao norte

até Hamá e Palmira, as terras de áspides e víboras, imensidões de giz e

sal, reduto de nômades com hordas de cabras negras e com facas

vingativas escondidas nas dobras de suas vestes, escuras tendas da

desolação, e, no meio de tudo isso, Rehavia com seu piano e uma

melodia triste em pequenas salas ao anoitecer, seus sábios velhos e

frágeis, suas prateleiras de livros em alemão, suas boas maneiras, seus

chapéus se erguendo, silêncio da uma às cinco, lustres de cristal,

mobília laqueada do exílio, estofados de brocado e couro, jogos de

jantar de porcelana, aparadores, a excitabilidade russa de seu pai, e


Ben Gurion e Lupatin, o halo de luz sacerdotal em torno das mesas de

trabalho dos estudiosos sofridos compilando anotações no seu

caminho para a fama mundial, e nós, seguindo essas anotações com

perplexidade, desamparados e desesperados, Tsvika com Colombo e a

Igreja, Ted e Yael com seus veículos a jato, Nina administrando a

liquidação do seu sex shop ultrarreligioso, Wahrhaftig lutando para

defender uma fortaleza de civilização em meio ao seu inferno de

abortos, Uri a percorrer o mundo conquistando mulheres e zombando

das suas conquistas com seu humor mordaz, Annette e Tamar, as

desprezadas, e você, você mesmo, com o seu Coração da Cristandade e

os seus lagartos e as suas cartas noturnas para Ytzhak Rabin e o preço

da violência num tempo de decadência moral. E Dimi com o seu cão

sacrificado. Aonde leva tudo isso? Como foi que começamos num

palácio e terminamos num casebre? Onde foi que Gella se perdeu a

caminho do lado ariano?

Como se não fosse um bairro da cidade mas um remoto

acampamento de caçadores de baleias estabelecidos no fim do mundo,

numa deserta costa do Alasca, tendo erguido algumas construções

instáveis e uma cerca vacilante no meio da desolação infinita, entre

tribos de nômades sanguinários, e todos reunidos ao longe diante do

mar cinzento, em busca de uma baleia. Uma baleia inexistente. E Deus

já os esqueceu, como disse ontem a proprietária do restaurante em

frente.

Fima teve uma imagem quase real de si mesmo montando guarda,

sozinho no escuro, no lúgubre acampamento dos baleeiros. Um fraco

lampião balança ao vento pendurado no topo de um mastro,

tremeluzindo, desmanchando-se nas trevas sem fim, e não há outra luz

em todo o vazio do Pacífico, estendendo-se ao norte até o polo, e ao

sul até a ponta da Terra do Fogo. Um vaga-lume solitário. Absurdo. O

seu lugar não o conhece. E, ainda assim, essa preciosa luminosidade.

Que você tem a obrigação de manter viva o maior tempo possível. Ela

não pode parar de brilhar nas profundezas das imensidões geladas ao

pé de montanhas de gelo e neve. É seu dever impedir que ela seja

apagada pelo vento. Pelo menos enquanto você estiver aqui e até Yael

chegar. Não importa quem você é e o que você é e o que você tem a

ver com baleeiros que nunca existiram, você com a sua miopia, seus
músculos flácidos, seu peito com tetas balançantes, seu corpo ridículo

e desajeitado. A responsabilidade é sua.

Mas em que sentido?

Enfiou a mão no bolso em busca de uma pastilha contra azia, mas em

vez do pequeno invólucro seus dedos puxaram o brinco de prata, que

reluziu um instante como encantado pela luz que vinha da sala ao lado.

Ao despachar o brinco para o meio da escuridão, pareceu-lhe ouvir a

voz irônica de Yael:

“Problema seu, companheiro.”

E com o rosto voltado para as trevas, respondeu em voz baixa e

decidida:

“Certo. Problema meu. E vou resolvê-lo.”

E sorriu de novo. Mas dessa vez não foi seu triste sorriso habitual de

autodepreciação, e sim as pontas dos lábios para cima, o sorriso de um

homem que por muito tempo tem procurado uma resposta complicada

para uma pergunta complicada, e de repente descobre uma resposta

simples.

Virou-se e voltou para dentro. De imediato viu Yael, profundamente

entretida numa conversa com Uri no sofá, joelhos se tocando. Fima

teve a impressão de que o riso se congelara nos lábios de ambos

quando ele entrou. Mas não sentiu inveja. Ao contrário, uma alegria

secreta inundou o seu íntimo ao constatar que na verdade já tinha

dormido com cada uma das mulheres presentes, Shula, Nina e Yael. E

ontem com Annette Tadmor. E amanhã é um novo dia.

Naquele momento avistou Dimi ajoelhado num canto do tapete, um

menino envelhecido, filosófico, girando lentamente com os dedos o

globo terrestre de Baruch, que era iluminado por dentro. A luz elétrica

tingia os oceanos de azul e as porções de terra de dourado. O menino

parecia absorto, alheio, concentrando-se totalmente no que fazia. E

Fima reafirmou para si mesmo, como um homem anotando

mentalmente onde localizar uma mala ou onde se encontra o

interruptor de luz, que amava esse menino mais do que jamais amara

outro ser no mundo. Inclusive as mulheres. Inclusive a mãe do garoto.

Inclusive a sua própria mãe.

Yael se levantou e se aproximou de Fima, incerta se devia

simplesmente apertar a sua mão ou afagar a sua manga. Fima não


esperou que se decidisse e apertou a cabeça dela contra o seu ombro,

como se fosse ela, e não ele, a necessitar e merecer consolo. Como se

ele estivesse pedindo para lhe dar de presente a sua orfandade recém-

adquirida. Yael murmurou algo contra seu peito, algo que Fima não

ouviu e nem mesmo quis ouvir, porque estava apreciando a descoberta

de que Yael, como o primeiro-ministro Ben Gurion, era quase uma

cabeça mais baixa que ele. Mesmo ele não sendo alto.

Em seguida Yael se libertou do seu abraço e correu, ou fugiu, para a

cozinha, para ajudar Shula e Teddy que faziam sanduíches para todos.

Fima teve a ideia de pedir a Uri ou Tsvi que telefonasse para os dois

ginecologistas em seu nome, e também para Tamar, e por que não

também para Annette Tadmor? Sentia uma súbita necessidade de reunir

todas as pessoas que tinham alguma influência na sua vida. Como se

alguma coisa dentro de si estivesse planejando, sem o seu

conhecimento, realizar uma cerimônia. Fazer um discurso para todos.

Declarar algo novo. Anunciar que daqui por diante... Mas talvez

estivesse confundindo o luto com uma festa de despedida. Despedida

do quê? E que discurso? O que um homem como ele tem para declarar?

Santificai-vos e purificai-vos, todos vós, em honra à chegada do

Terceiro Estado?

Mudou de ideia. Desistiu de realizar a cerimônia.

Apesar de tudo, de súbito resolveu não se sentar no lugar vago

deixado por Yael ao lado de Uri, mas na poltrona do pai. Esticou as

pernas confortavelmente sobre o banquinho forrado. Desfrutou o

assento macio que recebeu seu corpo como se tivesse sido feito sob

medida. Sem pensar, bateu duas vezes no chão com a bengala com

castão de prata. Mas quando todos pararam de falar e olharam para ele

com atenção, prontos a atender seus pedidos, a lhe oferecer afeição e

conforto, Fima sorriu com benevolência e exclamou:

“Por que o silêncio? Continuem.”

Tsvi, Nina e Uri tentaram puxá-lo para uma conversa de modo a

distraí-lo, uma leve troca de ideias acerca de assuntos que ele gostava,

a situação nos Territórios, como era apresentada na televisão italiana, a

que Uri tinha assistido em Roma, o significado da nova postura

americana. Fima se recusou a entrar na conversa. Contentou-se em

manter o sorriso distraído no rosto. Por um instante pensou em Baruch


deitado num compartimento refrigerado no porão do Hospital

Hadassah, numa espécie de colmeia de gavetas congeladas, habitadas,

total ou parcialmente, pelos recém-falecidos de Jerusalém. Tentou

sentir nos seus próprios ossos o ar congelado, a escuridão da gaveta, o

escuro leito do mar do Norte abaixo da estação de caça a baleias. Mas

não conseguiu sentir dor no coração. Nem medo. Não. Seu coração

estava leve, e quase conseguiu ver o humor na metálica colmeia

mortuária com suas gavetas de cadáveres. Lembrou-se da anedota do

pai acerca da discussão entre os chefes de estação israelense e

americano, e a história do famoso rabino e do assaltante que trocaram

de casacos. Sabia que teria que dizer alguma coisa. Mas não tinha ideia

do que dizer aos amigos. No entanto, a sua ignorância estava ficando

cada vez mais fina. Como um véu que só oculta a face parcialmente.

Levantou-se e foi ao banheiro, e redescobriu que ali na casa do seu pai

podia-se puxar a descarga utilizando um registro que funcionava o

tempo todo, à vontade, sem corrida, sem derrota, sem constante

humilhação. Uma coisa a menos com que se preocupar.

Voltando, aproximou-se de Dimi no tapete, ajoelhou-se, e perguntou:

“Você conhece a lenda da Atlântida?”

Dimi disse:

“Conheço. Vi uma vez num programa na televisão educativa. Não é

bem uma lenda.”

“Então é o quê? Fato real?”

“Claro que não.”

“Não é lenda nem fato real?”

“E um mito. É uma coisa diferente de lenda. É mais como uma

essência.”

“Onde ficava mais ou menos Atlântida?”

Dimi girou um pouco o globo iluminado e delicadamente colocou

seu dedo branco no oceano que brilhava das profundezas da luz

elétrica entre a África e a América do Sul, e os dedos do menino

também se iluminaram com um brilho fantasmagórico.

“Mais ou menos aqui. Mas não faz diferença. Está mais dentro da

cabeça.”

“Diga-me uma coisa, Dimi, você acha que existe algo depois que nós

morremos?”
“Por que não?”

“Você acredita que o vovô está nos ouvindo neste momento?”

“Não tem muita coisa para ouvir.”

“Mas é possível?”

“Por que não?”

“E nós também podemos ouvi-lo?”

“Dentro das nossas cabeças, sim.”

“Você está triste?”

“Sim. Nós dois estamos. Mas não é uma despedida. Podemos

continuar amando.”

“E aí? Não devemos ter medo de morrer?”

“Mas isso não é possível.”

“Diga-me uma coisa, Dimi, você jantou alguma coisa hoje?”

“Não estou com fome.”

“Então me dê a sua mão.”

“Por quê?”

“Por nada. Só para sentir.”

“Sentir o quê?”

“Nada especial.”

“Pode parar, Fima. Volte um pouco para os seus amigos.”

Nessa altura a conversa foi interrompida, porque o dr. Wahrhaftig

irrompeu na sala, corado, resfolegando e esbravejando, como se

tivesse vindo interromper um escândalo em vez de oferecer suas

condolências. Fima foi incapaz de esconder o sorriso quando percebeu

pela primeira vez a semelhança entre Wahrhaftig e o Ben Gurion que

gritara com seu pai na rua Rashbam quarenta anos atrás. Tamar

Greenwich chegou junto com o doutor, nervosa, chorosa, cheia de

boas intenções. Fima virou-se para os dois, aceitou pacientemente o

aperto de mão e o abraço, mas não captou o que lhe disseram. Por

alguma razão, seus lábios murmuraram vagamente:

“Não faz mal. Nada tão terrível. Isso acontece.”

Aparentemente também eles não captaram nada. E rapidamente

receberam uma xícara de chá.

Às oito e meia, sentado de novo na poltrona do pai, com as pernas

cruzadas confortavelmente, Fima afastou o iogurte e o arenque

enrolado com pepino que Teddy colocara na sua frente. Retirou o


braço que Uri pusera em volta do seu ombro. E recusou o cobertor que

Shula lhe oferecera para agasalhar as pernas. Subitamente devolveu à

Nina o envelope marrom que tirara da pasta dela e lhe disse para

começar a ler o testamento em voz alta.

“Agora?”

“Agora.”

“Mesmo que geralmente...”

“Mesmo que geralmente.”

“Mas Fima...”

“Agora, por favor.”

Após um momento de hesitação e uma rápida troca de olhares com

Tsvi, Yael e Uri, Nina decidiu concordar. Tirou do envelope duas folhas

de papel datilografadas com espaço miúdo. Na sala se fez silêncio e ela

começou a ler, inicialmente um pouco constrangida mas aos poucos

assumindo seu tom profissional, calmo, seco e equilibrado.

Em primeiro lugar vinham instruções detalhadas e meticulosas

referentes à cerimônia do funeral, ao serviço em memória dos mortos e

à colocação da lápide. Depois vinha a parte substancial. Boris Baruch

Nomberg legava duzentos e quarenta mil dólares americanos a serem

divididos em partes desiguais entre dezesseis fundações, organizações,

associações e comitês relacionados em ordem alfabética. Ao lado de

cada nome constava o respectivo valor. No topo da lista estava a

Associação para a Promoção do Pluralismo Religioso, e o último nome

era a escola religiosa Zelar Pela Torá. Após este último item e a

assinatura do falecido, do escrivão e das testemunhas, vinham as

seguintes linhas:

“Com exceção da propriedade situada à rua Reines, Tel Aviv, citada

em anexo, por meio deste documento deixo e lego todos os meus

pertences ao meu único filho, Efraim Nomberg Nisan, que é adepto de

distinguir o bem do mal, na esperança de que doravante não se

satisfaça meramente em distinguir, mas dedique a sua força e os seus

excelentes talentos a fazer o bem, e se afaste o máximo possível da

face do mal.”

Acima das assinaturas mais uma linha escrita à mão: “Assinado,

selado e registrado, estando o testante em pleno gozo de suas

faculdades mentais, aqui em Jerusalém, capital de Israel, no mês de


Marheshvan 5749, correspondendo a 1988 do calendário civil,

quadragésimo ano da renovação incompleta da existência de Israel”.

O anexo esclarecia que a propriedade da rua Reines, em Tel Aviv, da

qual Fima nunca tinha ouvido falar, era um modesto prédio de

apartamentos. O velho o deixava “para o meu amado neto, o deleite da

minha alma, Israel Dimitri, filho de Theodore e Yael Tobias, que terá

como tutora até atingir o seu décimo oitavo aniversário a minha cara

nora sra. Yael Nomberg Nisan Tobias, nascida Levin, que poderá gozar

o usufruto, ficando o capital reservado ao meu neto”.

O anexo também mencionava que daí por diante Fima seria o único

proprietário de uma fábrica de cosméticos de porte médio, porém

sólida e lucrativa. Também seria dono do apartamento onde nascera e

fora criado, e no qual seus dois pais haviam falecido com um intervalo

superior a quarenta anos. Era um apartamento grande, no terceiro

andar, com cinco quartos espaçosos e janelas amplas, num bairro

próspero e tranquilo, ricamente mobiliado em estilo centro-europeu,

sólido e antigo. Recebeu também vários bônus e ações, um terreno em

Talpiyot, contas bancárias declaradas e secretas em vários bancos em

Israel e na Bélgica, um cofre de segurança contendo dinheiro e valores,

inclusive as joias de ouro, prata e pedras preciosas que tinham

pertencido à sua mãe. Herdava também uma biblioteca com alguns

milhares de volumes, incluindo um conjunto do Talmude e outros

textos sagrados encadernados em marroquim, uma coleção de obras

do Midrash, algumas extremamente raras, além de centenas de

romances em russo, tcheco, alemão, e hebraico, e duas prateleiras de

livros de química nos mesmos idiomas, e os poemas de Uri Tsvi

Grinberg, inclusive algumas edições muito raras, estudos bíblicos do

dr. Israel Eldad, os trabalhos de Graetz, Dubnow, Klausner, Kaufman e

Urbach, e também uma seção de livros eróticos antigos, todos em

alemão e tcheco, que Fima não conseguiu entender. Além de tudo isso,

era daí por diante o proprietário de uma coleção de selos e moedas

antigas, nove ternos de inverno e seis de verão, cerca de vinte e cinco

gravatas em estilo conservador, até mesmo antiquado, e uma vistosa

bengala com castão de prata.

Fima não se perguntou o que faria com tudo isso, mas refletiu o que

alguém como ele poderia entender sobre a fabricação e venda de


cosméticos. E já que, nas suas reflexões, mais uma vez se deparou com

essa construção gramatical que a língua hebraica não tolera, corrigiu-se

mentalmente: a fabricação de cosméticos e a sua venda.

E de repente disse a si mesmo:

“Não tolera? Então que não tolere!”

Às dez horas, depois de ter levado Dimi para um dos quartos e ter lhe

contado uma breve história de aventura sobre os Argonautas e o Velo

de Ouro, mandou todos os amigos para casa. Desprezou todas as

encenações e protestos. Não, muito obrigado, não há necessidade de

ninguém pernoitar aqui. Não, muito obrigado, também não queria que

o levassem ao seu apartamento em Kiryat Yovel. E não tinha vontade

de ficar com nenhum deles. Passaria a noite aqui. Queria ficar sozinho.

Sim. Com certeza. Obrigado. Não. Com certeza. Não há necessidade.

Em todo caso, é muita gentileza sua. Vocês são todos maravilhosos.

Quando ficou só, sentiu-se tentado a abrir a janela e deixar entrar um

pouco de ar fresco. Pensando melhor, decidiu que não. Em vez disso,

fechou os olhos e procurou descobrir a composição exata do estranho

cheiro no apartamento. Cheiro de desgraça. Embora não houvesse

nenhuma conexão aparente entre o cheiro e a desgraça que ocorrera

algumas horas antes. Todos esses anos o apartamento fora mantido

limpo, arrumado, impecável. Pelo menos por fora. Tanto antes quanto

depois da morte da sua mãe. Duas vezes por semana vinha uma

empregada para polir tudo, os castiçais, as lâmpadas de bronze, os

cálices de prata utilizados para o kidush e a havdalá — os rituais do início

e do fim do Shabat. O próprio pai tomava um chuveiro gelado toda

manhã, verão ou inverno. E o apartamento costumava ser regularmente

redecorado, a cada cinco anos.

Então, qual era a origem do cheiro?

Desde que se mudara daqui, após o serviço militar, seu olfato se

ressentia desse odor toda vez que vinha visitar o velho. Era

ligeiramente malcheiroso, sempre semiescondido pelos outros

perfumes. Seria uma lata de lixo que precisava ser esvaziada? Roupa

suja muito tempo guardada no cesto do banheiro? Algum problema no

encanamento de esgotos? Naftalina nos armários? Leves odores de

cozinha, de comidas superdoces e gordurosas da Europa Oriental?

Frutas que tinham ficado tempo demais na fruteira? Água nos vasos
sem ser trocada, embora as flores fossem trocadas duas vezes por

semana? Por trás da elegância e da arrumação pairava sempre algo

azedo, mínimo e latente, é certo, porém profundo e persistente como

bolor. Seria uma relíquia indestrutível da polidez opaca e vítrea que

aqui se desenvolvera e congelara entre seu pai e sua mãe, não tendo

cessado nem com a morte dela? Haveria alguma possibilidade de agora

o cheiro evaporar?

Poder-se-ia pensar, refletiu Fima ironicamente, que no seu

apartamento em Kiryat Yovel o ar é perfumado de incenso e mirra,

você com a sua cozinha trotskista e a sua lata de minhocas no terraço e

o seu banheiro imundo.

Levantou-se e abriu a janela. Em seguida fechou-a novamente. Não

por causa do frio e sim porque sentiu pena de perder esse cheiro

carregado de desgraça, que ele provavelmente jamais conseguiria

recordar uma vez que o cheiro se dispersasse. Que fique mais alguns

dias. O futuro estava só começando. Se bem que seria gostoso poder

sentar agora na cozinha, com uma xícara de chá russo fervendo, e

discutir com o velho até tarde da noite. Sem zombaria ou leviandade.

Como dois adversários íntimos. Longe dos contos hassídicos e dos

sofismas, das ironias e das anedotas, dos jogos de palavras astuciosos.

Sem provocar o velho, sem aborrecê-lo com provocações. Não, com

verdadeiro afeto. Como dois sobreviventes representando dois países

em disputa, mas trabalhando juntos, com amistoso profissionalismo, na

demarcação precisa das fronteiras. Como um homem para o seu

próximo. Esclarecer finalmente o que houve, o que há, e o que foi e já

se foi e não voltará mais, e o que ainda seria possível aqui, se

conseguíssemos nos dedicar a isso com todas as nossas forças.

Mas o que é que ele precisa esclarecer com o pai? Qual é a fronteira

que precisa ser demarcada? O que é que ele precisa provar ao velho?

Ou a Yael? Ou a Dimi? O que é que ele tem a dizer que não seja uma

citação? Ou uma objeção? Ou um argumento? Ou um trocadilho?

A herança não o oprimiu nem o alegrou. É verdade, não entendia

nada de cosméticos, mas o fato era que realmente não entendia nada

de nada: Pode haver até uma vantagem nisso, embora nesse momento

Fima não quisesse se preocupar em ver que vantagem seria essa. E

mais, não tinha necessidades. Exceto as necessidades mais simples:


comida, calor e abrigo. Tampouco tinha desejos, exceto talvez o desejo

vago de agradar a todos, apaziguar brigas, semear um pouco de paz

aqui e ali. Como poderia fazer isso? Como se consegue transformar

corações de verdade? Em breve teria que se reunir com os empregados

da fábrica, descobrir suas condições de trabalho, ver o que podia ser

melhorado.

A conclusão é que teria que aprender. E aprender era algo que sabia.

Portanto aprenderia. Gradualmente.

Mas só a partir de amanhã. Se bem que amanhã já havia chegado: era

mais de meia-noite.

Considerou se deveria ir para a cama do pai e dormir lá, vestido. No

momento seguinte decidiu que era uma pena desperdiçar essa noite

especial. Deveria explorar o apartamento. Descobrir os seus segredos.

Começar a adquirir uma noção preliminar dos seus novos domínios.

Fima vagou pelos quartos até as três da manhã. Abriu armários,

pesquisou os recessos da pesada cômoda preta, espiou em cada

gaveta, bisbilhotou debaixo dos colchões e entre os travesseiros e na

pilha de camisas brancas do pai a serem passadas. Alisou os estofados

de brocado. Sentiu a textura e o peso dos candelabros de cálices de

prata. Correu as mãos pela superfície polida da mobília antiquada.

Comparou bandejas de chá. Descobriu sob um pano muçulmano uma

velha máquina de costura Singer, tirou uma única nota oca do

reluzente piano Bechstein. Escolheu um cálice de cristal, serviu-se de

um pouco de conhaque francês e ergueu um brinde aos seis vasos de

palmas. Com um ruído de celofane, tirou o papel de uma magnífica

caixa de chocolates suíços e provou seu saboroso conteúdo. Afagou os

lustres de cristal com uma pena de pavão que encontrou sobre a

escrivaninha. Extraiu com o maior cuidado delicados sons agudos da

fina porcelana Rosenthal. Remexeu as pilhas de guardanapos

bordados, de lenços levemente perfumados, xales de renda e de lã, os

arranjos de luvas em miniatura, a coleção de guarda-chuvas, entre os

quais encontrou uma antiga sombrinha de seda azul. Vasculhou os

discos de ópera italiana que o seu pai gostava de escutar a todo o

volume no velho gramofone, acompanhando os cantores com a sua

voz de tenor, às vezes em companhia de uma ou duas de suas amigas,

que lançavam olhares enlevados para ele enquanto sorviam goles de


chá com o dedinho levantado. Tirou guardanapos imaculados dos

anéis que os prendiam, anéis gravados com a estrela de davi e a

palavra Sion e letras hebraicas e latinas. Examinou as pinturas das

paredes da sala, numa das quais aparecia um belo cigano com um urso

dançante que parecia sorrir. Separou os bustos de bronze de Herzl e

Vladimir Jabotinski, e perguntou-lhes com toda a educação como

estavam se sentindo nessa noite. Então se serviu de outro copo de

conhaque e mais um pouco de chocolate, e descobriu numa gaveta

afastada uma coleção de caixinhas de rapé cheias de pérolas e pedras

semipreciosas, e entre elas vislumbrou a fivela de tartaruga que a sua

mãe costumava colocar no seu cabelo loiro. Mas o capuzinho azul de

tricô com o pompom solto não foi encontrado em nenhum lugar. A

banheira ficava sobre patas de leão de bronze, e na prateleira junto a

ela encontrou pacotes de óleos e sais de banho estrangeiros, cremes de

beleza, medicamentos e misteriosos unguentos. Ficou surpreso ao

encontrar, pendurado, um par de antigas meias de seda com costura

atrás, cuja visão despertou uma pequena vibração no seu baixo-ventre.

Na cozinha tomou nota mentalmente do conteúdo da geladeira e da

caixa de pão. Então voltou ao quarto, onde cheirou as roupas de baixo,

todas de seda, cuidadosamente dobradas nas prateleiras. Por um

instante, Fima se sentiu um detetive sistemático e incansável,

estudando palmo a palmo a cena do crime em busca da única pista,

ínfima porém crucial. Mas que pista? Que crime? Não se incomodou em

responder a essas perguntas, pois estava ficando mais e mais animado.

Todos esses anos ansiara por encontrar um lugar onde pudesse se

sentir em casa e nunca tinha conseguido, nem no seu apartamento,

nem na clínica ginecológica, nem na casa dos amigos, nem na sua

cidade, no seu país, no seu tempo. Talvez porque desde o início tivesse

sido um desejo questionável. Além do seu alcance. Além do alcance de

todos. Também esta noite, entre todos estes objetos excitantes que

insistem em ocultar o que realmente importa, esse desejo também

parece fora de alcance. Fima disse para si mesmo:

“Bem. Exílio.” E acrescentou: “E daí?”.

O rei Ricardo de Shakespeare ofereceu em vão o seu reino por um

cavalo, enquanto Efraim Nisan, perto das três da manhã, estava pronto

a trocar toda a sua herança por um dia, uma hora de total liberdade
interior e sentir-se em casa. Embora suspeite levemente de que entre o

sentir-se em casa e a liberdade interior exista uma tensão, talvez até

mesmo uma contradição, que não pode ser resolvida nem por Yoezer e

seus amigos, que estarão vivendo neste lugar daqui a cem anos.

Às cinco da manhã adormeceu totalmente vestido, e dormiu até as

onze. Mesmo então não acordou por vontade própria: seus amigos

tinham voltado para ficar com ele e confortar sua tristeza. As mulheres

haviam trazido vasilhas de carne cozida, e tanto elas quanto os homens

procuraram cercar o pobre órfão Fima de amor e carinho, calor e afeto.

Diversas vezes tentaram atraí-lo para uma discussão política, mas ele

não quis participar. Porém, condescendeu em contribuir

ocasionalmente com um sorriso ou um meneio. Por outro lado,

chamou Dimi e ficou encantado em saber que o menino estava

interessado nas coleções de selos e moedas, com a condição de que

pudesse ser sócio de Fima. Fima nada disse sobre as centenas de

soldadinhos da sua infância, que havia encontrado numa gaveta.

Seriam uma surpresa para o Challenger.

Sábado à noite, com o fim do Shabat, Fima vestiu o sobretudo de

inverno do pai e, deixando os amigos guardando luto, saiu para tomar

um pouco de ar, prometendo voltar em quinze minutos. Tinha a

intenção de ir na manhã seguinte, logo às oito, visitar o escritório da

fábrica de cosméticos no distrito industrial de Romema. O enterro

estava marcado para as três da tarde, e desta forma já poderia entrar

um pouco na situação. Mas esta noite com certeza tinha direito a um

último passeio sem destino definido.

O céu estava escuro e limpo, e as estrelas saíam da sua moldura para

atrair a atenção de Fima. Como se o Terceiro Estado fosse óbvio e

compreendido de antemão. Embriagado com o ar noturno de

Jerusalém, esqueceu a promessa. Em vez de voltar para os amigos após

o passeio, optou por quebrar os preceitos do luto e fazer um pequeno

intervalo. Por que não ir, até que enfim, sozinho, assistir à primeira

sessão da comédia com Jean Gabin, da qual só tinha escutado bons

comentários? Esperou pacientemente na fila por vinte minutos,

comprou ingresso, e, entrando no cinema pouco depois de o filme ter

começado, sentou-se numa das últimas filas, quase vazias. Mas após

alguns minutos de confusão deu-se conta de que Jean Gabin tinha


saído de cartaz e o filme era outro, estreando exatamente nessa sessão.

Assim, resolveu sair do cinema e ver o que havia de novo nas belas e

velhas ruas de Nahalat Shiva, que adorava desde pequeno e por onde

tinha caminhado com Gella algumas noites atrás. Por estar cansado, e

talvez também por estar com o coração leve e limpo, continuou

sentado no cinema, embrulhado no sobretudo do pai, olhando para a

tela e se perguntando por que os personagens do filme ficavam se

infligindo mutuamente toda sorte de humilhações e malefícios. O que

os impedia de ocasionalmente se compadecerem uns dos outros? Não

seria difícil explicar para os heróis, se eles concordassem em escutar

um momento, que se quisessem se sentir em casa, tinham que deixar o

outro em paz, e ficar em paz consigo próprios. E tinham que tentar ser

bons. Pelo menos o máximo possível. Pelo menos enquanto os olhos

podem ver e os ouvidos ouvir, mesmo em face do crescente cansaço.

Deviam ser bons, mas em que sentido?

A pergunta parecia capciosa. Porque na verdade tudo era muito

simples. Sem esforço ele acompanhou o enredo. Até que seus olhos se

fecharam e ele adormeceu sentado.

1989-90
Notas

1. Esta frase é uma referência ao hino do Palmach, o conjunto de unidades de elite do exército

judaico antes da criação do Estado de Israel, e durante a Guerra da Independência em 1948. (N.

T.)

2. Xale de orações.
ERIC FEINBLATT

Amós Oz, nascido em Jerusalém, em 1939, é considerado o

principal escritor vivo de Israel. Traduzido em 22 línguas, em 1992

recebeu o Prêmio da Paz na Feira do Livro de Frankfurt,

anteriormente atribuído a escritores como Hermann Hesse e

Octavio Paz. Viveu mais de trinta anos num kibutz, e hoje mora

em Arad, no deserto de Neguev. É conhecido por sua militância

em favor da paz entre árabes e israelenses. Dentre suas várias

obras de ficção, a Companhia das Letras publicou Conhecer uma

mulher, A caixa-preta, Não diga noite, Pantera no porão, O

mesmo mar e De amor e trevas.


Copyright © 1991 by Amós Oz

Todos os direitos reservados

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou

em vigor no Brasil em 2009.

Título original:

Hamatsáv hashlishí (The third condition)

Capa:

Takashi Fukushima

Preparação:

Márcia Copola

Revisão:

Maria Margarida Negro

Isabel Cury

Ana Maria Barbosa

ISBN 978-85-438-0814-7

Todos os direitos desta edição reservados à

EDITORA SCHWARCZ S.A.

Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32

04532-002 – São Paulo – SP

Telefone (11) 3707-3500

Fax (11) 3707-3501

www.companhiadasletras.com.br
Sumário

Capa

Rosto

1. Promessa e graça

2. Fima levanta-se para trabalhar

3. Uma lata de minhocas

4. Esperanças de abrir uma nova página

5. Fima fica ensopado na escuridão sob a tempestade

6. Como se ela fosse sua irmã

7. Com punhos finos

8. Discordância de opiniões sobre quem são de fato os indianos

9. Há tantas coisas sobre as quais poderíamos conversar. Comparar...

10. Fima perdoa e esquece

11. Até o último poste de luz

12. A distância fixa entre ele e ela

13. A raiz de todo o mal

14. Descobrindo a identidade de um famoso general finlandês

15. Histórias de ninar

16. Fima chega à conclusão de que ainda há uma chance

17. Vida noturna

18. “Você esqueceu de si mesmo”

19. No mosteiro

20. Fima se perde na floresta

21. Mas o vaga-lume sumiu

22. “Eu me sinto bem com você assim”

23. Fima esquece o que esqueceu

24. Vergonha e culpa


25. Dedos que não são dedos

26. Gella

27. Fima se recusa a capitular

28. Em Ítaca, à beira-mar

29. Antes do shabat

30. Pelo menos o máximo possível

Notas

Sobre o autor

Créditos
Judas
Oz, Amós
9788543802114
368 páginas

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A partir da história de amor entre um estudante e uma mulher


misteriosa, Amós Oz questiona a fundação do estado de Israel e as
guerras que abalam o Oriente Médio. Amós Oz é o mais importante
escritor israelense da atualidade. Candidato constante ao prêmio
Nobel, fez de sua obra uma reflexão profunda sobre o destino do
povo judeu. Quais cicatrizes a história turbulenta do país deixou
sobre seus habitantes? Que marcas imprime no indivíduo uma vida
atravessada pela guerra? Há solução possível para um conflito que
remonta a tempos imemoriais?Judas é exemplo claro da densidade
de sua obra. O protagonista é Shmuel Asch, um estudante que se
vê em apuros no inverno de 1959: sua namorada o deixou, seus
pais faliram e ele foi obrigado a abandonar os estudos na
universidade e interromper sua pesquisa - um tratado sobre a figura
de Jesus sob a ótica dos judeus. Passado o desespero inicial, ele
encontra morada e emprego numa antiga casa de pedra, situada
num extremo de Jerusalém. Durante algumas horas diárias, sua
função é servir de interlocutor para um velho inválido e perspicaz.
Na mesma casa, vive uma mulher bonita e sensual chamada Atalia
Abravanel, com quase o dobro de sua idade. Shmuel é atraído por
ela, até que a curiosidade e o desejo transformam-se numa paixão
sem futuro. Neste romance cheio de lirismo, Amós Oz retorna ao
cenário de alguns de seus livros mais apreciados, entre eles Meu
Michel e De amor e trevas: a Jerusalém dividida em meados do
século XX. Ao lado de seus personagens, Oz é corajoso o bastante
para questionar o estabelecimento de um estado para os judeus,
com suas consequentes guerras, e se pergunta se seria possível
eleger um caminho histórico diferente. Como lembra o ensaísta
Alberto Manguel, neste livro Amós Oz revolve, com profunda
inteligência e paixão, o coração da tragédia palestina. "Mais uma
vez, Oz nos dá uma absoluta, necessária obra-prima. " - Alberto
Manguel

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Dois irmãos
Hatoum, Milton
9788580861631
200 páginas

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Onze anos depois da publicação de Relato de um certo Oriente,


Milton Hatoum retoma os temas do drama familiar e da casa que se
desfaz. Dois irmãos é a história de como se constroem as relações
de identidade e diferença numa família em crise. O enredo desta
vez tem como centro a história de dois irmãos gêmeos - Yaqub e
Omar - e suas relações com a mãe, o pai e a irmã. Moram na
mesma casa Domingas, empregada da família, e seu filho. Esse
menino - o filho da empregada - narra, trinta anos depois, os dramas
que testemunhou calado. Buscando a identidade de seu pai entre os
homens da casa, ele tenta reconstruir os cacos do passado, ora
como testemunha, ora como quem ouviu e guardou, mudo, as
histórias dos outros. Do seu canto, ele vê personagens que se
entregam ao incesto, à vingança, à paixão desmesurada. O lugar da
família se estende ao espaço de Manaus, o porto à margem do rio
Negro: a cidade e o rio, metáforas das ruínas e da passagem do
tempo, acompanham o andamento do drama familiar. Prêmio Jabuti
2001 de Melhor Romance

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O instante certo
Harazim, Dorrit
9788543806242
384 páginas

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Com olhar arguto e sensível, a jornalista Dorrit Harazim fala de


algumas das mais importantes fotografias da história.
Há cliques que alteraram o rumo da história e os costumes da
sociedade. Neste O instante certo, a premiada jornalista Dorrit
Harazim conta as histórias de alguns dos mais célebres fotogramas
já tirados. Assim, registros da Guerra Civil Americana servem de
base para analisar os avanços tecnológicos da fotografia; uma foto
na cidade de Selma conta a história do movimento pelos direitos
civis; e uma mudança na lei trabalhista brasileira tem como fruto um
dos mais profícuos retratistas do país.
Em seu primeiro livro, Harazin nos guia não apenas através das
imagens, mas de um universo de histórias interligadas, acasos e
aqueles breves momentos de genialidade que só a fotografia pode
captar.

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Diário de Oaxaca
Sacks, Oliver
9788580869026
128 páginas

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Conhecido por seus relatos clínicos que desvendam grandes


mistérios do cérebro humano, Oliver Sacks revela uma nova faceta
em seu diário de viagem para o estado de Oaxaca, no México.
Durante dez dias, acompanhou um grupo de botânicos e cientistas
amadores interessados em conhecer o hábitat das samambaias
mais raras do mundo. Entre descrições minuciosas da morfologia
das plantas e uma ou outra digressão acerca de pássaros e tipos de
solo, o texto concentra toda a sua força em desvendar um grande
mistério da mente humana: a curiosidade científica. Ao observar de
perto o comportamento de seus colegas de excursão, Oliver Sacks
revela que a ciência, longe de ser uma seara de cálculos e
experimentos, nasce do interesse genuíno e apaixonado de
amadores, cuja erudição nem sempre supera a vontade de aprender
e descobrir fatos novos. Os personagens que compõem a expedição
são sui generis. O grupo é composto de tipos humanos diversos:
homens e mulheres, americanos e ingleses, cientistas e curiosos
circulam com desenvoltura por selvas e grutas, mas protagonizam
cenas de verdadeira comédia ao tentar, sem sucesso, se imiscuir no
cotidiano das cidades mexicanas por onde passam. É o caso da
visita coletiva feita a um alambique onde se processa o mescal,
bebida alcoólica extraída do agave, uma planta nativa que também
dá origem à tequila. Levemente alterados pela degustação a que se
submetem no maior "interesse científico", os expedicionários
terminam sentados em uma pequena planície das redondezas,
uivando para a lua e se "perguntando como será que os lobos e os
outros animais se sentiram quando a lua, a sua lua, lhes foi
roubada". Composto de uma gama variada de assuntos, Diário de
Oaxaca versa ainda sobre a intimidade de Oliver Sacks, cujo mal-
estar em relação aos meios oficiais e ultracompetitivos da ciência
contemporânea fica evidente nas diversas passagens em que o
autor externaliza sua admiração pelos amadores - classe de
cientistas à qual, aliás, o livro é dedicado.

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O enforcado de Saint-Pholien
Simenon, Georges
9788580869934
136 páginas

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Maigret inadvertidamente causa o suicídio de um homem, mas seu


remorso motiva a descoberta dos sórdidos eventos que levaram o
homem desesperado a se matar. O que primeiro vem à mente
quando se fala em Georges Simenon são os números: ele escreveu
mais de quatrocentos livros, que venderam mais de 500 milhões de
exemplares e foram traduzidos para cinquenta idiomas. Para o
cinema foram mais de sessenta adaptações. Para a televisão, mais
de 280. Simenon foi um dos maiores escritores do século XX. Entre
seus admiradores, figuravam artistas do calibre de André Gide,
Charles Chaplin, Henry Miller e Federico Fellini. Em meio a suas
histórias policiais, figuram 41 "romances duros" de alta densidade
psicológica e situados entre as obras de maior consistência da
literatura europeia. Em O enforcado de Saint-Pholien, Maigret está
em viagem para Bruxelas. Por acidente, o comissário precipita o
suicídio de um homem, mas seu remorso é ofuscado pela
descoberta dos sórdidos eventos que levaram o homem à decisão
extrema de se matar.

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