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A Noite dos Tempos

René Barjavel

A André Cayatte, pai desta aventura e inspirador deste livro, com a minha amizade.
R.B.
Minha bem-amada, minha abandonada, eu te deixei lá no fim do mundo, voltei para meu quarto de
homem da cidade com seus móveis familiares sobre os quais tantas vezes pousei minhas mãos que os
amavam, com os seus livros que me alimentaram, com sua velha cama de cerejeira onde dormi minha
infância e onde, esta noite, procurei em vão encontrar o sono. E todo este cenário que me viu crescer,
desenvolver, tornar-me eu, hoje me parece estranho, impossível. Este mundo que não é o teu tornou-se
um mundo falso, no qual meu lugar jamais existiu.
E no entanto é meu país, eu o conheci...
Vai ser preciso reconhecê-lo, aprender novamente a respirar nele, a fazer nele o meu trabalho de
homem no meio dos homens. Serei capaz disso?
Cheguei ontem à noite pelo jato australiano. No aeroporto de Paris-Norte, um bando de jornalistas me
esperava, com seus microfones, suas câmaras, suas inúmeras perguntas. Que poderia eu responder?
Todos eles te conheciam, todos eles haviam visto em suas telas a cor dos teus olhos, a incrível distância
do teu olhar, as formas perturbadoras do teu rosto e do teu corpo. Mesmo aqueles que te viram apenas
uma vez não puderam te esquecer. Eu os sentia, por trás dos reflexos de sua curiosidade profissional,
secretamente mudos, agitados, magoados. Mas talvez fosse a minha própria dor que eu projetava sobre o
rosto deles, minha própria ferida que sangrava quando pronunciavam o teu nome...
Voltei para meu quarto. Não o reconheci. A noite passou e não dormi. Através da parede de vidro, o
céu, que era negro, tornava-se pálido. As trinta torres da Defesa se tingiam de cor-de-rosa. A Torre Eiffel e a
Torre Montparnasse enfiavam seus pés na bruma. O Sacré-Coeur parecia uma maquete de gesso pousada
no algodão; sobre esta bruma envenenada por suas fadigas de ontem, milhões de homens acordam já
extenuados de hoje. Do lado de Courbevoie, uma chaminé alta lança uma fumaça negra que tenta reter a
noite. Sobre o Sena, um rebocador solta seu grito de monstro melancólico. Estremeço. Nunca mais, nunca
mais sentirei calor no meu sangue nem na minha carne...

O Dr. Simon, as mãos nos bolsos, a testa apoiada na parede de vidro de seu quarto, olha Paris, sobre a
qual o dia se levanta. É um homem de trinta e dois anos, alto, magro, moreno. Veste um suéter grosso de
gola rulê, cor de pão queimado, um pouco deformado, gasto nos cotovelos, e uma calça de veludo negro.
Sobre o tapete, seus pés estão descalços. Seu rosto é coberto por anéis de barba castanha, curta, barba de
alguém que a deixou crescer por necessidade. Por causa dos óculos que usou durante o verão polar, o
côncavo dos olhos parece claro e frágil, vulnerável como a pele cicatrizada de um ferimento. Sua testa é
larga, meio escondida pela nascente dos cabelos curtos, um pouco caída sobre os olhos e cortada por uma
profunda ruga. Suas pálpebras estão inchadas, o branco de seus olhos é estriado de vermelho. Não pode
dormir, não pode mais chorar, não pode esquecer, é impossível...
A aventura começou com uma missão de simples rotina, das mais banais. Havia anos que o trabalho
sobre o continente antártico não era mais feito pelos corajosos mas sim por sábios organizados. Havia todo
o material necessário para lutar contra os inconvenientes do clima e da distância, para conhecer o que
procuravam saber para assegurar aos pesquisadores um conforto equivalente ao de um hotel de luxo. Todo
o pessoal da equipe possuía os conhecimentos indispensáveis à missão. Quando o vento soprava forte
demais, fechavam-se em seus alojamentos e deixavam-no soprar; quando se acalmava, todos saíam e cada
um fazia o que tinha a fazer. Sobre o recortado mapa daquele continente, na Base Paul-Émile Victor, a
missão francesa permanente debruçava-se sobre a fatia que lhe coubera, dividia-a em pequenos quadrados
e trapézios e os explorava sistematicamente um após outro. Sabia que não havia mais nada a ser
encontrado além de gelo, neve e vento, vento, gelo e neve. E, sob o gelo, rochas e terra, como em toda
parte. Não havia nada de excitante nisso, mas mesmo assim aquilo os apaixonava, porque estavam longe
do óxido de carbono e dos engarrafamentos, porque cada um dava a si próprio a pequena ilusão de ser um
pouco herói explorador, enfrentando grandes perigos, e principalmente porque estavam no meio de
amigos.
A missão acabara de fazer a exploração do trapézio 381, a documentação estava encerrada, uma cópia
tinha sido enviada à sede em Paris. Restava-nos passar à tarefa seguinte. Burocraticamente, do 381
deveríamos ter passado para o 382, mas nem sempre as coisas aconteciam assim. Havia as circunstâncias,
os imprevistos e a necessidade de um mínimo de variedade.
A missão acabava de receber um novo aparelho de sondagem subglacial de concepção revolucionária,
que, segundo seu construtor, era capaz de descobrir os menores detalhes do solo sob vários quilômetros
de gelo. Louis Grey, o glaciólogo, trinta e sete anos, professor de geografia, estava ardendo de impaciência
para pô-lo à prova, comparar o seu trabalho com o das sondas clássicas. Decidiu-se então que um grupo iria
fazer um levantamento do solo subglacial no quadrado 612, que se situava a algumas centenas de
quilômetros do pólo sul.
Em duas viagens o pesado helicóptero depositou os homens, os veículos e todo o material sobre o local
de operação.
O lugar já havia sido bastante sondado pelos métodos e engenhos habituais. Sabia-se que
profundidades de oitocentos a mil metros de gelo terminavam em abismos de mais de quatro mil metros.
Aos olhos de Louis Grey, o local constituía um campo de experiência ideal para testar o novo aparelho. Era,
acreditava ele, o que havia motivado sua escolha. Hoje em dia ninguém ousa acreditar nisso. Com tudo o
que foi revelado depois, como se poderia pensar ainda que tinha sido só o acaso, ou uma razão qualquer,
que fizera vir esses homens com todo o material necessário exatamente a este ponto do continente, ao
invés de a qualquer outro ponto desse deserto de gelo maior que a Europa e os Estados Unidos juntos?
Muitos espíritos sérios acreditam agora que Louis Grey e seus companheiros tenham sido “chamados”.
De que maneira? Isso não foi esclarecido pelos acontecimentos seguintes. E nem mesmo se tratou disso.
Havia problemas bem maiores e mais urgentes a elucidar. Mas a verdade é que Louis Grey e mais onze
homens, levados em três snodogs1, se colocaram exatamente no lugar certo.
E, dois dias depois, todos esses homens sabiam que tinham vindo ao encontro de um acontecimento
inimaginável. Dois dias...

Como falar aqui de dias e de noites? Estávamos no princípio de dezembro, quer dizer, em pleno verão
austral. O sol não se punha. Girava sobre os homens e os caminhões, em volta do seu mundo redondo,
como para vigiar de longe e por todos os lados. Mais ou menos às nove horas da noite passava atrás de
uma montanha de gelo, reaparecia às dez do outro lado dessa montanha, lá pela meia-noite parecia a
ponto de sucumbir e desaparecer sob o horizonte que começava a engoli-lo. Então se defendia, crescendo,
deformando-se, tornando-se vermelho. Ganhava a batalha e recomeçava lentamente a percorrer suas
distâncias e sua ronda de sentinela, iluminando ao redor da missão um imenso disco branco e azul de frio e
solidão. Por outro lado, muito além desses limites longínquos sobre os quais montava guarda, atrás dele
havia a Terra, as cidades e as multidões, os campos com suas vacas, as ervas, as árvores e os passarinhos.
O Dr. Simon estava nostálgico. Acabava uma permanência de três anos, quase ininterrupta, nas
diferentes bases francesas da Antártida, e estava mais do que cansado. Após esse estágio, deveria ter
tomado o avião para Sydney. Ficou, porém, a pedido do seu amigo Louis Grey, para acompanhar sua
missão, pois o Dr. Jaillon, seu substituto, estava ocupado na base, atacada por uma epidemia de rubéola.
Essa rubéola era inverossímil. Quase nunca se vêem moléstias na Antártida, dir-se-ia até que os
micróbios têm medo do frio. Os médicos só têm que cuidar de acidentes e, às vezes, de frieiras dos recém-
chegados, que não deixam de cometer imprudências. Por outro lado, a rubéola quase que desapareceu da
face da Terra depois que inventaram a vacina bucal que todos os recém-nascidos tomam nas suas primeiras
mamadeiras. Apesar dessas evidências, havia rubéola na Base Victor. Um homem em cada quatro ardia de
febre em sua cama, a pele transformada num tecido de bolinhas.
Louis Grey juntou um grupo ainda ileso, em meio do qual estava o Dr. Simon, e embarcou-o a toda
pressa para o ponto 612, desejando ardentemente que o vírus não os seguisse.
Não fosse a rubéola...

Se naquele dia, ao invés de subir no helicóptero, eu tivesse embarcado no avião para Sydney, se do alto
da sua decolagem vertical, antes que ele se lançasse rugindo em direção às terras quentes, eu tivesse dito
adeus para sempre à base, ao gelo, ao monstruoso continente frio, que teria acontecido?
Quem teria estado perto de ti, minha bem-amada, no momento terrível? Quem teria visto em meu
lugar? Quem teria sabido?
Alguém teria gritado, berrado o nome? Eu, eu não disse nada. Nada...
E tudo se consumou...
Desde então repito a mim mesmo que era tarde demais, que se eu tivesse gritado isso não teria
mudado nada, e eu teria simplesmente ficado arrasado sob o peso de um desespero inexpiável. Durante
aqueles poucos segundos, não teria havido bastante horror no mundo para encher teu coração.
Eis o que me repito sem cessar, desde aquele dia, desde aquela hora: “Muito tarde... muito tarde...
muito tarde...”
Mas talvez seja uma mentira que eu mastigo e torno a mastigar, e da qual tenha de me alimentar para
viver...

Sentado numa esteira do snodog, o Dr. Simon sonhava com um croissant molhado num café cremoso.
Molhado, sumarento, para ser comido aos pequenos pedaços, mastigando devagar, à maneira dos bons
parisienses. Era um prazer que lhe trazia as melhores lembranças, aquele de entrar no bistrot, aproximar-se
do balcão, aspirando o cheiro do café expresso, os pés sobre a serragem, lado a lado com os rabugentos da
manhã, compartilhando do seu primeiro prazer do dia, talvez o maior, o de se encontrar nesse lugar de
primeiro encontro com os outros homens, sentindo o calor e as correntes de ar.
Não podia mais com todo aquele gelo e aquele vento, um vento que não cessava jamais de fustigá-lo, de
fustigar todos os homens da Antártida, metidos naquele deserto glacial. Empurrava-os sem cessar, a eles e
a suas barracas, antenas e caminhões, para que se fossem, abandonassem o continente, e os deixassem,
ele e a neve mortal, consumar a sós, eternamente na solidão, suas monstruosas bodas ultrageladas...
Era preciso ser verdadeiramente obstinado para suportar aquela vida. Simon tinha chegado ao auge de
sua obstinação. Antes de sentar-se, havia colocado uma coberta dobrada em quatro sobre a esteira do
snodog, a fim de que suas nádegas ficassem mais bem protegidas.
Estava com o rosto voltado para o sol e esfregava as faces, escondidas pela barba, tentando convencer-
se de que o sol o esquentava, se bem que lhe fornecesse mais ou menos tantas calorias quanto uma
lanterna a óleo a três quilômetros de distância. O vento tentava virar o seu nariz em direção a sua orelha
esquerda. Virou a cabeça para receber o vento do outro lado. Pensava na brisa do mar à noite em Collioure,
tão quente, mas que achavam fresca porque fazia muito calor durante o dia. Pensava no indescritível
prazer de se despir, de mergulhar na água sem se transformar em gelo, de se deitar sobre as areias
quentes... Quentes! Isso lhe pareceu tão inverossímil que ele riu.
? Você agora ri sozinho? – disse Brivaux. – Estamos bem... Será que você está com rubéola?
Brivaux estava por trás dele, a sonda a tiracolo, pendurada numa larga correia de pele de lobo que
passava por trás do seu pescoço.
– Estava pensando nos lugares do mundo onde faz calor – disse Simon.
– Não é rubéola, é meningite... Fique sentado assim, e vai gelar até a alma... Olhe, venha ver um pouco
isto aqui...
– Apontou-lhe o mostrador da sonda, com a folha registradora já parcialmente enrolada. Era um
modelo comum com o qual ele acabava de prospectar o setor que lhe tinha sido designado.
Simon levantou-se e olhou. Não entendia muito da parte técnica. O mecanismo do corpo humano lhe
era mais familiar do que o de um simples isqueiro a gás. Mas tivera tempo, depois de três anos, de se
familiarizar com os desenhos que a grafite das sondas portáteis traçava sobre o papel magnético. Pareciam,
em geral, com o corte de um terreno vago, ou de um montão de ruínas, ou de não importa o quê, que não
se parecesse com coisa alguma. Ora, o que Brivaux lhe mostrava parecia com alguma coisa...
Com quê?
Com nada de conhecido, nada de familiar, mas...
Seu espírito, habituado a fazer a síntese dos sintomas para apresentar um diagnóstico, compreendeu de
repente o que havia de incomum nesse relevo do solo glacial. A linha reta não existe na natureza bruta. A
linha curva regular também não. O solo bruto, áspero, misturado no decorrer das idades geológicas pelas
formidáveis forças da Terra, é sempre totalmente irregular. Ora, o que a sonda de Brivaux havia inscrito
sobre o papel era uma sucessão de curvas e de retas. Interrompidas e quebradas, mas perfeitamente
regulares. Que o solo pudesse apresentar tal perfil, era totalmente improvável e mesmo impossível. Simon
tirou a conclusão mais evidente:
– Há qualquer coisa errada nesse negócio...
– E você, você tem qualquer coisa errada aí dentro? – Brivaux bateu com o dedo enluvado na sua
cabeça.
– Este aparelho funciona com perfeição. Gostaria de funcionar tão bem quanto ele até o meu último
dia. Mas lá embaixo há qualquer coisa que não está bem...
Bateu na superfície do gelo com o salto da sua bota forrada.
– Um perfil assim não é possível – continuou Simon.
– Eu sei, isto não parece verdade.
– E os outros? O que encontraram?
– Não sei de nada, vou dar um toque de corneta para chamá-los...
Subiu ao laboratório no caminhão, e, três segundos depois, soava a sirene chamando os membros da
missão de volta ao acampamento.
Aliás, eles já estavam prestes a voltar. Primeiro as duas equipes a pé, com suas sondas clássicas. Depois
o snodog, que tinha na frente o transmissor receptor da nova sonda, uma armadura metálica entre as duas
lagartas. Um cabo vermelho o ligava ao posto de comando e ao registrador, no interior do veículo. Estavam
também no veículo o mecânico Éloi, Louis Grey, impaciente para ver funcionar o novo instrumento, e um
engenheiro da fábrica que tinha vindo para mostrar o seu funcionamento.
Era um rapaz alto e magro, mais para louro, e de maneiras delicadas. Dava a impressão, por sua
elegância natural, de ter encomendado seus trajes polares numa casa de alta costura. Os veteranos não
podiam deixar de sorrir ao olhá-lo. Éloi o havia apelidado de “Cornexquis”, o que lhe assentava com
perfeição.
Desceu do caminhão em silencio, escutando com um ar reservado as apreciações de Grey sobre seu
“utensílio”. Segundo a opinião do glaciólogo, a nova sonda falhara completamente. Ele nunca havia visto,
nem no aparelho mais antigo, ser traçado um perfil igual àquele.
– Mas o mistério não acaba aí... – disse Brivaux, que esperava junto ao caminhão-laboratório.
– Foi você quem chamou?
– Fui eu, velhinho...
– O que é que está acontecendo?
– Entre e verá...
E eles viram...

Viram os quatro levantamentos, os quatro perfis, todos estranhos e semelhantes entre si. O da sonda
nova estava inscrito num filme de três milímetros. Grey o havia seguido na tela de controle. Os outros
membros da missão o viram na tela do laboratório.
O que as outras três sondas deixaram supor o novo aparelho mostrava com evidência. Fazia desfilar
sobre a tela, com uma nitidez que não deixava lugar a nenhuma dúvida, perfis de escadas derrubadas,
muros quebrados, cúpulas arrebentadas, rampas helicoidais torcidas, todos os detalhes de uma arquitetura
que uma mão gigantesca parecia ter deslocado e destruído.
– Ruínas!... – disse Brivaux.
– Não é possível... – disse Grey, com uma voz que mal ousava se fazer ouvir.
– E por quê? – indagou Brivaux, tranqüilamente. Brivaux era filho de um pequeno camponês da Haute-
Savoie, o último de sua cidadezinha a continuar a criar vacas ao invés de seguir os parisienses amontoados
às dezenas por metro quadrado de neve ou de grama seca. O velho Brivaux havia cercado seu pedaço de
montanha de moirões e de arame farpado – “É proibida a entrada” – e nessa prisão vivia em liberdade.
O filho tinha-lhe herdado os olhos azul-claros, os cabelos negros e a barba avermelhada, além do humor
sempre igual e o senso de equilíbrio. Via as ruínas como todos os que ali estavam e sabiam interpretar um
perfil. A diferença é que os outros não acreditavam, mas ele acreditava porque as via. Se tivesse visto seu
próprio pai lá no gelo, teria ficado espantado durante um segundo, depois teria dito “olhem aí o meu pai...”
Mas os membros da missão não podiam deixar de se render à evidência. Os quatro levantamentos se
assemelhavam e se confirmavam uns aos outros.
O desenhista Bernard foi encarregado de fazer a síntese. Uma hora mais tarde apresentava seu primeiro
esboço. Não parecia com nada que se conhecesse: era uma arquitetura gigantesca, destruída por alguma
força titânica, descomunal.
– A que profundidade estão essas coisas? – perguntou Éloi.
– Entre novecentos e mil metros! – disse Grey com ar furioso, como se fosse responsável pela
enormidade do acontecimento.
– Isso significa que elas estão lá há quanto tempo?
– Não se pode saber... Numa perfuramos tão profundamente.
– Mas os americanos já o fizeram – disse calmamente Brivaux.
– Sim... os russos também... – acrescentou Simon, para depois perguntar: – Eles teriam podido datar
suas amostras?
– Pode-se sempre... isso não quer dizer que seja exato.
– Exato ou não, eles dataram de quando?
Grey levantou os ombros ante o absurdo que ia dizer:
– De aproximadamente novecentos mil anos, há alguns séculos...
Houve exclamações e depois um silêncio estupefato.
Os homens reunidos no caminhão olhavam sucessivamente o esboço de Bernard e as últimas linhas do
perfil, imóveis sobre a tela. Acabavam de tomar consciência, de repente, da imensidão da sua própria
ignorância.
– Não pode ser – disse Éloi. – Foram homens que fabricaram isso. Há novecentos mil anos não havia
homens, só macacos.
– Quem lhe disse isso, meu caro? – disse Brivaux.
– O nosso conhecimento da história dos homens e da evolução da vida sobre a Terra – observou Simon
– não é maior do que um cocô de pulga na Place de la Concorde...
– E então? – disse Éloi.
– M. Lancieux, peço desculpas ao seu aparelho – disse Grey.
Lancieux. Cornexquis. Ninguém mais tinha vontade de chamá-lo assim, nem mesmo mentalmente. Não
havia mais lugar na cabeça daqueles homens para as brincadeiras de colegiais que os ajudavam
normalmente a suportar o frio e a lentidão do tempo. Lancieux mesmo não se parecia mais com o seu
apelido. Seus olhos estavam cansados, suas faces encovadas, tragava seu cigarro apagado e retorcido, e
escutava Grey sacudindo a cabeça com ar ausente.
– É uma mecânica sensacional – dizia o glaciólogo. – Mas há uma outra coisa... Ninguém prestou
atenção. Mostre-lhes... E diga-lhes o que você pensa...
Lancieux apertou o botão de rebobinagem, depois o botão vermelho, e a tela se iluminou, mostrando
novamente o lento desfile do perfil das ruínas.
– É ali que se deve observar – disse Grey.
Seu dedo mostrava, no alto da tela, embaixo do traçado tormentoso do subsolo, uma linha retilínea
apenas visível, finamente ondulada, de uma regularidade perfeita.
Efetivamente ninguém havia prestado atenção, pensando talvez que fosse uma linha de referência, um
reparo, ou outro sinal qualquer, mas nada de significativo.
– Diga-lhes... – repetiu Grey. – Diga-lhes o que você me disse! No ponto em que estamos...
– Preferiria – disse Lancieux com voz um pouco aflita – fazer primeiro uma contraprova. Nenhuma das
outras sondas registrou...
Grey cortou-lhe a palavra:
– Elas não são sensíveis o bastante!
– Talvez – disse Lancieux com sua voz suave. – Mas não é certo... Talvez seja porque elas não estejam na
freqüência exata...
Lançou-se, juntamente com Brivaux, numa discussão, à qual logo se juntaram os outros técnicos do
grupo, cada um sugerindo quais as modificações que, em sua opinião, convinha fazer nas sondas.
O Dr. Simon encheu seu cachimbo e saiu.

Não sou um técnico. Não me debruço sobre meus doentes: faço isso o menos possível. Antes procuro
compreendê-los. Para agir assim é preciso poder. Mas eu sou um privilegiado...
Meu pai, que era médico em Puteaux, via desfilar mais de cinqüenta clientes por dia no seu consultório.
Como saber o que eles são, o que têm? Cinco minutos de exame, a pinça para perfurar, o cartão, a máquina
de diagnóstico, a receita impressa, o selo de imposto, está pronto, pode se vestir, o seguinte. Ele detestava
a profissão tal como ele e seus colegas eram obrigados a exercer. Quando se apresentou a ocasião de eu vir
para cá, ele me empurrou pelos ombros com todas as suas forças: “Vá! Vá! Você terá apenas um punhado
de homens para tratar. Uma cidade! Você poderá conhecê-los...”
Morreu no ano passado, esgotado. Seu coração lhe falhou. Nem tive tempo para ir até lá. Ele nunca
pensou em perfurar seu cartão pessoal e colocá-lo na fenda do seu médico eletrônico. Mas pensou em me
ensinar umas tantas coisas que havia aprendido com seu pai, médico em Auvergne. Por exemplo, a tatear o
pulso, olhar uma língua e o branco dos olhos. É prodigioso o que o pulso pode revelar sobre o interior de
um homem. Não somente sobre o estado momentâneo de sua saúde, mas sobre suas tendências habituais,
seu temperamento, e mesmo seu caráter, se ele é superficial ou profundo, agressivo ou suscetível, sedoso
ou áspero. Há o pulso do saudável e o do doente, há também o pulso da caça e o do caçador.
Tenho também, como todos os médicos, um diagnosticador e pequenos cartões. Que médico não os
tem? Só os uso para comfortar aqueles que têm mais confiança na máquina do que no homem. Aqui,
felizmente, eles não são muito numerosos. Aqui, o homem conta.

Quando Brivaux deixou a fazenda de seu pai, para fazer em Grenoble os estudos que o apaixonavam,
havia calmamente dado uma olhada no programa e transposto todos os obstáculos. Tendo saído em
primeiro lugar da escola eletrônica e com um ano adiantado, pôde transformar seu diploma de engenheiro
numa ponte de ouro para qualquer grande indústria do mundo. Mas escolheu a Base Victor. “Porque”,
explicava ele ao Dr. Simon, seu amigo, “tratar de eletrônica aqui é divertido... Estamos a dois dedos do pólo
magnético, em pleno vaivém das partículas ionizadas, em pleno sopro do vento solar, e mais uma
quantidade enorme de coisas que não se conhecem. Isso faz uma salada interessante. Podem-se fazer
misérias...”
Ele abria os braços horizontalmente e agitava os dedos, como se convidasse as correntes misteriosas da
criação a penetrar no seu corpo e a percorrê-lo. Simon sorria, imaginando-o um Netuno da eletrônica, em
pé sobre o pólo, os cabelos plantados nas trevas do céu, sua barba vermelha mergulhada nas chamas da
Terra, seus braços estendidos no vento perpétuo dos elétrons, distribuindo à natureza os fluxos e refluxos
vivos do planeta-mãe. Mas era nessas “misérias” que ele manifestava uma espécie de gênio. Seus grossos
dedos cabeludos eram incrivelmente hábeis, e sua ciência, associada a um instinto infalível, lhe dizia
exatamente o que devia fazer. Ele sentia essas correntes assim como os bichos sentem a água. E seus dedos
hábeis começavam a agir. Três pontas de fio, um circuito, três metais granulados semicondutores, que ele
virava, juntava, colava, ligava. Uma fumacinha, um cheiro de resina, e pronto: um mostrador começava a
viver, um arabesco palpitava na espessura da tela.
O problema que Lancieux lhe formulou não era um problema para ele. Em menos de uma hora havia
trocado as três sondas clássicas e as equipes se repartiam. O que iam procurar era tão espantoso que todos
estavam convencidos de que iam voltar sem haver conseguido nada. Afora Lancieux, que conhecia bem seu
aparelho, os demais pensavam que a pequena linha ondulada era efeito de um capricho da nova sonda. Um
fantasma, como dizem os técnicos de televisão.
O sol se escondia por trás de uma montanha de gelo quando voltaram. Tudo estava azul, o céu, as
nuvens, o gelo, os rostos e o vapor que saía de suas narinas. O casaco vermelho de Bernard estava cor de
abóbora. Eles não tinham voltado de mãos vazias. A linha ondulada estava gravada em suas fitas
registradoras, sob a forma de uma linha reta. Menos detalhada, ela havia perdido sua pequena ondulação,
mas estava lá. Bem que haviam encontrado o que tinham ido procurar.
Comparando seus levantamentos e o de Lancieux, Grey pôde localizar um ponto certo do solo
subglacial. Projetou o perfil sobre a tela do snodog. Aquilo parecia representar um pedaço gigantesco de
escada, virado e quebrado.
– Meus filhos – disse Grey com uma voz controlada –, lá... lá existe...
Na mão esquerda segurava uma folha de papel que tremia. Calou-se, pigarreou. Sua voz não conseguia
mais sair. Batia na tela com seu papel, que se amassava.
Engoliu a saliva, explodiu:
– Meu Deus, isso é loucura! Mas existe! As quatro sondas não podem ter enlouquecido exatamente da
mesma maneira! Não há somente ruínas, no meio dessa camada, lá, nesse lugar aí, justamente aí, há um
emissor de ultra-sons que funciona!
Seria a pequena linha misteriosa o registro de um sinal enviado por um emissor que funcionava,
segundo toda a lógica, há mais de novecentos mil anos? Tal suposição ultrapassava a história e a pré-
história, derrubava todos os credos científicos, não estava ao alcance daquilo que aqueles homens sabiam.
O único que aceitava o acontecimento com calma era Brivaux, o único crescido e educado no campo. Os
outros, da cidade, tinham crescido no meio do provisório, do efêmero, do que se constrói, se queima, se
desmorona e se transforma. Ele, na vizinhança das rochas alpinas, tinha aprendido a ver a grandeza e a
perscrutar a eternidade das coisas.
– Vão pensar que estamos loucos – disse Grey.
Chamou a base pelo rádio e pediu o helicóptero com urgência para ir buscar o grupo. Mas havia se
esquecido da rubéola. O último piloto disponível acabara de cair de cama.
Temos o André que está melhorzinho – disse o rádio da base –, dentro de três ou quatro dias
poderemos mandá-lo. Mas por que é que vocês querem voltar? O que foi que aconteceu? Pegou fogo nas
geleiras?
Grey cortou. Mas essa brincadeira boba adiantara de certo modo.
Dez minutos mais tarde o chefe da base, Pontailler, chamava outra vez, muito preocupado. Queria saber
qual a razão de a missão querer voltar. Grey tranqüilizou-o, porém recusou-se a dizer o que quer que fosse.
– Não bastará que eu lhe diga, é preciso que lhe mostre – disse –, senão você vai pensar que ficamos
todos malucos. Mande nos buscar logo que for possível.
E desligou.
Quando o helicóptero chegou ao ponto 612, cinco dias mais tarde, Pontailler estava nele e foi o primeiro
a saltar em terra.
Os homens de Grey haviam passado aqueles cinco dias numa excitação e numa alegria crescentes.
Acabado o estupor devido ao choque inicial, haviam aceitado as ruínas, o emissor, e os haviam adotado. O
próprio mistério e sua inverossimilhança os exaltavam assim como crianças que entram numa floresta onde
as fadas existem de verdade. Haviam acumulado os levantamentos e os registros. Bernard, baseado nas
coordenadas fornecidas pelos aparelhos, trabalhava numa espécie de plano-piloto, cheio de lapsos e de
partes em branco, mas que já tomava o aspecto de uma paisagem fantástica, mineral, deserta,
desconhecida, porém humana.
Brivaux havia trazido um gravador e o havia acoplado ao registrador da sonda nova. Obteve uma fita
magnética e convidou os amigos para escutá-la. Mas não ouviram ruído algum, nada de nada.
– Esse seu troço deve estar meio esburacado! – resmungou Éloi...
Brivaux sorriu.
– Está tudo em silêncio – disse ele. – Vocês não podem ouvir os ultra-sons. Mas eles estão lá, isso eu
garanto. Para ouvi-los, seria preciso um redutor de freqüência. Eu não tenho. Na base também não há.
Seria preciso ir a Paris.
Seria preciso ir a Paris. Esta foi também a conclusão de Pontailler, que a princípio havia recusado, para
depois aceitar a evidência da descoberta. Não se podia nem falar sobre isso pelo rádio, com todos os
ouvidos do mundo atentos noite e dia ao menor segredo. Era preciso levar todos os documentos à sede em
Paris. O chefe das Expedições Polares decidiria o que e a quem comunicar. Enquanto esperavam, todos
deviam ficar calados. Como dizia Éloi, “isso poderia ser algo de diferente”.

Peguei o avião para Sydney, com duas semanas de atraso e o desejo de voltar o mais depressa possível.
Não estava mais atormentado por aquele desejo de café-creme. Nem um pouco. Havia lá, embaixo do gelo,
qualquer coisa de bem mais excitante que o odor dos cafés parisienses.
O avião ganhou velocidade na pista, subiu ao ar como uma bolinha de plástico sobre um repuxo, virou
um pouco no mesmo lugar à procura da sua direção; depois, com um ruído ensurdecedor, atirou-se rumo
ao norte e para cima, a cinqüenta graus de inclinação. Apesar das cadeiras reclinadas e acolchoadas como
amas-de-leite, é engraçada a sensação que dá a subida, com tal inclinação e velocidade. O avião levava
somente viajantes experimentados e não corria o risco de quebrar as janelas por causa do incrível ruído.
Então os pilotos pouco ligavam para o resto...
Ele me levava com minhas valises e minha pasta, que continha, além da escova de dentes e o pijama, os
microfilmes dos levantamentos e do plano-piloto de Bernard, a fita gravada, as cartas de Grey e de
Pontailler autenticando tudo isso.
Eu levava também, sem saber, o vírus da rubéola, que iria dar a volta ao mundo sob o nome de rubéola
australiana. Os laboratórios farmacêuticos fabricaram a toda pressa uma nova vacina e ganharam muito
dinheiro.
Só cheguei a Paris dois dias depois da minha partida. Ignorava que tinha se tornado muito difícil
atravessar os oceanos.
No nosso isolamento de gelo, havíamos esquecido os ódios estúpidos do mundo, que haviam crescido e
se ramificado mais durante esses três anos. A estupidez generalizada me evocava a idéia de cães enormes
acorrentados uns diante dos outros, cada um forçando a sua corrente, não pensando senão em rompê-la
para ir abocanhar o cão que estava à sua frente. Sem razão. Simplesmente porque é um outro cão. Ou
talvez porque esteja com medo...
Li os jornais australianos. Havia pequenos incêndios espalhados pelo mundo inteiro. Haviam crescido
depois da minha partida para Antártida. E haviam se multiplicado. Em todas as fronteiras, à medida que se
tiram as barreiras alfandegárias, barreiras policiais as substituem. Desembarcando no aeroporto de Sidney,
não fui autorizado nem a sair nem a partir novamente. Faltava não sei qual visto militar no meu passaporte.
Foram-me necessárias trinta e seis horas de discussão furiosa para finalmente poder pegar o jato com
destino a Paris. Eu tremia com a idéia de que eles pudessem meter o nariz nos meus microfilmes. Que
teriam imaginado? Porém ninguém me pediu para abrir a pasta. Poderia muito bem estar transportando os
planos das bases atômicas. Mas isso não os interessava. Precisavam do visto, nada mais. Era a estupidez.
Era o mundo organizado.

Logo que Simon lhe entregou o conteúdo de sua pasta, Rochefoux, chefe das Expedições Polares
Francesas, tomou-o na mão com sua energia habitual. Tinha quase oitenta anos, o que não o impedia de
passar todos os anos algumas semanas na proximidade de um ou de outro pólo. Seu rosto cor de tijolo,
seus cabelos curtos de um branco brilhante, seus olhos azul-celestes, seu sorriso otimista, tornavam-no
idealmente fotogênico para a televisão, que não perdia uma oportunidade de entrevistá-lo, de preferência
em primeiro plano.
Naquele dia ele as havia convocado todas, as do mundo inteiro, e toda a imprensa, no fim da reunião da
Comissão da UNESCO. Havia decidido que o segredo já fora guardado durante bastante tempo, e tinha a
intenção de sacudir a UNESCO, como um fox-terrier sacode um rato, a fim de poder obter toda a ajuda
necessária, imediatamente.
Num grande escritório do sétimo andar, os operadores do Centro Nacional de Pesquisas Científicas
acabavam de instalar seus aparelhos sob a direção de um engenheiro. Rochefoux e Simon, de pé diante da
grande janela, olhavam os dois oficiais trotar seus cavalos alazões na perspectiva retangular do pátio da
Escola Militar.
A Place Fontenoy estava cheia de jogadores de petanque2 que sopravam nos dedos antes de jogar as
pesadas bolas.
Rochefoux pigarreou e virou-se. Não gostava nem dos ociosos nem dos militares. O engenheiro
informou que estava tudo pronto. Os membros da comissão começaram a chegar e a tomar lugar ao longo
da mesa, diante dos instrumentos.
Eram dois negros, dois amarelos, quatro brancos, e três mulatos. Mas o sangue de todos eles, se
misturados, formaria um só, bem vermelho. No momento em que Rochefoux começou a falar, a atenção e
emoção deles foram únicas.
Duas horas mais tarde sabiam de tudo, haviam visto tudo, haviam feito cem perguntas a Simon.
Rochefoux concluiu, mostrando na tela um ponto do mapa que estava projetado:
? Lá, no ponto 612 do continente antártico, sobre o paralelo 88, sob novecentos e oitenta metros de
gelo, há os restos de qualquer coisa que foi construída por uma inteligência e há milênios emite um sinal.
Há novecentos mil anos, esse sinal diz: “Estou aqui, eu os estou chamando, venham...” Pela primeira vez, os
homens vieram para ouvi-lo. Vamos hesitar? Nós salvamos os templos do vale do Nilo. Mas a água sempre
crescente da barragem de Assuã nos jogava para trás. Aqui, evidentemente, não há necessidade, não há
urgência! Mas há uma coisa de bem maior: há o dever! O dever de conhecer, de saber. Chamam-nos. É
preciso ir! Isso exige de nós meios consideráveis. A França não pode fazer tudo. Ela fará a sua parte. E pede
às outras nações que se juntem a ela.
O delegado americano desejava alguns detalhes. Rochefoux pediu-lhe que tivesse paciência, e
continuou:
? Este sinal, vocês o viram sob a forma de uma simples linha escrita sobre um quadrilátero. Agora,
graças aos meus amigos do Centro Nacional de Pesquisas Científicas, que o ouviram de todas as maneiras
possíveis, vou fazê-los ouvir...
Fez sinal ao engenheiro, que colocou um novo circuito sob tensão.
No começo surgiu na tela do osciloscópio uma linha reta luminosa como o mi de um violão, enquanto se
ouvia um assobio superagudo que fez Simon caretear. O negro mais negro passou a língua sobre os lábios
ressequidos. O branco mais louro colocou o dedo indicador no ouvido e agitou-o violentamente. Os dois
amarelos fecharam completamente a brecha dos seus olhos. O engenheiro do CNPC apertou lentamente
um botão. O som superagudo tornou-se agudo. Os músculos se distenderam. Os maxilares se relaxaram. O
agudo baixou, o assobio tornou-se um trinado. Começaram a tossir e a limpar a garganta. Sobre a tela do
osciloscópio a linha reta tornara-se ondulada.
Lentamente, lentamente, a mão do engenheiro fazia descer o sinal, do agudo ao grave, em toda a escala
das freqüências. Quando chegou ao limite dos infra-sons, foi como uma massa de feltro batendo na pele de
um tambor gigantesco. E cada batida fazia tremer os ossos, a carne, os móveis, os muros da UNESCO até
suas raízes. Era semelhante às batidas de um coração enorme, o coração de um animal inimaginável, o
coração da própria Terra.

No dia seguinte, lia-se nos títulos da imprensa francesa: “A maior descoberta de todos os tempos”,
“Uma civilização congelada”, “A UNESCO vai derreter o pólo sul”.
Um jornal inglês perguntava em sua manchete principal: “Quem ou o quê?”
Em redor de uma mesa em forma de meia-lua estão os Vignont, uma família francesa: o pai, a mãe e um
casal de filhos. Na tela da tevê, pendurada na parede diante deles, vêem o jornal televisionado, enquanto
jantam. Os pais dirigem uma loja da União Européia de Calçados. A filha segue um curso na Escola de Artes
Decorativas. O filho se arrasta entre o segundo e o terceiro ano do ginásio.
Na tela assiste-se à entrevista de uma etnóloga russa, transmitida diretamente pelo satélite. Ela fala em
russo, com tradução simultânea.
? A senhora pediu para fazer parte da expedição encarregada de elucidar o que se chama “o mistério do
pólo sul”. Espera encontrar traços humanos sob mil metros de gelo?
A etnóloga sorri.
? Se existe uma cidade, ela não foi construída por pinguins...
Não existem pinguins no sul. Só existem manchots. Mas uma etnóloga não é obrigada a saber disso.
O secretário-geral da UNESCO anuncia que os Estados Unidos, a URSS, a Inglaterra, a China, o Japão, a
União Africana, a Itália, a Alemanha, e outras nações, fizeram saber que dariam todo o seu apoio material à
empreitada de degelo do ponto 612. Os preparativos vão ser apressados. Tudo estará pronto em princípio
do próximo verão polar.
A televisão fazia entrevistas com populares:
? Você sabe onde é o pólo sul?
? Bem... eu...
? E você?
? Ora... é lá embaixo...
? E você?
? É ao sul!
? Bravo! Você gostaria de ir lá?
? Eu não, bolas.
? Por quê?
? Bem, deve fazer muito frio.
Na mesa em forma de meia-lua, a mãe Vignont sacudiu a cabeça:
? Como são bobos de fazer perguntas assim!
Refletiu um segundo e depois acrescentou:
? É claro que lá não deve fazer calor...
O pai Vignont replicou:
– Imagine só o que isso vai custar em dinheiro!... Seria muito melhor que construíssem
estacionamentos...
Na tela apareceu o plano-piloto de Bernard.
– Mas mesmo assim é um bocado gozado encontrar isso naquele lugar – disse a mãe.
– Não é novo – disse a filha – , é pré-colombiano...
O filho nem olhou. Enquanto comia, lia as historinhas de aventuras de Billy the Kid. Sua irmã o sacudiu.
? Olhe um pouco! Não é gozado?
Ele sacudiu os ombros.
? Besteiras – disse.

Um engenho monstruoso afundava-se no flanco da montanha de gelo, projetando atrás de si uma


nuvem de fragmentos transparentes que o sol atravessava e coloria com um arco-íris.
A montanha já estava cortada por umas trinta galerias, em volta das quais haviam instalado, no coração
vivo do gelo, os entrepostos e os emissores de rádio e televisão da EPI – Expedição Polar Internacional. A
cidade na montanha chamava-se EPI-1 e a que estava abrigada sob o gelo no platô 612 chama-se EPI-2.
Esta compreendia todas as outras instalações e a pilha atômica que fornecia a força, a luz e o calor às duas
cidades protegidas, e a EPI-3, a cidade da superfície composta dos hangares, dos veículos e de todas as
máquinas que atacavam o gelo de todas as maneiras que a técnica podia imaginar.
Jamais se realizara uma empreitada internacional dessa escala. Parecia que os homens haviam
encontrado, com alívio, a tão sonhada ocasião de esquecer os ódios, de confraternizar num esforço
totalmente desinteressado.
A França era a potência que convidara, o francês tinha sido escolhido como língua de trabalho. Mas para
tornar as relações mais fáceis, o Japão havia instalado na EPI-2 uma máquina tradutora de ondas curtas.
Traduzia imediatamente os discursos, os diálogos que lhes eram transmitidos, e emitia a tradução em
dezessete línguas sobre dezessete ondas diferentes. Cada sábio, cada chefe de equipe e técnico importante
haviam recebido um receptor adesivo, que não era maior que uma ervilha, no comprimento de onda da sua
língua materna, que eles mantinham permanentemente ao ouvido, e um emissor-alfinete, que geralmente
levavam preso à lapela ou ao ombro. O manipulador de bolso, da espessura de uma moeda, permitia-lhes
isolar-se do barulho das mil conversas quando as dezessete traduções se misturavam no éter, numa
confusão de Babel, e permitia-lhes selecionar o diálogo do qual desejavam participar.
A pilha atômica era americana, os helicópteros pesados eram russos, as roupas acolchoadas eram
chinesas, as botas finlandesas, o uísque escocês e a cozinha francesa. Havia máquinas e aparelhos ingleses,
alemães, italianos, canadenses, carne da Argentina e frutos de Israel. O condicionamento da temperatura e
o conforto no interior da EPI-1 e da EPI-2 eram americanos. E eram tão perfeitos que poderiam receber
visitas de mulheres.

Um poço se afundava no gelo translúcido, partindo numa linha vertical do ponto onde havia sido
localizado o emissor do sinal. Tinha onze metros de diâmetro. Uma torre de ferro semelhante a um derrick3
o dominava, trepidante de motores, fumegante de vapores, que o vento transformava em echarpes de
neve. Dois elevadores levavam para as profundezas os homens e o material que se afundavam cada dia um
pouco, rumo ao coração do mistério.
A novecentos e dezessete metros, os mineiros do frio encontraram um pássaro no gelo. Era vermelho,
com o peito branco, as patas alaranjadas, uma crista da mesma cor, o bico amarelo, largo, entreaberto, o
olho ruço e preto, brilhante. Tinha as asas meio abertas, distorcidas, a cauda em leque, as patas bem
abertas como se tentasse frear, dando a impressão de se debater numa rajada de vento que o pegara por
trás. Estava eriçado como uma chama.
Recortaram, ao seu redor um cubo de gelo e enviaram-no para a superfície.
O comitê diretor da expedição decidiu deixá-lo em sua embalagem natural. Foi colocado num
refrigerador transparente, e os sábios começaram a discutir sobre o seu sexo e sua espécie. A tevê tornou
sua imagem conhecida no mundo inteiro.
Quinze dias mais tarde, em plumas, em pelúcia, de seda, de lã, de plástico, de madeira e de penas, ele
inundava a moda e as lojas de brinquedos.
No fundo do poço os entalhadores de gelo tinham atingido as ruínas.

O Prof. João de Aguiar, delegado do Brasil, presidente em exercício da UNESCO, subiu à tribuna e virou-
se para a assistência. Estava de casaca. Na grande Sala de Conferências, havia naquela tarde não somente
sábios, diplomatas e jornalistas, mas também o tout-Paris4 muito parisiense e o tout-Paris internacional.
Acima da cabeça do Prof. Aguiar, a maior tela de tevê do mundo ocupava quase toda a parede do fundo.
Ela ia receber e mostrar em relevo holográfico a emissão vinda do fundo do poço, emitida pela antena da
EPI-1 e retransmitida pelo satélite Trio.
A tela iluminou-se. O busto gigantesco do presidente apareceu, em cores pastéis, um pouco
enfeitadoras, em relevo perfeito.
Os dois presidentes, o pequeno em carne e osso e sua grande imagem, ergueram a mão direita num
gesto amigável e falaram. Isso durou sete minutos. Concluiu informando:
– Uma sala pôde ser talhada no gelo, no meio das ruínas extraordinárias. Salvo alguns heróicos
pioneiros da ciência humana que cruzaram o poço com sua técnica e sua coragem, ninguém ainda no
mundo as viu. E o mundo inteiro vai, dentro de um instante, descobri-las. Quando eu apertar este botão,
graças ao milagre das ondas, lá, do outro lado do mundo, os projetores se iluminarão e a imagem daquilo
que talvez tenha sido a primeira civilização do mundo será enviada para todos os lares da civilização de
hoje...
Na sua pequena cabina, o realizador vigiava na tela de controle a imagem do presidente. Os dois
abaixaram o dedo polegar ao mesmo tempo.
Nos confins do mundo a sala de gelo iluminou-se.
O que todos os espectadores viram imediatamente foi um cavalo branco, de pé, por trás da superfície
de gelo. Magro, grande, alongado, parecia prestes a cair de lado, relinchando de medo, os lábios
arreganhados sobre os dentes. Sua crina e sua cauda flutuavam, imóveis, há novecentos mil anos. O tronco
partido de uma árvore gigantesca estava caído e atravessado atrás dele. Na sua folhagem, no teto da sala,
aparecia a goela aberta de um tubarão. Um lanço de escadas enormes, ou de pequenos degraus amarelos,
descendo da noite, se perdia na escuridão. Em frente, uma flor flamejante, grande como uma rosácea de
catedral, espalhava três quartos de suas pétalas púrpura. À sua direita, erguia-se um trecho destruído de
muro cor-de-rosa, de uma matéria desconhecida, que não era completamente opaca. Aí se abria uma
espécie de porta ou janela, através da qual se viam, imóveis, um pequeno roedor com a cauda em pé, as
patas para o ar, e um bando de ouriços azuis. Mais abaixo, notava-se o pico de uma larga pista helicoidal
feita de um metal que parecia aço. Tudo envolto na bruma de um mundo gelado.
A segunda operação começou. Uma mangueira de ar foi dirigida para a parede onde estava um pedaço
de muro. Aos olhos do mundo inteiro, o primeiro fragmento do passado embalsamado ia ser libertado da
sua canga.
O ar quente jorrou, afundando-se no gelo que começou a derreter. Uma mangueira de sucção aspirava
a lama que se formava, uma outra engolia a água da fonte e tornava a enviá-la à superfície.
A parede de gelo começou a diminuir, recuar, até que o muro verde apareceu. E nas telas, a imagem
distorcida, deformada pelas gotas que escorriam das câmaras blindadas, mostrou este fenômeno
inacreditável: o muro fundiu ao mesmo tempo que o gelo...
Os ouriços e o roedor de patas para o ar derreteram-se e sumiram.
O ar quente havia invadido toda a sala. Todas as paredes se fundiam. Do teto, cataratas corriam sobre
os homens de escafandros. As folhas da árvore se derreteram. A goela do tubarão derreteu-se como um
chocolate. Duas das pernas do cavalo e o seu flanco se derreteram. O interior do seu corpo apareceu,
vermelho e fresco. A flor vermelha transformou-se em água sangrenta. O ar morno atingiu o alto da pista
helicoidal de aço, e o aço se fundiu.

Os jornais exploraram com sensacionalismo o assunto. As manchetes diziam: “A maior decepção do


século”, “A cidade embalsamada não passava de um fantasma”, “Milhões engolidos por uma miragem”.
Uma entrevista televisionada de Rochefoux colocou as coisas no lugar. Ele explicou que a enorme
pressão sofrida durante milênios havia dissociado os corpos mais resistentes até suas moléculas. Mas o
gelo mantinha na sua forma primitiva a poeira impalpável na qual eles se tinham transformado. Ao fundir-
se o gelo, a poeira se libertava e era arrastada pela água.
– Vamos adotar uma nova técnica – acrescentou Rochefoux. – Recortaremos o gelo com os objetos que
ele contém. Não renunciamos a descobrir o segredo dessa civilização que nos vem da noite dos tempos. O
transmissor de ultra-sons continua a emitir seu sinal. Nós continuamos a descer em sua direção...
A novecentos e setenta e oito metros abaixo da superfície do gelo, o poço atingiu o solo do continente.
Mas o sinal emitido vinha do subsolo.

Depois de se ter enfiado no gelo, o poço afundou-se mais dentro da terra, e depois dentro da rocha. Em
seguida, esta apareceu muito dura, vitrificada, como se tivesse sido cozida e comprimida, e depois se
enrijecesse cada vez mais. Sua consistência deixou os geólogos desconcertados. Apresentava uma dureza,
uma compacidade desconhecida em qualquer outro ponto do globo. Era uma espécie de granito, mas as
moléculas que o compunham pareciam ter sido ordenadas e arrumadas para ocupar um mínimo de lugar
possível e oferecer um máximo de coesão. Depois de ter quebrado uma quantidade de ferramentas
mecânicas, chegamos finalmente ao fim da rocha e, a cento e sete metros abaixo do gelo, encontramos
areia. Essa areia era um absurdo geológico. Não poderia ser encontrada ali. Rochefoux, sempre otimista,
dizia que ela deveria ter sido trazida para aquele lugar, prova de que estávamos no caminho certo.
O sinal continuava chamando, cada vez mais para o fundo. Era preciso continuar descendo.
Continuamos.

Após atingirmos a areia, fomos obrigados a fechar o poço antes mesmo de tê-lo cavado, enfiando um
invólucro metálico na areia, tão seca e móvel quanto a de uma ampulheta e que escorria como água.
A dezesseis metros abaixo da rocha, um mineiro seguro pelas cordas começou a fazer gestos frenéticos
e a gritar qualquer coisa que sua máscara contra poeira tornava incompreensível. O que ele queria dizer é
que sentia qualquer coisa dura sob os pés.
O aspirador, enfiado na areia, subitamente começou a fazer barulho e a vibrar até que seu tubo se
achatou.
Higgins, o engenheiro, que do alto da plataforma supervisionava os trabalhos, desligou o motor. Juntou-
se aos mineiros, e começou a escavar com precaução, primeiro com a pá, depois com a mão, depois com
uma vassoura.
Quando Rochefoux desceu, acompanhado de Simon, de Brivaux, da atraente antropóloga Leonova,
chefe da delegação russa, e do químico Hoover, chefe da delegação americana, encontraram no fundo do
poço, já limpa de toda a areia fina, uma superfície metálica, ligeiramente convexa, una, de cor amarela.
Hoover pediu que parassem os motores, inclusive o da ventilação, e que todos se abstivessem de falar
ou de se mexer.
Houve então um silêncio extraordinário, protegido dos barulhos da Terra por cem metros de rocha e um
quilômetro de gelo. Hoover ajoelhou-se e o seu joelho esquerdo estalou. Com o indicador dobrado, bateu
na superfície do metal. Ouviu-se somente um barulho frágil: o da carne frágil de um homem contra um
obstáculo maciço.
Hoover tirou um martelo de cobre da sua maleta e bateu no metal, primeiro suavemente, depois a
grandes golpes. Não houve nenhuma ressonância.
Hoover resmungou e inclinou-se para examinar a superfície. Não tinha marca alguma dos golpes.
Tentou tirar uma amostra. Mas sua tesoura de tungstênio escorregou sobre a superfície e não conseguiu
prendê-la.
Então jogou diferentes ácidos que logo examinava com um espectroscópio portátil. Levantou-se. Estava
perplexo.
– Não compreendo o que o torna tão duro. Ele é praticamente puro.
– Ele, por que ele? Que metal é este? – perguntou Leonova irritada.
Hoover era um gigante avermelhado, barrigudo e bonachão, com movimentos lentos. Leonova era
miúda e morena, nervosa. Era a mulher mais bonita da expedição. Hoover olhou-a sorridente.
– O quê! Você não reconheceu? Você, uma mulher?... É ouro!...
Brivaux tinha feito seu aparelho registrador funcionar. O papel se desenrolava. A delgada linha
registradora aparecia sem um colchete, sem uma interrupção.
O sinal vinha do interior do ouro.

Parecia que o poço tinha atingido uma grande esfera, não exatamente no seu cimo, mas um pouco do
lado. Uma grande parte da superfície fora limpa, mas pelos lados tudo parecia afundado em areia.
Limparam o ponto mais alto da esfera e o transpuseram. Logo depois fizeram a primeira descoberta
reveladora. No metal aparecia uma série de círculos concêntricos, o maior tendo mais ou menos três
metros de diâmetro. Esses círculos eram compostos de uma fileira de dentes agudos e baixos inclinados
como para funcionar no sentido de uma rotação.
– Isto parece a extremidade de uma escavadora – disse Hoover. – Para fazer um buraco! Para sair de lá
de dentro!...
– Você acredita que seja oco e que exista alguém lá dentro? – disse Leonova.
Hoover fez uma careta.
– Talvez...
E acrescentou:
– Antes de pensar em sair, foi preciso que eles entrassem. Em algum lugar deve existir uma porta!...
Duas semanas depois do primeiro contato com o objeto de ouro, os diversos instrumentos de sondagem
haviam fornecido conhecimentos suficientes para que se pudessem tirar conclusões provisórias:
O objeto parecia ser uma esfera pousada sobre um pedestal, o todo colocado num bolsão cheio de areia
e afundado numa rocha artificialmente endurecida. A areia serviria sem dúvida para isolar o objeto dos
abalos sísmicos e de todos os movimentos terrestres. A esfera e seu pedestal pareciam solidários,
formando um só bloco. A esfera tinha vinte e sete metros e quarenta e dois centímetros de diâmetro e era
oca. A espessura de sua parede era de dois metros e noventa e dois centímetros.
Resolveu-se começar tirando toda a areia e esvaziando o bolsão rochoso para soltar o objeto de ouro,
pelo menos até a metade.
Eis um desenho representando o estado dos trabalhos no momento em que descobrimos a porta:

A letra A marca a porção do bolsão rochoso desembaraçada de areia.


A letra B indica a parte ainda cheia de areia. Na letra C inicia-se a extremidade do poço.
O E designa a esfera e o P o pedestal. Continuávamos a chamar assim a este último, embora depois
ficasse evidente que ele não servia de maneira alguma de suporte para a esfera. A sondagem havia
revelado que era oco como esta última.
Um desenho mostra a realidade, os números são inexpressivos. Para materializar o que representavam
os vinte e sete metros de diâmetro da esfera, é preciso se dizer que é a altura de um prédio de dez andares.
E, tomando em consideração a espessura da sua parede, restava ainda lugar, no interior, para um prédio de
oito andares.
O número 1 marca o lugar da cabeça da máquina de perfurar.
O número 2 marca o lugar da porta.
Pelo menos supunha-se que se tratasse de uma porta. Era um círculo de diâmetro um pouco superior ao
da mão de um homem, desenhado na parede pelo que parecia ter sido uma solda.
No momento em que descobrimos a porta, uma ponte provisória foi colocada na areia para receber
sábios e técnicos que desciam numa espécie de caixa improvisada e que podia ser dirigida.

Brivaux fez com que seu pequeno aparelho de quadrantes passeasse ao longo de toda a circunferência.
– Está soldada por todos os lados – disse ele –, em toda a sua espessura.
– Dê-nos a espessura do centro – pediu Leonova.
Colocou seu aparelho no centro do círculo e leu o número sobre o mostrador: 2,92 m. Era a largura
geral da parede da esfera.
– Depois que a marmita ficou cheia, soldaram a tampa – disse Hoover. – Isto dá mais a idéia de um
túmulo do que de um abrigo.
– E a perfuratriz? – disse Leonova. – É para fazer sair o quê? Um gato?
– Vai ver que naquele tempo nem existia gato, minha bonequinha – disse Hoover.
Com a sua cordial má educação americana, que tinha sido agravada pelos inúmeros anos vividos em
Paris, no Quartier Latin e em Montparnasse, ele quis passar o indicador sob o queixo dela.
Seu dedo tinha o tamanho e a cor de um salsichão, com manchas de sardas e pelos ruivos.
Furiosa, Leonova deu um tapa na mão que subia em direção ao seu rosto.
– Ela morde! – disse Hoover sorrindo. – Ora, boneca, vamos subir. Passe primeiro...
A caixa podia levar duas pessoas, mas Hoover contava por três. Ergueu Leonova como uma pluma e
colocou-a sobre um banquinho de ferro. Gritou:
– Puxem!
A caixa começou a subir. Ouviu-se um barulho e gritos. Alguma coisa atingiu Hoover na altura das
canelas, ele caiu para trás e sua cabeça bateu contra um obstáculo duro. Ouviu um estalo no interior do seu
crânio e desmaiou.
Acordou num leito da enfermaria. Simon, inclinado sobre ele, olhava-o com um sorriso otimista. Hoover
bateu duas ou três vezes as pálpebras para sair daquela espécie de inconsciência e perguntou
bruscamente:
– E a moça?
Simon sacudiu a cabeça com uma careta tranqüilizadora.
– O que foi que aconteceu? – perguntou Hoover.
– Um desmoronamento. Toda a parede acima do corredor caiu.
– Há feridos?
– Dois mortos...
Simon havia pronunciado estas palavras em voz baixa, como se tivesse vergonha de fazê-lo. Os dois
primeiros mortos da expedição... Um mineiro do agrupamento e um marceneiro francês. Companheiros do
dever, que trabalhavam no cofre. Houve também quatro feridos, entre os quais um eletricista japonês em
estado grave.
O corredor está designado no desenho pela letra D.
Na parede de rocha desenhava-se uma abertura que deve ter sido retangular e que cumulava uma
mistura caótica de pedaços de rocha, de uma espécie de cimento e de formas metálicas retorcidas e
devolvidas à sua origem mineral. Entre essa abertura e a porta da esfera, haviam encontrado na areia a
mesma espécie de destroços, que haviam cuidadosamente embrulhado e enviado à superfície, para exame
e análise.
O corredor tinha sido chamado assim porque os sábios pensavam que fosse o fim de uma passagem,
mas suas proporções faziam crer mais num esboço de uma sala bastante ampla. Fosse como fosse, era sem
dúvida a partir de lá que os homens do passado – se se tratasse de homens, mas o que mais poderiam ser?
– tinham atravessado e endurecido a rocha, trazido a areia e construído a esfera. Era o cordão umbilical a
partir do qual esta se desenvolvia na sua placenta rochosa. Era claro que o corredor vinha de alguma parte
e podia nos conduzir até lá. Íamos abrir passagem através dele, mas antes tínhamos de explorar a esfera,
conforme havia decidido a assembléia de sábios.
– E eu, o que é que tenho?
Hoover quis apalpar o crânio, mas os dedos não chegavam até lá: sua cabeça estava envolta numa
espessa atadura.
– Está quebrada? – perguntou Hoover.
– Não. O couro cabeludo se abriu, houve uma contusão no osso, e um pequeno pedaço de granito
enfiou-se no occipital. Já o extraí, não estava muito fundo. Está tudo bem agora.
– Brrruu... – fez Hoover.
Relaxou-se e afundou-se com prazer no travesseiro. No dia seguinte, ele já assistia à reunião de
informação, na Sala de Conferências.
Quando subiu ao pódio para tomar lugar à mesa do comitê diretor da EPI recebeu primeiro uma onda
de risos. Saíra do leito para vir, e havia simplesmente enfiado seu robe de chambre cor de framboesa
amassada, com pequenas meias-luas azuis e verdes. Seu ventre volumoso erguia a faixa da cintura e uma
das pontas caía até as botas de pele de urso branco, que usava para andar dentro de casa. A atadura
redonda, em forma de turbante, acabava por lhe dar um ar extravagante, que provocava risos à primeira
vista.
Rochefoux, que presidia a sessão, levantou-se e abraçou-o. Uma onda de aplausos cobriu a onda de
risos. Todo mundo gostava de Hoover, e todos sabiam que tinha sido vítima de um acidente.
A sala estava cheia. Havia lá, além dos sábios e dos técnicos vindos de todas as fronteiras, uma dúzia de
jornalistas representando as maiores agências do mundo, que dispunham, na tribuna da imprensa, de
receptores individuais de tradução.
Numa grande tela, atrás do pódio, apareceu uma vista geral do bolsão rochoso iluminado pelos
projetores.
Uns trinta homens trabalhavam ativamente ali, vestidos de vermelho ou laranja, capacetes na cabeça e
máscaras penduradas no pescoço, prontas para serem utilizadas imediatamente.
A metade superior da esfera, emergindo da areia e do solo, brilhava suavemente, enorme e tranqüila,
ameaçadora também por causa do seu volume, do seu mistério, e pelo desconhecido que encerrava.
Com uma voz cantante, um pouco monótona, Leonova fez o resumo dos trabalhos, e a tradutora
começou a cochichar em todos os ouvidos, em dezessete línguas diferentes. Leonova calou-se, ficou um
instante sonhadora, e recomeçou:
– Não sei o que lhes sugere a vista dessa esfera, mas a mim ela faz pensar num grão. Na primavera, o
grão devia germinar. A perfuratriz telescópica é a haste que deveria se desenvolver e abrir caminho até a
luz, e o pedestal oco estava lá para receber os entulhos... Mas o verão não veio e o inverno dura há
novecentos mil anos... No entanto, eu não quero, não posso acreditar que o grão esteja morto!...
Fez uma pausa, observou a platéia e disse em voz alta:
– Existe o sinal!
Um jornalista levantou-se e perguntou no mesmo tom veemente:
– Então o que é que vocês estão esperando para abrir a porta?
Leonova, espantada, olhou e respondeu num tom que havia se tornado glacial:
– Nós não a abriremos.
Um murmúrio de surpresa percorreu a assistência. Rochefoux levantou-se sorrindo e colocou os pontos
nos ii.
– Não abriremos a porta – disse ele –, pois é possível que a ela esteja ligado algum dispositivo de
segurança ou de destruição. Abriremos aqui.
Com uma vara de bambu tocou na imagem, apontando um lugar situado no alto da esfera.
– Mas há uma dificuldade. Nossas perfuratrizes quebraram os dentes sobre este metal. Ele também não
se funde com maçarico oxídrico. Ou melhor, funde-se mas torna a se fechar em seguida. Como se alguém
abrisse a carne com um escalpelo e a carne cicatrizasse imediatamente depois de a lâmina passar. É um
fenômeno cujo mecanismo não compreendemos, mas que se passa na escala molecular. Devemos, para
poder abrir caminho nesse metal, atacá-lo ao nível das moléculas, dissociá-las. Esperamos um novo
maçarico que usa ao mesmo tempo o laser e o plasma. Logo que o tivermos recebido, começaremos a
operação A: Abertura...

O poço de gelo e rocha conduzia a um poço de ouro. Um buraco de dois metros de diâmetro afunda-se
na crosta da esfera. No fundo do buraco, numa luz dourada, um cavalheiro de branco ataca um metal com
uma lança de luz. Vestido de amianto, com uma máscara de vidro e de aço, é o engenheiro inglês Lister,
munido do seu plaser. Uma voz explica que a palavra “plaser” foi formada pela conjunção das palavras
“plasma” e “laser”, e que o maravilhoso e gigantesco maçarico foi construído graças à colaboração das
indústrias inglesa e japonesa.
Na tela de tevê a imagem recua descobrindo a parte de cima do poço de ouro. Sobre a plataforma que o
cerca, técnicos de laranja e de vermelho seguram os cabos, dirigem câmaras ou projetores. O calor que
sobe do buraco faz com que seus rostos transpirem abundantemente.
A tela da tevê é dobrável e está pendurada sob um guarda-sol à beira de uma piscina, em Miami. Um
homem gordo e congestionado, vestido com um calção muito curto, estirado numa rede que balança ao
sopro de um ventilador, suspira e passa sobre o peito um guardanapo esponjoso. Acha desumano mostrar
tal espetáculo a alguém que já esteja sentindo tanto calor.
O comentarista recorda as dificuldades a que tiveram de se sujeitar os sábios da EPI. Em particular as
dificuldades climáticas. Em seguida, a câmara focaliza a superfície do local das pesquisas.
Na tela, uma tempestade terrível assola a EPI-3. Fantasmas de veículos que transportam dum edifício ao
outro suas silhuetas amarelas, a coberta batida pela neve que o vento leva horizontalmente, a duzentos e
quarenta quilômetros a hora. O termômetro marca cinqüenta e dois graus abaixo de zero.
O homem gordo congestionado torna-se lívido e embrulha-se na toalha batendo os dentes.
Numa casa japonesa a tela substituiu, na parede de papel, a gravura tradicional. A dona da casa,
ajoelhada, serve o chá. O comentarista fala calmamente. Diz que o fundo do poço não tem mais que alguns
centímetros de espessura e que se vai fazer um buraco para permitir a introdução de uma câmara de tevê
em seu interior. Dentro de alguns instantes os espectadores do mundo inteiro vão penetrar na esfera junto
com a câmara e conhecer finalmente o seu mistério.

Leonova, dentro de uma roupa de amianto, juntou-se a Lister no fundo do poço. Hoover, muito
grandalhão, teve que ficar em cima com os técnicos. Deitou-se de bruços na beira do buraco e gritou
recomendações a Leonova, que não o entendeu.
Ela está ajoelhada ao lado de Lister. Uma espécie de escudo blindado colocado diante das suas coxas os
protege. A língua de fogo penetra no ouro, que derrete, e se transforma em ondas de luz.
De repente, ouve-se um grito superagudo. A chama, as faíscas, a fumaça são violentamente aspiradas
para baixo. O pesado escudo cai no chão de ouro, Leonova oscila, Hoover grita e xinga, Lister agarra-se ao
plaser. Um técnico já cortou a corrente. O berro transforma-se num assobio que passa do agudo ao grave e
pára. Leonova põe-se de pé, tira a máscara e fala no seu microfone. Anuncia calmamente que a esfera está
furada. Contrariamente ao que todos poderiam crer, fazia mais frio no interior do que no exterior, o que
provocou a violenta sucção de ar. Agora o equilíbrio está estabelecido. Iam então arredondar o buraco e
descer a câmara.
Simon está em cima da esfera ao lado de Hoover e de Lanson, engenheiro inglês de tevê, que dirige a
descida do cabo mais grosso. A extremidade do cabo estava atravessada por duas lentes superpostas: a de
um projetor em miniatura e a de uma minicâmara.
No fundo do poço Leonova agarrou o cabo com as mãos enluvadas e o introduziu no buraco negro.
Depois de deixá-lo penetrar mais ou menos um metro, ergueu os braços. Lanson parou a progressão do
cabo.
– Está tudo preparado – disse ele a Hoover.
– Esperem-me – disse Leonova.
Ela subiu para a plataforma, para olhar junto com todos os homens presentes a tela do receptor de
controle colocada na borda do poço.
– Comece! – disse Hoover.
Lanson virou-se para um técnico:
– Luz!
Sobre o assoalho de ouro o olho do projetor se ilumina, o da câmara olha.
A imagem sobe ao longo do cabo, atravessa a tempestade, jorra do alto da antena da EPI-1 em direção
ao satélite Trio, imóvel no grande vazio negro do espaço, ricocheteia nos outros satélites e cai em forma de
chuva em todas as telas do mundo.
A imagem aparece na tela de controle.
Não há nada.
Nada além de um lento torvelinho acinzentado que a luz do miniprojetor tenta em vão perfurar. Parece
o esforço inútil de uma lanterna de carroça dentro de uma forte neblina londrina.
– Poeira! – grita Hoover. – Poeira horrível!...
Fora a poeira provocada pela corrente de ar que causara os turbilhões...
– Mas como a danada dessa poeira pôde entrar na esfera tão hermeticamente fechada? – perguntou
Lanson, com ar de espanto.
Um transmissor lhe responde. É Rochefoux que fala da Sala de Conferências.
– Faça saltar o fundo da caixa – disse ele. – E vá ver...

O fundo do poço estava aberto. Sobre a plataforma a equipe estava pronta para descer. Compunha-se
de Higgins, Hoover, Leonova, Lanson e sua câmara sem filme, o africano Shanga, o chinês Lao, o japonês
Hoi-To, o alemão Henckel e Simon.
Era muita gente, gente perigosamente demais. Mas era necessário dar uma satisfação à suscetibilidade
das delegações.
Rochefoux, que se sentia muito cansado, havia cedido seu lugar a Simon. A presença de um médico,
aliás, poderia ser útil.
Simon, sendo o mais jovem, solicitou e obteve licença para descer em primeiro lugar. Estava vestido
com um macacão aquecido, cor de limão, com botas de feltro cinza e um chapéu de astracã. Um
termômetro de exploração havia revelado que a temperatura no interior era de trinta e sete graus
positivos.
Ele levava uma lâmpada frontal, uma máscara de oxigênio pendurada no pescoço e à cintura um
revólver que tinha tentado recusar, mas que Rochefoux o obrigara a aceitar: não se sabia o que se ia
encontrar ao descer.
Uma escada metálica que serviria de antena estava fixada na borda do poço e pendurada no
desconhecido. Simon colocou o capacete e começou a descer. Viram-no desaparecer na claridade dourada,
e depois na escuridão.
– O que é que você está vendo? – gritou Hoover.
Houve um silêncio, depois o transmissor disse:
– Pisei firme! Aqui há um assoalho...
– Mas, por favor, o que é que você está vendo? – perguntou Hoover.
– Nada... Não há nada para ver...
– Vou descer! – disse Hoover.
Agarrou-se à escada metálica. Seu macacão era cor-de-rosa. Usava um boné de lã grossa verde, de tricô,
encimado por um pompom colorido.
– Você vai quebrar tudo! – disse Leonova.
– Não peso nada – disse ele. – Sou como um grande floco...
Ajustou a máscara e sumiu. Lanson, sorrindo, dirigiu a câmara na sua direção.

Eu estava de pé sobre o assoalho de ouro, na peça redonda e vazia. Uma poeira ligeira espalhava seus
véus ao longo do muro de ouro circular, atravessado por milhões de alvéolos que pareciam feitos para
conter alguma coisa e que não continham nada.
Os outros desciam, olhavam e se calavam. A poeira quase invisível velara o feixe das lâmpadas frontais,
e enfeitava com uma auréola nossas silhuetas mascaradas.
Depois vieram os dois eletricistas com seus projetores de bateria. A grande claridade transformou a
peça no que ela era: simplesmente uma peça vazia. Diante de mim, uma parte do muro era lisa, sem
alvéolo. Tinha a forma trapezoidal, um pouco mais larga em cima do que embaixo, com um ligeiro
estrangulamento na metade. Pensei que isso podia ser uma porta e dirigi-me para lá.
Foi assim que dei meus primeiros passos na tua direção.

Não havia nenhuma maneira visível de abrir aquela porta, se é que era porta. Nem maçaneta nem
fechadura. Simon ergueu a mão direita enluvada, colocou-a de encontro à porta, perto da beirada, à
direita, e empurrou. A borda direita da porta separou-se do muro e entreabriu-se. Simon tirou a mão. Sem
barulho e sem clique, a porta voltou exatamente ao seu lugar.
– E então, o que estamos esperando? – disse Hoover. Vamos...
Como ele estava à esquerda de Simon, instantaneamente ergueu a mão esquerda e pousou-a sobre a
borda esquerda da porta. E ela abriu-se à esquerda.
Sem se demorar a admirar essa porta ambivalente, Hoover empurrou-a mais profundamente. Ela
permaneceu aberta. Simon chamou com um gesto um eletricista, que levou seu projetor e o fixou na
abertura.
Era como um longo corredor de vários metros de comprimento. O solo era de ouro, e os muros de uma
matéria de cor verde que parecia porosa. Uma porta azul, da mesma matéria, fechava o fundo do corredor.
Duas outras estavam à direita e uma à esquerda.
Simon entrou seguido de Hoover, de Higgins e dos outros atrás dele. Quando chegou à primeira porta,
parou, ergueu a mão e empurrou.
Sua mão enluvada afastou a porta e passou para o outro lado...
Hoover pigarreou de surpresa e fez um movimento para se aproximar. Seu corpo enorme roçou em
Higgins, que, para conservar o equilíbrio, apoiou-se contra a parede.
Higgins passou através da parede. Gritou, e a tradutora reproduziu o mesmo grito em todos os
microfones de ouvido. Houve um baque surdo alguns metros mais abaixo e a voz de Higgins calou-se.
O choque havia abalado as paredes. Viram-nas tremer, dobrar-se, abater-se e desmoronar suavemente
em camadas de poeira, descobrindo um abismo de escuridão mostrado pelos projetores, onde outras
paredes caíam sem barulho, revelando todo um mundo à beira de desaparecer. Móveis, máquinas, animais
imóveis, silhuetas vestidas, espelhos, formas desconhecidas que se deformavam escorregando ao longo de
si mesmas, caíam em quantidade sobre o assoalho que balançava e trepidava.
Do fundo da esfera, onde se encontravam todas essas coisas caídas, subiam rolos cinza e espessos de
poeira. Os sábios e os técnicos tiveram tempo de perceber Higgins lá embaixo com os braços em cruz, o
peito atravessado por uma estaca de ouro. Depois a nuvem o envolveu e continuou a subir.
– Máscaras! – gritou Hoover.
Mal colocaram as máscaras, a nuvem os atingiu, envolveu-os e encheu toda a esfera. Ficaram parados
no lugar, não ousando se mexer. Não viam mais nada. Estavam numa passarela sem balaustrada, acima de
oito andares de vazio, envolvidos por uma neblina impenetrável.
– Ajoelhem-se! Devagar! – disse Hoover. – Fiquem de quatro!...
Foi assim que voltaram lentamente, tateando as bordas da passarela, a sala redonda, e depois para o
exterior da esfera. Emergiram um a um, trazendo consigo farrapos e echarpes de poeira. O poço de ouro
fumegava.

Dois escafandristas presos por cordas desceram para procurar o corpo de Higgins. Um pastor celebrou
um serviço fúnebre numa igreja debaixo do gelo. Uma cruz de luz abria-se para o céu, recortada na
abóbada translúcida.
Depois o corpo de Higgins fez a longa e silenciosa viagem de volta à Cidade do Cabo, sua terra natal.
A imprensa deleitou-se: “A esfera maldita ataca de novo”, “O túmulo do pólo sul matará mais sábios do
que o de Tutancâmon?” No restaurante da EPI-2, os jornais acabavam de chegar pelo último avião, e
passavam de mão em mão. Leonova olhava com desprezo um hebdomadário inglês cujo título era o
seguinte: “Que fantasma assassino toma conta da esfera de ouro?”
– A imprensa capitalista delira – comentou.
Hoover, sentado diante dela, espalhava um quarto de litro de creme sobre o seu prato de milho.
– Sabemos bem que os marxistas não acreditam no sobrenatural – respondeu ele –, mas espere até que
o fantasma venha lhe fazer cócegas na sola dos pés, de noite...
Engoliu sem mastigar mais uma colherada de milho e prosseguiu:
– Houve alguma coisa que empurrou Higgins através da parede, não?
– Foi sua barriga que o empurrou!... Você não tem vergonha de transportar tamanho horror diante de
si? Ela não é somente inútil, mas também perigosa!...
Ele bateu carinhosamente na sua pança.
– Toda a minha inteligência está aqui. Quando emagreço fico triste e tão bobo quanto qualquer outra
pessoa... Estou desolado por Higgins... Não gostaria de morrer como ele, sem ver a continuação...
Haviam introduzido no interior da esfera um enorme tubo de ar que a aspirava há uma semana.
O ar lançado para a superfície era recebido dentro de sacos e a poeira recolhida era enviada para os
laboratórios que, no mundo inteiro, trabalhavam para a expedição.
Quando os sacos não recolheram mais nada, a primeira equipe penetrou novamente na esfera. Havia
projetores assentados em todas as direções, na atmosfera interior, que havia se tornado transparente. Sua
luminosidade refletida, quebrada, difundida por toda parte pelo mesmo metal, inundava com reflexo de
ouro uma arquitetura abstrata e fantástica.
No desmoronamento do muro fechado, tudo que era composto da mesma liga da parede externa havia
subsistido. Assoalhos sem muro, escadas sem rampas, rampas que não levavam a lugar algum, portas se
abrindo sobre o vazio, peças fechadas suspensas, ligadas umas às outras, sustentadas, escoradas por vigas
abertas ou arcos bastante frágeis, compunham um esqueleto de ouro leve, incrivelmente belo.
Quase no centro da esfera, uma coluna a atravessava verticalmente de lado a lado. Era ela a perfuratriz
ou então a continha. Aos seus pés, apoiada contra ela, ou talvez ligada a ela, erguia-se uma construção de
mais ou menos nove metros de altura, hermeticamente fechada, em forma de ovo, com a ponta para cima.
– Encontramos o grão, eis aqui o germe – murmurou Leonova.
Uma escada, cujos degraus de ouro pareciam se manter no ar sozinhos, partia do lugar da porta na
parede da esfera, atravessava o ar como um sonho de arquiteto, e terminava no ovo, a três quartos da sua
altura. Logicamente nesse lugar deveria se encontrar a abertura.
De assoalho em passarela e em escada, por caminhos aéreos, os exploradores desceram em direção ao
ovo. E aí encontraram a porta no lugar onde esperavam encontrá-la. Era de forma ovóide, mais larga
embaixo. Estava bem fechada e não apresentava nenhum dispositivo de abertura. Embora não fosse
soldada, resistiu a todas as pressões. Simon, como um moleque, tirou um canivete do bolso e tentou
introduzir a lâmina na abertura quase invisível. A lâmina escorregou sem penetrar. A fechadura era de um
hermetismo total. Hoover pegou seu martelo de cobre e bateu. Assim como na parede da esfera, o som era
oco.
Fizeram descer Brivaux com seu registrador. A linha de ultra-sons inscreveu-se sobre o papel.
O sinal vinha do interior do ovo.

Na Sala de Conferências, sábios e jornalistas seguiam sobre as telas o trabalho das equipes no interior
da esfera. Os carpinteiros do dever instalavam passarelas, escoravam escadas. Hoover e Lanson, assistidos
por eletricistas, se ocupavam com a porta do ovo. Leonova e Simon acabavam de atingir com uma escada
uma sala de ouro suspensa no vácuo.
A atmosfera estava clara. Ninguém mais usava máscara. Com mil precauções, Leonova empurrou a
porta metálica da sala redonda, que se abriu lentamente. Leonova entrou e afastou-se para deixar passar
Simon. Ambos se viraram para o interior da sala e olharam.
A sala estava iluminada apenas pelos reflexos que deixava entrar a porta entreaberta. Nessa penumbra
de ouro encontravam-se seis seres humanos.
Dois estavam de pé e os olhavam entrar. O da direita, num gesto amplo, os convidou a sentar numa
espécie de banco horizontal cujo suporte não se percebia. O da esquerda abriu os braços como se fosse dar
um abraço cordial.
Ambos estavam vestidos com uma pesada e larga capa vermelha que caía até o solo e escondia-lhes os
pés. Um pequeno boné vermelho lhes cobria a cabeça. Cabelos lisos, castanhos num e louros no outro,
caíam-lhes até a altura dos ombros.
Atrás deles, dois homens quase nus, sentados face a face sobre um móvel branco, entrelaçavam os
dedos da mão esquerda e erguiam a direita com o indicador esticado. Talvez fosse um jogo.
Leonova pegou seu aparelho fotográfico e apertou a claridade dupla do raio laser. Toda a cena foi
violentamente iluminada durante um milésimo de segundo.
Simon teve tempo de vislumbrar mais duas personagens, mas a imagem apagou-se, na sua retina. E a
cena apagou-se ao mesmo tempo. Como se o choque da claridade tivesse sido muito violento para eles, as
roupas, depois as substâncias das personagens se desprenderam e deslizaram, transformando-se em
poeira, descobrindo uma série de motores e de bolsos metálicos. Depois esses esqueletos por sua vez se
desmancharam lentamente. Em poucos segundos não restou do grupo, na poeira que subia, senão alguns
arabescos de fios de ouro, sustentando, aqui e ali, uma plaqueta, um círculo, uma espiral suspensos...
Leonova e Simon se apressaram a sair e a fechar a porta da peça sobre a nuvem de poeira que a enchia.
Estavam frustrados como quando a gente acorda no meio de um sonho e sabe que nunca mais o verá.
De pé sobre a porta do ovo, Hoover dava informações sobre os trabalhos da sua equipe. Na Sala de
Conferências, os jornalistas olhavam para a grande tela e tomavam notas.
– Conseguimos perfurar – disse Hoover. – Eis aqui o buraco... – Seu polegar gordo pousou sobre a porta,
perto de um orifício negro no qual se ajustava perfeitamente. – Não houve nenhum movimento de ar, nem
numa direção nem na outra. O equilíbrio das pressões externa e interna não pode ser obra de um acaso.
Em algum lugar deve existir um dispositivo que conhece a pressão externa e age sobre a pressão interna.
Onde está ele? Como funciona? Vocês gostariam de saber? Eu também...
Rochefoux falou no microfone da mesa do conselho.
– Qual é a espessura da porta?
– Cento e noventa e dois milímetros de camadas alternadas de metal e de uma outra matéria que
parece ser um isolante térmico. Há pelo menos umas cinqüenta camadas, um verdadeiro folheado! Vamos
medir a temperatura interior.
Um técnico introduziu no orifício um longo tubo metálico, que terminava, no lado exterior, por um
mostrador. Hoover deu uma olhada neste último, bruscamente assumiu um ar interessado e não
despregou mais seus olhos.
– Pois bem, crianças! Está descendo!... Está descendo... Ainda... mais... estamos a oitenta graus abaixo
de zero, cem... cento e vinte...
Deixou de enumerar as temperaturas e pôs-se a assobiar espantado. A máquina tradutora assobiou
dentro de dezessete ouvidos...
– Cento e oitenta graus centígrados abaixo de zero! – disse a imagem de Hoover em primeiro plano. – É
quase a temperatura do ar líquido!
Louis Deville, representante da Europress, que fumava um charuto longo e fino, disse com seu belo
sotaque meridional:
– Puxa! É um frigorífico! Vamos encontrar aí petit-pois congelado!
Hoover continuava:
– Estamos tentando introduzir um gancho de aço no buraco e puxar para cima, a fim de abrir a porta.
Mas com o frio que faz lá dentro, o gancho vai se quebrar como um fósforo. É preciso encontrar uma outra
maneira...

Essa outra maneira foram três ventosas pneumáticas, grandes como um prato, aplicadas sobre a porta,
ligadas a um macaco-trator fixado a uma armação de ferro armada em torno do ovo. Uma bomba sugava o
ar das ventosas até quase o vácuo, com uma pressão capaz de levantar uma locomotiva.
Hoover começou a fazer girar o volante do macaco.
Na Sala de Conferências, um jornalista inglês perguntou a Rochefoux:
– O senhor não tem medo de que aí dentro haja um dispositivo de destruição?
– Não havia nada atrás da porta da esfera. Só soubemos disso depois que estávamos lá dentro. Portanto
não há razão para que haja um aqui.
O comitê estava todo reunido diante da tela, onde se podia ver, bem melhor do que no próprio local, o
que se passava lá embaixo. A sala estava cheia e agitada. Mesmo aqueles que tinham outras coisas para
fazer fora dali vinham olhar rapidamente como iam correndo os trabalhos e depois partiam para suas
obrigações.
Sozinha, Leonova, muito impaciente para ficar olhando de longe, havia acompanhado Hoover e seus
técnicos. Simon estava perto deles, com duas enfermeiras, pronto a intervir em caso de acidente.
Sobre a tela, a imagem de Hoover virou a cabeça em direção dos seus colegas do comitê.
– Já dei vinte voltas ao volante – disse ele. – Isso representa dez milímetros de tração. A porta não
mexeu nada. Se eu prosseguir, ela vai se deformar ou se arrebentar. Continuo?
– As ventosas não correm o risco de cair? – perguntou Ionescu, físico romeno.
– Era mais fácil elas arrancarem o pólo sul.
– É necessário que essa porta seja aberta de uma maneira ou de outra – disse Rochefoux.
Virou-se para os membros do conselho.
– O que é que vocês pensam? Voltamos?
– É preciso continuar – disse Shanga, levantando a mão.
Todas as mãos se levantaram. Rochefoux falou à imagem.
– Continue, Joe – disse ele.
– Ok – disse Hoover.
Com as duas mãos retomou o volante do macaco.
Na cabina de tevê, Lanson ligou a antena emissora. Atrás de um compartimento de vidro à prova de
som, um jornalista alemão comentava.
Na tribuna da imprensa, Louis Deville levantou-se:
– Posso fazer uma pergunta a Mr. Hoover? – solicitou.
– Aproxime-se – disse Rochefoux.
Deville subiu ao pódio e inclinou-se para o microfone direto.
– Mr. Hoover, o senhor me ouve?
Hoover assentiu com um gesto de cabeça.
– Bem – prosseguiu Deville –, o senhor fez um buraco no gelo, encontrou um grão. Fez um buraco no
grão, encontrou um ovo. Hoje o que é que o senhor pensa que vai encontrar?
Hoover virou-se e apresentou um sorriso encantador no seu rosto gordo.
– Nuts! – disse, empregando gíria americana.
A máquina tradutora, depois de um milésimo de segundo de hesitação, traduziu nos microfones
franceses como:
– Nozes.
Não se deve pedir demais a um cérebro eletrônico...
Para exprimir corretamente a idéia o cérebro do homem traduziria o termo por “bolas”.
Deville voltou para seu lugar esfregando as mãos. Tinha uma boa notícia para esta tarde, mesmo se...
– Atenção! – disse Hoover – creio que chegamos...
Bruscamente houve no emissor um barulho semelhante ao de algumas toneladas de veludo sendo
rasgadas. Na parte de baixo da porta apareceu uma fresta escura.
– Ela abre por baixo! – disse Hoover. – Descolem a número 1 e a número 2. Rápido!
As duas ventosas superiores cheias de ar caíram no fim das suas correntes. Só ficaram as da parte de
baixo. Hoover virava o volante a toda pressa. Houve um arpejo lancinante como se todas as cordas de um
piano se arrebentassem uma após as outras. Depois a porta não resistiu mais.
Ao cabo de alguns minutos as suas bordas cederam. Leonova e Simon vestiram macacões de
astronautas, os únicos capazes de proteger contra o frio que reinava no ovo. Tinham sido trazidos a jato da
base americana Rockefeller de lançamentos para a Lua. Esperavam os dos russos e dos europeus. Mas no
momento só havia esses dois. Hoover teve que renunciar a se meter dentro de um deles. Pela primeira vez,
depois de ter passado dos cem quilos, lamentava o seu volume. Colocou luvas de amianto, introduziu a
mão pela fresta, por baixo do último degrau da escada, e puxou a porta, que se ergueu como uma tampa.

Entrei. E te vi.
E fui logo tomado pela vontade louca, mortal, de afastar, de destruir todos aqueles que lá, atrás de mim,
na esfera, sobre o gelo, diante de suas telas no mundo inteiro, esperavam saber e ver. E que iam te ver,
como eu te via.
Entretanto, eu queria também que eles te vissem. Queria que o mundo inteiro soubesse como eras
maravilhosa e incrivelmente bela.
Mostrar-te ao universo no tempo de um relâmpago, depois encerrar-me contigo, sozinho, e olhar-te
pela eternidade.

Uma luz azulada vinha do interior do ovo. Simon entrou primeiro e, por causa dessa claridade, não
acendeu sua lanterna. A escada prosseguia no interior e parecia acabar no azul. Seus últimos degraus se
recortavam em silhuetas negras e paravam mais ou menos na metade da altura do ovo. Mais abaixo, um
grande anel metálico horizontal estava suspenso no vazio. Era aquilo que emitia a breve claridade, ou
melhor, essa luminescência suficiente para iluminar à sua volta uma quantidade de aparelhos cujas formas
eram estranhas, desconhecidas. Hastes e fios se ligavam entre si e todos estavam de uma certa maneira
virados para o anel, como se para receber alguma coisa.
O grande anel azul estava suspenso no ar, sustentado por nada, em contato com coisa alguma. Todo o
resto estava rigorosamente em ordem. Ele girava, mas era tão liso o seu movimento, tão perfeitamente
realizado em torno de si mesmo, que Simon o adivinhou mais que o viu, e não pôde ter certeza se girava
muito lentamente ou a uma velocidade considerável.
Do exterior, Lanson, que tinha descido da Sala de Conferências para supervisionar as câmaras, acendeu
um projetor. Seus mil watts sorveram a luminescência azul, fizeram desaparecer a mecânica
fantasmagórica, revelaram em seu lugar uma laje transparente que, agora, refletia a claridade viva e não
deixava mais distinguir o que havia embaixo dela.
Simon continuava em pé na escada, cinco degraus abaixo do solo transparente, e Leonova dois degraus
abaixo dele. Juntos pararam de olhar o chão a seus pés, ergueram a cabeça e viram o que havia diante
deles.
O pico do ovo se constituía de uma sala em cúpula. Sobre o solo, diante da escada, duas bases de ouro
de forma alongada. Sobre cada uma dessas bases repousava um bloco de matéria transparente,
semelhante ao gelo, extremamente clara. Em cada um desses blocos se encontrava deitado um ser
humano, com os pés em direção à porta.
Uma mulher à esquerda. À direita, um homem. Não havia nenhuma dúvida, pois estavam nus. O sexo do
homem estava ereto, como um avião ao decolar. Sua mão esquerda fechada repousava sobre o peito. A
mão direita estava erguida obliquamente, com o indicador em riste. As pernas da mulher estavam juntas.
Suas mãos abertas descansavam uma sobre a outra, logo abaixo do busto. Seus seios eram a própria
imagem da perfeição. As curvas de suas ancas eram como as de uma duna que o vento tivesse levado um
século para moldar com suas carícias. Suas coxas eram redondas e longas, um desenho perfeito. O ninho
discreto do sexo era coberto de pêlos dourados, curtos e crespos. Dos ombros aos pés, semelhantes a
flores, seu corpo era uma harmonia em que cada nota, milagrosamente justa, se encontrava em completo
acordo com o conjunto.
Não se via o seu rosto. O do homem estava coberto, até o queixo, por um capacete de ouro, com traços
estilizados, de uma beleza grave.
A matéria transparente que os envolvia, tanto a um como a outro, era tão fria que o ar, ao seu contato,
tornava-se líquido e escorria, franjando os dois blocos de uma renda que dançava, se despregava, caía e se
evaporava antes de tocar no chão.
Estendidos nesses cofres de claridade movediça, estavam, pela sua própria nudez, revestidos de um
esplendor de inocência. Sua pele lisa como uma pedra polida tinha uma cor clara, indefinida.
Embora fosse menos perfeito que o da mulher, o corpo do homem dava a mesma impressão de uma
extraordinária juventude nunca vista antes. Não era a mocidade de um homem e de uma mulher, mas a da
espécie. Aqueles dois seres eram novos, conservados intactos desde a infância humana.
Simon, lentamente, estendeu a mão para a frente. Entre todos os homens que naquele momento
olhavam nas suas telas a imagem dessa mulher, que viam esses meigos ombros perfeitos, esses braços
redondos encerrando numa cesta os frutos leves dos seios, e a curva dessas ancas onde corria a beleza
total da criação, quantos não desejaram impedir sua mão de se estender para pousar ali?
E entre as mulheres que olhavam este homem, quantas não foram queimadas pelo desejo irrealizável
de se deitar sobre ele, de nele se plantar e de nele morrer?
Houve no mundo inteiro um instante de estupor e silêncio. Mesmo os velhos e as crianças se calaram.
Depois as imagens do ponto 612 se apagaram, e a vida normal recomeçou um pouco mais irritada, um
pouco mais amarga. A humanidade, com um pouco mais de barulho, esforçava-se por esquecer o que
acabava de compreender olhando aqueles dois que jaziam no pólo: a que ponto ela era antiga, cansada,
mesmo nos seus mais belos adolescentes.

Leonova fechou os olhos e sacudiu a cabeça dentro do seu capacete. Quando ergueu as pálpebras, não
olhava mais na direção do homem. Desceu, empurrou Simon com o joelho. Tirou da sacola um pequeno
instrumento, deu alguns passos, e colocou-o em contato com o bloco que continha a mulher. Olhou o
mostrador e disse numa voz neutra ao seu microfone:
– Temperatura na superfície do bloco: duzentos e setenta e dois graus centígrados abaixo de zero.
Houve entre os sábios reunidos na Sala de Conferências murmúrios de espanto. Era quase o zero
absoluto.
Louis Deville, esquecendo o microfone, levantou-se para gritar sua pergunta:
– Pode perguntar ao Dr. Simon, enquanto os olha, falando como médico, se acredita que eles estejam
vivos?
– Não fiquem na proximidade dos blocos – disse a voz traduzida de Hoover nos aparelhos de escuta de
Simon e de Leonova. – Recuem! Mais! As roupas que vocês usam não foram feitas para um frio igual a
esse!...
Recuaram para a parte de baixo da escada. Simon recebeu a pergunta de Deville. Essa pergunta, ele a
fazia a si mesmo, há alguns momentos, com angústia. Primeiro não tivera dúvida alguma: aquela mulher
estava viva, só podia estar viva... Mas era um desejo, não uma convicção. E agora procurava razões
objetivas para acreditar ou duvidar. Informou no seu microfone, falando principalmente para si mesmo:
– Estavam vivos quando o frio os atingiu. O estado do homem comprova isso.
Estendeu o braço forrado em direção ao sexo oblíquo do homem.
– Um fenômeno que já havia sido constatado em certos enforcados. Prova uma congestão brutal de
fluxo sangüíneo, em direção à parte inferior do corpo. Daí vem a lenda da mandrágora, aquela raiz mágica,
de forma humana, que nascia sobre os patíbulos na terra que tinha sido inundada pelo esperma dos
enforcados. Pode ser que uma congestão análoga se tenha produzido no processo de um resfriamento
rápido. Ela não pode ser produzida senão num corpo ainda com vida. Mas é possível que a morte se tenha
dado um instante mais tarde. E mesmo que esses dois seres estivessem num estado de vida que tenha sido
parado, mas de vida possível depois da sua congelação, como podemos saber em que estado se
encontrarão hoje, novecentos mil anos depois da sua congelação?
O emissor da Sala de Conferências, que transmitia diretamente a voz de Simon, traiu nessas últimas
palavras a angústia do jovem médico, e calou-se.
O físico japonês, Hoi-To, sentado à mesa do conselho, fez notar o seguinte:
– É preciso saber a que temperatura eles se encontram. Nossa civilização nunca conseguiu obter o zero
absoluto. Mas parece que essas pessoas dispunham de uma técnica superior. Chegaram lá... Esse zero
absoluto é a imobilidade total das moléculas. Quer dizer que nenhuma outra modificação química é
possível. Nenhuma transformação, mesmo infinitesimal... Ora, a morte é uma transformação. Se no centro
desses blocos reina o frio absoluto5, esse homem e essa mulher se encontram exatamente no mesmo
estado em que estavam no momento em que aí foram mergulhados. E poderiam ficar assim durante a
eternidade.
– Há uma maneira bem simples de saber se estão mortos ou vivos – disse a voz de Simon no emissor. – E
como médico, creio que é nosso dever: é preciso tentar reanimá-los...

A emoção no mundo foi considerável. Os jornais gritavam em enormes letras coloridas: “Acordem-nos!”
Ou então: “Deixem-nos dormir!”
Segundo a opinião de uns, havia o dever imperioso de tentar chamá-los à vida. Outros opinavam que
não se tinha absolutamente o direito de perturbar a paz daqueles que lá repousavam a um tempo
inacreditável.
A pedido do delegado do Panamá, a assembléia das Nações Unidas foi convocada para deliberar.

Novos macacões espaciais tinham chegado ao 612 mas nenhum era do tamanho de Hoover. Ele teve
que mandar fazer um sob medida. Esperando sua chegada, assistia, impotente e furioso, do alto da escada
de ouro, aos trabalhos de seus colegas, que se locomoviam no ovo com imperícia, as pernas abertas e os
braços duros. A umidade da esfera penetrava no ovo e se condensava logo numa neblina composta de
flocos imperceptíveis. Uma geada se formara sobre toda a superfície interna do muro e uma coberta de
neve pulverizada, imóvel como a poeira, cobria o chão.
Apesar dos seus macacões, os homens que desciam no ovo podiam ficar aí durante um tempo muito
curto, o que tornava difícil a continuação das pesquisas. Tinham podido analisar a matéria transparente que
envolvia os que jaziam lá. Era hélio sólido, isto é, um corpo que os físicos nunca tinham conseguido obter, e
que, até pensavam, teoricamente não podia existir.
O nevoeiro gelado que enchia o ovo tirava em parte o homem e a mulher nus da vista das equipes que
trabalhavam a seus lados. Eles pareciam se esconder atrás daquela tumba, tomar de novo suas distâncias,
afastar-se no fundo dos tempos, longe dos homens que tinham querido encontrá-los. Mas o mundo não os
esquecia.
Os paleontólogos esbravejavam. O que haviam encontrado no pólo não podia ser verdade. Ou então os
laboratórios que haviam feito as medidas das datas tinham se enganado.
Tinham examinado a lama fundida das ruínas, os restos de ouro e a poeira da esfera. Através de todos
os métodos conhecidos, tinham determinado a sua antigüidade. Mais de cem laboratórios de todos os
continentes tinham feito, cada um, mais de cem medidas, chegando a mais de dez mil resultados
concordantes que confirmavam os novecentos mil anos aproximados de antigüidade da descoberta
subglacial.
Essa unanimidade não incluía a convicção dos paleontólogos, pois estes gritavam que era uma fraude,
um erro, uma distorção da verdade. Para eles não havia dúvida: menos de novecentos mil anos, era mais
ou menos o começo do pleistoceno. Nessa época, tudo o que podia existir de espécie humana era o
australopiteco, ou seja, uma espécie de primata ameaçador junto do qual um chimpanzé teria parecido um
ilustre civilizado.
As instalações e os indivíduos que haviam sido encontrados sob o gelo ou bem eram falsos, ou bem mais
recentes, ou então vinham de outro lugar. Aquilo não podia ser verdade. Era impossível!
Respostas dos transeuntes interrogados à saída do metrô, em Saint-Germain-en-Laye:
O repórter da tevê: – O senhor acha que é verdade ou não o que foi encontrado?
Um senhor bem vestido: – O que é que não é verdade?
O repórter da tevê: – Aquele negócio lá, embaixo do gelo, lá, no pólo...
O senhor: – Oh! Sabe, eu... Só vendo!...
O repórter da tevê: – E a senhora?
Uma velhinha maravilhada: – Eles são lindos! Eles são tão lindos! É claro que são verdadeiros!
Um senhor magro, moreno, sentindo frio, irritado, apossou-se do microfone: – Eu acho o seguinte: por
que os sábios querem sempre que os nossos ancestrais sejam medonhos? Cro-Magnon e seus
companheiros, gênero orangotango? Os bisões que vimos nas grutas de Altamira e de Lascaux eram mais
lindos que a vaca normanda, não é mesmo? E por que não nós também?
Na ONU, a assembléia desinteressou-se subitamente dos dois seres cuja sorte havia motivado sua
convocação.
O delegado do Paquistão acabara de subir à tribuna e fizera uma declaração sensacional.
Os técnicos do seu país tinham calculado qual deveria ser a quantidade de ouro constituída pela esfera,
seu pedestal e suas instalações internas. Tinham chegado a uma cifra fantástica. Havia lá, sob o gelo, perto
de duzentas mil toneladas de ouro! Significava uma soma de ouro maior do que a contida em todas as
reservas nacionais, em todos os bancos particulares e em todos os haveres individuais e clandestinos! Mais
que todo o ouro do mundo!
Por que haviam escondido essa verdade do público? O que preparavam as grandes potências? Será que
tinham feito um acordo para dividir entre si essa riqueza fabulosa, como já dividiam todas as outras? Esse
volume de ouro era o fim da miséria para a metade da humanidade que sofria ainda de fome e que tinha
necessidade de tudo. As nações pobres, as nações esfomeadas exigiam que esse ouro fosse tirado, dividido,
repartido entre elas, proporcionalmente ao número da sua população.
Os negros, os amarelos, os verdes, os cinzentos e alguns brancos juntaram-se e aplaudiram
freneticamente o paquistanês. As nações pobres formavam na ONU uma grande maioria que a habilidade e
direito de veto das grandes potências controlava com uma dificuldade sempre crescente.
O delegado dos Estados Unidos pediu e obteve a palavra.
Era um homem alto e magro que, com um ar cansado, carregava a hereditariedade de uma das famílias
mais distintas e antigas de Massachusetts.
Numa voz sem paixões, um pouco velada, declarou que compreendia a emoção do seu colega, que os
técnicos dos Estados Unidos tinham chegado às mesmas conclusões que os do Paquistão, e que ele se
apressava justamente a fazer uma declaração a esse respeito.
Mas, acrescentou, outros técnicos examinando as amostras do ouro do pólo tinham chegado a uma
outra conclusão: o ouro não era o ouro natural, era um metal sintético, fabricado por um processo do qual
eles não faziam a menor idéia. Os físicos atômicos, esclareceu, fabricavam um ouro artificial, através da
transmutação dos átomos. Mas somente em pequena quantidade e a um preço que o tornava proibitivo.
O verdadeiro tesouro escondido sob o gelo não era que esta ou aquela quantidade de ouro fosse
considerável, mas sim os conhecimentos encerrados no cérebro daquele homem ou daquela mulher, ou
talvez dos dois. Quer dizer, não somente o segredo da fabricação do ouro, do zero absoluto, do moto
perpétuo, mas sem dúvida uma quantidade de outras coisas ainda bem mais importantes.
– O que encontramos no ponto 612 – prosseguiu o orador – na verdade permite supor que uma
civilização muito adiantada, sentindo-se ameaçada por um cataclismo que ameaçava destruí-la
inteiramente, colocou num abrigo, com luxo de precauções que talvez tenham esgotado todas as suas
riquezas, um homem e uma mulher suscetíveis de fazer renascer a vida depois da passagem do flagelo. Não
é lógico pensar que esse casal tenha sido escolhido unicamente por suas qualidades físicas. Um ou outro,
ou os dois, devem possuir bastante ciência para fazer renascer uma civilização equivalente àquela da qual
eles faziam parte. É essa ciência que o mundo de hoje deve sonhar em dividir, antes de qualquer outra
coisa. É por isso que é preciso reanimar aqueles que a possuem e dar-lhes um lugar entre nós.
– Se ainda estiverem vivos – disse o delegado chinês.
O delegado americano fez um gesto ligeiro com a mão esquerda e esboçou um sorriso que revelava
certo desprezo:
– É claro...
Olhou toda a assembléia com ar ausente e aborrecido e prosseguiu:
– A Universidade de Colúmbia está perfeitamente equipada em matéria de sábios e aparelhos para
realizar essa reanimação. Os Estados Unidos se propõem, então, com o acordo de todos, ir buscar no ponto
612 o homem e a mulher dentro dos seus blocos de gelo, transportá-los com todas as precauções
necessárias e no menor tempo possível até os laboratórios de Colúmbia. Lá serão despertados do longo
sono e acolhidos em nome de toda a humanidade.
O delegado russo levantou-se sorridente e disse que não duvidava da boa vontade americana, nem da
competência dos seus sábios. Mas a URSS possuía igualmente, em Akademgorodok, os técnicos, os teóricos
e a aparelhagem necessários. Ela podia, também, encarregar-se da operação de reanimação. Mas não se
tratava nesse momento capital do futuro da humanidade de fazer a grande pesquisa científica e de disputar
um jogo que pertencia a todos os povos do mundo. A URSS propunha então dividir o casal, ela se
encarregaria de um dos dois indivíduos e os Estados Unidos se ocupariam do outro.
O delegado paquistanês explodiu. O complô das grandes potências estourava à luz do dia! Desde o
primeiro momento elas tinham decidido atribuir a si mesmas o tesouro do 612, fosse um tesouro
monetário ou um tesouro científico. E, dividindo entre si o segredo do passado, dividiam a supremacia do
futuro, como já possuíam a do presente. As nações que adquirissem o monopólio dos conhecimentos
submersos sob o ponto 612 possuiriam um domínio total e absoluto do mundo. Nenhum outro país poderia
jamais esperar se subtrair à sua hegemonia. As nações pobres deveriam se opor com todas as suas forças à
realização desse abominável ensejo, nem que para isso os dois seres vindos do passado tivessem que ficar
para sempre dentro da sua carapaça de hélio!
O delegado francês, que tinha ido telefonar a seu governo, pediu, por sua vez, a palavra. Fez
pacificamente notar que o ponto 612 encontrava-se no interior de uma fatia do continente antártico
atribuído à França, isto é, em território francês. E, daí, tudo o que pudesse vir a ser descoberto era
propriedade francesa...
Formou-se uma enorme confusão. Delegados de grandes e pequenas nações encontravam-se dessa vez
de acordo para protestar, ironizar, ou simplesmente fazer uma cara divertida, segundo o seu grau de
civilização.
O delegado francês sorriu e fez um gesto pacificador. Quando a calma voltou, declarou que a França,
diante do interesse universal da descoberta, renunciava aos seus direitos nacionais, e mesmo aos diretos
de “inventor”, e depunha tudo o que tinha sido encontrado e tudo o que ainda poderia ser encontrado no
ponto 612 sobre o altar das Nações Unidas.
Agora eram aplausos polidos que o seu gesto se esforçava para fazer cessar.
Mas... embora sem comungar dos temores do Paquistão, a França pensava que era necessário fazer
tudo para impedi-los de se tornarem justificados, por menores que fossem. Não eram apenas a
Universidade de Colúmbia e Akademgorodok que tinham equipes de reanimação. Podiam se encontrar
especialistas eminentes na Iugoslávia, na Holanda, na índia, sem falar da Universidade Árabe e da equipe
muito competente do Dr. Lebeau, do Hospital de Vaugirard, em Paris. A França não afastava as equipes
russas e americanas. Pedia somente que a escolha fosse feita pela assembléia inteira e sancionada por um
voto...
O delegado americano riu-se logo dessa proposta. Para deixar às candidaturas competentes o tempo de
se manifestar, pediu que transferissem o debate para o dia seguinte, o que foi decidido. Os regateios e as
negociatas secretas iam começar imediatamente.

Por uma vez, a tevê funcionou em sentido contrário. O satélite Trio, do alto do éter, enviou para a
antena da EPI-1 as imagens da ONU. Na Sala de Conferências, os sábios que não se tinham ocupado de suas
missões mais urgentes seguiram os debates em companhia dos jornalistas. Quando tudo terminou, Hoover,
com um gesto do polegar, apagou a grande tela e olhou os colegas fazendo uma careta.
– Creio – disse ele – que nós também teremos que deliberar. – Pediu aos jornalistas que tivessem a
fineza de se retirar, e lançou pelos aparelhos emissores um apelo geral a todos os sábios, técnicos,
operários e trabalhadores da expedição para uma reunião imediata.

No dia seguinte, no momento em que se abria a reunião da assembléia da ONU, um comunicado


proveniente do ponto 612 foi entregue ao presidente. O seu texto, difundido para o mundo inteiro através
de todos os meios de informação, era o seguinte:

“Os membros da Expedição Polar Internacional decidiram por unanimidade o que se segue:
“1.º – Negam a toda nação, seja ela rica ou pobre, o direito de reivindicar para uso lucrativo o menor
fragmento de ouro da esfera e de seus acessórios.
“2.° – Sugerem, se isso pode ser útil à humanidade, que uma moeda internacional seja criada e
afiançada por esse ouro, com a condição que ele fique onde está, considerando que não será nem mais útil
nem mais “congelado” sob um quilômetro de gelo do que nos cofres dos bancos nacionais.
“3.° – Não reconhecem a competência da ONU, organismo político, no que concerne à decisão, de
ordem médica e científica, de tomar a si a responsabilidade do casal em hibernação.
“4.º – Não confiarão esse casal a nenhuma nação em particular.
“5.° – Colocarão à disposição da humanidade inteira o conjunto de informações científicas ou de
qualquer outra ordem que possam ser recolhidas pela expedição.
“6.° – Convidam Forster, de Colúmbia, Moissov, de Akademgorodok, Zabrec, de Belgrado, Van Houcke,
de Haia, Haman, de Beirute, e Lebeau, de Paris, a se reunir a eles, no ponto 612, com urgência, trazendo
todo o material necessário para proceder à reanimação.”

O manifesto foi como uma ducha fria nas discussões da ONU. Os vidros do palácio tremeram até o
último andar. O delegado do Paquistão estigmatizou, em nome das crianças que morreriam de fome, o
orgulho dos sábios que queriam colocar-se acima da humanidade e com isso se distanciavam daquele
problema. Falou de “ditadura de cérebros”, declarou que tudo era inadmissível e pediu sanções.
Depois de um debate apaixonado, a assembléia votou o envio imediato de uma força militar
representativa ao ponto 612 para tomar posse, em nome das Nações Unidas, de tudo o que ali se
encontrava.
Duas horas mais tarde, a antena da EPI-1 pedia e obtinha um corredor internacional. Todos os postos
particulares e nacionais interromperam suas emissões para dar lugar às imagens vindas do pólo. Foi o rosto
de Hoover que apareceu. O rosto de um homem gordo, sempre pronto a sorrir, fosse qual fosse a emoção
que tentasse exprimir. Mas a gravidade do seu olhar era tal que fez esquecer suas faces rosadas e gordas e
seus cabelos vermelhos mal penteados. Hoover iniciou:
– Estamos chocados. Chocados porém decididos.
Virou-se para a direita e para a esquerda e fez um sinal. A câmara recuou para permitir que os que se
aproximavam surgissem na tela. Eram Leonova, Rochefoux, Shanga, Lao Tchang. Vieram se colocar ao lado
de Hoover, dando-lhe a caução de suas presenças. Atrás deles a luz dos projetores revelava os rostos dos
sábios de todas as nacionalidades que há meses se batiam contra o gelo para lhe arrancar o segredo.
Hoover recomeçou:
– Vocês vêem, estamos todos aqui. E todos decididos. Jamais permitiremos as mancomunações
privadas, nacionais ou internacionais, não deixaremos que ponham a mão sobre bens dos quais depende
talvez a felicidade dos homens de hoje e de amanhã. De todos os homens, e não somente de alguns, desta
ou daquela categoria.
Passou a mão na testa, deu um pigarro e continuou:
– Não temos confiança na ONU. Não temos confiança em sua representação militar. Se soldados
desembarcarem no 612, deixaremos cair a pilha atômica dentro do poço e o explodiremos!
Ficou imóvel durante um instante, silencioso, para dar tempo aos ouvintes de digerir a enormidade da
decisão tomada. Depois a sua imagem apagou-se e surgiu a de Leonova.
O seu queixo tremia. Ela abriu a boca e não conseguiu falar. A mão gorda de Hoover apoiou-se sobre o
seu ombro. Leonova fechou os olhos, respirou fundo, e encontrou um pouco de calma.
– Queremos trabalhar aqui para todos os homens – disse ela. – É fácil nos impedir. Não dispomos de um
parafuso ou de uma migalha de pão que não sejam enviados por uma ou outra nação. Basta nos cortar a
remessa de víveres. Ou simplesmente usar de má vontade. Nosso sucesso, até o momento, foi o resultado
de um esforço concentrado e desinteressado das nações. É preciso que esse esforço continue com a
mesma intensidade. Vocês podem obter, vocês que nos escutam. Não é aos governos, nem aos políticos
que me dirijo. É aos homens, às mulheres, aos povos, a todos os povos. Escrevam aos seus governos, aos
chefes de Estado, aos ministros, aos sovietes. Escrevam imediatamente, escrevam todos! Vocês ainda
podem salvar tudo!
Ela transpirava. A câmara mostrou-a mais de perto. Via-se o suor banhar o seu rosto.
Uma mão apareceu na tela, alcançando-lhe um lenço de papel cor de ouro. Ela o pegou e apalpou-o
sobre a testa e sobre os lados do nariz. Prosseguiu:
– Se temos que renunciar, não abandonaremos, seja a quem for, as possibilidades de conhecimentos,
que, mal empregados, poderiam acarretar para o mundo uma infelicidade irreparável. Se nos obrigarem a
partir, não deixaremos nada atrás de nós.
Virou-se e passou o lenço nos olhos. Chorava.
Em quase todos os lugares onde a televisão era um monopólio do Estado, a transmissão do apelo dos
sábios tinha sido cortada antes do fim. Mas durante doze horas, a antena da EPI-1 continuou a bombardear
o satélite Trio com as imagens de Hoover e de Leonova. E o Trio, objeto científico perfeitamente desligado
de opinião, transmitiu-as durante doze horas a seus gêmeos e seus primos que circulavam no globo todo.
Quase dois terços deles emitiam com grande potência para serem captados diretamente em receptores
particulares. Cada vez que as imagens reapareciam, a máquina traduzia as palavras em uma língua
diferente. E no fim apareciam os dois seres do passado, na sua beleza e na sua imobilidade total, tal como
as telas os haviam mostrado a primeira vez.
A emissão se superpunha aos programas previstos, embaralhava tudo, e acabava por passar por trechos
diferentes e por ser compreendida por aqueles que queriam compreender.
Durante o meio dia que se seguiu, todos os serviços de rádio foram brutalmente controlados. Nas
menores cidades da Auvergne ou do Beluchistão, as caixas de correio transbordavam. Desde os primeiros
centros de reagrupamento das malas postais, as salas de recepção estavam cheias até o teto. No escalão
acima, estava-se totalmente submerso em papel. Os poderes públicos e as companhias privadas negaram-
se a transportar essa correspondência mais longe. Não era necessário lê-la. Sua abundância já era
significativa por si. Pela primeira vez os povos manifestavam, acima de suas línguas, suas fronteiras, suas
diferenças e suas divisões, uma vontade comum. Nenhum governo podia ir contra um sentimento de
tamanha amplidão. Novas instruções foram dadas aos delegados da ONU.
Uma moção foi votada em meio ao entusiasmo e à unanimidade, anulando o envio da tropa, e
exprimindo a confiança das nações nos sábios da EPI, para conduzir ao bem... etc, para o maior bem... etc, a
fraternidade dos povos... etc, do presente e do passado, ponto final.

Os reanimadores aos quais o comunicado dos sábios havia feito um apelo chegaram com suas equipes e
seu material.
Sob a orientação de Lebeau, os técnicos e operários construíram uma sala de reanimação no interior da
esfera, acima do ovo.
Um problema grave apresentou-se aos responsáveis: por quem começar? Pelo homem ou pela mulher?
O primeiro a ser reanimado forçosamente teria que correr riscos. O segundo, ao contrário, se
beneficiaria da experiência. Era preciso começar pelo menos precioso. Mas qual era ele?
Para o árabe, não havia dúvida. O único que contava era o homem. Para o americano, era em torno da
mulher que deveriam tomar a mais respeitosa das precauções, e até mesmo arriscar por ela a vida do
homem. O holandês não tinha opinião; o iugoslavo e o francês, embora evitassem opinar, tendiam para o
lado masculino.
– Meus caros colegas – disse Lebeau no curso de uma das reuniões –, vocês sabem tão bem quanto eu
que os cérebros Masculinos são superiores em volume e peso aos cérebros femininos. Se é o cérebro que
nos interessa, parece-me então que é o homem que devemos reservar para a segunda intervenção. Mas
pessoalmente – acrescentou sorrindo – , depois de ter visto a mulher, teria facilmente uma tendência
maior a pensar que uma beleza assim tem mais importância que o saber, por maior que ele seja...
– Não há razão – disse Moissov – para que tratemos um antes do outro. Os direitos são iguais. Proponho
que formemos duas equipes e que operemos ao mesmo tempo sobre os dois.
Era generoso, porém impossível. Não havia bastante espaço, nem bastante material. E os
conhecimentos dos dez sábios não seriam demais, juntando-os todos, para fazer a luz nos momentos
difíceis.
Quanto ao raciocínio de Lebeau, era válido para os cérebros de hoje. Mas quem podia afirmar que na
época de onde tinham vindo os dois seres a diferença de peso e de volume existia? E se existia, quem sabe,
naquele momento, ela não seria a favor dos cérebros femininos? As máscaras de ouro que escondiam as
duas cabeças não permitiam nem fazer uma comparação aproximativa do seu volume, e, por dedução, dos
seus conteúdos...
O holandês Van Houcke era especialista notável em hibernação de focas. Mantinha uma congelada há
doze anos. Aquecia-a, despertava-a todo ano, na entrada da primavera. Fazia-a regalar-se com alguns
arenques e, depois que ela os havia digerido, recongelava-a.
Mas, afora essa especialidade, era um homem muito esperto. Confiou aos jornalistas as dúvidas dos
seus colegas, e pediu-lhes conselho.
Pelo Trio, os jornalistas encantados expuseram a situação à opinião mundial e fizeram uma pergunta:
“Por quem se deve começar? Pelo homem ou pela mulher?”
Hoover havia finalmente recebido o seu macacão. Vestiu-o e desceu ao ovo. Desapareceu no nevoeiro.
Quando voltou, pediu ao conselho para se reunir com os reanimadores.
– É preciso se decidir – disse ele. – Os blocos de hélio estão diminuindo. O mecanismo que transmitia o
frio continua a funcionar, mas nossa intrusão no ovo tirou-lhe uma parte de sua eficiência. Se vocês
permitirem, vou dar minha opinião. Acabo de ver de perto o homem e a mulher... Meu Deus, como ela é
bela!... Mas não é esta a questão. Ela pareceu-me estar em melhor estado do que ele. Ele apresenta no
peito e em diversos lugares do corpo pequenas alterações de cor na pele, que talvez sejam sinais de lesões
epidérmicas superficiais. Ou talvez não sejam nada, não sei. Mas creio – digo francamente que creio, é uma
impressão, não uma convicção – que ela é mais forte que ele, mais capaz de suportar os seus pequenos
erros, se é que vocês os farão. Vocês são médicos, olhem-nos de novo, examinem o homem pensando no
que eu acabo de dizer, e decidam. Na minha opinião, é pela mulher que se deve começar.
Eles nem desceram ao ovo. Era preciso começar por qualquer um. Basearam-se na opinião de Hoover.
Assim, enquanto a opinião pública se apaixonava, a metade masculina e a metade feminina da
humanidade investiam uma contra a outra, as disputas estouravam em todas as famílias, entre todos os
casais, entre os colegiais e estudantes que se entregavam a discussões ferozes, os seis reanimadores
decidiram começar pela mulher.
Como poderiam saber que cometeriam um erro trágico se tivessem escolhido começar pelo homem?

A mangueira de ar foi dirigida para o bloco da esquerda, e começou a lançar ar na temperatura da


superfície, que era de trinta e dois graus abaixo de zero. O bloco de hélio desmanchou-se em alguns
instantes. Passou diretamente do estado sólido ao estado gasoso e desapareceu, deixando a mulher intacta
dentro do seu caixão. Os quatro homens de macacão que a olhavam estremeceram. Parecia-lhes que
agora, toda nua dentro do caixão de metal, envolvida pelo turbilhão de bruma gelada, ela deveria sentir frio
mortal. Todavia, estava sensivelmente mais aquecida.
Simon estava entre os quatro. Lebeau lhe havia pedido, em virtude dos seus conhecimentos de
problemas polares, e de tudo o que ele já sabia da esfera, do ovo e do casal, que se juntasse à equipe de
reanimação.
Ele deu a volta no caixão. Segurava sem jeito, numa das suas luvas de astronauta, uma grande pinça
cortante. A um sinal de Lebeau, inclinou-se e cortou o canudo metálico que ligava a máscara de ouro à
parte de trás do caixão. Lebeau, com uma delicadeza infinita, tentou erguer a máscara, mas não o
conseguiu. Parecia estar soldada à cabeça da mulher, embora fosse visivelmente separada por um espaço
de pelo menos um centímetro.
Lebeau endireitou-se, fez um sinal de renúncia, e dirigiu-se para a escada de ouro. Os outros o
seguiram.
Não podiam ficar lá muito tempo. O frio entrava pelas suas vestes protetoras. E não podiam levar a
mulher, pois, na temperatura em que ela ainda estava, arriscavam-se a quebrá-la como a um vidro.
A mangueira de ar, teleguiada da sala de reanimação, continuava passeando lentamente ao redor dela,
banhando-a com uma corrente de ar a uma temperatura aproximada de vinte graus.
Algumas horas mais tarde os quatro desceram novamente. Sincronizando seus movimentos,
escorregaram suas mãos enluvadas por baixo da mulher congelada e a separaram do caixão. Lebeau tinha
medo de que ela ficasse colada ao metal pelo gelo. Mas isso não aconteceu e as oito mãos a ergueram, rija
como uma estátua, e a carregaram acima dos ombros. Depois os quatro homens começaram a andar,
lentamente, com um medo enorme de dar um passo em falso. A neve pulverulenta batia-lhes nas pernas e
afastava-se diante deles como água. Grotescos dentro dos seus macacões com capuz, meio apagados pela
bruma, eles tinham um ar de personagens de pesadelo, levando para outro mundo a mulher que os
atormentava em sonhos. Subiram a escadaria de ouro e saíram pelo buraco luminoso da porta. A
mangueira de ar foi retirada e o bloco transparente onde o homem permaneceu, que havia diminuído
bastante no decorrer da operação, parou de se reduzir.
Os quatro entraram na sala de operação e depositaram a mulher sobre a mesa de reanimação. Daquele
momento em diante nada mais podia parar o desenrolar fatal dos acontecimentos.

Na superfície, a entrada do poço tinha sido cercada por uma construção de enormes blocos de gelo cujo
próprio peso ligava uns aos outros. Uma pesada porta sobre trilhos fechava o acesso. No interior se
encontravam as instalações de foles, os relés da tevê, do telefone, da máquina tradutora, da corrente de
força e luz, os motores dos elevadores, dos monta-cargas e suas estações de saída, baterias, e
acumuladores de socorro a eletrólise seca.
Diante das portas dos elevadores, Rochefoux enfrentava uma multidão de jornalistas. Havia fechado as
portas e colocado as chaves no bolso. Os jornalistas protestavam violentamente, em todas as línguas.
Queriam ver a mulher, assistir ao seu despertar. Rochefoux, sorrindo, declarou-lhes que isso não era
possível. À parte o pessoal da equipe médica, ninguém, nem ele mesmo, seria admitido na sala de
operações.
Conseguiu acalmá-los prometendo-lhes que veriam tudo pela televisão interna, na grande tela da Sala
de Conferências.
Simon e os seis reanimadores, vestidos com blusas verde-claras, gorros e máscaras de cirurgião, botas
de algodão branco, luvas de látex rosa, rodeavam a mesa de reanimação. Uma coberta aquecedora
envolvia a mulher até a altura do queixo. A máscara de ouro continuava cobrindo o seu rosto. Pelas frestas
da coberta saíam fios multicores que se ligavam a aparelhos de medida, correias, elétrodos, ventosas,
apalpadores, aplicados em diferentes lugares do seu corpo gelado.
Nove técnicos, vestidos com blusas amarelas, mascarados como os cirurgiões, não tiravam os olhos dos
mostradores dos aparelhos. Quatro enfermeiras e três enfermeiros de azul mantinham-se próximos de
cada médico, prontos a obedecer imediatamente.
Lebeau, reconhecível por causa de suas enormes sobrancelhas grisalhas, inclinou-se em direção à mesa
e, mais uma vez, tentou arrancar a máscara. A proteção se mexeu, mas parecia estar presa por uma espécie
de haste central.
– Temperatura? – perguntou Lebeau.
Um homem de amarelo respondeu:
– Fole. Cinco positivos. – Uma mulher de azul estendeu a extremidade de um tubo macio, que Lebeau
introduziu entre a máscara e o queixo.
– Pressão cem gramas, temperatura quinze graus.
Um homem de amarelo virou dois pequenos volantes e repetiu os números.
– Mande – ordenou Lebeau.
Um assobio fraquinho fez-se ouvir. O ar a quinze graus correu entre a máscara e o rosto da moça.
Lebeau endireitou-se e olhou para os colegas. Seu olhar estava sério, no limite da ansiedade. Uma mulher
de azul, com uma compressa de gaze, enxugou-lhe as têmporas onde o suor escorria.
– Experimente – falou Forster.
– Alguns minutos – disse Lebeau. – Atenção à parte de cima... De cima!
Foram minutos intermináveis. Os vinte e três homens e mulheres presentes na sala esperavam, em pé.
Ouviam seus corações martelando dentro do peito e sentiam o peso dos seus corpos enrijecer os músculos
de suas pernas como uma pedra. A câmara número 1, virada para a máscara de ouro, enviava a imagem
gigantesca para a grande tela. Um silêncio total reinava na Sala de Conferências, mais uma vez lotada. O
difusor fazia ouvir as respirações agitadas por trás das máscaras de algodão, e o longo sopro de ar sob a
máscara de ouro.
– Quanto tempo? – perguntou Lebeau.
– Três minutos e dezessete segundos – disse um homem de amarelo.
– Vou experimentar – disse Lebeau.
Inclinou-se de novo para a mulher, introduziu a ponta dos seus dedos sob a máscara e apertou
suavemente a ponta do queixo, que cedeu com lentidão. A boca da mulher, que não se podia ver, deveria
estar aberta. Lebeau pegou a máscara com as duas mãos e, mais uma vez, muito lentamente, tentou erguê-
la. Não houve mais resistência...
Lebeau suspirou e sob as grossas sobrancelhas seus olhos sorriram. Com o mesmo movimento, sem
pressa, continuou a levantar a máscara.
– Era exatamente o que pensávamos: máscara de ar ou de oxigênio. Ela estava com uma ponteira na
boca...
Ergueu totalmente a máscara e tirou-a. Efetivamente, no lugar da boca encontrava-se uma saliência
orlada de uma borda de matéria translúcida que parecia elástica.
– Vejam! – disse aos colegas, mostrando-lhes o interior da máscara.
Mas ninguém olhou. Todos admiravam o rosto da mulher.

Primeiro vi a tua boca entreaberta. A tua boca entreaberta, o recorte quase transparente dos dentes
delicados que apareciam em cima e embaixo, ultrapassando apenas a borda dos teus lábios pálidos.
Comecei a tremer. Via muitas dessas bocas entreabertas no hospital, as bocas dos corpos que a seiva da
vida acabara de abandonar, deixando de um só golpe todas as células, e que, bruscamente, não são mais
do que carne vazia, exposta à gravidade.
Porém Moissov colocou a mão em concha sob teu queixo, carinhosamente fechou tua boca, esperou
um segundo, e retirou a mão.
E tua boca ficou fechada...

Sua boca fechada – nacarada pelo frio e pelo sangue retirado – era como o debrum de uma concha
frágil. Suas pálpebras eram duas longas folhas sobre as quais os cílios e as sobrancelhas desenhavam o
contorno sombreado de dourado. Seu nariz era pequeno, bem-feito, suas narinas ligeiramente abertas e
bem desenhadas. Seus cabelos de um castanho quente, como batidos por uma luz de ouro, rodeavam a
cabeça como pequenas ondas de raios de sol e escondiam parte da testa e das faces. Das orelhas aparecia
somente o lóbulo da esquerda, como uma pétala engastada num brinco.
Houve um grande suspiro, por parte do homem ao microfone, que a máquina tradutora não soube
reproduzir. Haman inclinou-se, afastou os cabelos da mulher e começou a instalar os eletrodos do
encefalógrafo.

A adega do Hotel Internacional de Londres – à prova de bomba A, mas não da bomba H; de


desmoronamentos, mas não de um golpe direto bastante sólido para dar segurança a uma clientela rica
que exigia essa segurança ao lado do conforto; suficiente e visivelmente blindada para inspirar confiança,
mas não para assegurar proteção, pois ninguém, nada poderia proteger nada nem ninguém –, a adega do
Internacional de Londres, por sua arquitetura, sua calefação e sua concretagem, reunia as condições ideais
para se transformar num shaker.
Era assim que se chamavam as salas, cada vez maiores, onde se reuniam rapazes e moças de todas as
classes, para se entregar em comum a danças frenéticas.
Pressionados por seus instintos dirigidos para uma nova concepção de vida, os jovens se encerravam ali,
sacudidos por pulsações sonoras, e perdiam os últimos vestígios de preconceitos e de convenções que
ainda os acossavam.
A adega do Internacional de Londres era o mais vasto shaker da Europa. E também um dos mais
procurados.
Seis mil rapazes e moças. Uma só orquestra, porém doze alto-falantes iônicos sem membrana que
faziam vibrar o ar da adega como o interior de um sax-tenor. E mais Yuni, o furor de Londres, dezesseis
anos, cabelos raspados, óculos de fundo de garrafa, um olho vesgo, o outro esbugalhado, Yuni, que
convencera a administração do hotel a lhe alugar a adega. Nenhuma nota musical chegava aos ouvidos dos
hóspedes que ocupavam os andares. Às vezes alguns desciam para “balançar o esqueleto” e subiam
maravilhados – e apavorados – pelo espetáculo dessa juventude em estado primitivo e efervescente.
Yuni, diante de um teclado, na cadeira de alumínio presa ao muro acima da orquestra, uma orelha
escondida por um enorme aparelho de escuta em feitio de couve-flor, escutava todas as orquestras e,
quando encontrava uma música quente, ligava-a nos alto-falantes mais próximos. De olhos fechados,
escutava. Num ouvido o barulho enorme da adega, no outro, três medidas, duas medidas, vinte medidas
colhidas no inatingível. A intervalos, sem abrir o olho, soltava um grito agudo e longo, que ressoava acima
do barulho de fundo. De repente arregalou os olhos, cortou o som e gritou:
– Ouçam! Ouçam!
A orquestra calou-se. Seis mil corpos suados ficaram repentinamente no silêncio e na imobilidade.
Enquanto por trás do estupor a consciência começava a renascer neles, Yuni continuava:
– Notícias sobre a moça congelada!
Assobios, xingamentos. Bolas! Que se dane! Vá lá você esquentá-la! Que é que eu tenho com isso! Yuni
gritou:
– Cambada de ratos! Escutem!
Ligou na BBC. Nos doze alto-falantes soou a voz do locutor de serviço, enchendo o ar da adega com uma
vibração forte e bem marcada:
– Difundimos pela segunda vez o documento que nos chegou do ponto 612. Isto constitui certamente a
mais importante notícia do dia...
Pigarros. Silêncio. O céu penetrou na adega com o ruído indizível da multidão que caminha pela noite
cósmica: o barulho das estrelas. Depois a voz de Hoover. Como se estivesse ofegante. Talvez estivesse com
asma. Ou com o coração envolvido por uma grande emoção.
– Aqui é EPI, ponto 612. Hoover falando. Estou feliz... muito feliz... de ler-lhes o seguinte comunicado
chegado da sala de operações: “O processo de reanimação prossegue normalmente. Hoje, 17 de
novembro, às catorze horas e cinqüenta e dois minutos locais, o coração da jovem mulher recomeçou a
bater...”
A adega explodiu num grito. Yuni, visivelmente contrariado, berrou mais forte:
– Calem a boca! Vocês são uns burros! Vocês não têm alma! Escutem!
Obedeceram. Obedeciam tanto à voz como à música. Contanto que esta fosse mais forte. Feito silencio,
ouviu-se de novo a voz de Hoover:
– As primeiras batidas do coração dessa mulher foram registradas. O órgão não batia há mais de
novecentos mil anos. Escutem...
Desta vez, verdadeiramente, todos se calaram. Yuni fechou os olhos, o rosto iluminado. Ouvia a mesma
coisa nos dois ouvidos. Escutava:
Silêncio.
Uma batida surda: bum...
Uma só.
Silêncio... silêncio... silêncio...
Bum...
Silêncio... silêncio...
Bum...
Silêncio...
Bum... bum...
Silêncio...
Bum... bum... bum... bum, bum, bum...
O baterista da orquestra respondeu, suavemente, em contra-ponto, com o pé na caixa. Depois
acrescentou a ponta dos dedos. Yuni superpôs a orquestra e as ondas. O contrabaixo uniu-se à bateria e ao
coração. A clarineta gritou uma longa nota, depois terminou numa improvisação alegre. Os seis violões
elétricos e os dois violões de aço desandaram a tocar. O baterista batia por sua vez em todas as peles...
Yuni gritou como de um minarete:
– Ela está acordada!
Bum! Bum! Bum! Os seis mil cantavam:
– Ela está acordada!... Ela está acordada!...
Seis mil cantavam, dançavam, no ritmo do coração que acabava de renascer.
Assim nasceu o wake, a dança do despertar... Aqueles que queriam dançar, dançavam. Aqueles que
podiam acordar, acordavam.

Não, ela não estava acordada. Suas longas pálpebras ainda estavam abaixadas sobre o sono
interminável. Mas seu coração batia com uma potência tranqüila, seus pulmões respiravam calmamente,
sua temperatura subia pouco a pouco em direção à vida.
– Atenção! – disse Lebeau, inclinado sobre o encefalograma. – Pulsações irregulares... Ela sonha!
Ela sonhava! Um sonho que a havia acompanhado, enrascado, gelado dentro de alguma parte da sua
cabeça, e, agora aquecido, florescia. Florescia em que espantosas imagens? Azuis ou negras? Sonho ou
pesadelo? As pulsações do coração subiram bruscamente de trinta para quarenta e cinco, a pressão
sangüínea atingiu o limite, a respiração acelerou-se e tornou-se regular, a temperatura subiu para trinta e
seis graus.
– Atenção! – exclamou Lebeau. – Pulsações do pré-despertar. Ela vai acordar! Está acordando! Tirem o
oxigênio!
Simon ergueu o inalador e estendeu-o para a enfermeira. As pálpebras da moça tremeram. Uma
pequena sombra de dúvida apareceu na parte de baixo das suas pálpebras.
– Nós vamos lhe meter medo! – disse Simon.
Arrancou a máscara de cirurgião que lhe cobria a parte inferior do rosto. Todos os médicos o imitaram.
Lentamente as pálpebras se ergueram, os olhos apareceram, incrivelmente grandes. O branco era muito
claro, muito puro. A íris larga, um pouco eclipsada pela pálpebra superior, era de um azul de céu em noite
de verão, semeado de lantejoulas de ouro.
Seus olhos estavam fixos no teto, que certamente não viam. Depois piscaram vezes seguidas, suas
sobrancelhas se ergueram, seus olhos mexeram, olharam e viram. Viram primeiro Simon, depois Moissov,
Lebeau, os enfermeiros, todo mundo. Uma expressão de espanto invadiu seu rosto de mulher. Tentou falar,
abriu a boca, mas não chegou a ter o comando dos músculos da língua nem da garganta. Emitiu uma
espécie de estertor. Fez um esforço enorme para erguer um pouco a cabeça e olhar tudo. Ela não
compreendia onde estava, tinha medo, e ninguém podia fazer nada para dar-lhe confiança. Moissov sorriu-
lhe. Simon tremia de emoção. Lebeau começou a falar muito carinhosamente. Recitou dois versos de
Racine, as palavras mais harmoniosas que alguma língua já pôde reunir: “Ariane, minha irmã, de que amor
ferida...” Era a canção do verbo perfeito e acariciante. Mas a mulher não escutava. Via-se que o horror a
dominava. Mais uma vez tentou falar, sem conseguir. Seu queixo começou a tremer. Ela fechou os olhos e
deixou a cabeça cair para trás.
– Oxigênio! – ordenou Lebeau. – E o coração?
– Normal! Cinqüenta e duas... – disse um homem de amarelo.
– Desmaiou... – observou Van Houcke. – Nós lhe metemos um medo enorme... O que ela esperava
encontrar?
– Bem, é como se você fizesse sua filha dormir e ela acordasse no meio de um bando de feiticeiros... –
disse Forster.
Os médicos decidiram aproveitar o seu desmaio para carregá-la para a superfície, onde uma sala mais
confortável a esperava na enfermaria. Foi introduzida numa espécie de caixa plástica transparente, com a
parede dupla isolante, alimentada por uma bomba de ar. Quatro homens carregaram-na até o elevador.
Todos os fotógrafos da imprensa deixaram a sala do conselho para se precipitar ao seu encontro. Os
jornalistas estavam já nas cabinas de rádio, telefonando para o mundo inteiro sobre aquilo que haviam
visto e que não haviam visto. A grande tela mostrava os homens de amarelo retirando as máscaras do rosto
e se desembaraçando dos aparelhos. Lanson apagou a imagem da sala de trabalho e substituiu-a pela que
enviava a câmara de controle do interior do ovo.
Leonova levantou-se bruscamente:
– Olhe! – disse ela apontando em direção à tela. – Lanson, focalize o pedestal da esquerda.
A imagem do pedestal com o caixão vazio apareceu, cresceu e fez-se ver por trás de um ligeiro véu de
bruma. Repararam então que faltava um dos seus lados. Toda uma parede vertical afundara no solo,
aparecendo uma espécie de estante com prateleiras metálicas sobre as quais estavam colocados objetos de
formas desconhecidas.

Quando a mulher deixou a sala de operações, os objetos achados na prateleira a substituíram sobre a
mesa de reanimação. Voltaram a sua temperatura normal. Constituíam, de certa maneira, a “bagagem” da
viajante adormecida.
Agora não eram mais os médicos que rodeavam a mesa, eram os cientistas, os mais suscetíveis, por sua
especialidade, de compreender o uso e o funcionamento daqueles objetos.
Leonova pegou com toda a precaução alguma coisa que parecia ser uma roupa dobrada e a desdobrou.
Era algo que não era papel nem fazenda, de cor alaranjada, com desenhos amarelos e vermelhos. O frio
absoluto o mantivera num estado de conservação perfeita. Era leve, fino e parecia sólido. Havia vários, de
cores, formas e dimensões diferentes. Sem nenhuma manga, nem abertura de espécie alguma, nem
botões, nem fechos, nem nada, nenhuma maneira de os colocar ou de fixá-los.
Foram pesados, medidos, numerados, fotografados, e tiraram-lhes amostras microscópicas para
análises. Depois passaram ao objeto seguinte.
Era um cubo com os cantos arredondados, com vinte e dois centímetros de aresta. Comportava,
grudado numa de suas faces, um tubo oco e disposto em posição diagonal. O todo era compacto, feito de
uma matéria sólida e leve, de um cinza muito claro. O físico Hoi-To segurou-o na mão, olhou-o longamente
e olhou os outros objetos.
Havia uma caixa sem tampa que continha varinhas octogonais de cores diferentes. Pegou uma e
introduziu-a no tubo oco colocado no cubo. Logo uma luz nasceu dentro do objeto e iluminou-o
suavemente.
E o objeto suspirou... Hoi-To teve um pequeno sorriso. Suas mãos delicadas puseram o cubo de volta
sobre a mesa branca.
Agora o objeto falava. Uma voz feminina falava em voz baixa, numa língua desconhecida. Nasceu uma
música, semelhante ao sopro de um vento ligeiro numa floresta povoada de pássaros e de harpas eólias. E
sobre a face superior do cubo, como projetada do interior, uma imagem surgiu: o rosto da moça que falava.
Parecia-se com aquele que tinham encontrado dentro do ovo. Mas não era ela. Sorriu e apagou-se,
substituída por uma flor estranha, que por sua vez se derreteu numa cor movediça. A voz da mulher
continuava. Não era uma canção, não era uma poesia, era ao mesmo tempo um e outro, era coisa simples e
natural como o barulho de um riacho ou de chuva. E todas as faces do cubo se iluminavam
simultaneamente, mostrando uma mão, uma flor, um sexo, um pássaro, um seio, um rosto, um objeto que
mudava de forma e de cor, uma forma sem objeto, uma cor sem forma.
Todos olhavam e escutavam, interessados. Era o desconhecido, o inesperado, e os tocava
profundamente, como se esse conjunto de imagens e de sons tivesse sido composto especialmente para
cada um, segundo suas aspirações mais secretas e profundas, ultrapassando todas as convenções e
barreiras.
Hoover sacudiu a cabeça, pigarreou e tossiu.
– Que transistor mais gozado – disse ele. – Desligue esse troço.
Hoi-To retirou a varinha do tubo. O tubo apagou-se e. silenciou.

No quarto da enfermaria, aquecido a trinta graus, a mulher, nua, jazia estendida sobre um leito estreito.
Eletrodos, placas, pulseiras, fixados nos seus pulsos, nas têmporas, nos pés, nos braços, ligavam-na por
meio de espirais e de ziguezagues aos fios dos aparelhos de observação.
Duas enfermeiras massageavam os músculos de suas coxas. Um massagista friccionava os músculos dos
seus maxilares. Uma outra enfermeira passava sobre o seu pescoço um aparelho de raios infravermelhos.
Van Houcke apalpava-lhe suavemente a parede do ventre. Os médicos, as enfermeiras, os técnicos,
transpiravam na atmosfera superaquecida, irritados com esse desmaio que se prolongava. Trocavam
olhares, esperavam, davam sua opinião em voz baixa. Simon olhava a mulher, olhava aqueles que a
cercavam, que a tocavam. Apertou os punhos e os maxilares.
– Seus músculos respondem – disse Van Houcke. – Diríamos que ela está consciente...
Moissov veio para a cabeceira do leito, inclinou-se sobre a moça, ergueu uma pálpebra, depois a outra...
– Ela está consciente! – disse ele. – Ela fecha os olhos voluntariamente... não está mais nem desmaiada
nem adormecida...
– Por que então fecha os olhos? – perguntou Forster.
Simon explodiu:
– Porque está com medo! Se queremos parar de lhe meter medo, é preciso parar de tratá-la como um
animal de laboratório!
Fez um gesto brusco em direção às cinco pessoas reunidas ao redor do leito.
– Saiam daí! Deixem-na tranqüila!
Van Houcke protestou. Lebeau interveio:
– Ele talvez tenha razão... Estudou psicoterapia durante dois anos com Pèrier... Talvez esteja mais
capacitado que nós. Vamos! Tirem tudo isso daí...
Moissov no mesmo momento retirou os elétrodos do encefalograma. As enfermeiras desembaraçaram
o corpo estendido de todos os outros fios, que partiam dele como de uma teia de aranha. Simon pegou um
lençol que estava enrolado nos pés da cama e ergueu-o delicadamente até os ombros da moça, deixando
os seus braços de fora. Ela usava no dedo maior um grande anel de ouro que tinha a forma de uma
pirâmide truncada. Simon pegou a outra mão entre as suas, a mão esquerda, a mão nua, e a segurou como
se segura um passarinho perdido ao qual se queira infundir confiança.
Lebeau, sem barulho, fez sair as enfermeiras e os técnicos. Trouxe uma cadeira para perto de Simon,
recuou até a parede e fez sinal aos outros médicos para que o imitassem.
Van Houcke sacudiu os ombros e saiu.
Simon sentou-se, deixou sobre o leito suas mãos que seguravam sempre a da mulher, e começou a
falar. Muito carinhosamente, quase cochichando. Muito docemente, muito ardentemente, muito
calmamente, como a uma criança doente que necessita de carinho durante os pesadelos da febre.
– Nós somos amigos... – disse ele. – Você não compreende o que eu lhe digo, mas você compreende
que eu lhe falo como um amigo... somos amigos... você pode abrir os olhos... pode olhar nossos rostos...
nós queremos o seu bem... tudo vai bem... você vai ver... pode acordar... nós somos seus amigos...
queremos fazê-la feliz... nós a amamos...
Ela abriu os olhos e olhou-o.

Lá embaixo tinham examinado, pesado, medido e fotografado diversos objetos cujo uso não havia sido
compreendido. Era agora a vez de uma espécie de luva de três dedos. O polegar, o indicador e um buraco
maior para o dedo grande, anular e mínimo juntos. Hoover ergueu o objeto.
– Luva para a mão esquerda – disse ele, apresentando à objetiva da câmara registradora.
Procurou com os olhos a luva da mão direita. Não a via.
– Retificação – acrescentou em tom brincalhão. – Luva para um maneta!...
Colocou a mão esquerda no interior da luva, e quis dobrar os dedos. O indicador permaneceu duro,
tirou o polegar, os três outros dedos solidários dobraram-se em direção à palma. Houve um choque
abafado, luminoso e sonoro, e um berro. O romeno lonesco, que trabalhava diante de Hoover, voava no ar,
os braços abertos, as pernas retorcidas, como projetado por uma força enorme, e foi estatelar-se contra os
aparelhos, despedaçando-os.
Hoover, estupefato, ergueu a mão para olhá-la. Com um estrondo enorme, a parte superior da parede
que estava diante dele e a metade do teto ficaram pulverizados.
Ele teve então o reflexo certo. Pouco antes de fazer saltar o resto do teto e sua própria cabeça,
desdobrou os dedos...
O ar deixou de ficar vermelho.
– Bem... vejam só! – disse Hoover. Segurava com o braço esticado, como se fosse um objeto estranho e
horrível, sua mão enluvada.
Ela tremia.
– A weapon!... – exclamou. A máquina traduziu em dezessete línguas:
– Uma arma!...

Ela havia fechado os olhos, porém não mais para se esconder, mas sim por cansaço. Parecia dominada
por uma fadiga infinita:
– Será preciso alimentá-la – disse Lebeau. – Mas como é que vamos saber o que eles comiam?
– Vocês todos já a viram bastante para saber que ela é mamífera! – acrescentou Simon, furioso. –
Dêem-lhe leite.
De súbito Simon estacou. Todos prestaram atenção. Ela falava.
Seus lábios se moviam. Falava com uma voz muito fraca. Parava. Recomeçava. Adivinhavam que
estivesse repetindo sempre a mesma frase. Abriu seus olhos azuis e parecia que o céu havia entrado no
quarto. Olhou para Simon e repetiu a frase. Diante da evidência de que não tinha a menor possibilidade de
se fazer compreender, fechou os olhos e calou-se.
Uma enfermeira trouxe uma tigela de leite quente. Simon pegou-a, e encostou cuidadosamente seu
calor nas costas da mão que repousava sobre o lençol. Ela olhou. A enfermeira ergueu-lhe o busto e
sustentou-a. Ela quis segurar a tigela, porém os músculos delicados das suas mãos ainda não haviam
readquirido as forças. Simon levantou a tigela para ela. Quando o odor lhe chegou às narinas, ela
sobressaltou-se, fez uma careta de nojo e recuou. Olhou à sua volta e repetiu a mesma frase antiga.
Tentava visivelmente indicar alguma coisa...
– É água! Ela quer água! – disse Simon, percebendo subitamente a evidência.
Era exatamente o que ela queria. Tomou um copo e mais a metade de um segundo.
Depois que se deitou novamente, Simon colocou a mão sobre o seu próprio peito e disse
carinhosamente o seu nome:
– Simon...
Repetiu duas vezes a palavra e o gesto. Ela compreendeu. Olhando Simon, ergueu sua mão esquerda,
colocou-a na sua própria testa e disse:
– Elea...
Sem parar de olhá-lo, ela repetiu o gesto e disse novamente:
– Elea...

Os homens que haviam ido buscar o corpo de Ionescu para o transportar tiveram a impressão de pegar
um invólucro de borracha cheio de areia e cascalho. Ele tinha só um pouco de sangue nas narinas e nos
cantos da boca, porém todos os ossos estavam quebrados e o interior do corpo estava reduzido a farinha.
Já haviam se passado vários dias desde o acidente, mas Hoover ainda se surpreendia examinando
furtivamente sua mão esquerda e baixando os três dedos na direção da palma, o indicador e o polegar
esticados. Se se encontrava nas proximidades de uma garrafa de scotch, ou mesmo de qualquer brandy,
apressava-se em buscar nelas o conforto do qual tinha grande necessidade. Era preciso uma gigantesca
força de caráter para suportar a fatalidade que o havia transformado duas vezes, em algumas semanas,
num assassino. Até então nunca matara ninguém, nunca matara nada, nem um coelho na caça ou um peixe
na pesca, absolutamente nada.
A arma e os objetos ainda não examinados tinham sido recolocados, prudentemente, na estante onde
haviam sido encontrados. Os operários reconstruíam a sala de reanimação e os técnicos consertavam o que
podiam. Mas vários aparelhos estavam inteiramente destruídos. Fez-se necessário esperar que fossem
substituídos para iniciarem as operações sobre o segundo ocupante do ovo.
Elea – esse era provavelmente o seu nome – recusava todos os alimentos. Tentaram introduzir por
intermédio de uma sonda um pouco de caldo no seu estômago. Ela se debateu tão violentamente que
tiveram que amarrá-la. Mas não chegaram a conseguir que ela abrisse os maxilares. Foi necessário fazer a
sonda penetrar por uma narina. Mal o caldo penetrou no seu estômago, ela o vomitou.
Simon a princípio havia protestado contra essas violências.
Depois se conformara. O resultado convenceu-o de que tinha razão e de que aquele não era um método
certo. Enquanto os seus colegas chegavam à conclusão de que o sistema digestivo da mulher do passado
não era feito para digerir os alimentos do presente, e analisavam o caldo rejeitado na esperança de neles
encontrar ensinamentos sobre o seu suco gástrico, Simon repetia para si próprio a única pergunta que, na
sua opinião, tinha valor:
– Como, como comunicar-se?
Comunicar-se com ela, escutá-la, compreendê-la, saber do que ela necessitava. Como, como fazê-lo?
Presa dentro de uma camisola, os braços e as coxas mantidos por correias, ela não reagia mais. Imóvel,
as pálpebras novamente fechadas sobre o imenso céu dos seus olhos, parecia estar no auge do medo e da
resignação. Uma agulha fina enfiada na veia do seu braço direito injetava-lhe o soro alimentador contido
numa ampola suspensa na cabeceira do leito. Simon olhava com raiva o apetrecho bárbaro, atroz, que era,
no entanto, o único meio de prolongar o momento em que ela iria morrer de fome. Ele não suportava mais
aquilo. Era necessário...
Saiu bruscamente do quarto, atravessou a enfermaria e penetrou num corredor de onze metros de
largura e trezentos de comprimento, que servia de coluna vertebral à EPI-2.
Tinham-lhe dado o nome de Avenida Amundsen, em homenagem ao primeiro homem que estivera no
pólo sul. O primeiro, pelo menos ao que se supunha. Ruas pequenas e portas de edifícios se abriam à
esquerda e à direita. Algumas pequenas plataformas elétricas baixas, com grossos pneus amarelos, serviam
para transportar o material, segundo a necessidade. Simon saltou numa delas, abandonada perto da porta
da enfermaria, e se apoiou sobre a manivela. O veículo arrancou, ronronando como um gato. Alcançando a
superfície, Simon saltou sobre o gelo áspero e começou a correr. A máquina tradutora estava quase na
extremidade da avenida. A pilha atômica vinha a seguir, depois de uma curva de cento e vinte graus.
Entrou no complexo da tradutora, abriu seis portas antes de encontrar a certa, respondendo com um
gesto irritado às perguntas feitas, e parou finalmente numa peça estreita cujo muro no fundo, um muro
mais alto, era forrado de borracha e plástico, e coberto de lã. Havia outro muro de vidro e um terceiro, de
metal. Diante deste havia uma mesa com mostradores, mosaicos, botões, manivelas, visores, microfones,
botões para ligar instrumentos, cordões. Diante da mesa, uma cadeira com rodas e, sobre a cadeira, Lukos,
o filólogo turco.
Era uma inteligência de gênio num corpo de estivador. Dava, mesmo sentado, a impressão de uma força
prodigiosa. A cadeira desaparecia sob a massa de músculos das suas nádegas. Ele parecia capaz de carregar
nas costas um cavalo ou um boi, ou quem sabe os dois ao mesmo tempo.
Fora ele que concebera o cérebro da máquina tradutora. Os americanos não tinham acreditado, os
europeus não tinham podido, os russos tinham desconfiado, e afinal os japoneses o tinham ajudado e
haviam fornecido todos os meios.
O exemplar da EPI-2 era o décimo segundo aparelho em serviço nos últimos três anos, e o mais
aperfeiçoado. Traduzia dezessete línguas, mas Lukos conhecia, ele próprio, dez vezes ou talvez vinte vezes
mais. Possuía o gênio do poliglotismo assim como Mozart tinha o gênio da música. Diante de uma língua
nova, bastava-lhe um documento, uma referência permitindo-lhe uma comparação, e algumas horas, para
ele, por deduções e analogias, começar a compreender sua estrutura e logo considerar o vocabulário como
familiar. E no entanto emudecia diante do idioma de Elea.
Dispunha de dois elementos de trabalho que lá estavam, colocados diante dele: o cubo cantante e um
outro objeto que não era maior que um livro de bolso. Sobre um dos lados do prato desenrolava-se uma
fita luminosa coberta de linhas regulares: cada linha era composta de uma série de sinais que pareciam
constituir uma escrita. Imagens, visíveis em três dimensões, representando pessoas em ação, acabavam de
tornar esse objeto análogo a um livro ilustrado.
– E então? – perguntou Simon.
Lukos sacudiu os ombros. Há dois dias que desenhava sobre a tela do registrador da tradutora grupos de
sinais que pareciam não ter nenhuma relação uns com os outros. Essa linha estranha parecia ser composta
de palavras completamente diferentes e que não se repetiam jamais.
– Há qualquer coisa que me escapa – resmungou ele. – E a ela também.
Bateu com sua mão pesada no metal da mesa, depois escorregou uma varinha de madeira para dentro
do cubo musical. Dessa vez foi uma voz de homem que começou a falar, e o rosto que apareceu era o de
um homem imberbe, com grandes olhos azuis bem claros, cabelos negros, caindo até os ombros.
– A solução talvez esteja aí – disse Lukos. – A máquina gravou todas as varetas. São quarenta e sete.
Cada uma comporta milhares de sons. A escrita tem mais de dez mil palavras diferentes. Se é que são
palavras!... Quando eu acabar de fazê-la engolir tudo, será preciso que ela os compare um a um, e por
grupos, a cada som e cada grupo de sons, até que encontre uma idéia geral, uma regra, um caminho,
alguma coisa para ser seguida. Ajudarei, é claro, examinando suas hipóteses e propondo-lhe outras. As
imagens ajudarão a nós dois...
– Dentro de quanto tempo você espera alcançar resultado? – perguntou Simon com ansiedade.
– Dentro de alguns dias... algumas semanas, isso depende.
– Estará morta! – gritou Simon. – Ou então louca! É preciso conseguir depressa! Hoje! Amanhã, dentro
de algumas horas! Sacuda sua máquina! Mobilize toda a base! Há muitos técnicos aqui!
Lukos olhou como Menuhin teria olhado alguém que lhe pedisse para “sacudir” seu Stradivarius para
fazê-lo tocar “mais depressa” um prestíssimo de Paganini.
– Minha máquina faz o que sabe fazer – disse ele. – Não é de técnicos que ela precisa. Isso ela tem o
suficiente. O que ela precisa é de cérebros...
– Cérebros? Mas não há um lugar no mundo onde você possa encontrar melhores do que os que estão
aqui! Vou pedir uma reunião imediata do conselho. Você exporá o problema...
– São cérebros pequenos, senhor doutor, são cérebros pequenos de homens. Precisariam de séculos de
discussão antes de ficarem de acordo sobre a direção de uma vírgula... Quando digo cérebro, é no dela que
penso. – Mais uma vez acariciou a beira da mesa e acrescentou:
– No dela e no dos seus semelhantes.

Um novo SOS partiu da antena da EPI-1. Pedia a colaboração imediata dos maiores cérebros eletrônicos
do mundo.
As respostas chegaram rapidamente de todos os cantos. Todos os computadores disponíveis foram
colocados a serviço de Lukos e de sua equipe. Mas aqueles que estavam disponíveis não eram
evidentemente nem os maiores nem os melhores. Destes obtiveram promessas: quando tivessem um
instante livre, entre dois programas, não se poderia exigir mais do que isso. Fariam o impossível, diziam.
Simon fez entrar três câmaras no quarto de Elea. Uma focalizava a agulha enfiada no braço a fim de dar-
lhe o soro, último recurso para salvar a mulher. A outra sobre o rosto, filmando as faces que tinham se
tornado encovadas. A terceira era dirigida ao corpo desnudo, e tragicamente emagrecido.
Fez essas imagens serem enviadas pela antena da EPI-3, através do satélite Trio, para todo o mundo. E
falou:
– Ela vai morrer. Vai morrer porque não a compreendemos. Morre de fome, e nós a deixamos morrer
porque não a compreendemos quando nos diz com que poderíamos nutri-la. Vai morrer porque aqueles
que poderiam nos ajudar a entendê-la não querem nos transferir um minuto do tempo dos seus preciosos
computadores, ocupados a comparar o preço do custo líquido de um cano de cabeça octogonal com o de
um de cabeça hexagonal ou a calcular a melhor divisão dos pontos de venda de lenços de papel, segundo o
sexo, a idade e a cor dos habitantes! Olhem-na, olhem-na bem, vocês não a verão mais, ela vai morrer...
Nós, os homens de hoje, mobilizamos uma potência enorme, e as maiores inteligências do nosso tempo,
para ir buscá-la no seu sono no fundo do gelo, para depois matá-la. Vergonha, vergonha para nós.
Calou-se um instante, e repetiu suavemente, com uma voz arrastada:
– Vergonha para nós...
John Gartner, diretor-presidente da Mecânica e Eletrônica Intercontinental, viu a emissão a bordo do
seu jato particular. Estava indo de Detroit para Bruxelas. Dava suas instruções aos colaboradores que o
acompanhavam e aos que recebiam, ao longe, sua mensagem codificada. A trinta mil metros acima dos
Açores, tomava seu café da manhã: acabava de sorver com um canudinho a gema de um ovo preparado
num envelope esterilizado transparente. Agora tomava seu suco de laranja com uísque.
– This boy is right6 – disse. – Vergonha para nós se não fizermos alguma coisa.
Deu ordem de pôr imediatamente à disposição da EPI-1 todos os grandes calculadores do seu truste,
que possuía sete na América, nove na Europa, três na Ásia, e um na África.
Seus colaboradores, desesperados, expuseram-lhe as perturbações horríveis que isso iria causar em
todos os domínios da atividade de sua firma. Depois ele iria precisar de meses para se reorganizar
novamente. E haveria o desgaste, que ninguém poderia consertar.
– Não tem importância – disse ele. – Vergonha para nós se não fizermos nada.
John Gartner agia naquela hora, acima de tudo, como ser humano, mas também fazia valer seu tato de
grande homem de negócios. Deu instruções para que sua decisão fosse levada ao conhecimento do mundo
inteiro, por todos os meios, o mais depressa possível.
No domínio dos negócios a popularidade e as vendas da Mecânica e Eletrônica Intercontinental
aumentaram dezessete por cento.
Por outro lado, a decisão do presidente da MEI despertou uma reação em cadeia. Todos os grandes
trustes mundiais, os centros de pesquisas, as universidades, os ministérios, o próprio Pentágono, e o Centro
Russo de Balística fizeram Lukos saber, nas horas que se seguiram, que seus cérebros eletrônicos estavam à
sua disposição. A única coisa que pediam, se fosse possível, era que ele se apressasse em requisitá-los.
Era uma recomendação irrisória. Todos no 612 sabiam que se lutava contra a morte. Elea enfraquecia
de hora em hora. Aceitara experimentar outros alimentos, mas seu estômago não os retinha. E ela repetia
sempre a mesma seqüência de sons que pareciam compor duas palavras, talvez três. Compreender estas
palavras, era para isso que trabalhava a totalidade da mais apurada técnica de todas as nações.
Lá nos confins da Terra, Lukos tentou e conseguiu a mais fantástica associação. Baseado em suas
indicações, todos os grandes calculadores foram ligados uns aos outros, por fio, sem fio, ondas-imagens e
ondas-sons, com relés em todos os satélites estacionários. Durante algumas horas, os grandes cérebros a
serviço de firmas concorrentes, Estados-Maiores inimigos, ideologias opostas, de raças que se detestavam,
uniram-se numa só inteligência imensa que circundava a Terra inteira e o céu em volta dela com a rede de
suas comunicações nervosas. Trabalhavam com toda a sua capacidade inimaginável, com o único e
desinteressado objetivo de compreender três palavras...
Para entender essas três palavras, era necessário compreender a língua completamente desconhecida.
Extenuados, sujos, os olhos vermelhos de sono, os técnicos nos emissores e receptores da EPI-1 lutavam
contra o tempo e contra o impossível. Sem cessar, injetavam nos circuitos da máquina novas fornadas de
cálculos e de problemas, tudo aquilo que a tradutora já havia examinado, além das novas hipóteses de
Lukos. O cérebro genial do poliglota turco parecia ter-se dilatado, à proporção do seu imenso homólogo
eletrônico. Comunicava-se com ele numa velocidade incrível, freada somente pelos embaraços dos
emissores e dos relês contra os quais se tomava de cólera furiosa. Parecia-lhe que poderia passar sem eles,
e entender-se diretamente com a mulher. Essas duas inteligências extraordinárias, a que vivia e a que
parecia viver, faziam mais do que comunicar, estavam niveladas e muito acima dos demais. Elas se
compreendiam.
Simon ia da enfermaria para a tradutora, da tradutora para a enfermaria, impaciente, aborrecendo os
técnicos extenuados, que o mandavam passear, e a Lukos, que não lhe respondia mais.
Enfim, houve um momento em que, bruscamente, tudo se tornou claro. Entre milhares de
combinações, o cérebro encontrou uma lógica e tirou conclusões com a rapidez da luz, combinou-as,
experimentou-as e, em menos de dezessete segundos, entregou à tradutora todos os segredos da língua
desconhecida. Depois disso, o cérebro entrou em pane. Os relês enfraqueceram, as ligações caíram, a rede
nervosa que envolvia o mundo rompeu-se e se reabsorveu. Do grande cérebro não restou nada a não ser
seus gânglios independentes, que voltaram a ser o que eram antes, socialistas ou capitalistas, comerciantes
ou militares, ou ao serviço de interesses e de desconfianças.
Entre as quatro paredes de alumínio da grande sala da máquina tradutora reinava o mais absoluto
silêncio. Os dois técnicos de serviço dos armários registradores olhavam Lukos, que pousava sobre a platina
receptora a pequena bobina onde estavam registradas as três palavras de Elea.
Um microfone as havia recolhido tal como ela as pronunciava, cada vez com menos força, cada vez com
menos freqüência...
Houve um pequeno clique seco quando foi colocada no lugar. Simon, as duas mãos apoiadas nas costas
da cadeira de Lukos, impacientou-se mais uma vez.
– E então?...
Lukos abaixou o comutador de partida. A bobina pareceu fazer um quarto de volta, mas já estava vazia e
o impressor fazia ruído. Lukos estendeu a mão e arrancou a folha sobre a qual a máquina tradutora acabara
de imprimir, num microssegundo, a tradução do mistério.
Ele dava um olhar rápido no texto quando Simon o arrancou de sua mão e leu a tradução francesa.
Consternado, balançou a cabeça e olhou para Lukos, que tinha tido tempo de ler em albanês, inglês,
alemão e árabe...
Retomou a folha e leu a continuação. Era a mesma coisa. O mesmo absurdo em dezessete línguas. Não
fazia mais sentido em espanhol do que em russo ou chinês. Em francês dava o seguinte:
DE COMER MÁQUINA.
Simon não tinha mais força para falar em voz alta.
– Esses cérebros... – sua voz era quase um murmúrio. – Esses grandes cérebros... de merda...
A cabeça baixa, os ombros caídos, arrastou os pés em direção à parede mais próxima, ajoelhou-se,
estendeu-se, virou as costas para a luz e dormiu, com o nariz enfiado na parede de alumínio.
Dormiu nove minutos. Acordou bruscamente e levantou-se gritando:
– Lukos!
Lukos estava lá, introduzindo na máquina tradutora novos testes, para ler e decifrar as traduções dadas
pelo impressor.
Eram pedaços de uma história num estilo surpreendente, que se desenrolava num mundo tão estranho
que parecia fantástico.
– Lukos – disse Simon – , será que você fez isso tudo por nada?
– Não – respondeu Lukos – , olhe...
Estendeu-lhe as folhas impressas.
– É um texto, isso não são garatujas! O cérebro não é idiota, ele compreendeu bem a língua e a
tradutora a assimilou muito bem! Veja, ela traduziu... fielmente... exatamente...: de comer máquina.
– De comer máquina...
– Isso quer dizer alguma coisa!... Ela traduziu palavras que significam alguma coisa!... Não
compreendemos porque nós é que somos idiotas!
– Pode ser... pode ser... – disse Simon. – Escute...
De repente, na esperança que renascia, começou tratá-lo como a um irmão...
– Você pode incluir essa língua dentro de um dos seus comprimentos de onda?
– Não tenho nenhum livre...
– Libere um! Suprima uma língua!
– Qual?
– Qualquer uma! O coreano, o tcheco, o sudanês ou o francês!
– Eles ficarão furiosos!
– Azar, azar, azar para as suas raivas! Você acha que é o momento para a gente se preocupar por criar
uma raiva nacional?
Depois de uma pausa rápida:
– Ionescu!
– O quê?
– Ionescu... Ele morreu... era o único que falava romeno. Suprima o romeno e eu pego a sua onda.
Lukos levantou-se, sua cadeira de aço pareceu gemer de alegria.
– Alô!
O gigante turco gritava no interfone, à meia parede:
– Alô, Haka! Você está dormindo, bom Deus!
Berrou e começou a insultar em turco. Uma voz sonolenta respondeu. Lukos deu-lhe instruções em
inglês e depois virou-se para Simon:
– Estará pronto dentro de dois minutos...
Simon atirou-se em direção à porta.
– Espere! – disse Lukos.
Abriu um armário, pegou uma caixinha com um emissor e um auscultador de orelha, com as cores
romenas, e deu-o a Simon.
– Leve para ela...
Simon apanhou os dois instrumentos minúsculos.
– Preste atenção – disse ele – para que a sua maquininha não comece a berrar dentro dos tímpanos
dela.
– Eu prometo – retrucou Lukos. – Supervisionarei... um sussurro... nada mais que um sussurro...
Pegou nas suas mãos duras como tijolos as mãos daquele que tinha se tornado seu amigo durante essas
últimas horas comuns de esforços monstruosos e apertou-as carinhosamente.
– Eu prometo... Pode ir.
Alguns minutos mais tarde, Simon entrava no quarto de Elea, depois de ter alertado Lebeau, que fora
por sua vez chamar Hoover e Leonova.
A enfermeira, que estava sentada à cabeceira de Elea, lia um romance da coleção sentimental.
Levantou-se vendo a porta abrir e fez sinal a Simon para entrar em silêncio. Tomou um ar profissional
preocupado ao olhar o rosto de Elea. Na realidade ela pouco se importava, estava ainda pensando no seu
livro, a confissão desesperada de uma mulher abandonada pela terceira vez; sofria junto com a heroína da
novela e maldizia os homens, inclusive aquele que acabava de entrar.
Simon inclinou-se para Elea, cujo rosto abatido pela desnutrição havia se tornado muito pálido. Suas
narinas estavam quase translúcidas. Seus olhos, fechados. A respiração apenas erguia o peito. Chamou
docemente pelo seu nome.
– Elea... Elea...
Suas pálpebras tremeram ligeiramente. Ela estava consciente. Ela o ouvia.
Leonova entrou seguida de Lebeau e de Hoover, que tinha uma pilha de fotografias ampliadas.
Mostrou-as de longe a Simon. Este fez um gesto de aquiescência com a cabeça, e pareceu dar novamente
toda a sua atenção a Elea. Colocou um microemissor sobre o lençol azul, bem perto do rosto macilento,
ergueu cuidadosamente um cacho do cabelo, descobrindo a orelha esquerda, semelhante a uma flor
pálida, e introduziu delicadamente o aparelho de escuta dentro da sombra rosa do conduto auditivo.
Ela esboçou um reflexo para sacudir a cabeça e rejeitar o que lhe parecia ser o prenuncio de uma nova
tortura. Mas desistiu, esgotada.
Simon logo falou, para acalmá-la. Disse muito baixo, em francês:
– Você me compreende... Agora você me compreende!...
E no ouvido de Elea soou uma voz masculina que cochichava no seu ouvido:
– Agora você me compreende... você me compreende... e eu posso compreendê-la...
Aqueles que a olhavam viram sua respiração parar, depois recomeçar. Leonova, cheia de compaixão,
aproximou-se do leito, pegou a mão de Elea e começou a falar-lhe em russo com todo o calor do seu
coração.
Simon ergueu a cabeça, olhou-a com olhos ferozes, e fez um sinal para que ela se afastasse. Leonova
obedeceu, um pouco espantada. Simon estendeu a mão para as fotografias. Hoover alcançou-as.
Percorreu o ouvido esquerdo de Elea um tom suave de compaixão recitado a toda velocidade por uma
voz feminina que ela compreendia. No seu ouvido direito uma torrente pedregosa que ela não
compreendia; depois, o silêncio. E em seguida a voz masculina recomeçou:
– Você pode abrir os olhos?... Você pode abrir os olhos?... Tente...
Calou-se. Todos a olharam. Suas pálpebras tremiam.
– Tente... mais uma vez... somos seus amigos..., coragem...
E os olhos se abriram.
Não conseguiram se acostumar. Não era possível se acostumar. Nunca haviam visto olhos tão grandes,
de um azul tão profundo. Tinham empalidecido um pouco, não era mais aquele azul do fundo da noite, mas
sim um azul de depois do crepúsculo, do lado de onde a noite vem, depois da tempestade, quando o
grande vento lava o céu com suas vagas. E os peixes de ouro aí ficam presos.
– Olhe!... Olhe!... – dizia a voz. – Onde está a máquina de comer?
Diante de seus olhos, duas mãos seguravam uma imagem, substituíam-na por uma outra, uma outra...
Eram imagens reproduzidas dos objetos que lhe eram familiares.
– Máquina de comer?... Onde está a máquina de comer?
Comer? Viver? Por quê? Para quê?
– Olhe!... Olhe!... Onde está a máquina de comer?... Onde está a máquina de comer?
Dormir... esquecer... morrer.
– Não! Não feche os olhos! Olhe!... Olhe mais uma vez... são os objetos que encontramos com você...
um deles deve ser a máquina de comer... Olhe!... Vou mostrá-los mais uma vez... se você vir a máquina de
comer, feche os olhos e depois abra-os...
Na sexta fotografia ela fechou os olhos e os reabriu.
– Rápido! – disse Simon.
Estendeu a fotografia a Hoover, que se precipitou, para fora do quarto com a velocidade de um raio.
Era um dos objetos que ainda não tinham sido examinados e havia sido guardado nas prateleiras ao
lado da arma.

É bom explicar rapidamente o que tornou tão difícil decifrar e compreender a língua de Elea. É que na
realidade não era uma língua, e sim duas: a língua feminina e a língua masculina, totalmente diferentes
uma da outra tanto na sua sintaxe quanto no vocabulário. Bem entendido, os homens e as mulheres
compreendiam uma e outra, mas os homens falavam a língua masculina, que possuía gêneros próprios, e
as mulheres falavam a língua feminina, que tinha, por sua vez, feminino e masculino distintos. E na escrita,
às vezes a língua masculina e às vezes a língua feminina eram empregadas segundo a hora, a estação ou o
lugar onde se passava a ação, segundo também a cor, a agitação, a temperatura, a calma, a montanha ou o
mar. Outras vezes as duas línguas se misturavam no seu emprego.
É difícil dar um exemplo da diferença entre a língua masculina e a língua feminina, visto que dois termos
equivalentes não podiam ser traduzidos a não ser pela mesma palavra. O homem diria: “Que será sem
espinhos”, a mulher diria: “Pétalas do sol poente” e um e outro compreenderiam que se tratava de uma
rosa. É um exemplo aproximativo: no tempo de Elea os homens ainda não haviam inventado a rosa.

“De comer máquina.” Eram três palavras, mas, segundo a lógica da língua de Elea, era também uma só
palavra, que na nossa gramática seria chamada de “substantivo” e que servia para designar “o-que-é-o-
produto-da-máquina-de-comer”. A máquina de comer era a-máquina-que-produz-o-que-se-come.
A máquina estava pousada sobre o leito, diante de Elea, que haviam ajudado a sentar e que se
sustentava apoiada em travesseiros. Haviam lhe dado “roupas” encontradas nas prateleiras, mas ela não
tinha tido força para vesti-las. Uma enfermeira tinha querido vestir-lhe um suéter, mas ela teve um gesto
de recuo e no seu rosto surgiu uma tal expressão de repulsa que não insistiram. Tinham-na deixado nua.
Seu busto emagrecido, seus pequenos seios apontados para o céu, eram de uma beleza quase espiritual,
sobrenatural. Para que ela não tivesse frio, Simon havia aumentado a temperatura do quarto. Hoover
transpirava como um bloco de gelo sobre uma grelha. Já havia molhado sua camisa, mas as camisas dos
outros também estavam prontas para ser torcidas. Uma enfermeira distribuiu guardanapos brancos para
enxugar os rostos. As câmaras estavam lá. Uma delas mostrou em primeiro plano a máquina de comer. Era
uma espécie de meia-esfera verde, salpicada de um grande número de botões coloridos, dispostos em
espiral, indo do cimo até a base, e que reproduziam, em várias centenas de nuanças diferentes, todas as
cores do espectro. No alto encontrava-se um botão branco. A base repousava sobre um pedestal em forma
de cilindro pequeno. O conjunto tinha o volume e o peso de uma metade de melancia. Elea tentou erguer
sua mão esquerda. Não conseguiu. Uma enfermeira quis ajudá-la. Simon afastou-a e tomou a mão de Elea
na sua.
Um grande primeiro plano da mão de Simon segurando a mão de Elea e conduzindo-a em direção à
máquina de comer.
Primeiro plano do rosto de Elea. Seus olhos. Lanson não podia se desviar. Tinha sempre uma ou outra
de suas câmaras obedecendo a seu impulso semi-inconsciente, voltando a se fixar sobre a insondável noite
desses olhos de outros tempos. Ele não os enviava para a antena. Guardava-os numa tela de controle. Só
para ele.
A mão de Elea pousou no cimo da esfera. Simon a guiava como a um pássaro. Ela tinha vontade, mas
não tinha força. Ele sentia aonde ela queria ir, e o que queria fazer. Ela o guiava, ele a conduzia. O longo
dedo indicador pousou sobre o botão branco, depois tocou os botões de cor, daqui, dali, de cima, de baixo,
do meio...
Hoover anotava as cores num envelope úmido tirado do seu bolso. Mas não tinha nem um nome para
diferenciar os três tons de amarelo que ela tocou um após o outro. Desistiu.
Ela voltou para o botão branco. Descansou aí, quis apoiar-se, não conseguiu. Simon ajudou-a. Mal o
botão afundou-se, houve um ligeiro barulho, e pela abertura um pequeno prato de ouro retangular caiu.
Continha cinco esférulas de matéria translúcida, vagamente rosada, um minúsculo garfo de ouro, com dois
dentes.
Simon pegou o garfo e espetou uma das pequenas esferas. Esta ofereceu ligeira resistência, depois se
deixou traspassar como uma cereja. Ele levou-a até os lábios de Elea...
Ela abriu a boca com esforço. Foi sacrifício fechá-la sobre o alimento. Não fez nenhum movimento de
mastigação. Adivinhou-se que a esfera devia estar se fundindo na sua boca. Depois a laringe subiu e
desceu, visível na garganta emagrecida.
Simon enxugou o rosto, alcançou-lhe a segunda esfera...
Alguns minutos mais tarde, ela utilizou sem ajuda a máquina de comer. Tocou levemente alguns botões
diferentes, obteve esferas azuis, absorveu-as rapidamente, repousou alguns minutos, depois acionou
novamente a máquina.
Recuperava as forças com uma rapidez incrível. Parecia que pedia à máquina mais do que alimento:
pedia o necessário para tirá-la imediatamente do estado de fraqueza no qual se encontrava. Tocava em
botões diferentes, obtendo de cada vez um número diferente de esferas de cores variadas. Ela as absorvia,
bebia água, respirava profundamente, descansava alguns minutos e recomeçava.
Todos os que estavam no quarto, e aqueles que seguiam a cena sobre a tela da Sala de Conferências,
viam literalmente a vida refluir, seu busto desabrochar, seu rosto se encher, seus olhos retomarem a antiga
cor profunda.
Máquina de comer: era uma máquina para dar comida. Talvez fosse também uma máquina para curar.
Os sábios de todas as categorias ferviam de impaciência. As duas amostras da civilização antiga, que eles
tinham visto se manifestar – a arma e a máquina de comer –, excitavam loucamente sua imaginação.
Ardiam de impaciência para interrogar Elea e abrir essa máquina, que, pelo menos, não era perigosa.
Quanto aos jornalistas, depois da morte de Ionescu, que lhes havia fornecido sensação para todas as
ondas e todos os jornais, viam com encantamento a máquina de comer e seus efeitos sobre Elea como uma
nova fonte de informação não menos extraordinária, porém desta vez mais otimista. Sempre o inesperado,
o branco depois do negro; essa expedição era decididamente um bom negócio jornalístico.
Elea, enfim, afastou a máquina, e olhou todos aqueles que a cercavam. Fez um esforço para falar,
apenas audível. Recomeçou e cada um ouviu na sua própria língua:
– Vocês me compreendem?
– Sim, oui, yes, da...
Eles balançavam a cabeça – sim, sim, compreendiam...
– Quem são vocês?
– Amigos – disse Simon.
Mas Leonova não se agüentou. Ela pensava numa distribuição geral de máquinas de comer aos povos
pobres, às crianças esfomeadas. Perguntou vivamente:
– Como funciona isto? O que é que você põe lá dentro?
Elea pareceu não compreender ou então considerar as perguntas como um barulho feito por crianças.
Seguiu seu próprio raciocínio. Perguntou:
– Nós devíamos ser dois no abrigo. Eu estava sozinha?
– Não – disse Simon –, vocês eram dois. Você e um homem.
– Onde está ele? Está morto?
– Não, ainda não foi reanimado. Começamos por você.
Elea calou-se um instante. Parecia que a notícia em vez de alegrá-la despertava-lhe certa tristeza.
Ela respirou profundamente e disse:
– Ele é Coban. Eu sou Elea.
Perguntou de novo:
– Vocês... quem são vocês?
E Simon não encontrou outra coisa para responder:
– Somos amigos...
– De onde vocês vêm?
– Do mundo inteiro...
Isto pareceu surpreendê-la.
– Do mundo inteiro? Não compreendo. Vocês são de Gondawa?
– Não.
– De Enisorai?
– Não.
– De onde vocês vêm?
– Eu venho da França, ela da Rússia, ele da América, ele da França, ele da Holanda e...
– Não compreendo... Agora será que existe a paz?
– Hum – fez Hoover.
– Não! – disse Leonova – Os imperialistas...
– Cale a boca! – ordenou Simon.
– Somos obrigados – disse Hoover – a nos defender.
– Saiam! Saiam! Deixem-nos sozinhos, nós os médicos!...
Hoover desculpou-se:
– Somos uns estúpidos!... Desculpe... mas eu fico...
Simon virou-se para Elea:
– O que eles disseram não quer dizer nada. Sim, agora reina a paz... estamos em paz, você está em paz.
Você não tem nada a temer...
Elea deu um profundo suspiro de alívio. Mas foi com certa apreensão visível que formulou a pergunta
seguinte:
– Vocês têm notícias... Notícias dos grandes abrigos? Eles agüentaram?
Simon respondeu:
– Não sabemos. Não temos notícias.
Elea o olhou com atenção para ter certeza de que ele não mentia. Simon compreendeu que não poderia
jamais lhe dizer outra coisa senão a verdade.
Ela começou uma sílaba, depois parou. Queria fazer uma pergunta mas não ousava, porque tinha medo
da resposta.
Olhou para todos, depois para Simon sozinho e perguntou, muito docemente:
– Paikan?
Houve um curto silêncio, depois um clique nas orelhas, e a voz neutra da tradutora – aquela que não era
nem voz de homem nem voz de mulher – falou em dezessete línguas nos dezessete canais:
– A palavra “Paikan” não figura no vocabulário que me foi injetado e não corresponde a nenhuma
possibilidade lógica de neologismo. Tomo a liberdade de supor que se trate de um nome.
Elea ouviu também, na sua língua.
– Mas é claro que é um nome – disse ela. – Onde está ele? Vocês têm notícias dele?
Simon olhou-a gravemente.
– Não temos notícias dele... Quanto tempo pensa que dormiu?
Ela olhou-o com inquietação.
– Alguns dias – respondeu ela.
– Mais... – disse Simon.
De novo o olhar de Elea examinou a decoração ao redor e as personagens que a cercavam. Encontrou o
expatriamento do seu primeiro acordar, tudo insólito, como um pesadelo. Mas ela não podia aceitar a
explicação inverossímil. Devia haver uma outra. Tentou apegar-se ao impossível.
– Dormi quanto tempo?... Semanas?... Meses?...
A voz neutra da tradutora interveio novamente:
– Traduzo aqui aproximadamente. A não ser o dia e o ano, as medidas de tempo que me foram
injetadas são totalmente diferentes das nossas. São igualmente diferentes para os homens e para as
mulheres. Diferentes para o cálculo e para a vida normal, diferentes segundo as estações, e diferentes
segundo a vida e o sono.
– Mais... – disse Simon – muito mais... Você dormiu durante...
– Atenção, Simon! – gritou Lebeau.
Simon parou e refletiu alguns segundos, preocupado, olhando Elea. Depois virou-se para Lebeau:
– Você pensa que...?
– Tenho medo... – disse Lebeau.
Elea, ansiosa, repetiu sua pergunta:
– Dormi durante quanto tempo? Você compreende a minha pergunta?... Desejo saber quanto tempo
dormi... desejo saber...
– Nós compreendemos – respondeu Simon.
Ela calou-se.
– Você dormiu...
Lebeau interrompeu novamente:
– Não estou de acordo!
Colocou a mão sobre o seu microfone para que as palavras não chegassem até a tradutora e sua
tradução aos ouvidos de Elea.
– Você vai lhe dar um choque terrível. É melhor dizer-lhe pouco a pouco...
Simon estava sério. Franzia as sobrancelhas com ar de teimosia.
– Não sou contra o choque – disse ele também fechando o seu microfone com a palma da mão. – Em
psicoterapia preferimos o choque e nunca a mentira, que envenena. E creio que ela agora está bastante
forte...
– Desejo saber... – recomeçou Elea.
Simon virou-se para ela. Disse-lhe abruptamente:
– Você dormiu durante novecentos mil anos.
Ela o olhou com estupefação. Simon não lhe deu tempo para refletir.
– Isto pode lhe parecer extraordinário. A nós também. Mas é a verdade. A enfermeira lerá para você o
relatório da nossa expedição, que a encontrou no fundo de um continente gelado, e o dos laboratórios que
mediram, através de diversos métodos, o tempo que você aí passou...
Falava num tom diferente, escolar, militar, e a voz da tradutora calcava-se na sua, calma, indiferente, no
fundo do ouvido esquerdo de Elea.
– Esta quantidade de tempo não tem medida comum com a duração da vida de um homem, e mesmo
de uma civilização. Não resta nada do mundo em que você viveu. Nem mesmo sua lembrança. É como se
você tivesse sido transportada a outro extremo do universo. Você deve aceitar essa idéia, aceitar os fatos,
aceitar o mundo onde você acordou, e onde tem somente amigos.
Mas ela não o ouvia mais. Tinha se afastado, separado da voz no seu ouvido, desse rosto que lhe falava,
desses rostos que a olhavam, desse mundo que a acolhia. Tudo isso se afastava, se apagava, desaparecia.
Restava apenas a abominável certeza – mas ela sabia que ele não tinha mentido –, a certeza do abismo
através do qual ela tinha sido projetada, longe de tudo o que era a sua própria vida. Longe de...
– PAIKAN!...
Berrando seu nome, ela endireitou-se na cama, nua, selvagem, soberba e tensa como uma fera
acossada.
As enfermeiras e Simon tentaram retê-la. Ela lhes escapou, saltou do leito gritando:
– PAIKAN!...
Correu em direção à porta, passando no meio dos médicos: Zabre tentou segurá-la, recebeu uma
cotovelada no estômago e a deixou partir enquanto cuspia sangue. Hoover foi empurrado contra a parede;
Forster recebeu, no braço esticado em direção a ela, um golpe tão duro que pensou que tivesse um osso
quebrado. Ela abriu a porta e saiu.
Os jornalistas que seguiam a cena sobre a tela da Sala de Conferências correram para a Avenida
Amundsen. Viram a porta da enfermaria se abrir bruscamente e Elea correr como uma louca, como um
antílope que vai ser agarrado por um leão, em direção a eles. Fizeram uma barreira. Ela chegou sem vê-los.
Gritava uma palavra que eles não compreendiam. As lâmpadas duplas dos flashes de laser espocaram em
toda a linha dos fotógrafos. Ela os atravessou, derrubando três homens com seus aparelhos. Corria em
direção à saída. Chegou lá antes que alguém a segurasse, no momento em que a porta de correr se abria
para deixar entrar um carregamento de alimentos, conduzido por um chofer de macacão forrado da cabeça
aos pés.
Do lado de fora, havia uma tempestade branca, um nevoeiro denso. Louca de angústia, cega, nua,
atirou-se nas navalhas do vento. O vento enfiou-se na sua carne, ergueu-a e levou-a nos seus braços para a
morte. Ela se debateu, retomou pé, bateu no vento com seus punhos e com sua cabeça, arrancou-o do seu
peito gritando mais forte que a tempestade. O vento e a neve entraram-lhe na boca e apagaram-lhe o grito
que nascia na garganta.
Caiu.
Os homens a recolheram um segundo depois e a transportaram.

– Eu bem que havia dito – disse Lebeau a Simon, com uma severidade que temperava a satisfação de ter
tido razão.
Simon, triste, olhava as enfermeiras agindo, friccionando Elea inconsciente.
– Paikan... – murmurou.
– Ela deve estar apaixonada – disse Leonova.
Hoover caçoou:
– Por um homem que ela deixou há novecentos mil anos!...
– Que ela deixou ontem... – disse Simon. – O sono não tem duração... e durante a curta noite, a
eternidade interpôs-se entre eles!
– Infeliz... – murmurou Leonova.
– Eu não podia saber – disse Simon baixinho.
– Meu filho – acrescentou Lebeau –, em medicina, aquilo que não sabemos devemos supor...

Compreendi tudo.
Olhando para os teus lábios, notei que eles estremeceram de amor à passagem daquele nome.
Então quis te separar dele, o mais breve possível, brutalmente. Quis que soubesses que ele estava
acabado, que nada restava dele, nem mesmo um grão de poeira, mil vezes levado pelos mares e pelos
ventos, nada mais dele, nem do teu passado. Nada de nada... Que as tuas lembranças eram tiradas do
vazio. Que atrás de ti havia somente escuridão; que a luz, a esperança e a vida estavam no nosso presente,
conosco.
Destruí todo o teu passado de um só golpe.
Eu te fiz mal.
Mas tu, pronunciando aquele nome, foste a primeira a destruir.
Destruías o meu coração.

Os médicos esperavam que ela fosse atacada por uma pneumonia, ou alguma outra conseqüência da
ação do frio. Mas Elea não teve nada. Nem tosse, nem febre, nem a menor vermelhidão sobre a pele.
Quando voltou à consciência, viram que havia assimilado o choque e superado todas as suas emoções.
Não havia mais sobre o seu rosto aquela expressão petrificada de uma indiferença total, semelhante a de
um condenado à prisão perpétua, no momento em que entra na cela da qual sabe que não sairá jamais. Ela
sabia que lhes haviam dito a verdade. Portanto quis ter provas. Pediu para ouvir o relatório da expedição, e
quando a enfermeira começou a lê-lo, fez um gesto com a mão para afastá-la, dizendo:
– Simon...
Simon não estava no quarto.
Depois da sua intervenção brutal, que tinha terminado de maneira tão desastrosa, os reanimadores
julgaram-no perigoso e o proibiram de se ocupar de Elea.
– Simon... Simon... – repetia ela.
Procurava com o olhar por todos os cantos da peça. Desde que abrira os olhos, ela o havia sempre visto
ao seu lado, estava acostumada com seu rosto, com sua voz, com o cuidado dos seus gestos. E fora ele
quem lhe havia dito a verdade. Neste mundo desconhecido, no fim dessa viagem apavorante, ele era um
elemento já familiar, um apoio contra o medo que a assaltava.
– Simon...
– Creio que é melhor mandar buscá-lo – disse Moissov.
Simon veio e começou a ler. Depois deixou o papel de lado e contou. Quando chegou no momento da
descoberta do casal em hibernação, ela ergueu a mão para que ele se calasse, e disse:
– Eu sou Elea, ele é Coban. É o maior sábio de Gondawa. Ele sabe tudo. Gondawa é o nosso país.
Calou-se um instante. Depois acrescentou com uma voz muito baixa, que a tradutora mal pôde ouvir:
– Gostaria de morrer em Gondawa.

Durante o desmaio de Elea, Hoover, sem o menor escrúpulo, havia manipulado a máquina de comer. Ele
também estava, bem como todos aqueles que a viram funcionar na tela, ansioso para saber a partir de
quais matérias-primas ela fabricava as diferentes espécies de alimentos que, em pouco tempo, haviam
dado a Elea forças para lutar contra uma dúzia de homens e se precipitar na tempestade.
Sobre a superfície lisa da esfera e do cilindro, havia somente uma saída possível, um só ponto de
comando e de manipulação: o botão branco do centro.
Sob os olhos horrorizados de Leonova, Hoover o havia pressionado, virado para a esquerda, para a
direita, puxado para cima e outra vez para a esquerda.
O que ele esperava aconteceu: a calota da semi-esfera ergueu-se como uma campânula de queijo,
descobrindo o interior da máquina.
Esta, colocada sobre uma pequena mesa sanitária, revelou seu mistério aos olhos de todos, e, todavia,
tornou-se ainda mais misteriosa. Pois todo o interior da meia-esfera era ocupado por um mecanismo
incompreensível que não se parecia com nenhuma outra montagem mecânica ou eletrônica. Dava mais a
impressão de uma maquete de metal do sistema nervoso. E em parte alguma havia lugar para a menor
matéria-prima, fosse ela em pedaços, em grão, em poeira ou líquido.
Hoover ergueu a máquina, sacudiu-a, olhou-a sob todos os ângulos, fez a luz bater em cheio naquele
emaranhado de ouro e de aço. Em seguida, passou-a a Leonova e Rochefoux que a olharam por sua vez de
todas as maneiras possíveis, como se olha um objeto aberto, tal um despertador sem sua caixa. Não havia
em parte alguma qualquer vestígio de lugar que comportasse sais minerais, açúcar, pimenta, carne e peixe.
Visivelmente, logicamente, absurdamente, a máquina fabricava alimentos a partir do nada...
Hoover, tendo recolocado a calota hemisférica no lugar, fez os mesmos gestos que havia visto Elea fazer
e obteve o mesmo resultado: uma pequena gaveta se abriu e ofereceu esférulas verde-claras. Hoover
hesitou um instante, depois pegou o garfo de ouro, picou uma esfera e colocou-a na boca. Esperava uma
surpresa extraordinária. Ficou desapontado: não tinha gosto definido e não era particularmente agradável.
Fazia pensar em leite coalhado no qual teriam mergulhado uma limalha de ferro. Ofereceu a Leonova, que
recusou.
– Seria melhor – disse ela – você mandar examiná-las.
Era o bom senso científico que falava por sua boca. Envoltas numa folha de plástico, as esférulas foram
enviadas para o laboratório de análise.
Veio o primeiro resultado, que não revelou nada de extraordinário. Havia proteínas, corpos gordurosos,
glicose, uma quantidade de sais minerais, vitaminas e oligoelementos misturados nas moléculas
semelhantes às do amido.
Depois houve uma retificação. Uma análise mais profunda havia descoberto algumas moléculas quase
do tamanho das existentes nas células. Depois uma segunda retificação: essas moléculas se reproduziam!
Portanto, a partir do nada, a máquina de comer fabricava não somente a matéria nutritiva, mas também
a matéria análoga à matéria viva.
Tudo aquilo era incrível!
Logo que Elea aceitou esclarecer suas dúvidas, os cientistas se acotovelaram em torno dela e a crivaram
de perguntas:
– Como funciona a máquina de comer?
– Vocês viram.
– Mas, no interior?
– No interior ela fabrica o alimento.
– Fabrica com quê?
– Com o todo.
– O todo? O que é o todo?
– Vocês bem sabem... é isso que vocês fabricam também...
– O todo... o todo... não há outro nome para o todo?
Elea pronunciou três nomes e se ouviu em seguida a voz impessoal da máquina tradutora:
– As palavras que acabam de ser pronunciadas no canal onze não figuram no vocabulário que me foi
programado. No entanto, por analogia, creio poder propor a tradução aproximativa seguinte: energia
universal. Ou talvez: essência universal. Ou ainda: vida universal. Mas estas duas últimas idéias me parecem
um pouco abstratas. A primeira é sem dúvida a mais próxima do sentido original. Seria necessário, para ser
justo, nela incluir as duas outras.
Energia!... A máquina fabricava a matéria a partir da energia! Não era impossível admitir isso, no estado
atual dos conhecimentos científicos e da técnica. Mas seria necessário mobilizar uma quantidade fabulosa
de eletricidade para obter uma partícula invisível, intocável e que desapareceria logo que surgisse.
Entretanto, aquela estranha máquina, que tinha a aparência de um brinquedo de criança, tirava do
nada, com a maior simplicidade, o alimento que lhe fosse pedido.
Lebeau teve que acalmar a impaciência dos sábios, cujas perguntas se multiplicavam no cérebro da
tradutora.
– Você conhece o mecanismo do seu funcionamento?
– Não. Coban sabe.
– Você conhece ao menos o princípio?
– Seu funcionamento é baseado na equação universal de Zoran...
Com os olhos ela procurava alguma coisa que pudesse ajudá-la a explicar melhor o que queria dizer. Viu
Hoover que tomava notas nas margens de um jornal. Estendeu-lhe a mão. Hoover alcançou-lhe o jornal e a
caneta. Leonova, adiantando-se, substituiu o jornal por um bloco de papel virgem.
Com a mão esquerda, Elea tentou escrever, desenhar, traçar alguma coisa. Não conseguiu. Irritou-se.
Jogou a caneta e pediu à enfermeira:
– Dê-me o seu... seu...
Imitava o gesto que ela havia visto fazer várias vezes, o de passar um batom nos lábios. Espantada, a
enfermeira o estendeu.
Então com um só traço leve, Elea desenhou sobre o papel um elemento em espiral, que cortava uma
reta vertical e que continha dois traços curtos. Estendeu o papel a Hoover.
– Isto é a equação de Zoran, que se lê de duas maneiras. É lida em linguagem corrente e em termos de
matemática universal.

– Você pode lê-la? – perguntou Leonova.


– Em linguagem corrente significa: “O que não existe existe”.
– E da outra maneira?
– Não sei. Coban sabe.

Conforme o compromisso assumido, os sábios da EPI comunicaram a todas as nações do mundo o que
haviam conseguido e ainda tudo aquilo que esperavam saber. A língua gonda já estava sendo estudada em
numerosas universidades, e a humanidade inteira sabia que estava às vésperas de uma transformação
extraordinária. O homem adormecido e que ia ser acordado explicaria a equação de Zoran, que permitiria
retirar do seio da energia universal os meios para vestir aqueles que estavam nus e alimentar os que
tinham fome. Não haveria mais conflitos por causa de matérias-primas, nem mais guerra do petróleo, nem
mais batalhas pelas regiões férteis. O todo ia resolver tudo graças à equação de Zoran. O sábio Coban ia
acordar e indicar o que era necessário fazer para que a miséria, a fome e a tristeza dos homens
desaparecessem para sempre.
Os trabalhos de reanimação foram marcados para o dia seguinte. A sala de operação tinha sido
reconstruída, os últimos aparelhos acabavam de chegar, substituindo os que haviam sido destruídos. A
equipe de técnicos apressava-se a pô-los no lugar e a testá-los.
A tempestade tinha acalmado. O vento soprava ainda, mas sem a fúria anterior. Naquela latitude ele
sopra sempre, e quando não ultrapassa cento e cinqüenta quilômetros a hora, é uma brisa carinhosa. No
céu sem nuvens, cor azul-ardósia, o sol vermelho arrastava-se no horizonte. Estrelas enormes, afiadas pelo
vento, furavam a cúpula celeste.
Dois homens que tinham trabalhado até tarde na esfera saíram do elevador. Eram Brivaux e seu
assistente. Estavam exaustos, desejavam ir descansar e dormir. Tinham sido os últimos a subir. Não havia
mais ninguém lá embaixo.
Brivaux fechou a porta do elevador a chave. Saíram do edifício de muros de neve e blasfemando
enfiaram-se no vento.
No prédio vazio e negro, uma mancha redonda de luz acendeu-se. Por trás da pilha de caixas de onde
haviam retirado os últimos aparelhos recém-chegados, um homem agachado endireitou-se, batendo os
dentes. Na sua mão a lanterna elétrica tremia. Ele estava lá há mais de uma hora, esperando a subida dos
últimos técnicos, e, apesar do seu macacão polar, estava mordido pelo frio até os ossos.
Dirigiu-se até o elevador, tirou do bolso um pequeno molho de chaves achatadas e começou a
experimentá-las uma a uma. Não conseguiu nada, tremia demais. Descalçou as luvas, soprou seus dedos
entorpecidos, bateu no corpo com os braços e deu alguns pulos sobre o mesmo lugar. O sangue começou a
circular. Retomou o molho de chaves. Encontrou finalmente a chave certa. Entrou no elevador e apertou o
botão de descida.

Na enfermaria, Simon olhava Elea dormir. Não a deixava mais. No momento em que ele se afastava, ela
o reclamava. À indiferença glacial em que ela se havia instalado, se juntava, quando ele não estava
presente, uma ansiedade física da qual ela exigia ser imediatamente libertada.
Ele estava lá, ela podia dormir. A enfermeira de plantão dormia também, numa cama flexível. De uma
lâmpada azul, acima da porta, vinha uma claridade muito suave. Nessa quase noite apenas luminosa, Simon
olhava Elea dormir. Seus braços repousavam estendidos sobre a coberta. Ela tinha acabado por aceitar
vestir um pijama de flanela, meio grande porém confortável. Sua respiração era calma e lenta, seu rosto
sério. Simon inclinou-se, aproximou seus lábios da longa mão de longos dedos, quase a tocou.
Depois foi para o leito vazio, estendeu-se, puxou sobre si uma coberta, suspirou de felicidade, e
adormeceu.

O homem havia entrado na sala de reanimação. Foi direto para um pequeno armário metálico, e o
abriu. Sobre uma prateleira encontravam-se os papéis. Folheou-os, arrancando de passagem algumas
páginas que fotografou com um aparelho que trazia preso ao ombro e colocou-os de volta no lugar. Depois
dirigiu-se para o aparelho receptor de tevê que montava guarda no local. Sua tela mostrava
permanentemente o interior do ovo. A nova câmara, sensível aos raios infravermelhos, iluminava a bruma.
Ele viu muito claramente o homem no seu bloco de hélio quase intacto e o pedestal que havia sustentado
Elea. O lado do pedestal continuava aberto, e sobre as prateleiras repousavam ainda alguns objetos que
Elea não havia reclamado.
O homem acionou os botões de telecomando da câmara. Conseguiu que o pedestal aberto ficasse bem
dentro do quarto. Acionou a zoom e finalmente reconheceu, em primeiro plano, o que procurava: a arma.
Sorriu de satisfação e resolveu descer ao interior do ovo. Sabia que lá reinava um frio perigoso. Não
tinha podido procurar um macacão de astronauta, por isso teria que fazer tudo muito rapidamente. Saiu da
sala de operação. À sua volta, o interior da esfera, fracamente iluminado, parecia o esqueleto de um
gigantesco pássaro surrealista, meio afogado na noite do inconsciente. A fim de afastar a ameaça do
silêncio total, o homem voluntariamente tossiu. O barulho da sua tosse encheu a esfera como um
relâmpago, rasgou-se nas bordas das traves e dos arcos, chocou-se no casulo, e voltou para ele em milhares
de fragmentos de ruídos agudos, agressivos.
Afundou bruscamente seu capacete até as orelhas, envolveu o pescoço numa grossa echarpe e calçou
suas luvas forradas enquanto descia a escada de ouro. Um dispositivo elétrico permitia-lhe ver a porta do
ovo, que se levantou como uma concha quando ele apertou o botão. Escorregou para o interior. A porta se
fechou atrás dele.
Ficou surpreendido pela bruma que a câmara infravermelha não lhe havia mostrado. Ela era tingida de
um azul irreal pela luz que subia do motor imóvel através do solo transparente e da coberta de neve fofa e
azulada. De lanterna na mão, precedido por um círculo de luz branca e opaca, desceu com precaução a
escada. Sentiu, à medida que descia, o frio atroz a lhe morder as canelas, a barriga das pernas, o joelho, as
coxas, o ventre, o peito, a garganta, o crânio...
Era preciso andar depressa, depressa. Seu pé direito atingiu o solo coberto de neve. Firmando-se com os
pés, deu um passo à esquerda, e inspirou pela primeira vez. Seus pulmões gelaram em bloco,
transformados em pedra. Quis gritar, abriu a boca. Sua língua gelou, seus dentes caíram. O interior dos
olhos se dilatou e tornou-se sólido, empurrando as íris para fora. Ainda teve tempo, antes de morrer, de
sentir o frio esmagar-lhe os testículos, e seu cérebro gelar. A lanterna apagou-se. Tudo tornou-se silêncio,
ele caiu para a frente, na neve azul. Ao tocar o solo, seu nariz se quebrou. A poeira da neve, erguida
durante um instante numa nuvem ligeira e luminosa, recaiu e o cobriu.
De manhã, o operador de câmara que se aproximou do receptor da sala operatória espantou-se de
encontrar na tela, em vez do plano geral do ovo, a arma em primeiro plano.
– Por aqui andou algum cara metendo a mão no meu pudim! – disse ele. – Vai ver que são esses
eletricistas! Vou dar uns bons trancos quando eles descerem, esses idiotas!
Sempre resmungando, manipulou os comandos para trazer de volta o plano geral. Foi assim que viu
entrar, por baixo da tela, uma mão enluvada que saía da neve, os dedos separados.
Quando os homens de capacete, vestidos com seus macacões espaciais, tiraram o cadáver para fora do
seu caixão de neve fina, apesar de todas as precauções seu braço direito partiu-se em pedaços, como uma
folha seca.
– Estou desolado – disse Rochefoux aos jornalistas e fotógrafos reunidos na Sala de Conferências – de
ter que lhes participar a morte trágica de Juan Fernández, fotógrafo do La Nación, de Buenos Aires. Ele se
meteu clandestinamente dentro do ovo, sem dúvida para tirar fotografias de Coban, e o frio o matou antes
que tivesse tempo de dar três passos. – Fez uma pausa e prosseguiu: – Nunca seria demais lhes
recomendar prudência. Não lhes escondemos nada. Nosso maior desejo é que vocês saibam tudo e que
propaguem por todo o mundo. Peço-lhes que não tomem mais tais iniciativas, que não somente são
perigosas para vocês, mas que arriscam a comprometer gravemente o êxito das delicadas operações, cujo
sucesso pode transformar inteiramente a sorte da humanidade.
Mas um telegrama do La Nación, transmitido pelo Trio, fez saber que o jornal ignorava tudo sobre Juan
Fernández, e que este nunca fizera parte do seu pessoal. Então se lembraram do testemunho do operador
que havia visto em primeiro plano a imagem da arma. Remexeram no quarto de Fernández. Lá
encontraram três aparelhos fotográficos, um americano, um tcheco, um japonês, além de um emissor de
rádio alemão e um revólver italiano.
Os responsáveis da EPI e os reanimadores se reuniram, longe da curiosidade dos jornalistas. Estavam
consternados.
– É um desses cretinos dos serviços secretos – disse Moissov. – De qual serviço secreto? Não sei, nem
vocês, nunca saberemos. Eles têm em comum a estupidez e a ineficiência. Mostram uma engenhosidade
prodigiosa para conseguir resultados que não são maiores que um cocô de mosca. A única coisa que
conseguem é a catástrofe. É preciso nos proteger contra esses ratos.
– Eles são uma merda! – acrescentou Hoover, em francês.
– Não é a mesma palavra em russo – disse Moissov –, porém é a mesma matéria. Infelizmente vou ser
obrigado a utilizar palavras menos expressivas e mais vagas, de que não gosto porque são pretensiosas.
Mas é preciso falar com as palavras que se tem.
– Continue, continue – aparteou Hoover –, não faça tanto rodeio. Este pequeno macabeu nos deixou na
merda de qualquer maneira.
– Sou médico – retrucou Moissov. – Você, você é... é o quê?
– Engenheiro químico e eletrônico... Mas o que é que você tem com isso? Aqui há de tudo.
– Sim – disse Moissov –, e no entanto somos todos iguais... Temos alguma coisa em comum que é mais
forte que as nossas diferenças: a necessidade de saber. A literatura chama isso de amor pela ciência. Eu
chamo de curiosidade. Quando ela é servida pela inteligência, é a maior qualidade do homem.
Pertencemos a todas as disciplinas científicas, a todas as nações e a todas as ideologias. Você pode não
gostar de um russo comunista. Eu não aprecio que vocês sejam pequenos capitalistas, imperialistas
estúpidos, enfiados no visgo de um passado social em vias de apodrecer. – Abrandou o tom de voz para
prosseguir: – Mas sei, e vocês todos sabem, que isso já está superado pela nossa curiosidade. Vocês e eu
queremos saber. Queremos conhecer o universo em todos os seus segredos, os maiores e os menores. E já
sabemos ao menos alguma coisa: que o homem é maravilhoso, mas que os homens são dignos de piedade;
que cada um do nosso lado, no nosso campo de conhecimento e no nosso nacionalismo miserável, trabalha
em favor do homem. O que há para conhecer aqui é fantástico. E o que nós podemos tirar de proveito para
todos os homens é inimaginável. Mas se deixarmos intervir nossas nações, com sua cretinice secular, seus
generais, seus ministros e seus espiões, tudo está perdido!
– Vê-se bem – replicou Hoover – que você seguiu os cursos noturnos do marxismo... Você tem sempre
um discurso na ponta da língua. Mas é claro, tem razão. Você é meu irmão. É minha irmãzinha –
acrescentou, dando um tapa nas nádegas de Leonova.
– Você é um porco gordo e sujo – disse ela.
– Permitam à Europa – falou Rochefoux sorrindo – fazer ouvir sua voz. Nós temos o ouro, aquele que
cortamos ao perfurar a casca da esfera. Pesa cerca de vinte toneladas. Com isso podemos comprar armas e
mercenários.
Shanga, o africano, levantou-se rapidamente.
– Sou contra os mercenários! – bradou.
– Eu também – disse o alemão Henckel. – Não pelas mesmas razões. Acho simplesmente que eles são
espiões canalhas. Devemos organizar nós mesmos nossa polícia e nossa defesa. Quero dizer, a defesa do
que está dentro da esfera. A arma e, principalmente, Coban. Enquanto ele estiver no frio, não corre
nenhum risco. Mas as operações de reanimação vão começar. A tentação de raptá-lo será grande, antes
que possamos comunicar seus conhecimentos a todos. Não há uma nação que não tentará o impossível
para assegurar a exclusividade do que ele tem dentro da cabeça. Os Estados Unidos, por exemplo...
– Claro, claro – disse Hoover.
– A URSS...
Leonova explodiu:
– A URSS! Sempre a URSS! Por que a URSS? A China também! A Alemanha! A Inglaterra! A França!
– Isso!... – disse Rochefoux sorrindo. – Até mesmo a Suíça...
– Metralhadoras, revólveres, minas – adiantou Lukos –, posso encontrar ali.
– Eu também – disse Henckel.
Partiram naquele mesmo dia para a Europa. Shanga e Garret, o assistente de Hoover, uniram-se a eles.
Estava entendido que não se separariam nunca. Assim a lealdade de cada um, da qual ninguém duvidava,
seria garantida pela presença dos outros.
Com os revólveres e fuzis de caça que já se encontravam na base, organizaram um rodízio de vigilância
de dia e noite perto do elevador e do quarto de Elea. Dois homens, técnicos ou sábios, se revezavam. Um
ocidental e um oriental. Essas medidas foram tomadas por unanimidade, sem discussão. Diante da
enormidade do que estava em jogo, ninguém tinha confiança em ninguém, nem mesmo em si próprio.

Dois projetores iluminam o ovo, envolto na bruma.


A mangueira de ar está dirigida para o bloco de Coban, que se encolhe, se deforma, se reabsorve,
desaparece como um halo que se apaga. Na sala de trabalho, os reanimadores passam, um por um, pela
esterilização. Enfiam-lhes luvas e blusas assépticas, e amarram-lhes as botas de algodão.
Simon não está com eles, está perto de Elea, na Sala de Conferências, sentado sozinho com ela sobre o
pódio. Diante dele, sobre a mesa, o revólver que lhe confiaram. Seu olhar vigia sem cessar a assistência.
Está pronto a defender Elea contra seja o que for. Diante dela estão espalhados os diversos objetos da
prateleira que ela havia pedido. Está calma, imóvel. As ondas dos seus cabelos castanhos com reflexos
dourados são como um mar calmo. Vestiu as estranhas roupas encontradas na prateleira. Na altura dos
quadris colocou quatro retângulos avermelhados de uma matéria sedosa que parecia uma fazenda fina,
fluida e pesada. Caíam-lhe até os joelhos e, quando ela andava, se dobravam e desdobravam, cobrindo e
descobrindo a pele, como asas, como o movimento das ondas ao sol. Enrolou à altura do busto uma faixa
longa da mesma cor, que modelava seu corpo e seus ombros, deixando adivinhar sob a fazenda os seios
livres como pássaros.
Tudo isso preso por um nó, por uma argola ou trespassado ora por cima ora por baixo, por um milagre.
Era à primeira vista muito complicado, mas tão natural que poderia se pensar que ela havia nascido assim.
Diante dela, sentia-se a horrível impressão de se estar vestido com sacos de farinha.
Ela aceitara responder a todas as perguntas. Então organizaram a primeira reunião de trabalho
destinada a informar aos homens de hoje sobre a sua civilização.
O rosto de Elea estava gelado, seus olhos pareciam portas abertas sobre a noite. Estava silenciosa e seu
silêncio dominava toda a assistência.
Hoover fez um barulho enorme com a garganta.
– Hum... que tal começarmos?... O melhor seria começar pelo início... Você nos dizer primeiro quem é,
qual sua idade, profissão, situação de família, etc. Em poucas palavras...

Mil metros mais abaixo, o homem nu perdeu sua carapaça transparente e atingiu uma temperatura que
permitia a sua locomoção. Dentro da bruma brilhante, quatro homens vestidos de vermelho, de botas e
capacetes esféricos de plástico, se aproximam lentamente do corpo inerte e se colocam ao lado de seu
caixão. À porta do ovo dois homens vigiam de metralhadora na mão. Os quatro homens se abaixam,
escorregam por baixo do homem nu as mãos enluvadas de pele, de couro e de amianto, e aguardam um
instante.
Diante da tela do aparelho da sala de trabalhos, Forster, atento, olha a imagem. Tudo preparado, ele
ordena:
– Tenham cuidado! Atenção! Um, dois, três, já!
Em quatro idiomas diferentes a ordem chega ao mesmo tempo aos quatro capacetes esféricos. Os
homens se erguem lentamente.
Uma claridade azul fulgurante, mil vezes mais forte que a dos projetores, estoura sob seus pés, queima-
lhes os olhos, enche o ovo como uma explosão, jorra pela porta aberta, invade a esfera, sobe pelo poço
como um gêiser...
Depois se apaga.
Não houve nenhum barulho. Não foi mais que claridade. Sobre o solo do ovo, a neve não está mais azul.
O motor que desde a noite dos tempos fabricava o frio para manter intatos os dois seres vivos que lhe
tinham sido confiados, no mesmo segundo em que lhe tiraram sua última razão de ser, parou e destruiu-se.

– Eu sou Elea – disse a mulher. – Meu número é 3-19-07-91. Eis aqui minha chave...
Mostrou a mão direita com os dedos dobrados, o médio separado e curvado para fazer sobressair o
engaste do seu anel, em forma de pirâmide truncada.
Pareceu hesitar, depois perguntou:
– Vocês não têm chave?
– Claro que sim! – respondeu Simon. – Mas creio que não é a mesma coisa...
Tirou o chaveiro do bolso, agitou-o, colocando-o depois diante de Elea. Ela o olhou sem tocar, com uma
espécie de inquietação misturada à incompreensão. Em seguida fez um gesto que pareceu de pouco caso e
continuou:
– Nasci no Abrigo da Quinta Profundidade, dois anos depois da Terceira Guerra.
– O quê? – perguntou Leonova.
– Que guerra?
– Entre que países?
– Onde era o seu país?
– Quem era o inimigo?
As perguntas espocavam de todos os cantos da sala. Simon levantou-se, furioso. Elea colocou as mãos
sobre os ouvidos, fez uma cara de dor, e arrancou o aparelho de escuta.
– Perfeito! Muito bem! Vocês conseguiram! – gritou Simon.
Estendeu sua mão aberta para Elea. Ela colocou aí o auscultador. Ele fez sinal a Leonova:
– Venha – chamou.
Leonova subiu ao pódio. Pegou um grande globo terrestre colocado sobre o chão e pousou-o sobre a
mesa.
– Vocês bem sabem que Elea não pode manipular o isolador – disse Simon aos sábios. – Ela recebe
todas as perguntas de uma vez! Vocês o sabem! Já tínhamos previsto! Se não podem respeitar um pouco a
disciplina, serei obrigado, falando como o médico responsável, a proibir essas sessões! Peço-lhes que
deixem Leonova falar por todos vocês e fazer as primeiras perguntas. Depois um outro tomará seu lugar e
fará suas perguntas e assim por diante. De acordo?
– Tem razão, rapaz – disse Hoover. – Vá lá que seja, que a linda bonequinha fale por nós...
Simon virou-se para Elea e, de mão estendida, ofereceu-lhe o auscultador. Elea ficou imóvel um
instante, depois pegou o aparelho e colocou-o no ouvido.
O homem está estendido sobre a mesa operatória. Ainda está nu. Os médicos e os técnicos se agitam ao
seu redor, fixam-lhe os eletrodos, as pulseiras, as braçadeiras, as correias de colocar nas pernas, todos os
contatos que o ligam aos aparelhos. Travesseiros são colocados sob o seu braço direito, ainda pesado como
ferro, meio erguido e no qual o dedo médio ostenta um anel semelhante ao de Elea.
Van Houcke, com precauções de babá, envolveu em pequenos pedaços de algodão o precioso sexo
ereto. Apesar desses cuidados, quebrou uma mecha de pelos. Praguejou em holandês.
– Não tem importância – disse Zabrec. – Isso, isso crescerá outra vez... enquanto o resto...
– Olhe! – disse de repente Moissov, apontando um lugar na parede abdominal.
– Olhe aí...
O peito...
– E aí!
O bíceps esquerdo!...
– Merda! – gritou Lebeau.

Elea olha o globo e o faz girar com perplexidade. Dir-se-ia que não o reconhecia. Sem dúvida as
convenções geográficas do seu tempo não eram as mesmas que as nossas. Os oceanos azuis, por exemplo,
talvez ela não compreenda o que representam, se, nos mapas da sua época, eles figurassem em vermelho
ou em branco... Talvez o norte fosse em baixo, ou à esquerda, ou à direita...
Elea hesita, pensa, estica o braço, faz girar o globo, e sobre o seu rosto adivinha-se que ela finalmente
reconhece e que também vê a diferença...
Pegou o globo pelo pé e o inclinou.
– Assim – diz ela. – Ele era assim...
Apesar da promessa, os sábios não puderam conter exclamações abafadas. Lanson dirigiu a boca da
câmara para o globo e sua imagem apareceu na grande tela. O globo inclinado por Elea tinha o norte em
cima e o sul em baixo, mas deslocados quase quarenta graus.
Olofsen, o geógrafo dinamarquês, exultou. Sempre sustentara a teoria muito controvertida de uma
inclinação do globo terrestre. Havia apresentado mil provas, refutadas uma a uma. Agora os detalhes
estavam aí, ele tinha razão! Não havia mais necessidade de provas discutíveis: havia uma testemunha!
Um dedo de Elea pousou sobre o continente antártico e sua voz disse:
– Gondawa!...
Sobre o globo que Leonova segurava na posição em que Elea lhe havia dado, Gondawa ocupava um
lugar a meio caminho do pólo e do equador, em plena zona temperada quente, quase tropical!
Eis o que explicava a flora exuberante, os pássaros de fogo encontrados no gelo. Um cataclismo brutal
fizera virar a Terra sobre um eixo equatorial, misturando os climas em algumas horas, talvez minutos,
queimando o que era frio, gelando o que era quente, e submergindo os continentes com massas enormes
de águas oceânicas arrancadas à sua inércia.
– Enisorai... Enisorai... – disse Elea.
Procurou no globo alguma coisa que não encontrou.
– Enisorai... Enisorai...
Fez girar o globo entre as mãos de Leonova. A grande imagem do globo girou sobre a tela.
– Enisorai, o inimigo!...
Seus olhos procuraram em vão alguma referência no globo.
– Enisorai... Enisorai... Ah!...
A imagem parou. As duas Américas ocuparam a tela. Mas a inclinação do globo colocou-as numa
posição estranha: o norte virado para baixo e o sul para cima:
– Ali! – disse Elea. – Ali falta...
Sua mão apareceu na imagem segurando uma vareta que Simon lhe tinha dado. A ponta de grafite
pousou na extremidade do Canadá, atravessou a Terra Nova, riscando um largo traço vermelho que
avançava até o meio do Atlântico, indo encontrar-se, num desenho acidentado, com a ponta mais avançada
do Brasil. Depois Elea cobriu com riscos vermelhos todo o espaço percorrido, preenchendo o imenso golfo
que separa as duas Américas e as transformando num só continente maciço cujo centro ocupava metade
do Atlântico Norte. Deixou cair a vareta, pousou a mão sobre a Grande América que acabava de criar, e
disse:
– Enisorai...
Leonova pousou o globo. Uma onda de excitação vibrou novamente na sala. Como tal fenda poderia ter
sido aberta no continente? Teria sido o mesmo cataclismo que provocara o desaparecimento de Enisorai
central e deslocara o eixo da Terra?
A todas essas perguntas Elea respondeu:
– Eu não sei... Coban sabe... Coban tinha medo... Foi por isso que mandou construir o abrigo onde vocês
nos encontraram...
– Coban tinha medo do quê?
– Não sei... Coban sabe... Mas posso lhes mostrar... Estendeu a mão para os objetos colocados diante
dela. Escolheu um círculo de ouro, tomou-o com as duas mãos e o colocou na cabeça. Duas pequenas
placas ficaram aplicadas às suas têmporas. Uma outra cobriu a fronte logo acima dos olhos. Em seguida
apanhou um outro círculo.
– Simon... – disse.
O médico virou-se em sua direção. Ela colocou o segundo círculo na cabeça dele, e, com um gesto do
polegar, abaixou a placa frontal, que se transformou numa máscara sobre os olhos do jovem médico.
– Calma – balbuciou.
Apoiou seus cotovelos sobre a mesa e pôs a cabeça entre as mãos. A placa frontal ficou levantada. Ela
fechou lentamente as pálpebras.
Todos os olhares, todas as câmaras focalizam Elea e Simon, sentados lado a lado, ela com os cotovelos
na mesa, ele sentado na sua cadeira, os ombros apoiados no encosto, os olhos cobertos pela máscara de
ouro.
O silêncio é tão grande que se ouviria cair um floco de neve.
De repente Simon tem um sobressalto. Vêem-no colocando as mãos abertas diante de si, como se
quisesse se assegurar da realidade de alguma coisa. Levanta-se lentamente e murmura qualquer coisa que
a tradutora repete num sussurro:
– Eu vejo!... Eu ouço...
Grita bem alto:
– EU VEJO! É o apocalipse! Uma planície imensa, queimada... viva... vitrificada!... Exércitos caem do
céu... as armas mas cospem a morte e destroem tudo!... Caem ainda mais! Como mil nuvens de
gafanhotos! Eles cobrem o solo... se afundam!... A planície se abre!... se abre em duas!... de um pedaço a
outro do horizonte... O sol sobe e cai!... Os exércitos estão desaparecidos! Alguma coisa sai da terra... algo
gigantesco! Uma máquina... uma máquina monstruosa, uma planície de vidro e de aço... ela se separa da
terra, se levanta, voa, se desdobra... dilata-se... enche o céu todo!... Ah!... um rosto... um rosto encobre o
céu... ele está perto... de mim!... inclina-se sobre mim... ele me olha! É um rosto de homem... seus olhos
estão cheios de desespero...
– Paikan! – geme Elea.
A cabeça de Simon escorrega de suas mãos, seu corpo cai sobre a mesa. A visão desaparece do cérebro
do médico.

Coban sabe.
Sabe o melhor e o pior.
Sabe qual é essa máquina monstruosa de guerra que enchia o céu.
Sabe como tirar do nada tudo aquilo que falta aos homens.
Coban sabe. Mas poderá dizer aquilo que sabe?
Os médicos encontraram lesões sobre quase toda a superfície do seu torso, dos braços e, em menos
quantidade, sobre as costas. Pensaram que se tratava de erupções de pele causadas pelo frio. Mas quando
retiraram sua máscara, descobriram uma cabeça na qual todos os cabelos, cílios e sobrancelhas estavam
queimados até a raiz. Não eram simples erupções, mas sim evidentes sinais de queimadura. Ou ambas as
coisas, talvez.
Perguntaram se Elea sabia como ele havia se queimado. Não sabia. Quando Coban adormeceu, estava a
seu lado, saudável e intacto...
Os médicos o envolveram dos pés à cabeça com ataduras com preparado antinecrose, a fim de impedir
que a pele ficasse destruída quando retomasse sua temperatura normal e de ajudar a reconstituição dos
tecidos.
Coban sabe. Ele por enquanto não é senão uma múmia fria envolvida em faixas amarelas. Dois tubos
transparentes, enfiados nas suas narinas, saem das ataduras. Fios de todas as cores surgem das espirais
amarelas em toda a altura do seu corpo e o ligam aos instrumentos. Lentamente, lentamente, os médicos
continuam a aquecê-lo.
A guarda do elevador foi dobrada através de um dispositivo do tipo armadilha posto à entrada da
esfera. Lukos colocou aí duas minas eletrônicas que havia trazido da sua missão e que havia aperfeiçoado.
Ninguém poderia se aproximar sem as fazer ir pelos ares. Para entrar na esfera, era preciso, chegando
embaixo do poço, se apresentar aos homens que montavam guarda na saída do elevador. Os guardas se
comunicavam com o interior, onde três médicos e várias enfermeiras e técnicos velavam
permanentemente em torno de Coban. Um deles baixava o interruptor. Uma luz vermelha deixava de
piscar e então as minas se tornavam inertes como chumbo. Podia-se descer à esfera.
– Coban sabe... Vocês acham que esse homem representa perigo para a humanidade ou, ao contrário,
vai trazer a possibilidade de fazer da Terra um novo éden?
– Para mim, o éden, ora... nós nunca fomos lá!... e nem sabemos se era assim tão formidável!...
– E o senhor?
– Bem, sabe, é meio difícil de dizer...
– E a senhora?
– Bem, eu acho que é apaixonante! Esse homem e essa mulher que vêm de tão longe e que se amam!
– A senhora acredita que eles se amam?
– Claro, sem dúvida!... Ela diz o tempo todo o nome dele!... Balkan!... Balkan!...
– Acho que a senhora está fazendo uma pequena confusão, mas em todo o caso a senhora tem razão, é
apaixonante tudo isso!... E o senhor, também acha que é assim apaixonante?
– Não posso dizer nada, visto que sou estrangeiro...
M. e Mme Vignon, seu filho e sua filha comem batatas com açúcar, na mesa em feitio de lua diante da
tela. É uma receita da cozinha nutritiva.
– É uma bobagem, fazer perguntas como essas – comenta a mãe.
– Esse sujeito – diz a filha –, eu o mandaria de volta para o frigorífico. A gente vive muito bem sem ele...
– Oh! Hum! Hum... – replica a mãe. – Não se pode fazer isso.
Sua voz está um pouco rouca. Ela pensa num certo detalhe. E em seu marido que já não é mais tão...
Recordações lhe rasgam o ventre. Uma grande tristeza enche seus olhos de lágrimas. Assoa o nariz.
– Acho que estou mais uma vez resfriada...
Quanto a isso a filha está em paz. Ela tem amigos na Arte e Decorações que são talvez menos agraciados
do que o sujeito, mas sob um certo detalhe eles lhe equivalem. Enfim, talvez não seja bem assim... Mas eles
ao menos não estão gelados!...
– Não podem colocá-lo de novo no gelo – diz o pai –, depois de todo o dinheiro que já gastaram. Isso
representa um investimento...
– Por mim ele pode se danar! – resmunga o filho.
Não diz mais nada. Pensa em Elea toda nua. Sonha com ela de noite e, quando não está dormindo, é
pior ainda.

Elea, com indiferença, havia deixado que os sábios examinassem os dois círculos de ouro. Brivaux
tentou encontrar dentro deles um circuito, conexão, alguma coisa. Nada. Os dois círculos com as duas
placas temporais fixas e a placa frontal móvel eram feitos de metal sólido, sem qualquer mecanismo
interno ou externo.
– É preciso não se enganar – disse Brivaux. – Trata-se de eletrônica molecular. Esse negócio é tão
complicado quanto um emissor e receptor de tevê reunidos e tão simples quanto uma agulha de tricô! Está
tudo nas moléculas! É formidável! A meu ver, isso funciona assim: quando você o põe ao redor da cabeça,
ele recebe as ondas do seu cérebro, transforma-as em ondas eletromagnéticas e as emite. Quando se põe o
outro círculo na cabeça, a placa é puxada para baixo e funciona em sentido contrário. Recebe então as
ondas eletromagnéticas que são enviadas, transformando-as em ondas que transmite a outro cérebro.
Compreendeu? A meu ver, acho que poderíamos ligar isso à tevê...
– O quê?
– Não é feitiçaria... captar as ondas no momento em que elas são eletromagnetizadas, amplificá-las e
injetá-las no receptor de tevê. Isso certamente dará alguma coisa. Talvez uma confusão... talvez uma
surpresa... vamos experimentar. Ou é possível ou não... De qualquer maneira não é difícil tentar.
Brivaux e sua equipe trabalharam apenas a metade de um dia. Depois Goncelin, seu assistente, colocou
na cabeça o capacete emissor. E constataram, entre surpresos e confusos, imagens sem continuação nem
ligação, às vezes sem formas precisas. Uma construção mental tão instável quanto a areia nas mãos de uma
criança.
– Não tente “pensar” – disse Elea. – Pensar é muito difícil. Os pensamentos se fazem e se desfazem.
Quem os faz, quem os desfaz? Não é quem os pensa... É preciso se lembrar. Memória, somente memória. O
cérebro registra tudo, mesmo se os sentidos não prestam atenção. É preciso se lembrar. Recordar uma
imagem precisa no instante preciso. E depois deixar fazer, o resto vem sozinho...
– Vamos ver! Ponha isso sobre a sua cabecinha! – disse Brivaux a Odile, a secretária cio escritório
técnico que taquigrafava as peripécias dos ensaios. – Feche os olhos e lembre-se do seu primeiro beijo.
– Oh! M. Brivaux!
– Não se faça de boba!
Ela tinha quarenta e cinco anos e parecia um inspetor de trânsito às vésperas de se aposentar. Fora
escolhida entre outras porque já havia feito grandes marchas, tinha vocação de líder e não temia o mau
tempo.
– E então, chegou lá?
– Sim, M. Brivaux!,
– Vamos! Feche os olhos! Lembre-se!
Houve na tela-testemunha uma explosão vermelha. Depois mais nada.
– Curto-circuito! – disse Goncelin.
– Emoção demais – disse Elea. – É preciso recordar a imagem, mas se esquecer... Tente mais uma vez.
Tentaram. E conseguiram.

Para a segunda sessão de trabalho, além de Leonova e de Hoover, Brivaux e seu assistente Goncelin
haviam tomado lugar ao lado de Elea e de Simon.
Brivaux estava sentado perto de Elea. Manipulava uma montagem complicada pouco maior que um
cubo de gelo, encimada por um buquê de antenas da altura de um dedo mínimo e tão complexo como as
antenas de um inseto.
A montagem estava ligada a uma mesa de controle colocada à frente de Goncelin. Um cabo partia dessa
mesa para a cabina de Lanson.
– A Terceira Guerra durou uma hora – disse Elea. – Depois Enisorai teve medo. E nós também, é claro.
Paramos. Havia oitocentos milhões de mortos. Principalmente de Enisorai. A população de Gondawa era
menos numerosa, mais bem protegida nos abrigos. Na superfície do nosso continente não restava mais
nada e os sobreviventes não podiam subir, por causa das irradiações mortais.
– Irradiações? Que armas eles haviam utilizado?
– As bombas terrestres.
– Você conhece o funcionamento delas?
– Não. Coban conhece.
– E conhece o princípio?
– Eram fabricadas com um metal tirado da terra e que queimava, destruía e envenenava muito tempo
depois da explosão.
Ouviu-se a voz impessoal da máquina tradutora: – Traduzo exatamente as palavras gondas, e isso dá
bem “bomba terrestre”. No entanto, ao mesmo tempo, substituirei o termo pelo seu equivalente: “bomba
atômica”.
– Nasci – continuou Elea – na Quinta Profundidade. Subi à superfície pela primeira vez quando tinha
sete anos, no dia seguinte da minha designação. Eu não podia subir enquanto não tivesse recebido minha
chave.
Hoover:
– Mas enfim que diabo de chave é essa? Para que serve?
A voz impessoal da tradutora:
– Não posso traduzir “diabo de chave”. A palavra “diabo” neste sentido particular não tem equivalente
no vocabulário que me foi programado.
– Esta máquina é uma verdadeira sarna! – disse Hoover.
A mão direita de Elea descansava sobre a mesa, os dedos alongados. Lanson focalizou a câmara 2 sobre
a mão e aumentou ainda mais a imagem. A pequena pirâmide apareceu sobre a grande tela, ocupando-a.
Era de ouro, e, nessa escala, podia-se ver que sua superfície era estriada e entalhada de sulcos minúsculos
e de cavidades de formas irregulares, estranhas.
– A chave serve para tudo – prosseguiu Elea. – Ela é estabelecida no nascimento de cada um. Todas as
chaves têm a mesma forma, mas são tão diferentes quanto os indivíduos. A disposição interna de seus...
A voz impessoal da tradutora interrompeu:
– A última palavra pronunciada não figura no vocabulário que me foi programado. Mas aí encontro a
mesma consoante que...
– Deixe-nos em paz! – gritou Hoover. – Diga aquilo que sabe e, quanto ao resto, não aborreça mais...
Calou-se, antes de deixar escapar o palavrão que lhe subia aos lábios, e terminou mais calmamente:
– Não nos faça transpirar!
– Sou uma tradutora – replicou a máquina –, não sou um aquecedor.
Toda a sala riu-se a bandeiras despregadas. Hoover sorriu e virou-se para Lukos.
– Dou-lhe os parabéns, sua filha tem espírito, mas é um pouco enjoada, não?
– Ela é meticulosa, é seu dever...
Elea escutava, sem procurar compreender essas brincadeiras dos selvagens que jogavam com as
palavras como crianças com as pedrinhas das praias subterrâneas. Que rissem, que chorassem, que se
irritassem, tudo isso para ela era indiferente. Também lhe era indiferente continuar quando lhe pediram.
Explicou que a chave levava, inscrita na sua substância, toda a bagagem hereditária do indivíduo e suas
características físicas e mentais. Era enviada ao computador central, que a classificava e a modificava cada
seis meses, depois de um novo exame da criança. Aos sete anos, o indivíduo já se tinha definido. A chave
também. Então se dava a designação.
– O que é a designação? – perguntou Leonova.
– O computador central possui todas as chaves de todos os seres vivos de Gondawa, e também dos seus
antepassados. As que levamos são apenas cópias. Cada dia o computador compara, entre elas, as chaves de
sete anos. Conhece tudo de todos. Sabe quem eu sou e também o que serei. Encontra entre os rapazes
aquele que é e que será o que me convém, aquele que me falta, aquele do qual precisarei, aquele que eu
desejo. Entre esses rapazes encontra aquele para o qual eu sou e serei o que lhe falta, aquilo de que ele
precisa, de que ele necessitará e que deseja. Então, ele nos designa um ao outro.
Fez uma ligeira pausa e continuou:
– O rapaz e eu, eu e o rapaz, nós somos como um seixo que tenha sido partido ao meio e que tenha sido
lançado entre todos os seixos partidos do mundo. O computador encontra as duas metades e as une.
– É razoável – disse Leonova.
– Pequeno comentário da formiguinha – acrescentou Hoover.
– Deixem-na continuar... – interferiu Lukos.
Elea, indiferente, recomeçou a falar, sem olhar para ninguém.
– São educados juntos. Ora na família de um, ora na família do outro. Juntos têm o mesmo gosto, os
mesmos hábitos. Aprendem juntos a ter as mesmas alegrias. Conhecem juntos como é o mundo, como é a
menina, como é o menino. Quando vem o momento em que os sexos florescem, há união pelo sexo e o
seixo reunido torna a soldar-se numa só matéria.
– Soberbo! – disse Hoover. – E isso sempre tem sucesso? Seu computador não se engana jamais?
– O computador não pode errar. Às vezes um rapaz ou uma moça mudam, ou se desenvolvem de uma
maneira imprevista. Então os dois pedaços de seixo não são mais a metade. E um se afasta do outro.
– Eles se separam?
– Sim.
– E os que ficam juntos são muito felizes?
– Nem todo o mundo é capaz de ser feliz. Há casais que, simplesmente, não são felizes. Há aqueles que
são felizes e os que são muito felizes. E há alguns com que a designação obteve um sucesso absoluto, e cuja
união parece ter começado no início da vida do mundo. Para esses, a palavra felicidade não é suficiente.
Eles são...
A voz impessoal da tradutora declarou em todas as línguas que ela conhecia:
– Não há palavra na sua língua para traduzir a palavra que foi pronunciada.
– E você – perguntou Hoover –, você era infeliz, feliz, muito feliz ou, bem... bolas... isso inexprimível?
A voz de Elea estancou, tornou-se dura como metal.
– Eu não era – disse ela. – Nós éramos...

Os detectores imersos ao largo da costa do Alasca anunciaram ao Estado-Maior americano que vinte e
três submarinos atômicos da frota polar russa haviam ultrapassado o estreito de Behring, dirigindo-se para
o sul.
Não houve reação americana.
As redes de observações fizeram saber ao Estado-Maior russo que a sétima esquadra americana de
satélites estratégicos modificara sua órbita de espera e inclinara-se para o sul.
Não houve reação russa.
O porta-aviões submarino europeu Netuno-I, em cruzeiro nas costas da África ocidental, mergulhou e
tomou a direção do sul.
As ondas chinesas começaram a gritar, revelando à opinião mundial esses movimentos que todo o
mundo ignorava ainda e denunciando a aliança dos imperialistas que vagavam de comum acordo em
direção ao continente antártico para destruir a maior esperança da humanidade.
Aliança não era a palavra exata. Acordo teria sido mais justo. Os governos dos países ricos tinham
concordado, fora das Nações Unidas, em proteger os seus sábios e os seus maravilhosos e ameaçados
tesouros, contra um possível ataque do mais poderoso dos países pobres, cuja população acabara de
ultrapassar um bilhão. Protegê-los-iam mesmo de um país menos poderoso, menos armado e menos
decidido. Mesmo a Suíça, havia dito Rochefoux. Não, claro, não a Suíça. Era a nação mais rica: a paz a
enriquecia, a guerra a enriquecia, a ameaça de guerra ou de paz a tornava rica. Talvez, isso sim, contra
algum tirano negro, árabe ou oriental, reinando pela força sobre a miséria, que intentasse contra a EPI um
golpe de força desesperado para apoderar-se de Coban ou para matá-lo.
O acordo secreto tinha chegado até os Estados-Maiores. Um plano comum havia sido redigido. As
esquadras da Marinha, submarinos e porta-aviões se dirigiam para o círculo polar austral para construir um
conjunto, ao largo do ponto 612, um bloco defensivo e, se necessário, ofensivo.
Os generais e almirantes pensavam com desprezo nesses sábios ridículos e suas pequenas
metralhadoras. Cada chefe de esquadra tinha como instrução não deixar, por preço algum, esse Coban
passar-se para o seu vizinho. Para isso, o melhor não era estarem lá todos juntos e se vigiarem?
Havia outras instruções mais secretas, que não vinham nem dos governos nem dos Estados-Maiores.
A energia universal, energia que há em toda parte, que não custa nada e que fabrica tudo, era a ruína
dos trustes do petróleo, do urânio, de todas as matérias-primas. Era o fim dos empresários!
Essas instruções mais secretas não foram os chefes de esquadra que as haviam recebido, e sim alguns
homens anônimos, misturados entre as tripulações.
Diziam, elas também, que não era possível deixar Coban ir para o vizinho. Acrescentavam que ele não
devia ir a lugar algum.

– Você é um bruto! – disse Simon a Hoover. – Abstenha-se de fazer perguntas pessoais.


– Uma pergunta sobre sua felicidade, não pensava...
– Sim! Você pensava! – retrucou Leonova. – Mas você gosta de fazer sofrer!
– Quer fazer o favor de se calar? – pediu Simon.
Virou-se para Elea e perguntou-lhe se ela desejava continuar.
– Sim – disse Elea, com sua indiferença costumeira. – Vou lhes mostrar minha designação. Essa
cerimônia tem lugar uma vez por ano, na Árvore-e-Espelho. Há uma Árvore-e-Espelho em cada
profundidade. Fui designada para a Quinta Profundidade, onde eu tinha nascido... – Pegou o círculo de
ouro colocado diante dela, levou-o acima de sua cabeça, colocou-o.
Lanson cortou as câmaras, desligou o cabo do pódio e ligou o canal-som sobre a tradutora.
Elea, a cabeça entre as mãos, fechou os olhos.
Uma onda violeta invadiu a grande tela, afastada e substituída por uma chama laranja. Uma imagem
confusa e ilegível tentou aparecer. As ondas a rasgaram. A tela tornou-se vermelha e começou a palpitar
como um coração desesperado. Elea não conseguia dominar suas emoções. Viram-na esticar o busto sem
abrir os olhos, inspirar profundamente e retomar a posição. Bruscamente, apareceu na tela um casal de
crianças.
Eram vistos de costas e de frente para um imenso espelho que refletia uma árvore. Entre o espelho e a
árvore, sob esta última, havia uma multidão. E em frente ao espelho, distantes alguns metros uns dos
outros, havia uns vinte casais de crianças. Todos de pé, o dorso nu, com coroas e pulseiras de flores azuis,
vestidos com uma roupa azul, curta, e calçados com sandálias. Sobre cada um de seus tenros dedos e nos
lóbulos de suas orelhas estava colada uma leve, delicada e dourada pluma de pássaro.
A menina no primeiro plano, a mais bela de todas, era Elea, reconhecível mas diferente. Diferente não
por causa da idade e sim da paz e da alegria que iluminavam seu rosto. O menino que estava a seu lado
olhava-a, e ela lhe retribuía o olhar. Ele era louro como o trigo maduro ao sol. Seus cabelos lisos caíam-lhe
retos em volta do rosto até os ombros finos, onde os músculos já começavam a mostrar seu garbo. Seus
olhos amendoados fixavam o espelho de onde os olhos azuis de Elea lhe sorriam.
Elea, adulta, fala, e a máquina traduz:
– Quando a designação é perfeita, no momento em que as duas crianças designadas se vêem pela
primeira vez, se reconhecem...
Elea na infância trocara olhares com o menino. Eram felizes e belos. Reconheciam-se como se tivessem
andado sempre à procura um do outro, sem pressa e tranqüilos, com a certeza de que se iam encontrar.
Chegado o momento do encontro, estavam juntos e se olhavam, se descobriam, felizes e maravilhados.
Atrás de cada casal de crianças estavam as duas famílias. Outras crianças com suas famílias esperavam
atrás deles. A árvore tinha um tronco castanho cujos primeiros galhos quase tocavam o chão e os mais altos
escondiam o teto, se é que havia algum. Suas folhas espessas, de um verde vivo, estriadas de vermelho,
poderiam esconder um homem da cabeça aos pés. Um grande número de adultos e de crianças
descansavam deitados ou sentados sobre os galhos ou sobre as folhas que se arrastavam sobre o solo.
Crianças saltavam de um galho para outro, como pássaros. Os adultos usavam roupas de cores diversas,
alguns inteiramente vestidos, outros – mulheres ou homens – somente dos quadris aos joelhos. Outros
levavam apenas uma faixa leve ao redor das cadeiras. Havia mulheres inteiramente nuas, mas os homens
estavam todos vestidos. Nem todos os rostos eram belos, mas todos os corpos eram harmoniosos e sadios.
De modo geral tinham, com ligeira diferença, a mesma cor de pele. Havia um pouco mais de variedade nos
cabelos, que iam do ouro puro ao ruivo e ao castanho-dourado. Alguns casais adultos se davam as mãos.
No fundo do espelho apareceu um homem vestido com uma roupa vermelha que lhe caía até os pés.
Aproximou-se do casal de crianças, parecendo se entregar a uma cerimônia breve. Depois mandou-as de
volta, de mãos dadas. Duas outras crianças vieram substituí-las.
Outros homens de vermelho apareceram à beira do espelho e se dirigiram para os outros casais de
crianças que esperavam, e que partiram alguns instantes mais tarde, de mãos dadas.
Um homem de vermelho chegou à beira do espelho e aproximou-se de Elea. Ela o olhou no espelho. Ele
lhe sorriu, colocou-se por detrás dela, consultou uma espécie de disco que estava na sua mão direita e
pousou sua mão esquerda sobre o ombro de Elea.
– Sua mãe lhe deu o nome de Elea – disse ele. – Hoje, você foi designada. Seu número é 3-19-07-91.
Repita.
– 3-19-07-91 – disse Elea menina.
– Você vai receber sua chave. Estenda sua mão.
Ela estendeu a mão esquerda, aberta, a palma para cima. A extremidade dos seus dedos veio tocar
sobre o espelho a extremidade de sua imagem.
– Diga quem é você. Diga seu nome e seu número.
– Sou Elea. 3-19-07-91.
A imagem da mão no espelho palpitou e se abriu, descobrindo uma claridade logo apagada, e fechou-se
de novo, de onde caiu um objeto na palma da mão que estava estendida. Era um anel. Um anel para um
dedo de criança, encimado por uma pirâmide truncada, cujo volume não excedia um terço daquele que
Elea adulta usava.
O homem de vermelho pegou-o e colocou-o no dedo médio da mão direita.
– Não o tire nunca. Ele crescerá com você. Cresça com ele.
Depois veio se colocar atrás do menino. Elea olhava o homem e o menino-rapaz com olhos imensos,
cada um contendo a metade da aurora. Seu rosto grave estava iluminado de confiança e de entusiasmo. Ele
era semelhante a uma planta nova cheia de mocidade e de vida, que acaba de brotar no solo obscuro e
estende para a claridade a confiança perfeita e tenra da sua primeira folha, com a certeza de que breve,
folha após folha, ela atingirá o sol...
O homem consultou seu disco, pousou sua mão esquerda sobre o ombro esquerdo do menino e disse:
– Sua mãe lhe deu o nome de Paikan...
Uma explosão vermelha rasgou a imagem, invadiu a tela, cobriu o rosto de Elea menina, apagou o céu
dos seus olhos, sua esperança, e sua alegria. A tela extinguiu-se. No pódio, Elea acabara de arrancar de sua
cabeça o círculo de ouro.
– Continuamos não sabendo para o que serve o diabo dessa chave – resmungou Hoover.
.
Tentei te chamar para o nosso mundo. Embora tenhas aceitado colaborar conosco, e talvez por isso
mesmo, eu te via recuar no passado para um abismo um pouco mais cada dia. Não havia passarela para
atravessar o despenhadeiro. Não havia nada atrás de ti, senão a morte.
Fiz trazerem do Cabo, para ti, cerejas e pêssegos.
Fiz trazer um carneiro do qual o nosso chefe tirou, para te oferecer, algumas costeletas acompanhadas
de folhas de alface romana, tenras como uma polpa de fruto. Olhaste as costeletas com horror. E me
disseste:
– É um pedaço cortado de um bicho?
Nunca tinha pensado nisso. Até aquele dia, para mim, uma costeleta não era senão uma costeleta.
Respondi meio sem jeito:
– Sim.
Olhaste a carne, a salada, as frutas e me disseste:
– Você come bicho!... Come mato!... Come árvore!...
Tentei sorrir. Respondi:
– Nós somos bárbaros...
Mandei buscar rosas. Você pensou que também comêssemos isso...

A chave continha a explicação de tudo, dissera Elea.


Foi esta a conclusão a que os sábios e os jornalistas chegaram, reunidos na Sala de Conferências, no
decorrer das reuniões seguintes. Elea havia se tornado um pouco mais senhora de suas emoções e pôde
contar e mostrar a sua vida e a de Paikan, a vida de um casal de crianças que se tornou um casal de adultos,
e tomou seu lugar na sociedade.
Depois da guerra de uma hora, o povo de Gondawa tinha ficado enterrado. Os abrigos haviam
demonstrado sua eficiência. Apesar do Tratado de Lampa, ninguém ousava jamais acreditar que a guerra
não recomeçaria. A sabedoria aconselhava a ficar no abrigo e nele viver. A superfície estava devastada. Era
necessário reconstruir tudo. A sabedoria aconselhava a reconstruir o abrigo.
O subsolo foi ampliado em profundidade e extensão. Sua arrumação englobava cavernas naturais, os
lagos e os rios subterrâneos. A utilização da energia universal permitia-lhes dispor de uma potência sem
limites, e que poderia tomar todas as formas. Era utilizada para recriar sob o solo uma vegetação mais rica
e mais bela que a que havia sido destruída na superfície. Numa claridade semelhante à luz do dia, as
cidades subterrâneas transformaram-se em jardins, bosques, florestas. Novas espécies foram criadas,
crescendo numa rapidez que tornava visível o desenvolvimento de uma planta ou de uma árvore. Máquinas
flexíveis e silenciosas se deslocavam para baixo e em todas as direções, fazendo desaparecer a terra diante
delas, bem como a rocha. Arrastavam-se pelo chão, pelas abóbadas e pelas paredes, deixando atrás de si
tudo polido e mais duro do que o aço.
A superfície não era senão uma tampa, da qual tiravam partido. Cada parcela que tinha permanecido
intata foi preservada, limpa, arrumada para ser um lugar de descanso. Lá, era um pedaço de floresta que
haviam repovoado com animais; mais longe, um curso d'água de rios preservados, um vale, uma praia
sobre o oceano. Aí construíram edifícios para jogos e para quem quisesse arriscar a vida exterior que a nova
geração considerava como uma aventura.
Embaixo a vida se organizava e se desenvolvia, dentro da alegria e da razão. As usinas silenciosas
continuavam fabricando tudo de que o homem tinha necessidade. A chave era a base do sistema de
distribuição.
Cada ser vivo de Gondawa recebia anualmente uma parte igual de crédito, calculada segundo a
produção total das usinas silenciosas. Esse crédito estava escrito a seu favor numa conta gerada pelo
computador central. Era mais do que o suficiente para lhes permitir viver e aproveitar tudo o que a
sociedade podia oferecer-lhes. Cada vez que um gonda desejava qualquer coisa de novo – roupas, uma
viagem, objetos –, pagava com sua chave. Dobrava o dedo maior, enfiava sua chave no lugar já previsto
para este fim, e sua conta, no computador central, era logo diminuída do valor da mercadoria ou serviço
pedido.
Alguns cidadãos, de uma qualidade excepcional, como Coban, diretor de uma universidade, recebiam
um crédito suplementar. Mas isso não lhes servia praticamente para nada. Um número muito pequeno de
gondas chegava a gastar seu crédito anual. Para evitar o acúmulo das possibilidades de pagamento entre as
mesmas mãos, o que restava dos créditos era automaticamente anulado no fim de cada ano. Não havia
pobres nem ricos, havia somente cidadãos que podiam obter todos os bens que desejassem. O sistema da
chave permitia distribuir a riqueza nacional, respeitando ao mesmo tempo a igualdade de direitos dos
gondas e a desigualdade de suas naturezas, cada um gastando seu crédito segundo seu gosto e suas
necessidades.
Uma vez construídas e começando a funcionar, as usinas trabalhavam sem mão-de-obra e com seu
próprio cérebro. Mas não dispensavam completamente os homens, pois, se asseguravam a produção,
restava sempre alguma coisa em que eram necessárias a mão e a inteligência para realizar. Cada gonda
tinha que dar ao trabalho a metade de um dia em cinco dias, e esse tempo podia ser repartido em pedaços.
Ele podia, se desejasse, trabalhar mais. Podia, se quisesse, trabalhar menos ou nada. O trabalho não era
remunerado. Aquele que escolhesse trabalhar menos via seu crédito diminuir. Ao que escolhesse não
trabalhar nada, restava com que subsistir, assim como um mínimo de supérfluo.
As usinas eram colocadas no fundo das cidades, na sua parte mais profunda. Ficavam reunidas, juntas,
ligadas entre si. Cada usina era parte de um conjunto que se ramificava sem cessar em novas usinas
germinantes e que reabsorviam aquelas que não davam mais um serviço satisfatório.
Os objetos que as usinas fabricavam não eram produtos de conjunto e sim de síntese. A matéria-prima
era a mesma em todo lugar. Energia universal. A fabricação de um objeto no interior de uma máquina
imóvel parecia o desenvolvimento, nas entranhas de uma mulher, do organismo incrivelmente complexo
de uma criança a partir desse quase nada que é um óvulo fecundado. Mas, nas máquinas, não havia o
quase, havia somente o nada. E a partir desse nada subia para a cidade subterrânea numa onda múltipla,
distinta e ininterrupta, tudo o que era preciso às necessidades e às alegrias da vida. O que não existe existe,
concluía-se.
A chave tinha uma outra utilidade, também importante: impedia a fecundação. Para conceber uma
criança, o homem e a mulher deveriam tirar os anéis. Se um dos dois o conservasse, a fecundação era
impossível. A criança não podia nascer senão quando desejada pelos dois.
A partir do grande dia da designação, quando ele o recebia, um gonda não podia mais tirar seu anel. E,
no decorrer dos dias, este lhe fornecia tudo de que ele tinha necessidade, tudo o que desejava. Era a chave
da sua vida, e quando a vida terminava o anel continuava no seu dedo, no momento em que ele entrava na
máquina imóvel que devolvia os mortos à energia universal. O que não existe existe.
Também o instante em que os dois esposos tiravam o seu anel, antes de se unirem para fazer uma
criança, era banhado de uma emoção excepcional. Sentiam-se mais que nus, como se tivessem tirado ao
mesmo tempo que o anel a própria pele. Dos pés à cabeça, tocavam-se ao vivo e a fundo. Entravam numa
comunhão total. Ele a penetrava e os dois se fundiam. Para os dois corpos o espaço tornava-se o mesmo. A
criança era concebida numa única alegria.
A chave era suficiente para manter a população de Gondawa num nível constante. Enisorai não tinha a
chave e não a queria. Enisorai pululava de gente. Enisorai conhecia a equação de Zoran e sabia utilizar a
energia universal, mas servia-se dela para a proliferação e não para o equilíbrio. Gondawa se organizava,
Enisorai se multiplicava. Gondawa era um lago, Enisorai era um rio. Gondawa era a sabedoria, Enisorai a
força. Essa força não podia se desenvolver e se exercer senão fora de si mesma. Foram os engenhos de
Enisorai que se colocaram em primeiro lugar na Lua. Gondawa logo a seguira para não se deixar dominar.
Segundo os cálculos de balística, a face leste da Lua convinha perfeitamente à partida dos engenhos de
exploração em direção ao sistema solar. Enisorai construiu uma base aí, Gondawa também. A Terceira
Guerra acendeu-se nesse lugar, de um incidente entre as guarnições das duas bases. Enisorai queria ser a
única sobre a Lua.
O medo pôs fim à guerra. O Tratado de Lampa dividiu a Lua em três zonas, uma gonda, uma enisor e
uma internacional. Esta ficava a leste. As duas nações tinham feito um acordo para construírem juntas uma
base de lançamento.
Os outros povos não tinham direito à partilha da Lua. Viviam à margem, mas tiravam proveitos.
Recebiam de Enisorai ou de Gondawa promessas de produção das máquinas imóveis que supriam as suas
necessidades. Os mais hábeis recebiam dos dois lados. Tinham recebido também, dos dois lados, muitas
bombas durante a Terceira Guerra. Menos de Gondawa, muito mais de Enisorai.
Enisorai tinha uma população muito numerosa para poder ser abrigada. Porém sua fecundidade
substituíra os mortos numa geração.
Pelo Tratado de Lampa, Enisorai e Gondawa tinham prometido não utilizar mais as “bombas terrestres”;
as que restaram foram jogadas no espaço, colocadas em órbita ao redor do Sol. As duas grandes nações
tinham também tomado um outro compromisso, o de não fabricar armas que ultrapassassem em força
destrutiva aquelas que acabavam de ser proscritas.
Mas uma formidável força de expansão desenvolvia-se em Enisorai. Enisorai começou a fabricar armas
individuais utilizando a energia universal. Cada uma dessas armas tinha força de choque limitado. Mas nada
poderia resistir ao seu conjunto. E a cada dia aumentava o número dos exércitos. O rio impetuoso da vida
em expansão enchia de novo seu leito, prestes a transbordar.
Então o Conselho Dirigente de Gondawa decidiu sacrificar a vila central, Gonda-1. Foi evacuada,
reabsorvida e, no seu lugar subterrâneo, as máquinas começaram a trabalhar. E o Conselho Dirigente de
Gondawa fez saber ao Conselho do Governo de Enisorai que, se uma nova guerra estourasse, seria a última.
Assim, reunião após reunião, através das lembranças diretas de Elea projetadas na tela, e pelas
múltiplas perguntas que lhe faziam, os sábios da EPI aprenderam a conhecer esse mundo desaparecido,
que havia resolvido certos problemas que tanto preocupavam o nosso. Mas aquele mundo também parecia
arrastado de maneira inelutável para disputas que nada de razoável justificava.
Viu-se logo que não era possível deixar aparecer nas telas da tevê publicamente as lembranças diretas
de Elea. Era necessário fazer uma escolha, entre as imagens projetadas, pois ela evocava sem o menor
constrangimento os momentos mais íntimos de sua vida com Paikan. De um lado, ela associava à beleza de
Paikan, à sua e à união dos dois o orgulho e a alegria, jamais a vergonha; de outro lado, parecia recordar
cada vez mais suas lembranças para si mesma, sem se preocupar com a assistência, que procurava
perscrutar todos os detalhes. Aliás, os homens de hoje eram tão diferentes dela, tão atrasados, e bizarros
na maneira de pensar, e no comportamento, que lhe pareciam tão distantes ou ausentes quanto animais
ou objetos.
Elea evocava os momentos mais importantes de sua existência, os mais felizes, os mais dramáticos, para
revivê-los uma segunda vez. Entregava-se interminavelmente à sua memória, como a uma droga de
ressurreição, e só às vezes as ondas escarlates da emoção conseguiam tirá-la desse estado. Os sábios
descobriram pouco a pouco, em torno dela e de Paikan, o mundo fabuloso de Gondawa.

No seu cavalo branco de crinas compridas, delgada como um galgo, Elea galopava rumo à floresta
Poupada. Adiante de Paikan, corria rindo para ter a felicidade de se deixar alcançar!
Paikan havia escolhido um cavalo azul porque seus olhos tinham a cor dos olhos de Elea. Galopava logo
atrás dela, alcançava-a pouco a pouco, fazia durar a alegria. Seu cavalo estendia as narinas azuis para a
longa cauda branca que flutuava ao vento. A extremidade dos longos pêlos penetrou nas narinas delicadas.
O cavalo azul sacudiu sua cabeça, ganhou um pouco mais de terreno, alcançou o outro com a boca,
mordendo-lhe a crina.
O cavalo branco saltou, relinchou, escoiceou. Elea o segurava firme e o apertava com suas coxas
robustas. Ela ria, saltava, dançava junto com ele...
Paikan acariciou o cavalo azul e o fez largar sua presa. Entraram a passo curto na floresta, o branco e o
azul, lado a lado, acalmados, maliciosos, olhando-se com o canto do olho. Seus cavaleiros se seguravam
pela mão. As árvores imensas, escapadas da Terceira Guerra, erguiam em enormes colunas seus troncos
couraçados de escamas castanhas. Ao sair do solo, elas pareciam hesitar, ensaiando uma ligeira curva
preguiçosa, mas que era apenas um impulso para se lançar vertiginosamente num salto vertical e absurdo
em direção à luz que suas próprias folhas repeliam. Muito alto, suas folhas entrelaçadas faziam um teto
que o vento agitava sem cessar, com um barulho longínquo de multidão em marcha, abrindo frestas por
onde o sol se filtrava. As plantas rasteiras cobriam o solo num tapete áspero. As corças esfregavam as
patinhas para descobrir as folhas mais tenras que depois erguiam com a ponta dos lábios e arrancavam
num movimento brusco de pescoço. O ar quente cheirava a resina e a cogumelo.
Elea e Paikan chegaram à beira do lago. Deixaram-se escorregar de seus cavalos, que voltaram para a
floresta a galope, perseguindo-se como escolares. Havia pouca gente na praia. Uma tartaruga enorme,
exausta, com as bordas do casco gastas, arrastava sua massa pesada na areia, carregando um menino nu às
costas.
Ao longe, na outra margem, que a guerra havia destruído, abria-se o grande orifício da Boca. Aí se via
subir ou descer uma quantidade de bolhas de todas as cores. Eram os engenhos de locomoção a curta ou
longa distância que saíam de Gonda pelas chaminés de lançamento, ou que para aí voltavam. Alguns
passavam a uma altitude baixa em cima do lago, dando a impressão de fazer um barulho de seda
acariciada.
Elea e Paikan dirigiram-se para os elevadores que atravessavam a areia, na extremidade da praia.
? Atenção! ? disse uma voz muito sonora.
Parecia vir ao mesmo tempo da floresta, do lago e do céu.
? Atenção, escutem! Todos os seres vivos de Gondawa receberão a partir de amanhã, pelo correio, a
arma G e o Grão Negro. Haverá sessões para o ensino do uso da arma G em todos os centros de recreação
da superfície e das profundezas. Os faltosos verão sua conta debitada de um cêntimo por dia a partir do
décimo primeiro dia da convocação. Escutem bem, está terminado.
? Estão loucos ? disse Elea.
A arma G era para matar; o Grão, para morrer.
Nem Elea nem Paikan tinham vontade de matar ou de morrer.
Depois de terem feito os mesmos estudos, haviam escolhido a mesma carreira. A de engenheiro de
tempo, a fim de viverem na superfície. Moravam numa Torre do Tempo acima de Gonda-7.
Para chegarem a casa, teriam que tomar um veículo. Preferiam voltar pela cidade, escolheram um
elevador para dois cujo cone verde brilhava suavemente acima da areia. Cada um enfiou sua chave na placa
de comando e o elevador abriu-se como um fruto maduro. Entraram no seu interior cor-de-rosa. O cone
desapareceu no solo e fechou-se em cima deles. Saíram na Primeira Profundidade de Gonda-7. Serviram-se
novamente de suas chaves para abrir as portas transparentes de acesso à décima segunda avenida. Era
uma estrada principal. Suas múltiplas pistas de relva florida se deslocavam numa velocidade crescente do
exterior para o centro. Árvores baixas serviam de cadeira e ofereciam o apoio de seus galhos aos viajantes
que preferiam permanecer de pé. Pássaros amarelos semelhantes a gaivotas voavam velozmente, lutando
com a pista central, grasnando de prazer.
Elea e Paikan saíram na Avenida da Encruzilhada do Lago e tomaram a alameda que levava ao elevador
de sua torre. Um riacho partia da encruzilhada e corria ao longo do caminho. Pequenos mamíferos ruivos,
de ventre branco, menores do que um gato doméstico, brincavam na relva ou se escondiam atrás dos tufos
para pegar os peixes. Tinham uma cauda curta e chata e uma bolsa ventral de onde saía às vezes uma
pequenina cabeça com olhos meigos e maliciosos, que roía uma espinha. Fazendo um ruído sibilante,
vieram brincar entre os pés de Paikan e de Elea. Ágeis e espertos, desvencilhavam-se quando o bico de uma
sandália estava a ponto de pisar-lhes uma pata ou a cauda.
A Gonda-7 subterrânea tinha sido feita sob as ruínas da Gonda-7 da superfície. Da antiga cidade não
restava mais do que as gigantescas ruínas, acima das quais a Torre do Tempo se erguia como uma flor no
meio de destroços.
No cimo da sua longa haste se espalhavam as pétalas do terraço circular, com árvores, gramados,
piscina e um cais de atracação, abrigado do vento, que, neste local, soprava do oeste.
Rodeado pelo terraço, o apartamento abria-se sobre ele por todos os lados. Meias repartições curvas,
mais ou menos altas, interrompidas, dividiam-no em peças redondas, ovóides, irregulares, íntimas e no
entanto não separadas. Acima do apartamento, a cúpula de observação coroava a torre com uma calota
transparente, ligeiramente esfumaçada de azul. O elevador chegava à peça do centro, perto da fonte baixa.
Ao entrar, Elea abriu com um gesto todos os vidros. O apartamento formou um só terraço, e a brisa
ligeira da tarde o visitou. Algas multicores se balançavam nas correntes móveis da piscina. Elea jogou sua
roupa e escorregou para dentro da água. Um cardume de peixes-agulha, negros e vermelhos, vieram
beliscar-lhe a pele, e depois, assustados, desapareceram num arrepio.
Na cúpula, Paikan assegurou-se com um olhar de que tudo estava bem. Aí não havia aparelhagem
complicada, a cúpula em si mesma era um instrumento, obedecendo aos gestos e aos contatos das mãos
de Paikan, trabalhando quando ele lhe ordenava.
Tudo ia bem, o céu estava azul, a cúpula ronronava docemente. Paikan despiu-se e juntou-se a Elea na
piscina. Vendo-o chegar, ela riu e mergulhou. Ele a encontrou atrás dos véus irisados de um peixe-cortina
preguiçoso que os olhava com um olho redondo, coral.
Paikan ergueu os braços e deixou-se escorregar por trás dela. Ela se apoiou de encontro a ele, sentada,
flutuando, leve. Ele apertou-a contra o ventre, enlaçou-a com os braços e seu desejo erguido a penetrou.
Reapareceram na superfície como um só corpo. Ele estava atrás dela, e ela enrascada e apoiada nele, que a
pressionava com o braço contra seu peito. Colocando-a de lado com ele, com o braço esquerdo começou a
nadar. Cada tração o empurrava mais para dentro dela, enquanto levava os dois para a margem de areia.
Elea estava passiva como um destroço quente, numa inércia amorosa. Chegaram à borda e se colocaram
meio fora da água. Ele a mantinha cercada, encerrada, assediada: havia entrado como o conquistador
desejado diante do qual são abertas todas as portas. E ele percorreu, lentamente, docemente, longamente
todos os seus segredos.
No rosto e no ouvido, ela sentia a água morna e a areia subir e descer, descer e subir. A água vinha
acariciar o canto de sua boca entreaberta. Os peixes-agulha arrepiavam a parte submersa de sua coxa.
No céu onde a noite começava, algumas estrelas se acenderam. Paikan quase não se mexia. Ele era nela
um tronco de árvore liso, duro, palpitante e macio, um tronco de carne bem-amado, sempre lá, tornado
mais forte, mais rijo, mais quente, subitamente queimando, imenso, abrasado, vermelho, queimando no
seu ventre inteiro, toda carne e os ossos incendiando até o céu. Ela apertou com as suas mãos as mãos
fechadas ao redor dos seus seios e gemeu longamente na noite que chegava.
Uma paz imensa substituiu a claridade. Ela ficou ao redor de Paikan. Ele continuava sempre dentro dela,
duro e sereno. Ela repousou em cima dele como um pássaro que adormece. Muito lentamente, muito
docemente, ele começou a lhe preparar uma nova alegria.

Dormiam sobre a grama do seu quarto, tão fina e macia quanto o pêlo do ventre de um gato. Uma
coberta branca, apenas colocada sobre eles, sem peso, morna, adaptava sua forma e sua temperatura às
necessidades de sua quietude. Elea acordou um instante, procurou a mão aberta de Paikan e nela colocou
seu punho fechado. A mão de Paikan fechou-se sobre ele. Elea suspirou de felicidade e tornou a
adormecer.
O uivo prolongado de uma sirene fez com que eles se levantassem, espantados.
? O que é? Não é possível! ? exclamou Elea.
Paikan enfiou sua chave na placa de imagem. Diante deles, a parede iluminou-se e se abriu. O rosto
familiar do locutor, de cabelos vermelhos, apareceu no vídeo:
? Alarma geral. Um satélite não identificado dirige-se para Gondawa sem responder às perguntas de
identificação. Vai penetrar no espaço territorial. Se ele continuar não respondendo, nosso dispositivo de
defesa vai entrar em ação. Todos os que se encontram fora devem regressar imediatamente à cidade.
Apaguem todas as luzes. Nossas emissões da superfície vão ser suspensas. Escutem, está terminado.
A imagem na parede achatou-se, veio colar-se à superfície e desapareceu.
? É preciso descer? ? perguntou Elea.
? Não. Venha por aqui...
Pegou a coberta, embrulhou Elea e levou-a para o terraço. Meteram-se entre as folhas baixas de uma
palmeira de seda e apoiaram-se à altura da rampa da extremidade.
O céu estava escuro, sem lua. As numerosas estrelas brilhavam com um esplendor perfeito. As bolas
luminosas dos engenhos voadores pareciam maiores ou menores segundo sua altitude. A certa altura
modificaram suas rotas e pareceram ser aspirados por uma corrente que os levou todos na direção da
Boca.
No solo, o sinal de alerta havia acordado os habitantes das casas de repouso amarradas na planície, ou
entre as ruínas, nos limites da água e do serviço. Seus casulos translúcidos mostravam na noite a claridade
de suas formas: peixe de ouro, flor azul, ouro vermelho, funil verde, esfera, estrelas, poliedro, gota... Alguns
estavam prestes a voar e a tomar o caminho da Boca. Outros apagaram-se rapidamente. Uma serpente
branca continuou acesa iluminando uma muralha destruída.
? O que é que aqueles lá estão esperando para apagar? ? murmurou Elea.
? De qualquer maneira, é inútil... se é uma arma de ataque, ela terá outros meios de encontrar seus
objetivos.
? Você acredita que seja uma?
? Sozinha, é pouco provável...
Diante deles, de repente, um traço luminoso subiu no horizonte. Depois dois, três, quatro.
? Estão atirando!... ? disse Paikan.
Os dois olharam para o céu onde mais nada aparecia senão a indiferença das estrelas no fundo do
infinito. Elea estremeceu, abriu a coberta e apertou Paikan contra si. Houve, muito alto, bruscamente, uma
nova estrela, gigantesca, que se rasgou e se espalhou numa cortina lenta de claridade rósea, ionizada.
? Olhe lá!... Eles não podiam errar!...
? O que você acha que era?
? Não sei, reconhecimento talvez. Ou então simplesmente um cargueiro infeliz cujos emissores estavam
em pane; em todo o caso estavam, não estão mais.
O alarma fez com que ficassem novamente sobressaltados. Ninguém se acostumava a tão horrível
barulho. Ao fim do alerta, as casas de repouso voltaram a se acender, umas depois das outras. Ao longe,
um bando de engenhos elevou-se da Boca como um facho de faíscas.
Na parede do quarto, a imagem renasceu e atravessou o muro. Elea e Paikan desejavam ter notícias.
Mas depois dessa intrusão de absurdo e de horror na doçura da noite, esta lhes pareceu tão frágil, tão
preciosa, que eles não quiseram mais deixá-la. Paikan enfiou sua chave numa placa da rampa. A imagem
desapareceu na parede do quarto e saiu. Paikan a dirigiu virando a placa móvel e instalou-a na folhagem da
palmeira de seda. Sentou-se no gramado, as costas na rampa, Elea apertada contra ele. A brisa do oeste,
apenas fresca, soprava em volta da torre e vinha banhar seus rostos. As folhas de seda estremeciam e
flutuavam no vento leve. A imagem estava luminosa e estável nas suas três dimensões e nas suas cores. O
locutor de cabelos vermelhos falava com gravidade, mas não se entendia nenhuma das palavras que
pronunciava. Um cubo negro nasceu do fundo da tela, invadiu todo o feixe receptor e apagou a imagem. O
rosto nervoso de um homem muito jovem apareceu no cubo. Seus olhos castanhos brilhavam de paixão,
seus cabelos lisos, quase negros, caíam-lhe até a altura das orelhas.
? Um estudante! ? disse Elea7.
Ele falava com veemência:
? ...a paz! Dêem-nos a paz! Nada justifica a guerra! Nunca! Mas nunca ela será mais atroz e mais
absurda do que hoje, no momento em que os homens estão a ponto de ganhar a batalha contra a morte!
Vamos nos massacrar por causa de prados floridos na Lua? Por causa de rebanhos em Marte e seus
pastores negros? Absurdo! Absurdo! Há outros caminhos para as estrelas! Deixem os enisores pilharem o
espaço! Eles não comerão tudo. Deixem-nos se baterem contra o infinito! Nós travamos aqui uma batalha
bem mais importante! Por que o Conselho Dirigente deixa vocês na ignorância dos trabalhos de Coban?
Digo, em nome de todos aqueles que há anos trabalham a seu lado: ele ganhou! Está resolvido! No
laboratório 17 da universidade, embaixo da campânula 42, uma mosca vive há quinhentos e quarenta e
cinco dias! Seu tempo normal de vida é de quarenta dias! Ela vive, está jovem, está soberba. Há um ano e
meio ela bebeu a primeira gota experimental do soro universal de Coban! Deixem Coban trabalhar. Seu
soro está quase pronto! As máquinas logo vão poder fabricá-lo! Vocês não envelhecerão mais! A morte
estará infinitamente distante! A não ser que nos matem! A não ser em caso de guerra! Exijam do Conselho
Dirigente que recuse a guerra! Que declare a paz com Enisorai! Que deixe Coban trabalhar! Que ele...
Com uma piscada, sua imagem reduziu-se ao tamanho de uma noz, e desapareceu. O homem de
cabelos vermelhos foi primeiro um fantasma transparente, depois uma imagem sólida.
? Queiram desculpar esta emissão pirata...
O cubo absorveu-o num bloco, revelando novamente o rapaz veemente.
? ...lançados em órbita longínqua, mas inventaram o pior! O Conselho Dirigente poderá nos dizer que
arma monstruosa ocupa agora Gonda-1? Os enisores são homens como nós! Que restará de nossas
esperanças e de nossas vidas, se estas...
O cubo tornou-se negro, achatou-se em duas dimensões e o busto do locutor retomou seu lugar.
? O presidente do Conselho Dirigente vai falar.
O Presidente Lokan apareceu. Seu rosto magro estava sério e triste. Seus cabelos brancos caíam até os
ombros, cujo lado esquerdo estava nu. Sua boca fina, seus olhos de um azul muito claro fizeram um esforço
para sorrir enquanto pronunciava as palavras de confiança. Sim, tinham acontecido incidentes na zona
internacional da Lua, sim, os dispositivos de defesa do continente tinham destruído um satélite suspeito,
sim, o Conselho Dirigente teve que tomar medidas, mas nada disso era verdadeiramente grave. Ninguém
dava mais importância à paz do que os homens que tinham por dever dirigir os destinos de Gondawa. Tudo
seria feito para preservá-la.
? Coban é meu amigo, quase meu filho. Estou a par dos seus trabalhos. O conselho espera o resultado
de suas experiências sobre o homem para ordenar, se ele for positivo, a construção da máquina que
fabricará o soro universal. É uma esperança imensa, mas não deve nos desviar de nossa vigilância. Quanto
àquilo que ocupa o lugar de Gonda-1, Enisorai sabe e eu lhes direi somente o seguinte: é uma arma tão
terrífica, que só a sua existência já é o bastante para garantir a paz.
Paikan colocou a mão sobre a placa de comando e a imagem desapareceu. O dia nascia. Um pássaro que
se parecia com um melro, mas cuja plumagem era azul e a cauda frisada, começou a cantar do alto da
árvore de seda. De todas as árvores do terraço e das moitas floridas, pássaros de todas as cores lhe
responderam. Para eles não havia angústia, nem de dia nem de noite. Não havia caçadores em Gondawa.

Os prados floridos da Lua... os rebanhos de Marte e seus pastores negros.


Os sábios da EPI pediram explicações. Elea tinha ido à Lua, numa viagem de recreio com Paikan. Pôde
mostrar-lhes. Eles viram os “prados floridos” e as florestas de árvores frágeis, fracas, de troncos finos
intermináveis, desabrochando em espigas ou em tufos que as faziam parecer gramíneas imensas.
Viram Elea e Paikan, depois de terem descido da nave que os havia levado junto com outros
passageiros, brincar como crianças na pouca gravidade. Tomavam impulso com alguns passos gigantes,
saltavam juntos de mãos dadas, atravessavam os riachos com um salto, subiam ao cimo das colinas e
passavam por cima das árvores, descansavam sobre suas espigas cobertas de grãos de pólen grandes como
laranjas, que sacudiam para fazê-las voar em nuvens multicores e caírem numa chuva de flocos.
Todos os viajantes faziam a mesma coisa, e a nave parecia ter desembarcado uma carga de borboletas
fugazes que se afastavam dela em todas as direções, pousando aqui e ali, no campo verde, sob o céu de um
azul profundo.
Apesar do pouco esforço de que necessitavam, essas brincadeiras acabavam muito rápido, pois o ar
rarefeito trazia o cansaço. Os viajantes acalmavam seus corações sentando-se à beira dos riachos ou
caminhando em direção ao horizonte que parecia sempre próximo, sempre fácil de atingir, e que fugia
como todos os horizontes. Mas sua proximidade e sua curvatura visível proporcionavam aos passeantes
uma sensação que as dimensões da Terra não lhes permitiam experimentar: a sensação ao mesmo tempo
excitante e apavorante de caminhar sobre uma bola perdida no infinito.
Os sábios não viram, em lugar algum nessas imagens, traços de crateras, nem grandes nem pequenas...
Elea não conhecia Marte, aonde só tinham ido até então as naves dos exploradores ou dos militares.
Mas ela havia visto “os pastores negros”. E havia reconhecido um, aqui mesmo, na EPI!
A primeira vez que ela encontrara Shanga, o africano, havia manifestado sua surpresa, e o havia
designado por palavras a que a tradutora havia dado a seguinte interpretação: “O pastor vindo do nono
planeta”. Foi preciso um longo diálogo para compreender primeiro o hábito gonda de contar os planetas
não a partir do Sol, mas a partir do exterior do sistema solar. Em seguida, que o dito sistema não
compreendia para eles nove planetas mas sim doze, ou seja, três planetas além do maléfico e distante
Plutão.
Esta novidade lançou os astrônomos do mundo inteiro num abismo de cálculos, de vãs observações e de
discussões amargas. Que esses planetas existissem ou não, o nono, em todo o caso, no espírito de Elea, era
Marte. Ela afirmou que ele era habitado por uma raça de homens de pele negra e que os navios gondas e
enisores haviam trazido algumas famílias. Antes disso não existia na Terra nenhum homem de cor negra.
Shanga ficou transtornado, e com ele todos os negros do mundo, que souberam rapidamente da notícia.
Raça infeliz, sua vida errante não tinha então começado com os mercadores de escravos! Já do fundo dos
tempos seus infelizes ancestrais arrancados da África tinham sido eles mesmos arrancados de sua pátria no
céu. Quando terminaria tanta infelicidade? Os negros americanos se juntaram nas igrejas e cantaram:
“Senhor, fazei cessarem as minhas atribulações! Senhor, levai-me de volta para a minha pátria celeste”.
Uma nova nostalgia nascia no grande coração coletivo da raça negra.

Depois de se terem alimentado e banhado, Elea e Paikan subiram pela pequena rampa interna para a
cúpula de trabalho. Acima da prateleira horizontal em semicírculo que corria ao longo da parede
transparente, faixas de onda mostravam imagens de nuvens diversas em evolução. Uma delas inquietou
Paikan. Depois de consultar Elea, chamou a Central do Tempo. Uma imagem nova iluminou-se acima da
mesa. Era o rosto do seu chefe de serviço, Mikan. Parecia cansado. Seus longos cabelos grisalhos estavam
sem brilho, despenteados, e seus olhos vermelhos. Saudou-o.
? Você estava em casa esta noite?
? Sim.
? Viu aquilo? Lembrou-me coisas muito tristes! É verdade que vocês não tinham nascido, nem um nem
outro. Mas não se pode deixar que eles ajam assim, esses sem-vergonhas! Por que você me chamou?
Alguma novidade?
? Uma turbulência. Olhe!...
Paikan abriu três dedos e fez um gesto. Uma imagem desapareceu, enviada à Central do Tempo.
? Estou vendo... ? disse Mikan. ? Não gosto disso... Se a deixarmos agir, ela vai perturbar todo o nosso
dispositivo. Quais as possibilidades que você tem nesse setor?
? Posso derivá-la ou apagá-la.
? Então faça isso, apague, apague, não gosto nada disso...
A imagem de Mikan desapareceu. A Torre do Tempo de Gonda-7 e todas as outras semelhantes
mantinham acima do continente uma rede de condições meteorológicas controladas, cujo fim era
reconstituir o clima transformado pela guerra, a fim de permitir que renascesse a vegetação.
Um sistema automático assegurava a manutenção das condições previstas. Era muito raro que Paikan
ou Elea tivessem que intervir. Na ausência de um deles, outra torre teria feito o necessário para destruir no
ovo o pequeno ciclone perturbador.
Uma casa de repouso em forma de cone azul-pálido chegou até a altura da cúpula e foi pousar perto da
auto-estrada quebrada, cujas doze pistas arrancadas se espalhavam como um buquê virado em direção ao
céu. Não haviam consertado as auto-estradas. As usinas não fabricavam mais veículos de rodas ou de
esteiras. Os transportes subterrâneos, pistas, avenidas ou elevadores, eram todos coletivos, e os da
superfície todos aéreos... Podiam sobrevoar o solo a alguns centímetros ou em altitudes consideráveis, a
qualquer velocidade, e pousar em qualquer lugar.
Os casais da geração de após-guerra que utilizavam as casas de repouso não aproveitavam nada de suas
possibilidades. Não ousavam se aventurar além das Bocas, como os pequenos marsupiais em relação à
bolsa materna. Era por essa razão que se viam tantas concentrações de casas móveis na beira ou mesmo no
meio das ruínas das cidades antigas, que geralmente cobriam as cidades subterrâneas. Os gondas mais
idosos, que ainda se lembravam da vida exterior, percorriam o continente em todos os sentidos, à procura
de fragmentos de superfície ainda vivos, e voltavam a se enterrar com a visão horrível dos espaços
vitrificados, e o pungente pesar de um mundo desaparecido.
Elea verificou se a correspondência havia chegado. A caixa transparente continha duas armas G com seu
cinto e duas esferas minúsculas que deviam conter, cada uma, um Grão Negro. Havia ainda três plaquetas-
correio, das quais duas de cor vermelha, a cor das comunicações oficiais.
Elea abriu a caixa com sua chave, pegou com repugnância as armas e os grãos e colocou-os sobre uma
mesa.
? Você vem ouvir a correspondência? ? perguntou a Paikan.
Este deixou a cúpula continuar sozinha o trabalho e aproximou-se.
Pegou as placas vermelhas, franzindo as sobrancelhas. Uma trazia o seu nome e o selo do Ministério da
Defesa, a outra o nome de Elea e o selo da universidade.
? O que é isso? ? perguntou ele.
Mas Elea já havia introduzido na fenda de leitura a plaqueta verde sobre a qual havia reconhecido o
retrato de sua mãe. O rosto dela se materializou acima da tela-leitura. Era um rosto um pouco mais idoso
que o de Elea e parecia-se muito com ela, com uma coisa qualquer de mais frívolo.
? Escute, Elea ? disse ela ?, espero que você esteja bem; eu estou. Parto para Gonda-41, não tenho
notícias do seu irmão. Ele foi mobilizado em plena noite para levar um comboio de tropas para a Lua e não
deu mais sinal de vida há oito dias. É claro, tudo isso são histórias militares. Eles não podem deslocar uma
formiga sem fazer um mistério de mamute. Mas Anea está sozinha com seu bebê, e muito inquieta. Eles
bem poderiam ter esperado um pouco antes de tirar suas chaves! Faz somente dez anos que foram
designados. Trate de não fazer como eles, vocês têm bastante tempo, agora não é de maneira alguma o
momento de fazer filhos! Enfim, é assim, não há nada a fazer, vou até lá. Mandarei notícias. Cuide um
pouco do seu pai, ele não pode me acompanhar, está mobilizado em seu trabalho. Creio que o conselho e
os militares estão todos loucos! Enfim, não se pode fazer nada, vá visitá-lo e preste atenção no que ele
come; quando está sozinho aperta a máquina de comer de qualquer maneira, não presta atenção a nada, é
uma criança. Escute, Elea, está terminado.
? Forkan mobilizado. Seu pai também! Isso é incrível! O que é que eles estão preparando?
Nervosamente, Paikan enfiou uma das plaquetas vermelhas na fenda de leitura. O emblema da Defesa
apareceu acima do quadro: um ouriço redondo cujos espinhos lançavam chamas.
? Escute, Paikan ? disse uma voz indiferente...
Era uma ordem de mobilização no local do seu trabalho.
A segunda placa vermelha introduzida na fenda de leitura materializou acima do quadro o emblema da
universidade, que não era outro senão o sinal da equação de Zoran.
? Escute, Elea ? disse uma voz grave ?, sou Coban!
? Coban!
Seu rosto apareceu no lugar da equação de Zoran. Todos os seres vivos de Gondawa o conheciam. Era o
homem mais célebre do continente. Tinha dado a seus compatriotas o soro 3 que os tornava refratários a
todas as doenças, e o soro 7, que os permitia recuperar rapidamente as forças depois de qualquer esforço
que fizessem. Graças a isso o equivalente da palavra fadiga estava em vias de desaparecer da língua gonda.
No seu rosto magro de faces encovadas, seus grandes olhos negros brilhavam com a chama do amor
universal. Esse homem não pensava senão nos outros homens, e, acima dos homens, na própria vida, nas
suas maravilhas e nos seus horrores, contra os quais lutava permanentemente, com toda a sua inteligência
e todas as suas forças. Tinha os cabelos negros cortados curto, na altura das orelhas. Tinha trinta e dois
anos, mas parecia tão jovem quanto seus estudantes, que o veneravam e copiavam seu corte de cabelo.
? Escute, Elea, sou Coban. Quis informá-la pessoalmente de que, a meu pedido, você estará, em caso de
mobilização total, convocada para um posto especial na universidade, junto a mim. Não a conheço e desejo
conhecê-la. Peço-lhe que esteja no laboratório 51 o mais cedo possível. Deve dar seu nome e número e ser
trazida à minha presença. Escute, Elea, eu a espero.
Elea e Paikan se entreolharam sem nada compreender. Havia nesta mensagem dois elementos
contraditórios: “Estará convocada a meu pedido” e “não a conheço...” E havia sobretudo a ameaça de
serem mobilizados e afastados um do outro. Desde a sua designação eles nunca mais se haviam separado.
E não podiam encarar essa perspectiva. Parecia-lhes inimaginável.
? Irei com você ver Coban. Se ele realmente tem necessidade de você, pedirei que me convoque
também. Na torre qualquer um pode me substituir.
Era simples, era possível se Coban quisesse. A universidade era a primeira força do Estado. Nenhum
poder administrativo ou militar imperava sobre ela. Possuía seu orçamento autônomo, sua guarda
independente, seus próprios emissores e não tinha que dar contas a ninguém. Quanto a Coban, embora
não ocupasse nenhum posto político, o Conselho Dirigente de Gondawa não tomava decisão grave sem
consultá-lo. E se ele tinha necessidade de Elea, Paikan, que havia recebido exatamente a mesma educação
e a mesma instrução, poderia também ser-lhe útil.
De qualquer maneira, nada urgia, e como a idéia mesma da guerra era uma monstruosidade absurda,
não se deveriam deixar dominar pelo nervosismo oficial. Todos esses burocratas fechados nos seus palácios
subterrâneos não tinham mais noção da realidade.
? Eles deveriam subir mais vezes para ver tudo isto ? disse Elea.
O sol da manhã clareava o caos das ruínas dominado a oeste pela massa enorme do estádio quebrado e
revirado. A leste, a auto-estrada retorcida afundava-se na planície nos reflexos de vidro sobre a qual
nenhuma grama tinha conseguido nascer.
Paikan passou os braços ao redor dos ombros de Elea e apertou-a contra si.
? Vamos até a floresta ? disse ele.
Enfiou sua chave na placa de comunicação, chamou o estacionamento da Primeira Profundidade, e
pediu um táxi. Alguns minutos mais tarde uma bolha transparente vinha parar no lugar apropriado.
Passando diante da mesa, Paikan pegou as duas armas e os cintos.
Voltou para informar a Central do Tempo sobre a sua ausência e dizer aonde ia. Não podia mais se
ausentar sem prevenir. Estava mobilizado.

? Perceberam? Eles são todos canhotos! ? disse Hoover.


Falava em voz baixa para Leonova, escondendo seu microfone na mão. Leonova compreendia muito
bem o inglês.
Era verdade. Agora que Hoover lhe havia chamado a atenção, isso saltava aos seus olhos. Ficou irritada
por não ter percebido sozinha. Todos os gondas eram canhotos. As armas encontradas no pedestal de Elea
e no de Coban, que também tinha sido aberto, eram em forma de luva para a mão esquerda. E a imagem
da grande tela, nesse momento mesmo, mostrava Elea e Paikan treinando com os outros gondas manejar
armas semelhantes. Todos atiravam com a mão esquerda sobre alvos de metal de formas diversas, que
surgiam bruscamente do solo e que ressoavam sob o impacto dos golpes de energia. Era um exercício de
habilidade e principalmente de controle. Sob a pressão exercida pelos três dedos dobrados, a arma G podia
curvar um ramo de grama ou pulverizar um rochedo, triturar um adversário ou somente derrubá-lo.
Um alvo oval ergueu-se subitamente dez passos diante de Paikan. Era azul, o que significava que deveria
atirar com um mínimo de força. Com a rapidez de um raio Paikan dirigiu a mão esquerda para a arma presa
à sua cintura por uma placa magnética, arrancou-a, ergueu o braço e atirou. O alvo suspirou como uma
corda de harpa atingida e desapareceu.
Paikan começou a rir. Tinha se reconciliado com a arma. O exercício era uma brincadeira agradável.
Um alvo vermelho apareceu logo em seguida, ao mesmo tempo que um verde erguia-se à esquerda de
Elea. Elea atirou fazendo um quarto de volta. Paikan, surpreso, teve o tempo exato de atirar antes que os
alvos desaparecessem. O vermelho ressoou como uma tempestade, o verde como um sino. De todas as
partes surgiam alvos que recebiam golpes violentos, piparotes ou carícias. A clareira cantava como um
enorme xilofone sob os martelos de um louco.
Um engenho da universidade sobrevoou o local, abriu um espaço e pousou suavemente atrás dos
atiradores. Era um engenho rápido. Parecia um ferro de lança tendo na parte de cima um casulo
transparente onde estava cunhada a equação de Zoran.
Daí saíram dois guardas universitários, de peitoral e saias verdes, a arma G do lado esquerdo do ventre,
uma granada S sobre a anca direita, a máscara nasal pendurada como um colar. Usavam o penteado de
guerra, os cabelos trançados atrás, seguros por um grampo magnético contra o capacete cônico de bordas
largas. Foram de um grupo a outro, interrogando os atiradores que os olhavam com espanto e inquietação:
nunca tinham visto guardas verdes tão bem armados.
Os dois guardas procuravam alguém. Quando chegaram perto de Elea disseram: ? Procuramos Elea, 3-
19-07-91. ? Tinham passado pela torre e, encontrando-a vazia, haviam indagado na Central do Tempo.
Coban queria ver Elea sem demora.
? Vou com ela ? disse Paikan.
Os guardas não tinham ordens para se opor. O engenho atravessou o lago como uma flecha até a Boca e
deixou-se cair verticalmente na chaminé verde da universidade. Diminuiu ao chegar ao teto do
estacionamento, aproximou-se do solo acima da pista central, tomou uma pista especial e parou diante da
porta dos laboratórios, que se abriu e fechou atrás dele.
As ruas e os edifícios da universidade chamavam a atenção pela sua simplicidade em contraste com a
exuberância vegetal do resto da cidade. Aqui as paredes eram nuas, os arcos sem uma flor ou uma folha.
Não havia nem um só ornamento nas portas trapezoidais, o menor riacho no solo da rua branca onde o
engenho prosseguia sua corrida, nem um pássaro no ar, nem um bichinho surpreendido num dobrar de
esquina, nenhuma borboleta, nenhum coelho branco. Era a severidade do conhecimento abstrato. As
pistas de transporte tinham cadeiras fabricadas e rampas metálicas.
Elea e Paikan ficaram espantados pela atividade anormal que reinava na rua debaixo deles. Os guardas
verdes em roupa de guerra, cabelos trançados e capacetes na cabeça, se deslocavam em todas as pistas,
sem se espantar de ver passar acima de suas cabeças esse engenho para o qual a rua, normalmente, era
interditada. Sinais de cor palpitavam acima das portas, chamadas de nomes e de números ressoavam,
laboratoristas em roupa salmão corriam pelos corredores, seus longos cabelos envolvidos em mantilhas
herméticas. Não era o quarteirão dos estudos mas sim o dos trabalhos e pesquisas. Nenhum estudante
passeava por ali seus pés descalços e seus cabelos curtos.
O engenho pousou na ponta de uma encruzilhada em forma de estrela. Um dos guardas conduziu Elea
ao laboratório 51. Paikan seguiu-os.
Foram introduzidos numa peça vazia no meio da qual um homem em roupa salmão esperava, de pé. A
equação de Zoran, carimbada em vermelho do lado direito do seu peito, indicava que ele era o chefe do
laboratório.
? Você é Elea? ? perguntou ele.
? Eu sou Elea.
? E você?
? Eu sou Paikan.
? Quem é Paikan?
? Eu sou de Elea ? respondeu Paikan.
? Eu sou de Paikan ? disse Elea. O homem pensou um instante.
? Paikan não foi convocado. Coban quer ver Elea.
? Eu quero ver Coban ? replicou Paikan.
? Vou lhe dizer que está aqui. Vai ter que esperar.
? Acompanho Elea.
? Eu sou de Paikan ? disse Elea.
Houve um momento de silêncio, depois o homem falou:
? Vou prevenir Coban... Antes de vê-lo, Elea deve passar pelo teste geral. Eis a cabina...
Abriu uma porta translúcida. Elea reconheceu a cabina-padrão na qual todos os seres de Gondawa
tinham que se fechar ao menos uma vez por ano para conhecer sua evolução fisiológica, e modificar, em
caso de necessidade, sua atividade e sua alimentação.
? É preciso? ? perguntou ela.
? É preciso.
Ela entrou na cabina e sentou-se na cadeira.
A porta fechou-se. Os instrumentos se acenderam ao redor dela, claridades de cores saltaram diante de
seu rosto, os analisadores ronronaram, o sintetizador estalou. Estava terminado. Ela levantou-se e
empurrou a porta. A porta continuou fechada. Espantada, ela empurrou com mais força, sem resultado.
Chamou, inquieta:
? Paikan!
Do outro lado da porta, Paikan gritou:
? Elea!
Ela tentou mais uma vez abrir. Adivinhou que havia nessa porta fechada algo de terrível. Gritou:
? Paikan! A porta!
Ele se atirou. Ela viu sua silhueta estourar contra o material translúcido. A cabina foi sacudida, os
instrumentos quebrados caíram ao chão, mas a porta não cedeu.
Às costas de Elea, a divisão da cabina se abriu.
? Venha, Elea ? disse a voz de Coban.

Duas mulheres estavam sentadas diante de Coban. Uma era Elea. A outra, morena, muito linda, de
formas mais redondas, mais opulenta. Elea era o equilíbrio dentro da medida perfeita. A outra era o
desequilíbrio que dá o arrebatamento para a fecundidade. Enquanto Elea protestava, reclamava Paikan, e
exigia ir encontrá-lo, a outra estava calada, olhando-a com calma e simpatia.
? Espere, Elea ? disse Coban —, espere para saber.
Usava a severa roupa salmão dos laboratoristas. Entretanto a equação de Zoran, sobre seu peito, estava
impressa em branco. Andava de um lado para outro, pés descalços como um estudante, entre suas mesas e
escrivaninhas e as paredes de alvéolos que continham várias dezenas de milhares de bobinas de leitura.
Elea calou-se, muito positiva para teimar num esforço inútil. Escutou.
? Você não sabe ainda ? disse Coban ? o que ocupa o lugar de Gonda-1. Vou lhe dizer. É a arma solar.
Apesar dos meus protestos, o conselho está decidido a utilizá-la se Enisorai nos atacar. E Enisorai está
decidida a nos atacar para destruir a arma solar antes que nós a utilizemos. Dadas a complexidade e a
enormidade de suas dimensões, seriam necessárias quase doze horas entre o momento de acionar a arma
e o momento em que ela sairá do seu alojamento. É durante esse meio dia que se jogará a sorte do mundo.
Pois se a arma voa e atinge, será como se o próprio Sol caísse sobre Enisorai. Enisorai queimará, afundará,
desaparecerá... Mas a Terra inteira sofrerá o choque. Que restará de nós depois de alguns segundos? Que
restará da vida?...
Coban calou-se. Seu olhar trágico passava acima das duas mulheres. Murmurou:
? Talvez nada... mais nada...
Recomeçou sua caminhada de animal prisioneiro que procura uma saída.
? E se os enisores conseguirem impedir a partida da arma, eles a destruirão e nos destruirão também.
São dez vezes mais numerosos que nós, e mais agressivos. Não poderemos resistir à sua multidão. Nossa
única defesa contra eles era meter-lhes medo. Mas nós lhes metemos medo demais!...
“Eles vão atacar com todos os meios que possuem e, se ganharem, não deixarão nada de uma raça e
uma civilização capaz de fabricar a arma solar. E é por esta razão que o Grão Negro foi distribuído aos seres
de Gondawa. Para que os prisioneiros escolham entre morrer por suas próprias mãos ou nas fogueiras de
Enisorai...”
Elea endireitou-se, combativa.
? É absurdo! É horrível! É imundo! Temos que impedir essa guerra! Por que você não faz alguma coisa,
em vez de gemer? Sabote a arma! Vá a Enisorai! Eles o escutarão! Você é Coban!
Coban parou diante dela, olhou-a gravemente, com satisfação.
? Você foi bem escolhida ? disse ele.
? Escolhida por quem? Escolhida para quê?
Ele não respondeu a essas perguntas, mas sim à precedente.
? Eu faço alguma coisa. Tenho emissários em Enisorai que entraram em contato com os sábios do
Distrito de Conhecimento. Eles compreendem os riscos da guerra. Se puderem assumir o governo, a paz
estará salva. Mas resta pouco tempo. Tenho um encontro com o Presidente Lokan. Vou tentar convencer o
conselho a renunciar ao uso da arma solar e fazer com que Enisorai saiba disso. Mas tenho contra mim os
militares, que pensam somente na destruição do inimigo, e o Ministro Mozran, que construiu a arma e que
tem vontade de vê-la funcionar!
“Se eu fracassar, vamos tentar uma outra coisa. É por isso que vocês foram escolhidas, vocês duas e
mais três outras mulheres de Gondawa. Eu quero salvar a vida.”
? A vida de quem?
? A vida simplesmente, a vida!... Se a arma solar funcionar alguns segundos mais do que o previsto, a
Terra será afetada de tal modo, que os oceanos sairão de suas fossas, os continentes se abrirão, a
atmosfera atingirá o calor do aço fundido e queimará tudo, até mesmo as profundezas do solo. Não se sabe
onde pararão os desastres. Por causa do seu poder tremendo, Mozran nunca pôde experimentar a arma,
mesmo em escala reduzida. Não se sabe, mas pode-se prever o pior. Foi o que eu fiz...
? Escute, Coban ? disse uma voz. ? Quer saber as últimas notícias?
? Sim ? respondeu Coban.
? Ouça. As tropas enisores em guarnição na Lua invadiram a zona internacional. Um comboio militar que
partiu de Gonda-3 para a nossa zona lunar foi interceptado por forças enisores antes de sua alunissagem.
Destruiu uma parte dos assaltantes. A batalha continua. Nossos serviços de observação longínqua têm a
prova de que Enisorai mandou buscar suas bombas nucleares que estavam em órbita ao redor do Sol e as
leva para Marte e para a Lua. Escute, Coban, está terminado.
? Está começando... ? comentou Coban.
? Quero voltar para junto de Paikan ? disse Elea. ? Você não nos dá outra esperança senão morrer ou
morrer. Quero morrer com ele.
? Eu fiz uma coisa ? disse Coban. ? Fiz um abrigo que resistirá a tudo. Eu o guarneci com todas as
espécies de plantas, óvulos fecundados de todas as espécies de animais e incubadores para desenvolvê-los,
medi dez mil bobinas de conhecimentos, de máquinas silenciosas, de instrumentos, de móveis, de todas as
amostras da nossa civilização, de tudo o que é necessário para fazer renascer uma semelhante. No centro,
colocarei um homem e uma mulher. O computador escolheu cinco mulheres, por seu equilíbrio psíquico e
físico, por sua saúde e sua beleza perfeita. Elas receberam o número de um a cinco por ordem de perfeição.
A número um morreu anteontem em um acidente. A número quatro está em viagem em Enisorai, não
poderá voltar. A número cinco mora em Gonda-62. Mandei buscá-la também. Temo que ela não esteja aqui
a tempo. A número dois é você, Lona, e a número três é você, Elea.
Calou-se durante um segundo, deu uma espécie de sorriso fatigado, virou-se para Lona e continuou:
? Naturalmente, não haverá senão uma mulher no abrigo. Será você, Lona, Você viverá...
Lona ergueu-se, mas antes que tivesse tempo de falar, uma voz adiantou-se:
? Escute, Coban, fiz os testes de Lona, a número dois. Todas as qualidades pedidas presentes ao
máximo, mas o metabolismo em evolução e o período hormonal em vias de perturbação: Lona está grávida
de duas semanas.
? Você sabia? ? perguntou Coban.
? Não ? respondeu Lona. ? Mas esperava. Tiramos nossas chaves na terceira noite da primavera.
? Tenho pena por você ? disse Coban separando as mãos. ? Isto a exclui. O homem e a mulher colocados
no abrigo serão postos em hibernação de frio absoluto. É possível que a sua gravidez atrapalhe o sucesso
da operação. Não posso assumir esse risco. Volte para casa. Peço que não diga nada durante um dia, sobre
o que ouviu aqui, mesmo junto ao seu designado. Dentro de um dia tudo já terá acontecido.
? Eu me calarei ? disse Lona.
? Acredito em você. O computador definiu-a da seguinte maneira: sólida, lenta, calada, defensiva,
implacável.
Fez um sinal aos dois guardas verdes que estavam diante da porta. Eles se afastaram para deixar sair
Lona. Coban virou-se para Elea.
? Então será você ? disse ele.
Elea sentiu-se transformar num bloco de pedra. Depois sua circulação restabeleceu-se com violência e
seu rosto enrubesceu. Controlou-se para ficar calma e sentou-se. Ouviu novamente a voz de Coban:
? O computador definiu-a assim: equilibrada, rápida, obstinada, ofensiva, eficaz.
Ela se sentiu novamente capaz de falar. Atacou:
? Por que não deixou Paikan entrar? Não irei sem ele para o seu abrigo.
? O computador escolheu as mulheres pela beleza e pela saúde, e também, bem entendido, pela
inteligência. Escolheu os homens pela saúde e pela inteligência, mas antes de tudo pelos seus
conhecimentos. É preciso que o homem que saia do abrigo dentro de alguns anos, talvez mesmo dentro de
um século ou dois, seja capaz de compreender tudo aquilo que está impresso nas bobinas, e mesmo, se
possível, saber mais que elas. Seu papel não será apenas o de fazer filhos. O homem que for escolhido deve
ser capaz de fazer renascer o mundo. Paikan é inteligente, mas seus conhecimentos são limitados. Ele não
saberia nem mesmo interpretar a equação de Zoran.
? Então, quem é o homem?
? O computador escolheu cinco.
? Quem é o número um?
? Sou eu ? disse Coban.

? Enisorai já era vocês ? disse Leonova a Hoover. ? Vocês já eram os americanos sujos, imperialistas,
tentando engolir o mundo inteiro e seus acessórios.
? Minha bela ? replicou Hoover —, nós, os americanos de hoje, não somos senão os europeus
deslocados, seus priminhos em viagem... Gostaria bem que Elea nos mostrasse um pouco a cara dos
primeiros ocupantes da América. Não vimos senão gondas, até agora. Na próxima sessão, pediremos a Elea
para nos mostrar os enisores.
Elea lhes mostrou os enisores. Ela tinha ido com Paikan numa viagem até Diedohu, a capital de Enisorai
Central, para a Festa da Nuvem. Fez aparecer para eles as imagens de sua memória.
Eles chegaram com Elea num transporte de longa distância. No horizonte, uma cadeia de montanhas
gigantes escalava o céu. Quando chegaram mais perto viram que a montanha e a vila formavam um só
bloco. Construída em enormes blocos de pedra, a cidade agarrava-se à montanha, cobria-a, superava-a,
apoiava-se nela para projetar para cima sua lança terminal: o monólito do tempo, cujo cimo se perdia numa
nuvem eterna.
Viram os enisores trabalhar e se divertir. As necessidades da população eram tão consideráveis e seu
crescimento tão rápido, que, mesmo nesse dia da Festa da Nuvem, não podiam parar de construir. Sem
cessar, incansavelmente, como formigas, os construtores aumentavam a cidade, abriam ruas, escadas e
praças nos flancos ainda virgens da montanha, construíam rampas, casas e palácios. Não utilizavam outras
ferramentas senão suas mãos. Traziam no peito um colar de ouro, a efígie da serpente-chama, símbolo
enisor da energia universal. Não era somente um símbolo, mas principalmente um transformador. Dava a
quem o usasse o poder de controlar simplesmente nas mãos todas as forças naturais.
Sobre a grande tela, os sábios da EPI viram os construtores enisores levantarem sem esforço blocos
rochosos que deviam pesar toneladas, colocá-los uns sobre os outros, ajustá-los uns aos outros, modelá-
los, modificá-los com o gume da mão e alisá-los com a palma. Entre as mãos dos construtores a matéria,
como um betume, tornava-se imponderável, maleável, dócil. No momento em que eles paravam de tocá-la,
a pedra reencontrava sua dureza, sua consistência de pedra.
Os estrangeiros convidados para assistir à Festa da Nuvem não estavam autorizados a pousar. Os seus
engenhos ficavam numa base aérea perto de Diedohu. Suas filas curvas, arrumadas, compunham no céu as
bancadas multicores de um estranho circo pousado sobre o vazio.
Diante deles erguia-se o templo, cuja torre, feita de um só bloco de pedra, mais alta que o mais alto
arranha-céu da América contemporânea, enfiava sua ponta na nuvem. Uma escadaria monumental,
talhada na sua massa, contornava em espiral o templo. Sobre essa escadaria, uma multidão subia havia
horas em direção ao cimo do edifício. Subia lentamente, todos vergados sobre o próprio peso, enquanto
em todos os outros lugares, nas ruas e nas escadarias da cidade, os enisores se deslocavam com uma leveza
e uma rapidez que traíam seu domínio da gravidade. A multidão na escadaria compunha, pelo colorido de
suas roupas, a efígie da serpente-chama. A cabeça da serpente ondulava sobre a escadaria, à esquerda, à
direita, e continuava a subir. Seu corpo seguia enroscando-se nos degraus ao redor da torre. Devia compor-
se de várias centenas de milhares de pessoas, talvez mais de um milhão. Através das vigias abertas dos
engenhos entrava a música que ritmava os movimentos da serpente. Era uma espécie de lento arfar que
parecia emanar da montanha e da cidade, e que a multidão, a da torre, a das escadarias e das ruas, a que
subia, a que olhava, a que trabalhava, acompanhava com um ruído gutural de suas bocas entreabertas.
Quando a cabeça da serpente atingiu a nuvem, o sol desaparecia atrás da montanha: a cabeça da
serpente entrou na nuvem; com o crepúsculo. A noite caiu em poucos minutos. Projetores, instalados em
toda a cidade, iluminaram a torre e a multidão que a envolvia. O ritmo da música e do canto se aceleraram.
E a torre começou a se mover.
Viram a torre enfiar-se na nuvem, ou a nuvem abaixar-se sobre a torre, retirar-se, recomeçar, cada vez
mais depressa, como se fosse uma enorme cópula da Terra com o céu.
O arfar e a música aceleravam, aumentavam de força, atingiam os engenhos estacionados no céu, como
ondas, e deslocavam o seu alinhamento.
No solo, todos os trabalhadores abandonavam seus trabalhos. Nos palácios, nas casas, nas ruas, nas
praças, os homens se aproximavam das mulheres e as mulheres dos homens, ao acaso, simplesmente
porque estavam próximos, sem saber se eram bonitos ou feios, velhos ou jovens e o que ele era e o que ela
era, abraçavam-se e apertavam-se, deitavam-se ali mesmo, no lugar que encontravam, entravam todos
juntos no ritmo único que sacudia a montanha e a cidade. A torre entrou toda na nuvem, até as suas bases.
A montanha estalou, a cidade levantou-se liberta de seu peso, prestes a se enfiar no céu até o infinito. A
nuvem brilhou, explodiu em toneladas de cataclismos, depois extinguiu e retirou-se. A cidade pesou de
novo sobre a montanha. A torre estava nua. Não havia mais ninguém na grande escadaria de pedra. Todos
os casais deitados se desuniram e se separaram. Homens e mulheres se levantaram, estonteados, e se
afastaram. Outros dormiram ali mesmo. Durante alguns instantes de uma brevidade sufocante, haviam
todos participado do mesmo prazer cósmico. Cada uma delas tinha sido a Terra toda, cada um deles tinha
sido o céu todo. Era assim uma vez por ano, em todas as cidades de Enisorai. Durante o resto dos dias e das
noites, os homens enisores não se aproximavam das mulheres.
Os sábios da EPI interrogaram Elea. O que tinha acontecido com a multidão da escadaria?
? A torre a deu à nuvem ? disse Elea. ? A nuvem a deu à energia universal. Todos que a compunham
eram voluntários. Tinham sido escolhidos desde a sua infância, ou porque apresentassem deficiência de
espírito ou de corpo, mesmo ínfima, ou, ao contrário, porque eram mais inteligentes, mais fortes, mais
belos que a média dos enisores. Educados em função desse sacrifício, haviam aprendido a desejá-lo com
todo o corpo e a alma. Tinham o direito de se abster, mas um número muito pequeno usava desse direito.
Assim, a raça enisor se mantinha dentro de uma qualidade de nível constante. Mas esse sacrifício, por
outro lado, não era suficiente para compensar a natalidade que provocava. Durante a Festa da Nuvem,
eram concebidos vinte vezes mais enisores do que pereciam sobre todas as torres do continente.
? Mas ? disse Hoover ? todas essas mulheres vão ter filhos no mesmo dia!?
? Não ? retrucou Elea ?, o tempo de gravidez, em Enisorai, variava de duas a três estações, segundo o
desejo da mãe e segundo sua idade. Conforme vocês viram, não havia designação, e portanto não havia
casais, nem, famílias. Os homens e mulheres viviam misturados, em estado de igualdade absoluta e de
direitos e de deveres, nos palácios comuns ou nas casas individuais, como desejassem. As crianças eram
educadas pelo Estado. Não conheciam a mãe e, bem entendido, menos ainda o pai.
Embora o engenho de Elea ficasse bem acima da multidão, pela janela próxima os sábios puderam ver
muito detalhadamente um grande número de rostos de enisores. Todos tinham os cabelos negros e lisos,
os olhos amendoados, as maçãs salientes, o nariz arqueado em cima e achatado em baixo.
Incontestavelmente eram os ancestrais comuns dos maias, dos astecas, e de outros índios da América;
talvez também dos japoneses, dos chineses e de todas as raças mongólicas.
? Aí estão os seus imperialistas ? disse Hoover a Leonova. Sorriu, depois acrescentou:
? Espero que nos queiram menos mal, agora, por ter de certa maneira maltratado os seus
descendentes...

? Não é a vida que você quer salvar ? disse Elea ?, mas a sua vida. E você fez procurar, pelo computador,
as cinco mais belas mulheres do continente, para escolher aquela que o acompanhará!
? Olhe ? replicou Coban com uma seriedade triste ? quem eu escolheria para se salvar comigo, se
tivesse esse direito...
Ele ativou um feixe de ondas. Acima da mesa surgiu a imagem de uma menina que se parecia
extraordinariamente com Coban. De joelhos sobre um gramado perto de um lago da Nona Profundidade,
acariciava uma corça de olhos pintados. Seus longos cabelos negros de menina caíam-lhe até os ombros
nus. Seus braços graciosos se enrascavam em torno do pescoço do bicho, que lhe mordiscava a orelha.
? É Doa, minha filha ? disse Coban. ? Tem doze anos e vive só. Todas as meninas da sua idade há muito
tempo já têm um companheiro. Mas ela é só... Porque é, como eu, uma não designada... O computador
não pôde encontrar uma companheira que eu pudesse suportar sem me irritar pela lentidão do seu
espírito. Uma certa vivacidade das faculdades mentais condena à solidão. Vivi alguns períodos com viúvas,
separadas, e não designadas também. A mãe de Doa era uma. Sua inteligência era grande mas seu gênio
atroz. O computador não quis sobrecarregar homem algum. Por causa da sua inteligência, e da sua beleza,
eu lhe pedi para conceber um filho meu. Ela aceitou, na condição de ficar a meu lado para educá-lo. Pensei
que fosse possível. Tiramos nossas chaves. Alguns dias mais tarde tivemos que nos separar. Ela era
bastante inteligente para compreender que não podia encontrar a felicidade perto de ninguém, nem
mesmo junto de seu filho. Quando ele nasceu, ela o mandou para mim. Era Doa... Doa, por sua vez,
recebeu do computador uma resposta negativa. Seu caráter era meigo, mas sua inteligência superior à
minha. E ela não encontrará seu igual em parte alguma. Se viver...
A voz de Coban calou-se emocionada. Apagou a imagem.
? Não acredita que ame Doa tanto quanto você ama Paikan? Não acredita que se eu obedecesse aos
meus motivos egoístas, seria ela quem eu fecharia comigo no abrigo? Ou que ficaria perto dela, deixando
com prazer meu lugar ao número dois? Mas conheço o número dois, sei o que valem seus conhecimentos e
o que valem os meus. O computador teve razão ao me designar. Não se trata de amor, nem de
sentimentos, nem mesmo de nós mesmos. Estamos diante de um dever que nos supera. Temos, você e eu,
que preservar a vida universal e refazer o mundo.
? Escute bem, Coban ? disse Elea ?, estou pouco me incomodando com o mundo, estou pouco me
incomodando com a vida, a dos homens e a do universo. Sem Paikan, não há universo, não há vida. Dê-me
Paikan no abrigo, e eu o bendirei até o fim da eternidade!
? Não posso ? respondeu Coban.
? Dê-me Paikan! Fique com sua filha! Não a deixe morrer sozinha, abandonada por você!
? Não posso ? repetiu Coban em voz baixa.
Seu rosto exprimia ao mesmo tempo uma resolução e uma tristeza infinitas. Aquele homem estava no
fim das forças num combate que o deixava arrasado. Mas sua decisão estava tomada de uma vez por todas.
Não pudera construir um abrigo maior. O governo, todo absorvido por Gonda-1, o monstro colossal que lá
estava, havia se desinteressado do projeto de Coban, deixara-o agir mas se negara a ajudá-lo. A
universidade sozinha havia feito todo o abrigo. Essa fabricação, essa concepção havia mobilizado toda a sua
força energética, todos os recursos de suas máquinas, dos seus laboratórios, dos seus créditos. Era fruto
único de uma planta enorme... Não conteria senão dois grãos. Um terceiro o condenaria a morrer. Mesmo
pequeno, mesmo Doa. Não podia receber senão um homem e uma mulher.
? Então, escolha outra mulher! ? gritou Elea. ? Existem milhões!
? Não ? disse Coban ?, não há milhões, só existem cinco, e não existe senão você... O computador
escolheu-a porque você é excepcional. Não, não há outra mulher, e nenhum outro homem. Somos você e
eu! Não falemos mais, peço-lhe por favor, está decidido.
? Você e eu? —- perguntou Elea.
? Você e eu! —- respondeu Coban.
? Eu o detesto ? disse Elea.
? Eu também não a amo ? retrucou Coban. ? Isto não importa.
? Escute, Coban ? disse uma voz ?, o Presidente Lokan quer lhe falar e vê-lo.
? Eu o escuto e vejo ? disse Coban.
A imagem de Lokan surgiu num canto da peça. Coban deslocou-a para que ficasse à sua frente, do outro
lado da mesa. Lokan parecia arrasado pela angústia.
? Escute, Coban ? disse ele. ? Onde estão os seus contatos com os homens do Distrito de Conhecimento
de Enisorai?
? Espero uma notícia a qualquer momento.
? Não podemos esperá-los mais! Não é possível. Os enisores bombardeiam nossas guarnições de Marte
e da Lua com bombas nucleares. Os nossos estão a caminho, vamos responder. Mas, por mais atroz que
seja, isto é nada. O exército de invasão enisor está em vias de sair de suas montanhas e de se instalar nas
bases de lançamento. Dentro de algumas horas ele vai cair sobre Gondawa. Ao primeiro vôo assinalado
pelos nossos satélites, tenho que ligar e deixar partir a arma solar! Mas sou como você, Coban, tenho medo
desse horror! Ainda é tempo de salvar a paz! O governo enisor sabe que o envio do seu exército significará
a morte do seu povo. Mas, ou não está ligando ou espera destruir a arma antes que ela parta! Kutiyu está
louco! Só os homens do distrito podem tentar convencê-lo ou derrubá-lo! Não temos nem a metade de um
instante a perder, Coban! Suplico-lhe, tente encontrá-los!
? Mas não posso encontrá-los diretamente! Vou chamar Partao em Lamoss.
A imagem do presidente se apagou. Coban enfiou sua chave numa placa.
? Escute —- falou ?, quero falar com Partao em Lamoss.
? Partao em Lamoss ? repetiu uma voz. ? Chamarei.
Coban explicou a Elea:
? Lamoss é o único país que ficará neutro neste conflito. Por uma vez, não terá tempo para aproveitar...
Partao é o chefe da universidade de Lamoss. Ele é o meu contato com os homens do distrito.
Partao apareceu e disse a Coban que havia contatado Soutako no distrito.
? Ele não pode fazer nada, está desamparado. Vai chamar diretamente.
Uma imagem descorada iluminou-se ao lado da de Partao. Era Soutako, com roupa e toga de professor.
Tinha um ar transtornado, falava fazendo gestos, batia no peito e designava com um dedo esticado alguma
coisa ou alguém ao longe. Não se entendia uma palavra do que dizia. Imagens de cores mutáveis cortavam
a sua imagem em pedaços, tremiam, juntavam-se, afastavam-se. Ele desapareceu.
? Não posso lhes dizer mais nada ? disse Partao. ? Talvez boa sorte?...
? Desta vez ? sussurrou Coban ? não haverá sorte para ninguém.
Chamou Lokan para pô-lo ao corrente. Lokan pediu-lhe para encontrá-lo no conselho, que ia se reunir.
? Eu vou ? afirmou Coban.
Virou-se para Elea, que havia assistido à cena sem dizer uma palavra, sem fazer um gesto.
? Eis aí ? disse ele com voz glacial. ? Agora você sabe qual é a situação. Não há lugar para sentimentos.
Esta noite entraremos no abrigo. Meus assistentes vão prepará-la. Você vai, entre outros cuidados, receber
a única dose existente do soro universal. Ela foi sintetizada, molécula por molécula, no meu laboratório
pessoal, há seis meses. A dose precedente, fui eu quem a experimentou. Estou pronto. Se por milagre nada
acontecer, você e eu ganharemos, pois seremos as primeiras pessoas a gozar da juventude eterna. Nesse
caso, eu lhe prometo que a dose seguinte será para Paikan. O soro nos permitirá passar sem dificuldades
através do frio absoluto. Vou confiá-la a meus homens.
Elea levantou-se e correu para a porta. Com sua mão esquerda fechada atingiu com um golpe terrível
um guarda na têmpora. O homem caiu. O outro agarrou o punho de Elea e a derrubou de costas.
? Deixem-na! ? gritou Coban. ? Proíbo-lhes de tocá-la! Faça ela o que fizer!
O guarda deixou-a. Ela correu novamente para a porta, mas esta não se abriu.
? Elea ? disse Coban —, se você aceitar o tratamento sem se debater, sem tentar fugir, autorizo-a a ver
Paikan antes de entrar no abrigo. Ele foi levado de volta à torre e está informado do que vai lhe acontecer.
Espera notícias suas. Eu lhe prometi que a veria novamente. Se você resistir, se protestar, se lutar a ponto
de comprometer os preparativos, eu a farei adormecer, e você não o verá jamais.
Ela o olhou um instante em silêncio, respirou profundamente para retomar o controle dos seus nervos.
? Pode fazer virem seus homens ? disse ela ?, não farei nada.
Coban apoiou-se sobre uma placa. Uma parte da parede escorregou, deixando ver um laboratório
ocupado por guardas e laboratoristas, entre os quais Elea reconheceu o chefe de laboratório que os havia
recebido.
O homem designou-lhe uma cadeira diante dele.
? Venha.
Elea entrou no laboratório. Antes de deixar o escritório de Coban, virou-se para ele.
? Eu o detesto ? disse ela.
? Quando sairmos do abrigo sobre a Terra morta ? disse Coban ?, não haverá mais nem ódio nem amor.
Existirá somente o nosso trabalho.

Naquele dia, Hoi-To tinha descido ao ovo com o novo material fotográfico que acabara de receber do
Japão. Tratava-se principalmente de projetores de luz coerente com a do meio ambiente, com os quais ele
esperava iluminar a sala do motor, através da laje transparente, e fotografá-la. Ao parar, o motor do fio
havia se apagado e a sala embaixo da laje tornara-se um bloco escuro. A temperatura subira rapidamente,
a neve e a geada fundiram-se, a água tinha sido aspirada, a parede e o solo secados com ar quente.
Enquanto seus assistentes suspendiam os projetores em tripés, Hoi-To, maquinalmente, olhava a seu
redor. A superfície da parede pareceu-lhe curiosa. Não era polida, não era baça, era meio ondeada. Passou
sobre a superfície a ponta de seus dedos longos e sensíveis e depois as unhas. Elas arranharam.
Assestou um projetor sobre a parede, com luz rasante, olhou por alto, introduziu uma espécie de
microscópio com teleobjetiva e pequenas lentes. Breve não teve mais dúvida: a superfície da parede estava
gravada com inúmeras estrias. E cada uma dessas estrias era uma linha de escrita gonda. As bobinas de
leituras das salas dos alvéolos tinham sido decompostas pelo tempo, mas o muro do ovo, inteiramente
impresso em sinais microscópicos, representava o equivalente a uma considerável biblioteca.
Hoi-To tirou logo algumas fotografias de diferentes pontos da parede, afastados uns dos outros, e
ampliou-as ao máximo. Uma hora mais tarde, projetava-as sobre uma grande tela. Lukos, muito excitado,
identificou fragmentos de discursos históricos e tratados científicos, uma página de dicionário, um poema,
um diálogo que talvez fosse uma peça de teatro ou uma discussão filosófica.
O muro do ovo parecia uma verdadeira enciclopédia dos conhecimentos de Gondawa.
Um dos clichês projetados comportava numerosos signos isolados, nos quais Lukos reconheceu
símbolos matemáticos, que cercavam o símbolo da equação de Zoran.

Elea acordou estendida sobre um tapete de peles. Repousava sob uma coberta morna e macia, pousada
sobre nada. Flutuava num estado de descanso total.
Fora examinada da cabeça aos pés, pesada quase que célula por célula, alimentada, massageada,
equilibrada, balanceada até não ser mais que um corpo no peso exatamente requerido e de uma
passividade perfeita. Voltando, Coban explicou-lhe o mecanismo da abertura e do fechamento do abrigo,
ao mesmo tempo que lhe administrava ele mesmo, em fumaças para respirar, em óleo sobre a língua, em
neblina nos olhos, em longas modulações de infra-sons sobre as têmporas, os diversos elementos do soro
universal. Ela havia sentido uma energia nova, luminosa, invadir todo o seu corpo, eliminar o cansaço de
todos os recantos, encher até sua pele de um entusiasmo semelhante ao das florestas na primavera.
Sentia-se tornar dura como uma árvore, forte como um touro, equilibrada como um lago. A força, o
equilíbrio e a paz haviam-na irresistivelmente conduzido ao sono.
Adormecera na poltrona do laboratório e acabava de abrir os olhos sobre aquele tapete, numa peça
redonda e nua. A única porta encontrava-se à sua frente. Diante da porta, um guarda verde, sentado sobre
um cubo, olhava-a. Segurava na ponta dos dedos um objeto de vidro feito de tubos minúsculos
entrelaçados em volteios complicados. Os tubos frágeis estavam cheios de um líquido verde.
? Já que a senhora acordou ? disse o guarda ?, vou preveni-la: se tentar sair à força, abro os dedos, isto
cai e quebra, e a senhora dormirá como uma pedra.
Elea não respondeu. Olhou-o. Mobilizava todos os recursos do seu espírito com um só fim: sair e
encontrar Paikan.
O guarda era grande, de ombros largos, cintura grossa. Seus cabelos trançados tinham a cor do bronze
novo. Estava com a cabeça descoberta e sem arma. Seu pescoço grosso era quase tão largo quanto seu
rosto maciço. Constituía um sério obstáculo diante da única porta. Na ponta do seu braço musculoso, da
sua mão rude, segurava aquele objeto infinitamente frágil, obstáculo ainda mais forte.
? Escute, Elea ? disse uma voz —, Paikan pede para lhe falar e vê-la. Nós permitiremos.
A imagem de Paikan apareceu entre ela e o guarda. Elea saltou e ficou de pé.
? Elea!
? Paikan!
Ele estava de pé na cúpula de trabalho. Ela via perto dele um fragmento da mesa e a imagem de uma
nuvem.
? Elea! Onde está você? Onde? Por que você vai me abandonar?
? Eu recusei! Eu sou sua! Não sou deles! Coban obrigou-me! Eles me prenderam!
? Vou buscá-la! Quebrarei tudo! Matarei todos!
Brandiu a mão esquerda enfiada na arma.
? Você não pode! Você não sabe onde estou!... Eu também não sei! Espere, voltarei! De qualquer
maneira!...
? Acredito em você, estou esperando ? disse Paikan.
A imagem desapareceu.
O guarda, sempre sentado, olhava Elea. Em pleno centro da peça redonda, ela o olhava e avaliava. Deu
um passo na sua direção. Ele pegou a máscara, que estava pendurada como um colar, e ajustou-a sobre o
nariz.
? Atenção! ? disse com uma voz nasal.
Sacudiu ligeiramente, com todo o cuidado, os entrelaçamentos frágeis dos tubos de vidro.
? Eu o conheço ? disse ela.
Ele a olhou surpreso.
? Você e seus semelhantes. Vocês são simples, são corajosos. Fazem tudo o que lhes dizem, e não lhes
explicam nada.
Ela fez escorregar a extremidade da faixa azul do busto, e começou a desenrolá-la.
? Coban não lhe disse que você ia morrer.
O guarda deu um sorriso pequeno. Ele era guarda. Estava nas profundezas, não acreditava na sua
própria morte.
? Vai haver uma guerra e não haverá sobreviventes. Você sabe que eu digo a verdade: você vai morrer.
Vocês vão todos morrer, exceto eu e Coban.
O guarda soube que ela não mentia. Ela não era daquelas que se rebaixavam a mentir fossem quais
fossem as circunstâncias. Mas ela devia estar enganada, havia sempre sobreviventes. “Os outros morrem,
eu não”, pensou.
Agora sua cintura estava nua e ela começou a soltar a faixa em diagonal do lado do ombro.
? Todo mundo vai morrer em Gondawa. Coban sabe disso. Construiu um abrigo que nada pode destruir,
para se encerrar nele. Encarregou o computador de escolher a mulher que encerraria consigo. Esta mulher
sou eu. Você sabe por que o computador me escolheu entre milhões? Porque sou a mais bela. Você só viu
meu rosto, olhe.
Ela desnudou o seio direito. O guarda olhou aquela carne maravilhosa, flor e fruto, e ouviu o barulho do
sangue latejar nos seus ouvidos.
? Você me deseja? ? perguntou Elea.
Ela continuava lentamente a descobrir o busto. O seio esquerdo ainda estava meio encoberto pela
fazenda.
? Eu sei qual o gênero de mulher que o computador escolheu para você. Ela pesa três vezes o meu peso.
Uma mulher como eu você nunca viu...
A faixa inteira caiu ao solo, liberando o seio esquerdo. Elea deixou os braços caírem ao longo do corpo,
as palmas da mão meio viradas para a frente, os braços um pouco afastados, oferecendo o busto nu, o
esplendor vindo dos seus seios bem proporcionados, cheios, macios, gloriosos.
? Antes de morrer, você me deseja?
Ela ergueu a mão esquerda e, com um único gesto, fez cair a roupa que estava presa nas cadeiras.
O guarda levantou-se, pousou sobre o cubo o perigoso, frágil, ameaçador objeto de vidro, arrancou a
máscara e a túnica. Conjunto perfeito de músculos equilibrados e fortes, seu torso nu era magnífico.
? Você é de Paikan ? disse ele.
? Eu lhe prometi: de qualquer maneira.
? Eu lhe abrirei a porta e a levarei para fora.
Ele tirou a roupa. Estavam de pé, nus, um diante do outro. Ela recuou lentamente e, quando sentiu o
tapete sob os pés, agachou-se e deitou-se. Ele se aproximou, poderoso e pesado, precedido por seu desejo
soberbo. Deitou-se sobre ela e ela se abriu.
Ela o sentiu encostar-se, cruzou as pernas sobre seus rins e esmagou-o contra si. Ele a penetrou como
uma lâmina. Ela teve um espasmo de horror.
? Eu sou de Paikan ? gritou.
E enfiou os dois polegares ao mesmo tempo nas carótidas dele.
Ele sufocava e se torcia. Mas ela era forte como dez homens e o segurava com os pés apertados, os
joelhos, os cotovelos, os dedos enfiados nos seus cabelos trançados. E os polegares inexoráveis,
endurecidos como aço pela vontade de matar, privavam seu cérebro da menor gota de sangue.
Foi uma luta selvagem: enlaçados, ligados um ao outro e um no outro, rolavam sobre o solo em todas as
direções. As mãos do homem agarravam-se às mãos de Elea e as puxavam, tentando arrancar a morte que
se enfiava no seu pescoço. A parte de baixo do seu ventre ainda queria viver, viver ainda um pouco, viver o
bastante para ir até o fim do seu prazer. Os braços e o torso lutavam para sobreviver, e os rins e as coxas
lutavam, se apressavam para ganhar da morte em rapidez, para gozar, gozar antes de morrer.
Uma convulsão terrível o sacudiu. Ele enfiou-se até o fundo da morte enroscada em volta dele e nela
esvaziou, num gozo fulgurante, interminável, toda a sua vida. A luta parou. Elea esperou que o homem se
tornasse passivo e pesado como um bicho morto. Então retirou os polegares enfiados na sua carne mole.
As unhas estavam cheias de sangue. Abriu as pernas crispadas e escorregou para fora do peso do homem.
Arquejava de nojo. Teria querido se virar do avesso como uma luva e se lavar toda por dentro, até os
cabelos. Pegou a túnica do guarda, enxugou com ela o rosto, o peito e o ventre, jogou-a longe, molhada, e
vestiu-se rapidamente.
Aplicou a máscara sobre o nariz, pegou a frágil construção de vidro e, com precaução, empurrou a
porta, que se abriu.
Dava para o laboratório onde Elea havia recebido os preparativos. O chefe do laboratório e dois
laboratoristas estavam inclinados sobre uma mesa. Um guarda armado estava em pé diante de uma porta.
Foi o primeiro a ver Elea. Disse:
? Ei!
Ergueu a mão para colocar a máscara.
Elea jogou o objeto de vidro a seus pés. Quebrou-se sem barulho. Instantaneamente a peça ficou cheia
de uma bruma verde. O guarda e os três homens de roupa salmão caíram sobre si mesmos.
Elea dirigiu-se para a porta e pegou as armas do guarda.

Não sou um adolescente romântico. Não sou um bruto governado pelo estômago e pelo sexo. Sou
razoavelmente sensato, sentimental e sensual, capaz de controlar minhas emoções e meus instintos. Pude
suportar a visão de tua vida mais íntima, pude suportar ver aquele bruto se deitar sobre ti e penetrar na
maravilha do teu corpo. O que me transtornou foi o que li em teu rosto.
Poderias não ter matado aquele homem. Ele havia dito que te levaria para fora. Talvez mentisse, mas
não foi para assegurar a tua fuga que o mataste, foi porque ele estava no teu ventre e não podias suportá-
lo. Tu o mataste por amor a Paikan. Amor. Esta palavra, que a tradutora utiliza porque não encontra o
equivalente, não existe na tua língua. Depois que te vi viver junto de Paikan, compreendi que era uma
palavra insuficiente. Nós dizemos “eu amo”, dizemos da mulher, mas também da fruta que comemos, da
gravata que escolhemos, e a mulher o diz falando sobre o seu batom. Ela diz do seu amante: “Ele é meu”.
Tu dizes o contrário: “Eu sou de Paikan”. E Paikan diz: “Eu sou de Elea”. Tu és dele, és uma parte dele
mesmo. Chegarei jamais a te desprender? Tento te interessar pelo nosso mundo, fiz-te ouvir Mozart e
Bach, mostrei-te fotografias de Paris, de Nova York, de Brasília, falei-te da história dos homens, pelo menos
da que conhecemos e que é o nosso passado, tão curto ao lado da durabilidade imensa do teu sono. Em
vão tu escutas, olhas, mas nada te interessa. Estás por trás do muro. Não estás em contato com o nosso
tempo. Teu passado te seguiu no consciente e no subconsciente da tua memória. Não pensas senão em
mergulhar nele de novo, e encontrá-lo, e revivê-lo. O presente para ti é ele.

Um engenho rápido da universidade estava pousado sobre o braço de atracamento da torre. Os guardas
que dele haviam saído vasculharam o apartamento e a cúpula. No terraço, perto da árvore de seda, Coban
falava a Paikan. Acabava de lhe explicar por que tinha necessidade de Elea e lhe comunicava sua evasão.
? Ela destruiu tudo o que a impedia de passar. Homens, portas e paredes! Pude seguir sua pista como a
de um projétil até a rua, onde ela se tornou um transeunte livre.
Os guardas interromperam Coban para lhe dizer que Elea não estava no apartamento nem na cúpula.
Ele ordenou-lhes que procurassem no terraço.
? Eu tinha minhas dúvidas de que ela já tivesse chegado ? disse ele a Paikan. ? Ela sabia que eu viria
diretamente aqui. Mas sei que ela só tem um desejo: o de encontrá-lo. Virá, ou então fará com que você vá
aonde ela estiver, para que se encontrem. Então nós a prenderemos. É inevitável. Mas vamos perder muito
tempo. Se ela o chamar, faça-a compreender, diga-lhe para voltar à universidade.
? Não ? disse Paikan.
Coban olhou-o com seriedade e tristeza.
? Você não é um gênio, Paikan, mas é inteligente. Você é de Elea?
? Eu sou de Elea!
? Se ela entrar no abrigo, viverá. Se não entrar, morrerá. Ela é inteligente e resoluta. O computador a
escolheu bem, ela acaba de prová-lo. Pode ser que apesar da nossa vigilância ela consiga encontrá-lo.
Então, é você quem tem de convencê-la a voltar para nós. Comigo, ela viverá; com você morrerá. No abrigo
é a vida. Fora do abrigo, é a morte, dentro de alguns dias, talvez dentro de algumas horas. O que é que
você prefere? Que ela viva sem você, ou que ela morra com você?
Abalado, torturado, furioso, Paikan gritou:
? Por que não escolhem outra mulher?
? Não é mais possível. Elea recebeu a única dose disponível de soro universal. Sem esse soro, nenhum
organismo humano poderá atravessar o frio absoluto sem sofrer graves conseqüências e talvez até morrer.
Os guardas vieram dizer a Coban que Elea não estava no terraço.
? Ela está em algum lugar nas proximidades, espera que partamos. A torre ficará sob vigilância. Vocês
não poderão se encontrar sem que nós o saibamos. Mas se por um milagre vocês conseguirem fazê-lo,
lembre-se de que você tem a escolha entre a vida e a morte dela...
Coban e os guardas voltaram para o engenho, que se elevou alguns centímetros acima do braço de
atracação, girou sobre o mesmo lugar e afastou-se na velocidade máxima.
Paikan aproximou-se da rampa e olhou para cima. O engenho com a marca da equação de Zoran
descrevia círculos lentos em volta da torre.
Paikan ligou a tela de proximidade e dirigiu-a para as casas de repouso colocadas no solo, todas ao
redor da torre. Em todas viu rostos de guardas que olhavam através de suas próprias telas.
Entrou no apartamento, abriu o elevador. Um guarda estava de pé na cabina. Fechou a porta,
enraivecido, e subiu para a cúpula. Plantou-se no meio da cúpula transparente, olhou o céu puro onde o
engenho da universidade continuava a girar lentamente, ergueu os braços em cruz, dedos afastados, e
começou a fazer gestos estranhos.
Diante dele, uma pequena nuvem branca e cheia nasceu no azul do céu. Espalhadas pelo céu perto da
torre, nasceram pequenas nuvens brancas encantadoras, que transformavam o azul num grande prado
florido. Rapidamente elas se desenvolveram e se juntaram, formando uma massa que se tornava mais
espessa e negra, e pôs-se a girar em torno de si mesma com seus trovões represados que ribombavam. O
vento curvou as árvores do terraço, atingiu o solo, gritou ao rasgar-se sobre as ruínas, e sacudiu as casas de
repouso.
O rosto do chefe de serviço apareceu em cima da mesa. Parecia perturbado.
? Escute, Paikan! O que é que está acontecendo aí? O que é este furacão? O que é que você está
fazendo? Está louco?
? Não fiz nada ? respondeu Paikan. ? A cúpula está bloqueada! Mande-me o engenho da oficina!
Rápido! Isto é só um furacão, e vai se tornar um ciclone! Mande rápido!
O chefe de serviço cuspiu palavras desagradáveis e desapareceu.
A nuvem giratória tinha ficado verde, com bruscas iluminações internas, púrpura ou rosadas. Um
barulho terrível, contínuo, caía sobre a Terra, o barulho de mil trovões retidos. Um feixe de raios arrombou
sua superfície e atingiu o engenho da universidade, que desapareceu numa chama.
Na confusão que se seguiu e atingiu a torre, Paikan desceu correndo para o apartamento e para o
terraço e mergulhou na piscina.
Elea estava lá, no fundo, enfiada na areia, o rosto recoberto pela máscara e dissimulado sob as algas. Ela
viu chegar Paikan, que lhe fazia sinal. Saiu então do esconderijo e subiu com ele para a superfície. Trombas
de água caíam da nuvem, carregadas pelo vento que sacudia loucamente as casas de repouso agarradas às
suas âncoras. Uma rajada enroscou-se na torre e tentou arrancá-la. A torre gemeu e resistiu. O vento
carregou a árvore de seda, que subiu, descabelada, para a nuvem e desapareceu numa boca negra.
Paikan havia levado Elea para a cúpula. A parte de baixo da nuvem acabava de atingi-la e rasgava-se
sobre ela, mistura de vento que uivava, de bruma opaca, de chuva de granizo, iluminada pela sucessão dos
relâmpagos. Ao atingirem uma saída da cúpula, ajustaram suas armas na cintura. Paikan abriu a porta de
uma nave. Dois mecânicos saltaram na torre, acompanhados dos uivos e do canhoneio do furacão.
? O que é que está acontecendo? ? perguntou um deles, espantado.
Em vez de responder, Paikan mergulhou sua mão na arma e atirou na estrutura da cúpula, que ressoou,
gemeu e desmoronou. Pegou Elea, empurrou-a em direção ao veículo, entrou atrás dela e decolou rápido,
enquanto ela, com esforço, conseguia fechar o vidro cônico. A nave desapareceu na espessura da nuvem.
Era um engenho pesado, lento, de difícil manejo, mas que não temia nenhuma forma de furacão. Paikan
quebrou o emissor que assinalava permanentemente a posição do aparelho, virou na nuvem que crepitava
ao redor deles, e foi para o centro, que se deslocava para oeste, seguindo o impulso que ele lhe tinha dado.
Com a cúpula destruída, seria necessária a intervenção das outras torres para modificar o curso do furacão
e neutralizá-lo. Isso dava bastante tempo para executar o início do plano que Paikan expunha a Elea.
A única solução para eles era abandonar Gondawa e ir para Lamoss, a nação neutra. Para isso, era
necessário invadir a pista, pousar, e pegar um engenho de longa distância. Só poderiam encontrar um no
estacionamento da cidade subterrânea.
Os engenhos da universidade não ousariam se arriscar numa tal tempestade, com medo de ver seu
campo magnético perturbado, e cair como pedra. Mas deviam montar uma boa guarda no local. Teriam
portanto de encontrar um elevador, ficar camuflados pela nuvem e protegidos pela ronda da tempestade.
Paikan fez a nave descer até o limite inferior da nuvem. O sol, varrido pelas torrentes de chuva, brilhava
a baixa altura, sobre a claridade dos relâmpagos. Era a grande planície vitrificada. Os últimos elevadores de
Gonda-7 não deveriam estar longe. Elea viu surgir um na bruma. Paikan pousou brutalmente. Assim que
aterraram, saíram correndo e apontaram para o elevador as armas ao mesmo tempo. O vento zunindo
levantava nuvens de poeira.
Era um elevador rápido, que ia diretamente à Quinta Profundidade. Isso não tinha grande importância.
Cada profundidade possuía seus estacionamentos. Foram para a cabina de serviços expressos. Quando o
elevador se abriu para deixá-los passar, estavam secos, lavados, penteados, escovados. Haviam utilizado
suas chaves para isso.
Na avenida de transportes a multidão parecia ao mesmo tempo nervosa e espantada. Imagens surgiam
por todos os lados para dar as últimas notícias. Era preciso enfiar a chave na placa de som para ouvir as
palavras. Apoiados num galho de árvore, sobre a pista de alta velocidade, viram e ouviram o Presidente
Lokan fazer declarações tranqüilizadoras. Não, não era a guerra. Ainda não. O conselho faria todo o possível
para evitá-la. Mas cada habitante de Gondawa não deveria se afastar do seu posto de mobilização. A nação
poderia precisar de todos de um momento para o outro.
A maior parte dos homens e mulheres usava o cinturão com a arma e, sem dúvida, dissimulado em
alguma parte do corpo, o Grão Negro.
Os pássaros não conheciam as notícias: cantavam, pipilando de prazer, voando com rapidez pela pista
central. Elea sorriu e ergueu o braço esquerdo na vertical, acima de sua cabeça, o punho fechado, o
indicador horizontal. Um pássaro amarelo freou em pleno vôo e pousou sobre o seu dedo estendido. Elea
baixou-o à altura do rosto e encostou-o contra a face. Era morno e macio. Sentia seu coração bater tão
rápido que mais parecia uma vibração. Ela lhe cantou algumas palavras de amizade. Ele respondeu com um
assobio agudo, saltou do dedo de Elea para sua cabeça, deu-lhe algumas bicadas nos cabelos, bateu as asas
e se deixou conduzir por um bando que passava. Elea pousou a mão na de Paikan.
Desceram da avenida no estacionamento. Era uma floresta em forma de leque. Os galhos das árvores se
reuniam acima das filas de engenhos estacionados ali. As pistas convergiam para a rampa da chaminé de
decolagem. Da chaminé de chegada, que se abria no centro da floresta, surgiam engenhos de todos os
tamanhos que seguiam nas pistas de volta, para se abrigar sob as folhas como bichos na hora do repouso
depois de uma corrida.
Paikan escolheu um veículo rápido de dois lugares, de longa distância, e sentou-se numa das cadeiras
com Elea a seu lado.
Enfiou sua chave na placa de comando, esperando para indicar sua designação e que se acendesse um
sinal azul na placa que começou a piscar. O sinal não se iluminou.
? O que é que está acontecendo?
Retirou a chave da placa e enfiou-a novamente. O sinal não respondeu.
? Experimente a sua...
Elea enfiou sua chave no metal elástico, sem mais sucesso.
? Há um enguiço qualquer ? disse Paikan. ? Um outro, rápido!...
No momento em que se preparava para sair, o emissor do engenho começou a falar. A voz fez com que
parassem petrificados. Era a de Coban.
? Elea, Paikan, sabemos onde vocês estão. Não se movam. Vou mandar buscá-los. Vocês não poderão ir
a lugar algum, mandei anular suas contas no computador central. Não obterão mais nada com suas chaves.
Elas não poderão mais ajudá-los. Apenas indicar a posição de vocês. O que estão esperando ainda? Não se
mexam, vou mandar buscá-los...
Eles não tiveram necessidade de combinar nada. Saltaram fora do aparelho e afastaram-se
rapidamente. De mãos dadas, atravessaram uma pista diante do nariz de um aparelho que freou rápido, e
afundaram-se sob as árvores. Milhares de passarinhos cantavam nas folhagens verdes ou vermelhas, ao
redor dos galhos luminosos. Os ruídos apenas audíveis dos motores mais lentos compunham um barulho
de fundo tranqüilizante que incitava a não fazer nada, a esperar, a se confundir com a alegria dos pássaros
e das folhas. Na claridade verde-dourada, chegaram ao fim de uma longa fila de engenhos de longa
distância. O último acabara de pousar e tomar seu lugar. Um viajante descia. Paikan ergueu sua arma e
atirou com potência fraca. O homem foi projetado ao solo, espantado. Paikan correu em sua direção,
segurou-o, arrastou-o para baixo de um ramo e ajoelhou-se a seu lado. Teve um trabalho enorme para lhe
arrancar a chave. O homem era gordo, seu anel ficara afundado na carne. Teve que cuspir nos dedos para
conseguir fazê-lo escorregar. Quando finalmente o anel cedeu, ele estava pronto a cortar o dedo, a
garganta, não importa o quê para carregar Elea para longe de Coban e da guerra.
Subiram para o aparelho ainda quente e Paikan enfiou a chave na placa de comando. Em vez do sinal
azul, foi um sinal amarelo que começou a palpitar. A porta do aparelho fechou-se batendo e o emissor de
bordo começou a gritar: “Chave roubada! Chave roubada!” Do exterior do aparelho um aviso guinchava.
Paikan atirou na porta. Correram para fora e afastaram-se para o abrigo das árvores. Atrás deles o sinal
de alarma continuava a lançar seu grito de apelo: “Chave roubada! Chave roubada!”
Os viajantes que se dirigiam para os outros engenhos ou que saíam prestaram pouca atenção ao
incidente. Preocupações mais graves faziam com que se apressassem. Acima da entrada das Treze Ruas,
uma enorme imagem mostrava a batalha da Lua. Os dois campos a bombardeavam com suas armas
nucleares, arrepiando-a com cogumelos, abrindo gigantescas crateras, fissurando seus continentes,
vaporizando seus mares, dispersando sua atmosfera no vazio. Os passantes paravam, olhavam um instante,
e saíam mais depressa. Cada família tinha um amigo ou um parente nas guarnições da Lua ou de Marte.
No momento em que Elea e Paikan entravam na décima primeira rua, a chaminé de chegada do
estacionamento abriu passagem para uma frota de aparelhos da universidade que se dirigiram para todas
as pistas e todas as entradas.
A décima primeira rua estava cheia de uma multidão febril. Grupos se aglomeravam diante das imagens
oficiais que transmitiam as notícias da Lua ou a última declaração do presidente. De tempos em tempos,
alguém que ainda não havia ouvido as declarações enfiava sua chave na placa de som, e Lokan pronunciava
mais uma vez as mesmas palavras tranqüilizadoras: “Ainda não é a guerra...”
? O que mais que eles querem? ? gritou um rapaz magro, de torso nu, cabelos curtos. ? Se vocês
aceitam, já é a guerra! Digam que não com os estudantes! Não para a guerra! Não! Não! Não!
Seu protesto não ergueu eco algum. As pessoas mais próximas dele se afastaram e se dispersaram,
isoladas ou de mãos dadas. Tinham consciência de que gritar não ou sim ou qualquer outra palavra, no
momento, não adiantava mais, fosse para o que fosse.
Elea e Paikan se apressaram em direção à porta do elevador comum, esperando se misturar à multidão
a fim de chegar à superfície. Uma vez lá fora, combinariam um plano. Agora não tinham tempo para pensar.
Os guardas verdes surgiram no fim da rua. Fizeram uma fila tripla em toda a largura dela e avançavam
verificando a identidade de cada um. A multidão se inquietava e se irritava.
? O que é que estão procurando?
? Um espião!
? Um enisor!
? Há um enisor na Quinta Profundidade!
? Todo um destacamento de enisores! Sabotadores!
? Atenção! Escutem e vejam!
A imagem de Coban acabava de surgir no meio da rua. Ela se repetia a cada cinqüenta metros,
dominando a multidão e as árvores, repetindo os mesmos gestos e pronunciando as mesmas palavras.
? Escutem e vejam. Sou Coban. Procuro Elea, 3-19-07-91. Eis aqui seu rosto.
Um retrato de Elea tomado algumas horas antes no laboratório surgiu no lugar de Coban. Elea virou-se
para Paikan e escondeu o rosto no seu peito.
? Não tenha medo de nada! ? disse ele docemente.
Acariciou o seu rosto, escorregou uma mão sobre seu braço, desfez a extremidade da faixa que passava
pelo busto, desnudou-lhe um ombro e, com a parte da faixa assim livre, envolveu-lhe o pescoço, o queixo, a
testa e os cabelos. Era um traje que os homens e as mulheres às vezes adotavam, que não faria com que
ela fosse notada e que lhe dava poucas possibilidades de ser reconhecida.
? Procuro esta mulher para salvá-la. Se vocês souberem onde ela está, avisem, mas não a toquem...
Escute, Elea! Sei que você está me ouvindo. Indique sua posição com sua chave, enfiando-a em qualquer
placa. Indique a posição e não se mexa. Escutem e vejam, procuro esta mulher, Elea, 3-19-07-91...

Um homem, um sem-chave, a reconheceu. Reconheceu seus olhos: não havia azul tão azul nos olhos de
outra mulher, nem em Gonda-7, talvez nem em todo o continente. O homem estava apoiado no muro,
entre dois troncos tortos, sobre os galhos de onde pendem máquinas distribuidoras de água, de alimentos
e de mil objetos necessários ou supérfluos que se podiam obter com as chaves. Ele não podia obter nada.
Era um pária, um sem-chave, não tinha mais conta, só podia viver de mendicância. Estendia a mão, e as
pessoas que vinham se servir na floresta das máquinas multicores lhe davam um pouco de alimento que ele
comia ou guardava num saco pendurado na cintura. Para esconder a vergonhosa nudez do seu dedo sem
anel, trazia em volta da falange do dedo médio uma fita preta.
Ele viu Elea esconder o rosto no peito de Paikan, e este dissimular-lhe o rosto. Mas quando ela ergueu a
cabeça para olhar Paikan, viu seus olhos e reconheceu os olhos azuis da imagem.

Os guardas verdes se aproximavam lenta e inexoravelmente. Cada pessoa interrogada enfiava sua chave
numa placa fixada no punho do guarda. A de qualquer pessoa procurada ficaria enfiada e fixa, tornando o
possuidor prisioneiro. Elea e Paikan se afastaram. O sem-chave os seguiu.
Eles nunca haviam tomado o elevador comum, freqüentado principalmente pelas pessoas menos bem
designadas, aqueles que não andavam de mãos dadas e tinham necessidade da companhia dos outros.
Sabiam agora que não o tomariam nunca: as portas de correr só deixavam passar uma pessoa de cada vez,
após introduzir a chave na placa...
Não tomariam esse elevador ou nenhum outro, nem as avenidas de transporte, nem alimento, nem
bebida. Nada. Não poderiam obter mais nada.
Uma imagem gigantesca de Elea encheu bruscamente toda a largura da rua.
? A universidade procura esta mulher, Elea, 3-19-07-91. Procura-a para salvá-la. Se você encontrá-la,
não a segure, não a toque. Siga-a e assinale-a. Nós a procuramos para salvá-la. Escute, Elea, sei que você
está me ouvindo... Assinale sua presença com sua chave!
? Estão me olhando! Estão me olhando!
? Não ? disse Paikan ?, não podem reconhecê-la.
? Vocês a reconhecerão ? dizia o aviso ? pelos olhos, seja qual for o disfarce. Olhem nos olhos dessa
mulher. Nós a procuramos para salvá-la.
? Abaixe as pálpebras! Olhe para o chão!...
Uma fila tripla de guardas verdes surgiu na encruzilhada da décima primeira rua e da transversal e
avançou ao encontro das outras. Não havia mais escapatória. Paikan olhou ao seu redor, desesperado.
? Olhem bem os olhos dessa mulher...
Cada um dos olhos da imagem era grande como uma árvore, e o azul da íris era uma porta aberta no
céu da noite. Neles, as lantejoulas de ouro brilhavam como fogos. A imagem girava lentamente para que
cada um pudesse vê-la de frente e de perfil. Arrasada por esta presença dividida de si mesma, Elea baixava
a cabeça, curvava os ombros, crispava a mão na mão de Paikan, que a dirigia para a porta da avenida, na
esperança de aí conseguir se insinuar para a saída. A imagem intocável barrava-lhes a rua. Chegaram bem
perto dela. Elea parou e ergueu a cabeça. Do alto do seu rosto gigantesco, seus olhos imensos olharam-na
nos olhos.
? Venha... ? disse Paikan carinhosamente.
Puxou-a para si, ela recomeçou a andar. Um nevoeiro de mil cores tremeluzentes envolveu-a: tinham
entrado na imagem. Caíram dentro das portas da avenida. Os batentes da saída se abriram bruscamente
sob a pressão de uma multidão de estudantes que corriam. Rapazes e moças, todos de torso nu,
extremamente magros. As moças tinham pintado sobre cada seio um grande X vermelho, para negar sua
feminilidade. Não havia mais nem moças nem rapazes, somente revoltados. Desde o início de sua
campanha que eles jejuavam um dia em cada dois, sendo que no segundo não comiam senão a ração
energética. Tinham se tornado duros e ágeis como flechas.
Corriam gritando a palavras “pao”, que significava “não” nas duas línguas gondas. Paikan e Elea
misturaram-se a eles, contra a onda, para atingir os batentes antes que se fechassem.
? Pao!... Pao!... Pao!... Pao!...
Os estudantes lhes davam encontrões e os empurravam, eles tornavam a andar para a frente, Paikan
afastando a multidão como um aríete. Os estudantes passavam por eles, empurravam à esquerda e à
direita, pareciam não os ver, alucinados pela fome e pelo grito repetido,
? Pao!... Pao!... Pao!... Pao!...
Finalmente chegaram à porta. Porém um grupo a encheu e transbordou, fazendo-os recuar. Era uma
companhia de guardas brancos da polícia do conselho, de braços colados, cotovelo com cotovelo, a mão
esquerda armada.
Fria, eficiente, sem emoção, a polícia branca não aparecia a não ser para agir. Seus membros eram
escolhidos pelo computador antes da idade de designação. Não recebiam chave, não tinham nem conta de
crédito. Eram educados e treinados num campo especial, abaixo da Nona Profundidade, abaixo mesmo do
complexo das máquinas imóveis. Não se mostravam jamais na superfície. Raramente acima das máquinas.
Seu universo era o do Grande Lago Selvagem, cujas águas se perdiam nas trevas de uma caverna
inexplorável. Sobre suas margens minerais, eles treinavam sem cessar em batalhas impiedosas uns contra
os outros. Lutavam, dormiam, comiam, lutavam, dormiam, comiam. A alimentação que recebiam
canalizava para atividades de combate sua energia sexual não empregada. Quando o conselho tinha
necessidade deles, lançava-os em quantidade mais ou menos grande onde a necessidade se fazia sentir,
como um organismo mobiliza seus fagócitos contra o furúnculo, e tudo entrava rapidamente em ordem.
Estavam cobertos, da cabeça aos pés, inclusive, por uma vestimenta colante de material branco
semelhante ao couro, que deixava livres somente o nariz e os olhos. Ninguém nunca soube qual era o
comprimento dos seus cabelos. Carregavam duas armas G, igualmente de cor branca, uma na mão
esquerda, a outra sobre o ventre, do lado direito. Eram os únicos a poder atirar com as duas mãos. O
conselho os havia soltado na cidade para liquidar a revolta dos estudantes.
? Pao!... Pao!... Pao!... Pao!...
O grupo dos guardas brancos continuava a sair compacto pelas portas da avenida e avançava em
direção aos estudantes, cujas roupas multicores esvoaçavam na rua. A multidão, pressentindo chegar o
choque, escondia-se em todas as saídas possíveis. Bloqueada pelos guardas verdes nas duas extremidades
da rua, ela refluía para a entrada dos elevadores da avenida. Uma nova imagem do presidente surgiu na
abóbada horizontal, longa como a rua, acima da multidão, e falou.
Uma imagem falante sem chave era tão excepcional que todo mundo parou para ouvir, até os guardas.
? Escutem e olhem!... Informo-lhes que o conselho decidiu enviar o conselheiro da Amizade
Internacional a Lamoss, e pedimos ao governo enisor que também enviasse seu ministro equivalente.
Nossa finalidade é tentar acantonar a guerra nos territórios exteriores e impedir que ela se estenda à Terra.
A paz ainda pode ser salva!... Todos os seres vivos das categorias de um a vinte e seis devem se apresentar
imediatamente nos seus lugares de mobilização.
A imagem apareceu de corpo inteiro e recomeçou o seu discurso.
? Escutem e olhem!... Quero informar-lhes...
? Pao!... Pao!... Pao!... Pao!...
Os estudantes haviam formado uma pirâmide. No cimo, uma moça com os seios pintados, ardente de
fé, gritava, os braços em cruz:
? Pao! Pao! Não escutem! Não vão aos lugares de mobilização! Recusem a guerra seja como for! Digam
não! Obriguem o conselho a declarar a paz. Sigam-nos!...
Um guarda branco atirou. A moça atingida desapareceu na face da imagem de Elea.
? Procuramos esta mulher... Os guardas continuaram atirando.
? Pao!... Pao!... Pao!... Pao!...
A pirâmide desapareceu em pedaços compostos de rapazes e moças mortos. Paikan quis pegar sua
arma, mas ela não estava mais na sua cintura. Ele a perdera, sem dúvida, no momento em que acreditava
tê-la colocado no lugar, ao saltar do aparelho. A compacta massa branca dos guardas ia atingi-los, a
multidão fugia, os estudantes gritavam seu brado de revolta. Paikan deitou Elea no chão e atirou-se por
cima dela. Um guarda branco tropeçou nele ao correr. Paikan pegou no vôo a ponta de um pé e virou-o
com um golpe seco. O tornozelo estalou. O guarda caiu sem gritar. Paikan esmagou com o joelho suas
vértebras cervicais e puxou a cabeça para trás com as duas mãos. As vértebras estalaram. Paikan ergueu a
mão esquerda armada, inerte, e dobrou bem os dedos enfiados na arma. Um grupo de guardas voou e
chocou-se contra a parede, e a parede, pulverizada, desapareceu numa nuvem. Por trás da brecha aberta, a
pista da avenida apareceu. A multidão meteu-se por ela, gritando, Paikan e Elea no meio deles. Paikan
carregava a arma do morto. Os guardas brancos, indiferentes, prosseguiam com calma sua tarefa de
exterminação.
Abandonaram a avenida no ponto circular do estacionamento. O lugar era a única esperança, a única
saída. Paikan havia pensado numa outra maneira de arranjar um aparelho. Mas era preciso chegar até ele...
No centro do ponto circular erguiam-se os doze troncos de uma árvore vermelha. Unidos pela base,
erguiam-se em corola, segurando-se por seus galhos comuns como crianças que fazem uma roda. Muito
alto, suas folhas vermelhas escondiam a abóbada e se uniam sobre a multidão de patas e asas dos pássaros
ali escondidos. Em volta do seu pé corria um riacho de onde pequenas tartarugas luminosas erguiam as
cabeças chatas quase transparentes para procurar vermes e larvas. Ofegante de sede, Elea ajoelhou-se à
beira do riacho. Pegou a água na concha de suas mãos e nela mergulhou a boca. Cuspiu-a com horror.
? Ela vem do lago da Primeira Profundidade ? disse Paikan. ? Você bem sabe...
Ela o sabia, mas estava com sede. Essa maravilhosa água clara era amarga, salgada, pútrida e morna. Era
imbebível, mesmo na hora da morte. Paikan ergueu docemente Elea e apertou-a contra si. Estava com sede
e com fome, mais esgotado do que ela, pois não tinha para se manter o soro universal. Dos galhos acima
deles pendiam mil máquinas que lhes propunham, em mil cores mutantes, bebidas, alimentos, jogos,
prazeres, tudo o que fosse necessário. Sabia que não tinha nem o recurso de quebrar uma ou outra, pois no
interior não havia nada. Cada uma fabricava o que tinha de fabricar a partir do nada. Com a chave.
? Venha ? disse carinhosamente Paikan.
De mãos dadas, aproximaram-se da entrada do estacionamento, que estava barrada por três filas de
guardas verdes. Em cada rua que terminava no ponto circular, uma fila tripla avançava, empurrando
multidões irritadas e cada vez mais densas.
Paikan afundou a mão na arma, tirou-a da cintura, virou-se para a entrada do estacionamento e ergueu
o braço.
? Não! ? disse Elea. ? Eles têm granadas.
Cada guarda tinha na cintura uma granada S, transparente, frágil, cheia de um líquido verde. Era
suficiente uma só para que toda a multidão ficasse adormecida imediatamente. Elea trazia, pendurada
como colar, a máscara que já lhe havia servido na universidade e nas profundezas da piscina, mas Paikan
não a tinha.
? Posso ficar dois minutos sem respirar ? disse Paikan. ? Ponha a máscara. E no momento em que eu
atirar, corra.
Um retrato de Elea iluminou-se bruscamente no meio da árvore vermelha e a voz de Coban elevou-se:
? Vocês não poderão deixar a cidade. Todas as saídas estão guardadas. Elea, onde estiver você me ouve.
Assinale sua presença com a chave. Paikan, pense nela e não em você. Comigo é a vida, com você é a
morte!
? Atire! ? gritou Elea.
Ele respirou fundo e atirou a meia potência.
Os guardas caíram. Granadas se quebraram. Uma brisa verde encheu de um só golpe o ponto circular
até em cima. A multidão dobrou os joelhos, foi escorregando, ficou deitada. De cima das folhas das doze
árvores, dezenas de milhares de pássaros caíram como flocos de todas as cores velados pela bruma. Paikan
já estava puxando Elea, correndo para o estacionamento. Corria, saltava os corpos estendidos, e substituía
pouco a pouco o ar que lhe enchia os pulmões. Tropeçou contra um joelho erguido. Deu um ai e respirou
sem querer. Adormeceu como uma pedra e, ainda no impulso da corrida, caiu de cabeça sobre uma barriga
deitada.
Elea o virou, segurou-o por baixo dos braços e começou a puxar.
? Sozinha não conseguirá nunca! ? disse uma voz anasalada.
Perto dela estava o sem-chave, com o rosto escondido por uma máscara de modelo antigo, remendada
e presa de qualquer maneira.
Abaixou-se e segurou os pés de Paikan.
? Por aqui ? falou ele.
Conduziu Elea e seu fardo em direção ao muro, num canto entre dois troncos retorcidos. Pousou Paikan
e olhou ao redor. Não havia nenhum ser vivo diante da porta. Tirou do seu saco um pedaço de ferro,
enfiou-o no buraco do muro, virou e empurrou. O pedaço de muro entre os dois troncos abriu-se como
uma porta.
? Depressa! Depressa!...
Um aparelho da universidade estava descendo à entrada do estacionamento. Eles ergueram Paikan e
entraram naquele buraco negro.

O despertar era tão brusco quanto a queda no sono. Logo que ficou longe da influência da bruma verde,
Paikan abriu os olhos e viu o rosto de Elea. Estava ajoelhada ao seu lado, segurava-lhe a mão direita entre
as suas, e o olhava angustiada. Vendo-o despertar, suspirou de alegria, deu-lhe um sorriso, abandonou suas
mãos e afastou-se para que ele pudesse olhar ao redor.
Ele olhou e só viu cinzento. Paredes cinza, chão cinza, abóbada cinza. E, diante dele, a escadaria cinza.
Bastante larga para deixar passar uma multidão, subia, deserta, vazia, nua, interminável, dentro do cinza e
do silêncio, e nele desaparecia.
À esquerda, uma outra escadaria igualmente larga e vazia descia virando no cinza que a absorvia. Alguns
lanços mais estreitos de corredores em rampa cruzavam as paredes em todas as direções, para baixo e para
cima. Uma camada de poeira cinzenta cobria uniformemente as paredes, o solo e os arcos.
? A escadaria! ? disse Paikan. ? Tinha me esquecido.
? Todos a esqueceram ? acrescentou o sem-chave.
Paikan levantou-se e olhou o homem. Ele também era cinzento. Suas roupas e seus cabelos eram
cinzentos, sua pele de um rosa acinzentado.
? Foi você que me trouxe aqui?
? Sim, com ela... É ela que estão procurando, não é?
Ele falava a meia voz, sem timbre, sem entonação.
? Sim, sou eu ? disse Elea.
? Eles não pensarão logo na escadaria. Ninguém a utiliza há muito tempo. As portas foram condenadas e
camufladas. Eles terão trabalho para encontrá-las.
Três homens cinzentos surgiram silenciosos num corredor inclinado. Vendo o grupo, pararam alguns
instantes, aproximaram-se, olharam Elea e Paikan, e partiram novamente sem dizer uma palavra pelos
degraus principais para cima. Era um pouco de cinza se movendo no cinza imóvel. Tornavam-se cada vez
menos visíveis, cada vez menores em direção ao alto, cinza sobre cinza, indiscerníveis. De repente foi
possível adivinhá-los porque um deles, em vez de continuar em frente, deu um passo para o lado. Um
ponto cinza que mexia sobre o cinza, depois mais nada além do cinza que não se mexia. Seus pés sobre os
degraus haviam esmagado a poeira sem deslocá-la. Ela se reagrupava lentamente atrás deles, apagando o
vestígio dos seus passos, de sua passagem, de sua vida. A poeira não era pulverulenta e sim como feltro,
compacta, sólida. Uma espécie de tapete arejado, frágil e estável, era o forro deste lado do avesso do
mundo.
? Se você quiser subir até a superfície ? disse o homem com sua voz que era apenas suficientemente
forte para que o ouvissem ?, tem trinta mil degraus pela frente. Será necessário um dia ou dois.
Paikan respondeu abafando instintivamente a voz. O silêncio era como um mata-borrão no qual tinham
medo de ouvir as palavras se enfiarem e desaparecerem.
? O que queremos é chegar ao estacionamento.
? O da Quinta Profundidade está cheio de guardas. Seria necessário subir ou descer uma profundidade.
Descer será mais fácil...
O sem-chave mergulhou a mão no bolso, tirou algumas esférulas de alimento e lhes deu. Enquanto as
deixava desmanchar na boca, ele enxugou com as costas da mão a poeira de uma espécie de cilindro que
corria à altura de um homem ao longo da parede, e aí enfiou duas vezes uma lâmina. Um duplo jato de
água começou a correr.
Elea, a boca aberta, jogou-se sobre a fina coluna transparente. Engasgou-se, tossiu, espirrou, riu de
felicidade. Paikan bebia com as mãos em concha. Tinham apenas acabado de matar a sede quando o jato
duplo secou: o conduto de água havia reparado o defeito.
? Vocês beberão novamente mais longe ? disse o homem. ? Apressemo-nos, são trezentos degraus até a
Sexta Profundidade.
Tomou uma escada à direita. Os dois o seguiram. Ele quase corria sobre os degraus, com uma segurança
nascida da longa freqüência à escada e da sua roupa de poeira. Atravessou um estreito patamar, pegou
uma escada perpendicular, depois uma outra, outra, outra. Depois à esquerda, à direita, bifurcava,
ziguezagueava, sem hesitação, descendo de andar em andar, sempre mais baixo.
De mãos dadas, Elea e Paikan desciam atrás dele, enfiando-se pela espessura cinza. Às vezes
encontravam, cruzavam ou ultrapassavam outros sem-chave silenciosos, que caminhavam sem pressa,
sozinhos ou em grupos pequenos. O complexo da escadaria era seu universo. Esse corpo abandonado,
esvaziado, esse esqueleto oco, vivia da presença furtiva deles. Haviam feito aberturas clandestinas e
reaberto portas desconhecidas no subsolo: aqueles homens viviam no mundo do barulho e da cor o tempo
necessário para encontrar o indispensável, pela mendicância ou pelo roubo. Depois voltavam a penetrar no
interior cinzento do qual haviam pouco a pouco assimilado a cor. A poeira do chão engolia o barulho dos
passos, a dos muros o barulho das palavras. O silêncio que os cercava penetrava neles e os fazia calar.
Atordoados, correndo, saltando degraus, Elea e Paikan seguiam seu guia, que se afundava cada vez
mais. O homem lhes explicava tudo, em algumas palavras, pedaços de frases, mal e mal falados, quase
segredados. Falava da fome quando as pessoas-da-cor não queriam dar. Então ficavam reduzidos a comer
os pássaros-redondos. Mostrou um diante deles, que se escondeu. Era gordo como uma mão fechada,
cinzento e não tinha asas. Para atravessar um patamar corria a toda pressa sobre suas pernas magras.
Chegado ao alto dos degraus, atirou-se, escondeu a cabeça e os pés sob as plumas, e rolou, caindo como
uma bola até embaixo.
Viram muitos outros que bicavam o chão e arrancavam com a ponta do bico alguns vermes cinzentos
que habitavam a galeria dentro da camada de poeira e se alimentavam dela.
Elea conservava as forças e o fôlego, mas Paikan teve que parar. Descansaram alguns instantes,
sentados embaixo de um lanço de degraus. Num canto do patamar, brilhava uma pequena chama. Três
pessoas silenciosas, agachadas, assavam pássaros-redondos, que seguravam pelos pés sobre um fogo de
poeira. O cheiro horrível da carne assada chegou até eles e Paikan sentiu o coração apertado.
? Continuemos ? disse ele.
No momento em que se levantava, o barulho de dois golpes ressoou numa das paredes. Os três
silenciosos fugiram, levando suas presas meio cruas. Um fragmento do muro voou em pedaços.
? Rápido! ? disse o sem-chave. ? Eles a encontraram! É uma porta antiga!...
Empurrou-os na sua frente, para cima. Voltaram a subir o lanço de degraus, quatro a quatro. No
patamar, um pedaço do muro desmanchou-se, e os guardas verdes entraram.
Os três fugitivos corriam a toda velocidade por um corredor em rampa, enxotando um bando de
pássaros-redondos que rolavam e que para aumentar a velocidade botavam os pés para fora e se atiravam
de novo, cada vez mais rápido, sem um pio de medo, redondos, rolantes, silenciosos e cinzentos.
Do fundo do corredor, diante deles, ergueu-se a voz de Coban. Estava abafada, desencarnada pelos
feltros da poeira, parecia próxima e vir, extenuada, do fim do mundo.
? Escute, Elea, sabemos onde você está. Vai se perder. Não se mexa. Iremos encontrá-la. Não se mexa.
O tempo urge...
A marcha surda dos guardas vinha da frente deles, por trás deles, acima deles. O sem-chave parou.
? Estão em todos os lados ? falou.
Paikan enfiou a mão na arma.
? Espere! ? disse o homem.
Ajoelhou-se, fez um buraco com as mãos no tapete de poeira, colou seu ouvido ao solo e escutou.
Ergueu-se com um salto.
? Sim, atire aí!
Veio refugiar-se atrás de Paikan e mostrou o solo desnudo. Paikan atirou, o solo tremeu. Nuvens de
poeira voaram pelo corredor.
? Mais forte!
Paikan atirou de novo. O solo se abriu gemendo.
? Saltem!
O sem-chave deu o exemplo e saltou no abismo de onde se ouvia um barulho de rio. Eles saltaram atrás,
caíram na água amarga e morna. Uma corrente forte os levou. Elea voltou à superfície e procurou Paikan. A
água era ligeiramente fosforescente, mais brilhante nos redemoinhos e nos turbilhões. Viu o rosto de
Paikan, que saía da água. Seus cabelos brilhavam com uma luz verde. Ele lhe sorriu e estendeu-lhe a mão. O
teto em rampa afundava-se na corrente, que corria como por um sifão. No centro do turbilhão apareceu
uma bola brilhante: a cabeça do sem-chave. Ele ergueu a mão, fez sinal de que mergulhava, e desapareceu.
Elea e Paikan começaram a rodar sobre si mesmos e foram aspirados pela profundidade. Mão na mão,
pernas largadas, sem peso, afundavam na enorme espessura de uma massa de água palpitante e morna.
Caíam a uma velocidade fantástica, giravam estendidos em volta de suas mãos unidas, davam voltas que os
jogavam contra as paredes forradas por milhares de pequenas raízes, emergiam no cimo de uma curva,
respiravam, aspirados, carregados, sempre mais para baixo. A água tinha gosto de podridão e de sais
químicos. Era o grande lago corrente, oriundo do lago da Primeira Profundidade. À saída do lago, ele
atravessava uma máquina imóvel, que lhe acrescentava os alimentos reclamados pelas plantas. Descia em
seguida de andar em andar, nas paredes e nos solos, e banhava as raízes de toda a vegetação enterrada.
A queda vertical terminou numa curva larga e uma subida que os atirou no meio de um gêiser de bolhas
fosforescentes. Encontraram ar na superfície de um lago que corria lentamente para um pórtico sombrio.
Uma quantidade de colunas retorcidas, umas largas como dez homens, outras finas como um punho de
mulher, desciam do teto e se enfiavam na água, onde se ramificavam e desabrochavam. Era um polvo
brilhante de raízes.
Sobre uma delas, tortuosa, estava sentado o sem-chave. Gritou-lhes:
? Subam! Rápido!
Elea ergueu-se até a altura de um tronco quase horizontal e puxou Paikan, sobre quem o cansaço
pesava. A água brilhava e corria sobre as longas serpentes vegetais com um barulho de carícia. Do pórtico
sombrio vinha, de tempos em tempos, o barulho surdo de redemoinhos mais fortes. Uma claridade pálida
subia da água, corria pelas raízes, fria, viscosa, verde. De todas as partes do lago pontas redondas
luminosas, de um rosa vivo, corriam em direção ao redemoinho deixado pelos três fugitivos. Formou-se
pouco depois, abaixo deles, uma ebulição frenética de claridade rósea. De tempos em tempos, algumas
dessas gotas vivas saltavam para fora da água, como faíscas, tentando colar-se às pernas nuas que pendiam
longe do seu alcance. Eram peixes minúsculos, quase cortados em dois por sua boca aberta.
? Os peixes-amargos ? disse o sem-chave. ? Se eles o mordem, comem tudo, até os ossos.
Elea estremeceu.
? Mas, normalmente, o que é que eles comem?
? Raízes mortas, e todos os restos que a corrente traz. São limpadores, e quando não há mais nada
comem-se uns aos outros.
Virou-se para Paikan, bateu no teto que se encostava na sua cabeça, e disse:
? Estacionamento!...
As raízes que mergulhavam no lago eram as da floresta do estacionamento da Sexta Profundidade.

Paikan ergueu a arma e atirou entre duas raízes. Uma parte do teto caiu. Pela brecha, uma árvore
gigante desceu lentamente. Seus galhos seguravam um aparelho no qual se agitavam duas silhuetas claras.
Caiu no lago, e a árvore inclinada afundou-o e o manteve embaixo da água. Era um barco de intervenção da
polícia do conselho, ocupado por dois guardas brancos. Num relâmpago cor-de-rosa os milhões de peixes
lenticulares caíram sobre eles e os atacaram pela parte descoberta de seu rosto, entraram-lhes pelos olhos
na cabeça e, pelo nariz, no peito e no ventre. O aparelho encheu-se de água vermelha.
Seguidos pelo sem-chave, Elea e Paikan subiram pelas raízes e galhos, e tomaram pé no solo do
estacionamento. Os estudantes lutavam ali uma batalha sem esperança com os guardas brancos. Tinham
encontrado, num engenho-cargueiro bloqueado pela guerra, barras e bolas de ouro que deviam servir para
edificar máquinas e móveis sobre a Lua. Bombardeavam os policiais e corriam, escondendo-se atrás das
árvores e dos aparelhos. Eram armas irrisórias. Às vezes uma delas atingia o alvo e quebrava um crânio num
lampejo de ouro. Mas a maior parte não atingia o alvo.
As filas de policiais avançavam entre as árvores como serpentes brancas e atiravam. Colhiam os
estudantes em plena corrida e os jogavam contra os troncos ou nas folhagens. Os galhos estalavam e
caíam. Aparelhos ficavam despedaçados. Todos os pássaros do estacionamento haviam abandonado a
floresta e voavam sobre a abóbada em círculo aloucado, soltando pios de pavor. Apresentaram a imagem
do conselheiro militar, de cabelos negros trançados, que anunciava a recusa do governo enisor em enviar
um ministro a Lamoss. Convocava todos os seres de Gondawa a se apresentarem ao seu posto de
mobilização. A imagem sinistra do homem magro apagou-se, reapareceu um pouco mais longe, recomeçou
seu anúncio.
Acima da entrada das Treze Ruas, uma imagem de Elea girava. Um quarto para a esquerda, um quarto
para a direita, à esquerda, à direita...
? A universidade procura esta mulher, Elea, 3-19-07-91. Vocês a reconhecerão pelos olhos. Nós a
procuramos para salvá-la. Elea, assinale sua presença com sua chave...
Na extremidade de uma pista, perto da torre de vôo, uma pequena multidão havia bloqueado um
aparelho de forma oblonga, inusitado em Gondawa. Um cidadão de Lamoss, que o ocupava, foi
violentamente arrancado do seu interior. Gritava que não era enisor, que não era um espião, que não era
inimigo. Mas a multidão não compreendia a língua lamoss. Via as roupas diferentes, cabelos curtos, o rosto
claro, e gritava: “Espião!” “Morte!” Começaram a bater. Os estudantes voaram em socorro do homem. Os
guardas brancos os seguiram. O lamoss estava machucado, rasgado, em frangalhos, completamente
amassado pelos pés da multidão enraivecida. Os estudantes furiosos berravam contra o horror e contra a
estupidez. A multidão louca gritou: “Estudantes! Espiões! Vendidos! Morte!” A multidão em fúria rasgou as
roupas dos estudantes, arrancou-lhes os cabelos, as orelhas, os seios, os sexos. Os guardas brancos
atiraram, limparam todo o local.
O sem-chave deu um sorriso triste, fez um gesto de amizade aos seus dois companheiros, e afastou-se
em direção das Treze Ruas. Elea e Paikan apressaram-se rumo a um setor mais calmo do estacionamento. A
segunda fila de aparelhos de longa distância estava quase deserta, em calma. Um desses aparelhos, que
acabara de descer, procurava vaga. Parou, pousou, a porta abriu, um homem apareceu. No momento de
descer, estancou, surpreso, por escutar os gritos de violência e o choque surdo das armas. As árvores o
impediam de ver, mas o tumulto chegava até ele. Saltou em terra.
? O que é que está acontecendo? ? perguntou a Paikan.
Este, como resposta, ergueu para ele a mão esquerda enluvada da arma branca, e com a mão direita
arrancou-lhe a arma e jogou-a longe.
? Suba outra vez! Rápido!
Compreendendo cada vez menos, o homem obedeceu. Paikan o fez sentar, pegou-lhe a mão e enfiou
sua placa na chapa elástica...
Espera interminável num instante de silêncio. Depois, bruscamente, o mostrador palpitou. Paikan deu
um profundo suspiro e com sua mão direita fechou a boca do homem.
? Destino? ? perguntou o emissor.
? Lamoss, primeiro parque.
Houve um pequeno ronronar seguido de um estalo.
? Crédito suficiente. Destino registrado. Retire sua chave... Partida...
Paikan arrancou o homem de sua cadeira e jogou-o para fora, enquanto lhe gritava seus
agradecimentos e suas desculpas. No mesmo momento a porta fechava-se, o aparelho decolava, girava
sobre si mesmo e ganhava a pista. Pegou a da rampa de saída.
O emissor de bordo falou:
? A universidade procura Elea, 3-19-07-91. Elea, assinale-se com sua chave...
A torre de partida comandou o engenho, que decolou em direção ao alto. Saiu da Boca e subiu na noite
exterior.
Desde que viviam na superfície, Elea e Paikan tinham perdido o hábito da luz perpetuamente acesa nas
cidades enterradas. Era dia quando deixaram o estacionamento. Pensavam encontrar dia no exterior. Mas
a Terra e o Sol tinham continuado seu curso, e a noite tinha chegado com sua multidão de estrelas. Eles se
deitaram lado a lado sobre o leito da nave e, de mãos dadas, sem dizer uma palavra, deixaram-se invadir
pela doçura e pelo silêncio infinitos. Subiam na noite e na paz em direção ao céu estrelado, esqueciam a
Terra e seus horrores absurdos. Estavam juntos, estavam bem, cada instante de felicidade era uma
eternidade.
Colocaram na cabeça os círculos de ouro com que o leito estava munido, e abaixaram a placa frontal.
Tinham adquirido de tal maneira o hábito de se comunicar assim, que cada um podia receber do outro o
conteúdo da sua memória, ao mesmo tempo que, sem ter necessidade de pensar, contava-lhe o que
continha a sua. A. troca se efetuava numa velocidade instantânea. Colocavam o círculo, fechavam os olhos,
abaixavam a placa, e logo havia uma só memória, um só passado. Cada um se lembrava das recordações do
outro como se fossem suas. Não eram mais dois seres que crêem se conhecer e se enganam, mas um só
ser, sem sombra de dúvida, solidários e sólidos diante do mundo. Assim Paikan soube de tudo sobre o
projeto do abrigo, e de cada instante vivido por Elea entre o momento em que se haviam separado e
aquele em que ela o havia reencontrado. Assim conheceu a maneira pela qual ela havia recuperado a
liberdade. Sabendo-o por ela mesma, sofreu por ela sem recriminação e sem ciúme. Não havia entre eles
lugar para sentimento dessa ordem, pois cada um, conhecendo tudo do outro, compreendia o outro
completamente.
Tiraram ao mesmo tempo os círculos de ouro e se sorriram, numa união total, numa felicidade perfeita
por estarem juntos. Eram um único ser e eram dois para dividir e multiplicar suas alegrias. Como duas mãos
do mesmo corpo que acariciam o mesmo objeto, como dois olhos que dão ao mundo sua profundidade.
O emissor de bordo falou.
? Atingimos o nível dezessete. Vamos começar o vôo horizontal em direção de Lamoss. Velocidade
autorizada: nove a dezessete. Que velocidade desejam?
? A máxima ? respondeu Paikan.
? Máxima, velocidade dezessete registrada. Atenção à aceleração!
Apesar do aviso, o deslocamento horizontal pressionou Elea contra o alto e rolou Paikan por baixo dela.
Ela começou a rir, tomou nas mãos os longos cabelos louros ainda úmidos, mordiscou-lhe o nariz, as faces,
os lábios.
Não pensavam mais nas suas provas, nas ameaças, nem na guerra. Voavam para um porto de paz.
Talvez momentânea, precária, ilusória, e onde, em todo caso, múltiplos problemas se colocariam diante
deles. Mas essas preocupações eram para amanhã e não para agora. Viver antecipadamente as
infelicidades é sofrê-las duas vezes. O momento presente era momento de alegria, era preciso não
envenená-lo.
Aquele momento de paz foi cortado bruscamente por um grito de alerta no emissor.
Gelados, endireitaram-se. Um sinal vermelho piscava na placa de comando.
? Alerta geral ? disse o emissor. ? Todos os vôos estão cancelados. Vocês voltarão ao estacionamento
pelo caminho mais curto. Devem ir imediatamente aos seus locais de mobilização.
O aparelho virou-se e começou uma vertiginosa descida oblíqua. No solo, através da carlinga
transparente, viam um bale louco de casas de repouso se aproximando a uma velocidade que aumentava
cada vez mais, e o funil da Boca aspirar as bolas luminosas que giravam em cima dela esperando sua vez.
O aparelho diminuiu a velocidade e foi tomar seu lugar na roda. Todos os aparelhos na superfície
tinham recebido ordem de voltar. Casas ou engenhos, eram milhares a girar em cima da Boca, que aspirava
os mais próximos em plena abertura. Sua roda cobria todo o lago e a floresta.
? Está nos levando de volta para a cidade! Para a armadilha! ? gritou Elea. ? É preciso saltar!
Estavam quase sobrevoando o lago em velocidade reduzida, a uma altura razoável para um salto. Mas
as portas ficavam bloqueadas durante o vôo. Logo deixaram o lago e sobrevoaram a massa compacta das
árvores. Paikan atirou na placa de comando. O aparelho curvou-se e começou a subir, descer, subiu
oscilando, perdendo cada vez mais altitude, como uma folha de outono que cai. Passou rasante sobre o
cimo da floresta, subiu mais um pouco, desceu e atingiu o cimo de um tronco gigante coroado de folhas de
palmeiras. Ficou plantado aí como uma maçã num lápis.

Estavam deitados lado a lado à beira do lago, sobre a grama que descia em direção à areia. A mão de
Elea estava na mão de Paikan. Seus grandes olhos abertos olhavam a noite limpa. A Boca havia absorvido
os últimos retardatários, o céu não oferecia nada além de suas estrelas. Não viam outra coisa senão elas,
prosseguiam no meio delas, na imensa paz indiferente dos pássaros, sua viagem de esperança
interrompida.
Diante deles, ao nível do lago, a lua se erguia em seu último quarto. Estava inchada, como que envolta
em algodão, deformada, avermelhada. Fulgurações vermelhas iluminavam sem cessar sua parte sombria.
Às vezes brilhava inteira num rápido esplendor semelhante ao do sol. Era a imagem silenciosa da destruição
do mundo, proposta aos homens pelos homens.
Aqui mesmo, antes do fim da noite...
Sem se mexerem muito, sem se olhar, enlaçaram os dedos e colaram as palmas das mãos uma contra
outra, bem apertadas.
Atrás deles, na floresta, um cavalo relinchou suavemente como para se queixar. Um pássaro perturbado
no seu sono pipilou e voltou a dormir. Um vento ligeiro passou pelos seus rostos.
? Poderíamos partir a cavalo... ? murmurou Paikan.
? Ir para onde? ? sussurrou Elea. ? Nada mais é possível... Está acabado...
Ela sorriu dentro da noite. Estava com ele. Acontecesse o que acontecesse, aconteceria a ele com ela, e
a ela com ele.
Houve um relincho mais próximo, e o barulho abafado das patas do cavalo sobre a erva.
Levantaram-se. O cavalo, branco de lua, veio até eles, parou e sacudiu a cabeça.
Ela enfiou sua mão nos longos pêlos e o sentiu tremer.
? Está com medo ? disse ela.
? Ele tem razão...
Ela viu a silhueta de seu braço estendido fazer a volta do horizonte.
Em todas as direções, a noite se iluminava de breves claridades, como tempestades distantes.
? A batalha... Gonda-17... Gonda-41... Enawa... Zenawa... Eles desembarcaram em toda parte...
Um ribombar surdo começava a seguir os clarões. Era ininterrupto, provinha de todo o círculo em redor,
do qual eles eram o centro. Tornava o solo sensível sob seus pés.
O ruído acordou os bichos da floresta. Os pássaros voavam, aflitos, aflitos por ainda encontrar a noite,
tentavam voltar para seus ninhos, chocavam-se nos galhos e nas folhas. As corças saíram do bosque e
vieram se juntar ao redor do casal humano. Veio também um cavalo azul, invisível na noite, e os pequenos
ursos lentos das árvores com seus coletes claros, e os coelhos negros de orelhas curtas, cuja cauda branca
remexia-se no solo.
? Antes do fim da noite ? disse Paikan ? não restará mais nada de vivo aqui, nem um bicho, nem um talo
de grama. E aqueles que se crêem protegidos lá embaixo têm somente uma prorrogação de alguns dias,
talvez de algumas horas... Quero que você vá para o abrigo... Quero que você viva!...
? Viver? Sem você?...
Apoiou-se contra ele e levantou a cabeça. Ele via a noite dos seus olhos refletir as estrelas.
? Não ficarei sozinha no abrigo. Existe Coban. Você já pensou?
Ele sacudiu a cabeça como para recusar essa imagem.
? Quando acordarmos, deverei dar filhos a ele. Eu, que ainda não tive filhos de você... Eu, que
esperava... esse homem dentro de mim, sem cessar, para me semear filhos, você não se incomoda?
Ele apertou-a bruscamente contra si, depois reagiu, fez um esforço para ficar calmo.
? Estarei morto... há muito tempo... depois desta noite...
Uma voz imensa e descarnada saiu da floresta. Os pássaros fugiram, chocando-se no seu vôo com todos
os obstáculos da noite. Todos os emissores da floresta falavam a voz de Coban. Ela se misturava e se
superpunha a ela mesma, vibrava e ecoava sobre a superfície das águas. O cavalo azul levantou a cabeça
para o céu e soltou um relincho agudo.
? Elea, Elea, escute, Elea... Sei que você está no exterior... está em perigo... o exército invasor desce sem
parar... breve ocupará toda a superfície... assinale onde está com sua chave... iremos buscá-la onde você
estiver... não demore mais... Escute, Paikan, pense nela!... Elea, Elea, este é o meu último apelo. Antes do
fim da noite, o abrigo será fechado, com ou sem você.
Depois foi o silêncio.
? Eu sou de Paikan ? disse Elea numa voz baixa e grave.
Pendurou-se ao pescoço dele.
Ele passou os braços à volta dela, ergueu-a e deitou-a sobre a coberta macia de grama, entre os bichos,
que se afastaram e fizeram um círculo ao redor deles. Chegavam outros vindos da floresta, todos os cavalos
brancos, cavalos azuis e os cavalos negros, menores, que não se viam nem mesmo sob a luz da lua. E lentas
tartarugas saíam da água para os encontrar. A claridade dos horizontes palpitava à volta deles até as
extremidades do mundo. Estavam sozinhos no meio de uma praça viva, fortificada pelos bichos, que os
protegiam e os confortavam. Ele passou a mão por baixo da faixa que cobria o peito de Elea e fez florescer
um seio entre duas pregas da fazenda. Pousou sobre ele a palma arredondada da sua mão e o acariciou
com um gemido de felicidade, de amor, de respeito, de admiração, de ternura, com um reconhecimento
infinito pela vida que havia criado tanta beleza perfeita e a dera a ele para que provasse e sentisse que ela
era bela.
E agora, era a última vez.
Colou sobre o seio a boca entreaberta e sentiu a ponta macia tornar-se dura entre seus lábios.
? Eu sou sua... ? murmurou Elea.
Ele libertou o outro seio e o apertou carinhosamente, depois desfez a roupa dos quadris. Sua mão
correu ao longo das ancas, ao longo das coxas, e todas as descidas levavam ao mesmo ponto, ao cimo da
pequena floresta dourada, à nascente do vale fechado.
Elea resistia ao desejo de se abrir. Era a última vez. Era preciso eternizar cada impaciência e cada
entrega. Entreabriu-se o suficiente para deixar a mão dele escorregar, procurar, encontrar, no cimo do
monte e do vale, na confluência de toda as rampas, protegido, escondido, coberto, ah!... descoberto! O
centro abrasador dos seus prazeres.
Ela gemeu e por sua vez colocou suas mãos sobre Paikan.
O horizonte estremeceu. Uma claridade verde ofuscou uma manada de cavalos brancos que dançavam
no local, assustados.
Elea não via mais nada. Paikan via Elea, olhava-a com os olhos, com as mãos, com os lábios, enchia a
mente com sua carne e com sua beleza e com o prazer que a percorria, fazia-a gemer, arrancava-lhe
suspiros e gritos. Ela parou de acariciá-lo. Suas mãos sem forças se desprenderam dele. Os olhos fechados,
os braços pendidos, ela não pesava mais, não pensava mais. Ela era o capim e o lago e o céu, era um rio e
um sol de prazer. Mas ainda não eram senão as ondas antes da onda única, a grande estrada luminosa,
múltipla, para o único cimo, o maravilhoso caminho que ela nunca havia tão longamente percorrido, que
ele desenhava e redesenhava com as mãos e com os lábios sobre todos os tesouros que ela lhe dava. Ele
lastimava não ter mais mãos, mais lábios para lhe proporcionar no corpo todo mais prazeres ao mesmo
tempo. E no seu coração ele lhe agradecia por ser tão bela e tão feliz.
De repente o céu todo tornou-se vermelho. O rebanho vermelho dos cavalos partiu a galope em direção
à floresta.
Elea queimava. Ofegante, impaciente, tomou entre suas mãos a cabeça de Paikan com seus doces
cabelos cor de trigo, que ela não via, que não podia mais ver, aproximou-o de si, sua boca sobre a dele,
depois suas mãos desceram novamente e pegaram a árvore amada, a árvore oferecida, aproximada e
recusada, e a conduziram para seu vale aberto até a alma. Quando ele entrou, ela gemeu, morreu,
derreteu-se, espalhou-se sobre os bosques, sobre o lago, sobre a carne da terra. Mas ele, Paikan, estava
nela, chamava-a para si, com longos apelos poderosos que a transportavam aos píncaros do mundo ?
Paikan! —, chamavam-na, atraíam-na, congregavam-na, condensavam-na, apertavam-na até que o meio de
seu ventre transpassado de chamas ? Paikan! ? explodisse num gozo prodigioso, indizível, divino, bem-
amado, abrasante, até a extremidade da menor parcela do seu corpo, que a excedia.
Seus rostos calmos repousaram encostados um no outro. O de Elea estava virado em direção ao céu
vermelho. O de Paikan banhava-se na erva fresca. Ele ainda não queria se retirar dela. Era a última vez. Ele
pesava sobre ela o necessário para tocá-la e senti-la ao longo de sua pele. Quando a deixasse, seria para
sempre. Não havia mais amanhã. Nada recomeçaria. Ele quase se deixou levar pelo desespero e começou a
berrar contra a absurda, atroz e insuportável separação. O pensamento da sua morte próxima o acalmou.
Uma detonação pesada fez estremecer o solo. Uma parte da floresta afundou-se de um só golpe. Paikan
levantou a cabeça e olhou, na claridade dançante, o rosto de Elea. Estava banhada por uma grande doçura,
a grande paz que conhecem depois do amor as mulheres que receberam e deram em toda a sua plenitude.
Repousava sobre a grama o seu corpo inteiramente relaxado. Apenas respirava. Estava mais além da vigília
e do sonho. Ela estava toda bem, e ele o sabia. Sem abrir os olhos perguntou muito carinhosamente:
? Você está me olhando?
Ele respondeu:
? Você é bela...
Lentamente a boca e os olhos fechados se transformaram num sorriso.
O céu palpitou e se fendeu. Num urro, uma nuvem de soldados enisores seminus, pintados de
vermelho, montados em seus carros de ferro, surgiu nas alturas da noite incandescente, e correu
obliquamente por cima do lago, em direção à Boca. De todas as chaminés, as armas de defesa atiraram. O
exército aéreo foi destroçado, dispersado, desmantelado, mandado de volta para as estrelas em milhares
de cadáveres desconjuntados que tombavam no lago e na floresta. Os animais corriam em todas as
direções, jogavam-se na água, saíam, rodavam ao redor do casal gritando loucamente. Uma série de
explosões terríveis ergueu a floresta incendiada e atirou-a para todos os lados. Um galho em chamas caiu
sobre uma corça, que deu um salto fantástico e mergulhou. Os cavalos, em fogo, galopavam e escoiceavam.
Do céu um novo exército descia gritando. Paikan quis erguer Elea. Ela o segurou. Abriu os olhos. Olhou-o.
Estava feliz.
? Vamos morrer juntos ? disse ela.
Ele escorregou a mão dentro da arma abandonada sobre a grama, levantou-se e endireitou-se. Ela teve
tempo de ver a arma apontada em sua direção. Gritou:
? Você!
? Você vai viver ? disse ele.
E atirou.

O que se seguiu Elea descobriu ao mesmo tempo que os sábios da EPI. A arma a havia atingido, mas os
seus sentidos tinham continuado a receber impressões, e sua memória inconsciente as registraram.
Seus ouvidos haviam ouvido, seus olhos entreabertos haviam visto, seu corpo havia sentido Paikan
arrumar em volta dela algumas roupas, tomá-la nos braços e andar em direção ao elevador no meio
daquele inferno desencadeado. Enfiara sua chave na placa, mas o elevador não subia. Então ele gritou:
? Coban! Estou chamando! Sou Paikan! Estou lhe trazendo Elea!...
Houve um silêncio. Ele gritou de novo o nome de Coban e o nome de Elea. O sinal verde começou a
palpitar abaixo da porta e a voz de Coban ressoou embrulhada, cortada, às vezes abafada, às vezes
vibrante, como o som de uma lâmina de aço.
? Tarde... bem tarde... inimigo... penetrou em Gonda-7... seu grupo de elevadores... isolado... vou
tentar... desça... estou enviando um grupo... atacar inimigo... ao seu encontro... assinale-se... seu anel...
todas as placas... repito... envio...
A cabina do elevador chegou e abriu-se.
O solo ergueu-se numa explosão assustadora, a parte de cima do elevador foi pulverizada, Elea
arrancada dos braços de Paikan, um e outro erguidos, projetados, jogados por terra. Os olhos de Elea
inconsciente viam o céu vermelho de onde descia sem cessar a nuvem dos homens vermelhos. E seus
ouvidos ouviam seus berros que enchiam a noite em chamas.
Seu corpo sentiu a presença de Paikan. Ele a havia encontrado, tocava-a. Seus olhos viram seu rosto
angustiado esconder o céu e inclinar-se sobre ela. Viram sua testa machucada, seus cabelos louros
manchados de sangue. Mas sua consciência estava ausente e ela não sentiu emoção alguma. Seus ouvidos
ouviram sua voz lhe falar para tranqüilizá-la.
? Elea... Elea... estou aqui... vou levá-la... ao... abrigo... você viverá...
Ergueu-a e colocou-a sobre os ombros.
O busto de Elea pendia nas costas de Paikan, e seus olhos não viram mais nada. E sua memória não
registrou mais que barulhos, sensações difusas, profundas, que entram no corpo por toda a superfície e
espessura da carne e que a consciência ignora.
Paikan lhe falava, e ela ouvia sua voz no meio das explosões e dos estalos da floresta que queimava.
? Vou levá-la... Vou descer no elevador... Pela escada... Eu sou seu... Não tenha medo de nada... Estou
com você...
Na grande tela da sala do conselho não havia mais imagens precisas. Na mesa do pódio, Elea, os olhos
fechados, a cabeça entre as mãos, deixava sua memória se entregar ao que ela havia registrado. Os
emissores estalavam com o barulho dos estrondos, das explosões, dos gritos horríveis, dos
desmoronamentos e tremores de terra. Sobre a tela, o circuito-imagem mostrava os impulsos recebidos
pelos desabamentos de cores gigantescas, quedas intermináveis em direção ao abismo sulfuroso das
erupções de trevas. Era o retorno de um mundo fracassado para o caos que precedeu toda criação.
Depois foi uma sucessão de golpes surdos e abafados, cada vez mais-próximos, cada vez mais fortes.
Elea sentiu-se mal, perturbada. Reabriu os olhos e arrancou o círculo de ouro.
A tela se apagou.

Os golpes surdos continuaram e, de repente, ouviu-se a voz de Lebeau:


? Vocês estão ouvindo? É o coração dele!
Falava diretamente da sala de reanimação, através de todos os transmissores.
? Conseguimos! Ele vive! Coban vive!
Hoover levantou-se de um salto, gritou “Bravo!” e pôs-se a aplaudir. Todo mundo o imitou. Os velhos
sábios e mesmo os mais jovens, os homens e também as poucas mulheres entre eles, disfarçavam por meio
de gestos e com grandes gritos o constrangimento que sentiram ao se encontrarem reunidos a se olhar uns
aos outros, depois de terem ouvido e visto juntos na tela as cenas mais íntimas evocadas pela memória de
Elea. Fingiam não dar importância alguma, serem calejados, considerá-las dentro de um puro espírito
científico, ou de diversão. Mas cada um estava profundamente perturbado no seu espírito e na sua carne.
E, encontrando-se de repente no mundo de hoje, não ousavam olhar o vizinho, que, por sua vez, desviava
os olhos. Tinham vergonha do seu pudor e vergonha da sua vergonha. A maravilhosa, a total inocência de
Elea mostrava-lhes a que ponto a civilização cristã ? depois de São Paulo e não depois de Cristo ? tinha se
pervertido ao condenar as alegrias mais belas que Deus dera ao homem. Todos eles se sentiam, mesmo os
mais jovens, semelhantes aos velhos lascivos, impotentes e tarados. O coração de Coban, ao acordar, vinha
poupá-los desse momento de penoso embaraço coletivo, onde a metade dentre eles começava a
enrubescer e a outra metade a censurar.
O coração de Coban batia, parava, recomeçava, irregular, ameaçado. Os eletrodos de um estimulador
fixado no seu peito por meio de ataduras intervinham automaticamente quando a parada se prolongava, e
a surpresa de um choque elétrico fazia o coração recomeçar, num sobressalto.
Os médicos ao redor da mesa de reanimação mostravam rostos preocupados.
De repente, o que temiam aconteceu. A respiração de Coban tornou-se difícil, borbulhante, e as
ataduras se mancharam de sangue no lugar da boca.
? Coagulante! Soro! Deite-o de lado. Libere a boca. Sonda bucal...
Os pulmões sangravam.
Sem cessar nem por um instante os atenciosos cuidados, os reanimadores fizeram um conselho sobre o
corpo que desprendiam, libertavam, manipulavam, aliviavam.
Se a hemorragia não cessava era porque as queimaduras do tecido pulmonar haviam sido muito graves
para cicatrizar. Nesse caso, seria necessário fazer um transplante de pulmões.
Mas para isso havia as seguintes objeções:
Atraso para fazer virem os pulmões novos (três partes, por medida de segurança) do Banco
Internacional de Órgãos; chamada pelo rádio, embalagem, transporte de avião, travessia Genebra?Sydney,
transbordo, travessia Sydney?EPI: total, vinte horas.
? Não esqueçam as chatices militares... os papéis de alfândega...
? Não vão querer...
? Tudo é possível. Dobre o atraso.
? Quarenta horas.
Manter Coban vivo durante todo esse tempo. Necessidade de sangue para a transfusão. Teste do
sangue de Coban, imediatamente. Grupo e subgrupo vermelhos, grupo e subgrupo brancos.
Um enfermeiro desamarrou-lhe as mãos e a esquerda sangrou.
Mesmo problema para a operação: sangue, em quantidade. Prever o dobro.
Outro problema para a operação: uma equipe cirúrgica especialista em transplante de órgãos.
Moissov: ? Nós temos...
Forster: ? Nós podemos...
Zabrec: ? No meu país...
Lebeau: ? Impossível. Muito arriscado. Nada de mãos novas aqui. Principalmente mãos armadas de
facas. Operaremos nós mesmos, em rede de televisão com as equipes francesa, americana e da Cidade do
Cabo. Podemos fazê-lo. Afinal, pulmões não são uma coisa do outro mundo.
Pulmão artificial para ramificar os circuitos sangüíneos durante a operação.
Havia um na enfermaria.
Então por que não utilizar logo esse aparelho e deixar repousar os pulmões de Coban e permitir-lhes
cicatrizar?
? Eles não cicatrizarão se não receberem sangue. Devem continuar a funcionar. Ficarão bons ou não, é
um jogo.
Resultados dos testes sangüíneos: grupos e subgrupos desconhecidos. O sangue testado (Coban)
coagula todos os outros sangues.
Surpreendente!
? É um sangue fóssil! Não esqueçam que este tipo é um fóssil! Vivo, porém fóssil! Tem novecentos mil
anos, o sangue evoluiu, meus filhos.
? Sem sangue, nada de operação. A situação está simplificada. Ou ele fica bom ou morre.
? Existe a moça...
? Que moça?
? Elea... seu sangue talvez servisse!
? Mas nunca o bastante para uma operação! Seria necessário sangrá-la sem saber quanto, e não seria
suficiente.
? Talvez. Ligando tudo, e muito rápido. Com o pulmão artificial no circuito logo em seguida...
? Mas não vamos, por isso, assassinar a moça!
? Ela suportaria... Vocês viram como ela se recupera...
? É sua alimentação...
? Ou o soro universal...
? Ou os dois...
? Eu me oponho! Vocês sabem bem que ela não poderia refabricar sangue suficiente tão depressa.
Estão pedindo que a sacrifiquemos. Eu me recuso a isso!
? Ela é bela, isso é verdade, mas diante do cérebro deste sujeito, ela não tem importância alguma.
? Bela ou não, esta não é a questão: ela está viva. Nós somos médicos. Não somos vampiros.
? Mas pode-se de qualquer maneira testar seu sangue com o de Coban. Isso não nos compromete em
nada. E sem dúvida teremos necessidade de que ela nos dê um pouco, caso ele continue a sangrar. Sem
falar em operação.
? De acordo. Quanto a isso, estou de acordo, completamente de acordo.

No mesmo dia, Coban ressuscitado, Coban em perigo de morte, a equação de Zoran explicada ou
perdida para sempre. As multidões mais obtusas compreenderam que alguma coisa de fabulosamente
importante para elas estava em vias de ser decidida perto do pólo sul, no interior de um homem que a
morte segurava pela mão.
? Tentem compreender o que se passa no interior deste homem. O tecido de seus pulmões está
queimado, em parte até destruído. Para que ele possa recomeçar a respirar, a sobreviver e viver, é preciso
que o que resta desse tecido regenere o que não existe mais. Ele ainda dorme. Começou a dormir há
novecentos mil anos e continua. Mas a carne do seu corpo está acordada e se defende. E se ele estivesse
acordado isso não mudaria nada. Não é ele quem comanda. Seu corpo não tem necessidade dele. As
células do tecido pulmonar, as maravilhosas pequenas usinas vivas, estão prestes a fabricar a toda pressa
novas usinas que se lhes assemelhem para substituir aquelas que o frio ou o fogo destruiu. Ao mesmo
tempo, elas fazem seu trabalho comum, múltiplo, incrivelmente complexo no domínio da química, física,
eletrônica, vitalidade. Recebem, escolhem, transformam, fabricam, destroem, seguram, rejeitam,
reservam, dosam, obedecem, ordenam, coordenam com uma segurança e uma inteligência espantosas.
Cada uma delas sabe mais que mil engenheiros, médicos e arquitetos. São células comuns num corpo vivo.
Somos construídos por milhares delas, milhares de mistérios, milhares de complexos microscópicos
obstinadamente agarrados à sua tarefa fantasticamente complicada. Quem comanda essas maravilhosas
pequenas células? Será você, Vignont?
? Oh! senhor...
? Não as de Coban, mas as suas? As do seu fígado? Será que é você que lhes ordena que façam o seu
trabalho de fígado?
? Não, senhor.
? Então, quem comanda suas pequenas células? Quem lhes ordena fazer o que fazem? Quem as
construiu como deveria para que elas pudessem fazê-lo? Quem colocou cada uma no seu lugar, no seu
fígado, no seu pequeno cérebro, na retina dos seus lindos olhos? Quem? Responda, Vignont, responda!
? Eu não sei, senhor.
? Você não sabe?
? Não, senhor.
? Nem eu, Vignont. O que é que você sabe além disso?
? Bem...
? Você não sabe nada, Vignont...
? Não, senhor.
? Diga: “Eu não sei nada”.
? Eu não sei nada, senhor.
? Bravo! Olhem para ele, os outros que riem, caçoam, pensam saber alguma coisa. O que é que eles
sabem, Vignont?
? Não sei, não, senhor.
? Eles não sabem nada, Vignont. O que é isto que estou desenhando no quadro, você reconhece?
? Sim, senhor.
? O que é? Diga.
? É a equação de Zoban, senhor.
? Escute só como riem esses idiotas, só porque você se enganou numa consoante. Você acredita que
eles saibam mais do que você? Pensa que eles sabem lê-la?
? Não, senhor.
? E no entanto eles estão orgulhosos, caçoam, se divertem; acreditam-se inteligentes e tomam você por
um idiota. Será que você é idiota, Vignont?
? Estou pouco me incomodando, senhor.
? Muito bem, Vignont, mas isso não é verdade. Você está inquieto. Você se diz: “Eu talvez seja um
idiota”. Eu lhe garanto: você não é idiota! Você é feito das mesmas pequenas células que um homem cujos
pulmões estão prestes a sangrar no ponto 612, exatamente as mesmas com que era feito Zoran, o que
encontrou a chave do campo universal. Milhares de pequenas células supremamente inteligentes.
Exatamente as mesmas que as minhas, M. Vignont, e as minhas são cheias de filosofia. Você vê bem que
não é um idiota!
? Sim, senhor.
? Olhe, eis aí o idiota: Jules-Jacques Ardillon, primeiro em todas as matérias desde a sexta série, cabeça
grande! Pensa que sabe alguma coisa, julga-se inteligente. Você é inteligente, M. Ardillon?
? Bem... eu...
? Sim... você pensa. Pensa que estou brincando e que na realidade acredito e sei que você é inteligente.
Não, M. Ardillon, creio e sei que você é um idiota. Será que você sabe ler a equação de Zoran?
? Não, senhor.
? E se você soubesse, será que saberia o que ela significa?
? Penso que sim, senhor.
? Você pensa!... Você pensa!... Que idéia! Você é um Ardillon-pensador! Você teria no bolso a chave do
universo, a chave do bem e do mal, a chave da vida e da morte. O que é que você faria, M. Ardillon-
pensador?
? Eu...
? Aí está, M. Ardillon, aí está...
? General, o senhor ouviu as notícias?
? Sim, senhor presidente.
? Esse Co... como é mesmo?
? Coban.
? ...Coban foi acordado.
? Eles o acordaram...
? Será que conseguem salvá-lo?
? Talvez...
? Estão loucos!
? Estão loucos...
? A equação desse troço, o senhor compreende alguma coisa?
? Eu, o senhor sabe, as equações...
? Mesmo no CNPC8 eles não compreendem nada!
? Nada!...
? Mas é pior do que a bomba!
? Pior...
? E por outro lado, pode ser bom...
? Pode...
? Mas mesmo esse bom pode ser mau.
? Mau, muito mau...
? Pense na China!
? Estou pensando.
? Coloque-se no lugar dela!
? É um pouco grande...
? Faça um esforço! O que você pensaria? Você pensaria: “São esses sem-vergonhas dos brancos que vão
meter a mão nesse negócio. No momento em que ousamos nos igualar a eles, talvez ultrapassá-los, eles
vão novamente avançar mil anos à nossa frente. Não pode ser. De maneira alguma”. E eis aí o que você
pensaria se fosse a China.
? Evidentemente... O senhor acredita que eles vão sabotar?
? Sabotar, raptar, atacar, massacrar, não sei de nada. Talvez não façam nada mesmo. Como saber sobre
os chineses?
? Como saber?
? Como! Como saber? É sua obrigação saber! Você dirige os SI! Os SI são os Serviços de Informação! Isso
está um pouco esquecido! Vigie a China, general! Vigie a China! É de lá que virá...
A força internacional aeronaval estacionada no norte da Terra de Adélie deslocou-se nas três dimensões
em forma de escudo, e ficou em estado de alerta permanente. Tinha dois olhos virados para o ar e acima
do ar, e ouvidos que iam até o fundo do oceano.

Quando os olhos de Elea viram novamente, o Presidente Lokan estava de pé no centro da imagem. À
esquerda, na direção do olho esquerdo, estava Coban, que olhava Lokan e o escutava. E à direita, metade
do rosto de Paikan inclinava-se para ela.
Lokan parecia afogado de cansaço e de pessimismo.
? Eles ocuparam todas as cidades do centro ? dizia ele ? e Gonda-7 até a Segunda Profundidade... Nada
consegue detê-los. Nós matamos, matamos, suas perdas são fantásticas, mas seu número é incrível...
chegam em ondas e mais ondas, sem cessar... agora todas as suas forças convergem para Gonda-7 a fim de
destruir o conselho e a universidade, e se dirigem para a arma solar, na esperança de impedi-la de partir.
Destruímos todas as avenidas que conduzem à arma, mas eles abrem buracos de todos os lados, aos
milhares, cada um cava seu pequeno túnel. Não posso acelerar o lançamento. Honestamente, não sei dizer
se conseguiremos pará-los por bastante tempo, ou se eles conseguirão chegar à arma antes que ela tenha
levantado vôo.
? Espero que sim! ? disse Coban. ? Se devemos ser destruídos, ao menos que os outros vivam! Quem
somos nós para condenar à morte a Terra inteira?
? Você é pessimista, Coban, não será assim tão terrível...
? Será pior do que tudo o que se possa imaginar, e o senhor bem o sabe!...
? Não sei mais, não imagino mais, não penso mais! Fiz tudo o que poderia fazer sendo o responsável por
Gondawa, e agora ninguém pode parar mais nada nem saber o que fará parar ou não... Estou exausto...
? É o peso da Terra morta que o esmigalha!
? É fácil, Coban! É fácil dizer belas frases quando se está fora da ação... Preste atenção, Coban, eles
acabam de desembarcar um novo exército em Gonda-7. Vão nos atacar com fúria, nada posso fazer por
você, preciso de todas as forças de que disponho. Você tem sua guarda...
? Ela está combatendo ? replicou Coban. ? Nós os rechaçaremos.
? Adeus, Coban... eu...
Lokan desapareceu. Não era senão uma imagem. Coban tornou-se o centro da visão e aproximou-se de
Elea. Fez sinal para alguém que ela não via.
? Escute, Elea, se você me entende, não tenha medo ? disse ele. ? Vamos fazê-la beber um licor de paz,
que adormecerá não somente o seu espírito, mas cada parcela de seu corpo, a fim de que nem uma célula
estremeça quando o frio a possuir.
? Estou perto de você ? disse Paikan.
O corpo de Elea sentiu que lhe introduziam uma espécie de sonda macia na boca, garganta, estômago e
que faziam correr um líquido. Sua revolta foi tão grande que lhe devolveu a consciência. Quis sentar-se e
protestar. Mas de repente não sentiu mais necessidade disso. Sentia-se bem. Tudo estava bem,
maravilhosamente bem. Ela não tinha mais nem vontade de falar. Não era necessário. Cada um devia
compreendê-la como ela compreendia a cada um e a todos.
? Você está bem? ? perguntou Coban.
Ela nem o olhou. Sabia que ele sabia.
? Você vai adormecer totalmente, muito suavemente. Não será um sono longo. Mesmo se você dormir
durante alguns séculos, não será mais longo que uma noite.
Uma noite, uma doce noite de sono, de repouso...
? Você entendeu? Nada mais que uma noite... e quando você acordar... estarei morto há tanto tempo,
que você não terá mais pena... estou com você... estou perto de você.
? Dispam-na e levem-na ? ordenou Coban aos seus assistentes.
Paikan rugiu.
? Não a toquem!
Inclinou-se para ela e tirou-lhe as faixas de roupa que ainda lhe restavam. Depois espalhou sobre seu
corpo um pouco de água morna, lavou-a docemente, com todos os cuidados de uma mãe pelo seu recém-
nascido. Ela sentiu sobre o corpo as mãos amadas, estava feliz, “Paikan, sou sua, dormir...”
Via a sala ao seu redor, estreita, de teto baixo, com uma parede convexa de ouro furada por uma porta
redonda. Ouvia o barulho da batalha que se aproximava na espessura da terra. Tudo estava bem. A imagem
sangrenta do chefe dos guardas apareceu. Tinha perdido o capacete e metade da pele da cabeça.
? Atravessaram a Terceira Profundidade... dirigem-se para o abrigo...
? Defendam o abrigo! Reúnam todas as forças em volta dele! Abandonem todo o resto!
O guarda verde-vermelho desapareceu. A terra tremia.
? Paikan, carregue-a. Venha comigo.
? Venha, Elea, venha, eu a carrego, você está nos meus braços. Sou eu quem a carrega. Você vai dormir.
Estou com você.
Ela não queria dormir, ainda não, já não, tudo era tão bom ao redor dela, tudo era tão bom nos braços
de Paikan.
Nos seus braços ela desceu uma escada de ouro e atravessou uma porta de ouro. Ainda alguns degraus.
? Deite-a aqui, a cabeça na minha direção ? disse Coban ?, os braços sobre o peito. Bem... Escute,
Moissan, você me ouve?
? Ouço.
? Envie-me a imagem de Gonda-1. Quero ficar a par dos acontecimentos até o fim.
? Vou enviá-la.
A abóbada do abrigo tornou-se uma imensa planície. Do céu de fogo caíam guerreiros vermelhos. Na
sua multidão vertical o choque das armas de defesa abria lacunas enormes, porém dos céus surgiam
outras, outras e outras. Chegados ao solo eram atingidos pelos fogos cruzados das armas enterradas. Os
novos cadáveres iam se juntar à multidão dançante dos mortos, sacudida sem cessar pelos choques das
armas. Os que escapavam enfiavam-se imediatamente no solo, agachados sobre seus assentos que lhes
abriam caminho. O solo defendia-se, explodia, erguia-se em molhos, e projetava entre os restos da sua
própria carne a de seus agressores.
Elea pensava que estava tudo bem. Tudo estava maravilhosamente bem... bem... bem...
? Ela começa a dormir ? disse Coban. ? Vou colocar-lhe a máscara. Diga-lhe adeus.
Ela viu a planície se abrir de uma ponta a outra do horizonte, rejeitando para suas bordas as
quantidades de mortos e de vivos, com os rochedos e com a terra. Uma maravilhosa flor gigantesca de
metal e de vidro saiu da terra aberta e subiu para o céu. O exército que caía do céu foi afastado e rejeitado
como poeira. A flor fantástica subiu e desabrochou, abriu à volta dela suas pétalas de todas as cores,
desvendando seu centro, seu coração, mais transparente que a água mais clara. Encheu o céu, no qual
continuava a subir e começava a virar docemente, depois mais depressa, mais depressa, cada vez mais
depressa... Estava maravilhosamente bem, “estou bem, vou dormir”.
O rosto de Paikan tapou a flor e o céu. Ele a olhava. Era belo. Paikan. Não havia senão ele. “Sou de
Paikan.”
? Elea... sou seu... você vai dormir... estou com você.
Ela fechou os olhos e sentiu a máscara pousar sobre o seu rosto. O bocal respiratório pousou sobre seus
lábios, afastou-os, entrou-lhe na boca. Ouviu ainda a voz de Paikan...
? Eu não a dou a você, Coban! Eu a trouxe mas não a dou! Ela não é sua! Nunca será sua!... Elea, minha
vida, seja paciente... Nada mais que uma noite... estou com você pela eternidade.
Ela não ouviu mais nada. Não sentiu mais nada. Sua consciência estava submersa. Seus sentidos se
fecharam. Seu subconsciente desapareceu. Ela não era mais que uma bruma luminosa, dourada, leve, sem
forma e sem fronteiras. Que se apagou...

Elea havia tirado o círculo de ouro. Seu busto erguido, encostado à cadeira, o olhar fixo perdido no
infinito, apesar do presente, silenciosa, imóvel como uma estátua de pedra, oferecia um rosto de tal força
trágica que ninguém ousava se mexer, dizer uma palavra, romper seu silêncio com um pigarro ou com um
ranger de cadeira.
Foi Simon quem se levantou, colocou-se atrás dela, pousou as mãos sobre seus ombros, e disse
carinhosamente:
? Elea...
Ela não se mexeu. Ele repetiu:
? Elea...
Sentiu os ombros dela tremerem sob suas mãos.
? Elea, venha...
O calor da sua voz, o calor das suas mãos atravessaram as barreiras do horror.
? Descansar...
Ela levantou-se, virou-se para ele e olhou-o como se fosse o único ser vivo no meio de mortos. Ele
estendeu-lhe a mão. Ela olhou a mão estendida, hesitou um instante, depois colocou a sua sobre ela. A
mão de Paikan... uma mão... a única mão no mundo, o único socorro.
Simon fechou lentamente os dedos ao redor da palma gelada pousada na sua. Depois começou a andar
e levou Elea.
De mãos dadas, desceram do pódio, atravessaram juntos a sala, seu silêncio e seus olhares. Henckel,
sentado na última fila, ergueu-se e abriu-lhes a porta.
No momento em que saíram, as vozes se ergueram, o zunzum encheu a sala, discussões nasceram de
todos os lados.
Cada um tinha reconhecido as últimas imagens da cena que havia sido transmitida a Simon quando ele
colocara o círculo receptor. E cada um adivinhava o que devia ter se passado em seguida: Paikan saindo do
abrigo, Coban bebendo o licor da paz, despindo-se e estendendo-se no seu caixão, colocando sobre o rosto
a máscara de ouro, o abrigo se fechando, o motor do frio começando a funcionar.
Enquanto isso, a arma solar, prosseguindo sua rota aérea, atingia os limites de Enisorai e entrava em
ação. Qual havia sido exatamente o seu efeito? Não se podia senão conjeturar. “Como se o Sol pousasse
sobre Enisorai...”, havia dito Coban. Sem dúvida um raio dessa temperatura fantástica fundindo a terra e as
pedras, liquefazendo os montes e as cidades, rasgando continentes até suas raízes, cortando-lhes pedaços,
revirando e girando como uma roda de ferro, e jogando tudo nas águas.
E o que Coban temera havia acontecido: o choque tinha sido tão violento que havia repercutido sobre a
massa terrestre. A Terra perdera o equilíbrio da sua rotação e tinha enlouquecido como um pião inclinado,
antes de encontrar um novo equilíbrio sobre bases diferentes. Suas mudanças de marcha tinham fendido a
crosta, provocando sismos e erupções em tudo, projetado fora das fossas oceânicas as águas inertes cuja
massa fantástica havia submergido e inundado as terras. Viam sem dúvida nesse acontecimento a origem
do mito do dilúvio que se encontra hoje na tradição de povos de todas as partes do mundo. As águas se
tinham retirado, mas não todas. Gondawa se encontrava colocada, pelo novo equilíbrio da Terra, ao redor
do novo pólo sul. O gelo havia tomado e imobilizado as águas dessa elevação súbita que sacudia o
continente. E, sobre esse talude, os anos, os séculos, os milênios haviam acumulado fantásticas espessuras
de neve transformadas por sua vez em gelo pelo seu próprio peso.
Isto Coban não havia previsto. Seu abrigo devia se reabrir quando as circunstâncias tivessem tornado a
vida novamente possível na superfície. O motor do frio devia parar, a máscara devia dar respiração e calor
aos dois que jaziam ali, a perfuratriz abriria seu caminho para o ar e para o sol. Mas as circunstâncias não
tinham nunca se tornado favoráveis. O abrigo tornara-se um grão perdido no fundo do frio, e que não teria
jamais germinado sem o acaso e a curiosidade dos exploradores. Hoover levantou-se.
? Proponho ? disse ele ? que rendamos homenagem, numa declaração solene, à intuição, inteligência e
obstinação dos nossos amigos das Expedições Polares Francesas que souberam não somente interpretar os
dados tão diferentes das suas sondas e tirar as conclusões que os senhores sabem, mas sacudir a
indiferença e a inércia das nações até que elas se juntassem e nos enviassem aqui!
A assembléia levantou-se e aprovou Hoover por aclamação.
? É preciso também ? lembrou Leonova ? render homenagem ao gênio de Coban e ao seu pessimismo
que, conjugados, fizeram-no construir um abrigo à prova da eternidade.
? Ok, minha boneca ? replicou Hoover. ? Mas ele foi muito pessimista. Foi Lokan quem teve razão. A
arma solar não destruiu toda a vida terrestre. Visto que estamos aqui! Houve sobreviventes vegetais,
animais, e homens. Poucos sem dúvida, mas o suficiente para que tudo recomeçasse. As casas, as fábricas,
os motores, a energia engarrafada, toda a quinquilharia da qual eles viviam tinha sido destruída,
esmigalhada. Os que se salvaram caíram de bunda no chão! Nus! Eram quantos? Talvez algumas dezenas,
dispersadas pelos cinco continentes. Mais nus do que vermes porque não sabiam fazer nada! Tinham mãos
das quais não sabiam mais se servir! O que é que eu sei fazer com minhas mãos, eu, Hoover de cabeça
grande? A não ser acender o meu cigarro e dar uma palmada no traseiro das moças? Nada! Zero. Se eu
tivesse que pegar um coelho correndo para poder comer, vocês imaginam a cena? O que é que eu faria se
estivesse no lugar do sobrevivente? Mataria para encher a barriga com insetos, frutas quando fosse a
ocasião, animais mortos quando eu tivesse a sorte de encontrá-los. E aí está o que eles fizeram. Aí está no
que eles caíram! Mais baixo que os primeiros homens que haviam começado tudo para eles, mais baixo do
que as feras. Desaparecida sua civilização, eles se encontraram como caramujos dos quais um menino
quebrou e tirou a casca para ver como era feito por dentro. Ora, caramujos eles devem ter consumido
muitos, e caramujos não andam depressa. Espero que tenham encontrado muitos caramujos. Você gosta
de caramujos, boneca? Eles partiram novamente do degrau mais baixo da escada, e refizeram toda a
subida, recaíram no caminho, subiram mais ainda, e obstinados e cabeçudos, nariz para cima,
recomeçavam sempre a subir, e irão até em cima, mais alto ainda, às estrelas! E eis aí! Eles estão lá! Eles
somos nós! Repovoaram o mundo, e são tão imbecis quanto antes, e prontos a fazer explodir tudo de novo.
Não é bonito isso? É o homem!

Foi um grande dia de exaltação e de sol. Do lado de fora o vento na superfície chegava a sua velocidade
mínima. Não era mais que cento e vinte por hora, com momentos de calmaria quase total, inverossímeis,
de uma doçura inesperada. Desencadeava suas fúrias muito alto no céu, limpava-o da menor mancha de
nuvem, do menor grão de poeira e de bruma, fazia-o brilhar num azul intenso, todo novo, alegre. E a neve e
o gelo estavam quase tão azuis quanto ele.
Na Sala de Conferências, a assembléia fervia. Leonova havia proposto aos sábios prestarem um
juramento solene de consagrar sua vida a lutar contra a guerra e suas formas mais ferozes, a besteira
política e a besteira nacional.
? Abrace-me, pequena irmã vermelha ? aparteara Hoover ?, e acrescentemos a besteira ideológica!
Ele a havia apertado de encontro ao ventre. Ela havia chorado. Os sábios, de pé, braços estendidos,
haviam jurado em todas as suas línguas e a tradutora havia multiplicado os juramentos. Hoi-To pusera
então os seus colegas ao corrente dos trabalhos da equipe da qual ele fazia parte com Lukos, e que
mostrava o relevo fotográfico dos textos gravados no muro do abrigo. Tinha acabado o esboço de um texto
que começara a ser reparado no dia em que fora encontrado, e traduzido o título ? Tratado das leis
universais ?, e que parecia ser a explicação da equação de Zoran. Diante da sua importância, Lukos
encarregara-se pessoalmente de projetar os duzentos clichês fotográficos na tela analisadora da máquina
tradutora.
Era uma notícia de importância extraordinária. Mesmo que Coban morresse, podia-se esperar
compreender um dia o tratado e decifrar a equação.
Heath levantou-se e pediu a palavra.
? Sou inglês, e feliz por sê-lo. Penso que não seria um homem completo se não fosse inglês.
Ouviram-se risos e apupos. Heath continuou, sem sorrir:
? Alguns continentais pensam que consideramos todos aqueles que não nasceram na ilha da Inglaterra
como macacos que acabaram de descer de um coqueiro. Os que pensam assim exageram. Ligeiramente...
Desta vez os risos dominaram.
? É por ser inglês, feliz por ter nascido na ilha da Inglaterra, que posso me permitir fazer-lhes a seguinte
proposta. Escrevamos nós também um tratado, ou melhor, uma declaração da lei universal. A Declaração
Universal do Homem. Sem demagogia, sem blá-blá-blá como dizem os franceses, sem palavras ambíguas,
sem frases majestosas. Existe a declaração da ONU. Não passa de uma solene merda. Ninguém liga. Não há
um homem em cem mil que conheça sua existência. Nossa declaração deverá atingir o coração de todos os
homens vivos. Terá apenas um parágrafo, talvez uma só frase. Será preciso procurar bem, para pôr o
menor número de palavras possível. Ela dirá simplesmente qualquer coisa assim: “Eu, homem, sou inglês
ou patagônico, e feliz de sê-lo; mas sou antes de tudo um ser vivo, não quero matar nem quero que me
matem. Recuso a guerra, sejam quais forem as suas razões”. Isso é tudo.
Sentou-se e encheu seu cachimbo com fumo holandês.
? Viva a Inglaterra! ? gritou Hoover.
Os sábios riram, se abraçaram, deram-se palmadinhas nas costas. Evoli, físico italiano, soluçava.
Henckel, metodista alemão, propôs uma comissão encarregada de redigir o texto da Declaração Universal
do Homem. No momento em que as vozes começavam a propor nomes, a de Lebeau surgiu em todos os
emissores.
Anunciava que os pulmões de Coban tinham parado de sangrar. O homem estava muito fraco e ainda
inconsciente, seu coração irregular, mas agora tinham esperanças de salvá-lo.
Era verdadeiramente um grande dia. Hoover perguntou a Hoi-To se sabia dentro de quanto tempo
Lukos teria acabado de injetar na tradutora as fotos do Tratado das leis universais.
? Dentro de algumas horas ? respondeu Hoi-To.
? Então, dentro de algumas horas já deveremos saber, em dezessete línguas diferentes, o que significa a
equação de Zoran?
? Não creio ? disse Hoi-To com um pequeno sorriso. ? Conhecemos os textos de ligação, o raciocínio e o
comentário, mas o significado dos símbolos matemáticos e físicos nos escapa, como escapa à tradutora.
Sem a ajuda de Coban, será necessário um certo tempo para encontrar o sentido. Mas evidentemente
conseguiremos, e sem dúvida bastante rápido, graças aos computadores.
? Proponho ? disse Hoover ? anunciar pelo Trio que faremos amanhã uma comunicação ao mundo
inteiro. E prevenir às universidades e centros de pesquisas que eles terão que gravar um longo texto
científico cujas imagens nós transmitiremos em inglês e em francês, com símbolos originais na língua
gonda. Esta difusão geral de um tratado que leva à compreensão da equação de Zoran tornará de um só
golpe impossível a exclusividade do seu conhecimento. Dentro de poucos instantes ela se terá tornado um
bem comum a todos os pesquisadores do mundo inteiro. Simultaneamente desaparecerão as ameaças de
destruição e de rapto que pesam sobre Coban, e poderíamos convidar a repugnante assembléia de
ferragem militar flutuante e voadora que nos supervisiona sob o pretexto de nos proteger a se dispersar e a
voltar para seus covis.
A proposta de Hoover foi adotada por aclamação. Foi um grande dia, um dia longo sem noite e sem
nuvem, com um sol dourado que passeava seu otimismo à volta do horizonte. Na hora em que ele se
eclipsava atrás da montanha de gelo, os sábios e técnicos prolongaram sua euforia no bar e no restaurante
da EPI-2. A provisão de champanha e de vodca da base, naquela tarde, foi seriamente atingida. E o scotch,
o bourbon, a aquavit e a chlivovitsa verteram sua ração de otimismo no caldeirão borbulhante da alegria
geral.
? Irmãzinha ? disse Hoover a Leonova ?, sou um enorme e aborrecido celibatário, e você é um horrível
cérebro marxista magricela... Não lhe direi que a amo porque seria abominavelmente ridículo. Mas se você
aceitar se tornar minha mulher, prometo-lhe que perderei minha barriga e que chegarei mesmo a ler O
capital.
? Você é horrível ? dizia Leonova soluçando sobre seu ombro ?, você é horrível...
Ela tinha bebido champanha. Não estava acostumada.

Simon não tinha se unido à alegria geral. Havia acompanhado Elea até a enfermaria e não a havia
deixado. Entrando no quarto ela foi direto para a máquina de comer, tocou três botões brancos, e obteve
uma esférula cor de sangue que logo engoliu, acompanhada de um copo d'água. Depois, com sua
indiferença habitual à presença de outrem, despiu-se, fez nua a sua toalete e deitou-se, já meio
adormecida, sem dúvida, sob o efeito da esférula vermelha. Depois que tirou o círculo de ouro, não
pronunciou mais nenhuma palavra. A enfermeira tinha seguido o último episódio da lembrança na Sala de
Conferências. Olhou Elea com piedade. O rosto da jovem mulher adormecida estava petrificado numa
gravidade trágica que parecia além de todos os sofrimentos...
? Coitadinha... ? disse a enfermeira. ? Talvez fosse melhor que eu lhe vestisse o pijama, ela poderá sentir
frio.
? Não a toque, ela dorme, está em paz ? disse Simon a meia voz. ? Cubra-a bem e vigie-a. Vou dormir
um pouco, ficarei de guarda à meia-noite. Acorde-me...
Regulou o termostato para aumentar ligeiramente a temperatura do quarto e esticou-se vestido sobre o
leito estreito. Mas no momento em que fechou os olhos as imagens começaram a desfilar sob suas
pálpebras, Elea e Paikan, Elea nua, o céu de fogo, a agitação dos soldados mortos, Elea nua, Elea sem
Paikan, o solo esmigalhado, a planície fendida, a arma no céu, Elea, Elea.
Levantou-se bruscamente, consciente de que não poderia dormir.
Soporífero? A máquina de comer estava ali sobre a mesinha, ao alcance de sua mão. Aflorou os três
botões brancos, a gaveta se abriu, ofertando-lhe uma esférula vermelha.
A enfermeira o olhava agir, com ar de reprovação:
? O senhor vai comer isso? Talvez seja veneno!
Ele não respondeu. Se fosse veneno, Elea o havia tomado, e se Elea morresse ele não teria mais vontade
de viver. Mas não acreditava que fosse. Pegou a esférula entre o polegar e o indicador e colocou-a na boca.
Ela estalou sob seus dentes como uma cereja sem caroço. Pareceu-lhe que todo o interior de sua boca, de
seu nariz, de sua garganta, estava salpicado de uma doçura ofensiva. Não era doce de gosto, não tinha
gosto algum. Era como um veludo líquido, um contato, a sensação de uma doçura infinita que se espalhava
e penetrava no interior da carne, atravessava-lhe as faces e o pescoço para chegar até a pele e invadir o
interior da cabeça. Quando a engoliu, desceu-lhe pelo corpo todo e o encheu. Voltou a deitar-se
lentamente. Não tinha a impressão de estar com sono. Parecia que poderia andar até o Himalaia e escalá-lo
dando cambalhotas.
A enfermeira o sacudiu.
? Doutor! Depressa! Levante-se depressa!
? O quê? O que é que há?
Olhou o relógio luminoso. Marcava 23 horas e 37 minutos.
? Bem que lhe disse que era veneno! Beba isto, rápido! É ipeca.
Ele afastou o copo que ela lhe estendia. Nunca tinha se sentido tão bem, eufórico, repousado como se
tivesse dormido dez horas.
? Então, se não é veneno, o que é que ela tem?
Ela, Elea.
Estava acordada, os olhos abertos, o olhar fixo, os maxilares fechados. Acessos bruscos de tremor lhe
sacudiam todo o corpo. Simon tirou-lhe as cobertas e tocou-lhe os músculos dos braços e das coxas.
Estavam crispados, tensos, tetanizados. Passou-lhe a mão diante dos olhos, que não piscaram. Achou-lhe
com dificuldade o pulso sob os músculos endurecidos do punho. Sentiu-o forte, acelerado.
? O que é isso, doutor? O que é que ela tem?
? Nada ? murmurou Simon puxando novamente as cobertas. ? Nada... a não ser o desespero...
? Pobre pequena... o que é que podemos fazer?
? Nada ? repetiu Simon ?, nada...
Tinha conservado a mão gelada de Elea nas suas. Pôs-se a acariciá-la, massageá-la docemente,
massagear o braço endurecido subindo para o ombro.
? Vou ajudá-lo ? disse a enfermeira.
Deu a volta no leito e pegou a outra mão de Elea. O braço desta recuou assustado.
? Deixe-a ? pediu Simon. ? Deixe-me com ela. Deixe-nos. Vá dormir no seu quarto...
? O senhor tem certeza?
? Sim... deixe-nos...
A enfermeira juntou suas coisas e saiu lançando a Simon um longo olhar de suspeita. Ele não percebeu.
Olhava Elea, seu rosto endurecido, seus olhos fixos, nos quais a luz brilhava sobre dois lagos de lágrimas
imóveis.
? Elea... ? disse muito baixinho. ? Elea, Elea... estou com você...
Pensou bruscamente que não era sua voz que ela escutava, mas sim a voz estranha da tradutora. A sua
própria voz, que chegava no outro ouvido, não era senão um barulho confuso, estranho, que sua tensão
esforçava-se por eliminar.
Com precaução, tirou-lhe o escutador da orelha. O micro-emissor estava preso às suas roupas pousadas
sobre uma cadeira. Tirou o seu, alfinetado num suéter, e o enfiou no fundo do bolso. Agora não havia mais
máquina, mais voz estranha, entre ela e ele.
? Elea... estou com você... sozinho com você... pela primeira vez... talvez a última... E você não me
compreende... Então posso lhe dizer... Elea, meu amor... minha bem-amada... eu a amo... meu amor... meu
amor... queria estar perto de você... em cima de você... dentro de você muito docemente... dar-lhe
confiança... esquentá-la e acalmá-la... consolá-la... eu a amo... não sou mais que um bárbaro... um
selvagem atrasado... eu como bichos... e ervas e árvores... não a terei nunca... mas eu a amo, amo você...
Elea, meu amor... você é bela... você é bela... você é o pássaro, a fruta, a flor, o vento do céu... nunca a
terei... eu sei, eu sei... mas amo você...
As palavras de Simon pousavam sobre ela, sobre seu rosto, sobre seus braços, sobre seus seios
descobertos, pousavam nela como pétalas macias, como uma nuvem de calor. Ele sentia nas suas mãos a
mão dela se amolecer, via seu rosto se distender, seu peito erguer-se mais calmo e profundamente. Via
suas pálpebras se abaixarem muito lentamente sobre os olhos trágicos e finalmente as lágrimas correrem.
? Elea, Elea, meu amor... volte do mal, volte da dor... volte, a vida está aqui, eu amo você... você é bela...
nada é tão belo quanto você... a criança nua... a nuvem... a cor... a corça... a onda, a folha... a rosa que se
abre... o cheiro da pesca e de todo o mar... nada é tão belo como você... o sol de maio sobre as nossas
margaridas... o filhote de leão... os frutos redondos... os frutos maduros... os frutos quentes ao sol... nada é
tão belo quanto você... Elea, Elea, meu amor, minha bem-amada...
Sentiu a mão de Elea apertar a sua, e viu sua outra mão se erguer, pousar sobre o lençol, tocá-lo, pegá-
lo e com um gesto não habitual, um gesto incrível, trazê-lo para ela e cobrir seus seios nus.
Ele se calou.
Ela falou.
Disse, em francês:
? Simon, eu o compreendo...
Houve um curto silêncio, depois ela acrescentou:
? Sou de Paikan...
Dos seus olhos fechados, lágrimas continuavam a rolar.

Tu me compreendes, tu me compreendeste, talvez não todas as palavras, mas o suficiente para saber
quanto, quanto eu te amava. Eu te amo; o amor, amor, estas palavras não têm sentido na tua língua, mas
as havias compreendido, sabias o que queriam dizer, o que eu queria te dizer, e se elas não te trouxeram o
esquecimento e a paz, te deram, trouxeram, colocaram em ti bastante calor para te permitir chorar.
Compreendeste. Como era possível? Não tinha contado, ninguém de nós contava com as faculdades
excepcionais da tua inteligência. Nós nos acreditamos no cimo do progresso humano, somos os mais
evoluídos! Os mais argutos! Os mais capazes! O brilhante resultado extremo da evolução. Depois de nós,
haverá, talvez, haverá sem dúvida melhores, mas antes, ora, não ê possível! Apesar de todas as realizações
de Gondawa que nos mostraste, não podia vir ao nosso espírito que tu e os teus nos fosseis superiores.
Vosso sucesso poderia ser acidental. Éreis inferiores a nós, posto que viestes antes.
Essa convicção de que o-homem-enquanto-espêcie se aperfeiçoa com o tempo vem sem dúvida de uma
confusão inconsciente com o homem-enquanto-indivíduo. O homem ê primeiro uma criança, antes de se
tornar um adulto. Nós, homens de hoje, somos adultos. Os que viveram antes de nós não podiam ser mais
que crianças.
Mas talvez fosse bom, talvez fosse tempo de se perguntar se a perfeição não está na infância, se o
adulto não ê só uma criança que já começou a apodrecer...
Vós, a infância do homem, vós, novos, puros, não usados, não cansados, não rasgados, deteriorados,
estafados, o que não podíeis com a vossa inteligência?
Há semanas que ouves num ouvido as frases da língua desconhecida, a minha, pela minha voz que te
falava, todo dia, de manhã à noite, perto de ti, do momento em que não dormias, mesmo quando dormias,
porque as palavras que eu te dizia eram uma maneira de estar contigo, de estar mais perto de ti, meu
amor, minha bem-amada.
E no outro ouvido ouvias as mesmas frases traduzidas. O sentido das palavras te chegava sem cessar ao
mesmo tempo que as palavras, e tua maravilhosa inteligência, consciente, subconsciente, não sei,
comparava, classificava, traduzia, compreendia.
Tu me compreendias...
Eu também, eu também, meu amor, compreendi e sabia...
Tu eras de Paikan...

Lukos tinha terminado. A tradutora tinha engolido, assimilado e traduzido em dezessete línguas o texto
do tratado de Zoran. Mas, obedecendo às instruções dadas por Lukos por decisão do conselho, guardou as
traduções na sua memória, para imprimi-las ou difundi-las mais tarde, quando lhe pedissem. Só inscrevera
sobre o fio magnético as imagens das traduções inglesa e francesa. Os filmes esperavam dentro de um
armário o momento da difusão mundial.
A hora se aproximava. Os jornalistas pediram para visitar a tradutora a fim de poder descrever aos seus
leitores e auditores a maravilha que havia decifrado os segredos da mais velha ciência humana. Na
ausência de Lukos, que, com Hoi-To, prosseguia no ovo o levantamento fotográfico dos tipos gravados, foi
seu adjunto, o engenheiro Mourad, quem os guiou nos meandros da máquina. Hoover havia insistido em
acompanhá-los e Leonova acompanhava Hoover. Em alguns momentos ele segurava a mão miúda na sua
manopla. Ou então era ela que pendurava os dedos frágeis nos enormes dedos dele. E avançavam assim,
sem prestar atenção, nas salas e nos corredores da tradutora, de mãos dadas como dois amantes de
Gondawa.
? Eis aqui ? disse Mourad ? o dispositivo que permite inscrever as imagens sobre os filmes. Nesta tela as
linhas dos tipos aparecem em caracteres luminosos. Esta câmara de tevê as vê, analisa e as transforma em
sinais eletromagnéticos que inscreve sobre um filme. Como vocês estão vendo, é muito simples, é o velho
sistema do magnetoscópio. O que é menos simples é a maneira como se comporta a tradutora para
fabricar os caracteres luminosos. É...
Mourad estava falando em turco e japonês, Hoover havia distribuído aos jornalistas receptores de
orelha, a fim de permitir a cada um entender as explicações na sua própria língua. E Louis Deville entendeu
em francês:
? ...é... merda... que é isso?
Num centésimo de segundo, ele admirou que a tradutora tivesse um conhecimento tão familiar da
língua francesa, e se prometeu perguntar a Mourad qual era a palavra turca correspondente. Deveria ser
sonora e pitoresca. No centésimo de segundo seguinte, ele já não pensava mais nessas futilidades. Via
Mourad falar ao ouvido de Hoover, Hoover fazer sinal de que não compreendia, em seguida Mourad puxar
Hoover pela manga e mostrar-lhe qualquer coisa por trás da câmara registradora de tevê. Alguma coisa que
Hoover compreendeu logo e que os jornalistas mais próximos, que olhavam ao mesmo tempo que ele, não
compreenderam.
Hoover virou-se para eles:
? Senhores, tenho necessidade de falar, em particular, com o engenheiro Mourad. Não posso fazê-lo a
não ser por intermédio da tradutora. Não desejo que vocês ouçam nossa conversa. Peço-lhes que me
devolvam seus receptores de ouvido, e que tenham a bondade de sair.
Foi uma explosão de protestos, uma tempestade verbal que reboou pela sala. Cortar a fonte de
informação logo no momento onde ela ia talvez se tornar sensacional? De jeito algum! Nunca na vida!
Quem eles pensavam que eram?
Hoover ficou rubro de fúria. Berrou:
? Vocês estão me fazendo perder tempo! Cada segundo talvez tenha uma importância fantástica! Se
discutirem mais, eu os farei embarcar num jato e os mando de volta a Sydney! Dêem-me isso.
Estendeu as mãos em concha.
No estado em que estava, ele, o brincalhão, todos compreenderam que era grave.
? Prometo que os porei ao corrente, logo que tudo estiver resolvido.
Todos passaram diante dele e lhe devolveram as conchas multicores ainda quentes do calor de suas
cabeças. Leonova fechou a porta sobre o último e voltou-se vivamente para Hoover:
? O que é? O que é que está acontecendo?
Os dois homens já estavam inclinados sobre as entranhas da câmara e discutiam rapidamente em
termos técnicos.
? Adulterada! ? disse Hoover. ? A câmara foi adulterada! Está vendo este fio aqui, aqui! Não é o do
magnetoscópio! Foi acrescentado!
Colado ao do magnetoscópio, o fio clandestino confundia-se com ele e enfiava-se ao mesmo tempo que
ele num buraco da divisão metálica. Rapidamente, Mourad percebeu as quatro roscas de cabeça cruzada, e
puxou em sua direção a placa de alumínio polido. As entranhas do magnetoscópio apareceram. Eles logo
viram um objeto insólito: uma valise de tamanho médio, de falso couro ordinário, cor de tabaco. Um fio
suplementar entrava nela e um outro saía, subia por um canto, furava o teto, e encontrava sem dúvida,
através de um artifício astucioso, uma massa metálica externa que deveria servir de antena.
? O que é isso? ? perguntou novamente Leonova, lamentando-se por ser apenas uma antropóloga
ignorante de todas as técnicas.
? Um emissor ? respondeu Hoover.
Estava abrindo a valise. Ela revelava um admirável conjunto de circuitos, de tubos e de semicondutores:
não era um banal radioemissor, mas sim uma verdadeira estação emissora de televisão, uma obra-prima de
miniaturização.
Num rápido olhar, Hoover reconheceu peças japonesas, tchecas, alemãs, americanas, francesas, e
admirou contra a vontade o extraordinário arranjo que conseguia ter em tão pouco espaço tanta eficiência.
O homem que havia construído esse emissor era um gênio. Não o havia ligado ao circuito eletrônico geral.
Uma pilha e um transformador lhe davam a potência necessária. Isso limitava sua duração e seu alcance.
Não poderia ser recebido além de um raio de mil quilômetros.
Hoover explicou rapidamente tudo isso a Leonova. Testou a pilha. Estava quase vazia. O emissor já havia
funcionado. Incontestavelmente havia emitido para um receptador situado no continente antártico, ou
perto de suas costas, as imagens de tradução inglesa ou francesa, ou talvez as duas.
Era absurdo. Por que procurar traduções clandestinamente, quando elas iam, dentro de algumas horas,
ser difundidas no mundo inteiro? A lógica levava a uma resposta aterradora:
Se um grupo, se uma nação esperava garantir para si a exclusividade do conhecimento da equação de
Zoran, eles tinham que tornar impossível, fosse como fosse, o conhecimento do Tratado das leis universais,
ou qualquer outra explicação da fórmula. Para isso, aqueles que haviam instalado o emissor e expedido
para o desconhecido as imagens do tratado deveriam, igualmente, no momento imediato:
? destruir os fios magnéticos sobre os quais essas imagens estavam registradas;
? destruir os filmes originais sobre os quais o texto gravado fora fotografado;
? destruir o próprio texto gravado;
? destruir as memórias da tradutora que guardava as dezessete traduções; e
? MATAR COBAN.
? Nossa Senhora! ? exclamou Hoover. ? Onde estão os filmes?
Mourad os conduziu rapidamente para a sala dos arquivos, abriu o armário de alumínio, pegou uma
dessas caixas em forma de biscoito que depois da invenção do cinema servem de receptáculo para os
filmes de todas as espécies, e que são atravancadoras, incômodas, ridículas e que nunca foram melhoradas.
Teve, como se tem sempre, muita dificuldade para abri-la, quebrou uma unha, blasfemou em turco, e
blasfemou uma segunda vez quando conseguiu e viu o conteúdo: era uma papa viscosa de onde subiam
fumacinhas.
Haviam jogado ácido dentro de todas as caixas. Filmes originais e magnéticos não eram mais do que
uma pasta malcheirosa que começava a escorrer pelos buracos das caixas cujo metal, por sua vez, havia
sido atacado e destruído.
? Com mil diabos! ? exclamou Hoover mais uma vez, em francês.
Preferia praguejar em francês. Sua consciência de americano protestante ficava menos atormentada.
? As memórias? Onde estão as memórias da puta dessa máquina?
Num longo corredor de trinta metros, cujo muro da direita era de gelo filtrado acolchoado e o da
esquerda constituído por uma grade metálica onde cada malha tinha a dimensão de um décimo de
milésimo de milímetro, cada cruzamento era uma célula de memória. Havia dez milhões de milhares. Essa
realização da técnica eletrônica, apesar da sua capacidade prodigiosa, era mesmo assim apenas um grão de
areia ao lado de um cérebro vivo. Sua superioridade sobre o vivo era a rapidez. Mas esta capacidade era o
finito ao lado do infinito.
Ao entrar, num primeiro olhar, descobriram as incongruências que haviam sido acrescentadas à obra-
prima.
Quatro caixas, redondas, bastante semelhantes às caixas dos filmes. Quatro minas semelhantes às que
defendiam a entrada da esfera. Quatro monstruosos horrores grudados contra a parede metálica, seguros
a ela por seu campo magnético, e que iam pulverizá-la, com toda a tradutora, se tentassem arrancá-las, ou
talvez mesmo só pelo fato de alguém se aproximar delas.
? Filho do filho do filho da puta! ? gritou Hoover. ? Você tem um revólver?
Dirigia-se a Mourad.
? Não.
? Leonova, dê-me o seu!
? Mas...
? Dê! Ora bolas! Você acha que este é o momento de discutir?
Leonova estendeu sua arma a Mourad.
? Feche a porta ? disse Hoover. ? Fique na frente, não deixe entrar ninguém, e se insistirem, atire!
? E se isto explodir? ? perguntou Mourad.
? Bem, você explodirá junto! E também não será o único... Onde está esse cretino do Lukos?
? No ovo.
? Venha, irmãzinha...
Arrastou-a na velocidade do vento que soprava do lado de fora.
A tempestade tinha-se levantado no momento em que o sol estava no ponto mais alto do horizonte.
Nuvens verdes o haviam engolido, e depois ao céu. O vento se batia contra todos os obstáculos, arrancava
a neve do solo para misturá-la com a que trazia e fabricar com ela uma mistura afiada, cortante. Trazia os
restos, os lixos, as caixas abandonadas, os tonéis vazios e cheios, as antenas, os jipes, arrasava tudo.
O guarda da porta impediu-os de sair. Aventurar-se lá fora sem proteção era morrer. O vento ia cegá-
los, asfixiá-los, quebrá-los, rolá-los, levá-los até o fim do frio e do branco mortal.
Hoover arrancou o boné do homem e enfiou-o sobre a cabeça de Leonova. Tirou-lhe os óculos, as luvas,
seu capote e envolveu a moça magra, empurrou-a sobre uma plataforma elétrica carregada de tonéis de
cerveja, e apontou seu revólver para o guarda.
? Abra!
O homem, aturdido, apertou o botão de abrir. A porta correu. O vento lançou um clamor de neve
turbilhonante até o fundo do corredor. A plataforma paciente e lenta entrou na tormenta.
? Mas você ? gritou a voz aguda de Leonova ?, você não está protegido!
? Eu ? respondeu a voz grossa de Hoover no meio da tempestade ? tenho minha barriga!
Na frente e atrás deles tudo era branco. Tudo era branco, à esquerda, à direita, na frente, atrás, em
cima, embaixo. A plataforma afundava num oceano branco que se deslocava berrando como mil carros de
corrida. Hoover sentiu a neve grudar no seu rosto, petrificar-lhe as orelhas e o nariz. O edifício do elevador
estava a trinta metros, bem em frente. Trinta vezes o tempo de se perder e de se deixar levar pela goela do
vento. Era preciso manter a plataforma sob uma trajetória retilínea. Ele só pensava nisso, esqueceu seu
rosto, suas orelhas e seu nariz, e a pele do seu crânio que começava a gelar sob os cabelos cobertos de
neve. Trinta metros. O vento vinha da direita e devia desviá-los. Forçou na direção do vento e de repente
pensou que o óleo do seu revólver iria gelar e travá-lo durante horas.
? Agarre-se bem na direção! Com as duas mãos! Assim! Muito bem! Não desvie nem um milímetro!
Segure-se bem!
Pegou nas suas mãos nuas, que quase já não sentia mais, as mãos enluvadas de Leonova, fechou-as
sobre a barra da direção, achou, tateando, seu revólver no estojo pendurado na sua cintura, tirou-o,
conseguiu abrir o fecho da sua calça. Pareceu que uma horda de lobos mordia-lhe o ventre. Escondeu a
arma dentro de sua calça e tentou fechá-la. O puxador do fecho escapou dos seus dedos inchados, a neve
bloqueou os dentes, entrou pela abertura. O frio tomou conta de suas coxas, indo para seu sexo, para a
arma que ele quis colocar ao abrigo, no lugar mais quente de seu corpo. Apertou-se contra Leonova,
comprimiu-a contra sua barriga, como defesa, como obstáculo, como muralha contra a tempestade.
Envolveu-a com seus braços e pousou as mãos sobre as dela ao redor da barra da direção. O vento tentava
arrancá-los da sua trajetória para jogá-los em algum lugar longe de tudo. Longe de tudo não queria dizer
quilômetros. Alguns metros bastavam para perdê-los fora do mundo na tormenta sem limite, sem
assistência, sem indício, e cujo paroxismo estava em toda parte. Poderiam ficar gelados a dez passos de
uma porta. A do edifício do elevador continuava visível. Estaria ali, bem perto, na frente, escondida pela
espessura da neve trazida? Ou teriam passado e a plataforma estava em vias de enveredar para o deserto
mortal que começava a cada passo?
Hoover teve de repente a certeza de que haviam passado da sua meta e que se continuassem, por
menos que fosse, estavam perdidos. Pesou sobre as mãos de Leonova e freou bruscamente, de frente para
o vento.
O vento enfiou-se verticalmente por baixo da plataforma e ergueu-a. Os tonéis de cerveja e a barriga de
Hoover a jogaram no solo. Leonova, aflita, largou a barra. Sentiu-se carregada e gritou. Hoover agarrou-a e
colou-a contra si. A plataforma, abandonada a si mesma, ficou girando, de costas para o vento. Dois barris
de cerveja jogados desapareceram rolando na tempestade branca. O vento enfiava seus ombros sobre o
veículo desamparado. Ergueu-o de novo e virou-o. Hoover rolou sobre o gelo sem largar Leonova. Um barril
de cerveja passou a poucos centímetros do seu crânio. A plataforma revirada, rolada, carregada,
desapareceu como uma folha. O vento rolou Hoover e Leonova agarrada a ele. Bateram brutalmente num
obstáculo que ressoou. Era uma grande superfície vermelha vertical. A porta do edifício do elevador...

O elevador estava aquecido. A neve e o gelo agarrados a todas as dobras de suas roupas se fundiam.
Leonova tirou as luvas, suas mãos estavam mornas. Hoover soprava as suas, que continuavam imóveis,
azuladas. Ele não sentia nem as orelhas nem o nariz. Dentro de alguns minutos seria necessário agir. Ele
não seria capaz.
? Vire-se ? disse ele.
? Por quê?
? Vire-se, por Deus! É preciso sempre que você discuta!?
Ela ficou vermelha de raiva, tentou recusar, depois obedeceu cerrando os dentes. Ele por sua vez virou-
lhe as costas, e conseguiu enfiar as duas mãos dentro da calça, agarrou o revólver entre as palmas, e tirou-o
para fora. Ele escapou-lhe e caiu. Leonova assustou-se.
? Não se vire!
Empurrou para dentro a fralda da camisa, pegou o puxador do zíper entre os dois indicadores. Sabia que
o segurava, mas não o sentia. Puxou para cima. Ele lhe escapou. Recomeçou duas vezes, dez vezes,
ganhando cada vez alguns dentes do seu zíper. Finalmente ficou com aspecto mais apresentável. Olhou o
indicador de descida. Estavam a menos novecentos e oitenta. Iam chegar.
? Pegue o revólver ? disse ele ?, eu não posso.
Ela virou-se para ele, ansiosa.
? Suas mãos... ?
? Sim, minhas mãos! Não temos tempo!... Pegue este troço!... Você sabe usá-lo?
Ela manejava a arma com desembaraço. Era um revólver de repetição de grosso calibre, uma arma de
assassino profissional.
? Tire o trinco de segurança.
? Você acredita que... ?
? Não acredito em nada... temo... tudo dependerá talvez de um décimo de segundo.
O elevador freou nos últimos metros e parou. A porta abriu-se.
Eram Heath e Shanga, que estavam de guarda nas minas. Viram com espanto Hoover sair da cabina
encharcado, hirsuto, levando na ponta dos braços as mãos como pacotes inertes, e Leonova sacudindo um
enorme revólver negro.
? O que é que há? ? perguntou Heath.
? Não há tempo!... Dê-me a sala, rápido!
Heath já havia reencontrado sua fleuma. Chamou a sala de reanimação.
? Hoover e Leonova querem entrar...
? Esperem! ? gritou Hoover.
Tentou segurar o aparelho, mas sua mão parecia um pacote de algodão e o instrumento lhe escapou.
Leonova o pegou e segurou diante dos seus lábios.
? Alô! Aqui é Hoover. Quem me escuta?
? Moissov escuta ? respondeu uma voz em francês.
? Responda! Coban está vivo?
? Sim! Está. Claro.
? Não tire os olhos de cima dele! Controle todo mundo. Que cada um vigie seu vizinho! Vigie Coban.
ALGUÉM VAI MATÁ-LO!
? Mas...
? Não posso confiar somente em você. Passe-me Forster.
Repetiu seu grito de alarma a Forster, depois a Lebeau. A cada um ele repetia: ? ALGUÉM VAI MATAR
COBAN! Não deixe ninguém se aproximar. NÃO IMPORTA QUEM!
Acrescentou:
? O que está acontecendo no ovo? O que é que vocês estão vendo na tela de vigilância?
? Nada ? disse Lebeau.
? Nada? Como, nada?
? A câmara está em pane.
? Em pane? Uma ova! Abram as minas. Rápido!
Leonova devolveu o receptor a Heath. O pisca-pisca vermelho apagou-se. O campo de minas estava
desativado. Mas Hoover desconfiava. Levantou o joelho e estendeu sua bota para Shanga com a
displicência causada por vinte gerações de escravatura.
? Tire minha bota, pequeno.
Shanga teve um sobressalto e recuou. Leonova ficou furiosa.
? Não é o momento de se sentir negro! ? gritou ela.
Pousou o revólver no chão, pegou a bota com as duas mãos e puxou.
Não tentava mais compreender, depositava confiança total em Hoover, e sabia a que ponto cada fração
ínfima de tempo era essencial.
? Obrigado, irmãzinha. Deitem-se todos!
Deu o exemplo. Shanga, apavorado, imitou-o logo. Heath também, com ar de quem não entendia nada.
Leonova, de joelhos, segurava sempre a bota.
? Jogue-a no buraco!
O buraco era a abertura da escada que ligava o fundo do poço ao acesso da esfera. As minas estavam na
escada, sob os degraus. Leonova jogou a bota. Não aconteceu nada.
? Vamos ? disse Hoover. ? Tire a outra e tire as suas. Temos que ser silenciosos como a neve. Heath, não
deixe entrar mais ninguém, entendeu? Ninguém.
? Mas o que é que... ?
? Daqui a pouquinho...
Com os braços afastados do corpo, para que suas mãos doloridas não tocassem em nada, enfiou-se pela
escada, e Leonova atrás dele.
No ovo havia um homem deitado e um em pé. O homem deitado tinha uma faca de neve enfiada no
peito, e seu sangue compunha no chão uma pequena poça em forma de balão de história em quadrinhos.
O homem em pé usava um capacete de soldador que lhe escondia o rosto e pesava sobre seus ombros.
Segurava com as duas mãos o cano do plaser, e dirigia o lança-chamas para o muro gravado. O ouro fundia
e escorria.
Leonova segurava o revólver na mão direita. Teve medo de não o fazer com firmeza suficiente.
Acrescentou a mão esquerda e atirou. As três primeiras balas arrancaram o plaser das mãos do homem e a
quarta quebrou-lhe um pulso, quase secionando a mão. O choque jogou-o por terra, a chama do plaser
queimou-lhe um pé. Ele berrou. Hoover se precipitou e, com o cotovelo, desligou a corrente.
O homem com a faca no peito era Hoi-To.
O homem com a máscara de soldador era Lukos. Hoover e Leonova o haviam reconhecido logo que o
viram. Não havia dois homens com a sua estatura na EPI. Com um chute, Hoover arrancou-lhe o capacete,
descobrindo seu rosto suado e os olhos revirados. Sob a dor horrível do pé reduzido a cinzas, o colosso
tinha desmaiado.

? Simon, você, que é amigo dele, tente!


Simon tentou.
Inclinou-se para Lukos, deitado numa cama de enfermaria, e pediu-lhe que lhe dissesse como tirar as
minas coladas nas memórias da tradutora, e para quem ele havia feito esse trabalho insensato, se ele
estava sozinho ou se tinha cúmplices. Lukos não respondeu.
Interrogado sem cessar por Hoover, Evoli, Henckel, Heath, Leonova, depois que havia recobrado a
consciência, só confirmara que as minas explodiriam se lhes tocassem, e que explodiriam igualmente se
não lhes tocassem. Mas recusou-se a dizer dentro de quanto tempo, e recusou-se a responder a qualquer
outra pergunta. Inclinado sobre ele, Simon olhava aquele rosto inteligente, ossudo, os olhos negros que o
encaravam sem medo nem vergonha, nem bazófia.
? Por quê, Lukos? Por que você fez isso?
Lukos o olhava e não respondia nada.
? Foi por dinheiro? Você não é um fanático! E então?...
Lukos não respondia nada.
Simon evocou a batalha contra o tempo que haviam conduzido juntos, que Lukos havia dirigido, para
compreender as três pequenas palavras que permitiriam salvar Elea. Esse trabalho extenuante, genial, esse
devotamento totalmente desinteressado, isso era bem ele, Lukos, que os havia prodigalizado. Como pôde,
depois, assassinar um homem e conspirar contra os homens? Como? Por quê? Para quem?
Lukos olhava Simon e não respondia nada.
? Estamos perdendo tempo ? disse Hoover. ? Dê-lhe uma injeção de pentotal. Ele dirá muito
gentilmente tudo o que sabe sem sofrer.
Simon levantou-se. No momento em que ia se afastar, Lukos, com a mão sã, forte como a de quatro
homens, segurou-o pelo braço, inclinou-se sobre o leito, arrancou-lhe o revólver enfiado na cintura,
apoiou-o contra sua própria cabeça e atirou. O tiro foi oblíquo. A parte de cima do seu crânio se abriu e a
metade do seu cérebro fez um feixe rosa que pousou em oval, espalhado sobre o muro. Lukos havia
encontrado um meio de se calar antes do pentotal.

Os responsáveis pela EPI, no decorrer de uma reunião dramática, decidiram, apesar de sua repulsa,
fazer um apelo à força internacional com base ao largo da costa para procurar capturar ou destruir quem
ou o que pudesse ter recebido a emissão clandestina. Se bem que os edifícios mais avançados fossem
muito longe para poder recolher as imagens, era provável que fosse um elemento secreto desligado de
uma das frotas que se aproximara a uma distância suficiente para captar a emissão.
Provavelmente. Mas não certo. Um pequeno submarino ou um anfíbio aeronaval poderia ter-se
escondido entre as malhas da rede de vigilância. Mas mesmo que fosse um elemento da força
internacional, só a força mesma poderia encontrá-lo. Era preciso contar com as rivalidades nacionais que
iam aguçar o zelo da procura, e da vigilância recíproca.
Rochefoux entabulou com o Almirante Houston, que estava de guarda, um diálogo pelo rádio difícil e
grotesco devido às interrupções da tempestade magnética que acompanhava a tempestade com seus
escárnios. Mesmo assim Houston acabou entendendo e alertou toda a aviação e toda a frota. Mas a
aviação nada podia fazer no meio da tempestade branca. Os porta-aviões tinham todas as suas
superestruturas acolchoadas cobertas com uma camada de uma espessura dez vezes maior de gelo. O
Netuno-I abrigara-se mergulhando. Não havia hipótese de trazê-lo à superfície. Angustiado, Houston
compreendeu que não lhe restava outro meio de ação senão a frota de submarinos soviéticos. Se fosse
para eles que Lukos tinha trabalhado, que ironia enviá-los à caça! E se fosse para nós, se Lukos fosse um
agente do FBI, e o Pentágono ignorava, não era horrível soltar os turbulentos russos contra pessoas que
defendiam o Ocidente e a civilização?
E se fosse para os chineses? Para os indianos? Para os negros? Para os judeus? Para os turcos? Se fosse,
se fosse...
A um militar, por mais alta que seja sua patente, sempre se oferece o apaziguamento da disciplina.
Houston parou de fazer perguntas a si mesmo, parou de pensar, e aplicou o plano previsto. Acordou seu
colega, o Almirante Voltov, e colocou-o ao corrente da situação. Voltov não hesitou um segundo. No
mesmo instante, deu ordem de alerta. Os vinte e três submarinos atômicos e suas cento e quinze lanchas
de patrulha rumaram para o sul, aproximaram-se das costas até o limite da imprudência, e cobriram cada
metro de rochedo ou de gelo imersos numa rede de ondas detectoras. Em mil e quinhentos quilômetros,
nem um tremor de sardinha podia-lhes escapar.
Houve uma abertura na tempestade. O vento soprava com a mesma força, porém as nuvens e a neve
desapareceram no profundo céu azul. O Netuno-I recebeu ordem de entrar em ação. Veio para a superfície,
com lâminas na proa. Os dois primeiros helicópteros saídos do porão foram jogados ao mar antes mesmo
de abrir suas hélices. O almirante alemão Wentz, comandante do Netuno, empregou sua última arma: dois
aviões-foguetes acachapados no fundo de seus tubos. Levavam um rosário de bombas H em miniatura e,
sob o nariz, os dois olhos de uma câmara estereoscópica emissora. Lançaram-se contra o vento como balas.
Suas câmaras enviavam para os receptores do Netuno duas fitas contínuas de imagens em cores e em
relevo.
Todo o estado-maior do Netuno estava presente na sala de observações. Houston e Voltov tinham
arriscado suas vidas para vir, para ver e para vigiar. Assim como todos os oficiais presentes, não eram
capazes de reconhecer o que quer que fosse nas imagens que desfilavam na tela da esquerda ou da direita,
nem de distinguir um albatroz de uma baleia branca. Mas os detectores eletrônicos eram capazes. E de
repente duas flechas brancas apareceram sobre a tela da direita. Duas flechas em ângulo reto, que
convergiam uma para outra, designavam o mesmo ponto, e se deslocavam com ele e com a imagem, da
esquerda para a direita na tela.
? Pare ? gritou Wentz. ? Ampliação máxima.
Sobre a mesa, diante dele, uma tela horizontal iluminou-se. Ele colou seu rosto à lupa estereoscópica.
Viu um pedaço de rio afundar na sua direção, aumentar, aumentar. Viu, numa pequena enseada
dilacerada, no fundo de uma baía, a alguns metros abaixo da água clara e espumante, um foguete oval,
muito regular e muito calmo para ser um peixe...
No minúsculo submarino, dois homens colados um ao outro se banhavam num odor úmido de suor e de
urina. Não tinham previsto para eles uma bexiga receptora. Tinham que se controlar. Não conseguiram, por
causa da tempestade que os bloqueava há doze horas, cinco metros abaixo da água. Para sair da enseada
seria preciso passar acima de um fundo de dois metros. Ir à superfície e navegar rente. Com aquele vento,
era uma manobra desesperada que tinha tantas chances de êxito quanto uma moeda lançada para o ar
tinha de cair em pé. Mesmo estando na parte mais profunda do riacho, o pequeno submarino não estava
abrigado. Batia contra as rochas, o fundo se chocava, rangia, gemia. O precioso receptador que havia
registrado as confidencias da tradutora ocupava um terço do volume do submersível. Os dois homens, os
pés de um junto à cabeça do outro, um no comando do engenho, outro nas manivelas do receptor, não
tinham lugar para se virar nem mesmo um pouquinho sobre si mesmos. A sede secava-lhes a garganta, a
transpiração grudava seus macacões, os sais da urina lhes alfinetavam as carnes. O reservatório de oxigênio
assobiava suavemente. Não tinha conteúdo para mais que duas horas. Decidiram sair do impasse custasse
o que custasse.
Na sala de reanimação, os médicos e as enfermeiras não se aproximavam mais de Coban, senão dois de
cada vez, um vigiando o outro.
No ovo, os danos causados pela chama do plaser eram consideráveis. O texto do tratado havia
desaparecido quase completamente. Quase. Restavam ainda alguns trechos. Talvez o bastante para
fornecer a um gênio matemático material para fazer brotar a luz que iluminava a equação de Zoran. Talvez
sim. Talvez não.

E não havia um extrator de minas em nenhum dos prédios da força internacional. Um apelo lançado
pelo Trio havia alertado os especialistas dos exércitos russo, americano e europeu. Três jatos rumavam
para a EPI trazendo seus melhores militares especialistas em minas. Vinham do outro hemisfério, na maior
das velocidades. Não poderiam pousar sobre a pista da EPI. Deveriam parar em Sydney e confiar seus
ocupantes a jatos menores. Mesmo a estes últimos, a tempestade opunha dificuldades terríveis. Talvez
pudessem pousar. Talvez não. E dentro de quanto tempo? Muito tempo. Tempo demais. O engenheiro-
chefe da pilha atômica que fornecia energia e luz à base chamava-se Maxwell. Tinha trinta e um anos e
cabelos grisalhos. Não bebia senão água. Água americana, que chegava congelada em blocos de vinte e
cinco libras: os Estados Unidos enviavam para o pólo gelo esterilizado, vitaminado, adicionado de flúor e de
oligoelementos, e de um pouquinho de euforizante.
Maxwell e os outros americanos da EPI consumiam uma grande quantidade, como bebida, e também
para escovar os dentes. Para a higiene externa toleravam a água da fonte do gelo polar. Maxwell media um
metro e noventa e um e pesava sessenta e nove quilos. Mantinha-se muito ereto e olhava os outros de alto
a baixo, através da parte superior dos seus óculos, sem o menor desprezo pelo seu tamanho inferior.
Prestavam muita atenção a suas opiniões, visto que ele falava pouco.
Veio encontrar Heath, que havia acompanhado Lukos na Europa para a compra das armas, e perguntou-
lhe com desinteresse fatos precisos sobre a potência explosiva das minas coladas à tradutora. Heath nada
podia afirmar, pois fora Lukos quem concluíra o negócio com o traficante belga. Mas Lukos havia dito que
cada uma das minas continha três quilos de PNK.
Maxwell assobiou. Conhecia o novo explosivo americano. Mil vezes mais forte que o TNT. As três
bombas correspondiam a nove quilos de PNK, e a nove toneladas de TNT. Uma bomba de nove toneladas
explodindo dentro da tradutora, que efeitos teria sobre a pilha atômica vizinha, apesar de sua espessa
blindagem de betume e de algumas dezenas de metros de gelo? Em princípio, por trás do escudo de gelo, o
betume deveria agüentar o golpe, mas havia a probabilidade de que a onda de choque enfraquecesse a
arquitetura da pilha, fizesse saltar as conexões, provocasse rachaduras e escape de líquido de gás radiativo,
e, talvez, estimulasse uma reação incontrolável de urânio...
? É preciso evacuar a EPI-2 e a 3 ? disse Maxwell sem levantar a voz. ? Aliás, seria até mais prudente
evacuar a base inteira...
Alguns minutos mais tarde, as sirenas de alerta urgente, que nunca haviam funcionado, berraram nas
três EPI. E todos os postes telefônicos, todos os emissores, todos os receptores de ouvido em todas as
línguas pronunciaram as mesmas palavras: “Retirada urgente. Preparem-se para retirada imediata”.
Dar a ordem de preparar era evidentemente alguma coisa. Mas como proceder à retirada?

A tempestade azul continuava. O céu estava claro como uma íris. O vento soprava a duzentos e vinte
quilômetros a hora. Mas não trazia a neve a não ser ao nível do solo, arrastando-a com tudo o que podia
pegar.
Lebeau, que deixara a sala de reanimação há apenas uma hora e havia adormecido, foi tirado do seu
leito por Henckel, que o pôs a par da situação. Com a barba crescida, exausto, telefonou para a sala.
Embaixo, na outra ponta do fio, Moissov blasfemava em russo e repetia em francês:
? Impossível! Você bem sabe! O que é que você está me pedindo? É impossível!
Sim, Lebeau bem o sabia. Retirar Coban. Impossível. Arrancá-lo, no seu estado atual, do bloco de
reanimação, era matá-lo com tanta certeza quanta se lhe cortassem a garganta.
Mil metros de gelo o colocavam ao abrigo de qualquer explosão, mas se as instalações da superfície
explodissem, em dez minutos ele morreria.
Moissov e Lebeau tiveram ambos a mesma idéia. A mesma palavra lhes veio aos lábios ao mesmo
tempo: transfusão. Podiam tentá-la. O teste de sangue de Elea dera positivo.
Vendo que o estado de Coban se estabilizava, depois melhorava lentamente, os médicos haviam
deixado esta operação para o caso de um agravamento brutal ou de uma necessidade urgente, era disso
que se tratava. Se tentassem a operação imediatamente, Coban podia, dentro de alguns quartos de hora,
ser transportado.
? E se a pilha queimar antes? ? perguntou Moissov. ? As minas podem explodir a qualquer momento, a
qualquer segundo!...
? Merda, que estourem! ? gritou Lebeau. ? Vou ver a moça. Ainda é preciso que ela aceite...
Ele estava, juntamente com os outros reanimadores, alojado na enfermaria e teve que dar apenas
alguns passos para chegar ao quarto de Elea.
A enfermeira, apavorada, estava começando a fazer suas malas. Três valises abertas sobre duas camas,
cem objetos e roupas espalhadas que ela pegava, rejeitava, deixava cair, juntava, com as mãos trêmulas.
Simon dizia a Elea:
? Melhor! É monstruoso prendê-la aqui. Você finalmente vai conhecer nosso mundo. O tempo de hoje
não é só um pacote de gelo. Não pretendo que seja um paraíso, mas...
? O paraíso?
? O paraíso é... é muito longe, muito difícil, e de qualquer maneira não é absolutamente certo, isto é...
? Não compreendo.
? Nem eu. Nem ninguém. Não pense mais. Não vou levá-la ao paraíso. Paris! Paris é para onde vou levá-
la! Digam o que quiserem, vou levá-la para Paris! É, é...
Ele não pensava no perigo. Sabia somente que levaria Elea para longe do seu túmulo de gelo, para o
mundo vivo. Tinha vontade de cantar. Falava de Paris com gestos, como um dançarino.
? É... você verá, é Paris... Não tem flores a não ser nas lojas, atrás dos vidros, mas tem também roupas-
flores, chapéus-flores, o jardim das lojas, por todos os lados, em todas as ruas, flores de meias, pantalonas
de náilon, calcinhas-pétalas, guarda-chuvas de todas as cores, sapatos arco-íris, margaridas-roupas, um
pouco-muito-apaixonadamente, jamais, nada de nada, jamais-jamais, o mais belo jardim do mundo para a
mulher, ela entra, escolhe, ela mesma é flor, flor florida de outras flores, Paris é a maravilha, é para lá que
vou levá-la!...
? Não compreendo nada.
? Não é preciso compreender. É preciso ver. Paris vai curar você. Paris vai curá-la do seu passado!
Foi nesse momento que Lebeau entrou.
? Você concorda ? perguntou ele a Elea ? em dar um pouco do seu sangue a Coban? Só você poderá
salvá-lo. Não é grave nem doloroso. Se você aceitar, nós poderemos transportá-lo. Se você recusar, ele
morrerá. É uma intervenção sem nenhuma gravidade, que não lhe fará mal algum...
Simon explodiu. De jeito algum! Ele se opunha! Era monstruoso! Coban que se danasse! Nem uma gota
de sangue, nem uma gota perdida, Elea ia partir no primeiro helicóptero, no primeiro jato, no primeiro
fosse lá o que fosse! Ela já não deveria estar mais lá, ela não voltaria a descer ao poço, eles eram uns
monstros, não tinham coração, nem tripas, eram uns açougueiros...
? Aceito ? disse Elea.
Seu rosto estava sério. Refletira durante alguns segundos, mas seu cérebro ia mais rápido do que o
cérebro lento dos tempos de hoje. Havia refletido e decidido. Aceitava dar seu sangue a Coban, o homem
que a havia separado de Paikan e a havia jogado, ao fim de uma eternidade, num mundo selvagem e
frenético. Ela aceitava.

Os dois homens dentro do submarino de bolso, a cabeça de um entre os pés do outro, os pés suando, os
pés cheirando, os dois homens com uma rede metálica acolchoada de espuma sintética entre eles, macia,
suave, elástica, porém transpirável, terrivelmente transpirável, os dois homens bloqueados no seu suor, na
sua urina, a pele queimada, as narinas queimadas pelo odor, arriscavam tudo ou nada. Se ficassem lá, o
reservatório de oxigênio esgotado, não poderiam mais partir, nem mergulhar. Seriam presos. Impensável,
horrível, dizer tudo, confessar, monstruoso. Se não falassem, aplicariam pentotal neles. Mesmo sem
pentotal, eles olhariam e os fariam falar, com um chute nas canelas, grito, insulto; não se pode ficar
eternamente sem falar. Partir, é preciso partir. Duas horas de oxigênio. Cinco minutos mortais para
atravessar a passagem. Resta uma hora e cinqüenta e cinco minutos de mergulho. É uma chance, pequena,
estreita. O grande submarino os engole, ou o grande avião os descobre. Salvos. Se eles lhes falham, talvez a
tempestade pare e eles possam continuar na superfície. Não há outra alternativa. Partir...
Partir. Uma onda jogou-os contra a rocha. Caíram e bateram na rocha defronte. Voltaram a cair de
encontro ao fundo. O choque foi tamanho que o homem que tinha a cabeça para trás partiu quatro dentes
incisivos. Urrou de dor, cuspiu os dentes e sangue. O outro não ouvia nada. Nas suas lunetas receptoras via
o horror desencadeado. O vento arrancava a superfície do mar e a jogava, toda branca, para o azul do céu.
No momento em que ela voltava a cair, ele crispava as mãos sobre o comando de aceleração. A parte de
trás do foguete de aço cuspiu um enorme chafariz de fogo e mergulhou nas ondas propulsada velozmente
pela sua própria energia.
Porém o jato não estava mais direito. O choque contra as rochas avariara o motor de arranque. O jato
desviava para a esquerda e rugia retorcido como um saca-rolhas. O submarino pôs-se a rodar sobre si
mesmo, desgovernado, colando os dois homens contra suas paredes; virou a cem graus e atirou-se contra
uma muralha de gelo. Penetrou um metro na muralha. A barreira caiu sobre ele e esmigalhou-o. O vento e
o mar levaram numa espuma vermelha os restos de carne e de metal.
As câmaras dos dois aviões-foguetes registraram e expediram a imagem da cena toda.

A base formigava. Os sábios, os técnicos, os cozinheiros, os varredores, as enfermeiras, as empregadas


haviam arrumado rapidamente seus bens mais preciosos em valises e fugiam da EPI-2 e da EPI-3. Os
snodogs os recolhiam nas saídas dos prédios e os transportavam até a entrada da EPI-1. No coração da
montanha de gelo eles retomavam fôlego, seu coração se acalmava, sentiam-se abrigados. Acreditavam-se
abrigados...
Maxwell sabia que não era verdade. Mesmo se as minas não explodissem, se ficassem somente
fissuradas e começassem a cuspir seus líquidos e seus gases mortais, o vento ia trazê-los e espalhá-los na
paisagem até a montanha de gelo que os pararia. O vento, aqui, soprava mais ou menos forte. Mas soprava
sempre na mesma direção, do centro do continente para o mar. Da EPI-2 para a EPI-1, inexoravelmente.
Ninguém podia mais sair das galerias da montanha. E as radiações rapidamente entrariam pelo sistema de
ventilação que colhia o ar por meio de vinte e três chaminés. Seria um prazer colher ao mesmo tempo
todas as sujeiras corrosivas cuspidas pelas minas destroçadas.
Maxwell repetiu calmamente:
? É muito simples! É preciso fazer uma retirada...
Como? Nenhum helicóptero podia levantar vôo. Os caminhões, a rigor, podiam se enfiar na tempestade.
Mas havia dezessete e era preciso guardar três para Coban, Elea e as equipes de reanimadores.
? É melhor quatro. E ficarão lotados.
? Melhor ainda, assim ficam quentes.
? Restam treze.
? Mau número.
? Não sejamos burros...
? Treze, ou então catorze, com dez pessoas por veículo.
? Colocaremos vinte!
? Bem, vinte.
? Vinte vezes catorze, isto dá: dá quanto?
? Duzentos e oitenta...
? O efetivo da base, depois de completados os trabalhos maiores, foi reduzido a mil setecentas e
quarenta e nove pessoas. Isso dá quantas viagens? Mil setecentos e quarenta e nove dividido por duzentos
e oitenta...
? Sete ou oito viagens, digamos dez.
? Bom, é exeqüível. Organizaremos um comboio, os snodogs vão deixar seus passageiros e voltam para
buscar os outros...
? Vão deixá-los onde?
? Como, onde?
? O abrigo mais próximo é a Base Scott. A seiscentos quilômetros. Se não tiverem problemas, levarão
duas semanas para chegar lá. E se ficarem fora de um abrigo, gelarão em três minutos. A não ser que o
vento se acalme...
? Então?
? Então... wait and see9...
? Esperar! Esperar! Quando isto pode saltar...
? O que é que nós sabemos?
? Como “o que é que nós sabemos”?...
? Quem disse que essas minas iam explodir, mesmo se não tocássemos nelas? Foi Lukos. Quem nos
prova que ele disse a verdade? Que elas não explodem a não ser que sejam tocadas? Nós não as
tocaremos! E mesmo que venham a explodir, quem nos prova que a pilha sofrerá seus efeitos? Maxwell,
você pode afirmar?
? Claro que não. Afirmo somente que receio. E penso que é preciso fazer a retirada.
? Mas ela talvez nem se mexa! Você não pode fazer alguma coisa? Protegê-la melhor? Tirar o urânio?
Esvaziar o circuito? Fazer alguma coisa, seja o que for?
Maxwell olhou Rochefoux, que lhe fazia essa pergunta, como se perguntasse se ele podia, levantando o
nariz, sem sair de sua cadeira, cuspir na Lua.
? Bom... Você não pode, já imaginava. Uma pilha é uma pilha... Pois bem, esperaremos... A calmaria... os
desarmadores de minas... eles certamente vão chegar. Mas a calmaria...
? Onde estão eles, esses diabos de especialistas em minas?
? O mais próximo está a três horas. Mas pousará como?
? Que diz a meteorologia?
? Somos nós que fornecemos os detalhes à meteorologia para as suas previsões. Se lhe anunciarmos
que o vento enfraquece, ela nos dirá que há uma melhora...

Deitada ao lado do corpo do homem enfaixado, Elea esperava, calma, os olhos fechados. Seu braço
esquerdo estava nu e o braço do homem tinha sido descoberto alguns centímetros no lugar da transfusão.
Esses poucos centímetros de pele estavam cheios de placas vermelhas das queimaduras em vias de
cicatrização. Estavam todos lá, os seis reanimadores, seus assistentes, enfermeiras, técnicos, e Simon.
Ninguém tivera, nem por um instante, a idéia de ir se abrigar na montanha de gelo. Se as minas e a pilha
explodissem, o que aconteceria na entrada do poço? Haveria chance de sair? Nem pensavam nisso. Tinham
vindo de todos os horizontes da Terra para dar vida àquele homem e àquela mulher, tinham conseguido
com a mulher, tentavam com o homem a operação da última chance dentro dos limites de um tempo
desconhecido. Dispunham talvez de algumas horas, talvez de alguns minutos, não sabiam, era preciso não
perder nem um segundo, era preciso não comprometer nada se apressando. Estavam todos ligados a
Coban pelas cordas do tempo, para o sucesso ou para o fracasso, ou talvez para a morte.
? Atenção, Elea ? disse Forster ?, relaxe. Vou espetar seu braço, mas não doerá.
Passou sobre o braço um algodão embebido em éter e enfiou a agulha pontuda na veia inchada pela
borracha que a manietava. Elea não estremeceu. Forster tirou a borracha. Moissov começou a transfusão.
O sangue de Elea, vermelho, quase dourado, apareceu no tubo de plástico. Simon teve um arrepio e sentiu
a pele se eriçar. Suas pernas ficaram fracas, seus ouvidos latejaram, e tudo o que via tornou-se branco. Fez
um esforço enorme para ficar de pé, para não desmaiar. As cores voltaram ao fundo dos seus olhos, seu
coração falhou e voltou a encontrar seu ritmo.
O emissor estalou e anunciou em francês:
? Aqui Rochefoux. Uma boa notícia. O vento diminuiu. Velocidade da última rajada: duzentos e oito
quilômetros a hora. Onde estão vocês?
? Estamos começando ? disse Lebeau. ? Coban vai receber as primeiras gotas de sangue dentro de
alguns segundos.
Enquanto respondia, libertava as têmporas do homem-múmia, limpava com delicadeza a pele
queimada, colocava-lhe na cabeça o círculo de ouro e estendia o outro a Simon. As queimaduras profundas
do couro cabeludo e da nuca tornavam difícil a aplicação dos eletrodos do encefalograma. Os círculos de
ouro, com um médico na recepção, podiam substituí-los com vantagem.
? No momento em que o cérebro recomece a funcionar, você o saberá ? disse Lebeau. ? O
subconsciente acordará antes do consciente, na sua forma mais elementar, mais imóvel, que é a memória.
O sonho do pré-despertar virá depois. Logo que você tiver uma imagem, avise.
Simon sentou-se na cadeira de ferro. Antes de baixar a placa frontal diante de suas pálpebras, olhou
Elea.
Ela havia aberto os olhos e o olhava, e havia no seu olhar como uma mensagem, um calor, uma
comunicação que ele jamais tinha visto. Com... não era piedade, mas compaixão. Sim, era isso. A piedade
pode ser indiferente ou mesmo acompanhar a raiva. A compaixão reclama uma espécie de amor. Ela
parecia querer reconfortá-lo. Dizer-lhe que não era grave e que ele se curaria. Por que um olhar desse num
tal momento?
? Então? ? perguntou Lebeau, aborrecido.
A última imagem que ele recebeu foi a da mão de Elea, bela como uma flor, aberta como um pássaro,
que se abria e pousava sobre a máquina de comer colocada ao seu alcance a fim de que pudesse usá-la
para o sustento de suas forças.
E depois não houve nada mais do que aquele negro interior da visão fechada, que não é a escuridão,
mas uma claridade adormecida.
? Então? ? repetiu Lebeau.
? Nada ? respondeu Simon.
? O vento está a cento e noventa ? disse o difusor. ? Se amainar um pouco mais, vamos começar a
retirada. Onde estão vocês?
? Ficaríamos muito gratos se não fôssemos mais interrompidos ? disse Moissov.
? Nada ? disse Simon.
? Coração?
? Trinta e um.
? Temperatura?
? Trinta e quatro e sete.
? Nada ? repetiu Simon.
Um primeiro helicóptero partiu, carregado de mulheres. O vento não ultrapassava cento e cinqüenta
quilômetros a hora e às vezes caía para cento e vinte. Ao mesmo tempo um helicóptero partiu da Base
Scott para vir buscar os passageiros na metade do caminho. Os dois aparelhos tinham encontro marcado
sobre uma geleira num vale bastante abrigado, perpendicular ao vento. Porém a Base Scott só podia servir
de local de espera. Não tinha sido feita para abrigar uma multidão. Todas as unidades da força
internacional capazes de se aproximar das costas sem muito perigo dirigiam-se para o continente. Os porta-
aviões americanos e o Netuno lançaram seus aviões verticais, que foram direto para a EPI. Três submarinos
cargueiros porta-helicópteros russos subiram à superfície ao largo da Base Scott. Um quarto, quando subia,
foi cortado em dois pela proa submersa de um iceberg. Seu motor atômico envolto em cimento desceu
lentamente para o fundo tranqüilo das grandes profundidades. Alguns afogados subiram entre os poucos
destroços, foram envolvidos pelas ondas e tornaram a descer.
? Coração, quarenta e um.
? Temperatura, trinta e cinco.
? Nada ? disse Simon.

A primeira equipe de desarmadores de minas tinha descido em Sydney e havia continuado a viagem.
Eram os melhores, os ingleses.

? Agora ? gritou Simon. ? Imagens!


Ouviu a voz furiosa de Moissov e no outro ouvido a tradutora, que lhe traduzia que não gritasse. Ouvia
ao mesmo tempo, no interior da cabeça, nascido diretamente no seu cérebro, sem a intervenção dos
nervos acústicos, um ronco surdo, tiros, explosões e vozes apagadas, como envolvidas em bruma,
algodoadas.
As imagens que via estavam embaçadas, desmanchavam-se, deformavam-se constantemente, pareciam
vistas através de um veio de água tinto de leite. Mas como ele já vira os lugares que elas representavam,
reconheceu-os. Era o abrigo, o coração do abrigo, o ovo.
Tentou dizer o que via em voz alta, porém moderada.
? Que se dane tudo o que você vê! ? disse Moissov. ? Diga-me simplesmente: “não nítido”, “não nítido”,
depois “nítido”, quando estiver nítido! E depois fique calado enquanto ele sonha. Quando as imagens se
tornarem delirantes, alucinantes, não será mais a memória passiva, será a memória loucura: o sonho. E
será o momento antes do despertar. Faça sinal. Compreendeu?
? Sim.
? Você diz “não nítido”, depois “nítido” e depois “sonho”. Isso é o bastante. Compreendeu?
? Compreendi ? disse Simon.
E alguns segundos mais tarde, disse:
? Nítido...
Ele via, e ouvia nitidamente. Não compreendia, pois não havia circuito para a tradutora intercalado
entre os dois círculos de ouro, e os dois homens que via falavam em gonda. Mas não tinha necessidade de
compreender. Estava claro. Havia no primeiro plano Elea nua, deitada no caixão, a máscara de ouro
cobrindo seu rosto, Paikan, que se inclinava para ela, e Coban, que batia no ombro de Paikan e lhe dizia que
era hora de partir. Paikan virava-se para Coban e o empurrava, jogava-o longe. E inclinava-se novamente
para Elea, pousava docemente os lábios sobre suas mãos, sobre seus dedos, pétalas alongadas, repousadas,
douradas, pálidas, flores-de-lis, e sobre a ponta dos seios descansados, apaziguados, doces sob seus lábios
como... nenhuma maravilha no mundo das maravilhas era assim tão doce e macia e morna sob os lábios...
depois colocava a face contra o ventre de seda, acima da relva de ouro discreta, tão proporcional, tão
perfeita... no mundo das maravilhas nenhuma maravilha era tão discreta e justa, de medida e de cor, no
seu lugar e na sua suavidade, na medida da sua mão que ele aí pousou, e sua mão a cobriu, e ela se
encaixou na sua palma com a candura de um carneiro, de uma criança. Então Paikan começou a chorar e
suas lágrimas corriam sobre o ventre de ouro e de seda, e o troar surdo da guerra que esmigalhava a terra
ao redor do abrigo entrava pela porta aberta, chegava até ele, pousava sobre ele, e ele não o ouvia.
Coban voltou na sua direção, falou-lhe e mostrou-lhe a escada e a porta, e Paikan não compreendia.
Coban pegou-o pelo braço e ergueu-o, mostrou-lhe acima do ovo a imagem monstruosa da arma, que
enchia o negro do espaço e abria novas camadas de pétalas que cobriam as constelações. O barulho da
guerra enchia o ovo como o ronco de um ciclone. Era um barulho que não parava, um barulho de furor
contínuo que encerrava o ovo e a esfera, e que fazia um caminho em direção a eles através da terra
reduzida a poeira de fogo. Estava na hora, estava na hora, na hora, na hora de fechar o abrigo. Coban
empurrou Paikan para a escadaria de ouro. Paikan sacudiu o braço e se libertou. Ergueu a mão direita à
altura do peito, e com o polegar inclinou a pirâmide do seu anel. A chave. A chave podia se abrir. A
pirâmide girava em volta de um de seus lados. Mentalmente Simon viu em primeiro plano uma imensa
imagem do anel aberto. E na base libertada, num pequeno receptáculo retangular, viu o pequeno Grão
Negro. Uma pílula. Negra. O Grão Negro. O grão da morte. O primeiro plano foi varrido pelo gesto de
Coban. Coban empurrava Paikan para a escada. Sua mão segurou o cotovelo de Paikan, a pílula saltou para
fora do seu lugar, tornou-se enorme na cabeça de Simon, encheu todo o campo de sua visão interna, voltou
a cair minúscula, imperceptível, perdida, desaparecida.
Paikan roubado de Elea, roubado de sua morte, Paikan no auge do desespero, explodiu num furor
incontrolável, cortou o ar com a mão transformada em machado e bateu, depois bateu com a outra mão,
depois com as duas mãos, e a cabeça de Coban caiu.
Um furioso ronco de guerra tornou-se urro. Paikan ergueu a cabeça. A porta do ovo estava aberta e, lá
em cima da escadaria, a da esfera também estava aberta. Do outro lado do buraco de ouro, chamas
ardiam. Lutava-se no laboratório. Era preciso fechar o abrigo, salvar Elea. Coban havia explicado a Elea todo
o funcionamento do abrigo, e toda a memória de Elea tinha passado para a de Paikan. Ele sabia como
fechar a porta de ouro.
Voou pela escadaria, rápido, furioso, rosnando como um tigre. Quando chegou aos últimos degraus, viu
um guerreiro enisor se meter pela entrada. Atirou. O guerreiro vermelho o viu e atirou quase ao mesmo
tempo, atrasado de uma fração de tempo infinitesimal. Acrescentada a cada dia durante os milhares de
séculos, essa fração não teria sido suficiente, para acrescentar um segundo a mais ao fim de um ano. Mas
foi o bastante para salvar Paikan. A arma do homem vermelho soltava uma energia térmica pura. De calor
total. Mas quando ele apertou o comando, seu dedo não era mais que uma gaze mole que voava para trás
com seu corpo estraçalhado. O ar ao redor de Paikan tornou-se incandescente e apagou-se ao mesmo
tempo. Os cílios, as sobrancelhas, os cabelos, as roupas de Paikan tinham desaparecido. Um milésimo de
segundo a mais e nada teria sobrado dele, nem mesmo um traço de suas cinzas. A dor da pele ainda não
tinha atingido o cérebro e ele já batia com o punho no comando da porta.
Depois caiu sobre os degraus. O corredor de três metros de ouro fechou-se como um olho de galinha
com mil pálpebras simultâneas.
Simon via e ouvia. Ouviu a imensa explosão provocada pelo fechamento da porta, que fazia explodir o
laboratório e todos os acessos ao abrigo sobre quilômetros, pulverizando os agressores e defensores e os
enterrando na torrente das rochas vitrificadas.
Ouviu as vozes dos técnicos e reanimadores que, de repente, tinham se tornado inquietos:
? Coração, quarenta...
? Temperatura, trinta e quatro e oito.
? Pressão arterial?
? Oito-três-oito-dois-sete-dois-seis-um...
? Meu Deus! O que é que está acontecendo? Ele está enfraquecendo! Está se acabando!
Era a voz de Lebeau.
? Simon, continuam as imagens?
? Sim.
? Nítidas?
? Sim...
Ele via nitidamente Paikan descer outra vez dentro do ovo, inclinar-se sobre Coban, sacudi-lo em vão,
escutar seu coração, compreender que o coração havia parado e Coban estava morto.
Via Paikan olhar o corpo inerte, olhar Elea, erguer Coban, carregá-lo, jogá-lo fora do ovo... Via e
compreendia e sentia na sua cabeça o horrível sofrimento enviado pela pele queimada de Paikan. Via
Paikan descer os degraus, titubear até o túmulo vazio e nele se estender. Viu a luz verde iluminar o ovo, e a
porta começar lentamente a se abaixar enquanto o anel suspenso aparecia sobre o solo transparente. Viu
Paikan, num último esforço, puxar sobre o seu rosto a máscara de metal. Simon arrancou o círculo de ouro
e gritou:
? Elea!
Moissov insultou-o em russo. Lebeau, inquieto, furioso, perguntou:
? O que é que lhe deu?
Ele não respondeu. Ele via...
Via a mão de Elea, bela como uma flor, aberta como um pássaro, pousar sobre a máquina de comer...
Com o engaste de seu anel inclinado, a pirâmide de ouro deitada de lado, e a pequena cavidade
retangular vazia. Lá, dentro daquele esconderijo, deveria se encontrar o Grão Negro, o grão da morte. Não
estava mais lá, Elea o havia engolido, levando à boca as esférulas de alimento tiradas da máquina.
Ela havia engolido o Grão Negro para envenenar Coban, dando-lhe seu sangue envenenado.
Mas era Paikan que ela estava prestes a matar.

Tu ainda podias ouvir. Podias saber. Não tinhas mais forças para manter as pálpebras abertas, tuas
têmporas se afundavam, teus dedos se tornavam brancos, tua mão escorregava e caía da máquina de
comer, mas ainda estavas presente e compreendias.
Eu teria podido gritar a verdade, gritar o nome de Paikan, terias sabido antes de morrer que ele estava
perto de ti, que morreríeis juntos como sempre havíeis desejado. Mas que arrependimentos cruéis, quando
poderteis ter vivido! Que horror saber que no momento de acordar de um sonho assim ele morria com o
teu sangue, que o poderia salvar...
Gritei teu nome e ia gritar: “É Paikan!”, mas vi tua chave aberta, o suor das tuas têmporas, a morte já
pousada sobre ti, pousada sobre ele. A mão abominável da infelicidade fechou-me a boca...
Se eu tivesse falado...
Se tivesses sabido que o homem perto de ti era Paikan, terias morrido num sobressalto de desespero?
Ou poderias ainda te salvar, e a ele contigo? Não conhecias um remédio, não poderias fabricar com teus
toques milagrosos da máquina de comer um antídoto que teria rechaçado a morte para fora de vosso
sangue comum, de vossas veias ligadas? Mas te restavam ainda forças suficientes? Podias pelo menos olhá-
lo?
Tudo isso eu me perguntei em alguns instantes, num segundo tão breve e tão longo quanto o longo
sono do qual nós te tiramos. E depois, enfim, gritei novamente. Mas não disse o nome de Paikan. Gritei
para aqueles homens que vos viam morrer e que não sabiam por que e se afobavam. Gritei-lhes: “Vocês
não vêem que ela se envenenou?” E insultei-os, peguei o mais próximo, já nem sei mais quem era, sacudi-
o, bati-lhe, eles não haviam visto nada, tinham te deixado fazer aquilo, eram imbecis, uns asnos
pretensiosos, uns cretinos cegos...
E eles não me compreendiam. Respondiam-me cada um na sua língua, e eu não os compreendia. Só
Lebeau me havia compreendido e arrancava a agulha do braço de Paikan. E ele também gritava, mostrava
com o dedo, dava ordens e os outros não compreendiam.
Ao redor de ti e Paikan, imóveis e em paz, era a loucura das vozes e dos gestos, e o bale das blusas
verdes, amarelas, azuis.
Cada um se dirigia a todos, gritava, mostrava, falava e não compreendia. Aquela que compreendia tudo
e que todos compreendiam não falava mais nos ouvidos. Babel tinha caído novamente sobre nós. A
tradutora acabara de explodir.

Moissov, vendo Lebeau arrancar a agulha do braço do homem, pensou que ele havia enlouquecido ou
que queria matá-lo. Segurou-lhe o pulso e bateu-lhe. Lebeau defendeu-se gritando: “Veneno, veneno!”
Simon, mostrando a chave aberta, a boca de Elea, dizia: “Veneno! Veneno!”
Forster compreendeu, gritou em inglês para Moissov, arrancando-lhe das mãos o maltratado Lebeau.
Zabrec cessou a transfusão. O sangue de Elea parou de correr sob os curativos de Paikan. Depois de alguns
minutos de confusão total, a verdade atravessou a barreira das línguas e de novo todas as atenções
convergiram para o mesmo fim: salvar Elea, salvar aquele que todos, com exceção de Simon, ainda
acreditavam ser Coban.
Mas eles já estavam muito longe na sua viagem, já quase no horizonte.
Simon pegou a mão nua de Elea e colocou-a na mão do homem enfaixado. Os outros olhavam com
espanto, porém ninguém dizia mais nada. A química analisava o sangue envenenado.
De mãos dadas, Elea e Paikan deram seus últimos passos. Os dois corações pararam ao mesmo tempo.
Quando teve certeza de que Elea não podia mais ouvi-lo, Simon mostrou com o dedo o homem deitado
e disse:
? Paikan.
Foi nesse momento que as luzes se apagaram. O difusor tinha começado a falar em francês. Ele havia
dito: “A tra...” Calou-se. A tela de tevê, que continuava a vigiar o ovo, fechou seu olho cinzento e todos os
aparelhos que ronronavam, estalavam, estremeciam, crepitavam, se calaram. A mil metros sob o gelo, a
escuridão total e o silêncio invadiram a sala. Os vivos, de pé, ficaram pregados no chão. Para os dois seres
deitados no meio deles, o silêncio e a escuridão não existiam mais. Mas para os vivos, as trevas que os
envolviam de repente na tumba profunda eram a espessura compreensível da morte. Cada um ouvia o
barulho de seu próprio coração e da respiração dos outros, exclamações contidas, palavras cochichadas, e
acima de tudo a voz de Simon, que tinha se calado, mas que todos continuavam a ouvir:
? Paikan...
Elea e Paikan...
Sua história trágica tinha se prolongado até esse minuto, onde a fatalidade furiosa os havia atingido pela
segunda vez. A noite os havia reunido no fundo do túmulo de gelo e envolvia os vivos e os mortos, ligava-os
num bloco de infelicidade inevitável cujo peso ia afundá-los juntos até o fundo dos séculos e da terra.
A luz voltou, pálida, amarela, palpitante, apagou-se de novo e reacendeu um pouco mais viva. Eles se
olharam, se reconheceram, respiraram, mas sabiam que não eram mais os mesmos. Voltavam de uma
viagem que quase não havia durado, mas todos, agora, eram irmãos de Orfeu.
? A tradutora explodiu! Toda a EPI-2 está nos ares, o muro do hangar está aberto como uma avenida!
Era a voz de Brivaux, que estava de guarda no alto do elevador.
? A eletricidade pifou, a pilha deve ter sofrido um golpe. Eu os liguei no circuito do poço. Vocês fariam
bem de subir o mais depressa possível! Mas não contem com o elevador, não há bastante força, é preciso
gastar os sapatos na escada. Onde é que vocês estão com os dois espécimes? Já podem ser transportados?
? Os dois espécimes morreram ? respondeu Lebeau, com a calma de um homem que acaba de perder
numa catástrofe a mulher, os filhos, a fortuna e a fé.
? Merda! Depois de tanto trabalho! Bem, agora pensem em vocês! E apressem-se antes que a pilha
comece a dançar a bourrêe10.
Forster traduzia em inglês para aqueles que não tinham compreendido em francês. Os que não
compreendiam nem uma nem outra língua compreenderam os gestos. E aqueles que não compreendiam
nada já tinham compreendido que precisavam sair do buraco. Forster desligou definitivamente as minas da
entrada. Alguns técnicos já subiam em direção à abertura da esfera. Havia três enfermeiras, entre elas a
assistente de Lebeau, que tinha cinqüenta e três anos. As outras duas, mais jovens, sem dúvida chegariam
lá em cima.
Os médicos não se conformavam com a idéia de deixar Elea e Paikan. Moissov fez sinal dando a
entender que poderiam amarrá-los nas costas, acrescentou algumas palavras num inglês horrível que
Forster interpretou como querendo dizer: “Cada um por sua vez”.
Mil metros de escada. Dois mortos.
? A pilha está fissurada! ? gritou o emissor. ? Está rachada, cospe e solta fumaça por todo canto! Vamos
nos retirar numa confusão total! Apressem-se!
Desta vez, era a voz de Rochefoux:
? Saindo do poço, dirijam-se para o sul, virem as costas à EPI-2. O vento leva as radiações na outra
direção. Helicópteros vão recolhê-los. Deixo uma equipe aqui para esperá-los, mas se isso explodir antes e
vocês saírem não se esqueçam: diretamente para o sul! Vou tratar dos outros. Andem depressa...
Van Houcke falou em holandês e ninguém o compreendeu. Então repetiu em francês que, na sua
opinião, deveriam deixá-los lá. Estavam mortos, não se podia fazer mais nada por eles, nem deles. E
encaminhou-se para a porta.
? O mínimo que podemos fazer ? disse Simon ? é recolocá-los onde os encontramos...
? Também acho ? disse Lebeau.
Explicou-se em inglês com Forster e Moissov, que concordaram.
Pegaram primeiro Paikan sobre os ombros, e fizeram-no descer novamente o caminho por onde o
haviam içado para as suas esperanças, e o colocaram no seu caixão.
Depois foi a vez de Elea. Os quatro a carregaram, Lebeau, Forster, Moissov e Simon. Colocaram-na no
outro caixão, perto do homem com o qual ela havia dormido durante novecentos mil anos sem saber quem
era, e com quem ela havia, sem saber quem era, mergulhado num novo sono que não teria fim.
No momento em que todo o seu peso descansou no caixão, um brilhante raio azul brotou do solo
transparente, invadiu o ovo e a esfera, e atingiu os homens e as mulheres agarrados às escadas. O anel
suspenso recomeçou seu curso imóvel, o motor recomeçou sua tarefa interrompida por um instante:
envolver com um frio mortal o fardo que lhe haviam confiado, e guardá-lo através do tempo interminável.
Rapidamente, pois o frio já os oprimia, Simon desamarrou em parte a cabeça de Paikan, cortou e tirou
as ataduras a fim de que seu rosto ficasse nu ao lado do rosto nu de Elea.
O rosto livre apareceu, muito belo. Quase não se percebiam mais as queimaduras. O soro universal
trazido pelo sangue de Elea tinha curado sua carne antes que o veneno lhe tirasse a vida. Estavam
incrivelmente belos e em paz. Uma névoa gelada invadia o abrigo. Da sala de reanimação chegaram trechos
da voz anasalada do difusor:
? Alô!... Alô!... Ainda há alguém?... Apressem-se!...
Não podiam demorar mais. Simon saiu por último, subiu os degraus de costas, apagou o projetor. Teve
primeiro a impressão de uma escuridão profunda, depois seus olhos se acostumaram à luz azul que
banhava novamente o interior do ovo com sua claridade noturna. Uma estreita faixa transparente
começava a envolver os dois rostos nus, que brilhavam como duas estrelas. Simon saiu e fechou a porta.

Um verdadeiro carrossel tinha se estabelecido entre os porta-aviões, os submarinos, as bases mais


próximas e as costas da EPI. Sem cessar, os helicópteros pousavam, se enchiam e partiam outra vez. Um
funil retalhado, sujo de todo tipo de restos, brilhando de reflexos de gelo, marcava o lugar da EPI-2. Rolos
de fumaça subiam no vento enraivecido que os colhia no nível do chão e levava para o norte.
Pouco a pouco, todo o pessoal foi evacuado, e a equipe do poço saiu por sua vez e foi toda recolhida. A
enfermeira qüinquagenária foi das primeiras a chegar lá em cima. Era magra e escalava os degraus como
uma cabra.
Hoover e Leonova embarcaram com os reanimadores no último vôo do último helicóptero. Hoover, de
pé diante de uma escotilha, apertava contra si Leonova, que tremia de desespero. Olhava com horror a
base devastada e resmungava baixinho:
? Que confusão, meu Deus, que confusão!...
Os sete membros da comissão encarregados de redigir a Declaração Universal do Homem embarcaram
em sete navios diferentes, e não tiveram mais ocasião de se encontrar. Não havia mais ninguém em terra.
No céu aviões prudentes, em vôo muito alto, rodavam ao longe, conservando a EPI-2 no raio de suas
câmaras. O vento soprava novamente numa tempestade furiosa, mais forte a cada segundo. Varria os
escombros da base, carregava os pedaços de alguma coisa, multicores, para os horizontes brancos, a
distâncias desconhecidas.
A pilha explodiu.
As câmaras viram o cogumelo gigantesco carregado pelo vento, torcido, rasgado, estripado até o
vermelho do seu sangue de inferno, carregado aos pedaços na direção do oceano e das terras longínquas. A
Nova Zelândia, a Austrália, todas as ilhas do Pacífico se encontravam ameaçadas. E em primeiro lugar os
prédios da força internacional. Os aviões voltaram para bordo, os submarinos mergulharam, os navios de
superfície deram toda velocidade contra o vento.
A bordo do Netuno, Simon contou aos sábios e aos jornalistas que aí se encontravam o que vira durante
a transfusão, e como Paikan havia tomado o lugar de Coban.
Todas as mulheres do mundo choraram diante das telas. A família Vignont comia à sua mesa em forma
de meia-lua olhando o cogumelo descabelado em serpentes como medusas, que marcava o fim da
generosa aventura. Mme Vignont havia aberto uma grande lata de ravióli com molho de tomate, tinha-a
aquecido em banho-maria e servido dentro da própria lata, porque assim se mantinha mais quente, dizia
ela, mas na realidade era porque assim andava mais depressa e não sujava prato.
Depois da explosão, apareceu a cabeça de um homem que assumiu um ar melancólico para pronunciar
palavras de condolências, e passou a outras notícias. Infelizmente, elas não eram boas. No front da
Manchúria esperavam... Na Malásia, uma nova ofensiva... Em Berlim, a fome devida ao bloqueio... No
Pacífico, as duas frotas... No Kuwait, o incêndio dos poços... Na Cidade do Cabo, os bombardeios da aviação
negra... Na América do Sul... No Oriente Médio... Todos os governos faziam o impossível para evitar o pior.
Enviados especiais cruzavam os mediadores em todas as altitudes, em todas as direções. Esperava-se,
esperava-se muito. A mocidade se agitava um pouco por toda parte. Não se sabia o que ela queria. Ela
também não, é claro. Os estudantes, os jovens trabalhadores, os jovens camponeses, e os bandos cada vez
mais numerosos de jovens que não eram nada e não queriam ser nada se reuniam, se misturavam,
invadiam as ruas das capitais, paravam o trânsito, atacavam a polícia, gritando: “Não! Não! Não! Não!” Em
todas as línguas isso se exprime por uma pequena palavra explosiva, fácil de gritar. Todos eles a gritavam,
sabiam disso, sabiam que não queriam. Não se sabe exatamente quais foram os que começaram a gritar o
“não!” dos estudantes gondas ? “Pao! Pao! Pao! Pao!” ?, mas em poucas horas toda a mocidade do mundo
gritava, diante de todos os policiais.
? Pao! Pao! Pao! Pao!...
Em Pequim, em Tóquio, em Washington, em Moscou, em Praga, em Roma, na Argélia, no Cairo:
? Pao! Pao! Pao! Pao!...
? Esses moços, eu os poria todos dando duro... ? disse o pai.
? O governo se esforça... ? falou o rosto na tela.
O filho se levantou, pegou seu prato e atirou-o na imagem, gritando:
? Velho burro! Vocês são todos uns velhos burros! Vocês os deixaram morrer com suas burrices!
O molho escorria sobre o vídeo inquebrável. O rosto triste falava por trás do molho de tomate.
O pai e a mãe, surpresos, olharam o filho transfigurado. A filha não olhava para nada, não ouvia nada,
estava toda ao redor do seu ventre, que não parava de se lembrar da noite precedente passada num hotel
da Rue Monge com um espanhol magro. Todas aquelas palavras, aquelas palavras, será que adiantavam
alguma coisa?
Seu irmão gritava:
? Voltaremos lá. Nós os salvaremos! Encontraremos o contraveneno. Eu, eu sou um idiota, mas há os
que saberão! Nós os tiraremos da morte! Não queremos saber da morte! Não queremos a guerra! Não
queremos as burrices de vocês!
? Pao! Pao! Pao! Pao! ? gritava a rua cada vez mais alto.
E os apitos da polícia, os estouros abafados das bombas de gás lacrimogêneo.
? Eu sou um idiota, mas não sou burro!
? As manifestações... ? continuava o rosto na tela.
Jogou em cima dele toda a lata de ravióli e saiu. Bateu a porta, gritando:
? Pao! Pao!
Ouviram-no na escada, depois ele se confundiu com os outros.
? Como este menino é bobo! ? gritou o pai.
? Como é bonito! ? disse a mãe.
O AUTOR E SUA OBRA

Ao lado de Jean-Louis Curtis e Jean Hougron, René Barjavel é outro grande nome da moderna ficção
fantástica francesa. Cultor de um estilo onde o humor e a fantasia se juntam para dar às suas obras um
singular tom satírico, ele representa a geração dos renovadores franceses que através do fantástico
abriram caminho para o estudo e a introdução de novos valores morais.
Nascido em Nyons, sul da França, em 24 de janeiro de 1911, filho de padeiro, experimentou várias
profissões antes de dedicar-se à literatura: vigilante de colégios, professor particular, bancário, chefe de
produção de uma grande editora de Paris e, durante a guerra, cozinheiro numa unidade das forças
francesas.
Desmobilizado em 1942, fundou numa zona não ocupada um semanário para estudantes, onde revelou,
entre outros, Jacques Laurent, François Chalais e Yvan Christ. Um ano depois, publica o primeiro romance,
que abre uma série de ficção científica ? “Le voyageur imprudent” ?, tornando-se assim o pioneiro europeu
do paradoxo temporal.
Ainda em 1943 publica “Devastação”, com o qual alcança grande notoriedade em todo o mundo: numa
linguagem simples, o autor induz a uma profunda reflexão, num contexto onde se cruzam os perigos do
presente e os enigmas do futuro. A este se seguiram “Cinema total”, fruto da experiência como crítico, no
qual faz um ensaio sobre o cinema e seu futuro; “Tarendol” (1945); “Les enfants de l’ombre” (1946), uma
coletânea de contos; “Journal d’un homme simple” (1951); “Jour de feu” (1957), a paixão de Cristo contada
num cenário moderno; “Le diable l’emporte” (1959); “Colomb de la lune” (1962); e “La faim du tigre”
(1966).
“A noite dos tempos”, com a qual ganhou, em 1969, o Prêmio dos Livreiros da França, mostra a
realidade do mundo de hoje em que a insensatez da corrida armamentista faz por igualar a civilização
supertecnológica aos tempos de primitivismo e barbárie. O tema e o tratamento literário que recebeu
demonstram ser Barjavel um dos nomes mais representativos da ficção científica contemporânea.
Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o
benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos
para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é
totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da
distribuição, portanto distribua este livro livremente.
Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim você estará
incentivando o autor e a publicação de novas obras.
Se gostou do trabalho e quer encontrar outros títulos nos visite em
http://groups.google.com/group/expresso_literario/, o Expresso Literário é nosso grupo de
compartilhamento de ebooks.
Será um prazer recebê-los.
1 Caminhão-tanque montado em esteiras e colchões de ar. (N. do T.)
2 Jogo de bola originário do sul da França. (N. do E.)
3 Vigamento de ferro semelhante a uma torre usado em poços de petróleo, gás, etc. (N. do E.)
4 Conjunto de personalidades que, por sua notoriedade ou posição social, costumam comparecer a todas
as importantes manifestações mundanas. (N. do E.)
5 Isto é, 273,15 graus centígrados abaixo de zero. (N. do T.)
6 Esse rapaz está certo. (Em inglês no original.) (N. do T.)
7 O autor faz questão de frisar que esta história foi escrita durante o verão de 66. A revolta dos estudantes
já constava do livro. Sua redação definitiva foi terminada no dia 10 de março de 68. Depois desse dia nada
mais foi acrescentado nem retirado. Os episódios nos quais os estudantes tomaram parte, a concepção da
universidade independente, não foram portanto inspirados pelos acontecimentos de maio de 68, pois lhes
são anteriores. (N. do T.)
8 Centro Nacional de Pesquisas Científicas. (N. do T.)
9 Esperar e ver. (N. do E.)
10 Dança rústica francesa. (N. do T.)
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