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* me invade
Sei (pit
I hii 11< »1 n»r de me ter que cobre
< (mm tuna cheia
Meu i oração, e entorna sobre
Mnilfalnia alheia
Um desejo, não de ser ave,
Mas de poder ter,
Nao sei quê
I >o vôo suave
I >cnlro em meu ser”.
'Iodos os homens querem ser pássaros voando pelo azul. Razão
por qtie os pássaros são símbolos dos nossos sonhos, da verdade mais
prolnnda da alma. Os gregos inventaram o mito de ícaro, o homem
que fez asas para voar como os pássaros. No Antigo Testamento os
homens inventaram o poema da Torre de Babel como símbolo do seu
anseio pelas alturas. Ao final do dilúvio é um pássaro que anuncia o
icinício da vida. Jesus aconselhou-nos a olhar para os pássaros que
voam nos céus para nos tornarmos leves como eles. E o Espírito de
Deus desce sobre os homens na forma de uma pomba. Os homens
que o Espírito toca se transformam em pássaros.
Vivo num apartamento no oitavo andar. Minha filha Raquel, pai
sagista, fez-me um jardim de bromélias, folhagens e bambus no pe
queno espaço da minha varanda. Mas aquele jardim não me deu ale-
gi ia. ()s pássaros não o visitavam. Que tristes são os jardins sem pás-
saios! Era como se os pássaros não me amassem. Transformei a mi
nha tristeza numa crônica para o jornal. Tive então, no dia seguinte,
uma surpresa: aprendi que os pássaros lêem jornais! Ao entrar no
meu apartamento encontrei-me com um beija-flor que entrara e não
* niiscgnia sair. Tive de pegá-lo com a mão. Como nós, homens, so
mos <>s seres que perderam a confiança dos pássaros, ele teve medo,
hipm e se debateu quando o segurei. Debateu-se tanto que deixou-
me algumas penas azuis. Tomei a penas, amarrei-as e as dependurei
no bambu, I )esdc então os beija-flores e uns pássaros pequenos cujo
mmit iiü<» sei me visitam todo dia. Isso me dá alegria. Nós, eu e os
i < ii ios depois
9
Dogmatismo e tolerância
10
Prefácio 20 onos depois
foi. Por outro lado, não havia a fantástica proliferação dos grupos cha
mados “evangélicos”. A palavra “evangélico” foi cunhada pelos protes
tantes antigos para diferenciá-los dos “papistas”. Mas o fenômeno “evan
gélicos” de hoje nada tem a ver com o protestantismo. Eles constituem
uma nova religião, são uma nova versão do Cristianismo em que o
centro de interesse se deslocou do “outro mundo” (a salvação da alma)
e da “ética” (a justiça social) para a resolução dos problemas do cotidia
no individual. Feitos os atos de magia prescritos o Pássaro Engaiolado
canta e os milagres acontecem: o câncer é curado, o desempregado
arranja emprego, o casamento acontece, os negócios dão certo, o pobre
fica rico.
Sou um filho da tradição protestante. Não posso me livrar dela
nem quero. O que amo nessa tradição? A ousadia de pensar diferente,
de andar na direção contrária: é o que mais amo. Não consigo viver
sem dizer o que penso. Razão porque eu estou sempre me retirando
de grupos que cultivam ortodoxias, universidade, psicanálise, políti
ca, religião. Não consigo brincar de “boca de forno”. Depois, a retidão
ética tal como expressa nos escritos proféticos. A música de Bach: a
música de Bach me enche de beleza e alegria. Se eu pudesse substitui
ría o “No princípio era o Verbo” por “No princípio era a música de
Bach”... Albert Schweitzer. A. Graça: Deus não tem livros de “Débitos”
nem de “Créditos”.
A fato é que a história do Cristianismo está cheia de gaiolas. Quan
tos foram mortos pelo crime de pensar diferente! Desse crime tanto
católicos quanto protestantes são culpados. Os mortos foram aqueles
que ousaram pensar os seus próprios pensamentos. Pássaros solitá
rios, como os sabiás. Eu prefiro o canto solitário dos sabiás ao canto
gregário das maritacas, todas repetindo a mesma coisa...
Muitos amigos participam dessa tradição. São meus amigos, são
meus irmãos. Não concordamos com a letra. Concordamos com a
música... São pássaros que lutam contra as gaiolas, É para eles que
canto os meus cantos. E com ela que faço os meus voos.
11
Os pássaros e os urubus
13
Dogmatismo e tolerância
lix h»s c11<>t 11ícs de contabilidade que, segundo se dizia, seriam usados
nu a< ct tos futuros. E pôs fogo. A fogueira dos ditos livros está quei
ma i ido a l e I iojc c pode ser vista diariamente redonda e vermelha, atra-
\ mdo o firmamento. É o sol. “Ninguém tem crédito, ninguém tem
< Irbtlo": é isso que está escrito na entrada desse lugar, muito embora o
l.inioso poeta Dante Alliguieri tivesse dito equivocadamentequeo que
< l .1 va escrito era“Deixai toda esperança vós que entrais”. Pobre Dante!
I i.i míope, não via bem...
I )e lato, pra que livro de contabilidade onde se anotam débitos e
c t editos se criança não faz contabilidade? Criança esquece fácil. Per
doa. Perdoar é esquecer... Criança gosta é de brinquedo. Assim Deus
sonhou com uma brinquedoteca imensa e disse: “Haja brinquedos!”
E foi assim que o universo veio a existir. O universo é a brinquedoteca
de 1 )eus a se acreditar no místico Jacob Boehme.
O que Deus fez foi colocar um pedacinho dele mesmo (ou será
“dela mesma”?) em cada coisa que criou. Deus se pôs nas flores, no
ano íris, nas nuvens, nos regatos, nos peixes, nas árvores, nas frutas,
no vento, nos perfumes, nos insetos, nas estrelas, só um pedacinho.
Sabe aqueles vitrais maravilhosos das catedrais, feitos com milhares
de pedacinhos de vidro colorido? Nenhum pedacinho, isoladamente,
c bonito. Nenhum pedacinho, isoladamente, diz qualquer coisa. É
picc iso que todos os pedacinhos, todos diferentes uns dos outros, es
tejam juntos, nenhum é mais importante que o outro.
E 1 )eus criou os pássaros, deliciosos brinquedos de asas. Símbolos
d.i liberdade, eles voam. Símbolos da beleza, eles são de muitas cores
< 11hitios cantos. Símbolos da paz de espírito, eles não têm ansieda-
di“.. Jesus até disse que deveriamos ser como eles...
I lavia pássaros de todo jeito: “amarelos canarinhos, com sete co-
a*, saíras, pequeninas corruíras, escandalosos bem-te-vis, delica-
•li r. i olibris, pintassilgos e andorinhas, tico-ticos e rolinhas, pica-paus
t < anlc.iis, pássaros pretos e pardais, negros jacus e urubus...”
*»
lodo lindos. Lindos por serem diferentes. Nas cores e nos cantos,
*. ’.« ui iodos iguais seria um tédio! Todos amarelos? Todos verdes?
‘»r Io
Iodos I >i a 11< (>s?
I I
1 ■ I . issuros e os urubus
15
Dogmatismo e tolerância
I c-
Para início de conversa...
17
Dogmolismo e tolerância
Rubem Alves
1
“O vento sopra onde quer...”
Confissões de um protestante obstinado
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Dogmatismo e tolerância
Son |>i í»irsl.iiilc. Perderão o seu tempo aqueles que tentarem des-
< < »1 >i ii .r. i .i i/rs de minha fé em catecismos ou teólogos. O amor e a
doi ví'itt |»i imeiro... só muito mais tarde é que a gente pensa a fim de
ri m ndri <> solrido e o desejado. Tudo começa com canções de alegria
c 11 istr/a, muito antes de podermos chamar nossas idéias pelo nome.
I <■ | x a isso que a gente não pode deixar de ser o que foi. Mudar de
idci.i c milito fácil. Mas ninguém pode fazer de conta que alegrias e
llistezas nunca existiram... assim na religião. Salmos e poemas vêm
primeiro. Ides pertencem às origens, preservam aquele espanto pri
mordial diante do sagrado. Já os tratados de teologia e as explicações
doutrinárias são construções tardias, depois que passou o amor e a
dor se foi, depois que o espanto acabou e ficou o vazio...
Não foi no cérebro que me tornei protestante. Ao contrário, minha
fé é companheira de imagens, memórias, perfumes, músicas, solidões,
rei iros, caminhadas por montanhas e à beira-mar, rostos, sorrisos, acam
pamentos de trabalho em favelas, funerais, injustiças, esperanças en
terradas, algumas ressuscitadas, certezas de lealdade a toda prova... E
aqui eu teria de ir colocando nomes: presenças ausentes com quem
compartilho minha vida. É isso. O decisivo não é a idéia. O decisivo é a
pessoa que a gente invoca, não importa que já esteja morta...
I )izendo de outra forma: não sou protestante em virtude das idéias
que lenho. Não somos o que somos por termos as idéias que temos,
lemos as idéias que temos por sermos o que somos. Primeiro vem a
vid.i, depois vem o pensar...
E muito importante entender isso. Não é curioso que tanto os
i i h 111 isidores como são Francisco tenham se chamado “católicos”? Não
e i urioso que tanto as pessoas que caçaram e mataram bruxas em
Salem como Schweitzer e Martin Luther King tenham se denomina
do "protestantes”? Afinal de contas, que magia estranha é esta que faz
i oiii que uma mesma religião seja coisas tão opostas?
lEligiocs são como mesas de banquete: tudo está preparado e há des
de <»«. pratos rigorosamente destinados às dietas vegetarianas até as gor-
din .i-, i h.imuscadas nas brasas para aqueles que gostam de carne... E os
lirr. ,r a pi ox imam, cada qual com o seu pratinho, e escolhem... Veja, obser
1 '"rilo sopra onde quer..." Confissões de um protestante obstinado
i o isa mais ecumênica pode existir que a música? Para além de tudo o
<pie nos divide ela dá testemunho de que queremos cantar juntos,
i ¡miar que c bom viver... Se a teologia tivesse sido cantada é certo que
menos fogueiras teriam sido acesas... E descobri assim o protestantis
mo como este espírito cantante, que vive desde a cantata de Bach até
a cantoria dos que não sabem distinguir bemol de sustenido.
x-x-x-
Pode ser que ninguém acredite mas é fato: foi um padre que me
fez sentir-me protestante pela primeira vez.
Eu não pedi para ser protestante. Eram os meus pais que me levavam,
meio à força, para a escola dominical. Aí aconteceu um acidente. Num
grupo escolar, primeiro ano, lá no sul de Minas. Num belo dia, sem aviso
prévio, a professora entrou em classe acompanhada de um padre com
batina preta. “Quem é que vai para a confissão e a comunhão?”, pergun
tou ele com voz taquaral clerical. A meninada toda levantou a mão. Me
nos eu e o Estelino, que era espírita. Todo mundo olhou espantado para
a gente, enquanto o sangue subia ao rosto e os nossos olhos se enterra
vam no chão. Miseravelmente diferente, sem saber por que, enquanto os
outros cochichavam risos contra a minha singularidade. E o padre e a
sua batina foram crescendo, crescendo, sem parar, e o menino indefeso
foi sentindo a dor do estigma. Eu era diferente. Nunca me esqueci.
Mas aí aconteceu uma coisa gozada, que a psicanálise deve explicar.
A vergonha de ser diferente virou orgulho de ser diferente. Foi então
que eu, sem saber, me senti protestante pela primeira vez. De fato, o
protestantismo tem muito a ver com a coragem para assumir a própria
individualidade. Como aconteceu com um monge teimoso, que não
dobrava o pescoço por medo da espada, mas fazia o corpo inteiro an
dar e falar ao som suave da voz da consciência. Esse teimoso individua
lismo teve um gosto doce à minha boca, e nunca mais o abandonei.
De tão longe não é fácil entender o que significam os gestos do
monge teimoso. Com eles Lutero não estava criando algo novo, mas
simplesmente des-cobrindo um espírito protestante já em gestação.
Foi necessária muita coragem para contrapor a voz da consciência
individual à voz das autoridades constituídas. Fazendo isso ele declarava
23
Dogmatismo e tolerância
25
Dogmatismo e tolerância
27
Dogmatismo e tolerância
■í<
2
A ideologia protestante
29
Dogmatismo e tolerância
31
Dogmatismo e tolerância
bem, tantos minutos no forno etc. Uma receita não me fáz feliz ou
infeliz. Na realidade, eu sou totalmente ignorado por ela. Religiões
são receitas nas quais eu entro. E há uma coisa curiosa sobre as receitas
religiosas. Tudo faz crer que eu seja um dos ingredientes, mas na ver
dade eu sou o objetivo da receita.
Se a religião diz que o propósito da vida humana é glorificar a
Deus e gozá-lo para sempre, o sujeito religioso sabe que a verdade é
outra: o propósito da existência de Deus é salvar o homem e torná-lo
feliz para sempre. “Criamos Deus para salvar do nada o Universo... E
necessitamos de Deus para salvar a consciência..diz o católico es
panhol Miguel de Unamuno6.
Tome qualquer religião e você verá que a sua eficácia existencial e
social deriva do seu poder de fazer algo com o homem, dando-lhe for
ças (Durkheim), dando-lhe um sentido para viver e morrer. Quando
uma religião deixa de ter esse poder para fazer algo com o homem ela
fenece e morre. Em outras palavras: o discurso religioso é uma exten
são simbólica do corpo do crente. Esta é a razão por que, quando a sua
linguagem é ferida, é como se o seu corpo tivesse sido atacado.
A linguagem religiosa dá fome às coisas, organiza a experiência,
mapeia os caminhos, indica as zonas obrigatórias, as permitidas, as proi
bidas, diz o que deve ser feito e o que não pode ser feito. Cada religião é
uma organização arquitetônica do real, a morte do corpo natural do
homem e sua ressurreição sob uma nova forma. E será este corpo lin
güístico que irá dizer ao crente o que deve sentir, em que deverá encon
trar prazer, o que deverá fazer. Mais uma vez, a diferença entre o ho
mem e o animal. O animal está condenado ao seu corpo. O homem
pode trocar de corpos, como um animal que passa por metamorfoses.
Cada conversão é o abandono de um corpo que morreu e a adoção de
um corpo novo. E ele poderá habitar um mundo budista, comunista,
protestante, psicanalista, católico. Ou vice-versa. Não importa a ordem.
Não há princípio nem fim na peregrinação.
Contemplando estes muitos mundos de fora é como se víssemos
um floco de espuma de sabão, com as inúmeras bolhas coladas umas
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Dogmatismo e tolerância
ti.is outras. Cada bolha, um mundo. Mas o fiel não está, como o cien
tista social, olhando de fora. Ele está dentro de uma, e não mais que
uma, das inúmeras bolhas. E a bolha, que vista de fora é uma entre
muitas, de dentro aparece como universo único, infinito, fora do qual
só existem caos e dissolução.
“A folha na qual vive a lagarta é, para ela, um mundo, um espaço
infinito.”78
Dizer que há outros universos possíveis é dizer que a mais bela
flor não é a mais bela flor, que os deuses não são deuses. Por isso a
linguagem religiosa sente vertigens diante de qualquer tipo de plura
lismo e relativismo. Os pregadores de alternativas devem ser liquida
dos. Os deuses são ciumentos e intolerantes. Pelo menos, é só assim
que os conhecemos. Um deus é a mais bela flor que produzimos,
“o desvelar de nossos tesouros ocidtos, a revelação dos nossos pen
samentos mais íntimos, a confissão de nossos segredos de amor\
Se é assim, por que tolerar? Por que, pergunta Kolakowski, “have
ría uma pessoa convencida inflexivelmente da verdade exclusiva dos
seus conceitos relativos a qualquer e a todas as questões estar pronta
a tolerar idéias opostas”?9
Como seria intolerável para a lagarta ouvir que sua folha é efêmera
e diminuta, e que, fora dela, há espaços infinitos e bilhões e bilhões de
sóis!...
Protestantismo? Protestantismos? Bolha? Bolhas?
Não se impressionem com o efêmero da bolha, mas com a sua
magia. Antes de ser efêmera ela é mágica. Que poderes incompreen
síveis sustentam película tão fina de sabão, esférica, fechada, flutuan
te, perfeita?
De que poderes mágicos é dotada a linguagem que junta as pes
soas num mundo esférico, útero e túmulo, o mundo da religião?
34
ideologia protestante
I 1111 n imciro lugar, as peças: peões, torres, cavalos, bispos, rainha, rei.
Mi >vintentos diferentes, usos diferentes. O jogador não pode inventar.
|< >ga i' c escolher uma peça, dentre as que lhe são dadas, e fazer um
móvilncnto, conforme uma regra. Aceitar a regra é o pré-requisito
para jogar. Aqui não é o lugar de inventores, mas de jogadores, fun-
i lunarios de um jogo que os possui.
Quais as peças do xadrez protestante?
Basta ouvir. Ouvir o povo. Não os teólogos. Os teólogos, via de
regra, enunciam uma verdade que o povo não reconhece. Em nome
das origens e da etimologia dizem que o jogo deve ser jogado assim
porque assim foi jogado em seus momentos fundadores. Mas no jogo
da linguagem a etimologia é impotente, quando não é ridícula.
“Palavras têm aqueles sentidos que lhes demos.”
“Não nos esqueçamos de que uma palavra não tem um sentido que lhe
é dado, como sefosse, por um poder independente de nós, deforma que
poderia haver uma investigação científica daquilo que a palavra real
mente significa. Uma palavra tem o sentido que alguém lhe deu.”10
Que palavras os protestantes usam? Deus, céu, inferno, salvação,
Jesus Cristo, conversão, santificação, tentação, o crente, o mundo,
pecado, confissão, oração — aqui estão algumas delas. E quando elas
sao usadas um universo se constitui.
lí este universo, assim constituído, que forma o mundo protestan
te. lile é sagrado. Tem de ser preservado. Os neófitos passam pela cui
dadosa preparação que os habilita ao jogo lingüístico — talvez tenha
sido numa situação semelhante a essa que Hesse derivou a sua idéia
do “jogo das contas de vidro”... Os já iniciados cuidam de não come
ter equívocos. Mas, mesmo quando os equívocos ocorrem, há joga
das compensatórias: a confissão e o arrependimento anulam o pecado.
Aqui, é como se a jogada errada nunca tivesse sido feita... Mas ai do
inovador, que deseja mudar as regras, seja em nome do passado ou
do Iuturo. Destruidor de mundos, deve ser expulso da comunidade
que vive pela magia do jogo das contas de vidro...
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Dogmatismo e tolerância
dl
Dogmatismo e tolerância
4_
A ideologia protestante
periências que posso ter, os objetos que posso ver. No mundo asscp
tico da ciência não se pode ver nem milagres nem fantasmas. Mas no
mundo definido pelo discurso mágico milagres e fantasmas têm tan
ta realidade quanto montanhas e sóis.
Aquilo que não é previsto pela palavra permanece numa zona de
obscuridade: a linguagem cega. Não é por acidente que é assim.
Nenhuma linguagem pode assimilar conceitos estranhos a si mes
ma sem com isso condenar-se à destruição. Conceitos estranhos são
germes invasores, daí a necessidade de inquisições, os antibióticos
político-sociais. Os hereges têm de ser queimados.
Não nos esqueçamos, entretanto, de que a palavra herege, bem como
a palavra ortodoxo, são palavras usadas por alguém... evidente que os
hereges não se definiram como hereges. Heresia é uma palavra que é
pronunciada pelos ortodoxos. Aqueles que têm o poder para se definir
como ortodoxos e para definir outros como hereges são, evidentemen
te, aqueles que são mais fortes: os que podem prender, amedrontar,
expulsar. Em outras palavras, aqueles que têm o poder para usar o
mundo constituído pela linguagem como instrumento de poder.
Não tenho um discurso alternativo para oferecer. “A linguagem
comum está bem”, diria Wittgenstein. Ainda que eu tivesse outra, o
oferecimento seria inútil. Não se oferecem pedras de dama para quem
joga xadrez.
Somente me perguntaria acerca do destino da serpente que não
pode perder a pele, a que se referiu Nietzsche...
Somente me perguntaria acerca do empobrecimento que se dá
sempre que trocamos o inesperado pelo já controlado, como o indi
cou Goldstein...
Somente me perguntaria sobre o dogmatismo implícito e suas re
lações com o amor e a tolerância...
Somente me perguntaria sobre o destino da terra e do mundo,
esta terra tão boa e tão amiga, sacramento de Deus, se ela for apenas
caminho por onde se passa... Já se pergunta sobre a relação entre as
atitudes ascéticas do calvinismo diante do mundo e a crise ecológica
que enfrentamos...
43
Dogmatismo e tolerancia
45
Dogmatismo e tolerância
< nu uh hcle <l.i tribo. A confissão ortodoxa é, assim, uma forma circu-
l.it de se lazer uma confissão política acerca da Igreja.
(Jtnii /o ponlo: isso nos leva à conclusão de que, em todos os mo
inei ilos de nossa atividade teológica, a eclesiologia está em jogo. Seria
interessante parar para ver que a Reforma se deu, fundamentalmen-
le, por razões eclesiológicas, já que as duas Igrejas estavam de acordo
sobre os dogmas cristológicos e trinitários.
A partir disso atrevo-me a dizer que, teologicamente, a coisa mais
importante que aconteceu tanto para católicos como para protestan
tes, nos últimos anos, foi o aparecimento das comunidades eclesiais
de base, na medida em que elas se constituem numa nova realidade
empírica que nos obriga a pensar sobre esse sujeito que enuncia o
discurso ortodoxo. Em outras palavras: quer queiramos, quer não,
levanta-se, na surdina, a pergunta, heresia das heresias:
QUEM É A IGREJA?
ONDE ESTÁ A IGREJA?
QUEM FALA PELA IGREJA?
Não vamos nos apressar. Caminharemos passo a passo. Yves
Congar, no seu artigo sobre “os grupos informais na Igreja”, toma
como seu ponto de partida uma pergunta:
“De que se trata?
A diversidade das palavras obriga-nos a perguntar-nos se estamos
diante de um dado homogêneo. Fala-se de grupos informais, de base,
espontâneos, marginais, naturais, mas também de pequenas comu
nidades de base e, mesmo, de igrejas livres (Rosemary Ruether), de
igreja subterrânea, de segunda igreja ou igreja paralela.
George Casalis falou mesmo de comunidades flutuantes, como o
marco e o dólar.
Temos, assim, três ou quatro substantivos e pelo menos doze adjetivos"'.
Ficamos, de saída, desanimados. Tantos substantivos e adjetivos
sugerem tantas pesquisas e muita demora até podermos dizer algo.
-i-.
Instituição e comunidade
v
Dogmatismo e tolerancia
49
Dogmatismo e tolerancia
1. Instituição e vida
Todas as instituições tendem a perpetuar-se sem modificações. Essa
é a razão por que, mais cedo ou mais tarde, todas elas acabam por
colidir com a vida. Porque a vida é fluida, e apresenta-nos sempre
problemas novos e surpreendentes, não pensados com antecedência.
Nada garante que os problemas futuros sejam idênticos aos proble
mas passados. Acontece que as instituições, como cristalizações de
soluções passadas, contêm, implícita nelas mesmas, a afirmação de que
problemas futuros se resolvem com soluções passadas.
Encontramos aqui as razões para o equilíbrio sempre precário entre
instituições e suas bases humanas, e para os mecanismos repressivos
de tudo o que represente novas maneiras de pensar e de comportar.
De um lado, a instituição faz uso de seus mecanismos para impor sua
interpretação da realidade e os comportamentos correspondentes. Do
outro lado, as pessoas, sentindo um mundo diferente e os problemas
novos que resistem às programações institucionais, são obrigadas a
se desviar das instituições. As instituições, que num momento origi
nário foram criadas como expressão e instrumento de pessoas, pas
sam a ser vividas como obstáculo e repressão.
É da psicanálise que retiramos a categoria repressão. Para a psica
nálise, a essência da sociedade é a repressão do indivíduo e a essência
do indivíduo é a repressão de si mesmo. Cabe-nos perguntar das razões
que fazem com que o homem aceite voluntariamente a repressão.
Parece que a aceitação da repressão tem a ver com uma contabilidade
pragmática do ego, que faz uma discriminação entre vantagens c des
vantagens. Ninguém aceitaria voluntariamente a repressão se ela nao
trouxesse certas vantagens laterais. O fato é que a liberdade tem, l’re-
51
Dogmatismo e tolerância
•■-I
Iiv.lituiçõo e comunidade
4. Protestantismo e comunidade
Em termos muito práticos, e agora em relação apenas a nós que,
de uma forma ou de outra, nos localizamos dentro do círculo de sím-
55
Dogmatismo e tolerancia
ludí»-, hit nial i vos do protestantismo, creio que podemos concluir, com
I’.iiiI I illii li, que talvez estejamos vivendo na hora de “decidir pelo
pi un tpio protestante, em oposição ao protestantismo histórico”. Na
11 tc< líela uní que os sucessivos endurecimentos históricos do protes
tantismo se constituem na antítese do principio protestante (ou seja,
.i v ipi la n le oposição a todas as formas de absoluto, seja conhecimento
.il )soli i lo, seja a instituição absoluta, seja o poder político absoluto), é
mu cssário romper com as suas formas históricas, a fim de preservar
o sen espirito.
57
Dogmatismo e tolerância
7. Reforma e ruptura
Referimo-nos atrás às-duas formas de dialética instituição-comu-
nidade: reforma e ruptura.
A dialética da reforma é uma dialética de complementaridade, que
pressupõe que as necessidades da comunidade serão capazes de refa
zer e revitalizar a instituição, provocando uma nova síntese. Na dialé
tica de ruptura, entretanto, não mais se crê nessa possibilidade. A es
perança da revitalização das estruturas vigentes é abandonada.
Afirma-se, ao contrário, a necessidade da criação de novas estruturas
expressivas da comunidade.
Essas duas dialéticas não surgem por acidente. A dialética da re
forma se dá enquanto as pressões da comunidade não atingem o li
mite da elasticidade das instituições. Uma vez atingido esse limite, a
ruptura se torna inevitável, não por escolha da comunidade, mas em
decorrência dos limites da instituição.
Ê curioso notar que a Igreja católica, que se define formalmente
como uma estrutura hierárquica, monárquica, com pretensões de in
falibilidade, tenha se mostrado muito mais elástica que as Igrejas pro
testantes, que formalmente se definem como democráticas, abertas e
defensoras do livre exame. Quem examinar os últimos quinze anos da
vida de algumas das mais significativas denominações protestantes,
descobrirá uma série de expurgos, característicos da dialética de ruptu
ra — indicações de que a instituição havia atingido o limite da sua
elasticidade. Por outro lado, a Igreja católica, que experimentou um
despertar de comunidades semelhante ao experimentado pelas Igrejas
protestantes, não foi levada a tal ponto, fiéis de idéias diametralmente
opostas continuam a trabalhar na mesma instituição c a participar da
mesma eucaristia. Como explicar tal fato?
59
Dogmatismo e tolerância
61
Dogmatismo e tolerância
1. Introdução
/^omo definir e caracterizar o protestantismo de nossos dias? Se
K_Jpara explicar o presente nos bastasse olhar para o passado, po
deriamos responder à pergunta apontando para as origens históricas
do protestantismo: movimento de reforma religiosa, surgido no sé-
culo XVI, sob a liderança de homens corno Lutero, Calvino, Zwinglio,
Knox, Münzer e outros. Entretanto, isso pouco nos ajudaria a com
preender o protestantismo hoje. Mais de quatro séculos já se passa
ram desde que Lutero afixou, à porta da Igreja de Todos os Santos,
Wittenberg, as suas 95 Teses. Durante este período o movimento se
diversificou enormemente. Na verdade, desde o seu inicio o protes
tantismo teve várias faces. Longe de ser um todo unificado, foi ele
mais um conjunto de diferentes processos de institucionalização, de
teologías que muitas vezes se chocavam, de aspirações espirituais con
traditórias. Freqüentemente as discordâncias se transformaram cm
amargos e mesmo sangrentos conflitos.
Decorridos mais de quatrocentos e cinqücnla anos de história, o
panorama se complicou ainda mais. As faces se multiplicaram. Não é
difícil definir, ainda que precariamente, a Igreja católica. Os católicos
sabem que o que os une não é nem uma uniformidade de idéias nem
uma uniformidade de ritos.
ó3
Dogmatismo e tolerância
i
As muitas faces do protestantismo
65
Dogmatismo e tolerância
2. O movimento missionário
Talvez a mais ambiciosa empreitada a que o protestantismo se te
nha lançado tenha sido o movimento missionário que se iniciou no
século XIX e penetrou século XX adentro.
Quando Portugal e Espanha se lançaram à conquista dos mundos
de além-mar, no século XV, a Igreja católica se viu, de repente, frente
a frente com milhões de pagaos que nunca haviam sido batizados.
Seguiu-se, então, ao lado da expansão bélico-colonial de então, a ex
pansão da fé católica entre os povos de todas as terras descobertas e
conquistadas. O século XIX foi para o protestantismo o que foi o
século XV para a Igreja católica. Os países protestantes da Europa,
ricos, em plena revolução industrial, começaram a penetrar na Ásia,
na África, na América Latina. É lógico que a expansão colonial não se
fez por nenhum motivo altruista. Freqüentementc, entretanto, as prá
ticas mais materialistas caminham lado a lado com intenções espiri
tuais e altruístas! À medida que os europeus e americanos penetra
vam nos novos territorios, surgia o desejo de que aqueles povos rece
bessem não só os frutos do comércio e da técnica que lhes eram trazi
dos, mas que também aprendessem das realidades espirituais que se
encontravam por detrás do seu progresso e do seu bem-estar! Sim,
porque os protestantes sempre viram na sua religião a razão de ser do
seu progresso econômico. Riqueza é uma bênção com que Deus
galardoa a virtude. Por isso, não podiam furtar-se à tentação de
comparar-se com a condição econômica dos países católicos. Se Max
Weber está correto na análise que fez do problema, parece haver ra
zões para que o protestantismo, historicamente, tenha estado sempre
ligado às formas mais agressivas do capitalismo. Assim, duas coisas
deveríam ir juntas: o comércio e a técnica, bênçãos de Deus, e a pre
gação do Evangelho, o segredo dessa bênção. Expansão colonial e ex
pansão missionária ocorrem, assim, concomitantemente. Por outro
As muilas faces do protestantismo
67
Dogmatismo e tolerância
JI
As muitas faces do protestantismo
69
Dogmatismo e tolerância
11
que sejam harniónicas <0111 sua ex pericia ia <. iilliiral, li a pergmila <pic
muitos estão levantando é se não terá chegado a hora de silêncio para
aqueles que um dia detiveram o monopólio das missões, a hora de ou
vir aquilo que as vozes das Igrejas novas têm a dizer.
3. O fundamentalismo
Desde o seu início o protestantismo sentiu uma grande tendência a
uma definição cerebral do que significa ser cristão. Há razões históri
cas para explicar isso. Nas polêmicas que se seguiram à Reforma, a Igreja
católica sempre dizia: “Somos a verdadeira Igreja porque é possível tra
çar uma linha ininterrupta, historicamente contínua, que vai desde os
nosso dias até a Igreja apostólica. O protestantismo, entretanto, é uma
coisa nova, algo que surgiu num acidente histórico, e que não pode,
portanto, pretender ser possuidor da tradição evangélica”. Para
contra-atacar, os protestantes retrucaram: “A marca da verdadeira Igreja
não se encontra na sua continuidade histórica. O que importa é se ela,
no presente, confessa a sua fé em conformidade com a Escritura”.
O protestantismo tendeu, em conseqüência, a produzir um gran
de número de confissões, todas elas com o objetivo de expressar com
maior clareza e precisão a essência da fé bíblica. A preocupação com a
confissão correta chegou a se tornar obsessiva, produzindo um pe
ríodo que veio a se denominar “ortodoxia protestante”. A fé chegou
mesmo a se identificar com a adesão intelectual a um certo número
de proposições dogmáticas que, pretendia-se, expressavam o “siste
ma de doutrinas” contidas na Bíblia, e que eram necessárias para a
salvação. A esterilidade chegou a tal ponto que um movimento de
reação eclodiu, enfatizando exatamente o outro pólo: o importante
não são as idéias que uma pessoa possa ter cm sua cabeça, mas antes
a experiência pessoal, emocional, de encontro com Jesus Cristo —
experiência tão intensa e sublime que nunca pode ser reduzida a uma
proposição. Foi o pietismo. Na história do protestantismo vemos um
pêndulo oscilando entre estes dois extremos, continuamente, pare
cendo indicar que a relação entre as idéias e as emoções ainda não foi
resolvida entre os continuadores da Reforma.
71
Dogmatismo e tolerância
•3
Dogmatismo e tolerância
i
As muitas faces do protestantismo
75
Dogmatismo e tolerância
I i i i.ili ik'i tic engolida pelo sistema social. A mesma linha crítica foi
< \plot.ul.i nos listados Unidos, especialmente na década de 1930, por
Rrinhokl Niebuhr, numa combinação de análise social e de urna teo-
h >gi.i inspirada nos profetas e no pensamento de Agostinho. E é esse
iipo de preocupação que irá encontrar uma cristalização institucio
nal no Conselho Mundial de Igrejas, no seu esforço para levar os cris
tãos a se organizar na luía por uma sociedade participatória, justa e
ecologicamente viável.
Pensadores, entretanto, são pálidas caricaturas da vida. É neces
sário pensar em mártires. Um dos capítulos mais tristes e mais he
roicos do protestantismo do século XX talvez tenha sido o que ocor
reu com a Igreja sob Hitler. É muito fácil para um grupo religioso
capitular ante os poderes do Estado. Especialmente quando existe
uma longa tradição de separação de poderes que reserva a esfera
política para os governantes e segrega a Igreja a uma região espiri
tual e interior. Por vários séculos a Igreja luterana afirmava a dou
trina dos dois Reinos: o Reino da Lei, secular, arreligioso, com po
deres para gerir as questões deste mundo, e o Reino da Graça, pes
soal e íntimo, definido pela Igreja, a comunidade dos fiéis, pela pre
gação da palavra, pelos sacramentos.
Quando Hitler subiu ao poder e a ideologia nazista varreu a Ale
manha como urna nova religião, pareceu natural a muitos líderes
da Igreja que isso estava bem. Não era tarefa da Igreja opor-se ao
listado. Essa área não lhe pertencia. Formaram-se grupos de “cris
tãos alemães” que buscavam equacionar sua religião com a nova fé
nacionalista. Parecia-lhes fundamental, até, purificar a Bíblia das
suas influências judaicas. Como todos se recordam, o judeu, sob o
nazismo, se constituiu no símbolo do mal, e portanto na raça que,
para o bem do Estado e da Fé, deveria ser destruída. Organizou-se,
sob o patrocínio do Estado, a Igreja evangélica alemã, que deveria
< ultivar uma vida espiritual harmônica com a ordem estabelecida.
() I )r. August Jãger, nomeado por Hitler para cuidar das questões
i el.it ivas à Igreja, declarou: “Desde que o Estado, no interesse de si
mesmo, da nação e da Igreja, não pode tolerar oposição de qual-
qnri tipo, qualquer esforço para resistir será considerado traição.
As muitas faces do protestantismo
id Não se pode negar o fato: Martín Luther King Jr. foi um dos gran
de’, lideres carismáticos que contribuíram para isso. A fé trans
limiten se num desejo imenso de transfigurar o mundo, de forma
que l)t ancos c negros pudessem viver como irmãos. Como sabemos,
ele loi assassinado. Para os cristãos, isso não foi uma surpresa. Sem
pre que a fé é levada a sério e sempre que ela interfere no equilíbrio
dos negócios humanos, há uma cruz num fim de caminho.
5. O pentecostal ismo
Das múltiplas faces do protestantismo, sem dúvida alguma o mo
vimento pentecostal é a que mais tem fascinado líderes religiosos,
teólogos, sociólogos e líderes políticos. Grupos que crescem vertigi
nosamente, onde o protestantismo tradicional apenas cresce vege
tativamente ou mesmo decresce. Por quê? Qual o segredo da sua
dinâmica?
Seu nome vem do relato do livro dos Atos dos Apóstolos quando,
no dia de Pentecostés, os discípulos de Cristo foram repentinamente
cheios do Espírito Santo, e começaram a falar em línguas estranhas.
Numa análise da literatura pentecostal, poder-se-ia ter a impressão
de se assemelharem muito aos fundamentalistas. Na verdade, no que
se refere à expressão verbal da fé, não estão muito distantes. Entre
tanto, um grande abismo os separa. E isso porque para o pentecostal
o que importa não é uma verdade enunciada na forma de um dogma,
mas antes a experiência extática, de ser arrebatado pelo Espírito —
experiência inefável, que não pode ser descrita por meio da lingua
gem dos homens.
Por que crescem? Não nos compete analisar o fenômeno. Deseja
mos apenas constatá-lo. Formam-se pequenas comunidades. Na sua
maioria são constituídas por pessoas da baixa classe média, operários
urbanos e rurais. Não contam com um corpo clerical treinado. Seus
líderes, freqüentemente, emergem naturalmente das próprias comu
nidades. Muitos ganham o seu sustento em profissões seculares. Pos
suem um grande senso de fraternidade, de missão, de responsabili
dade. Via de regra, são dizimistas: dão para a comunidade 10% de
As muitas faces do protestantismo
6. O protestantismo e a secularização
Nos séculos que se seguiram à Reforma, a historiografia católica
foi unânime em responsabilizar o protestantismo pela desintegração
da síntese medieval e pela conseqüente secularização da vida que se
seguiu. Não há dúvidas de que a cosmovisão medieval era bela, integra
da, sinfônica. O universo era um templo em que homens, anjos e
demônios se misturavam, orbitando em torno de um centro racional
luminoso, Deus. Cada evento era um símbolo do invisível. Eventos
eram milagres. Sempre que se perguntava acerca da causa última de
tudo o que ocorre, a Igreja apontava para cima e os seus olhos se
voltavam para o sagrado. Para o espírito católico, razão e revelação
formavam uma unidade em que a revelação era sempre o fundamen
to da razão. “Creio para entender”, afirmava Anselmo. Assim, para
compreender o que realmente ocorre no universo, a razão humana
deveria se submeter à revelação, o cientista deveria se curvar anle a
sabedoria do magistério eclesiástico. Talvez o exemplo mais vivido
dessa visão de mundo se encontre no conflito entre as conclusões
científicas de Galileu, de um lado, e a teologia da Igreja, de oulro. lí
Galileu teve de se submeter.
v
Dogmatismo e tolerancia
MO
As muitas faces do protestantismo
81
Dogmatismo e tolerância
7. O futuro
Foi publicado, tempos atrás, nos Estados Unidos, um livro cujo
título levanta a seguinte questão: Por que estão crescendo as Igrejas
conservadoras? Pergunta curiosa porque, dada a atmosfera crítica e
inquisitiva do século XX, tudo parecería indicar que os grupos mais
abertos, e não os mais fechados, deveriam estar crescendo. Mas tal
não se dá. Os grupos conservadores, seja do tipo fundamentalista,
seja do tipo pentecostal, crescem. Mas aqueles que tentam exprimir
uma preocupação crítica e profética estão enfrentando sérias crises.
Decresce o número dos seus membros. Decrescem também, de for
ma substancial, as contribuições financeiras de que dependiam esses
grupos para sobreviver.
O que se encontra por detrás disso? É muito difícil responder com
precisão. Parece, entretanto, que essa crise não é o resultado de um
decréscimo no interesse religioso. Como já observamos atrás, a ânsia
por experiências religiosas do nosso momento histórico é sem prece
dentes. Como explicar então o fenómeno?
Os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial se caracteriza
ram por uma crescente tomada de consciência dos problemas que afli
gem o nosso mundo. Consciência dolorosa que se combinava com um
grande otimismo acerca de nossas possibilidades de construir um mun
do novo. As esperanças, entretanto, não se realizaram. As frustrações se
seguiram. Chegou um momento em que os homens se cansaram de
lutar. Numa situação como essa é muito doloroso ter consciência críti
ca do que está ocorrendo. De um ponto de vista emocional, ignorar é
muito mais funcional que conhecer. Ora, o protestantismo profético
(inha como um dos seus objetivos tornar os homens cada vez mais
conscientes da situação trágica do nosso mundo. Ele se tornou, por
isso mesmo, incômodo e disfuncional. A consciência frustrada e impo
tente preferirá sempre ilusões, ou quaisquer fórmulas intelectuais que
'■>. muitas faces do protestantismo
8. Conclusão
Aí estão algumas das muitas faces do protestantismo. Há muitas
outras. Recordo as palavras do intelectual católico: “Vós, protestan
tes, dizeis que nós pagamos um preço muito alto pela nossa unidade.
Nós, católicos, vos dizemos: pagais um preço muito alto pela vossa
liberdade”. É difícil dizer o que significa a tão proclamada liberdade
protestante. Parece certo, entretanto, que ela está ligada ao fenômeno
da multiplicação sectária. E o curioso é que esse processo de multi
plicação implica, por um lado, fragmentações sucessivas e, por outro,
fechamentos também sucessivos das seitas assim geradas. Em outras
palavras, a pluralidade e o conflito, que poderíam ser fontes de uma
nova vitalidade interna, se resolvem por meio de mecanismos que as
eliminam, a fim de manter a unidade dos pequenos grupos. Pergun-
tamo-nos se isso não implica, necessariamente, um declínio da vitali
dade. Estarão as Igrejas protestantes condenadas a uma senilidade
precoce? Parece-nos que, a menos que o protestantismo seja capaz de
ultrapassar o provincianismo e o exclusivismo que marcam as suas
muitas faces, ele será incapaz de encontrar as energias c as visões que
o farão caminhar para o futuro.
5
Do lado de Irás das máscaras
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Dogmatismo e tolerância
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Do lado de tras das máscaras
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Dogmatismo e tolerancia
I'hi i l.i ic.ihtl.ulc” (leí) deve ser subvertido pelo “princípio do prazer”
i gi.!(,.!). ( Aliforme Karl Holl sugeriu, existe uma notável semelhança
i niic o lioineni livre da lei de Lutero e o Übermensch de Nietzsche:
,i ti titos quebram as tábuas da lei e entram no mundo apenas com a
mi.i liberdade4.
dí. Karl HOLL, The Cultural Significance of the Reformation, 1962, 137.
S. (1. I; W. HEGEL, The Philosophy of History, 1956,412-13.
Do lado de trás das máscaras
são absoluta por parte de uma realidade relativa, mesmo que esta pre
tensão esteja ligada a uma Igreja protestante. O principio protestante
é o juiz de toda realidade cultural e religiosa, inclusive da religião e da
cultura que se chamam protestantes”6. O principio protestante, con
tinua ele, é “o guardião contra as tentativas daquilo que é finito e
condicionado de usurpar o lugar do incondicional no pensar e no
agir. Trata-se do julgamento profético contra o orgulho religioso, a
arrogância eclesiástica, a auto-suficiência secular e suas conseqüén-
cias destrutivas”7. O espirito protestante, assim, implicaria uma ati
tude de permanente vigilância contra os ídolos seculares e sagrados,
uma recusa de ajustar-se ao status quo, uma rebelião iconoclasta que
nega obediência a qualquer ordem estabelecida. Mas por quê? Por
compreender que a situação humana é basicamente distorcida. Essa
distorção básica, essencial, irresolvível, que o símbolo do “pecado ori
ginal”8 preservou, significa que não existe situação alguma diante da
qual a consciência possa descansar tranqüila, pronunciando o seu sim
de aprovação. Consciência é negação. Se a alienação de Deus é o de
nominador comum a todas as construções humanas — instituições,
culturas, nações, civilizações —, a única palavra que o homem pode
pronunciar é a palavra do protesto profético.
Que o protestantismo tenha sido, no seu momento carismático,
fundador, original, a explosão de um grito reprimido de liberdade,
parece-me um fato que não pode ser negado. O problema é se no
seu desenvolvimento histórico o protestantismo preservou a sua
visão inicial.
A ideologia protestante responde de forma afirmativa. E o faz apon
tando para as conexões do protestantismo com a democracia e a mo
dernidade. A obra de Karl Holl, O significado cultural da reforma, cons
titui um dos maiores esforços para consubstanciar tal tese. Seja na
esfera da religião e da vida secular, seja pelos seus efeitos sobre a po
lítica e a vida econômica, seja pela sua contribuição na educação, na
oi)
Do lado de trás das máscaras
18. Id., The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, 1958, 182.
Dogmatismo e tolerância
i ni. /'.7(is despersonalizam o homem, não por exigir, mas por ofere-
(cr... aquilo que faz a criatividade individual supérflua”19.
A liberdade não é violentada abertamente pela força. É conquista
da de forma científica e duradoura por outros métodos. O resultado
eomcsmo. v
Onde se situa o protestantismo?
léí indicamos que, para Tillich, o “principio protestante”, isto é, a
visão que pode ser encontrada nos momentos fundadores do protes
tantismo, implica um protesto profético contra esta ordem de coisas.
Entretanto, ele conclui que a historia do protestantismo tem sido urna
permanente traição ao “principio protestante”. “O protestantismo
histórico... não foi capaz de evitar a ideologização do seu próprio prin
cípio.” A ideologia do luteranísimo serviu aos interesses da ordem pa
triarcal, com a qual a ortodoxia luterana estava associada, enquanto
“a religião idealista do protestantismo humanista serviu aos interes
ses de uma burguesia vitoriosa”20.
O fracasso do protestantismo se revela hoje, segundo Tillich, na
sua incapacidade de se articular com aquilo que ele chama de “a si
tuação proletária”:
“A partir de muitos pontos de vista parecería que o protestantismo
e a situação proletária nada têm a ver um com o outro. Os fatos
confirmam essa opinião de forma quase indisputável. Considerem,
por exemplo, a intensa luta de quase cem anos entre os porta-vozes
do protestantismo e aqueles que fizeram da situação proletária a
base do seu pensamento; a conexão sociológica das Igrejas protes
tantes na Europa Central com a petite bourgeoisie e o feudalismo,
e na Europa Ocidental e na América com a esfera dos grandes ne
gócios e os empresários bem-sucedidos; a oposição íntima entre as
massas proletárias ao tipo de vida e idéias característicos do protes
tantismo; a aliança política dos partidos proletários com o partido
católico e a oposição dos partidos apoiados por círculos protestan
tes aos representantes políticos das classes operárias. A situação pro-
19. Paul Tillich, “The Person in a Technical Society”, in: John Hutchison,
I ( hrisíitm Eaith and Social Action, 1953,150.
?(). IO., The ProtcstantEra, 1962,169.
Do lado de trás das máscaras
97
Dogmatismo e tolerância
103
Dogmatismo e tolerancia
l;. > porque ele se iniciou bem antes das mudanças políticas no país,
|i isla mente num período em que existia urna atmosfera de grande liber
dade de debate. Sou forçado a me perguntar: que é que já havia no pro-
(cslanlismo que pode ser invocado como explicação do ocorrido? Que
mecanismos conservadores estavam ali presentes, silenciosos, encolhi
dos como urna mola, à espera da situação que lhes permitisse saltar e se
exprimir, sob a cobertura dissimuladora de uma ideologia liberal e plu
ralista? Tudo indicava que a Igreja católica deveria ter tido um comporta
mento mais conservador que as protestantes.
Por outro lado, os eventos de 1964 se constituíram num poderoso
reforço, aposteriori, aos processos já em operação no protestantismo.
Freqüentemente se fez uso da suspeita de “esquerdismo”, de “subver
são”, de “comunismo” como arma institucional interna para liquidar
os desviantes. Como explicar esse reforço? Uma resposta já foi suge
rida por Max Weber: há profundas afinidades entre o espírito protes
tante e o espírito do capitalismo. Se isso é verdade, então a harmonia
entre o protestantismo e o novo estado econômico de coisas se expli
ca. Mas, sendo o protestantismo uma ideologia democrática e liberal,
como explicar a sua aceitação de um Estado totalitário?
Sei que o atalho mais curto para a explicação é o recurso aos fatos
econômicos. Se eu dissesse que os protestantes se comportam da for
ma como se comportam porque têm seus bolsos cheios de dinheiro
haveria uma tendência para se dar um crédito de confiança à minha
hipótese. Razões econômicas e classes sociais gozam hoje de uma ver
dadeira magia explicativa. Pessoas ricas e pertencentes às classe pro
prietárias devem apoiar um Estado totalitário, mas capitalista.
É lógico que, ao assim fazer, reduzimos a ideologia à mera condi
ção de desodorante de uma certa classe social: possui um alto poder
dissimulador sem nada nos dizer das razões por que a referida classe
I ranspira da forma como o faz.
I >csviando-me dos atalhos batidos, sinto um enorme fascínio pe
las explicações não-ortodoxas. Na verdade, as ortodoxias, tanto reli
giosas como científicas, me causam arrepios. As ortodoxias fazem com
que as pessoas se comportem como carneiros: “Nenhum pastor e um
loa
I neón Iros e desencontros do protestantismo e do cotolicismo
2. Êmile DURKHEIM, The Elementary Forms of the Religious Lifc, 1969, -170.
3. Alvin GOULDNER, The Coming Crisis of Western Sociology, Nova loiqtK'.
Avon Books, 1970,5.
Dogmatismo e tolerância
l<)
Dogmatismo e tolerância
111
Dogmatismo e tolerância
I 12
Certeza e inquisição
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I M
' <>rteza e inquisição
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I 16
orteza e inquisição
1 17
8
O protestantismo latino-americano:
sua função ideológica e suas
possibilidades utópicas (1970)
1. Acerca das origens biológicas das estruturas intelectuais ver Jcan PIAGET,
Biologie et Connaissance, 1967, e John 1)EWEY, Heconslriiclion iii Pliilosophy, 1962,
especialmente o cap. IV,“Changed Conceptions of Experiente and Reason”. Acer
ca das estruturas como construções ou produtos da atividade humana ver BER-
GER, Luckmann, The Social Constrnclion of Realily, 1967, e Jean Piaget, El
Estructuralismo, Proteo, 1968.
1 19
Dogmatismo e tolerância
I 20
protestantismo latinoamericano: sua função ideológica e suas possibilidades utópicas (1970)
122
O protestantismo latino-americano: sua função ideológica e suas possibilidades utópicas (1970)
1. As possibilidades do protestantismo
No período anterior ao Concilio Vaticano II, católicos e protes
tantes concordavam sobre poucas coisas. Uma delas era a sua inter
pretação da Reforma como um movimento que contribuiu para a
desintegração da síntese medieval. É lógico que as avaliações deste
fato se opunham. Enquanto os protestantes o louvavam, os católicos
o amaldiçoavam. Hegel podia incluir a Reforma em sua Filosofia da
história7 como um novo avanço do espírito, agora consciente de que
“o homem, em sua própria natureza, está destinado a ser livre”. Já
I ’i
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protestantismo latino-americano: sua função ideológica e suas possibilidades utópicas (1970)
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O protestantismo latino-americano: sua função ideológica e suas possibilidades utópicas (1970)
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) protestantismo latino-americano: sua função ideológica e suas possibilidades utópicas {1970)
132
> protestantismo latino-americano: sua função ideológica e suas possibilidades utópicas (1970)
3. Um novo protestantismo?
Há evidências, entretanto, de que a crise latino-americana está leva i)
do alguns a reinterpretar os símbolos da sua fé mais na direção utópii .1
1 ■
Dogmatismo e tolerância
134
9
Há algum futuro para o protestantismo
na América Latina? (1970)
1. Paul TILLICH,“The End of the Protestant Era?” in The Protestant Em, 1962,2.’.’.
Dogmatismo e tolerancia
136
I lá algum futuro para o protestantismo na América Latina? (1970)
138
Há algum futuro para o protestantismo na América Latina? (1970)
140
I lá algum futuro para o protestantismo na América Latina? (1970)
142
Há algum futuro para o protestantismo na América Latina? (1970)
144
Há algum futuro para o protestantismo na América Latina? (1970)
145
Dogmatismo e tolerância
12. Vale a pena seguir o pensamento de Lutero no seu Tratado acerca do aben
çoado sacramento.
14ó
lio algum futuro pora o protestantismo na América Latina? (1970)
pelo passado. Ora, tais estruturas não ofereciam problema algum. Pelo
contrário: eram a grande certeza. Ali estavam elas, visíveis de todos os
lugares, presentes em todas as esferas da vida. Como corpo do Espírito
Santo, elas eram, naturalmente, o limite e a forma da comunidade.
Ora, Lutero descobriu que a santificação das estruturas conduzia
a uma ética de repetição obsessiva do passado que tinha como resul
tado a perpetuação da culpa e do medo, como conteúdos permanen
tes da experiência humana. A liberdade era assim destruída tanto
objetiva como subjetivamente: o tempo se fechava para o homem e o
homem se fechava para o tempo. Por outro lado, ele viu com grande
clareza que o Espírito Santo é o Espírito da liberdade. Duas conclu
sões de inestimável valor crítico. Primeiro, porque elas permitiam que
se concluísse que uma estrutura que perpetua o problema do cativei
ro não é expressão do Espírito de Cristo, mas antes do antiCristo. Em
segundo lugar, se “onde está o Espírito, ali está a liberdade”, pode-se
concluir que a Igreja se encontra onde se forma uma comunidade deter
minada pela liberdade. Consequentemente, não podemos começar a
procurar a Igreja seguindo os critérios ditados pelas estruturas herda
das. Temos de partir, ao contrário, das marcas éticas que o Espírito es
tampa sobre a comunidade que a sua liberdade cria.
Duas teologías da história estão em conflito. A teologia católica,
que entendia que Deus constrói a cidade eterna por meio da Igreja, e
a teologia protestante, que afirmava que Deus constrói a sua comuni
dade por meio da história. Na primeira o Espírito é imánente às es
truturas, que a um tempo o monopolizam e se absolutizam. Na se
gunda, o Espírito é livre, e aos homens compete permanecer numa
atitude de busca permanente, de abertura em relação ao novo, na
procura da comunidade que o Espírito, através da sua liberdade, cria.
Aqui está o que separa Erasmo de Lutero. Enquanto o primeiro já
achou a Igreja e pretende simplesmente reformá-la, o segundo deixa
as estruturas na busca da comunidade da liberdade.
***
Teologicamente essas conclusões signifitam que a comunidade
(koinonia) não pode ser compreendida sob uma perspectiva de con
tinuidade histórica. A razão é clara. Indicamos atrás que a essência da
147
Dogmatismo e tolerancia
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I lá algum futuro para o protestantismo na Américo Latina? (1 970)
M9
Dogmatismo e tolerância
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Hó algum futuro para o protestantismo na América Latina? (1970)
1. Perguntas preliminares
que temos em nossas mãos é desapontador. Recolhidos os re-
V7 sultados do pensamento que o Protestantismo produziu e se
meou por mais de cem anos no Brasil, sentimos um forte odor de
degenerescência, decadência e senilidade precoce.
Sei que este é um julgamento de valor. Sei, mais, que a objetividade
que deve animar o trabalho do historiador deveria mantê-lo a salvo de
desapontamentos e entusiasmos. Afinal de contas, no reino da necessi
dade não há lugar para pranto... Deixando de lado o choro, as lamenta
ções e repulsas, cumpre entender com tranqüilidade. Pelo menos era este
o conselho que Spinoza oferecia. Como eu não sou historiador nem pre
tendo sê-lo, dou-me ao luxo de desrespeitar as regras do jogo. Concordo
com a ironia corrosiva de Nietzsche, que afirmava que o historiador, de
tanto ir ao passado, acaba se tornando um caranguejo, pensando da frente
para trás. É evidente que a sua picada tem endereço certo: os historiado
res positivistas, colecionadores de fatos, como se os eventos fossem selos
ou figurinhas de álbuns, como se o propósito da investigação histórica
fosse preencher os claros com informações fácticas! Acontece que uma
deformação pessoal, possivelmente originária da minha formação cristã,
153
Dogmatismo e tolerância
1.1 lerbei t MàRCUSE, One dimensional Man, Boston, Beacon Press, 1964,98.
154
As idéias teológicas e os seus caminhos pelos sulcos institucionais do protestantismo brasileiro
155
Dogmatismo e tolerância
Ouvir seletivo, ouvir que sabe onde está a autoridade e de onde vem a
verdade. Esta é a razão para a austeridade arquitetônica dos templos
protestantes, reduzidos à condição de salas de aula, em que o pre-
gador-professor fala enquanto os fiéis-alunos ouvem. Ora, acontece que
a literatura não pode sobreviver em meio a essa obsessão didática, por
que a sua vocação é estética, contemplativa, e o seu valor é tanto maior
quanto maior for a sua capacidade para produzir estruturas paradig
máticas por meio das quais as fraturas e ligações ocultas do cotidiano
são radiografadas. Os literatos protestantes não podem fugir ao feitiço
dos seus hábitos de pensamento. Suas novelas são sermões travestidos
e lições de escola dominical mascaradas. No fim, a graça de Deus triun
fa sempre, os crentes são recompensados e a impiedade é castigada. O
último capítulo não precisa ser lido. A didática protestante já tem a
moral da estória pronta, antes que ela aconteça...
Produzimos bons gramáticos, filólogos respeitados e mesmo boa
literatura educacional, como a série Braga2. Aqui os protestantes se
sentem em casa. A filologia os liga à exegese e à exigência de uma
leitura rigorosa dos textos sagrados. A gramática, por sua vez, é cen
tral para aqueles que desejam pregar num português impecável. E a
preocupação didática sempre foi cara à alma protestante: corações
puros, idéias claras, pensamento lógico. A ação segue-se ao pensa
mento: esta é a regra para todos aqueles que foram atingidos pela
graça salvífica.
Por fim, penso que não só os protestantes, mas também outros que
analisam as idéias que o passado nos legou como herança têm o direito
de saber das relações de tudo isso com a política. Que idéias foram
levantadas como bandeiras? Quais, entre elas, se constituíram em hori
zontes de luta ou inspiração para sacrifícios? Sem dúvida, sacrifícios
houve muitos. Sacrifícios solitários de indivíduos heróicos que se
embrenharam por não se sabe que veredas, para pregar, curar e ensi
nar. Mas não é por esse tipo de sacrifício que me pergunto. Pergunto-me
pelos sacrifícios políticos e pelas bandeiras para mudar o destino
de povos inteiros. Tal como aconteceu com Genebra, nas mãos férreas de
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v<»i <1.1 reforma social, das visões missionárias, o que se acopla bem
iom o expansionismo imperialista6.
E interessante notar que o reavivamento espiritual, e a ativação da
experiência de conversão que o acompanha, provocou a criação de
um sem-número de organizações dedicadas à promoção da renova
ção pessoal, da reforma social e do avanço missionário. Considero
muito sugestivo esse acoplamento de fervor pessoal, individual, ínti
mo, de um lado, com preocupações sociais, do outro. E isso porque,
no momento presente, essas duas tendencias se encontram pratica
mente rachadas em dois campos opostos. O fato foi que, naquele sé
culo, a busca da perfeição estava ligada à compaixão pelos pobres e
necessitados, juntamente com expectativas milenaristas.
O rápido crescimento da urbanização, resultante da industrializa
ção, havia provocado o surgimento de sérios problemas sociais que
atingiam preferencialmente as classes trabalhadoras. Isso se consti
tuiu um desafio às Igrejas, e foi deste contexto — o mesmo do
revival — que surgiu o “evangelho social”, que pretendia fomentar a
“aplicação dos ensinos de Jesus e da mensagem total da salvação cris
tã à sociedade, à vida econômica, às instituições sociais... bem como
aos indivíduos”7. As obras de Walter Rauschenbusch, historiador ba
tista, se tornaram clássicas. Dois exemplos: Christianizing the Social
Order (New York, Mcmillan, 1914) e The Social Principies ofJesus (New
York, Association Press, 1916). O títulos de alguns dos seus capítulos
são significativos: “Uma religião para a redenção social”, “O que que
remos dizer por cristianização da ordem social?”, “Nossa presente or
dem econômica”, “O reino do intermediário”, “Sob a lei do lucro”,
“Os valores morais do capitalismo: Lucro x vida, comércio x beleza”,
“Cristianismo x capitalismo”, “Conservação da vida”, “Socialização
da propriedade” etc. O estilo é direto e claro. Livros para ser lidos por
todos. Manifestos de ação. Um deles é impresso pelos movimentos
cristãos de estudantes e “sob os auspícios do subcomitê de escolas
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assassinados, pessoas por quem a gente está disposto a tudo, por leal
dade e gratidão. Quero dizer que me sinto muito bem em companhia
desta gente, que é com eles que faço meus diálogos. E é isso que talvez
signifique continuar a ser protestante.
Isso sem que nos esqueçamos de que o protestantismo enforcou e
queimou bruxas, escravizou negros e justificou teologicamente a es
cravidão e, com mais freqüência e proximidade do que desejaríamos,
ofereceu suas palavras religiosas às mãos armadas com a espada.
Angustia-me a suspeita de que o pensamento protestante de que
dispomos seja capaz de dar conta de situações ordenadas, não saben
do, entretanto, o que fazer em situações cosmogónicas ou apocalíp
ticas, quando mundos precisam ser destruídos e criados. Parece que
isso foi algo que o passado nos sussurrou.
É consolador (e irritante) reconhecer que foi a Igreja católica que
se apropriou dos melhores frutos do pensamento protestante. E isso
nos sugere uma estranha possibilidade: talvez um estudo das idéias
protestantes tenha de deixar as instituições protestantes para entrar
no seio do catolicismo.
Quanto ao futuro, nada tenho a dizer. Na verdade, esta questão
nem deveria surgir num ensaio que pretende contar algo da história,
do passado. A menos que o passado seja a origem da profecia. Pode
riamos concordar com Nietzsche?
“O veredito do passado é sempre um oráculo.
Somente como arquitetos do futuro e como conhecedor do presente
podereis entendê-lo”.
Talvez para se falar do futuro do protestantismo seja necessário se
lembrar do passado do catolicismo. O que nos conduz à visão do vale
de ossos secos, do profeta Ezequiel, que miraculosamente se tornou
numa multidão incontável. Quem diria que a Igreja católica passaria
pela metamorfose por que passou? Ninguém, muito menos os pro
testantes. Ê possível que, num futuro talvez não muito distante, o
protestantismo se redescubra na sua própria herança, viva no catoli
cismo, e que isso conduza ao milagre da cura da inimizade e se abra
para um futuro comum.
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