Você está na página 1de 174

Deus criou os pássaros. As religiões criaram gaiolas.

As gaiolas criadas penai


religiões são feitas com palavras. Elas têm o nome de dogmas. Dogmas sõo gooci
de palavras para prender um pássaro". Escrevi, para minha filha pequeno, Liimc
ria sobre um Pássaro Encantado e uma Menina. Pássaro e Menina se amem Mas
sempre chegava o momento quando o Pássaro dizia: "Preciso ir". A Menina crcrara
e dizia: "Não vá. Nós nos amamos tanto!" O Pássaro respondia: "Eu preciso ir para
ter saudades. Porque o meu encanto nasce da saudade!" E partia. A Menina, ertôc
teve uma idéia perversa: engaiolar o Pássaro para que ele nunca mais partisse E
assim ela fez. Quando o Pássaro voltou, cheio de estórias para contar, cheia ce
penas de novas cores, quando ele dormiu, ela o colocou dentro de uma lindo gantta
de prata. Ao acordar o Pássaro deu um grito de dor. "Menina, vou perder meu etacon-
to. Vamos perder o amor!"E assim aconteceu. Foram-se as cores. Foram-se a estórias
que ele contava. Foi-se a amor. Escrevi esta estória porque eu ia partir para ur»
longa viagem e minha filha de quatro anos estava muito triste. Depois de pubiteado
fiquei sabendo que meus colegas terapeutas a estavam usando para lidar co
*® a»
relações amorosas, homem tentando engaiolar mulher, mulher tentando engaicfcjr -
homem... Aí um amigo me disse: "Que linda estória você escreveu sobre Deus!'Per­
guntei: "Que estória?" Ele me respondeu: "A da Menina e o Pássaro encantado
o Pássaro Encantado não é Deus que as religiões tentam engaiolar?"
Um Deus engaiolado nas gaiolas de palavras chamadas dogmas é sempre yim
pássaro empalhado. Deus mora na saudade.
Esse livro é sobre o Pássaro Encantado e as gaiolas religiosas. Deus não nos deu
asas. Deu-nos o pensamento. Voamos nas asas do pensamento. Assim, tudo aqjuiiíc
que proíbe o vão livre do pensamento é contrário ao nosso destino.
A fato é que a história do Cristianismo está cheia de gaiolas. Qucnxs terar-
mortos pelo crime de pensar diferente! Desse crime tanto católicos quanta pronesav
tes são culpados. Os mortós foram aqueles que ousaram pensar os seus prápriQc
pensamentos. Pássaros solitários, como os sabiás. Eu prefiro o canra sofitórtó te
sabiás ao canto gregário das maritacas, todas repetindo o mesma coisa....

Edições Loyola
visite nosso site:
www.loyola.com.br
IhmikamaçAo: Flávio Santana
Ft vis Ai >: Mauricio Balthazar Leal e
Kita de Cássia Lopes

IúIIçOcn Loyola
Hiih IB22 nu 347 - Ipiranga
<l ll(> 000 São Paulo, SP
( tilxn Postal 42.335 - 04218-970 - São Paulo, SP
(II) 0914-1922
(fÇ|) (II) 6163-4275
Honir page c vendas: www.loyola.com.br
I tllloind' loyola(«>loyola.com.br
Vendas' vcndasCd
* loyola.com.br
linha n\ direitos ivservados. Nenhuma parte desta obra pode
ui irpiodu.dda ou transmitida por qualquer forma e/ou
qmihquei meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia
= gtiHiH<7r>) ou arquivada cm qualquer sistema ou banco de
tlmloi tem primissito escrita da Editora.

IMIN K’> l’> 01001 -2


i- l |>|( i il S I (1YOI .A, São Paulo, Brasil, 2004
Sumário

Pmfácio 20 anos depois......................................................................... 7


Sobre pássaros e gaiolas.....................................................................7
Os pássaros e os urubus...................................................................... 13
Uma parábola herética de um bufão sobre a
intolerância religiosa ......................................................................... 13
Para inicio de conversa........................................................................ 17
1. "O vento sopra onde quer..." Confissões de um
protestante obstinado.................................................................... 19
2. A ideología protestante................................................................. 29
3. Instituição e comunidade.............................................................. 45
1. Instituição e vida............................................................................ 51
2. Instituição e novas formas de Igreja............................................. 52
3. A comunidade como nova realidade social............................... 53
4. Protestantismo e comunidade........................................................ 55
5. Comunidade como heresia...........................................................56
ó. As marcas da Igreja e das comunidades.................................... 57
7. Reforma e ruptura........................................................................... 59
8. A comunidade: urna utopia?........................................................ <51
Referências bibliográficas.................................................................. 62
4. As muitas faces do protestantismo............................................... 63
1. Introdução...................................................................................... 63
2. O movimento missionário ............................................................. 66
3. O fundamentalismo....................................................................... 71
4. As tendencias proféticas do protestantismo ................................ 73
H ( ) |»Mhic( ostalismo ....................................................................... 78
A ( ) | >[t >|(jj,|(inlismo e a secularização............................................ 79
/ • ) luiuio.........................................................................................82
H < mu liisáo..................................................................................... 83
5 I )o le ido de trás das máscaras...................................................... 85
I < ) piotestantismo como vanguarda da liberdade .......................86
<■ da modernidade........................................................................ 86
' J ( ) piotestantismo como origem dos fenômenos.......................... 91
monstruosos dos tempos modernos ............................................. 91
3 () protestantismo como um reavivamento.................................... 92
do espírito medieval..................................................................... 92
d. O espírito protestante e a sociedade burocrática...................... 93
As quatro interpretações do espírito protestante ......................... 97
6, Encontros e desencontros do protestantismo
e do catolicismo............................ 101
/, Certeza e inquisição................................................................. 111
B, O protestantismo latino-americano: sua função
ideológica e suas possibilidades utópicas (1970)................... 119
I . As possibilidades do protestantismo......................................... 1 23
2. O protestantismo como ideologia............................................ 1 29
3. IJm novo protestantismo?.......................................................... 133
9. Há algum futuro para o protestantismo
na América Latina? (1970)....................................................... 135
1. O protestantismo latino-americano: fim da comunidade?...... 135
2. Comunidade: princípio do protestantismo?............................ 137
3. Onde está a comunidade?...................................................... 146
-1 Em busca da comunidade, ou o futuro.................................... 150
do protestantismo na América Latina........................................ 150
10 As idéias teológicas e os seus caminhos pelos sulcos
institucionais do protestantismo brasileiro................................ 153
1 l’(‘igiinlas preliminares............................................................... 153
2 As oiigens e o primeiro século (1 821-1950).......................... 157
< Iml mlència: os anos 1950......................................................... 169
I « > (-x.puigo: a partir dos últimos anos da década de 1950 ..171
Prefácio 20 anos depois

Sobre pássaros e gaiolas


Oássaros engaiolados pensam em gaiolas.
* Pássaros livres pensam no azul infinito.
Os homens têm inveja dos pássaros. Gostariam de voar.
Lembrei-me de um poema de Fernando Pessoa, um poeta que in­
vejava pássaros. (Mas que poeta não inveja pássaros? Os poemas não
serão, por acaso, as asas de palavras que eles constroem para poder
voar?) Assim escreveu:
“Ah, quanta vez, na hora suave
Em que me esqueço,
Vejo passar um vôo de ave
E me entristeço!
Porque é ligeiro, leve, certo
No ar de amavio?
Porque vai sob o céu aberto
Sem um desvio?
Porque ter asas simboliza
A liberdade
Que a vida nega
E a alma precisa?
Dogmatismo e tolerância

* me invade
Sei (pit
I hii 11< »1 n»r de me ter que cobre
< (mm tuna cheia
Meu i oração, e entorna sobre
Mnilfalnia alheia
Um desejo, não de ser ave,
Mas de poder ter,
Nao sei quê
I >o vôo suave
I >cnlro em meu ser”.
'Iodos os homens querem ser pássaros voando pelo azul. Razão
por qtie os pássaros são símbolos dos nossos sonhos, da verdade mais
prolnnda da alma. Os gregos inventaram o mito de ícaro, o homem
que fez asas para voar como os pássaros. No Antigo Testamento os
homens inventaram o poema da Torre de Babel como símbolo do seu
anseio pelas alturas. Ao final do dilúvio é um pássaro que anuncia o
icinício da vida. Jesus aconselhou-nos a olhar para os pássaros que
voam nos céus para nos tornarmos leves como eles. E o Espírito de
Deus desce sobre os homens na forma de uma pomba. Os homens
que o Espírito toca se transformam em pássaros.
Vivo num apartamento no oitavo andar. Minha filha Raquel, pai­
sagista, fez-me um jardim de bromélias, folhagens e bambus no pe­
queno espaço da minha varanda. Mas aquele jardim não me deu ale-
gi ia. ()s pássaros não o visitavam. Que tristes são os jardins sem pás-
saios! Era como se os pássaros não me amassem. Transformei a mi­
nha tristeza numa crônica para o jornal. Tive então, no dia seguinte,
uma surpresa: aprendi que os pássaros lêem jornais! Ao entrar no
meu apartamento encontrei-me com um beija-flor que entrara e não
* niiscgnia sair. Tive de pegá-lo com a mão. Como nós, homens, so­
mos <>s seres que perderam a confiança dos pássaros, ele teve medo,
hipm e se debateu quando o segurei. Debateu-se tanto que deixou-
me algumas penas azuis. Tomei a penas, amarrei-as e as dependurei
no bambu, I )esdc então os beija-flores e uns pássaros pequenos cujo
mmit iiü<» sei me visitam todo dia. Isso me dá alegria. Nós, eu e os
i < ii ios depois

pivuiros, lemos sonhos comuns. Sonhamos com o vôo e com a imen-


lu< k* <lo ccu azul.
() vôo pode ser visto, mas não pode ser dito. O vôo dos pássaros
rd.i além das palavras. Quando os poetas falam sobre o vôo eles não
rsl.io dizendo o vôo. O poema é o dedo do poeta apontando para o
v<’>o do pássaro que está além das suas palavras.
I )eus criou os pássaros.
As religiões criaram gaiolas. As gaiolas criadas pelas religiões são
feitas com palavras. Elas têm o nome de dogmas. Dogmas são gaiolas
de palavras que pretendem prender o Pássaro. Guerra Junqueiro, poeta
português, escreveu um longo poema que se tornou clássico sobre
esse assunto: “O Melro”. É bonito. Merece ser lido.
Escrevi, para minha filha pequena, uma estória sobre um Pássa­
ro Encantado e uma Menina. Pássaro e Menina se amavam. Mas
sempre chegava o momento quando o Pássaro dizia: “Preciso ir”. A
Menina chorava e dizia: “Não vá. Nós nos amamos tanto!” O Pássaro
respondia: “Eu preciso ir para ter saudades. Porque o meu encanto
nasce da saudade!” E partia. A Menina, então, teve uma idéia per­
versa: engaiolar o Pássaro para que ele nunca mais partisse. E assim
ela fez. Quando o Pássaro voltou, cheio de estórias para contar, cheio
de penas de novas cores, enquanto ele dormiu, ela o engaiolou numa
linda gaiola de prata. Ao acordar o Pássaro deu um grito de dor.
“Menina, vou perder meu encanto. Vamos perder o amor!” E assim
aconteceu. Foram-se as cores. Foram-se a estórias que ele contava.
Foi-se o amor.
Escrevi esta estória porque eu ia partir para uma longa viagem e
minha filha de quatro anos estava muito triste. Depois de publicada
fiquei sabendo que meus colegas terapeutas a estavam usando para
lidar com as relações amorosas, maridos engaiolando esposas, espo­
sas engaiolando maridos, maridos querendo voar, esposas querendo
voar... Aprovei. Aí um amigo me disse: “Que linda estória você escre­
veu sobre Deus!” Perguntei: “Que estória?” Ele me respondeu: “A da
Menina e o Pássaro encantado. Pois o Pássaro Encantado não é Deus
que as religiões tentam engaiolar?”

9
Dogmatismo e tolerância

Um Deus engaiolado nas gaiolas de palavras chamadas dogmas é


sempre menor que a gaiola. Esse Deus não é pássaro que voa, e pássa­
ro empalhado.
Deus mora na saudade.
Deus mora na nostalgia.
Pelo menos foi aí que Santo Agostinho o encontrou; num lugar
obscuro e doloroso da memória, onde só há silêncio, não há palavras.
Deus não nos deu asas. Deu-nos o pensamento. Voamos nas asas
do pensamento. A ciência, a literatura, a música, as artes plásticas, o
balê, a culinária, os brinquedos, coisas que nos dão alegria, são todas
criaturas do pensamento. Primeiro voamos na fantasia para, a seguir,
criar. Miguel Ângelo primeiro pensou a Pietà para depois esculpir a
Pietà... O pensamento são as asas que Deus nos deu.
Assim, tudo aquilo que proíbe o vôo livre do pensamento é con­
trário ao nosso destino. A questão não é pensar certo ou pensar erra­
do. Afinal, quem sabe o que é certo e o que é errado? A questão é
simplesmente pensar. Sem pensamento livre a alma está engaiolada.
A fato é que a história do Cristianismo está cheia de gaiolas. Quan­
tos foram mortos pelo crime de pensar diferente! Desse crime tanto
católicos quanto protestantes são culpados. Os mortos foram os pás­
saros que se recusaram a ficar dentro das gaiolas. Os hereges.
Quando escreví os textos que formam este livro eu era um pássaro
já fora da gaiola. Mas ainda havia muitos arames embaralhados nas
minhas asas. Meus textos são os sacolejões da minha alma na tentati­
va de se desvencilhar dos arames. Assim, eles nascem de um momen­
to passado definido da minha vida. Hoje eu seria incapaz de escrevê-
los porque já deixei as gaiolas para trás. Para mim tudo o que se diz
de Deus são metáforas poéticas que revelam não Deus, mas os pensa­
mentos de quem fala. Até nem mais gosto de usar a palavra “Deus”,
pela carga dogmática que esse nome contém. Prefiro falar no “Gran­
de Mistério” ou, quem sabe, no “Pássaro Encantado”.
Muitas coisas se alteraram. Naquele momento eu olhava para a Igreja
católica com grande esperança. Os anos se passaram. A esperança se

10
Prefácio 20 onos depois

foi. Por outro lado, não havia a fantástica proliferação dos grupos cha­
mados “evangélicos”. A palavra “evangélico” foi cunhada pelos protes­
tantes antigos para diferenciá-los dos “papistas”. Mas o fenômeno “evan­
gélicos” de hoje nada tem a ver com o protestantismo. Eles constituem
uma nova religião, são uma nova versão do Cristianismo em que o
centro de interesse se deslocou do “outro mundo” (a salvação da alma)
e da “ética” (a justiça social) para a resolução dos problemas do cotidia­
no individual. Feitos os atos de magia prescritos o Pássaro Engaiolado
canta e os milagres acontecem: o câncer é curado, o desempregado
arranja emprego, o casamento acontece, os negócios dão certo, o pobre
fica rico.
Sou um filho da tradição protestante. Não posso me livrar dela
nem quero. O que amo nessa tradição? A ousadia de pensar diferente,
de andar na direção contrária: é o que mais amo. Não consigo viver
sem dizer o que penso. Razão porque eu estou sempre me retirando
de grupos que cultivam ortodoxias, universidade, psicanálise, políti­
ca, religião. Não consigo brincar de “boca de forno”. Depois, a retidão
ética tal como expressa nos escritos proféticos. A música de Bach: a
música de Bach me enche de beleza e alegria. Se eu pudesse substitui­
ría o “No princípio era o Verbo” por “No princípio era a música de
Bach”... Albert Schweitzer. A. Graça: Deus não tem livros de “Débitos”
nem de “Créditos”.
A fato é que a história do Cristianismo está cheia de gaiolas. Quan­
tos foram mortos pelo crime de pensar diferente! Desse crime tanto
católicos quanto protestantes são culpados. Os mortos foram aqueles
que ousaram pensar os seus próprios pensamentos. Pássaros solitá­
rios, como os sabiás. Eu prefiro o canto solitário dos sabiás ao canto
gregário das maritacas, todas repetindo a mesma coisa...
Muitos amigos participam dessa tradição. São meus amigos, são
meus irmãos. Não concordamos com a letra. Concordamos com a
música... São pássaros que lutam contra as gaiolas, É para eles que
canto os meus cantos. E com ela que faço os meus voos.

11
Os pássaros e os urubus

Uma parábola herética de um bufão sobre a


intolerância religiosa

uitos e muitos milênios atrás, Deus Todo-Poderoso cansou-se


xVJLda vida que estava levando nos céus. Era muito monótona. As
mesmas coisas de sempre, perfeitas. Os coros dos anjos que jamais de­
safinavam só cantavam Te Deums e Réquiems. Eram magníficos. Mas
mesmo o bonito, se repetido sempre, fica monótono. Monótono, como
o nome indica, significa “o mesmo tom”, que, na gíria brasileira, foi
traduzido como “samba de uma nota só”. No céu todos andavam de
maneira solene, falando baixo e curvando-se em reverências e mesu­
ras. Deus, que tem um espírito brincalhão de criança (e não foi por isso
que ele nasceu criança?), pensou que seria muito aborrecido passar o
resto da eternidade nessa monotonia. Isso sem levar em consideração
que eternidade não tem resto. Resto é uma coisa que acaba. E a eterni­
dade não acaba. O que está para trás é do mesmo tamanho do que está
para a frente que, por sua vez, é do mesmo tamanho que a eternidade
inteira, para confusão dos matemáticos, uma roda imensa que gira sem­
pre, sem nunca acabar de girar, sem nunca chegar a nenhum lugar. Aí,
de repente, o menino brincalhão que estava dormindo acordou no co­
ração de Deus. E foi aquele rebuliço. Deus resolveu mudar tudo. Como
é sabido por todos, Deus jamais faz o pior, 'ludo o que ele faz é melhor.
Assim, o que ele fez era muito melhor do que os céus que já existiam
desde toda a eternidade e eram sua morada. Sua primeira providência
foi fazer uma faxina geral. Jogou nos porões inferiores do universo uns

13
Dogmatismo e tolerância

lix h»s c11<>t 11ícs de contabilidade que, segundo se dizia, seriam usados
nu a< ct tos futuros. E pôs fogo. A fogueira dos ditos livros está quei­
ma i ido a l e I iojc c pode ser vista diariamente redonda e vermelha, atra-
\ mdo o firmamento. É o sol. “Ninguém tem crédito, ninguém tem
< Irbtlo": é isso que está escrito na entrada desse lugar, muito embora o
l.inioso poeta Dante Alliguieri tivesse dito equivocadamentequeo que
< l .1 va escrito era“Deixai toda esperança vós que entrais”. Pobre Dante!
I i.i míope, não via bem...
I )e lato, pra que livro de contabilidade onde se anotam débitos e
c t editos se criança não faz contabilidade? Criança esquece fácil. Per­
doa. Perdoar é esquecer... Criança gosta é de brinquedo. Assim Deus
sonhou com uma brinquedoteca imensa e disse: “Haja brinquedos!”
E foi assim que o universo veio a existir. O universo é a brinquedoteca
de 1 )eus a se acreditar no místico Jacob Boehme.
O que Deus fez foi colocar um pedacinho dele mesmo (ou será
“dela mesma”?) em cada coisa que criou. Deus se pôs nas flores, no
ano íris, nas nuvens, nos regatos, nos peixes, nas árvores, nas frutas,
no vento, nos perfumes, nos insetos, nas estrelas, só um pedacinho.
Sabe aqueles vitrais maravilhosos das catedrais, feitos com milhares
de pedacinhos de vidro colorido? Nenhum pedacinho, isoladamente,
c bonito. Nenhum pedacinho, isoladamente, diz qualquer coisa. É
picc iso que todos os pedacinhos, todos diferentes uns dos outros, es­
tejam juntos, nenhum é mais importante que o outro.
E 1 )eus criou os pássaros, deliciosos brinquedos de asas. Símbolos
d.i liberdade, eles voam. Símbolos da beleza, eles são de muitas cores
< 11hitios cantos. Símbolos da paz de espírito, eles não têm ansieda-
di“.. Jesus até disse que deveriamos ser como eles...
I lavia pássaros de todo jeito: “amarelos canarinhos, com sete co-
a*, saíras, pequeninas corruíras, escandalosos bem-te-vis, delica-
•li r. i olibris, pintassilgos e andorinhas, tico-ticos e rolinhas, pica-paus
t < anlc.iis, pássaros pretos e pardais, negros jacus e urubus...”

lodo lindos. Lindos por serem diferentes. Nas cores e nos cantos,
*. ’.« ui iodos iguais seria um tédio! Todos amarelos? Todos verdes?
‘»r Io
Iodos I >i a 11< (>s?

I I
1 ■ I . issuros e os urubus

Pois Deus, que é uno e múltiplo como o vitral da catedral, Deus,


< 11 ic ¿una as diferenças, criou pássaros de todas as cores para que eles,
na sua diferença de cores e de cantos, formassem um vitral vivo em
que a sua beleza aparecesse.
Aconteceu, entretanto, que uma cobra lisa e trocista que estava
enrolada no galho de uma árvore viu assentar-se num outro galho da
mesma árvore um pássaro negro conhecido pelo nome de Urubu. A
cobra começou uma conversa mole:
“Bom dia, senhor Urubu. Que lindas são as suas penas, tão negras!
Confesso não haver visto outro pássaro que pudesse se comparar ao
senhor em beleza. É certo que o seu canto deve ser tão bonito quan­
to a cor de suas penas, o que faz do senhor a Fênix dessas florestas,
a revelação plena e total da beleza divina. Imagino que Deus diz
aos seus ouvidos coisas que ele não diz aos ouvidos de nenhum ou­
tro pássaro! Se Deus desejar falar aos mortais em linguagem de
pássaro, estou certo de que o senhor será o seu porta-voz!”
O Urubu ficou encantado ao ouvir as palavras da cobra. E acredi­
tou. Os vaidosos sempre acreditam nas palavras dos aduladores.
“É isso mesmo”, o Urubu falou consigo mesmo. “Cada pássaro
tem um pedacinho de Deus. Só um pedacinho. Mas eu, Urubu,
tenho a plenitude da beleza divina. Assim sendo, por que perder o
meu tempo ouvindo o canto do sabiá, o canto do pintassilgo, o
canto do canário?... O canto deles é uma nota solta. O meu canto
é a sinfonia inteira! E é até perigoso que eles fiquem por aí, can­
tando livres pelas matas e jardins. Porque pode ser que um ou­
vinte tolo fique gostando do seu canto e, assim, por amor à beleza
pequena de uma nota, perca a beleza plena da sinfonia. Épreciso
que se saiba que o canto de todos os pássaros conduz ao meu can­
to! Para a glória, de Deus!”
E foi assim que os Urubus começaram uma operação de guerra
contra os outros pássaros, sob a alegação de que o seu canto desviava
os demais bichos do pleno conhecimento da beleza divina. Espalhou-
se pela floresta a palavra de ordem: “Todos os pássaros devem cessar o
seu canto. Todos os pássaros devem cantar como os urubus. Fora do can­
to dos Urubus não há salvação!”

15
Dogmatismo e tolerância

A passai inhada morreu de rir. Sabiás, pintassilgos e canários co-


mrnlavain: “Os Urubus devem ter enlouquecido...” E nem ligaram.
<:<mlii)uaram a cantar como Deus havia ordenado que cantassem.
()s 1 Jrubus, enfurecidos com a arrogância e presunção dos pássa-
n»s que não reconheciam a sua superioridade, reuniram-se em con-
i ilio e (ornaram uma decisão: “Se não cantam como nós, porta-vozes
dc I )cus, cantam contra nós, cantam contra Deus. E quem canta contra
Deus não lem o direito de cantar”.
Mas que passarinho pode parar de cantar o seu canto? O pedaci­
nho de Deus que mora em cada um não descansa. Quer cantar! E eles
continuaram a cantar.
Os Urubus se puseram a campo em defesa da beleza divina e de
sua própria beleza. Começaram a perseguir com bicadas os pássaros
que se atreviam a cantar o canto que Deus lhes ensinara. Era a única
íorma de fazê-los calar. Alguns pássaros se calaram por medo de se­
rem expulsos da floresta a bicadas. Chegaram mesmo a se esquecer
de como era o seu canto. Mas o fato é que muitos dos que insistiram
em cantar o seu próprio canto foram entregues à cobra que, como se
sabe, adora comer pássaros...
() resultado foi que os pássaros de muitas cores e de muitos cantos
liigiram daquela floresta sinistra. Foram em busca de outras florestas
onde não houvesse Urubus e onde pudessem cantar todos os seus
< anlos, ao mesmo tempo, e diferentes, para que assim se ouvisse a
(¡rande Sinfonia.
Quanto aos Urubus, ficaram sozinhos na sua floresta. Os bichos
que moravam lá se mudaram, porque não agüentavam mais ouvir
l oi Io dia o mesmo canto monótono, sempre igual, sem variações, sem
» onli aponto, sem improvisações. Quanto a Deus não é preciso dizer
que llorcsta Ele ou Ela passou a freqüentar...

I c-
Para início de conversa...

stes ensaios são, todos eles, de certa maneira, autobiográficos. São


E expressões de momentos pessoais de luta. É necessário que se en­
tenda, antes de mais nada, que em todos eles está presente, ainda que
de forma silenciosa, um enorme fascínio pela tradição protestante,
naquilo que ela tem de befo, de insólito, de corajoso. Que a cada mo­
mento o leitor ouça a temática da liberdade, ponto inaugural da Re­
forma. Que a cada momento o leitor perceba a presença do furor
profético que não poupa nem os ídolos estrangeiros nem os ídolos
domésticos.
Minha intenção era surpreender e assustar tanto protestantes como
católicos. Que os que se chamam protestantes redescubram a tradi­
ção esquecida que eles invocam e rejeitam. Triste, mas o fato é que
nós, protestantes, nos tornamos animais domésticos: mansos, rumi­
nantes, amigos dos mesmos caminhos, como vacas que, às mesmas
horas, andam pelas mesmas trilhas rumo aos mesmos destinos... O
voo da águia nos foi roubado e rompemos relações com o cristão de
Lutero, homem livre da lei, livre de tudo e de todos, como pré-requisito
de ser livre para tudo e para todos... Tão parecido com o homem
novo de Nietzsche, que quebra as tábuas da lei que o passado fincou
como epitáfios para as sepulturas dos vivos, a fim de viver e fazer
viver, matando dragões, sacudindo camelos, rugindo como leões, brin­
cando como crianças...

17
Dogmolismo e tolerância

I'., rii queria que protestantes e católicos descobrissem uma tradi­


ção bonita, encoberta por séculos de sedimentação em que o lodo e o
limo loram se acumulando, até que nada sobrasse... Porque eu creio
que os protestantes poderão andar mais eretos e ter um olhar a um
tempo mais selvagem e mais manso se freqüentarem um pouco mais
o mundo dos seus predecessores. E também os católicos terão muito
.1 ganhar. Mesmo aqueles que, anteriores e alheios ao mundo ecumê­
nico, insistirem em ver os protestantes como inimigos. Somente po­
demos lutar com fúria contra aqueles cujo fascínio já nos tentou...
(¡oslaria que os católicos sentissem essa tentação....

Rubem Alves
1
“O vento sopra onde quer...”
Confissões de um protestante obstinado

emórias não podem ser esquecidas. O passado, uma vez vivi-


IVJLdo, entra em nosso sangue, molda nosso corpo, escolhe nossas
palavras. É inútil renegá-lo. As cicatrizes e os sorrisos permanecem.
Os olhos dos que sofreram e amaram serão, para sempre, diferentes
de todos os outros. Resta-nos fazer as pazes com aquilo que já fomos,
reconhecendo que, de um jeito ou de outro, aquilo que já fomos con-
linua vivo em nós, seja sob a forma de demônios que queremos exor­
cizar e esquecer, sem sucesso, seja sob a forma de memórias que pre­
servamos com saudade e nos fazem sorrir com esperança.
Digo isso como prelúdio a uma confissão: sou protestante. Sou
porque fui. Mesmo quando me rebelo e denuncio. Minha estória não
me deixa outra alternativa. Sou o que sou em meio às marcas de um
passado. Mesmo que eu não quisesse, esse passado continuaria a dor­
mir comigo, assombrando-me às vezes com pesadelos e fúria, às ve­
zes fazendo-me sonhar coisas ternas e verdadeiras.
Sou protestante. Hoje, muito diferente do que fui. Não há retornos.
Tão diferente que muitos me contestarão, recusando-me cidadania no
mundo da Reforma. Alguns me denunciarão como espião ou traidor.
Outros permitirão a minha presença, mas exigirão o meu. silêncio. O
que me faz duvidar de mim mesmo e suspeitar que, quem sabe, cu seja
de fato um apóstata. Mas aí protestantes de outros lugares me confir­
mam, ouvindo-me, dando-me as mãos, o pão e o vinho...

19
Dogmatismo e tolerância

Son |>i í»irsl.iiilc. Perderão o seu tempo aqueles que tentarem des-
< < »1 >i ii .r. i .i i/rs de minha fé em catecismos ou teólogos. O amor e a
doi ví'itt |»i imeiro... só muito mais tarde é que a gente pensa a fim de
ri m ndri <> solrido e o desejado. Tudo começa com canções de alegria
c 11 istr/a, muito antes de podermos chamar nossas idéias pelo nome.
I <■ | x a isso que a gente não pode deixar de ser o que foi. Mudar de
idci.i c milito fácil. Mas ninguém pode fazer de conta que alegrias e
llistezas nunca existiram... assim na religião. Salmos e poemas vêm
primeiro. Ides pertencem às origens, preservam aquele espanto pri­
mordial diante do sagrado. Já os tratados de teologia e as explicações
doutrinárias são construções tardias, depois que passou o amor e a
dor se foi, depois que o espanto acabou e ficou o vazio...
Não foi no cérebro que me tornei protestante. Ao contrário, minha
fé é companheira de imagens, memórias, perfumes, músicas, solidões,
rei iros, caminhadas por montanhas e à beira-mar, rostos, sorrisos, acam­
pamentos de trabalho em favelas, funerais, injustiças, esperanças en­
terradas, algumas ressuscitadas, certezas de lealdade a toda prova... E
aqui eu teria de ir colocando nomes: presenças ausentes com quem
compartilho minha vida. É isso. O decisivo não é a idéia. O decisivo é a
pessoa que a gente invoca, não importa que já esteja morta...
I )izendo de outra forma: não sou protestante em virtude das idéias
que lenho. Não somos o que somos por termos as idéias que temos,
lemos as idéias que temos por sermos o que somos. Primeiro vem a
vid.i, depois vem o pensar...
E muito importante entender isso. Não é curioso que tanto os
i i h 111 isidores como são Francisco tenham se chamado “católicos”? Não
e i urioso que tanto as pessoas que caçaram e mataram bruxas em
Salem como Schweitzer e Martin Luther King tenham se denomina­
do "protestantes”? Afinal de contas, que magia estranha é esta que faz
i oiii que uma mesma religião seja coisas tão opostas?
lEligiocs são como mesas de banquete: tudo está preparado e há des­
de <»«. pratos rigorosamente destinados às dietas vegetarianas até as gor-
din .i-, i h.imuscadas nas brasas para aqueles que gostam de carne... E os
lirr. ,r a pi ox imam, cada qual com o seu pratinho, e escolhem... Veja, obser­
1 '"rilo sopra onde quer..." Confissões de um protestante obstinado

ve! Já vão saindo com seus pratos cheios. Os lobos, os inquisidores, os


< açadores de bruxas trazem nos seus pratos coisas que não se encontram
nos pratos dos cordeiros e das vítimas... Escolheram as idéias que mais
apeteciam aos seus paladares e menos ofendiam os seus estômagos. Cla­
ro que se trata de uma parábola. Estou querendo simplesmente dizer
que, assim como as pessoas constroem as suas dietas a partir das exigên­
cias dos seus corpos, também constroem as suas teologías a partir do que
elas são... E é por isso que há tantos catolicismos diferentes, dos lobos e
das ovelhas... E é por isso que há tantos protestantismos diferentes, dos
lobos e das ovelhas... É claro que os lobos se dão bem, não importa a cor
de suas peles. E as ovelhas são sempre ovelhas, e se entendem... Seria bom
tentar começar a entender o ecumenismo desse ponto, deixando os de­
bates sobre idéias para depois. Há muitas formas de organizar as expe­
riências que o protestantismo guarda. Os inquisidores colocarão fogo
nos olhos do seu deus e com ele consumirão aqueles que se atreverem a
ser diferentes. Os pacificadores colocarão o fogo nas lanternas e nos fo­
gões, para iluminar, aquecer, cozer...
Minha primeira experiência-memória protestante tem a ver com
um hino. Meu pai havia ido à falência. Tudo se perdeu. Morávamos
numa casa emprestada, velha, daquelas fazendas antigas do sul de Mi­
nas, sem água encanada, sem privada, sem luz elétrica. Era o cheiro do
querosene das lamparinas, do estrume das vacas, do capim-gordura,
do milho fermentado, o barulho do monjolo, da água que caía do rego,
os camundongos e os cães que ladravam pelas noites adentro... Mas,
como disse Cecília Meireles, “quando a desgraça é profunda, que ami­
go se compadece?” De um homem falido fogem os amigos. E foi então
que apareceu lá naquela solidão um evangelista, o senhor Firmino. Do
que ele dizia nada me restou: eu só tinha três anos. Mas guardei a mú­
sica que me pareceu a estória de um homem de nome esquisito, João
Totrono... Depois descobri que era “Junto ao trono de Deus preparado
tens, cristão, um lugar para ti...” Iniciam-se minhas memórias com uma
canção que ficou sendo sacramento de uma presença gratuita e estra­
nha, quando os rostos familiares ficaram raros.
Chamei a memória da música não porque minha biografia tenha
qualquer importância, mas porque, puxando um pouco mais os tios, a
Dogmatismo e tolerância

gruir ,n aba por agarrar a historia. Esbarramos com a Reforma protes­


tante e vemos lodo mundo cantando. A Reforma aconteceu por meio
< l.i musica. Pode ser que Lutero e os outros líderes intelectuais do mo­
vimento tivessem pensado com rigor os seus pensamentos, mas as pes­
soa-, (omuns cantaram a Reforma antes de entendê-la. Quem canta é
mais perigoso do que quem só pensa. O canto põe asas nos pés. Haverá
oí 111 a razão para as marchas militares que põem uma mesma cadência
nos passos? O canto mobiliza o corpo, imobiliza o medo e transforma
gestos solitários em caminhadas solidárias. E Lutero colocou sua fé em
hinos que eram repetidos e decorados, mesmo por aqueles que — crian-
\as talvez — não entendiam bem as idéias. A confiança se cristalizou
cm imagens. Qualquer um podia entender o que significava cantar
"(Castelo forte é nosso Deus, espada e bom escudo...”.
() espírito protestante é um espírito cantante. Símbolo disso é um
homem simples, João Sebastião Bach, que juntou em suas cantatas a
palavra evangélica com a grandiosidade estrutural da música. Tanto
ou mais que os documentos da Reforma, a música de Bach é minha
amiga. Eu a invoco sempre em momentos de confusão. Fé cantada é
melhor que fé falada. E descubro que o meu protestantismo tem muito
<i ver com o fato de que a música desse homem é como uma encantação
magica que desperta em mim coisas boas adormecidas das quais fre-
qiien temente me esqueço. E fico melhor do que sou.
(Compreendo que alguém poderá dizer que gosto por Bach é coisa
i efinada, de gente que pode se educar, o que está proibido à maioria...
F possível. Mas Bach foi apenas um dos muitos que cantaram e con­
tinuam a cantar. E esta é a razão por que não me envergonho de pular
de Bach para uma casinha de pau-a-pique, lá perto de Miguel Perei-
i a, ao fim de uma trilha pelo meio do pasto, no buraco da noite, em
qur irmãos pentecostais de cabo de enxada e palavra reta cantavam
•aia Ir singela c descomplicada, ao som das cordas, dos pandeiros, dos
bumbos. F. de lá vôo para o último domingo de Páscoa, numa missa
i alóla ,i p.ira crianças em que, para o meu espanto, repentinamente a
igi <-|.i explodiu num “Glória, glória, aleluia”, sacudido por dezenas ou
• rulen,is de chocalhos, triângulos, pandeiros e tambores infantis, do
irilmho (|ur manda o salmo 150, tão lido e tão desacreditado... Que
nulo sopra onde quer..." Confissões de um protestante obstinado

i o isa mais ecumênica pode existir que a música? Para além de tudo o
<pie nos divide ela dá testemunho de que queremos cantar juntos,
i ¡miar que c bom viver... Se a teologia tivesse sido cantada é certo que
menos fogueiras teriam sido acesas... E descobri assim o protestantis­
mo como este espírito cantante, que vive desde a cantata de Bach até
a cantoria dos que não sabem distinguir bemol de sustenido.
x-x-x-
Pode ser que ninguém acredite mas é fato: foi um padre que me
fez sentir-me protestante pela primeira vez.
Eu não pedi para ser protestante. Eram os meus pais que me levavam,
meio à força, para a escola dominical. Aí aconteceu um acidente. Num
grupo escolar, primeiro ano, lá no sul de Minas. Num belo dia, sem aviso
prévio, a professora entrou em classe acompanhada de um padre com
batina preta. “Quem é que vai para a confissão e a comunhão?”, pergun­
tou ele com voz taquaral clerical. A meninada toda levantou a mão. Me­
nos eu e o Estelino, que era espírita. Todo mundo olhou espantado para
a gente, enquanto o sangue subia ao rosto e os nossos olhos se enterra­
vam no chão. Miseravelmente diferente, sem saber por que, enquanto os
outros cochichavam risos contra a minha singularidade. E o padre e a
sua batina foram crescendo, crescendo, sem parar, e o menino indefeso
foi sentindo a dor do estigma. Eu era diferente. Nunca me esqueci.
Mas aí aconteceu uma coisa gozada, que a psicanálise deve explicar.
A vergonha de ser diferente virou orgulho de ser diferente. Foi então
que eu, sem saber, me senti protestante pela primeira vez. De fato, o
protestantismo tem muito a ver com a coragem para assumir a própria
individualidade. Como aconteceu com um monge teimoso, que não
dobrava o pescoço por medo da espada, mas fazia o corpo inteiro an­
dar e falar ao som suave da voz da consciência. Esse teimoso individua­
lismo teve um gosto doce à minha boca, e nunca mais o abandonei.
De tão longe não é fácil entender o que significam os gestos do
monge teimoso. Com eles Lutero não estava criando algo novo, mas
simplesmente des-cobrindo um espírito protestante já em gestação.
Foi necessária muita coragem para contrapor a voz da consciência
individual à voz das autoridades constituídas. Fazendo isso ele declarava

23
Dogmatismo e tolerância

i|tn ‘.r r\isic um referencial sagrado para o comportamento, se existe


1111111 iga i1 l.i verdade para o pensamento, tais lugares não se confundem
niDKis lugares do poder, não importa que o poder tenha sido legitima-
inrnlc constituído. O sagrado e a verdade não habitam as instituições,
mas invadem o nosso mundo através da consciência.
Isso é subversão. Lutero colocou o mundo de cabeça para baixo.
Se o líspírito de Deus não é monopólio de instituições, não é geren-
< i.ulo por organizações, não é distribuído por burocracias, todas elas
perdem a sua aura sagrada. Não podem mais pretender ser eternas.
() Espírito é algo diferente, livre. Como o vento, imprevisível, sopra
onde quer, não se sabe donde vem, nem para onde vai. Só podemos
ficar à espera, como meninos com suas pipas na mão...
ler consciência é isto: ficar à espera, aguardando o movimento do
vento... Tudo é imprevisível. Nada comparável à imponente imobili­
dade da catedral gótica, cuja beleza se encontra exatamente no fato
de haver ela congelado o espírito de um certo momento da história.
Mas ficar à espera do vento é esperar por um movimento, não se
sabendo nem onde e nem quando ele se dará...
Duas coisas ficavam assim ligadas.
I )e um lado, a liberdade de Deus. Pode parecer coisa abstrata, mas não
e. I fizer que Deus é livre significa que ele se ri das nossas tentativas de
conhece-lo pela teologia, aprisioná-lo em instituições, administrá-lo pela
I a i r< icracia. Ele sempre anda por lugares não previstos, na companhia de
gente estranha, fazendo coisas meio esquisitas, tal e qual Jesus Cristo,
li.rz do cativeiro um povo sem eira nem beira, faz uma mulher estéril
dar a luz, dá vida a um vale de ossos secos, faz uma virgem engravidar, dá
tombos nos fortes, põe os fracos nos lugares altos, confunde os sábios,
l< »ga mau cheiro sobre a piedade dos que confiam muito em si mesmos,
ii.msloi ma heróis em vilões e vilões em heróis... E os protestantes, co-
nlm cdores desse prazer divino nas inversões súbitas, poderiam prever
qur rir .11 abaria por subverter a própria Igreja católica, derrubando blo-
• o-, i h-1 ><‘di a min o seu sopro suave e fazendo nascer flores entre as fen-
d.r. d.r. lapides, assombrando os bem-nascidos e fazendo rir as crianças...
I , o I '.pn ilo de I )eus anda por lá, quem somos nós para dizer não?
•"iito sopra onde quer..." Confissões de um protestante obstinado

E, do outro lado, a consciência da pessoa, esta estranha capacidade


que nos distingue dos bichos, e nos permite perceber as coisas novas
c diferentes que o Espírito está fazendo, e mesmo ouvir a sua voz —
sinais da gravidez universal da criação, o que faz a gente ficar feliz
(Rm 8,22). Era por causa da consciência que Lutero falava que todos
os fiéis são sacerdotes. Acabou-se o monopólio do divino. Cada cris­
tão, mesmo uma criança amedrontada, pode ficar de pé e dizer: “Aqui
fico. Não posso ir contra a voz da minha consciência”.
Se os protestantes tivessem sido espertos e sensíveis à sua própria teo­
logia, eles, há muito, teriam assumido a dianteira, e espalhado por este
mundo afora um sem-número de comunidades eclesiais de base. Por
que é que bem-nascidos cardeais, bispos conservadores e padres de
antanho ficam arrepiados com essa coisa? Isso é coisa de protestante,
percebem eles muito bem. Dizia o falecido Gustavo Corção, com toda
razão, que a Igreja católica estava se protestantizando. E parece que nun­
ca disse coisa tão verdadeira. As comunidades protestantes primitivas
eram de base, no sentido de que nasciam do povo comum—cada crente
era um sacerdote. Eu não tenho medo de dizer que a Igreja católica está
passando hoje pela Reforma—mais uma façanha do vento suave... Com
uma diferença. No século XVI a Igreja rachou, e deu aquilo que todos
conhecemos. Depois, os protestantes tentaram converter os católicos no
varejo, um a um. Mas o Espírito ficou meio impaciente, e tratou de fazer a
conversão por atacado. Pela Igreja toda sopra a liberdade de Deus e a voz da
consciência: os fiéis estão à escuta, tentando ler os sinais dos tempos...
Quantas coisas nos conta a idéia protestante de que todos os ho­
mens são sacerdotes!
A primeira coisa que ela luz é colocar um enorme ponto de interroga­
ção sobre a cabeça das pessoas que se dizem autoridades religiosas, polí­
ticas, militares, não importa. De saída e necessário dizer que a autoridade
é algo estranho ao espírito do Novo Testamento. Quem quiser ser o maior,
que seja o servo. Substituir a espada pelo lava-pés. I )eus, poder e verdade,
abre mão de tudo, esvazia-se... Leia o Novo Iestamento e veja o papel que
as autoridades desempenham ali, a partir de Herodes, mandando matar
as crianças, até as autoridades romanas e as autoridades judaicas, man-

25
Dogmatismo e tolerância

• Luido malar Jesus. Parece que as pessoas em posição de autoridade são


ni.lis siis< elíveis à idolatria e à crueldade. Ê isso que nos conta a historia.
!■»l.iio que a ordem é necessária para tornar possível a nossa convivên-
i i.i. I ■ < lessas coisas surge, aos poucos, o espirito da democracia, expressão
do doloroso reconhecimento da necessidade da autoridade e da deter­
minação de manter sempre a autoridade no seu devido lugar: não em
i ima, mas embaixo, como serva e funcionária do corpo sacerdotal —
< laro! —, o povo todo, cada um deles um sacerdote.
I íepois ela nos dá permissão para pensar com ousadia os pensamen­
tos mais loucos e mais avançados. Reprimir o pensamento é reprimir a
consciência, é colocar a autoridade estabelecida num nível mais alto que
<i liberdade do indivíduo. Sei que isso horroriza aqueles que habitam os
espaços já organizados e disciplinados da vida eclesial. Tudo já está pre­
visto. O futuro não pode ser diferente do passado. A casa está em ordem
e os velhos descansam tranqüilos. Mas, de repente, uma classe de jardim-
de-infância invade a casa e tudo fica em movimento, borbulhante de
vida. Cada peça de museu se transforma num brinquedo. Cada canto
sagrado vira um esconderijo para o jogo de esconder. A ordem cristaliza­
da se transforma na vitalidade indomável... É claro que há muitos que
começam a sofrer vertigens, enquanto outros tratam de expulsar a crian­
çada... “Se não vos converterdes e não vos fizerdes como crianças...” Por
séculos o ideal da Igreja foi o de construir jardins geométricos, mono-
i ultura, em que tudo permanecesse sob o estrito controle do jardineiro.
Ag,ora os protestantes dizem que o Espírito é um semeador sem muito
gosto pelos traçados geométricos, que mistura tudo quanto é tipo de
semen te e as espalha ao vento... E elas brotam na mais fantástica explosão
< Ic cores, na desordem maravilhosamente bela que surge da vida... E sur­
ge então o mandamento para a pluralidade e a diferença. Os especialistas
ri 11 cortar pedras dirão que a pluralidade e a diferença são sinais de de­
sintegração. Afinal, se os tijolos não forem todos iguais a casa cai... Mas
quem e que lalou em construir casas? Da mesma forma como a vida, na
sua unidade, produz amores-perfeitos, cravos-de-defunto, girassóis,
mingos, i ac Ilis, caquis, bananas, jacas, algas, buchas, erva-doce, losna,
al •• >1 h >i as e < erejas, também o Espírito de Deus, na sua unidade e na sua
i italidadr, pode produzir as mais variadas formas de vida, sejam as cul-
) vento sopra onde quer..." Confissões de um protestante obstinado

l ti ras indígenas, as dançantes comunidades pentecostais africanas, as or­


dens monásticas, as experiências de contracultura, as religiões populares
e até mesmo os estilos de vida em que nos sentimos em casa. E com os
estilos de vida surgem novas formas de pensar e novas formas de falar
sobre Deus, sobre Cristo, sobre a salvação... E quem seria aquele que to­
maria da espada para liquidar os diferentes? Com que direito? Quem
quer que se atreva a liquidar os dissidentes está possuído da ilusão de ser
o detentor do monopólio do divino e sucumbe à tentação e à crueldade
da espada — eclesial ou secular, não importa.
Posso bem perceber o espanto incrédulo nos olhos do meu leitor,
protestante de muitos anos, que pela primeira vez ouve coisas tão
insólitas. E ele procurará ao seu redor para ver onde é que esse pro­
testantismo se encontra. Entre os batistas? Na Igreja Presbiteriana?
Quem sabe nas comunidades pentecostais? Que dizer dos metodistas?
E vamos caminhando, inutilmente, reconhecendo as pedras, identifi­
cando a voz da autoridade, ouvindo o barulho típico da tesoura de
podar que corta um broto novo... O futuro deve ser uma continuação
do passado. As mesmas idéias. A verdade já foi cristalizada em sécu­
los idos. Proibidos de explorar o novo, de pensar o insólito... E as
pessoas vão ficando tristes, pensando todos os dias os mesmos pen­
samentos, fazendo todos os dias as mesmas coisas, orando as mesmas
orações espontâneas formadas com a colagem de frases feitas e este­
reotipadas, sem coragem para contar das coisas que acontecem no
fundo da sua alma, porque isso pode perturbar a simetria da rotina...
E eu me lembro então da última coisa que quero dizer sobre a
liberdade de Deus, coisa que todo protestante repete. Poucos, entre­
tanto, tomam o risco. Salvação pela graça. Salvação não vai de baixo
para cima. Salvação vem de cima para baixo. Deus nos ama. Deus
resolveu o problema por conta própria. Isso significa que ele não tem
livro-caixa, onde entram nossos débitos ou créditos. Os débitos são
perdoados e os créditos ignorados. Salvação segundo o modelo do
livro-caixa é o que os teólogos denominavam “salvação pelas obras”.
E quem é que pode estar tranqüilo sem recursos para pedir uma in­
formação sobre o saldo da conta? Salvação pela graça significa: das
questões depois da morte Deus já cuidou. Por isso é ocioso gastar

27
Dogmatismo e tolerância

prin.iii)citío e <i11içao com discussões sobre a mobília do céu e a tem-


Itri ,iim ,i do inícrno. Mas sobra tudo o mais para nos ocupar: a pre­
so i v.Hj.io da na tu reza, a arte, a fogueira das armas, para transformá-las
riu .ii .idos e podadeiras,aluta contra os exploradores, a proteção dos
opi imidos, o prazer da liturgia, da música, da comunidade, o brin­
quedo da Icologia. A salvação pela graça significa: é inútil e desneces-
sai io nos preocuparmos com o além. O além pertence a Deus, nossos
In <u,os nao vão até lá. E Deus já resolveu o assunto, em amor. Somos
enlao livres para ser totalmente deste mundo, fazendo as coisas que a
i onsciência nos comanda.
I inagino a sua perplexidade que pergunta se não existirá coisa mais
oposta ao espírito cristão de amor que o individualismo que leva as
pessoas a caminhar de forma solitária, cercadas de muros. Terei de res­
ponder que você tem razão. Mas terei que lhe perguntar, em troca, se
existe coisa mais oposta à comunhão que a sociabilidade fácil daqueles
c|ue se satisfazem com a conversa ociosa da representação de papéis...
'Ioda palavra genuína deve nascer do silêncio. Não posso crer nas de­
clarações de solidariedade daqueles que não freqüentam a solidão da
sua própria consciência. Não, o individualismo da Reforma nasce de
um profundo respeito pela pessoa, porque cada pessoa é uma “másca­
ra” de Cristo, Cristo se fazendo presente disfarçado... E assim, quando
alguém é desrespeitado, violentado, torturado, quando alguém passa
lome e não tem onde morar, é o próprio Cristo que está aí...
Sou protestante. Mas você já deve ter percebido que minha bem-
am.ida está ausente. Meu protestantismo é uma saudade e uma espe-
i ança. lista é a razão por que sinto uma enorme necessidade de ler os
pais da Relorma e uma compulsão de ouvir o vento do espírito, para
vei onde é que poderei empinar papagaio... Por enquanto, o espírito
i aulanle e brincalhão do protestantismo (sob disfarce, é claro), está
l.i/endo cias suas na Igreja católica. Como eu lhe disse, o Espírito é
livic... Talvez ele tenha querido brincar conosco. Talvez não tenha­
mos querido brincar com ele. E ele está se indo. Mas ele volta de vez
chi quando e haverá de voltar para ficar. É, sou protestante.

■í<
2
A ideologia protestante

antas coisas profundas, obscuras e compridas já foram ditas so­


T bre a ideologia que preferi andar por caminhos não batidos e
estranhos...
Começaremos com uma vespa, famosa e conhecida, que pode ser vista
pelos campos numa eterna caçada que se repete há milhares de gerações. A
vespa procura uma aranha. Trava com ela uma luta de vida e morte. Pica-a
várias vezes, paralisando-a viva. Arrasta-a então, indefesa, para o seu ninho
— um buraco na terra —, e ali deposita os seus ovos. Depois disso sai e
morre. Tempos depois saem as larvas, que se alimentarão da carne viva da
aranha. Crescerão sem ter nenhuma mestra que lhes ensine o que fazer,
mas a despeito disso farão exatamente o que fizeram sua mãe, sua avó, bem
como todas as suas ancestrais, por tempos imemoriais...
A vespa não necessita aprender. Não é necessário que sabedoria
alguma lhe seja transmitida. Tudo está presente, inconscientemente,
no seu corpo. Já está programada para viver.
Comecei pela vespa e por sua programação biológica para dizer que
a linguagem que falamos é um substituto social para uma programa­
ção comportamental que não herdamos. Dizia o mestre Wittgenstein:
“Os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo”1.1

1. Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, § 5.6,111.

29
Dogmatismo e tolerância

< bi ti minios humanos não existem como pedras e estrelas — entida­


des ti.ilttr.iis, iludas, independentes da vontade e da ação. Os mundos
Ittmi,mós sao construídos por meio da linguagem, preservados por ela,
ri isiii.klos c transmitidos pelo “tênue fío da conversação” (Peter Berger).
I luí mundo que deixa de ser falado deixa de existir. O meu mun­
do, imico e diferente de todos os outros, é o mundo que conheço e
< hamo pelo nome. Veio a existir por meio da linguagem. Primeiro a
linguagem da minha mãe, do meu pai e meus irmãos, que me disse­
ram como as coisas se chamam, e por que elas são do jeito que são.
Idram elas que me introduziram ao mundo dos deuses e demônios,
do pecado e da culpa, do perdão e da alegria. Falavam, e de sua fala
jorravam rótulos e mais rótulos que se colavam às coisas, tanto assim
que para mim as coisas passaram a ser os rótulos que as denomina­
vam. Minha linguagem, meu mundo...
Mas o meu mundo vive em meio a muitos outros mundos.
1)izia José a um dos seus captores:
“O mundo tem muitos centros, um centro para cada criatura, e
cada uma delas vive dentro do seu próprio círculo. Tu estás a pouco
mais de um metro longe de mim; no entanto, à lua volta, jaz um
inundo cujo centro és tu, e não eu”2.
I louve tempos e lugares quando um homem vivia num só mundo
do nascimento até a morte. Tudo em ordem, integrado, sem ruptu­
ras, como uma sonata de Mozart. Não é mais assim. Mundos sem
Iiin, sóis e centros girando e colidindo, fragmentos de harmonias e
desarmonias, rupturas progressivas, progressivas alienações, solidões
c uniformidades efêmeras.
Sc digo essas coisas é porque nosso tema é a ideologia do protes-
l,ini¡sino, e ideologias são mundos, círculos, a um tempo lares e tú­
mulos, onde vivemos e morremos. Entrar numa ideologia é entrar
ni un destes mundos, único, com regras próprias e cores específicas.
Voltamos uma vez mais aos animais — talvez para recuperar um
pomo da solidariedade perdida... O biólogo Johannes von Uexküll1

1 I litnii,is MANN, José no Egito.


A ideologia protestante

ficou fascinado com a absoluta especificidade e unicidade de cada


espécie animal.
“Cada corpo, um centro de mundo. No mundo da mosca, todas as coisas
são feitas à imagem da mosca. No mundo do ouriço-do-mar, todas as
coisas são feitas à imagem do ouriço-do-mar. Se os bichos falassem, eles
diríam, uns para os outros, aquilo que José disse aos seus captores.
‘Se as plantas tivessem olhos, capacidade para apreciar e julgar, cada
uma delas diria que sua flor é a mais bonita’.”5
Esta é a razão por que nossos deuses e valores são sempre os mais
belos, fortes e verdadeiros.
Os animais estão condenados aos seus corpos. Nascem com eles,
morrem com eles. Um beija-flor não pode se converter à maneira de
ser dos pica-paus...
Os homens podem se converter. Eles emigram de um universo
lingüístico para outro. E é isto que os separa — esta tênue e fugaz
possibilidade de liberdade: isto os torna espírito.
“A serpente que não pode livrar-se de sua pele perece. O mesmo
acontece com os espíritos que não podem mudar suas opiniões. Ces­
sam de ser espírito” (Nietzsche).
Na verdade, não há mudanças isoladas de opinião, alterações par­
ciais em nossos mundos lingüísticos.
“Se um valor é assimilado na organização ou dela expelido, o pro­
cesso não é de adição ou subtração, mas antes de revisão e reorga­
nização gerais.”34
O homem não é o seu corpo. Ao contrário, ele manipula o seu cor­
po, por meio da linguagem. A linguagem é a trama onde a vida é tecida,
leito de rio, de lago,
de ribeirão,
de mar,
onde a vida se escoa, se represa ou se arrebenta.

3. L. FEUERBACH, The essence of Christianity, 8.


4. Lecky PRESCOTT, Self Consistency, 122-123.

31
Dogmatismo e tolerância

Nu Itiigu.igcm encontramos as marcas — os limites — do corpo. É


I»<»i t’.'.o <|iic o homem não pode mais gozar o seu corpo imediata-
n icnle, como os animais, que respondem, no momento, à fome, à
dor, ao cio. O homem dá graças à mesa, transforma os alimentos em
símbolos sacramentais, não vive só do pão, mas da palavra nele cola­
da, sorri perante a dor, agüenta a tortura por lealdade, por amor,
dcmoniza ou diviniza o sexo, sente vergonha, é capaz de auto-sacrifício
e do suicídio. Único animal que enterra os seus mortos, marcando os
seus lugares com lápides e chorando sobre elas. A linguagem, berço
da sua cultura, roupa do seu corpo, arquitetura do seu mundo, lhe
diz que um cadáver também significa alguma coisa.
É porque o homem habita o mundo da linguagem que ele pode
abandonar um mundo para emigrar para outro. Ele se converte —
passa a falar de forma diferente, dá novos nomes às coisas velhas e,
com isso, as coisas velhas se tornam novas, o proibido se torna permi­
tido e o permitido se torna proibido. Falar da ideologia, portanto, é
falar de metamorfoses possíveis, de transformações no homem e no
mundo. Como bem observou Eugen Rosenstock-Huessy:
“A regeneração da linguagem não seria um nome impróprio para o
verdadeiro processo de revolução”5.
Se é verdade que não basta dar novos nomes, é verdade também
que os novos nomes marcam o fíat criador.
Falar da ideologia protestante é falar de nomes, de rótulos, nomes
e rótulos que os protestantes aplicam sobre si mesmos, sobre o seu
mundo, sobre o seu corpo e o seu eros. E, inversamente, olhando para
os seus corpos, os seus rostos, as suas mãos, os seus amigos e inimi­
gos, ódios e amores, os seus locais proibidos e permitidos, teremos
pistas para compreender a sua linguagem.
Religiões são organizações simbólicas do mundo. Como distin­
guir a linguagem religiosa de todas as outras linguagens?
lome uma receita. Sim, uma receita culinária. Ela nos diz como
la/ri, por exemplo, um bolo. Tanto de farinha, tantos ovos, leite, bate-se

'• I iij-.eii Rosenstock-Huessy, Outof Revolution, 739.


*\ ideologia prolestanle

bem, tantos minutos no forno etc. Uma receita não me fáz feliz ou
infeliz. Na realidade, eu sou totalmente ignorado por ela. Religiões
são receitas nas quais eu entro. E há uma coisa curiosa sobre as receitas
religiosas. Tudo faz crer que eu seja um dos ingredientes, mas na ver­
dade eu sou o objetivo da receita.
Se a religião diz que o propósito da vida humana é glorificar a
Deus e gozá-lo para sempre, o sujeito religioso sabe que a verdade é
outra: o propósito da existência de Deus é salvar o homem e torná-lo
feliz para sempre. “Criamos Deus para salvar do nada o Universo... E
necessitamos de Deus para salvar a consciência..diz o católico es­
panhol Miguel de Unamuno6.
Tome qualquer religião e você verá que a sua eficácia existencial e
social deriva do seu poder de fazer algo com o homem, dando-lhe for­
ças (Durkheim), dando-lhe um sentido para viver e morrer. Quando
uma religião deixa de ter esse poder para fazer algo com o homem ela
fenece e morre. Em outras palavras: o discurso religioso é uma exten­
são simbólica do corpo do crente. Esta é a razão por que, quando a sua
linguagem é ferida, é como se o seu corpo tivesse sido atacado.
A linguagem religiosa dá fome às coisas, organiza a experiência,
mapeia os caminhos, indica as zonas obrigatórias, as permitidas, as proi­
bidas, diz o que deve ser feito e o que não pode ser feito. Cada religião é
uma organização arquitetônica do real, a morte do corpo natural do
homem e sua ressurreição sob uma nova forma. E será este corpo lin­
güístico que irá dizer ao crente o que deve sentir, em que deverá encon­
trar prazer, o que deverá fazer. Mais uma vez, a diferença entre o ho­
mem e o animal. O animal está condenado ao seu corpo. O homem
pode trocar de corpos, como um animal que passa por metamorfoses.
Cada conversão é o abandono de um corpo que morreu e a adoção de
um corpo novo. E ele poderá habitar um mundo budista, comunista,
protestante, psicanalista, católico. Ou vice-versa. Não importa a ordem.
Não há princípio nem fim na peregrinação.
Contemplando estes muitos mundos de fora é como se víssemos
um floco de espuma de sabão, com as inúmeras bolhas coladas umas

6. Miguel de UNAMUNO, Do sentimento trágico da vida, 191.

33
Dogmatismo e tolerância

ti.is outras. Cada bolha, um mundo. Mas o fiel não está, como o cien­
tista social, olhando de fora. Ele está dentro de uma, e não mais que
uma, das inúmeras bolhas. E a bolha, que vista de fora é uma entre
muitas, de dentro aparece como universo único, infinito, fora do qual
só existem caos e dissolução.
“A folha na qual vive a lagarta é, para ela, um mundo, um espaço
infinito.”78
Dizer que há outros universos possíveis é dizer que a mais bela
flor não é a mais bela flor, que os deuses não são deuses. Por isso a
linguagem religiosa sente vertigens diante de qualquer tipo de plura­
lismo e relativismo. Os pregadores de alternativas devem ser liquida­
dos. Os deuses são ciumentos e intolerantes. Pelo menos, é só assim
que os conhecemos. Um deus é a mais bela flor que produzimos,
“o desvelar de nossos tesouros ocidtos, a revelação dos nossos pen­
samentos mais íntimos, a confissão de nossos segredos de amor\
Se é assim, por que tolerar? Por que, pergunta Kolakowski, “have­
ría uma pessoa convencida inflexivelmente da verdade exclusiva dos
seus conceitos relativos a qualquer e a todas as questões estar pronta
a tolerar idéias opostas”?9
Como seria intolerável para a lagarta ouvir que sua folha é efêmera
e diminuta, e que, fora dela, há espaços infinitos e bilhões e bilhões de
sóis!...
Protestantismo? Protestantismos? Bolha? Bolhas?
Não se impressionem com o efêmero da bolha, mas com a sua
magia. Antes de ser efêmera ela é mágica. Que poderes incompreen­
síveis sustentam película tão fina de sabão, esférica, fechada, flutuan­
te, perfeita?
De que poderes mágicos é dotada a linguagem que junta as pes­
soas num mundo esférico, útero e túmulo, o mundo da religião?

7. Feuerbach, op. eil., «.


8. Ibid., 213.
9. Leszek Kolakowski, Toward a Marxist Humanism, 213.

34
ideologia protestante

De fato, há algo de mágico na palavra. Não foi por acidente que as


palavras foram escolhidas como ferramentas de bênção e feitiço. Elas
sao portadoras do poder. Pela palavra todas as coisas se fizeram. No
princípio era a Palavra.
Bem dizia Wittgenstein que a palavra tem poder para enfeitiçar...
Feitiço?
Que é isso?
Enfeitiçado. Possuído. Não dono de si. À mercê de um poder
estranho.
É assim com a linguagem. Ela nos possui. Ela não é nossa. Nós
somos dela. Ela não sai de nossa boca. Ela nos gera com suas teias.
Faz-nos ver, e torna-nos cegos.
Um jogador genial de xadrez, inventor de jogadas novas: em
que momento esteve ele livre da lógica implacável do jogo? Em
nenhum momento.
É assim que ocorre com o fiel. Levanta-se para orar espontanea­
mente, para dar o seu testemunho. Jogadas previstas, movimentos per­
mitidos e necessários, dentro da lógica do seu discurso. E é exata­
mente isso que cria a comunicação: nada de novo acontece, tudo se
desenrola como previsto, e isso tem uma função tranquilizante...
como se se afirmasse, silenciosamente: continuamos, por meio do
tênue fio de nossa conversação, a afirmar o mesmo mundo.
Em nenhum momento há informações, penetrações, intromissões,
no mundo esférico da linguagem. Tudo o que penetra o faz por ostentar
as etiquetas reconhecidas. Não há conhecimento, mas reconhecimento.
Não se avança para o novo, mas permanece-se no antigo, já desbravado,
um permanente contar e recontar da “velha estória”. Lembro-me da fiel
que comentou: “Não gosto de ouvir o pregador X. Ele diz coisas que não
estou acostumada a ouvir”. O falar, aqui, é um reativar de acordos silen­
ciosos, um reconhecimento de lealdades, o segredo da pregação bem-
sucedida, da demagogia e da liderança carismática.
Linguagem: jogo de xadrez.
Como é o jogo?
Dogmatismo e tolerancia

I 1111 n imciro lugar, as peças: peões, torres, cavalos, bispos, rainha, rei.
Mi >vintentos diferentes, usos diferentes. O jogador não pode inventar.
|< >ga i' c escolher uma peça, dentre as que lhe são dadas, e fazer um
móvilncnto, conforme uma regra. Aceitar a regra é o pré-requisito
para jogar. Aqui não é o lugar de inventores, mas de jogadores, fun-
i lunarios de um jogo que os possui.
Quais as peças do xadrez protestante?
Basta ouvir. Ouvir o povo. Não os teólogos. Os teólogos, via de
regra, enunciam uma verdade que o povo não reconhece. Em nome
das origens e da etimologia dizem que o jogo deve ser jogado assim
porque assim foi jogado em seus momentos fundadores. Mas no jogo
da linguagem a etimologia é impotente, quando não é ridícula.
“Palavras têm aqueles sentidos que lhes demos.”
“Não nos esqueçamos de que uma palavra não tem um sentido que lhe
é dado, como sefosse, por um poder independente de nós, deforma que
poderia haver uma investigação científica daquilo que a palavra real­
mente significa. Uma palavra tem o sentido que alguém lhe deu.”10
Que palavras os protestantes usam? Deus, céu, inferno, salvação,
Jesus Cristo, conversão, santificação, tentação, o crente, o mundo,
pecado, confissão, oração — aqui estão algumas delas. E quando elas
sao usadas um universo se constitui.
lí este universo, assim constituído, que forma o mundo protestan­
te. lile é sagrado. Tem de ser preservado. Os neófitos passam pela cui­
dadosa preparação que os habilita ao jogo lingüístico — talvez tenha
sido numa situação semelhante a essa que Hesse derivou a sua idéia
do “jogo das contas de vidro”... Os já iniciados cuidam de não come­
ter equívocos. Mas, mesmo quando os equívocos ocorrem, há joga­
das compensatórias: a confissão e o arrependimento anulam o pecado.
Aqui, é como se a jogada errada nunca tivesse sido feita... Mas ai do
inovador, que deseja mudar as regras, seja em nome do passado ou
do Iuturo. Destruidor de mundos, deve ser expulso da comunidade
que vive pela magia do jogo das contas de vidro...

10 11HIw i|> Wittgenstein, The Blue Book, 27-28.


h leologia protestante

Você verá que, muito embora os vários protestantismos tenham um


.1 rsenal praticamente idêntico de peças (e todos eles recusem certas peças
usadas pelos católicos: papa, purgatório, padroeiro, transubstanciação
etc.), a forma como elas são usadas varia de grupo para grupo.
Nem todos os signos são usados.
Signos idênticos têm usos diferentes.
Os mágicos lançam mão de varas de condão diferentes: a Palavra,
a oração ascética, o exorcismo, a cura, o silêncio, a explosão orgiástica.
Brinque e experimente à vontade. Em cada denominação ou seita
as variações e os estilos, as aberturas, o desenvolvimento, os finais
variam, formando configurações variadas, sóbrias ou bizarras, sobre
uma mesma temática.
A temática?...
É o objetivo do jogo.
Os protestantes fazem o seu jogo lingüístico, para quê?
Peões, torres e cavalos não dizem peões, torres e cavalos. Todos,
com seus movimentos específicos, dizem xeque-mate.
Linguagens são receitas (Peter Berger, Alfred Schutz). Elas contêm os
ingredientes e as operações para se produzir algo. Enquanto as lingua­
gens mantêm-se eficazes para produzir o desejado, elas permanecem. A
permanência de uma linguagem depende de sua funcionalidade. E en­
quanto ela funciona bem não fazemos perguntas sobre a sua verdade.
O que funciona é verdadeiro.
“A validez do meu conhecimento da vida cotidiana é pressuposta por
mim e pelos outros sem questionamentos, até o momento quando
aparece um problema que não pode ser resolvido nos seus termos. Na
medida em que o meu conhecimento funciona satisfatoriamente, es­
tou geralmente pronto a suspender dúvidas a seu respeito.”1'
Que razões, por exemplo, levaram setores da Igreja católica, no
Brasil, a abandonar receitas velhas e adotar receitas novas? Será que
eles simplesmente foram convencidos pela verdade? Ou não terão11

11. BERGER, LuckmanN, The Social Construction ofReality, 44.

37
Dogmatismo e tolerância

pi oblem.is novos preparado a sua alma para a visão de verdades no-


v.ist
* < 'onto bem diz Buber, “o sofrimento prepara a alma para a vi­
são”. Quem sofre vê diferentemente dos que não sofrem.
“O mundo dos felizes é diferente do mundo dos infelizes.”12
Daí a inutilidade de se tentar transplantar receitas. Não se pode
levar uma lagarta a pensar como um bem-te-vi. Onças não têm esco­
lha. Elas são forçadas a “pensar” de forma diferente da dos veados.
Seus problemas são diferentes. Seus jogos são diferentes.
I )euses são ferramentas, as mais fortes, mais potentes, mais efica­
zes, para resolver nossos problemas mais prementes. Quando os pro­
blemas mudam, mudam os deuses também.
Que ilusão pensar que somos monoteístas!
De fato, falamos em apenas um deus.
Deus que é, para um, lança de guerra, para outro, bálsamo espiri­
tual, ou flauta que assobia canções de amores, denúncia, legitimação,
habitante dos céus, do coração, das ruas e dos pátios de fábricas, “pe­
nicilina para a alma”, vingador dos oprimidos...
Deus? Qual deles?
O sentido de uma palavra é determinado pelo seu uso. Muitos
usos, muitos deuses. Um deus apenas? Não, muitos...
Qual é o problema para o qual a linguagem protestante é uma
resposta?
A importância de qualquer peça num jogo pode ser avaliada por
meio de um artifício. A gente retira a peça e vê o que acontece.
No xadrez, que acontece se retiramos um peão, uma torre, um
bispo?
Acaba o jogo? Não.
E se retiramos o rei?
() jogo todo é organizado em função de algo que se faz com o rei.
I’oi isso sem rei não há jogo.

IWittgenstein, Tractatus, § 6.43,127.


A ideologia, protestante

Na vida, que acontece se retiramos os olhos, os dentes, o apénd ice,


as pernas?
Acaba o jogo? A pessoa morre?
E se retiramos o cérebro?
Tome as peças do protestantismo e faça o mesmo exercício. Todas
as peças podem ser modificadas, reinterpretadas, mas existe urna que,
se é eliminada, provoca o fim do jogo.
Que peça é esta? Cito Troeltsch:
“O protestantismo foi, em primeiro lugar, urna simples modifica­
ção do catolicismo, no qual a formulação católica dos problemas foi
mantida, enquanto uma resposta diferente lhes era oferecida.”
“De início o protestantismo se preocupou em responder à velha ques­
tão acerca da certeza da salvação, que tem como seus pressupostos a
existência de Deus, seu. caráter ético e pessoal e, em geral, a cosmo­
logía bíblica medieval, e tem como seu único e urgente problema a
absolvição no Juízo Final, visto que todos os homens foram conde­
nados ao inferno em consequência do pecado original....”'5
Que é que leva uma pessoa a falar de céu e inferno, deuses e demô­
nios? A resposta que as ciências sociais dão a essa questão é marcada
pelo seu radical ateísmo metodológico. Ateísmo metodológico signi­
fica que, no jogo da ciência, não entram peças que não sejam passí­
veis de um teste empírico. Por isso elas procuram, como causa da
preocupação dos homens com o invisível e o post mortem, coisas e
situações visíveis e presentes.
“Psicologicamente analisado, o homem, que busca a salvação (da
alma) está primariamente preocupado com questões relativas ao
aqui e ao agora.”13
14
Como se constitui este mundo de entidades invisíveis? Em pri­
meiro lugar é necessário notar que os símbolos religiosos são rótulos
colados sobre entidades concretas. A palavra “pecado” seria destituída
de sentido se não houvesse estados emocionais dolorosos (arrepen­
dimento, culpa) sobre os quais a palavra pecado é aplicada.

13. E. Troeltsch Protestantism and Progress, 59-61.


14. Gert, Mills, From Max Weber: Essays in Sociology, 278.
Dogmatismo e tolerância

()s símbolos espirituais, assim, se constituem a partir do poder


111111i'itu> <lc dar nomes às coisas. Ocorre frequentemente, entretanto,
qur as coisas se vão, mas os símbolos ficam. Enquanto falados, troca­
dos. i in ulados, continuam a construir o real; têm eficácia social. E o
símbolo induz a experiência que fugiu.
Na o é isso que se encontra por detrás das técnicas de reavivamento
espiritual protestantes e dos cursilhos de cristandade católicos?
() objetivo do jogo de xadrez é, sem dúvida, o xeque-mate. Mas
mesmo o jogador derrotado deriva prazer e excitação do seu jogo. O
jogo possui uma beleza estrutural que fascina. Ele é bom para pensar.
E bom mesmo para se pensar com ele.
O mesmo se pode dizer do mundo protestante.
Ele é simples, esférico, dual, constituído, irrefutável, inesgotável
cm suas respostas.
Kurt Goldstein foi um cientista que se dedicou ao estudo das con­
sequências de lesões cerebrais sobre o comportamento. Ele relata que
certos pacientes exibem um curioso comportamento. Se um deles
senta-se diante do médico, e na mesa deste se encontram um lápis e
uma régua dispostos a esmo, ele imediatamente os organiza de forma
paralela. Se o médico, aparentemente por acidente, atrapalha o ar­
ranjo, o paciente se apressa em remediar a situação.
Os organismos têm necessidade de viver num mundo organizado.
Sadios, eles são capazes de colocar ordem mesmo nas situações mais
< aóticas. Para um observador de fora o escritório pode ser uma de­
sordem total. Para o seu ocupante, entretanto, ele é um labirinto
pcrlcitamente mapeado e ordenado, onde as coisas se encontram onde
deveriam estar.
Quando a capacidade de ordenar abstratamente sofre uma lesão,
o oi ganismo compensa a sua incapacidade abstrata organizando con-
< icta c rigidamente as coisas.
I Im oulro artifício: fugir das situações imprevistas, ainda não co-
nliei id.is. Manter-se dentro dos limites estreitos, mas dominados, de
um inundo acanhado.
A ideologia protestante

Neste sentido é necessário perceber que o fascínio dos mundos


religiosos rigidamente estruturados e simples está em seu poder para
transformar o caos em ordem. Se uma pessoa de fora argumenta que
tal organização faz violência à vida (não é boa para ser vivida) o cren­
te permanecerá impassível, pois ela é boa para ser pensada.
“Antes que outros ‘interesses’ possam ser satisfeitos, um interesse
básico deve sê-lo, qual seja, a necessidade de viver num universo
que pode ser compreendido; sem isso nenhum pensamento concre­
to é possível, nem mesmo um pensamento egoísta.”15
Como se estrutura o mundo protestante?
O crente é um viajante, forasteiro, peregrino. Caminha numa ter­
ra estranha e efêmera para a pátria celestial, eterna. Nas suas mãos,
um mapa.

inferno céu —eternidade imutável


— realidade
— após a morte

............................... morte (fim do tempo da decisão)

caminho largo caminho estreito

A ordem está fixada. O mapa é permanente. À esquerda, o cami­


nho que leva ao inferno: sem Cristo. À direita, o caminho que leva ao
céu: com Cristo. A questão decisiva é: como passar do caminho largo

15. Wagner Stark, The Sociology of Knowledge, 50.

dl
Dogmatismo e tolerância

(onde iodos nal uralmente se encontram, em virtude do pecado) para


o i .iniinlio estreito?
A icsposta: por uma metamorfose da consciência do individuo.
() i rente caminha pelas trilhas deste espaço-tempo. O que importa é
que < > seu comportamento seja uma expressão da sua condição de cida-
i l.io do ccu. A questão não é criar, transformar, mas imitar. “Eu quero ser
uin anjo, um anjo do bom Deus, e imitar na terra os anjos lá do céu”.
A missão da comunidade dos crentes: “ganhar almas para Cristo”,
levar pessoas do “mundo” (caminho largo) ao caminho estreito. O
crente é um funcionário de uma burocracia divina que não deve e
nem pode ser mudada.
'Tudo caminha para um acerto final de contas, já marcado na agenda
divina. Os eventos seculares são “sinais dos tempos”, que indicam a
aproximação do fim.
Não é o Reino de Deus que chegou e se expande, mas o tempo que
se aproxima de sua aniquilação.
Quem estaria interessado na vinda do Reino?
Talvez, silenciosamente, haja alguma comunhão com Cecília Meireles:
“Pergunto se este mundo existe,
e se depois que se navega,
a algum lugar, enfim, se chega...
— o que será, talvez, mais triste.
Nem barca, nem gaivota:
somente sobre-humanas companhias... ”
O mundo é estrutura fixa, caminho, mas também aula, didática
divina. Cada evento é uma lição.
(lada acontecimento externo uma lição espiritual para a alma. O
sentido do político-social é o individual, o sentido do objetivo é o
subjetivo: eis a hermenêutica protestante.
A linguagem organiza a experiência possível. A combinatoria de
Iodos os conceitos de uma linguagem é o limite do que pode ser pen­
sado < oni ela, tal como a combinatoria dos movimentos das peças de
xailir/ e o limite do jogo. A linguagem, assim, predetermina as ex-

4_
A ideologia protestante

periências que posso ter, os objetos que posso ver. No mundo asscp
tico da ciência não se pode ver nem milagres nem fantasmas. Mas no
mundo definido pelo discurso mágico milagres e fantasmas têm tan­
ta realidade quanto montanhas e sóis.
Aquilo que não é previsto pela palavra permanece numa zona de
obscuridade: a linguagem cega. Não é por acidente que é assim.
Nenhuma linguagem pode assimilar conceitos estranhos a si mes­
ma sem com isso condenar-se à destruição. Conceitos estranhos são
germes invasores, daí a necessidade de inquisições, os antibióticos
político-sociais. Os hereges têm de ser queimados.
Não nos esqueçamos, entretanto, de que a palavra herege, bem como
a palavra ortodoxo, são palavras usadas por alguém... evidente que os
hereges não se definiram como hereges. Heresia é uma palavra que é
pronunciada pelos ortodoxos. Aqueles que têm o poder para se definir
como ortodoxos e para definir outros como hereges são, evidentemen ­
te, aqueles que são mais fortes: os que podem prender, amedrontar,
expulsar. Em outras palavras, aqueles que têm o poder para usar o
mundo constituído pela linguagem como instrumento de poder.
Não tenho um discurso alternativo para oferecer. “A linguagem
comum está bem”, diria Wittgenstein. Ainda que eu tivesse outra, o
oferecimento seria inútil. Não se oferecem pedras de dama para quem
joga xadrez.
Somente me perguntaria acerca do destino da serpente que não
pode perder a pele, a que se referiu Nietzsche...
Somente me perguntaria acerca do empobrecimento que se dá
sempre que trocamos o inesperado pelo já controlado, como o indi­
cou Goldstein...
Somente me perguntaria sobre o dogmatismo implícito e suas re­
lações com o amor e a tolerância...
Somente me perguntaria sobre o destino da terra e do mundo,
esta terra tão boa e tão amiga, sacramento de Deus, se ela for apenas
caminho por onde se passa... Já se pergunta sobre a relação entre as
atitudes ascéticas do calvinismo diante do mundo e a crise ecológica
que enfrentamos...

43
Dogmatismo e tolerancia

(1 piotcslaiit ¡sino tem temas esquecidos, peças empoeiradas, que


• iingiirm inais sabe usar, mas que poderiam ser tiradas das sombras:
I liben lude (foi com este tema que a Reforma se iniciou)...
. I ^i'iiipi — que significa, basicamente, que o problema da salvação
nao e am problema com o qual os homens devam se ocupar, pois
*| ><‘iule exclusivamente de Deus. Livres de preocupações com a tem-
< l<
titira do inferno e o mobiliário dos céus, os homens poderiam
‘h‘<lkar-se a cuidar da terra, boa dádiva de Deus...
4 Jé, a confiança — ninguém é salvo pela ortodoxia, mas pela sim­
ples confiança em Deus, de modo que os protestantes deveriam se
sentir livres para as mais loucas aventuras de pensamento — o nosso
¡ogo de contas de vidro —, sabendo que heresia e ortodoxia são pala­
vras do vocabulário dos fortes, mas não do vocabulário de Deus...
A teimosia profética, que denuncia todas as formas de opressão e
absolutismo...
() museu das peças esquecidas é imensamente grande. Mas o preço
para nele se entrar é a coragem para mergulhar no próprio passado.
Tao pobre se tornou o protestantismo no presente que é necessário
voltar, redescobrir as raízes, para ver se resta ainda alguma esperança...
3
Instituição e comunidade

roponho, como ponto de partida de uma discussão, uma heresia:


P “A teologia proclama que tudo nela gira em torno da doutrina de
Deus e sua obra salvífica. Eu afirmo que esta não é, de forma alguma, a
realidade. A doutrina de Deus está para a teologia da mesma forma como
os adornos, a colunata, os murais e as esculturas estão para a catedral.
São partes integrantes do edifício sem ser aquilo que o sustenta”.
Explicamos:
Primeiro ponto: notemos que o discurso teológico é sempre dis­
curso de alguém — indivíduo ou instituição. Por trás de todo discur­
so sobre Deus há um sujeito que se esconde.
Segundo ponto: como se decide se um discurso é ortodoxo ou não?
Evidentemente, não existe nenhum procedimento que permitiría
chegar-se a uma conclusão por meio de procedimentos puramente
lógicos. Isso nunca ocorreu na história. A aceitação de um discurso
como verdadeiro e ortodoxo e a rejeição de outro como falso e hete­
rodoxo se dá no nível do poder político dos sujeitos que enunciam e
sustentam os tais discursos. O que importa é quem tem a última pa­
lavra. E isso se decide em níveis pré-lingüísticos.
Terceiro ponto: aceitar o discurso oficial equivale a homologar o
discurso do sujeito que tem a última palavra (o mais forte). Mas ho­
mologar (homo-legein) significa dizer o mesmo. Significa, portan Io,
confessar que se aceita que ele tenha a última palavra, c que continua

45
Dogmatismo e tolerância

< nu uh hcle <l.i tribo. A confissão ortodoxa é, assim, uma forma circu-
l.it de se lazer uma confissão política acerca da Igreja.
(Jtnii /o ponlo: isso nos leva à conclusão de que, em todos os mo­
inei ilos de nossa atividade teológica, a eclesiologia está em jogo. Seria
interessante parar para ver que a Reforma se deu, fundamentalmen-
le, por razões eclesiológicas, já que as duas Igrejas estavam de acordo
sobre os dogmas cristológicos e trinitários.
A partir disso atrevo-me a dizer que, teologicamente, a coisa mais
importante que aconteceu tanto para católicos como para protestan­
tes, nos últimos anos, foi o aparecimento das comunidades eclesiais
de base, na medida em que elas se constituem numa nova realidade
empírica que nos obriga a pensar sobre esse sujeito que enuncia o
discurso ortodoxo. Em outras palavras: quer queiramos, quer não,
levanta-se, na surdina, a pergunta, heresia das heresias:
QUEM É A IGREJA?
ONDE ESTÁ A IGREJA?
QUEM FALA PELA IGREJA?
Não vamos nos apressar. Caminharemos passo a passo. Yves
Congar, no seu artigo sobre “os grupos informais na Igreja”, toma
como seu ponto de partida uma pergunta:
“De que se trata?
A diversidade das palavras obriga-nos a perguntar-nos se estamos
diante de um dado homogêneo. Fala-se de grupos informais, de base,
espontâneos, marginais, naturais, mas também de pequenas comu­
nidades de base e, mesmo, de igrejas livres (Rosemary Ruether), de
igreja subterrânea, de segunda igreja ou igreja paralela.
George Casalis falou mesmo de comunidades flutuantes, como o
marco e o dólar.
Temos, assim, três ou quatro substantivos e pelo menos doze adjetivos"'.
Ficamos, de saída, desanimados. Tantos substantivos e adjetivos
sugerem tantas pesquisas e muita demora até podermos dizer algo.

I Yves ()N( '.AR, Os grupos informais na Igreja — um ponto de vista católi-


( o. ui Afonso (¡REGORY, Comunidades eclesiais de base— utopia ou realidade, Pe-
Uópolls, Vozes, 1973, 124-151.

-i-.
Instituição e comunidade

Devo confessar que me encontro perdido, pois as informações de que


disponho não me autorizam a responder à pergunta de Congar.
MAS... há algo concreto e ao alcance da mão que nos oferece
pistas.
Um novo discurso eclesiológico está se articulando em torno dessas
entidades ainda em gestação. O que quer que elas sejam ou venham a
ser, o fato é que já se dizem coisas diferentes sobre a Igreja. Ainda não
sabemos sobre o que falamos. Mas a própria existência desse discur­
so novo sugere que estamos diante de algo que não pode ser dito com
o discurso velho. E quando um discurso clássico, cristalizado, orto­
doxo, se demonstra insuficiente para significar algo é porque ele en­
trou em crise. É somente essa crise que explica a insuficiência do an­
tigo falar da Igreja.
Fala agora alguém diferente daquele que, antes, detinha o mono­
pólio do falar.
E se alguém está falando de forma diferente somos forçados a con­
cluir que uma nova Igreja (ou igrejas) está em gestação, paulatina­
mente emergindo dos quadros institucionais previamente definidos.
Sugiro, portanto, que o novo universo de discurso sobre a Igreja
revela uma crise entre a instituição e suas bases comunitárias, de tal
sorte que a linguagem cristalizada pela instituição não mais se presta
a ser usada por estas mesmas bases.
Para se entender esta questão é necessário compreender com cla­
reza as relações entre uma instituição e suas bases sociais.
O que é uma instituição?
Uma instituição é um mecanismo social que programa o com­
portamento humano de forma especializada, de sorte que ele produz
os objetos predeterminados pela instituição. Igrejas, exércitos, esco­
las, hospitais, manicômios, casamento — são todos instituições.
Pode-se, na verdade, ver que todos eles:
1. Programam o comportamento.
2. Forçam o indivíduo a produzir comportamentos e “bens”
segundo as receitas monopolizadas pela instituição.

v
Dogmatismo e tolerancia

A |mu,,u> das instiíuições é fundamentalmente prática. Para viver


. ivi’i lemos de ser capazes de resolver problemas. Mas não é
po-.'.ivi l .1 (.ida geração aprender a resolver os próprios problemas da
■ -.Lu .i /cio. Nas instituições, a memoria das soluções passadas é preser­
vada Na verdade, é possível dizer que as instituições são a memoria
un oi)\( ¡ente da sociedade.
I >tivida que haja memoria inconsciente?
Como c que a vespa sabe que ela deve fazer sua casa, caçar a ara-
nli.i c p¿»r os seus ovos, na sua casa, ao lado da aranha? Você pode dar
<i nome que quiser a esse processo. Eu o chamo de memoria incons-
i icnle. E para nós, que não somos iguais à vespa, foi criado um meca­
nismo alternativo que nos leva a repetir receitas que gerações passa­
das inventaram: as instituições.
Nas instituições, o processo histórico de aprendizagem de soluções
para problemas é transformado numa série de comportamentos auto­
máticos, tornando possível, assim, perpetuar as soluções aprendidas
s(‘in a necessidade de se passar pelas dores do processo todo. A institui­
rão e a memória socializada da sociedade, memória prática que man­
tem as soluções sem, entretanto, ter consciência de suas origens. As
instituições são, assim, respostas a problemas concretamente vividos e
sc justificam na medida em que preservam sua eficácia prática.
/\s instituições estão para o homem da mesma forma como o corpo
esta para os animais.
Instituições são cristalizações de uma sabedoria que não tem cons-
(iencia de suas origens. O corpo do animal, de forma semelhante, é a
11 istalização de uma sabedoria cujas origens, no tempo e mesma reali­
dade, no presente, o animal ignora totalmente. Falamos de comporta­
mento instintivo. Que queremos dizer com isso? Sabedoria com-
portamcntal da espécie, que a leva a executar atos altamente inteligen­
tes c eficazes para sua própria sobrevivência, sem que tal inteligência
I »< »ssa ser explicada como tendo sido adquirida no curto espaço de tempo
• l.i vichi do animal. Inteligência herdada, presente de forma inconscien­
te, mino estrutura que programa a forma como o animal conhece o
mundo e suas ações. O organismo é a aprendizagem passada da espé-
■ ic, nnedi.llámente presente ao animal, sob a forma de uma estrutura.
!■ Ult.r ■ • >11.. il ll( i

O que separa os homens dos animais c o fato de, cm oposição aos


«mimais, os homens terem uma programação incompleta, imperfei­
ta. Se tal terminologia não agrada, podemos dizer que os homens são
livres. É a mesma coisa. As duas fórmulas nos dizem que o comporta­
mento humano não pode ser compreendido como efeito de uma pro­
gramação fechada, predeterminado portanto.
Foi esse fato que obrigou os homens a inventar mecanismos para pre­
servar uma sabedoria que não podia ser transmitida biologicamente.
A programação biológica dos animais tem como resultado o fe­
chamento tanto teórico como prático de seus mundos. O biólogo von
Uexküll sugere que o organismo do animal estabelece uma forma
específica e única de conhecimento do mundo. Os mundos do
ouriço-do-mar, da borboleta, da mosca são estruturalmente distin­
tos, organizados e conhecidos pelo animal em função de sua estrutu­
ra biológica. De passagem, é bom lembrar: Nietzsche e Feuerbach já
haviam tido vislumbres nessa direção. Por isso o animal não pode
conhecer o mundo de forma diferente. É prisioneiro de seu corpo. O
seu corpo o tem. O passado, inscrito no seu corpo, diz como deve ser
o presente e como será o futuro. O mundo ideal, das possibilidades,
das probabilidades, lhe está fechado. Esta é a razão por que não pro­
duzem nem .arte, nem religião, nem revolução nem psicóticos.
Resulta daí sua incapacidade para processar dados imprevistos.
As instituições, igualmente, são heranças do passado. Descobri-
mo-nos, ao nascer, lançados no seu meio. E nesse primeiro encontro
as instituições têm para nós a mesma facticidade, o mesmo caráter de
fatalidade, que o corpo tem para o animal. Nelas está inscrita uma
interpretação do mundo de uma geração passada, bem como os com­
portamentos adequados para resolver os problemas que tal visão de
mundo prevê. Nas instituições, como no corpo, a sabedoria é herda­
da e o passado tem sempre prioridade sobre o presente. Na verdade, o
passado é o modelo do presente.
Tais mecanismos adquirem clareza cristalina na Igreja. Suas sedi­
mentações são seculares e conseguiram sobreviver às grandes trans­
formações e revoluções por que passou o mundo. Além disso, seus

49
Dogmatismo e tolerancia

nus anismos institucionais se mostraram altamente eficientes na eli-


miihu,.!«» de mutações indesejáveis, eliminando-as quando ainda num
estado embrionário. Aborto.
N Ias aqi i i vem a diferença entre os homens e os animais. Os animais
nã<>| iodem rebelar-se contra o seu corpo. O animal é o seu organismo.
I »ianlc de problemas novos e imprevistos, se o animal pensasse, ele
mima questionaria sua organização anatômica. Pensaria que o mundo
rnl< >iK|iieceu. Os limites do meu corpo, diz o animal, denotam os limi­
tes de todos os mundos possíveis. O seu corpo é o seu absoluto.
(á>m os homens as coisas são diferentes. E isso porque nossa rela-
itao com o mundo nunca é direta, mas sempre mediada pelas insti­
tuições. Instituições são extensões do corpo. Um animal não pode
abandonar o seu corpo, mas os homens podem abandonar e trans­
formar as instituições. O possível é maior que o real.
Na medida em que as instituições dão conta do recado, isto é, na
medida em que se demonstram capazes de resolver os problemas do
< otidiano, ninguém pensa em questioná-las ou transformá-las. Não
se mexe num time que está ganhando. Não se modifica uma receita
que sempre dá certo. Assim, na medida em que as instituições fun-
i ionam de forma adequada, ocorre o seguinte:
I Suspendemos as nossas dúvidas a seu respeito. A funcionalidade
se identifica com a verdade. E as instituições não podem ser en­
tendidas como historicamente contingentes, porque seu sucesso
nos garante que elas são ontologicamente necessárias.
(iomo consequência do fato de que a funcionalidade é traduzida
mino verdade, o discurso sobre as instituições toma a forma de
uma justificação ideológica delas; ou justificação teológica, como é
<» raso da Igreja. A instituição passa a ser compreendida como
iicc essidade divina. Assim, referimo-nos à Igreja como “o corpo
místico de Cristo”,“a continuação da encarnação”,“a comunhão
dos santos” etc.
' I 'assa se a usar a descrição das realidades institucionais como base
paia os imperativos éticos. O indicativo das funções institucio­
nais se transforma no imperativo para a ação do indivíduo. Em
Iiv.tiluição e comunidade

outras palavras: uma vez que tomamos as instituições como pon­


to de partida, concluímos, inevitavelmente, que o comportamento
deve ser adaptativo. A função do indivíduo c ajustar-se ao todo e
contribuir para a sua preservação.
4. Proíbe-se o discurso crítico, que é substituído pelo discurso ope­
racional ou apologético.

1. Instituição e vida
Todas as instituições tendem a perpetuar-se sem modificações. Essa
é a razão por que, mais cedo ou mais tarde, todas elas acabam por
colidir com a vida. Porque a vida é fluida, e apresenta-nos sempre
problemas novos e surpreendentes, não pensados com antecedência.
Nada garante que os problemas futuros sejam idênticos aos proble­
mas passados. Acontece que as instituições, como cristalizações de
soluções passadas, contêm, implícita nelas mesmas, a afirmação de que
problemas futuros se resolvem com soluções passadas.
Encontramos aqui as razões para o equilíbrio sempre precário entre
instituições e suas bases humanas, e para os mecanismos repressivos
de tudo o que represente novas maneiras de pensar e de comportar.
De um lado, a instituição faz uso de seus mecanismos para impor sua
interpretação da realidade e os comportamentos correspondentes. Do
outro lado, as pessoas, sentindo um mundo diferente e os problemas
novos que resistem às programações institucionais, são obrigadas a
se desviar das instituições. As instituições, que num momento origi­
nário foram criadas como expressão e instrumento de pessoas, pas­
sam a ser vividas como obstáculo e repressão.
É da psicanálise que retiramos a categoria repressão. Para a psica­
nálise, a essência da sociedade é a repressão do indivíduo e a essência
do indivíduo é a repressão de si mesmo. Cabe-nos perguntar das razões
que fazem com que o homem aceite voluntariamente a repressão.
Parece que a aceitação da repressão tem a ver com uma contabilidade
pragmática do ego, que faz uma discriminação entre vantagens c des­
vantagens. Ninguém aceitaria voluntariamente a repressão se ela nao
trouxesse certas vantagens laterais. O fato é que a liberdade tem, l’re-

51
Dogmatismo e tolerância

t|ii( um cusió emocional maior que a dominação a que o


individuo está sujeito na vida institucional. Aqui a rebelião contra a
i(’Iu(’ss.io permanece inaudível, e só aflora em nossos lapsos e so­
nhos. I;. ,i linguagem proibida, linguagem da rebelião contra a verda-
< le, < jtic deve ser confessada como pecado. O discurso contra a repres­
são so se torna audível quando as novas realidades vitais já se im­
põem de tal forma que o custo da repressão é maior que o custo do
protesto contra ela.

2. Instituição e novas formas de Igreja


() novo discurso sobre a Igreja, tão bem indicado por Congar,
parece-me, indica que a relação harmônica entre instituição e bases so-
ciáis foi rompida. A instituição não é mais concebida nem como expres­
são nem como instrumento dessas bases. Quando nos referimos a “no­
vas formas de Igreja”, “comunidades eclesiais de base”, “igrejas subterrâ­
neas”, que estamos implicitamente dizendo? Anunciamos o advento de
novas formas de sociedade religiosa. E com isso, ainda que não o articu­
lemos claramente, declaramos que a instituição perdeu o monopolio do
fular correto sobre a Igreja. Isto é: a instituição perdeu a sua autoridade. A
autoridade se encontra, ao contrário, naquelas situações em que a expe­
riência da fé assume novas formas sociais.
Podemos identificar dois discursos distintos que tentam articular
o fenômeno das comunidades eclesiais de base. O primeiro deles se
constrói em torno do conceito de reforma. E o que ele pressupõe é a
(‘lerna vitalidade e juventude da Igreja, capaz de gerar coisas novas e
de integrá-las em si mesma, mediante um processo de sucessivas in-
< o rporações. As comunidades eclesiais de base, assim, não seriam nada
mais que expressões novas de uma realidade institucional eterna. O
segundo discurso, ao contrário, é sensível à realidade da ruptura, e
ciitcnde que a Igreja só se preserva através de um processo de sucessi­
vas mortes e ressurreições pelo qual as formas institucionais ficam
velhas e morrem, enquanto a comunidade gera novos instrumentos,
< li» a/es, para sua expressão. É essa perspectiva que se encontra nas
hr hluiçõo e comunidade

“Não se trata de modificar, nem de melhorar as instituições exis­


tentes: foi o que se fez nos últimos cinquenta anos sem resultado.
Trata-se de substituir instituições obsoletas por outras mais ade­
quadas à evolução contemporânea das metrópoles”.
Teríamos, assim, três eclesiologias, representadas respectivamente
pelos símbolos da rocha, do organismo eternamente jovem, e da morte
e ressurreição.

3. A comunidade como nova realidade social


É este último discurso que contém a novidade. A eclesiologia da
rocha rejeita todas as transformações institucionais e doutrinais, pois
ela pressupõe a perfeição da Igreja, a partir do seu início. E como
poderíam realidades perfeitas passar por transformações? ("ada trans­
formação seria uma queda, uma perda da perfeição original. A ecle­
siologia do organismo eternamente jovem está aberta às modificações,
desde que elas sejam expressões, explicitações de uma realidade se­
minal latente da Igreja eterna. Mudanças, sim, desde que se proces­
sem dentro de um contexto de continuidade institucional. O símbo­
lo da morte e ressurreição, entretanto, traz algumas novidades consi­
go, e é por isso que ele provoca calafrios. Que é que o caracteriza?
A meu ver os seus resultados são menos importantes que o seo.ponto
departida. Não parte da instituição, para daí deduzir novas formas. Ao
contrário, parte das novas formas emergentes, e se propõe a pensá-las
em suas implicações. Usarei a palavra comunidade para me referir a essa
nova realidade social, a partir da qual se elabora uma nova eclesiologia.
Note-se, em primeiro lugar, que a comunidade é a realidade social
dentro da própria instituição, que sente a instituição como repressi­
va. Acho importante enfatizar o dentro, sem dar a esta palavra, entre­
tanto, uma significação espacial ou organizacional.
Em que sentido a comunidade está dentro da instituição? No senti­
do de que ambas afirmam os mesmos símbolos; e mais, porque os sím
bolos que a comunidade usa foram mediados pela instituição. Ambas
se encontram dentro do mesmo horizonte simbólico. Mas a comuni­
dade se recusa a lê-los em harmonia com as significações cristalizadas
Dogmatismo e tolerância

prl.i instituição. Ao contrário, ela deriva a significação dos símbolos do


sei 11 h idci pa ra i 1 u minar a sua situação presente. Trata-se da forma como
hinos os jornais e a Bíblia ao mesmo tempo, como sugeriu K. Barth.
I 'ii(|tianlo a situação hermenêutica da instituição é uma em que a
sign i ficação dos símbolos já foi esgotada pelo passado, cabendo-nos
agora simplesmente explicitá-los com maior clareza e aprofundá-los,
.1 comunidade pressupõe que a compreensão dos símbolos não se
encontra no passado, mas no presente vivido.
A questão eclesiológica, assim, transborda para a questão herme­
nêutica, que, por sua vez, transborda para a questão de autoridade.
E esse fato de estarem instituição e comunidade dentro dos mesmos
universos simbólicos que torna possível o estabelecimento de uma re­
lação dialética entre elas. Na excelente tese de doutorado do Prof. José
Luiz Sigrist, ele demonstrou como o movimento JUC [Juventude Uni­
versitária Católica], que na nossa análise deveria ser considerado uma
comunidade, no momento em que abandonou os símbolos que man-
l in ha em comum com a instituição perdeu o caráter de movimento de
Igreja, deixou de ser um interlocutor, e por isso mesmo desapareceu.
Ao colocar-se fora dos horizontes simbólicos da instituição, tornou-se
incapaz de estar numa relação dialética com ela.
1 )issemos, há pouco, que a questão hermenêutica transborda para a
questão do poder. Há um diálogo entre Alice e Humpty Dumpty que
lenho citado freqüentemente, por ser muito sugestivo a esse respeito.
“— Quando eu uso uma palavra — disse Humpty Dumpty num
lom de deboche —, ela significa exatamente o que eu escolho que
ela signifique, nem mais, nem menos.
— A questão é — disse Alice — se você pode fazer as palavras signi­
ficarem tantas coisas diferentes.
A questão é — disse Humpty Dumpty — quem é que deve ser o
senhor. Isto é tudo.”
A significação das palavras não se estabelece na interioridade do
pi oprio discurso. O discurso não resolve quem tem a última palavra.
A <iiicsl.io de quem tem a última palavra é a questão do poder, da
auloi idade, da política.

•■-I
Iiv.lituiçõo e comunidade

Instituições e comunidade afirmam os mesmos símbolos: a co­


munidade busca significações emergentes na sua vivência, 0 que sig­
nifica que ela se vê como criadora de significações, e se recusa ao
papel de recipiente das significações verticalmente dadas pela insti­
tuição, ou seja, o magistério que detém o monopólio da verdade. A
comunidade é uma contestação desse monopólio. É de fundamental
importância para a comunidade, portanto, verificar as possibilidades
da sua existência dentro de um quadro institucional que não pode
abrir mão do monopólio do conhecimento.
O que define a comunidade, portanto, é a sua relação ambivalente
com a instituição.
Ambas, comunidade e instituição, olham para os mesmos hori­
zontes simbólicos. Mas desse olhar surge uma tensão, pois, enquanto
a instituição afirma as significações que o passado cristalizou, a co­
munidade se entende como criadora de significações.
Dialética semelhante à que encontramos no Antigo Testamento
entre o povo de Israel como nação e Estado, de um lado, e o “rema­
nescente”, “a santa semente”, do outro. Semelhante, ainda, à dialética
entre sacerdotes e profetas. O sacerdote privilegia as significações fun­
cionais às instituições. O profeta, entretanto, privilegia as significa­
ções disfuncionais. O sacerdote deseja preservar o que já é. O profeta
deseja que o novo seja criado. O primeiro constrói templos sobre o
atual. O segundo constrói tendas, pois a sua consciência se abre para
o possível. A comunidade se afirma fiel a uma vocação originária,
que foi petrificada pela instituição. Ela deseja recuperar o carisma que
criou a instituição e que foi por ela, posteriormente, eliminado.
Sua intenção original, portanto, pode ser expressa por aquela pa­
lavra alemã, tão de gosto de Hegel, que não pode ser traduzida direta­
mente: aufheben = cancelar, negar, afim de recuperar, preservar sob
uma nova forma.

4. Protestantismo e comunidade
Em termos muito práticos, e agora em relação apenas a nós que,
de uma forma ou de outra, nos localizamos dentro do círculo de sím-

55
Dogmatismo e tolerancia

ludí»-, hit nial i vos do protestantismo, creio que podemos concluir, com
I’.iiiI I illii li, que talvez estejamos vivendo na hora de “decidir pelo
pi un tpio protestante, em oposição ao protestantismo histórico”. Na
11 tc< líela uní que os sucessivos endurecimentos históricos do protes­
tantismo se constituem na antítese do principio protestante (ou seja,
.i v ipi la n le oposição a todas as formas de absoluto, seja conhecimento
.il )soli i lo, seja a instituição absoluta, seja o poder político absoluto), é
mu cssário romper com as suas formas históricas, a fim de preservar
o sen espirito.

5. Comunidade como heresia


() novo universo do discurso sobre a comunidade contém uma sé­
rie implícita de heresias. Mas não se assustem com a palavra heresia.
I leresia não é algo que se situa no plano da verdade, como oposição a
ela. A heresia se situa no plano do poder. Ortodoxos são os fortes, aque­
les que têm o poder para dizer a última palavra. Por isto eles se definem
como portadores da verdade e aos seus adversários como portadores
da mentira. A heresia é a voz dos fracos. Do ponto de vista dos sacerdo­
tes, os profetas sempre foram hereges. Do ponto de vista dos fariseus e
escribas, Jesus foi também herege. E, como as Escrituras sistematica­
mente se situam ao lado dos fracos contra os fortes, é melhor dar mais
atenção às heresias do que às ortodoxias.
A primeira heresia implícita é a negação da possibilidade de uma
“pliilosophia perennis” ou de uma “confissão de reta doutrina’; posi­
ções idênticas de católicos e protestantes. Tanto a posição católica
como a protestante pressupõem que, num certo momento do passa­
do, se realizou a identidade entre o dizer e o ser, entre a linguagem e o
real. O dizer dogmático exprime a absoluta coincidência entre a coisa
e o intelecto. Entretanto, a busca de novas formas de comunidade im­
plica, a a loma ticamente, a busca de um novo dizer, pois linguagem e
soí iedade se superpõem. Não se pode pensar uma comunidade nova
filando uma linguagem velha. Por isso mesmo as novas comunida­
des eclesiais não podem ser compreendidas como simples “anima-
i,áo” ou "dinamização” do falar antigo. Não podem ser compreendí-
Instituição e comunidade

das como resultado de uma injeção de novos conteúdos emocionais


numa linguagem dantes fria. Não é algo produzido por meio de téc­
nicas de dinâmica de grupo, que aceleram a rotação do disco, dando
a impressão de uma nova vitalidade, enquanto os conteúdos antigos
são preservados de forma intacta.
A segunda heresia tem a ver com a doutrina do Espírito. Ele não se
esgotou no passado, objetivando-se numa instituição ou num código
de doutrinas: posições católica e protestante, respectivamente, e que
se equivalem. O Espírito é livre, e a unidade da sua intenção se mani­
festa numa sucessão de formas historicamente condicionadas, que
envelhecem e morrem. O destino das instituições não é distinto do
destino dos homens. Assim como, de um ponto de vista da fé, eu me
descubro como parte da intenção do Espírito, o que não significa que
eu esteja destinado a permanecer indefinidamente — envelheço e mor­
ro —, a vida das instituições está destinada à velhice e à morte. A
morte também é parte da intenção do Espírito, porque somente pela
morte deixamos o espaço do presente e do futuro livre para as novas
gerações. É necessário entender a morte como um ato de graça, tanto
para os indivíduos como para as instituições. Aqui descobrimos o
pecado original das instituições, e de modo especial da Igreja: a sua
recusa em passar pela morte.
A terceira heresia: a eclesiologia clássica pressupunha que todos sa­
biam onde estava a Igreja. Para os católicos ela se encontra na unidade
institucional que tem o papa por cabeça. Para os protestantes, ela se
encontra onde quer que a reta confissão de fé seja feita. A dialética
entre instituição e comunidade, entretanto, implica que não mais se
aceite que definições institucionais ou cristalizações doutrinárias pos­
sam se constituir na marca distintiva da Igreja. Daí a busca que se
expressa pelo abandono da afirmação, agora trocada pela pergunta:
“Onde está a Igreja?”

ó. As marcas da Igreja e das comunidades


Ressurge, assim, a questão clássica das marcas da Igreja. Só pode
remos reconhecer uma pessoa se tivermos uma idéia de sua fisiono

57
Dogmatismo e tolerância

mi.i So poderemos reconhecer a Igreja, quando ela inesperadamente


•ati gil .1 nossa frente, tendo, de antemão, as suas marcas. E aqui, dian-
le das inúmeras formas possíveis que comunidades possam assumir,
('• necessário ter critérios de discriminação. Tais critérios, nós os en-
(mitramos nos horizontes simbólicos com que estamos comprome­
tidos. Minha convicção pessoal, que partilho com Paul Lehmann, é
<11ic as marcas da Igreja são éticas. Não são marcas formais, institu-
< ionais ou doutrinárias. Elas têm a ver com a qualidade de vida que a
comunidade produz.
Uma delas é a marca do amor. O que importa é aquilo que se dá
entre pessoa e pessoa, e não o universal institucional e doutrinário,
que pretende estar acima do reino a que Buber denominou o
Zwischenmenschlich: o que está entre homem e homem.
A outra marca é o perdão. O que significa que a comunidade não
se constrói em torno da lógica da “performance ”, dos “débitos e cré­
ditos”. Ela não possui uma “contabilidade do mal”. E com isso se
elimiria qualquer moralismo possível.
Mais ainda, deve ser uma comunidade de liberdade, pois “o amor
lança fora o medo”. Segundo o Novo Testamento, o fruto do Espírito
é a liberdade, ou seja, liberdade da lei. A vida não é uma cópia de
princípios morais abstratos. É necessário confiar no homem, nas suas
i n l uições, e dar-lhe um espaço e um tempo para a sua expressão.
Além disso, trata-se de uma comunidade destinada ao mundo.
(lomo Bonhoeffer bem sugeriu, o que está acima do mundo existe
por causa do mundo, e não o inverso, como a teologia cristã tem afir­
mado sistematicamente. Em Cristo estabelece-se o mundo como vo-
q açáo divina. E conseqüentemente humana. Bonhoeffer de novo: “Não
devemos tentar ser mais espirituais que o próprio Deus”.
E, finalmente, considerando o colapso dos critérios institucionais
e doutrinários na definição da comunidade, emergem os fundamen­
tos para o ecumenismo. Não se trata de negociações entre corpos ecle-
siasiii os. Ao assim proceder pressupomos que tais corpos são a Igre-
|a. Mas este é um equívoco. A base do ecumenismo é antes o fato de
nos em onliarmos dentro do mesmo universo simbólico e, concomí-
Insiituiçõo e comunidade

tantemente, de nos encontrarmos comprometidos na busca da Igreja,


já que os critérios institucionais e doutrinários não nos permitem
saber onde ela está. Ao contrário, é o estabelecimento de um novo
reino entre o homem e o homem que se constitui no ponto de parti­
da para a criação de novas formas institucionais.

7. Reforma e ruptura
Referimo-nos atrás às-duas formas de dialética instituição-comu-
nidade: reforma e ruptura.
A dialética da reforma é uma dialética de complementaridade, que
pressupõe que as necessidades da comunidade serão capazes de refa­
zer e revitalizar a instituição, provocando uma nova síntese. Na dialé­
tica de ruptura, entretanto, não mais se crê nessa possibilidade. A es­
perança da revitalização das estruturas vigentes é abandonada.
Afirma-se, ao contrário, a necessidade da criação de novas estruturas
expressivas da comunidade.
Essas duas dialéticas não surgem por acidente. A dialética da re­
forma se dá enquanto as pressões da comunidade não atingem o li­
mite da elasticidade das instituições. Uma vez atingido esse limite, a
ruptura se torna inevitável, não por escolha da comunidade, mas em
decorrência dos limites da instituição.
Ê curioso notar que a Igreja católica, que se define formalmente
como uma estrutura hierárquica, monárquica, com pretensões de in­
falibilidade, tenha se mostrado muito mais elástica que as Igrejas pro­
testantes, que formalmente se definem como democráticas, abertas e
defensoras do livre exame. Quem examinar os últimos quinze anos da
vida de algumas das mais significativas denominações protestantes,
descobrirá uma série de expurgos, característicos da dialética de ruptu­
ra — indicações de que a instituição havia atingido o limite da sua
elasticidade. Por outro lado, a Igreja católica, que experimentou um
despertar de comunidades semelhante ao experimentado pelas Igrejas
protestantes, não foi levada a tal ponto, fiéis de idéias diametralmente
opostas continuam a trabalhar na mesma instituição c a participar da
mesma eucaristia. Como explicar tal fato?

59
Dogmatismo e tolerância

A cxplii.i(,.io inais corrente é que, sendo o protestantismo urna


i< lipi.io individualista, e que preza o livre exame e a liberdade, have-
i i.i .111 n i.i 11 ifcstação muito mais intensa de movimentos de separação
<• <1 ivci sil icaçao. Enquanto a Igreja católica, autoritária, hierárquica e
11 a >iinlíl ica, impediría tais manifestações e com isso se manteria uni-
la ada. Lembro-me de que, no início da década de 1960, talvez no
primeiro simpósio ecumênico que reuniu católicos e protestantes, pa-
li oi ¡nado pela ASTE [Associação de Seminários Teológicos Evangé­
licos!, dizia um brilhante intelectual católico: “Vós, protestantes, di­
zeis: vós, católicos, pagais um preço muito alto pela vossa unidade.
Nós católicos, vos dizemos: vós, protestantes, pagais um preço muito
.lito pela vossa liberdade”. Pressupõe-se que o pluralismo protestante
é um resultado da liberdade. Concordei, naquela época, com essa co­
locação. Decorridos quinze anos eu me corrijo.
O protestantismo produz cismas por ser ele uma instituição total­
mente destituída de elasticidade. Ele não faz lugar, no seu interior,
para interpretações divergentes da fé. É absolutista. Em decorrência
disso, a dialética da reforma é abordada no seu início e transformada
cm dialética de ruptura. A Igreja católica, ao contrário, possui uma
elasticidade muitíssimo maior, de sorte a permitir que as expressões
da comunidade se mantenham dentro da dialética da reforma. É ver­
dade que nenhuma instituição tem elasticidade infinita. Mas até o
momento, parece-nos, tal ponto ainda não foi atingido.
Vamos explicar. Qual é o critério para a participação na instituição
católica? É um critério místico: a participação nos sacramentos. A uni­
formidade dogmática desempenha um papel secundário. Dizia-me um
teólogo católico: “Vocês, protestantes, ainda não entenderam como a
doi 11 ri na da infalibilidade funciona realmente. Ela define de forma mui-
lo precisa e estreita os limites dentro dos quais os pronunciamentos
pap.iis são infalíveis. O que significa que tudo o que está fora destes
limites é falível e, portanto, passível de discussão e discordância”. No
ptolcslanlismo, ao contrário, não há formalmente nenhuma definição
dc mu c entro de infalibilidade. Entretanto, o critério para a participa-
t,.ui n.i < omunidade não é místico, mas antes intelectual: a confissão da
k’1.1 doutrina tal como está definida nas confissões de fé e nos catecis-
Instituição e comunidade

mos. Esses documentos funcionam praticamente como os centros de


infalibilidade. Mas, como tais documentos cobrem todo o campo da
doutrina, não sobra nenhuma área aberta à discordância. Assim, o livre
exame protestante não significa que o crente possa interpretar o texto
livremente, pois a leitura correta já está definida pela confissão. O livre
exame significa, ao contrário, o direito à proximidade física crente-
texto, e a leitura deve conformar-se à leitura já cristalizada pela Igreja.
Isto nos sugere que os caminhos do protestantismo e do catolicis­
mo serão muito distintos. O protestantismo será incapaz de evitar
sucessivas rupturas: uma decorrência inevitável da definição da par­
ticipação na Igreja em função da confissão da reta doutrina. Os cató­
licos, entretanto, ainda têm espaços livres a explorar.

8. A comunidade: uma utopia?


É compreensível que alguém me pergunte: “Esta comunidade de
liberdade e amor, critérios da verdadeira Igreja, onde se encontra?
Não a vejo...” Nem eu.
Movemo-nos, aqui, no campo da utopia. Terreno perigoso e escor­
regadio, que faz divisa com a terra das ilusões. A alternativa seria pen­
sar o presente exclusivamente em termos daquilo que nos é dado em­
píricamente. Terreno sólido, cheio de materiais passíveis de manipula­
ção científica. A proposta utópica se propõe a pensar o real a partir do
possível. A proposta positivista recusa-se a tal vôo. Ela prefere pensar o
presente como um efeito do passado, assim como o futuro será um
efeito do presente. Creio, entretanto, e aqui me identifico totalmente
com Nietzsche, que é necessário inverter essa ordem. Os homens não
dão o próximo passo em decorrência do passo anterior. Eles dão o pró­
ximo passo em função do horizonte de esperança para onde caminham.
É a esperança do futuro que gera a dinâmica do presente. A utopia é
um horizonte de esperança. Horizonte que, ao ser alcançado, se negará
a si mesmo, na medida em que ele se abre para novos horizontes. O
ideal de uma comunidade, assim, não é o produto de uma investigação
empírica, mas antes o horizonte do futuro que imaginamos, a partir
dos horizontes do passado que contemplamos.

61
Dogmatismo e tolerância

|\'< ‘iK ¡(is bibliográficas


( akiii >1, I cwis. Through the Looking Glass. New York, Boni & Liveright,
I'MI,
( oMttt im, Pc. José. Processo de evolução para uma comunidade cristã
ui bann uma visão pastoral. In: Gregory, Afonso. Comunidades Ecle-
diais de Hase — utopia ou realidade. Petrópolis, Vozes, 1973,162-175.
( À )N< ;ar, Yves. Os grupos informais na Igreja — um ponto de vista cató-
1 ico. Gregory, Afonso. Comunidades Eclesiais de Base — utopia ou reali­
dade. Petrópolis, Vozes, 1973, 124-151.
4
As muitas faces do protestantismo

1. Introdução
/^omo definir e caracterizar o protestantismo de nossos dias? Se
K_Jpara explicar o presente nos bastasse olhar para o passado, po­
deriamos responder à pergunta apontando para as origens históricas
do protestantismo: movimento de reforma religiosa, surgido no sé-
culo XVI, sob a liderança de homens corno Lutero, Calvino, Zwinglio,
Knox, Münzer e outros. Entretanto, isso pouco nos ajudaria a com­
preender o protestantismo hoje. Mais de quatro séculos já se passa­
ram desde que Lutero afixou, à porta da Igreja de Todos os Santos,
Wittenberg, as suas 95 Teses. Durante este período o movimento se
diversificou enormemente. Na verdade, desde o seu inicio o protes­
tantismo teve várias faces. Longe de ser um todo unificado, foi ele
mais um conjunto de diferentes processos de institucionalização, de
teologías que muitas vezes se chocavam, de aspirações espirituais con­
traditórias. Freqüentemente as discordâncias se transformaram cm
amargos e mesmo sangrentos conflitos.
Decorridos mais de quatrocentos e cinqücnla anos de história, o
panorama se complicou ainda mais. As faces se multiplicaram. Não é
difícil definir, ainda que precariamente, a Igreja católica. Os católicos
sabem que o que os une não é nem uma uniformidade de idéias nem
uma uniformidade de ritos.

ó3
Dogmatismo e tolerância

I in meio a uma imensa gama de variações, todos se reconhecem


i orno membros de uma mesma comunidade eclesial, estruturada em
torno de um líder comum. Nada há que se assemelhe a isso no pro-
tcstanlismo. Igrejas, seitas, grupos se multiplicam, sem um sentido
de unidade orgânica. Por quê? Uma resposta para tal pergunta é que
o individualismo protestante contém em si as sementes da desinte­
gração. Um dos princípios fundamentais da Reforma, o sacerdócio
universal dos crentes, afirma que cada fiel se encontra perante Deus,
sem necessidade de instituições ou pessoas mediadoras. Além disso, a
ênfase no livre exame das Escrituras e no direito de cada um de inter­
pretá-las, à luz da consciência, teria criado as condições para a multi­
plicação de compreensões conflitivas da fé. Poder-se-ia sugerir a hi­
pótese de que a diversificação que se observa no seio da Igreja católica
não é menor que a do protestantismo. Mas enquanto para os primei­
ros as divergências se dão dentro da unidade do Corpo Místico de
Cristo, e não podem nunca ser usadas para dividi-lo, para os últimos
a cada nova interpretação se segue um cisma.
Este é o problema fundamental com que nos defrontamos ao ten-
lar descrever o protestantismo do século XX: falta-nos um critério
unificador. Não existe uma unidade estrutural.
Quando nos voltamos para a teologia protestante, esperando en­
contrar ali um centro em torno do qual poderiamos integrar as suas
muitas faces, somos desapontados. Fundamentalistas atacam aqueles
a quem chamam liberais. Liberais: quem são eles? A palavra é muito
elástica. Ela pode ser aplicada a todos os que aceitam a crítica bíblica,
àqueles que vêem uma dimensão social no Evangelho, aos biblicistas
da escola de Karl Barth, aos existencialistas influenciados por Kierke-
gaard c Bultmann. Há os protestantes eclesiocêntricos e os defenso-
í cs de uma teologia da secularização. Há os que se preocupam funda­
mentalmente com a doutrina correta, e outros que afirmam que o
<11ic realmente importa são as emoções. Ecumênicos e antiecuménicos.
I ieixemos a teologia e busquemos uma unidade nas experiências
litúrgicas. A liturgia episcopal, muito próxima da católica tradicio­
nal, o rien la-se para o símbolo c o sacramento. O culto presbiteriano
(i < I < 11 ma do), ao contrário, centraliza -se na pregação. A adoração pen-

i
As muitas faces do protestantismo

tecostal, ao contrário, é intensamente emotiva, livre de formas litúr­


gicas cristalizadas. Externamente tudo parece indicar que nos encon­
tramos diante de expressões litúrgicas de grupos religiosos totalmen­
te diversos. No entanto, estas são faces do fenómeno infinitamente
variado a que chamamos protestantismo.
E que dizer dos estilos de vida? Martin Luther King Jr., líder do
movimento de emancipação negra nos Estados Unidos, era um pre­
gador batista. Por outro lado, a África do Sul, o país que teve o mais
rígido sistema de discriminação racial, apartheid, é dominado por
uma população de 81,13% de protestantes. A esse respeito há um
fato muito curioso, ligado à nossa historia. Os primeiros grupos de
norte-americanos a se transferir para o Brasil (fixaram-se na região
de Santa Bárbara do Oeste, São Paulo) eram constituidos por pro­
testantes que, desgostosos com a abolição da escravatura em seu
país, para cá vieram em busca de um lugar onde lhes fosse possível
continuar as práticas escravagistas. John Foster Dulles, ideólogo da
guerra fria, era protestante também. Ironicamente, ele trabalhou
ativamente na organização do movimento ecumênico, que poste­
riormente se institucionalizou no Conselho Mundial de Igrejas, que
desenvolveu intensa atividade para ultrapassar os marcos ideológi­
cos da guerra fria. E que dizer do que ocorreu na Alemanha durante
o período nazista? Se por um lado um grande número de protes­
tantes apoiou Adolf Hitler — urna triste página na historia do mun­
do contemporáneo —, por outro lado, formada também por pro­
testantes, surgiu a Igreja Confessante, uma comunidade clandestina
que lutou até o martirio contra o nazismo. Mas ao lado das polari­
dades institucionais não podemos nos esquecer das figuras solitá­
rias. Como Albert Schweitzer. Erudito, profundo conhecedor de Goe­
the, organista de fama mundial — não se tornou famoso por nada
disso. Educado numa atmosfera mística e moral protestante, sem­
pre se lembrava das palavras de Jesus: “A quem muito se lhe deu,
muito se lhe pedirá”. Resolveu abandonar tudo para se dedicar a
um grupo de africanos que não dispunham de um medico ou de
um hospital. Foi assim que, aos trinta anos, começou uma nova fase
de sua vida: a de médico e missionário.

65
Dogmatismo e tolerância

linio lenomeno religioso é ambiguo e ambivalente. Nele se reve­


la m .1 grandeza e a miséria do homem. O protestantismo não escapa
dessas alternativas.

2. O movimento missionário
Talvez a mais ambiciosa empreitada a que o protestantismo se te­
nha lançado tenha sido o movimento missionário que se iniciou no
século XIX e penetrou século XX adentro.
Quando Portugal e Espanha se lançaram à conquista dos mundos
de além-mar, no século XV, a Igreja católica se viu, de repente, frente
a frente com milhões de pagaos que nunca haviam sido batizados.
Seguiu-se, então, ao lado da expansão bélico-colonial de então, a ex­
pansão da fé católica entre os povos de todas as terras descobertas e
conquistadas. O século XIX foi para o protestantismo o que foi o
século XV para a Igreja católica. Os países protestantes da Europa,
ricos, em plena revolução industrial, começaram a penetrar na Ásia,
na África, na América Latina. É lógico que a expansão colonial não se
fez por nenhum motivo altruista. Freqüentementc, entretanto, as prá­
ticas mais materialistas caminham lado a lado com intenções espiri­
tuais e altruístas! À medida que os europeus e americanos penetra­
vam nos novos territorios, surgia o desejo de que aqueles povos rece­
bessem não só os frutos do comércio e da técnica que lhes eram trazi­
dos, mas que também aprendessem das realidades espirituais que se
encontravam por detrás do seu progresso e do seu bem-estar! Sim,
porque os protestantes sempre viram na sua religião a razão de ser do
seu progresso econômico. Riqueza é uma bênção com que Deus
galardoa a virtude. Por isso, não podiam furtar-se à tentação de
comparar-se com a condição econômica dos países católicos. Se Max
Weber está correto na análise que fez do problema, parece haver ra­
zões para que o protestantismo, historicamente, tenha estado sempre
ligado às formas mais agressivas do capitalismo. Assim, duas coisas
deveríam ir juntas: o comércio e a técnica, bênçãos de Deus, e a pre­
gação do Evangelho, o segredo dessa bênção. Expansão colonial e ex­
pansão missionária ocorrem, assim, concomitantemente. Por outro
As muilas faces do protestantismo

lado, a riqueza resultante da Revolução Industrial e da expansão co


lonial oferecia a base económica para que as igrejas se lançassem na
grande aventura de “converter o mundo a Cristo, nesta geração”. O
que importava era obedecer à ordem de Cristo: “Ide por todo o mun­
do e pregai o Evangelho a toda criatura”. Este era o motor do movi­
mento. Construir igrejas, construir escolas, construir hospitais: curar
a alma, curar a mente, curar o corpo. Esse foi o triângulo sobre que se
assentou a estratégia missionária.
Foi assim que o protestantismo chegou ao Brasil.
Se quisermos compreender as razões por que o protestantismo
brasileiro veio a ser o que ele é hoje, teremos de ter em mente as expe­
riencias profundamente traumáticas por que ele passou, tanto após a
sua implantação pelos missionários no século XIX como no século XX
adentro, até os anos anteriores ao Concilio Vaticano II. Os protestan­
tes foram perseguidos, estigmatizados, humilhados. Proibidos por lei
de construir templos, construíam “casas de oração”. Muitas delas fo­
ram apedrejadas ou queimadas. Ser protestante era um sinal de ver­
gonha numa sociedade que se definia como católica romana. Não
podemos, entretanto, responsabilizar os católicos por tudo o que acon­
teceu. E isso porque não faltaram ao protestantismo agressividade e
ódio contra os católicos. Catolicismo romano: símbolo de idolatria,
de superstição, de ignorância, de atraso, resíduo do mundo medieval
já defunto. Quem quer que se dê ao trabalho de examinar a literatura
protestante da primeira metade do século XX verá que se trata de
literatura polêmica. Em decorrência desses, conflitos, o protestantis­
mo tendeu a definir-se a si mesmo em termos de oposição ao catoli­
cismo. Como disse certa vez Erasmo Braga, “o protestantismo c um
retrato negativo da Igreja católica, com todos os inconvenientes do
negativo”. O protestantismo brasileiro, assim, parece ser menos mar­
cado pela tradição do protestantismo histórico que pelo seu conflito
com a Igreja católica. É isso a nosso ver, o que explica o elemento
radicalmente antiecuménico que o caracteriza. Estamos aqui diante
de um estranho fenômeno. Os protestantes denunciavam os católi­
cos como idólatras. Após o Concilio Vaticano II a imagens começa­
ram a desaparecer das igrejas. Os protestantes acusavam os católicos

67
Dogmatismo e tolerância

• le tl.ii mais atenção às sua tradições que às Escrituras. Mas a leitura


<1,is l-.scril u ras também passou a fazer parte da piedade católica. O
l.tiiin loi substituído pelo português, o sacramento se tornou mais
(Oimmitário e menos mágico. Em resumo: a Igreja católica se
"reformulou” segundo linhas muito próximas daquelas preconizadas
pela própria polêmica protestante. Seria de esperar que os protestan­
tes se regozijassem com isso. Mas tal não aconteceu. Por quê? A iden­
tidade protestante dependia demais de sua oposição ao catolicismo.
Por isso, quando este se transformou, a própria identidade protes­
tante ficou em perigo. O antiecumenismo protestante decorre, assim,
dos traumas históricos que o marcaram de maneira indelével.
O que importava ao movimento missionário era “ganhar almas
para Cristo”, levar os pecadores a encontrar-se pessoalmente com o
seu Salvador. Ainda hoje os sermões missionários tendem a obedecer
a um mesmo conjunto de axiomas bíblicos fundamentais. Primeiro,
todos os homens pecaram. Segundo, “o salário do pecado é a morte”.
Estamos destinados à perdição eterna. Terceiro, nada há que possa­
mos fazer para nos livrar dessa situação. Quarto: Deus, pelo seu amor,
nos salva gratuitamente, se nos entregamos de corpo e alma à miseri­
córdia de Cristo.
Uma vez convertido, é necessário expressar a condição de salvo
mediante um novo estilo de vida. Max Weber, no estudo que fez da
ética protestante, observou que, para os calvinistas, o sucesso nos ne­
gócios era um indício da bênção divina. Na América Latina, entre­
tanto, os protestantes evidenciavam seu novo status espiritual não pelo
sucesso financeiro, mas por meio de um virtuosismo moral que os
tornava diferentes dos demais. Era comum ouvir-se: “Os crentes são
diferentes”. Na verdade, o seu estilo de vida era ímpar. Ascético, disci­
plinado, não fumavam, não bebiam, não jogavam, eram honestos,
fiéis às esposas, guardavam o domingo com rigor.
l-'oi a partir do fim do século XIX, e especialmente no século XX,
que o movimento missionário atingiu o seu apogeu. Em meio a to­
dos os triunfos, entretanto, os novos conversos e mesmo os missio­
nários começaram a sentir um difícil problema. Sabia-se que as vá-
i ias divisões denominacionais do protestantismo se deviam mais a

JI
As muitas faces do protestantismo

acidentes históricos na Europa que a conflitos doutrinais fundamen­


tais. Se assim era, haveria alguma razão para se perpetuar, nos cam­
pos missionários, as mesmas divisões que fragmentavam o protes­
tantismo de origem? Haveria algum sentido em torná-los metodistas,
presbiterianos ou anglicanos? Frequentemente, os diversos grupos
missionários disputavam prosélitos. E a pregação do evangelho, em
vez de criar uma nova experiência de fraternidade, passava a ser o
meio pelo qual divisões e conflitos estranhos eram transplantados
para um país que não os conhecia. Percebeu-se, então, que talvez o
maior obstáculo à conversão das pessoas fossem as próprias divisões
da Igreja. Como anunciar a reconciliação se os próprios cristãos não
conseguiam viver e trabalhar juntos?
A consciência missionária do “escândalo das divisões” foi o ponto
do qual emergiu a consciência ecumênica do século XX: somente uma
Igreja unida pode proclamar o Cristo inteiro. A consciência ecumê­
nica se institucionalizou num movimento ecumênico. Os esforços
para a criação de um órgão central do movimento, interrompidos
durante a guerra, foram retomados logo após o seu término, e em
1948, em Amsterdam, foi criado o Conselho Mundial de Igrejas.
O que é o Conselho Mundial de Igrejas? Não se trata de um conci­
lio. Nenhuma das Igrejas membros é obrigada a obedecer às suas deci­
sões. As conclusões a que porventura chegue têm sempre o caráter de
conselhos. Seu objetivo é simplesmente congregar os cristãos que con­
cordem com uma afirmação teológica mínima: “Cristo é Senhor”. Por
isso, ali se encontram cristãos das mais variadas tradições: alguns com
tendências místicas, outros preocupados com a política; alguns volta­
dos para a liturgia, outros voltados para a ética e a ação. Conservadores
se assentam ao lado de liberais. Suas atividades são as mais variadas, e
vão desde auxílio a prisioneiros de guerra, a populações devastadas por
catástrofes, a refugiados, passando pela mediação entre grupos cm con­
flitos políticos, por pesquisas de natureza científica, geral men te volta­
das para os problemas humanos, ate todos os tipos de estudo relacio­
nados com a fé.
Parece, entretanto, que o movimento missionário está passando
por uma profunda crise. As chamadas Igrejas novas, que nasceram

69
Dogmatismo e tolerância

i oino linio das missões, estão começando a se perguntar: “Até que


ponto nossa conversão a Cristo não foi também uma conversão a um
esltlo de vida anglo-saxão, que nos é totalmente estranho?” Os mis­
sionários sempre foram representantes de uma cultura diferente, e
seria impossível que, ao pregar o evangelho, eles não pregassem tam-
I >ém, ainda que não o desejassem, os seus valores culturais. É curioso
observar como o Cristo da arte protestante é um tipo que exibe cer­
tos traços raciais e de estilo peculiares aos anglo-saxões. O mesmo
aconteceu com a pregação: o evangelho foi transmitido sob uma for­
ma cultural que não lhe pertencia e, mais do que isso, que era estra­
nha àqueles a quem era pregado. Assim, freqüentemente, converter-se
a Cristo significava alienar-se da cultura mãe. No caso específico da
América Latina e do Brasil, a cultura local estava tão identificada com
a Igreja católica romana que o símbolo do rompimento com o cato­
licismo era o rompimento com os valores nativos. Por isso “o protes­
tante é diferente”. O processo de transplante de cultura que esteve
lado a lado com a pregação se torna muito claro quando vemos o que
se fez com a música sacra. Somos um continente extremamente rico
no que se refere à música. Influências negras, índias, européias se en­
contraram, produzindo uma imensa variedade de estilos regionais,
de ritmos, de instrumentos musicais. Mas as Igrejas protestantes pre­
feriram sistematicamente o harmonio (com a exceção dos pente-
costais), instrumento importado, difícil de ser trabalhado ritmica­
mente. Por quê? Porque nossos hinos não foram expressões originais,
em vestes culturais originais, de um Cristo que havia sido pregado,
mas antes traduções de letras americanas e alemãs, e com o uso das
mesmas melodias originais. O protestantismo, através do mundo todo,
canta os mesmos hinos. Isso pode ser um símbolo de unidade. Mas
pode ser indício de pobreza: as Igrejas jovens ainda não produziram
a sua própria arte.
lista é, talvez, a razão mais séria para a crise do movimento missio-
i ui rio. Observa-se, entre muitas das igrejas protestantes da Ásia, da África
r da América Latina, a consciência da necessidade de caminhar com
seus próprios pés, de tomar distância das Igrejas protestantes brancas e
i icas, para que tenham tempo e condições para gerar expressões de fé

11
que sejam harniónicas <0111 sua ex pericia ia <. iilliiral, li a pergmila <pic
muitos estão levantando é se não terá chegado a hora de silêncio para
aqueles que um dia detiveram o monopólio das missões, a hora de ou­
vir aquilo que as vozes das Igrejas novas têm a dizer.

3. O fundamentalismo
Desde o seu início o protestantismo sentiu uma grande tendência a
uma definição cerebral do que significa ser cristão. Há razões históri­
cas para explicar isso. Nas polêmicas que se seguiram à Reforma, a Igreja
católica sempre dizia: “Somos a verdadeira Igreja porque é possível tra­
çar uma linha ininterrupta, historicamente contínua, que vai desde os
nosso dias até a Igreja apostólica. O protestantismo, entretanto, é uma
coisa nova, algo que surgiu num acidente histórico, e que não pode,
portanto, pretender ser possuidor da tradição evangélica”. Para
contra-atacar, os protestantes retrucaram: “A marca da verdadeira Igreja
não se encontra na sua continuidade histórica. O que importa é se ela,
no presente, confessa a sua fé em conformidade com a Escritura”.
O protestantismo tendeu, em conseqüência, a produzir um gran­
de número de confissões, todas elas com o objetivo de expressar com
maior clareza e precisão a essência da fé bíblica. A preocupação com a
confissão correta chegou a se tornar obsessiva, produzindo um pe­
ríodo que veio a se denominar “ortodoxia protestante”. A fé chegou
mesmo a se identificar com a adesão intelectual a um certo número
de proposições dogmáticas que, pretendia-se, expressavam o “siste­
ma de doutrinas” contidas na Bíblia, e que eram necessárias para a
salvação. A esterilidade chegou a tal ponto que um movimento de
reação eclodiu, enfatizando exatamente o outro pólo: o importante
não são as idéias que uma pessoa possa ter cm sua cabeça, mas antes
a experiência pessoal, emocional, de encontro com Jesus Cristo —
experiência tão intensa e sublime que nunca pode ser reduzida a uma
proposição. Foi o pietismo. Na história do protestantismo vemos um
pêndulo oscilando entre estes dois extremos, continuamente, pare­
cendo indicar que a relação entre as idéias e as emoções ainda não foi
resolvida entre os continuadores da Reforma.

71
Dogmatismo e tolerância

A gi ande atração do fundamentalismo — nome que se usa atual-


inenle para designar a primeira opção — está em que, uma vez atin­
gido um consenso sobre a expressão intelectual da fé, terminam to­
das as dúvidas. Todos os problemas novos podem e devem ser resol­
vidos em função das respostas já cristalizadas nas confissões. Deus
revelou a sua vontade eterna de maneira completa e perfeita por meio
da Bíblia. A Bíblia é, assim, o livro sagrado, inspirado. Suas palavras
foram ditadas pelo Espírito Santo. Se dispomos de uma confissão ou
um sistema de doutrinas que contenha aquilo que o Espírito falou,
então estamos de posse de uma verdade absoluta, que transcende a
história, e que permanecerá para sempre, aconteça o que acontecer.
O fundamentalismo, assim, constrói um mundo estável e fixo, domi­
nado por certezas, e quem quer que ali penetre verá todas as suas
dúvidas terminadas. As questões que a história levanta, os novos pro­
blemas que surgem dia a dia, longe de ameaçar o universo funda-
mentalista, são nada mais que expressões da perversidade do homem,
do seu pecado e da sua resistência à verdade bíblica.
Decorre daí que o fundamentalista não pode permitir que quais­
quer questões críticas sejam levantadas acerca do Livro Santo. Ora, o
século XIX foi o século crítico por excelência. Com Darwin já não
mais se aceitava que os relatos da criação do homem, dos primeiros
dois capítulos de Gênesis, pudessem ser a verdade científica. Com o
advento da crítica histórico-literária, não mais se admitia que qual­
quer documento humano, inclusive a Bíblia, tivesse sido escrito por
meios sobrenaturais. Com a visão fechada do universo que caracteri­
za a ciência, os milagres não mais podiam ser cridos como dantes. O
conflito é inevitável. Na verdade, o fundamentalismo e a ciência têm
vivido num estado de luta permanente.
Significa isso que o fundamentalismo é um movimento marginal
aos eventos do mundo contemporâneo? De forma alguma. Até poucos
anos atrás, cientistas de algumas universidades dos Estados Unidos
eram proibidos de defender a teoria da evolução. Alguém comentou,
10111 ironia, que capitalistas fundamentalistas usavam de todos os re-
< ursos que a moderna geologia colocava ao seu alcance para desco-
l>i ii petróleo, c com parte dos seus lucros sustentavam seminários e
As muitas faces do protestantismo

missionários fundamentalistas que se dedicavam a negar a validez


das ciências geológicas.
Os fundamentalistas se declaram conservadores. Se a verdade últi­
ma já foi dada aos homens no passado, basta-nos apenas conservá-la c
anunciá-la. O caráter absoluto das suas convicções os leva a dividir os
homens, de forma clara e final, em duas facções opostas. Suas publica­
ções identificam o capitalismo, a livre empresa e o estilo norte-ame­
ricano de vida com a fé cristã, e tudo o que se desvia daí é identificado
ou com a Igreja católica romana, ou com o comunismo, os seus dois
grandes adversários. É essa posição ideológico-teológica que faz deles
inimigos irredutíveis de tudo aquilo que possa parecer um comprome­
timento da fé: a crítica bíblica, o ecumenismo, a preocupação social.
São, por isso mesmo, inimigos do Conselho Mundial das Igrejas. Jul­
gam que sua base teológica mínima “Jesus Cristo é o Senhor” é insufi­
ciente, consideram-no comprometido com a Igreja católica, veem a
participação de Igrejas do bloco comunista como infiltração comunis­
ta e identificam a sua preocupação com a justiça social como expressão
da influência do marxismo.

4. As tendências proféticas do protestantismo


O fundamentalismo optou pela preservação de uma forma cristali­
zada da fé. Para isso ele foi forçado a ignorar tudo o que acontecia ao
seu redor. Ou mais precisamente: ele não permitiu que as suas defini­
ções doutrinárias fossem questionadas pelos eventos históricos.
Uma outra face do protestantismo, entretanto, optou pelo oposto:
permitiu-se interrogar pela problemática do seu momento. Encon­
tramos aqui as marcas de um diálogo intenso com os eventos do sé­
culo XIX, o século da consumação da Revolução Industrial. Com o
advento da máquina, profundas transformações sociais ocorreram
na Europa e nos Estados Unidos da América. Por um lado, o grande
progresso econômico, o aumento dos bens e a consequente conven
tração de riqueza nas mãos daqueles que controlavam o sistema de
produção. Por outro lado, entretanto, surgiram as massas de liaba
lhadores que existiam em função do seu trabalho nos grandes ioid

•3
Dogmatismo e tolerância

plexos industriais. Como a situação era totalmente nova, não havia


leis <|iic os protegessem. De forma que a sua situação humana era das
11 i.i is l rágicas. A ideologia então dominante, inspirada na visão mecâ-
niui e harmónica do universo físico de Newton, afirmava que o siste­
ma social era um todo harmonioso, e que mais cedo ou mais tarde,
na medida em que o progresso econômico avançasse, as aberrações,
desigualdades e injustiças que sofriam os operários seriam automati­
camente resolvidas.
Muitos pensadores, entretanto, começaram a questionar a valida­
de dessa ideologia. Parecia-lhes, ao contrário, que a situação tendia a
se deteriorar, e que mais cedo ou mais tarde a sociedade passaria por
um cataclismo social sem precedentes. Marx muito contribuiu para
que as contradições resultantes da Revolução Industrial ficassem à
mostra. Movidos por uma preocupação semelhante, mas sem parti­
cipar dos seus pressupostos teóricos, surgiram vários pensadores, os
“socialistas utópicos”, que afirmavam que era necessário e possível
tranformar aquela ordem injusta de coisas numa sociedade fraterna
e humana.
A preocupação social com a justiça e o bem-estar dos homens in­
vadiu também o protestantismo, que até então havia se limitado qua­
se que exclusivamente à dimensão subjetiva, interna, existencial da
fé. John Wesley, o fundador do metodismo (17031791), já havia se
preocupado muito com a condição social das classes pobres na Ingla­
terra. Mas, nas linhas do pietismo, ele pensava que o mundo poderia
ser transformado pela regeneração de cada um dos membros da so­
ciedade. Digamos de passagem que esta nos parece ser a doutrina
social mais amplamente aceita nos círculos protestantes, ainda hoje:
“Converta-se o homem e a sociedade se transformará”. A ênfase fun­
da mental, portanto, é na experiência pessoal de conversão, no encon-
tro pessoal com Cristo.
Agora, entretanto, a mesma preocupação começa a expressar-se
mediante uma pergunta diferente: Será necessário esperar a conver­
são de Iodos os homens para vermos uma sociedade mais cristã? Será
que nos ensinamentos de Jesus não encontramos “princípios sociais”
que, se transformados em ação política, poderíam tornar o mundo

i
As muitas faces do protestantismo

um pouco melhor? Em outras palavras: no passado a Igreja havia se


preocupado em converter indivíduos à fé cristã. Não seria possível
dar um passo a mais — sem abandonar o primeiro — e lutar pela
criação de uma ordem social baseada nos ensinamentos de Cristo?
Um dos líderes deste movimento, que tomou o nome de “Evangelho
Social”, foi Walter Rauschenbusch. Os títulos de dois dos seus livros
são muito sugestivos, porque indicam o espírito que impulsionava o
movimento: Cristianizando a ordem social (1914)e Os princípios so­
ciais de Jesus (1916). Dizia ele: “Uma ordem social não-cristã se co­
nhece pelo fato de que ela força homens bons a fazer coisas más. Ela
tenta, derrota, exaure, degrada. Ela faz os homens definharem,
intimida-os, e envergonha-os em sua humanidade. Uma ordem so­
cial cristã força os homens maus a fazer boas coisas. Ela estabelece
altos alvos, orienta os impulsos desorganizados dos fracos, treina os
poderes dos jovens, e todos a sentem como uma força que eleva e que
lhes dá a consciência de uma humanidade mais ampla e mais nobre à
medida que os anos passam”.
Visões, quando surgem da experiência de um problema universal,
não se mantêm restritas a uns poucos indivíduos. Transformam-se
num verdadeiro borbulhar, e pouco a pouco, nos mais variados luga­
res, levantam-se outros indivíduos com visões semelhantes. Na Ale­
manha, Paul Tillich foi uma das vozes a proclamar a necessidade de
se fazer sentir, sobre a sociedade, o impacto da fé. Profundamente
chocado pela experiência da Primeira Guerra Mundial, indício de que
a civilização ocidental estava enferma, Tillich sentiu que era necessá­
rio que os protestantes dissessem Não às tendências da sociedade
contemporânea. Rauschenbusch mantinha visões utópicas de uma
sociedade cristã. Tillich não participava do mesmo otimismo. Entre­
tanto, isso não significava que os cristãos devessem cruzar os braços.
Segundo ele, a essência do protestantismo — o que ele denominou
“Espírito protestante” — era o firme Não que a Igreja deveria dizer,'
por palavras e ações, a todas as tentativas do Estado, qualquer Estado,
de se transformar num absoluto. Quando um listado pretende ser
absoluto, transforma-se em um poder demoníaco. Homens são re­
duzidos a funções, pessoas transformadas em papéis, e a liberdade é

75
Dogmatismo e tolerância

I i i i.ili ik'i tic engolida pelo sistema social. A mesma linha crítica foi
< \plot.ul.i nos listados Unidos, especialmente na década de 1930, por
Rrinhokl Niebuhr, numa combinação de análise social e de urna teo-
h >gi.i inspirada nos profetas e no pensamento de Agostinho. E é esse
iipo de preocupação que irá encontrar uma cristalização institucio­
nal no Conselho Mundial de Igrejas, no seu esforço para levar os cris­
tãos a se organizar na luía por uma sociedade participatória, justa e
ecologicamente viável.
Pensadores, entretanto, são pálidas caricaturas da vida. É neces­
sário pensar em mártires. Um dos capítulos mais tristes e mais he­
roicos do protestantismo do século XX talvez tenha sido o que ocor­
reu com a Igreja sob Hitler. É muito fácil para um grupo religioso
capitular ante os poderes do Estado. Especialmente quando existe
uma longa tradição de separação de poderes que reserva a esfera
política para os governantes e segrega a Igreja a uma região espiri­
tual e interior. Por vários séculos a Igreja luterana afirmava a dou­
trina dos dois Reinos: o Reino da Lei, secular, arreligioso, com po­
deres para gerir as questões deste mundo, e o Reino da Graça, pes­
soal e íntimo, definido pela Igreja, a comunidade dos fiéis, pela pre­
gação da palavra, pelos sacramentos.
Quando Hitler subiu ao poder e a ideologia nazista varreu a Ale­
manha como urna nova religião, pareceu natural a muitos líderes
da Igreja que isso estava bem. Não era tarefa da Igreja opor-se ao
listado. Essa área não lhe pertencia. Formaram-se grupos de “cris­
tãos alemães” que buscavam equacionar sua religião com a nova fé
nacionalista. Parecia-lhes fundamental, até, purificar a Bíblia das
suas influências judaicas. Como todos se recordam, o judeu, sob o
nazismo, se constituiu no símbolo do mal, e portanto na raça que,
para o bem do Estado e da Fé, deveria ser destruída. Organizou-se,
sob o patrocínio do Estado, a Igreja evangélica alemã, que deveria
< ultivar uma vida espiritual harmônica com a ordem estabelecida.
() I )r. August Jãger, nomeado por Hitler para cuidar das questões
i el.it ivas à Igreja, declarou: “Desde que o Estado, no interesse de si
mesmo, da nação e da Igreja, não pode tolerar oposição de qual-
qnri tipo, qualquer esforço para resistir será considerado traição.
As muitas faces do protestantismo

Exijo que se obedeça a meus decretos e que meus auxiliai«”. na<>


sejam sabotados. Qualquer tentativa neste sentido seria icbch.it»
contra a autoridade do Estado e seria imediatamentc suprimid.Ó
Ora, se se aceitava que as autoridades eram constituidas pela vonl.i
de divina para governar a ordem secular, cabia à Igreja simples men ir
obedecer. E foi o que a maioria fez.
Um pequeno grupo, entretanto, recusou-se. Organizou-se nmu
entidade clandestina, a “Igreja Confessante”, isto é, a Igreja que con
fessava a sua fé em obediência exclusiva à Palavra de Deus e se recu
sava a obedecer ao Estado. A historia desse grupo é heroica. Mu ¡los
tiveram de sair da Alemanha. Outros foram para campos de con
centração. Alguns sobreviveram. Muitos morreram. Ficou, como
mártir, símbolo dessa resistência, o nome de Dietrich Bonhoeffer,
enforcado por ordem expressa de Hitler. Na segunda-feira, 9 de abril
de 1945, foi executado em Flossenbürg, após haver dirigido na vés­
pera, para seus companheiros de prisão, uma pequena cerimônia
de adoração.
Um outro nome-símbolo que temos de ter em mente é o de Mar­
tín Luther King Jr. Os negros americanos, para ali trazidos como es­
cravos, se converteram ao protestantismo — não nos interessa aqui
como isso se deu — mas desenvolveram uma forma muito própria
de expressar sua experiência religiosa. Talvez os “Spirituals” sejam a
mais perfeita expressão de sua alma: combinação de tristeza, de im­
potência, de uma infinita nostalgia por uma terra em que seriam li­
bertados de sua condição. Mas, como não havia nenhuma possibili­
dade de que esse sonho se realizasse neste mundo, a liberdade só se
encontraria “além do rio”, além da morte: ali, na Pátria celeste, os
negros seriam seres humanos de novo. Por séculos, seus sonhos fo
ram cantados. Embora sem nenhuma esperança para este mundo.
Mas as condições mudaram. E começaram a suspeitar de que talvez o
sonho pudesse transformar-se em realidade, não “além do rio”, mas
aqui mesmo, num futuro não muito distante. Em todo o movimenlo
de emancipação negra nos Estados Unidos encontramos .sempre este
elemento: as esperanças para o além são trazidas para este inundo. I
as canções que antes embalavam se transformaram em hinos de guct
Dogmatismo e tolerância

id Não se pode negar o fato: Martín Luther King Jr. foi um dos gran­
de’, lideres carismáticos que contribuíram para isso. A fé trans­
limiten se num desejo imenso de transfigurar o mundo, de forma
que l)t ancos c negros pudessem viver como irmãos. Como sabemos,
ele loi assassinado. Para os cristãos, isso não foi uma surpresa. Sem­
pre que a fé é levada a sério e sempre que ela interfere no equilíbrio
dos negócios humanos, há uma cruz num fim de caminho.

5. O pentecostal ismo
Das múltiplas faces do protestantismo, sem dúvida alguma o mo­
vimento pentecostal é a que mais tem fascinado líderes religiosos,
teólogos, sociólogos e líderes políticos. Grupos que crescem vertigi­
nosamente, onde o protestantismo tradicional apenas cresce vege­
tativamente ou mesmo decresce. Por quê? Qual o segredo da sua
dinâmica?
Seu nome vem do relato do livro dos Atos dos Apóstolos quando,
no dia de Pentecostés, os discípulos de Cristo foram repentinamente
cheios do Espírito Santo, e começaram a falar em línguas estranhas.
Numa análise da literatura pentecostal, poder-se-ia ter a impressão
de se assemelharem muito aos fundamentalistas. Na verdade, no que
se refere à expressão verbal da fé, não estão muito distantes. Entre­
tanto, um grande abismo os separa. E isso porque para o pentecostal
o que importa não é uma verdade enunciada na forma de um dogma,
mas antes a experiência extática, de ser arrebatado pelo Espírito —
experiência inefável, que não pode ser descrita por meio da lingua­
gem dos homens.
Por que crescem? Não nos compete analisar o fenômeno. Deseja­
mos apenas constatá-lo. Formam-se pequenas comunidades. Na sua
maioria são constituídas por pessoas da baixa classe média, operários
urbanos e rurais. Não contam com um corpo clerical treinado. Seus
líderes, freqüentemente, emergem naturalmente das próprias comu­
nidades. Muitos ganham o seu sustento em profissões seculares. Pos­
suem um grande senso de fraternidade, de missão, de responsabili­
dade. Via de regra, são dizimistas: dão para a comunidade 10% de
As muitas faces do protestantismo

tudo o que ganham. Suas experiências de culto em nada se asscmc


lham ao protestantismo tradicional. São intensamente emotivas e os
seus brados de “Aleluia” “Amém”, “Gloria a Deus” se juntam livre­
mente à pregação, às orações e aos hinos.
Até agora, o pentecostalismo era constituído por grupos distintos
das demais Igrejas. No momento, entretanto, a atitude pentecostal já
invadiu as Igrejas tradicionais. Formam-se pequenas comunidades
em meio às grandes organizações: novas solidariedades, novas expe­
riências, novas lideranças carismáticas, paralelamente às lideranças
burocráticas. Até no seio da Igreja católica já se faz sentir o impacto
do espírito pentecostal. É lógico que os conflitos se multiplicam, es­
pecialmente entre a liderança oficial, que está perdendo a sua influên­
cia, e as lideranças carismáticas emergentes, que estão catalisando a
nova espiritualidade.

6. O protestantismo e a secularização
Nos séculos que se seguiram à Reforma, a historiografia católica
foi unânime em responsabilizar o protestantismo pela desintegração
da síntese medieval e pela conseqüente secularização da vida que se
seguiu. Não há dúvidas de que a cosmovisão medieval era bela, integra­
da, sinfônica. O universo era um templo em que homens, anjos e
demônios se misturavam, orbitando em torno de um centro racional
luminoso, Deus. Cada evento era um símbolo do invisível. Eventos
eram milagres. Sempre que se perguntava acerca da causa última de
tudo o que ocorre, a Igreja apontava para cima e os seus olhos se
voltavam para o sagrado. Para o espírito católico, razão e revelação
formavam uma unidade em que a revelação era sempre o fundamen­
to da razão. “Creio para entender”, afirmava Anselmo. Assim, para
compreender o que realmente ocorre no universo, a razão humana
deveria se submeter à revelação, o cientista deveria se curvar anle a
sabedoria do magistério eclesiástico. Talvez o exemplo mais vivido
dessa visão de mundo se encontre no conflito entre as conclusões
científicas de Galileu, de um lado, e a teologia da Igreja, de oulro. lí
Galileu teve de se submeter.

v
Dogmatismo e tolerancia

(Ion] o protestantismo, entretanto, tal síntese se fragmentou.


I ’.i 11 i 11 se a mágica unidade entre razão e revelação. Talvez no austero
<• ascético filósofo Kant encontremos o ponto culminante do espirito
protestante, nesta questão. Razão e revelação, inteligência e fé foram
irremediavelmente separadas. Por um lado, não se pode conhecer Deus
.i partir da razão. A teologia natural é impossível. E, inversamente,
não se pode impor à razão os critérios normativos da fé.
Em outras palavras: o princípio da separação entre a razão e a
revelação interditou ao teólogo e à Igreja decidir sobre o que é verda­
deiro, no campo da natureza. A razão é autônoma. Não se encontra
sob a tutela de nenhum poder que lhe é exterior. Ao mesmo tempo
que se negava à razão qualquer poder metafísico, qualquer possibili­
dade de contemplar o divino — a razão é assim dessacralizada —,
concedia-se a ela poder indefinido para conhecer o mundo. Estabe­
lecia-se o domínio da razão na esfera secular.
Terá sido tal feito titánico uma realização do protestantismo? Ou
não seria essa quebra da síntese antes o produto de um espírito cien­
tífico, iconoclasta, já em formação? Não podemos discutir tal ques­
tão dentro dos limites de que dispomos. Uma coisa, entretanto, é in­
discutível: a par da revolta contra a ciência que encontramos no pro­
testantismo fundamentalista, há outra face do protestantismo que
possui imensa afinidade com a ciência e a tecnologia.
Deus já não podia ser invocado para explicar o que ocorria no
mundo. O universo é um sistema fechado sobre si mesmo. Milagres,
logicamente, não podem ser admitidos. Imaginem o que isso signifi­
cou para a interpretação da Bíblia! Deus, à medida que a ciência avan­
çava passo a passo na explicação do universo, tinha de recuar cada
vez mais para regiões sempre mais distantes.
Muito embora para os místicos e românticos isso significasse uma
perda irreparável, as tendências secularizadoras do protestantismo
não podiam esconder o seu otimismo. Foi assim que, especialmente a
partir da década de 1950, elaborou-se a “teologia da secularização”. A
Ir, afirmava-se, nada tem a ver com aquilo que está para além do

MO
As muitas faces do protestantismo

mundo e além da vida, mas se expressa exatamente na aceitação dos


limites estreitos que a Criação nos impõe.
Se assim é, que dizer da religião? Não é a religião a busca do divi-^
no? Não pretende ela unir-se ao Deus que transcende a tudo aquilo
que possamos experimentar e pensar? Talvez tenha chegado o tempo
em que precisemos reconhecer na religião uma fantástica ilusão. Tal­
vez a religião nada seja além da mais alta expressão da busca humana
de absolutos, o resultado da vocação idólatra do homem. Se assim é,
então a verdadeira existência da fé consiste em abdicar para sempre
da busca do divino, “esperar sem o auxílio de ídolos”. A religião mor­
rerá, como conseqüência do inevitável avanço da ciência. E o homem
terá de aprender a viver sozinho, com seus próprios recursos, sem
lançar mão de Deus para livrá-lo da sua condição histórica. Para to­
dos os efeitos, Deus morreu para o homem moderno. E o nosso pro­
blema, então, é o de viver, com fé, num mundo onde não se pode ter
certezas absolutas.
Mas as perspectivas não são tão sombrias como parecem, conti­
nuava a teologia da secularização. O Deus que nos abandonou como
entidade espiritual misteriosa, do além, se encontra escondido nos
próprios processos de secularização. Bastará jogar bem o jogo da se­
cularização, sem manter expectativas religiosas, que haveremos de
encontrá-lo nos próprios resultados deste processo. Assim, Arend Th.
van Leeuwen afirmava, num livro que se tornou leitura obrigatória
para seminaristas e pastores, O cristianismo na história do mundo,
que na tecnologia encontramos a expressão secular da ação liberta­
dora de que nos fala a Bíblia. O espírito do protestantismo se identi­
fica com o espírito da modernidade.
Parece, entretanto, que a teologia da secularização teve uma vida
muito curta. Em primeiro lugar, falharam as profecias acerca do ílm
da religião. Apesar do avanço contínuo da ciência, vivemos cm meio
a uma ânsia religiosa sem precedentes, em nossa experiência. Mas
por que apesar7. Talvez o correto fosse dizer: cm decorrência do pro­
gresso da ciência. Porque a ciência não correpondcu às expectativas
que mantínhamos a seu respeito. Muito poucas pessoas ainda crêem

81
Dogmatismo e tolerância

que <i ciencia resolverá os problemas mais profundos do homem. E


com a queda de mais este ídolo, a razão humana, aproxima-se da se­
nilidade, e talvez da morte, mais urna das faces do protestantismo.

7. O futuro
Foi publicado, tempos atrás, nos Estados Unidos, um livro cujo
título levanta a seguinte questão: Por que estão crescendo as Igrejas
conservadoras? Pergunta curiosa porque, dada a atmosfera crítica e
inquisitiva do século XX, tudo parecería indicar que os grupos mais
abertos, e não os mais fechados, deveriam estar crescendo. Mas tal
não se dá. Os grupos conservadores, seja do tipo fundamentalista,
seja do tipo pentecostal, crescem. Mas aqueles que tentam exprimir
uma preocupação crítica e profética estão enfrentando sérias crises.
Decresce o número dos seus membros. Decrescem também, de for­
ma substancial, as contribuições financeiras de que dependiam esses
grupos para sobreviver.
O que se encontra por detrás disso? É muito difícil responder com
precisão. Parece, entretanto, que essa crise não é o resultado de um
decréscimo no interesse religioso. Como já observamos atrás, a ânsia
por experiências religiosas do nosso momento histórico é sem prece­
dentes. Como explicar então o fenómeno?
Os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial se caracteriza­
ram por uma crescente tomada de consciência dos problemas que afli­
gem o nosso mundo. Consciência dolorosa que se combinava com um
grande otimismo acerca de nossas possibilidades de construir um mun­
do novo. As esperanças, entretanto, não se realizaram. As frustrações se
seguiram. Chegou um momento em que os homens se cansaram de
lutar. Numa situação como essa é muito doloroso ter consciência críti­
ca do que está ocorrendo. De um ponto de vista emocional, ignorar é
muito mais funcional que conhecer. Ora, o protestantismo profético
(inha como um dos seus objetivos tornar os homens cada vez mais
conscientes da situação trágica do nosso mundo. Ele se tornou, por
isso mesmo, incômodo e disfuncional. A consciência frustrada e impo­
tente preferirá sempre ilusões, ou quaisquer fórmulas intelectuais que
'■>. muitas faces do protestantismo

<i poupem da dor de contemplar o real. Por isso, o momento emocional


<1 Lie vivemos, de desapontamento e cansaço, faz com que as respostas
religiosas do tipo dogmático e final sejam muito mais atraentes. De
posse de uma fórmula intelectual absoluta, como no fundamentalis-
ino, ou possuído por uma experiência emocional absoluta, como no
pentecostalismo, o homem pode permanecer imperturbável, em meio
à tremenda anomia que nos assola. O fundamentalismo, dado o seu
caráter intelectualmente acabado e fechado, não passa por transforma­
ções significativas. Parece, portanto, que não há coisas novas ocorren­
do no seu meio. O que é fascinante, entretanto, são as inúmeras novas
faces da solução pentecostal. Não lhe importa muito a fórmula doutri­
nária. Fundamental é a experiência emocional. Por isso o fenômeno
pentecostal apresenta uma enorme flexibilidade e uma incrível capaci­
dade de se apropriar de novos conteúdos de experiência.

8. Conclusão
Aí estão algumas das muitas faces do protestantismo. Há muitas
outras. Recordo as palavras do intelectual católico: “Vós, protestan­
tes, dizeis que nós pagamos um preço muito alto pela nossa unidade.
Nós, católicos, vos dizemos: pagais um preço muito alto pela vossa
liberdade”. É difícil dizer o que significa a tão proclamada liberdade
protestante. Parece certo, entretanto, que ela está ligada ao fenômeno
da multiplicação sectária. E o curioso é que esse processo de multi­
plicação implica, por um lado, fragmentações sucessivas e, por outro,
fechamentos também sucessivos das seitas assim geradas. Em outras
palavras, a pluralidade e o conflito, que poderíam ser fontes de uma
nova vitalidade interna, se resolvem por meio de mecanismos que as
eliminam, a fim de manter a unidade dos pequenos grupos. Pergun-
tamo-nos se isso não implica, necessariamente, um declínio da vitali­
dade. Estarão as Igrejas protestantes condenadas a uma senilidade
precoce? Parece-nos que, a menos que o protestantismo seja capaz de
ultrapassar o provincianismo e o exclusivismo que marcam as suas
muitas faces, ele será incapaz de encontrar as energias c as visões que
o farão caminhar para o futuro.
5
Do lado de Irás das máscaras

aces são sempre máscaras. Elas revelam, mas também escondem.


F É o que ocorre com as faces do protestantismo. Seitas e deno­
minações, organizações e movimentos são princípios internos de
organização. Mas a organização interna de uma instituição, por
mais interessante que seja, pouco ou nada nos revela da sua signi­
ficação real.
A organização de uma molécula d’água, em si mesma, nada nos
diz sobre o que ela faz. Tudo parece indicar que o resultado deve ser
explosivo. Mas não é. Mata a sede. Apaga o fogo.
A organização interna de um convento, de uma orquestra, de uma
indústria, de uma multinacional, de um exército, pouco ou nada nos
diz do que tais organizações significam, socialmente. Para se com­
preender isso é necessário fazer outras perguntas:
O que produzem elas?
O que fazem elas?
O que fez o protestantismo, ao longo dos quase cinco séculos de
sua existência?
As respostas são várias.
Cada uma delas indicando algo que foi esquecido pela outra.
Por um dever de honestidade devemos começar ouvindo o teste­
munho do próprio protestantismo.

85
Dogmatismo e tolerância

(ionio ele se vê?


(k)mo avalia o impacto de sua presença sobre a vida dos povos?

1. O protestantismo como vanguarda da liberdade


e da modernidade
O protestantismo se entende como o espírito da liberdade, da de­
mocracia, da modernidade e do progresso. O catolicismo, por oposi­
ção, é o espirito que teme a liberdade e que, como conseqüéncia, se
inclina sempre para soluções totalitárias e se opõe à modernidade. O
protestantismo invoca a historia como testemunha. Ele fala a seu fa­
vor. Num passado já vencido pela luz do Evangelho jaz, morto, um
negro período dominado por superstição, intolerância, ignorância e
escravidão da consciência, à mercê de uma Igreja totalitária, época
sombria e triste, iluminada apenas pelas fogueiras da Inquisição. Tal
era ainda subsiste hoje entre nós, como um morto entre vivos — fós­
sil de um tempo já soterrado pelo passado: a Igreja católica. Se per­
guntarmos à história: “De que lado estás? Qual o teu destino?” Ela
responderá: “O catolicismo é o passado de onde venho. O protestan­
tismo, o futuro para onde caminho”.
Tratar-se-á de uma visão totalmente ingênua de si mesmo por parte
do protestantismo? Não desejo dar uma resposta a esta pergunta agora.
Desejo apenas indicar que, no seu momento de nascimento, o pro­
testantismo introduziu um discurso com uma nova temática que co­
lidia com os arranjos ideológico-teológicos dominantes. Basta que se
leia Lutero. Sua grande obsessão? A liberdade. “Um cristão”, afirmava,
“é livre e perfeitamente senhor de todas as coisas, não se submetendo
a nada”1. O Deus sobre que Lutero fala é o símbolo da liberdade de
todas as imposições legais que a religião e a sociedade impõem. Fé é
liberdade da lei. Aquele que se submete é aquele que ainda não com­
preendeu o Evangelho.
Pena que a distância histórica já não nos permita compreender os
conceitos e a significação da batalha que então se travou. A lingua-

I. Martin LUTHER KING, Three Treatises. 1960, 277.

86
Do lado de tras das máscaras

gem teológica é um enigma para o homem que toma como normativa


a linguagem operacional da ciência. Por isso mesmo, tendemos a con­
siderar o discurso teológico destituido de sentido. Não podemos nos
esquecer, entretanto, de que urna era só pode equacionar e compreen­
der os problemas que ela vive concretamente com o auxilio do apara­
to conceptual de que dispõe. Sim, é verdade que a linguagem da reli­
gião parece referir-se a outro mundo. Da mesma forma como os so­
nhos nos introduzem num mundo mágico, aparentemente vazio de
concretude. “A religião é um sonho da mente humana”, comentava
Feuerbach. “Mas mesmo nos sonhos não nos encontramos no vazio
ou nos céus, mas na terra, no reino da realidade.”2 Tanto os sonhos
como a linguagem da religião são formas simbólicas de nos referir­
mos às experiências vividas. Como Max Weber o indica muito bem,
“quando considerado de um ponto de vista psicológico, o homem
que busca a salvação está primariamente preocupado com atitudes
relativas ao aqui e ao agora”3. O além é um horizonte que os homens
constroem para dar sentido e perspectiva às vidas concretamente vi­
vidas, no seu mundo social. Isso nos permite entender o sentido re­
volucionário do discurso que se ensaiou com a Reforma. A “justifica­
ção pelas obras”, posição católica, era urna forma de definir o com­
portamento em termos de função e ajustamento. O homem é um ser
subordinado a urna lei absoluta transcendente. Por isso, mede-se a
sua humanidade (na linguagem teológica, a sua condição de “salvo”)
em termos da sua capacidade de reduplicar aquilo que a lei determi­
na. O homem é o que ele produz.
A “justificação pela fé”, ao contrário, subverte esse esquema. O
homem não é um ser subordinado a uma lei. O homem é um ser
perante Deus, e Deus é essencialmente “graça”, liberdade. Versão teo­
lógica da moderna polêmica entre estrutura e história.
A lei perde a sua aura sagrada. O homem está livre para quebrá-la.
Pecca fortiter, peca com ousadia. A lei pode ser quebrada e deve ser
quebrada, em nome do amor. Numa terminologia freudiana,“o princí-

2. L. Feuerbach, The Essence ofChristianity, 1957, 39.


3. GERTH, MlLLS, From Max Weber: Essays iii Sociology, 1958.

87
Dogmatismo e tolerancia

I'hi i l.i ic.ihtl.ulc” (leí) deve ser subvertido pelo “princípio do prazer”
i gi.!(,.!). ( Aliforme Karl Holl sugeriu, existe uma notável semelhança
i niic o lioineni livre da lei de Lutero e o Übermensch de Nietzsche:
,i ti titos quebram as tábuas da lei e entram no mundo apenas com a
mi.i liberdade4.

b a temática da liberdade que faz com que Hegel veja a Refor­


ma como um dos marcos decisivos na historia. Segundo ele, a Re­
forma significou uma ruptura com a “deferência servil para com a
Autoridade”, pela qual “o Espírito, havendo renunciado a sua natu­
reza própria e a sua mais essencial qualidade... perdeu a sua liber­
dade”. “A Reforma, afirma ele, “é o sol que tudo ilumina, que se se­
guiu ao avermelhado da madrugada que observamos no término
da Idade Média”. “Esta é a essência da Reforma: o Homem, na sua
própria natureza, está destinado a ser livre.”5 Se a Reforma, por meio
da doutrina do “sacerdócio universal dos crentes”, afirmava que a
subjetividade está em relação direta com o divino, por esse mesmo
meio ela afirmava também a prioridade axiológica da subjetividade
sobre todas as cristalizações institucionais que a ela se opunham. O
homem é divinizado, constituindo-se assim no centro da negativi-
dade que coloca a história em movimento.
É evidente que Hegel vê na Reforma a precursora do espírito do
Iluminismo e do espírito da sua própria filosofia. Não é por aciden­
te que ele a compara ao sol que tudo ilumina e a contrapõe às trevas
medievais. Na verdade, a confiança dos filósofos do Iluminismo na
racionalidade dos homens — racionalidade que necessita apenas
ser libertada das cadeias autoritárias do passado que a aprisionara
— parece ser uma versão secularizada da doutrina do sacerdócio
universal dos crentes.
Paul Tillich interpreta o espírito do protestantismo de forma se­
melhante. “O princípio protestante”, afirma ele, “expressão derivada
do protesto dos ‘protestantes’ contra as decisões de uma maioria ca­
tólica, contém o protesto divino e humano contra qualquer preten­

dí. Karl HOLL, The Cultural Significance of the Reformation, 1962, 137.
S. (1. I; W. HEGEL, The Philosophy of History, 1956,412-13.
Do lado de trás das máscaras

são absoluta por parte de uma realidade relativa, mesmo que esta pre­
tensão esteja ligada a uma Igreja protestante. O principio protestante
é o juiz de toda realidade cultural e religiosa, inclusive da religião e da
cultura que se chamam protestantes”6. O principio protestante, con­
tinua ele, é “o guardião contra as tentativas daquilo que é finito e
condicionado de usurpar o lugar do incondicional no pensar e no
agir. Trata-se do julgamento profético contra o orgulho religioso, a
arrogância eclesiástica, a auto-suficiência secular e suas conseqüén-
cias destrutivas”7. O espirito protestante, assim, implicaria uma ati­
tude de permanente vigilância contra os ídolos seculares e sagrados,
uma recusa de ajustar-se ao status quo, uma rebelião iconoclasta que
nega obediência a qualquer ordem estabelecida. Mas por quê? Por
compreender que a situação humana é basicamente distorcida. Essa
distorção básica, essencial, irresolvível, que o símbolo do “pecado ori­
ginal”8 preservou, significa que não existe situação alguma diante da
qual a consciência possa descansar tranqüila, pronunciando o seu sim
de aprovação. Consciência é negação. Se a alienação de Deus é o de­
nominador comum a todas as construções humanas — instituições,
culturas, nações, civilizações —, a única palavra que o homem pode
pronunciar é a palavra do protesto profético.
Que o protestantismo tenha sido, no seu momento carismático,
fundador, original, a explosão de um grito reprimido de liberdade,
parece-me um fato que não pode ser negado. O problema é se no
seu desenvolvimento histórico o protestantismo preservou a sua
visão inicial.
A ideologia protestante responde de forma afirmativa. E o faz apon­
tando para as conexões do protestantismo com a democracia e a mo­
dernidade. A obra de Karl Holl, O significado cultural da reforma, cons­
titui um dos maiores esforços para consubstanciar tal tese. Seja na
esfera da religião e da vida secular, seja pelos seus efeitos sobre a po
lítica e a vida econômica, seja pela sua contribuição na educação, na

6. Paul Tillich, The Protestant Era, 1962,163.


7. Id., ibid., 163.
8. Id., ibid., 165.
Dogmatismo e tolerancia

I il< »1 i.i. na poesia e na arte, K. Holl conclui que a Reforma significou


ihii.i i iiplura radical com a ordem de coisas ligada à civilizarão me­
dieval c ao catolicismo, e lançou as sementes das quais iriam brotar as
ni.lis alias criações da nossa era.
Seguindo linhas semelhantes, Emílio de Laveleye, na sua pequena
obra Do futuro dos povos católicos, tenta demonstrar que existe urna
estreita conexão entre protestantismo e progresso e, inversamente,
entre catolicismo e atraso. “Da historia e principalmente dos aconte­
cimentos contemporâneos”, afirma ele, “parece resultar que os povos
católicos progridem muito menos depressa que as nações que dei­
xam o catolicismo e que, relativamente a estas, parecem recuar”9. Os
protestantes são sempre mais instruídos e ricos.
De forma alguma poderiamos incluir Max Weber entre os apo-
logetas do protestantismo. E muito menos entre os apologetas da
modernidade. No entanto, a sua obra A ética protestante e o espírito
do capitalismo parte da constatação do seguinte fato:
“Um exame das estatísticas ocupacionais de qualquer país de com­
posição religiosa mista traz à luz, com uma freqüência notável,
uma situação que, por várias vezes, tem provocado discussões na
imprensa e na literatura católicas... ou seja, o fato de que os líde­
res dos negócios e donos do capital, bem como os escalões mais
altos do trabalho especializado, e ainda o pessoal mais altamente
treinado em técnicas e no comércio, são, numa maioria esmaga­
dora, protestantes”1^.
A análise de Weber não busca estabelecer uma relação causai entre
o espírito do protestantismo e o espírito do capitalismo, mas antes, a
relação funcional do primeiro em relação ao segundo: o espírito pro­
testante é estruturalmente semelhante ao espírito do capitalismo e
por isso mesmo adaptado a ele e adequado à sua expansão. Ora, na
medida em que o mundo ocidental se rege pela lógica do capitalismo,
podemos concluir que o protestantismo se sente em casa neste mun­
do, enquanto o catolicismo se descobre como exilado.

9. Emílio de LAVELEYE, Do futuro dos povos católicos, 1950, 8.


¡0. Max Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, 1958,35.

oi)
Do lado de trás das máscaras

A ideologia protestante unifica a liberdade do individuo, a demo­


cracia liberal e o progresso econômico como expressões do espirito
do protestantismo. Em resumo: o mundo moderno é um fruto do
protestantismo.

2. O protestantismo como origem dos fenómenos


monstruosos dos tempos modernos.
Fala agora a Igreja católica. Diz como interpreta o espirito do pro­
testantismo. Concorda acerca dos termos da equação protestante. É
verdade que a liberdade e o progresso são frutos da Reforma. Mas, con­
trariamente ao otimismo protestante, a Igrcja católica inverteu todos
os pretensos resultados da Reforma por meio de um grande sinal nega­
tivo. A liberdade, longe de ser um fator positivo, ó antes a semente da
desintegração da nossa civilização, tão bem exemplificada no próprio
sectarismo protestante. O espírito do protestantismo é o espírito de
revolta contra todas as ordens institucionalizadas. A Reforma sacralizou
a consciência e dessacralizou o mundo. E ao fazer isso a consciência se
descobriu sem um lar. A civilização já não tem uma dimensão de pro­
fundidade sacral. O sagrado é substituído pelo útil. Não sendo o espelho
do divino, mas um simples produto da atividade humana, o mundo já
não se presta como ponto de referência para as exigências religiosas da
alma. Destituído de sua aura divina, dessacralizado e desencantado,
resta o mundo como simples matéria-prima para a atividade dos ho­
mens. A reverência à ordem civilizatória é substituída por uma atitude
de orgulhosa rebelião contra ela. A grande conquista protestante, sa-
cralizar a personalidade, tem como seu reverso a secularização do mun­
do, que agora não mais pode ser gozado místicamente como o ventre
divino. O mundo não se constrói sobre o sagrado. Ele é fruto do utilita­
rismo. E com o utilitarismo surge a possibilidade permanente de ano-
mia. E isso porque num mundo em que todas as coisas são medidas cm
termos de utilidade o próprio homem se sente sempre na iminência de
perder-se, com a perda da sua utilidade.
Novalis é um excelente exemplo desse tipo de interpretação do es
pírito protestante. Diz ele:
Dogmatismo e tolerância

”(> grande erro do protestantismo consiste no fato de que ele des­


truiu u unidade da Cristandade, na qual a unidade da Europa e o
domínio do sentimento do Invisível — e daí a salvação do homem
ocidental — haviam sido concebidos”11.
“A Reforma significou o fim da Cristandade. De agora para frente
12
ela simplesmente cessou de existir.”11
I lans Rückert, num comentário sobre Novalis, observa que ele “tra­
ça uma linha direta da Reforma até o Iluminismo, aquele arquiinimigo
do Romantismo”, e que ele denuncia como havendo assassinado a alma
da Europa. É na Reforma também que se encontram as origens do pen­
samento filosófico e científico moderno, que terminou por “transfor­
mar a música celestial eternamente criativa num barulho monótono
de um monstruoso moinho, um moinho que flutua e é arrastado por
urna torrente de circunstâncias, que se contém a si mesmo, construído
por ninguém e usado por ninguém, um verdadeiro perpetuum mobi­
le... A Reforma é o início da incredulidade moderna e a chave para se
compreender todos os fenómenos monstruosos dos tempos moder­
nos”13. No espirito do protestantismo, portanto, estão presentes as cau­
sas da desintegração da civilização ocidental.

3. O protestantismo como um reavivamento


do espirito medieval
Católicos e protestantes concordam em que o protestantismo mar­
ca o fim da Idade Média e o inicio do mundo moderno. Ernst Troeltsch
nos oferece uma versão totalmente diferente do espirito protestante e
da função histórica do protestantismo. Diz ele:
“Não se pode supor que o protestantismo tenha aberto o caminho para o
mundo moderno. Ao contrário, ele parece ser, de princípio, e a despeito

11. Veja-se o artigo de Hans RÜCKERT, “The Reformation-Medieval or Mo­


dern?” publicado originalmente com o título “Die geistesgeschichtliche Einor­
dnung der Reformation”, in Zeitschrift für Theologie und Kirche, 1955, 43-64. E
publicado em Rudolf BüLTMANN et alii, Translating Theology into the Modern Age,
i 965, 2.
12. Id., ibid., 2.
I 3. Id., ibid., 3.
Do lado de trás das máscaras

de todas as suas novas grandes idéias, um reavivamento e um reforço do


ideal de uma civilização eclesiástica imposta pela autoridade”14.
ele incentivou um reavivamento da idéia católica e assim, a des­
peito da difusão contemporânea dos ideais e das maneiras do Re­
nascimento, a Europa teve de passar dois séculos a mais no espírito
medieval”'5.
“O ponto fundamenta l a ser notado é que, de urna perspectiva his­
tórica e teológica, o protestantismo foi, antes de mais nada, urna
simples modificação do Catolicismo, na qual a formulação católica
dos problemas foi mantida, enquanto uma resposta diferente lhes
era oferecida”'6.

4. O espírito protestante e a sociedade burocrática


Existe outra linha de interpretação do espírito protestante que
desejo destacar. É aquela representada por Weber e Tillich. Já nos re­
ferimos a ambos anteriormente. Entretanto, não explicitamos o que
existe de peculiar em suas posições.
Weber concorda em que existe uma grande afinidade entre o espí­
rito do protestantismo e o espírito da modernidade. Mas a moderni­
dade, representada pela lógica capitalista e pelas tendências à racio­
nalização do comportamento e à burocratização, longe de ser uma
expressão de liberdade e dos ideais democráticos, representa exata­
mente o seu oposto.
O ideal democrático fala de uma organização política que não é
imposta verticalmente de cima para baixo. Sua intenção é articular
uma ordem que exprima as tendências sociais presentes nàs bases
humanas da sociedade. Uma sociedade democrática, assim, deveria
ser uma objetivação da liberdade, uma expressão e um instrumento
da “razão” imánente nos cidadãos como indivíduos.
Será que é isso que observamos na sociedade racional e organiza­
da contemporânea?

14. Ernst TROELTSCH, Protestantism and Progress, 1958, 85.


15. Id., ibid., 86.
16. Id., ibid., 59.
Dogmatismo e tolerância

Weber a firma que não. Ao contrário, existe uma oposição absolu­


ta i'iilre, ele um lado, liberdade e carisma e, de outro, as necessidades
funcionais de disciplina e organização exigidas por uma sociedade
ujmprometída com o progresso e o crescimento econômico:
“Não necessitamos de nenhuma prova especial para mostrar que a
disciplina militar é o modelo ideal para a fábrica capitalista mo­
derna, como o era para a antiga plantação. Em contraste com a
plantação, a disciplina organizacional da fábrica se assenta sobre
uma base completamente racional. Com o auxílio de métodos apro­
priados de mensuração, pode-se calcular a máxima rentabilidade
do trabalhador, como a de qualquer outro meio material de produ­
ção. [...] As conseqüências últimas de tal situação derivam da me­
canização e da disciplina da fábrica: o aparato psicofísico do ho­
mem é forçado a ajustarse completamente às demandas do mun­
do exterior, às ferramentas e às máquinas, transformando-se, em
resumo, em uma função individuar. O indivíduo é separado dos
seus ritmos naturais tais como determinados pela estrutura do seu
organismo; o seu aparato psicofísico é ajustado a um novo ritmo,
através de um método de especialização de músculos que funcio­
nam separadamente, estabelecendo-se, assim, uma economia ideal
de forças, de acordo com as condições do trabalho. [...] O poder
cada vez maior da disciplina se estende irresistivelmente na direção
da racionalização das exigências políticas e econômicas. Este fenô­
meno universal cada, vez mais restringe a importância do carisma
e da conduta individualmente diferenciada”17.
Weber, assim, está dizendo aos protestantes: “Ou modernidade
ou liberdade. As duas não podem ser afirmadas ao mesmo tempo”.
Notem que o texto indica que as exigências funcionais do sistema
de produção — exatamente o sistema que é o fundamento do pro­
gresso — não podem permitir o comportamento individualmente
diferenciado, seja ele determinado por exigências do organismo, seja
ele determinado por valores pessoais divergentes. Em outras pala­
vras: na medida em que o espírito protestante se ajusta à ética de
disciplina e asceticismo do sistema de produção capitalista, torna-se
impossível continuar a manter os ideais individualistas, libertários,

I 7. Max WEBER, On Charisma and Institution Building, 1968, 38-39.


Do lodo de trás das máscaras

críticos que encontramos nos momentos iniciais da Reforma. Se, ñas


suas origens, o protestantismo foi um protesto da consciência contra
as imposições de certo sistema; se ele proclamou a prioridade da “gra­
ça” sobre a “lei”; se ele afirmava que a pessoa, em decorrência da sua
ligação direta com Deus, devia ser o polo axiológico para a denúncia
profética de todos os sistemas que pretendiam transformar a pessoa
em função — o fato histórico, entretanto, é que a ligação do protes­
tantismo com o progresso abortou os seus ideais fundadores.
Poder-se-ia alegar que os países protestantes e ricos têm sido os
mais democráticos que a nossa civilização conheceu. Será que isso
anula o argumento de Weber? Não o creio. Isso parece indicar, ao
contrário, que os protestantes, havendo introjctado as exigências fun­
cionais do sistema como virtudes teologais, como a esfera da sua vo­
cação e da sua responsabilidade, tendem a se comportar de forma
ajustada e funcional, sem que haja necessidade de uma coerção externa
aparente. A coerção policial-militar se torna desnecessária porque cada
um se torna o seu próprio censor.
A modernidade, definida como a racionalização do comporta­
mento em obediência aos imperativos do progresso econômico, é
fundamentalmente repressiva. Trata-se de uma prisão. “Ninguém
sabe quem vai viver nesta jaula do futuro”, diz Weber, num dos últi­
mos parágrafos da sua obra clássica sobre o assunto. E acrescenta,
como uma denúncia tanto do espírito do capitalismo como do es­
pírito do protestantismo:
“Acerca do último estágio deste desenvolvimento cultural,'poder-se-ia
verdadeiramente dizer: ‘Especialistas sem espírito, sensualistas sem
coração: esta nulidade imagina haver atingido um nível de civiliza­
ção nunca dantes alcançado'”™.
Tillich concorda:
“A sociedade técnica do Ocidente produziu métodos de ajustar pes­
soas às suas exigências de produção e consumo que são menos bru­
tais mas, a longo prazo, mais eficientes que a dominação totalitá-

18. Id., The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, 1958, 182.
Dogmatismo e tolerância

i ni. /'.7(is despersonalizam o homem, não por exigir, mas por ofere-
(cr... aquilo que faz a criatividade individual supérflua”19.
A liberdade não é violentada abertamente pela força. É conquista­
da de forma científica e duradoura por outros métodos. O resultado
eomcsmo. v
Onde se situa o protestantismo?
léí indicamos que, para Tillich, o “principio protestante”, isto é, a
visão que pode ser encontrada nos momentos fundadores do protes­
tantismo, implica um protesto profético contra esta ordem de coisas.
Entretanto, ele conclui que a historia do protestantismo tem sido urna
permanente traição ao “principio protestante”. “O protestantismo
histórico... não foi capaz de evitar a ideologização do seu próprio prin­
cípio.” A ideologia do luteranísimo serviu aos interesses da ordem pa­
triarcal, com a qual a ortodoxia luterana estava associada, enquanto
“a religião idealista do protestantismo humanista serviu aos interes­
ses de uma burguesia vitoriosa”20.
O fracasso do protestantismo se revela hoje, segundo Tillich, na
sua incapacidade de se articular com aquilo que ele chama de “a si­
tuação proletária”:
“A partir de muitos pontos de vista parecería que o protestantismo
e a situação proletária nada têm a ver um com o outro. Os fatos
confirmam essa opinião de forma quase indisputável. Considerem,
por exemplo, a intensa luta de quase cem anos entre os porta-vozes
do protestantismo e aqueles que fizeram da situação proletária a
base do seu pensamento; a conexão sociológica das Igrejas protes­
tantes na Europa Central com a petite bourgeoisie e o feudalismo,
e na Europa Ocidental e na América com a esfera dos grandes ne­
gócios e os empresários bem-sucedidos; a oposição íntima entre as
massas proletárias ao tipo de vida e idéias característicos do protes­
tantismo; a aliança política dos partidos proletários com o partido
católico e a oposição dos partidos apoiados por círculos protestan­
tes aos representantes políticos das classes operárias. A situação pro-

19. Paul Tillich, “The Person in a Technical Society”, in: John Hutchison,
I ( hrisíitm Eaith and Social Action, 1953,150.
?(). IO., The ProtcstantEra, 1962,169.
Do lado de trás das máscaras

letária, na medida em que ela representa o destino das massas, é


sféfratárida um protestantismo que, na sua mensagem, confronta a
personalidade individual com a necessidade de tomar uma decisão
religiosa e a deixa entregue a si mesma na esfera social e política,
considerando que as forças que dominam a sociedade foram orde­
nadas por Deus”21.
Em outras palavras: o individualismo protestante, que no nivel
articulado parece ser uma defesa da liberdade, na situação proletária
só pode significar conformismo. A liberdade íntima, individual, tor­
na desnecessário e impossível o protesto profético, dirigido contra
estruturas. O individualismo funcionaria assim, no nível social, como
um mascaramento da situação de repressão e como uma justificação
dessa mesma situação.

5. As quatro interpretações do espírito protestante


Temos, assim, pelo menos quatro modelos interpretativos do es­
pírito protestante:
1) O primeiro, a que denominamos “ideologia protestante”, por ser
aceito de forma praticamente universal pelas Igrejas protestantes,
afirma que liberdade, democracia, progresso econômico se per­
tencem e são frutos da Reforma.
2) O segundo modelo, exemplificado pela ideologia católica tradicio­
nal e pelos escritos polêmicos, concorda em que o protestantismo
tenha deflagrado a liberdade, tenha contribuído para a democracia
e seja, portanto, culpado da modernidade. Mas a modernidade, lon­
ge de ser um avanço, significou um retrocesso: trata-se da quebra
de uma síntese espiritual. O espírito do protestantismo, como espí­
rito da rebelião individualista, é o culpado de tal tragédia.
3) Troeltsch rejeita como falsa a pressuposição que une católicos c pro­
testantes. O protestantismo em nada contribuiu para pôr um fim à
Idade Média e para inaugurar o mundo moderno. Ao contrário, o
protestantismo foi uma recuperação do espírito medieval.

21. Id., ibíd., 161.

97
Dogmatismo e tolerância

4) E, finalmente, o modelo ligado aos nomes de Weber e Tillich, que


vê a afinidade entre o espirito do protestantismo e o espirito da
modernidade, mas que entende a modernidade e a liberdade como
sendo incompatíveis. v
Creio que podemos chegar a algumas conclusões bem simples:
a) Não se pode negar que, no nivel consciente, o discurso protestan­
te seja dominado pela temática da liberdade de consciência, do
livre exame e da democracia.
b) Não se pode negar, ainda, que nesse mesmo nivel ele se apresente
como a antítese do catolicismo e, portanto, do espirito medieval.
c) Quando investigamos o seu nível não-articulado, seus “acordos
silenciosos”, descobrimos, entretanto, que ele apresenta notáveis
semelhanças estruturais com o espírito medieval. Parece-me, por­
tanto, que a tese de Troeltsch está correta.
d) Ainda neste mesmo nível descobrimos, especialmente quando exa­
minamos o discurso ético, que o espírito protestante, por privile­
giar as virtudes de conformidade a uma lei transcendente, tende a
produzir uma atitude de conformidade às estruturas racionais e
burocráticas. O protestantismo estabelece uma ética de funcio­
nário. Weber e Tillich estão corretos.
Estou incorrendo em uma contradição ao afirmar a afinidade
do espírito protestante, ao mesmo tempo, com o espírito medieval
e com o espírito da modernidade? De forma alguma. Ao contrário:
é exatamente a visão sacral do mundo, típica do espírito medieval,
que, superposta à sociedade racional e burocrática, conduz a uma
sacralização desta última, elevando-a, assim, à condição de valor ao
qual a consciência deve ajustar-se. Um mundo racional burocráti­
co, sem um manto religioso que o legitime, só se justifica em ter­
mos dos seus sucessos práticos. Mas, uma vez sacralizado pela ideo­
logia religiosa, a sua autojustificação funcional ganha uma nova di­
mensão: transforma-se numa ordem divinamente ordenada. Em
ouIras palavras: a justaposição do espírito medieval ao espírito da
modernidade tem como resultado a superposição de outro discur­
so de nalureza ontológica ao discurso utilitário de que a sociedade
Do lado de tras das máscaras

racional burocrática se vale para legitimar-se. O meramente fun­


cional é elevado à condição de verdade.
Mas onde ficou o “espirito protestante” a que se referiu Tillich, a
vigilância profética em face de todos os absolutos? Não sei. Sei, com
certeza, que ela se encontra presente numa tradição passada e que se
o protestantismo se lembrasse de suas origens ele poderia descobrir
ali o homem livre da lei, de Lutero e de Nietzsche, ao lado do funcio­
nário civil servil.
A memória tem uma função subversiva. Marcuse chamou nossa
atenção para esse fato, mas os profetas já sabiam disso há milênios.
Talvez a memória das esperanças já mortas seja capaz de trazê-las
de novo à vida, de forma que o passado se transforme em profecia e
a visão do paraíso perdido dê à luz a expectativa de urna utopia a
ser conquistada.
6
Encontros e desencontros do
protestantismo e do catolicismo

“O luteranismo, em sua concepção da lei natural, é totalmente con­


servador... Ele favorece o absolutismo...”
“A democracia, no sentido estrito da palavra, é, em todas as situa­
ções, estranha ao espírito do calvinismo...”1
or que gastar energias com o protestantismo brasileiro? Trata-se
JL de um fenômeno marginal, apagado e embaraçosamente silen­
cioso, justamente no momento em que a Igreja católica se tornou
num dos principais protagonistas das lutas políticas do país. O fato,
entretanto, é que o protestantismo se constituiu, para mim e para
toda uma geração de jovens, numa opção existencial, num projeto de
vida, numa ideologia política e num instrumento de ação. Aconteceu
algo semelhante com uma geração de católicos, na década de 1950 e
na primeira metade dos anos 1960. Está assim em jogo uma questão
pessoal, de ordem biográfica, uma necessidade de acertar as contas
com o meu próprio passado. Eu me pergunto se o florescimento dos
estudos sociológicos da religião que se observa no presente não está
muito ligado com este “acerto de contas”: “ex-padres, ex-pastores,
ex-militantes leigos estão tentando ou recuperar um passado perdi­
do, ou recuperar as suas raízes que se encontram ali mergulhadas. E é
porque parto de uma matriz emocional e biográfica que, violentando
o estilo científico impessoal já consagrado, no qual o autor se cscon

1. Ernst Troeltsch, Protestantism and Progress, 1958, 111, 116.


Dogmatismo e tolerância

de e laia em nome de um sujeito universal (sabe-se que, constata-se,


conclui-se etc.), tomo a liberdade de escrever na primeira pessoa.
Aqueles que estudam o catolicismo se defrontam com unia surpreen­
dente reviravolta da Igreja, até o momento não elucidada. Como expli­
car que uma instituição hierárquica, aparentemente monolítica, de
orientação sacramental, mágica e sacerdotal, famosa por suas alianças
com os poderes dominantes, esteja passando pela experiência de pro­
fundas Tachaduras ideológicas e institucionais? Observa-se uma nova
orientação teológica e prática na direção do “povo de Deus” (os leigos
comuns, sem nenhuma participação na hierarquia), contempla-se o
surgimento de um enorme pluralismo de experiências e tendências, ao
mesmo tempo que a preocupação com a justiça e com os oprimidos se
tornou marcante, juntamente com a denúncia corajosa dos poderes
dominantes, que desemboca num tenso conflito com o Estado. Tudo
isso se constitui numa surpresa que levanta questões teóricas de funda­
mental importância. Podemos interpretar a religião dentro dos qua­
dros de um funcionalismo simplista, que busca nela apenas as funções
de integração com o sistema social e político global? Podemos conti­
nuar a pressupor que a religião seja, em todos casos, uma expressão da
ideologia dominante? Que classes sociais, na Igreja, são portadoras dessa
nova orientação? Será que os contornos ideológicos se superpõem aos
contornos de classe? Qual o peso político da ideologia religiosa? Mero
reflexo que obscurece e inverte o real? Ou terá ela uma possível função
utópica, geradora e orientadora de transformações sociais?
O estudo do protestantismo nos surpreende de maneira inversa.
Criados ao embalo de uma ideologia liberal, os protestantes aprende­
ram que o protestantismo é um espaço institucional em que a liberdade
de consciência é um imperativo que pode e deve exprimir-se numa
tolerância para com a diversidade e o pluralismo. Aprenderam tam­
bém que, como o próprio nome indica, a tradição protestante é de pro­
testo, de resistência a todas as formas de autoritarismo e dogmatismo
(representadas paradigmáticamente à consciência protestante pelo ca-
lol¡cismo). A geração protestante que, na década de 1950, optou cons-
i ienlcmente pelo protestantismo como uma alternativa ideológica e
ionio um instrumento de ação política acreditou ingenuamente nes­
Encontros e desencontros do protestantismo e do catolicismo

sas afirmações. Mas o período de ingenuidade teve duração curta. E


isso porque antes mesmo que as armas e o dinheiro tivessem inaugura­
do o novo Estado, em 1964, já um processo semelhante acontecia den­
tro dos espaços pastorais da religião. Neste sentido não se pode negar
que as Igrejas protestantes tenham sido precursoras do futuro.
Como explicar esse fato?
Acontece que as propostas da nova geração de tal modo colidiam com
aquelas que a tradição já cristalizara que foi inevitável que estas últimas
expulsassem as primeiras. Em que consistia a heresia dos novos?
Fundamentalmente a sua proposta se resumia em repensar a signifi­
cação da fé cristã e da missão da Igreja a partir do cerne profético do
Antigo Testamento. Quem foram os profetas? Os temas centrais de sua
pregação eram a opressão dos ricos sobre os pobres, a corrupção da jus­
tiça pelo dinheiro e pelo poder, a exigência ética de proteção aos fracos e
oprimidos, a solidariedade de Deus com os pobres, a inevitabilidade da
catástrofe política se a justiça não fosse implantada e a esperança de um
futuro em que Deus implantaria um reino de amor, solidariedade, har­
monia e paz. Além do esforço de repensar a fé a partir da profecia, tais
grupos eram marcados por um profundo espírito ecumênico, muito antes
do Concilio Vaticano II. A urgência das exigências éticas de amor e justi­
ça fazia com que os conflitos que separavam protestantes e católicos pas­
sassem para um plano de importância secundária. Essa nova orientação
teológica foi eliminada por meio de processos institucionais cuja função
é a erradicação dos desvios doutrinários. E com razão. Porque tal orien­
tação quebrava irremediavelmente a verdade teológica cristalizada pelo
protestantismo mediante suas “confissões de fé”.
Tal esqueleto ideológico não foi peculiar aos protestantes. As mes­
mas questões e soluções apareceram nos grupos “dissidentes” católi­
cos. A pergunta que se levanta é a seguinte: como explicar que essa
nova consciência tenha podido sobreviver na Igreja católica, vindo a se
constituir numa das suas orientações mais vigorosas, e o mesmo não
tenha acontecido nas Igrejas protestantes?
É necessário notar que o fechamento conservador protestante não
pode ser interpretado como conseqüência do fechamento político de 1964.

103
Dogmatismo e tolerancia

l;. > porque ele se iniciou bem antes das mudanças políticas no país,
|i isla mente num período em que existia urna atmosfera de grande liber­
dade de debate. Sou forçado a me perguntar: que é que já havia no pro-
(cslanlismo que pode ser invocado como explicação do ocorrido? Que
mecanismos conservadores estavam ali presentes, silenciosos, encolhi­
dos como urna mola, à espera da situação que lhes permitisse saltar e se
exprimir, sob a cobertura dissimuladora de uma ideologia liberal e plu­
ralista? Tudo indicava que a Igreja católica deveria ter tido um comporta­
mento mais conservador que as protestantes.
Por outro lado, os eventos de 1964 se constituíram num poderoso
reforço, aposteriori, aos processos já em operação no protestantismo.
Freqüentemente se fez uso da suspeita de “esquerdismo”, de “subver­
são”, de “comunismo” como arma institucional interna para liquidar
os desviantes. Como explicar esse reforço? Uma resposta já foi suge­
rida por Max Weber: há profundas afinidades entre o espírito protes­
tante e o espírito do capitalismo. Se isso é verdade, então a harmonia
entre o protestantismo e o novo estado econômico de coisas se expli­
ca. Mas, sendo o protestantismo uma ideologia democrática e liberal,
como explicar a sua aceitação de um Estado totalitário?
Sei que o atalho mais curto para a explicação é o recurso aos fatos
econômicos. Se eu dissesse que os protestantes se comportam da for­
ma como se comportam porque têm seus bolsos cheios de dinheiro
haveria uma tendência para se dar um crédito de confiança à minha
hipótese. Razões econômicas e classes sociais gozam hoje de uma ver­
dadeira magia explicativa. Pessoas ricas e pertencentes às classe pro­
prietárias devem apoiar um Estado totalitário, mas capitalista.
É lógico que, ao assim fazer, reduzimos a ideologia à mera condi­
ção de desodorante de uma certa classe social: possui um alto poder
dissimulador sem nada nos dizer das razões por que a referida classe
I ranspira da forma como o faz.
I >csviando-me dos atalhos batidos, sinto um enorme fascínio pe­
las explicações não-ortodoxas. Na verdade, as ortodoxias, tanto reli­
giosas como científicas, me causam arrepios. As ortodoxias fazem com
que as pessoas se comportem como carneiros: “Nenhum pastor e um

loa
I neón Iros e desencontros do protestantismo e do cotolicismo

só rebanho. Todos desejam as mesmas coisas, todos são a mesma coi­


sa; quem quer que tenha sentimentos diferentes vai voluntariamente
para o hospicio” — era assim que Nietzsche sentia, e devo confessar
que penso o mesmo. A heresia, no meu caso, está em que não creio
que as ideologias sejam meros reflexos de condições econômicas.
Concordo com Durkheim quando afirma que
“uma sociedade não é constituída meramente pela massa de indi­
víduos que a compõem, o território que ocupam, as coisas que usam
e os movimentos que executam, mas acima de ludo está a idéia que
ela forma de si mesma”2.
Confessando os fundamentos da minha heterodoxia, alein do “conser­
vador” Durkheim, posso dizer que ela passa pelos caminhos do “idealista”,
“hegeliano”Mannheim, em sua avaliação da significação política de ideo­
logias e utopias, para desembocar no norte-americano Alvin (louldner:
“A velha sociedade não se mantém apenas em virtude de força e
violência, realismo político e prudência. A velha sociedade se man­
tém por meio de teorias e ideologias que estabelecem sua hegemo­
nia sobre as mentes dos homens, os quais, por isto mesmo, se sub­
metem a ela voluntariamente, sem cruzar os dedos”3.
Assim, deixando de lado as razões econômicas, diante das quais
me declaro incompetente, concentro-me naquilo que está ao meu al­
cance, a ideologia. Assim, pergunto-me: Que fatores ideológicos con­
tribuíram para que o catolicismo se constituísse num espaço institu­
cional relativamente aberto a um pluralismo ideológico, enquanto o
mesmo não ocorreu com o protestantismo?
O catolicismo definiu a sua integridade como Igreja em torno do
conceito de unidade. O protestantismo, ao contrário, ignora o proble­
ma da unidade e se organiza em torno da questão da verdade. Tal opo­
sição tem suas raízes nas crises político-eclesiais que marcaram o nas­
cimento da Reforma protestante. Contra o protestantismo, a Igreja ca­
tólica invocava a sua unidade institucional histórica, espinha dorsal das

2. Êmile DURKHEIM, The Elementary Forms of the Religious Lifc, 1969, -170.
3. Alvin GOULDNER, The Coming Crisis of Western Sociology, Nova loiqtK'.
Avon Books, 1970,5.
Dogmatismo e tolerância

suas pretensões de organização sacramental mediadora da salvação. O


protestantismo, para justificar o seu rompimento com os canais insti­
tucionais que pretensamente traziam a graça salvadora aos homens,
afirmou que a graça não é mediada por uma instituição, mas pela cons­
ciência que reconhece a verdade. Tais definições tiveram profundas
conseqüências para o desenvolvimento institucional que se seguiu.
Com a ruptura da unidade da civilização medieval e a formação
de uma sociedade utilitária e pragmática, a manutenção da unidade
institucional exigia que a Igreja católica desse lugar a um pluralismo
interno. Quaisquer tentativas para impor uma unidade ideológica te-
riam, como conseqüência, a ruptura da unidade institucional. A im­
posição de uma unidade ideológica produziria um enorme exército
de possíveis desertores para o protestantismo e outras alternativas
ideológicas. Há uma forma fácil de se comprovar se essa hipótese é
verdadeira ou falsa. Creio que se constatará que as conversões do ca­
tolicismo ao protestantismo ocorreram especialmente em situações
em que tal pluralismo interno não existiu. Se houver uma pluralida­
de de opções internas, o fiel insatisfeito poderá buscar o grupo ou o
estilo teológico que mais lhe convier, sem necessidade de se converter
a uma alternativa exterior. Pergunto-me se a violenta diminuição de
conversões de católicos às denominações históricas do protestantis­
mo não se deve exatamente à instauração desse pluralismo.
O protestantismo, ao contrário, ao privilegiar a questão da verdade,
foi obrigado a estabelecer padrões relativamente rígidos daquilo que era
tido como a doutrina verdadeira. Com isso se criou um espaço institu­
cional ideologicamente homogêneo, mas destituído de opções, no qual
os desvios teológicos não podem ser tolerados. A proliferação das seitas
protestantes, freqüentemente citada como evidência da liberdade de cons­
ciência do fiel protestante, é na verdade um sintoma de que o seu espaço
institucional é de tal maneira rígido de molde a não permitir a existência
de um pensamento desviante dentro dos seus limites.
Pergunto-me, num parêntese, se o mesmo não ocorre em todas as
instituições e organizações que privilegiam o “rigor teórico”,“a leitu­
ra correta do real” — expressões que são, na verdade, versões eufe-
mistii as cia “ortodoxia” nos círculos religiosos. Os desvios ideológicos
Encontros e desencontros do protestantismo e do catolicismo

e os revisionismos, por outro lado, seriam as heresias. No fundo en­


contramos a obsessão pela verdade e o dogmatismo intolerante que
ela traz sempre consigo.
O enrijecimento do protestantismo não pode ser explicado como o
comportamento de uma minoria atemorizada diante dos eventos de
1964. Ele já trazia, em si, elementos ideológicos suficientes para expli­
car os mecanismos institucionais cuja função é vigiar, punir e eliminar.
Observamos, além disso, que os desenvolvimentos econômicos
e políticos iniciados em 1964 serviram de reforço para o processo
anterior do protestantismo. Aqui há duas questões a ser analisadas.
A primeira delas é a afinidade entre o protestantismo e o capitalis­
mo. Não vou discuti-la aqui, por já ter sido por demais debatida,
desde Max Weber. A segunda é a possível afinidade entre o protes­
tantismo e um Estado autoritário. Tal hipótese parece implausível,
pois o protestantismo sempre se afirmou como aliado da democra­
cia liberal. A questão deve ser encarada por dois ângulos. Primeira­
mente, o calvinismo. Weber observa que o ideal da democracia era
totalmente estranho ao espírito do calvinismo, que pretendia esta­
belecer um sistema totalitário de controle de vida dos cidadãos, sob
a orientação da Palavra de Deus. Um sistema político calvinista se
assemelharia mais a uma aristocracia dos eleitos (isto e, dos escolhi­
dos por Deus) que a uma democracia em que eleitos e condenados
(estes últimos possivelmente em maior número), juntos e em pé de
igualdade, iriam tomar as decisões sobre as coisas públicas. O
luteranismo, ao contrário, nunca teve pretensões de regular a vida
pública. A sua teologia separa claramente o reino da graça e da li­
berdade, que é totalmente subjetivo, do reino da lei, que tem a ver
com a política e o Estado. O Estado é autônomo, regido por leis que
lhe são peculiares, e a Igreja não pode nele se imiscuir. O comporta­
mento passivo das Igrejas luteranas na Alemanha, durante o perío­
do nazista, estava de acordo com a doutrina e muito nos revela so­
bre as implicações políticas de uma postura apolítica. Voltando ao
caso do calvinismo: quando uma instituição pretende ser detentora
da verdade absoluta, ela é forçada a criar mecanismos internos de
repressão do possível comportamento desviante.

l<)
Dogmatismo e tolerância

Quem sabe a verdade não pode fazer concessões ao erro. Parece-


me que a ética protestante muito se assemelha à de Kant, na qual a
Razão deve reprimir os impulsos. Acidente curioso? De forma algu­
ma. Kant era protestante...
No calvinismo, não é necessário dizer, a Razão é destronada. Em
virtude de uma necessidade lógica. Tudo, no homem, está irremedia­
velmente corrompido e deformado, por força do pecado original.
Também a Razão. E ela é substituida pela Palavra de Deus.
Poucos prestam atenção a um fato curioso: existe certo grupo que
detém o monopólio da interpretação da Palavra de Deus. Por meio
de uma simples inversão, a “Palavra de Deus” pode ser transformada
na “divindade da (minha) palavra”... Lição feuerbachiana: substitua-
se a divindade do substantivo próprio pela divindade do sujeito hu­
mano e teremos a verdade.
Toda Palavra divina tem um potencial repressor infinito. Quem
discutiría com os deuses? O ideal é que a repressão seja voluntária.
Quando voluntária, desaparecem os instrumentos externos de vio­
lência e tortura. Policiais se transformam em floricultores, e cassetetes
passam a ser usados como estacas para plantas. Cada um se torna no
seu próprio polícia, e policiando seu irmão. O cassetete é substituído,
com vantagem, pelo olho sem pálpebras da consciência. Quando es­
ses pressupostos ocorrem, a democracia liberal pode funcionar.
Se os homens não se reprimem voluntariamente... que pena! Mas
isso já era esperado. Só podem se reprimir os eleitos, transformados
pela graça. Em vez da democracia dos condenados, a aristocracia dos
predestinados: a coerção externa se impõe como uma necessidade.
O retrato foi simplista — como todo retrato. A fotografia congela o
movimento, esconde cores contrastantes. No protestantismo, como no
catolicismo, nada há de simples. “Qual é o seu nome?”, perguntou Jesus
ao homem enfermo. “Não tenho nome”, ele respondeu, “porque sou uma
I .egião”. O que pode ser dito de cada um de nós: legião, muitos nomes,
muitas vozes, muitos gestos. É o que ocorre com o protestantismo.
Vemos aí que o nome não tem poder designatório unívoco. O nome
invoca memórias de repressão e violência, mas também memórias de
Encontros e desencontros do protestantismo e do catolicismo

amor e de beleza: Bach, Grunewald, Dürer, Leibniz, Albert Schweitzer,


Martín Luther King, Bonhoeffer, Paulo Wright. Foi no protestantis­
mo que estes homens, com as suas visões e os seus gestos, nasceram,
viveram e morreram. Por que não crer, então, que o ventre que um
dia deu à luz volte a fazêlo? Os mortos podem renascer. Não foi isso
que ocorreu com a Igreja católica?
“A mão do Senhor desceu sobre mim, e me levou, pelo seu espírito,
e me pôs numa planície, cheia de ossos. E me fez andar em seu
meio, até que os tivesse visto a todos. Cobriam a planície, tantos
que não podiam ser contados, e estavam muito secos. E ele me dis­
se: ‘Podem estes ossos, ó homem, viver de novo? Respondí: ‘Somen­
te tu sabes a resposta, Senhor I)ens’. E ele me disse: ‘Profetiza...’
Enquanto eu profetizava ouviu-se um ruído que vinha dos ossos
que se juntavam...” (Ezequiel 37,1-4.7).
7
Certeza e inquisição

Reforma protestante, no nivel ideológico, se caracteriza por sua


A ênfase nos temas da liberdade e do livre exame. A justificação
pela fé, ponto central da polémica entre Lutero e a Igreja católica, é
na realidade a expressão teológica da questão antropológica da liber­
dade. Não é, portanto, por acidente, que o reformador definiu o pon­
to crucial da sua luta em termos de oposição entre a liberdade do cris­
tão, de um lado, e a escravidão implícita no sistema institucional e
sacramental do catolicismo, de outro. Assim, no seu tratado sobre A
escravidão da vontade, Lutero escrevia a Erasmo:
“Eu o louvo e o recomendo... porque você somente, em contraste
com todos os outros, atacou a coisa real, isto é, a questão essencial.
Você não me cansou com as questões externas sobre o papado, o
purgatório, as indulgências e coisas semelhantes — questões insig­
nificantes antes que problemas reais —, por cuja causa, até o mo­
mento, quase todos os outros buscaram o meu sangue...; você, so­
mente você, viu o centro em torno do qual tudo o mais gira...”
E qual era a questão crucial? Nada menos que a questão dos pres­
supostos e condições da liberdade. Não é meu propósito analisar as
linhas gerais da polêmica. Interessa-me simplesmente constatar a
centralidade do problema da liberdade para a ideologia do protes­
tantismo. Na medida em que o protestantismo se definiu, ideologi­
camente, pela liberdade e, logicamente, pelo livre exame c pela liber­
dade de consciência, ele se definiu em oposição a uma organização

111
Dogmatismo e tolerância

•.oí i.ti que lançava mão da violência institucional, representada pela


I nquisição, com o propósito de eliminar a divergência e fortalecer a
sua uniformidade de pensamento e unidade política. A questão é
saber se o protestantismo foi bem-sucedido na criação de uma or­
ganização social alternativa, isto é, uma organização social corres­
pondente à sua ideologia.
O fato histórico, entretanto, é que as práticas inquisitoriais con­
tinuaram em operação no protestantismo. Práticas inquisitoriais são
o conjunto de procedimentos institucionais cuja função é identifi­
car e eliminar o pensamento divergente. Quanto a Lutero, é sabida
a sua atitude para com os movimentos anabatistas, e o seu conselho
de que deveriam ser mortos com o mesmo espírito com que se mata
um cão raivoso. Quanto a Calvino, as fogueiras continuaram a ser
acesas em Genebra, não apenas para a queima de Miguel Serveto,
como também para a queima de dezenas de bruxas. Podemos nos
desfazer dessa evidência histórica perturbadora explicando o com­
portamento dos reformadores como decorrência da atmosfera
católico-medieval que ainda respiravam. Assim fazendo, consegui­
mos salvar a ideologia protestante da liberdade e do livre exame,
atribuindo as origens da inquisição protestante a um resíduo de es­
pírito católico. Mas nesse caso seria necessário demonstrar que o
espírito e as práticas inquisitoriais desapareceram gradualmente do
protestantismo. E parece que isso não é possível. O que se observa é
o seu reaparecimento no seio do protestantismo sempre que o pen­
samento divergente ameaça a sua unidade política e teológica. Na
verdade, seria possível interpretar a tendência protestante às divi­
sões denominacionais e sectárias como uma expressão de práticas
inquisitoriais. É evidente que fogueiras não podem mais ser acesas.
Entretanto, o fato de os grupos com pensamento divergente serem
forçados a deixar uma certa Igreja é uma evidência da presença de
mecanismos de controle de pensamento extremamente eficazes na
Igreja de que foram forçados a sair.
Poderiamos explicar a presença das práticas inquisitoriais no pro-
leslanI¡sino por meio de duas hipóteses que se excluem mutuamente:

I 12
Certeza e inquisição

1. As práticas inquisitoriais são desvios acidentais. Trata-se de aber­


rações transitórias, de deformações patológicas numa organiza­
ção que é essencialmente oposta à inquisição.
2. As práticas inquisitoriais não são aberrações transitórias nem de­
formações patológicas de uma organização comprometida com a
liberdade. Trata-se de decorrências naturais da própria institui­
ção protestante. Nesse caso, teríamos de reconhecer na temática
da liberdade e do livre exame uma verdadeira inversão ideológi­
ca, que obscurece e falsifica os mecanismos reais em operação na
organização em questão.
É necessário constatar, antes dc mais nada, que a sociedade não pode
sobreviver sem mecanismos de controle e eliminação do desvio de pen­
samentos e de conduta. A partir das escolas. A sua função c reproduzir,
no educando, o conhecimento da realidade socialmcntc aceito, de tal
forma que esse conhecimento seja introjetado e o educando venha a
reconhecer o conhecimento social da realidade como o seu próprio.
Quando isso ocorre, identificam-se o conhecimento social e o indivi­
dual da realidade, e o educando está adequadamente socializado.
Mas a socialização nunca é total. Observa-se sempre que certos
grupos de indivíduos rejeitam as construções sociais da realidade e
elaboram, para si, definições alternativas do que é o real e do que é o
comportamento próprio. Tornam-se indivíduos desviantes da nor­
malidade socialmente definida. E, como tais, rompem a unidade cog­
nitiva e comportamental da sociedade. Se o desvio tem conseqüên-
cias puramente individuais e domésticas, tais indivíduos são tratados
como doentes mentais e submetidos aos processos terapêuticos que
têm por objetivo restaurá-los ao real e ajustá-los às definições sociais.
Quando o comportamento desviante tem conseqüências sociais mais
amplas, tais indivíduos são tratados como criminosos e propriamen­
te punidos e segregados. Tais são as funções dos manicômios c pri­
sões. O mesmo processo de controle de pensamento e dc comporta­
mento se observa em unidades menores, dentro da sociedade. Parti­
dos políticos, comunidades científicas c Igrejas seriam instâncias do
que acabamos de indicar.

113
Dogmatismo e tolerância

()s mecanismos para controle e eliminação do desvio das normas


socialmente aceitas prevéem controle em dois níveis. O primeiro de­
les é o nível do comportamento propriamente dito, isto é, aquilo que
os homens fazem. Encontramo-nos aqui no nível da moral. O segun­
do tem a ver com o comportamento intelectual, ou seja, aquilo que
os homens afirmam acerca da realidade. Muito embora, à primeira
vista, a moral desviante possa parecer o comportamento mais peri­
goso para a unidade da sociedade, a verdade é que o pensamento di­
vergente é aquele que apresenta maior periculosidade, abalando a or­
dem social em questão nos seus próprios fundamentos.
O ladrão, que atenta concretamente contra a propriedade priva­
da, é menos perigoso que aquele que, não sendo ladrão, contesta, no
nível intelectual, a legitimidade da propriedade privada. O primeiro
deseja apenas resolver um problema prático particular. O segundo
nega a validez da ordem social como um todo. De forma idêntica,
num país comunista, um cidadão que se comporta concretamente de
forma burguesa (talvez desejando enriquecer-se operando no mer­
cado negro de dólares) é menos perigoso que o filósofo que, aderin­
do a uma ética de austeridade proletária, rejeita a legitimidade da
ordem politicamente instituída. O primeiro, como no caso anterior,
só busca uma vantagem pessoal. O segundo, ao contrário, sem buscar
vantagens pessoais, denuncia todo um sistema e uma filosofia de vida.
A prostituta, igualmente, é menos perigosa que o eunuco que afirma
uma filosofia de amor livre. O desvio intelectual, em todos estes ca­
sos, é subversivo de uma totalidade, enquanto o desvio comporta-
mental deixa a totalidade como está, não questionando nunca a sua
legitimidade. No caso específico das instituições eclesiásticas, esse fato
se torna evidente quando notamos que é fácil reassimilar aqueles que
cometeram deslizes morais, enquanto é praticamente impossível fa­
zer o mesmo com os hereges. O imoral não contesta uma visão de
mundo. O herege sim. O que comete o deslize moral sabe que a ver­
dade está com a instituição. Esta é a razão por que comete o seu ato
cm segredo. Sua vergonha é indício de que, no nível cognitivo, ele
reconhece o erro do seu comportamento. O herege, ao contrário, sabe
que ele está certo e a instituição errada. Por isso não se envergonha e

I M
' <>rteza e inquisição

prega as suas idéias. O imoral só deseja permissão para realizar o seu


ato. O herege deseja abolir um mundo e criar um outro.
É necessário notar que o “herege” não se chama a si mesmo de here­
ge. Do seu ponto de vista, ele proclama a verdade a uma instituição que
se desviou da verdade. A heresia, portanto, na medida em que ela im­
plica uma contestação de verdades cristalizadas por uma instituição,
pressupõe o exercício do livre exame. O líerege é aquele que crê na voz
da sua consciência, assumindo o risco da liberdade. E esse risco se ex­
prime na coragem de se desviar da normalidade cognitiva social.
Ora, se assim é, qualquer instituição que tenha mecanismos para
identificar e eliminar o desvio está comprometida com a elimina­
ção do livre exame e, portanto, da liberdade. “Herege” é um estigma
criado pelas instituições eclesiásticas a fim de preservar sua unida­
de cognitiva, e por este mesmo ato elas declaram não haver lugar,
no seu interior, para o pluralismo que surge inevitavelmente do li­
vre exame e da liberdade.
A ortodoxia pressupõe existir uma identidade entre as Escrituras
Sagradas e as definições doutrinárias já cristalizadas. Aquele que é
definido como herege é aquele que afirma existir uma contradição
entre as definições doutrinárias socialmente aceitas e as Sagradas Es­
crituras. Em outras palavras: ele declara que aquilo que a instituição
aceita como verdade não é verdade.
Por que mecanismos se conclui que os ortodoxos são ortodoxos e
os hereges são hereges? A história nos dá uma pista muito interessan­
te para responder a essa pergunta: os hereges são sempre os vencidos
e os ortodoxos, os vencedores. Em última análise, a decisão é feita por
um processo político. Os hereges são os fracos; os ortodoxos são os
fortes. Aquilo que uma instituição eclesiástica reconhece como ver­
dade, e que usa como critério para estigmatizar o herege, foi formu­
lado e imposto, um dia, por aqueles que detinham o monopólio do
poder político nessa mesma instituição. Se a situação tivesse sido a
oposta, isto é, se os perdedores tivessem sido vitoriosos, o seu pensa­
mento teria sido imposto como verdade e ortodoxia, e o de seus opo­
nentes como heresia. Assim, ortodoxia e heresia pouco ou nada nos

115
Dogmatismo e tolerância

icvcliun sobre o problema da verdade. Tais conceitos simplesmente


apontam para os vencedores e os perdedores.
Os procedimentos inquisitoriais, para identificação c eliminação
do pensamento desviante, só são possíveis se...
a. um grupo pretender ser o detentor da verdade absoluta. A verda­
de absoluta é aquela que é completa, fixa e final. Não pode, por­
tanto, ser contestada ou mudada;
b. esse grupo detiver os instrumentos políticos de coerção e violên­
cia para a eliminação efetiva dos desviantes.
Mas, se nossa análise é correta, a pretensão de verdade absoluta
nada mais é que a face ideológica das realidades do poder político
nos limites institucionais.
Os ortodoxos, na medida em que são uma expressão do grupo
dominante na instituição eclesiástica, estão condenados a ser intole­
rantes. Não podem optar por perseguir ou não hereges. Por que ra­
zões a verdade seria convencida a fazer concessões ao erro? Por que
tolerar o pensamento divergente se a instituição é possuidora da ver­
dade? Por que entrar num diálogo ecuménico se nada há para se apren­
der? Diálogo só é possível se se pressupõe que a verdade ainda não foi
alcançada, se se admite que o pensamento divergente pode ser verda­
deiro. Somente com tais pressupostos faz sentido escutar. Mas aos
detentores da verdade cumpre apenas anunciar, “sem vacilações e sem
concessões”, a verdade que já é posse sua.
Para onde nos levam tais reflexões?
É um fato histórico que o protestantismo, em oposição ao catoli­
cismo, que invocava a sua continuidade histórica como marca de ser
ele a verdadeira Igreja, foi levado a eleger a confissão da reta doutrina
como sinal de autenticidade apostólica. Ora, se a confissão da reta
doutrina se erige como a essência da verdadeira igreja, segue-se como
uma decorrência lógica e institucional que os comportamentos inqui-
siloriais necessariamente se devem fazer presentes, a fim de preservar
a integridade da verdade. Se nossa análise é correta, podemos então
com luir pela segunda hipótese: os comportamentos inquisitoriais não
sao aberrações transitórias numa organização comprometida com a

I 16
orteza e inquisição

liberdade e o livre exame. A pretensão de posse da verdade torna im­


possível a tolerância, sem a qual a liberdade e o livre exame não po­
dem sobreviver. E mais do que isso: a pretensão de posse da verdade
(orna impossível a sobrevivência do espírito profético. Porque o pro­
feta é sempre um desviante, que denuncia a verdade socialmente aceita
como falsidade e idolatria, e anuncia a sua verdade.
Estas reflexões foram elaboradas em torno de uma questão relati­
va ao protestantismo. Mas talvez as conclusões extrapolem de muito
os seus limites. E há plenas evidências sociológicas para substanciar o
nosso ponto. Talvez a ordem social, qualquer que seja ela, seja funda­
mentalmente coercitiva. Talvez exista uma oposição radical entre a
ordem social, com as suas exigências de integração e controle de pen­
samento, de integração e controle de comportamento, e a liberdade.
Talvez a liberdade possa subsistir somente nas margens do mundo
socialmente construído. E por isso aqueles que ouvem o chamado da
liberdade estão condenados à marginalidade e à inquisição. Tal como
aconteceu com os profetas e com Jesus.

1 17
8
O protestantismo latino-americano:
sua função ideológica e suas
possibilidades utópicas (1970)

constatação mais básica da sociologia do conhecimento é que as


A idéias não têm vida autônoma. Elas são uma parte da estrutura
global da vida humana. Mas essa estrutura não é um dado apriori e
universal, como se pensou por muito tempo. Estruturas são construí­
das pelo homem, em resposta às necessidades vitais do relacionamento
deste homem com o seu mundo, no sentido de resolver o problema
da sobrevivência. Assim, as idéias e mesmo a consciência surgem como
produto da interação entre o homem e o seu mundo no sentido de
orientar a atividade humana de sorte a resolver os problemas que
essa dialética cria permanentemente. Em outras palavras: a consciên­
cia e as idéias nascem de necessidades práticas e funcionam para
solucioná-las1.
Um dos paradoxos da experiência humana, entretanto, é que o
homem que é capaz de produzir o mundo passa freqüentemente a
experimentá-lo como tendo existência em si, autônomo, anterior à
atividade humana que o produziu. O resultado disso é que as idéias

1. Acerca das origens biológicas das estruturas intelectuais ver Jcan PIAGET,
Biologie et Connaissance, 1967, e John 1)EWEY, Heconslriiclion iii Pliilosophy, 1962,
especialmente o cap. IV,“Changed Conceptions of Experiente and Reason”. Acer­
ca das estruturas como construções ou produtos da atividade humana ver BER-
GER, Luckmann, The Social Constrnclion of Realily, 1967, e Jean Piaget, El
Estructuralismo, Proteo, 1968.

1 19
Dogmatismo e tolerância

<|iie ‘.i- iclcrem a este mundo passam, paralelamente, a ser entendidas


Mimo eternas e possuidoras de existência própria. Este é, realmente,
mu dos hábitos de pensamento mais arraigados em nossa tradição oci­
dental, que não pôde se libertar do platonismo, que, sob as mais varia­
das formas, nos tem dito que as idéias existem independentemente da
historia, e que, conseqüentemente, o intelecto humano não cria, mas
simplesmente descobre aquilo que já é verdade antes e fora dele. Pa­
rece-me que esta é urna das formas mais insidiosas daquele feitiço que
a linguagem exerce sobre o homem a que se refere Wittgenstein2. E isso
porque ao esquecer-se das origens das idéias o homem perde a possibi­
lidade de compreendê-las. A sociologia do conhecimento, ao contrá­
rio, nos indica que as idéias têm de ser compreendidas a partir das suas
origens, das necessidades vitais que levaram o homem a criá-las como
“ferramentas” para entender e dominar o mundo, a fim de fazê-lo mais
amigo. Compreender uma idéia é compreender o seu “para quê”, é
decifrá-la como “ferramenta”.
Não podemos nos esquecer, além disso, de que todo esse processo
de criação de idéias ou de “construção social da realidade” se dá sob o
impulso dos componentes emocionais volitivos da classe em ques­
tão. Dewey observa que não é a lógica ou a razão pura que oferece a
dinâmica para as nossas elaborações intelectuais, mas antes as nossas
emoções, os nossos medos e as nossas esperanças3. Na mesma linha,
Mannheim nos mostra que até mesmo a mentalidade dos grupos, a
sua maneira peculiar de estruturar o tempo e a história, é condicio­
nada por suas determinantes emotivas e volitivas. Daí a sua afirma­
ção de que “a estrutura íntima da mentalidade de um grupo nunca
pode ser melhor compreendida que quando procuramos entender
suas concepções de tempo à luz de suas esperanças, aspirações epropó­
sitos” (grifo meu)4. Em outras palavras e retomando uma afirmação
que já fizemos: o tempo, como a consciência, é construído em respos­
ta a necessidades eminentemente práticas e desempenha funções

2, L. Wittgenstein, Philosophical Investigations, 45, n. 109: “Philosophy is a


b.il llr against the bewitchment of our intelligence by means of language”.
I. I )i:wey, op. cit., cap. 1.
•I. K. M/\NNIIF,im, Ideologia e utopia, 1954,195.

I 20
protestantismo latinoamericano: sua função ideológica e suas possibilidades utópicas (1970)

práticas. Ele é a tradução, em termos abstratos e universais, da expe­


riência prática de um grupo, constituindo-se, por isso mesmo, na ló­
gica segundo a qual o grupo programa (no sentido cibernético) as
suas relações com o mundo. De certa forma é ele posterior à ação,
porque nasce dela, e por outro lado vai adiante da ação, orientando-a.
Parece-me que as perspectivas acima nos abrem um horizonte
muito promissor para a compreensão do fenómeno religioso de um
ponto de vista científico, sem as distorções unilaterais que encontra­
mos na crítica marxista e freudiana5. Com efeito, as religiões são for­
mas gerais de estruturação do tempo, e contêm uma “programação” de
ação em resposta a elas.
É minha impressão de que nos encontramos aqui diante de algumas
sugestões que podem nos ajudar a compreender a profunda re-organização
do fenômeno religioso cristão na América Latina. Tradicionalmente
usava-se, para classificar o fenômeno, uma tipologia importada, que se
baseava nas origens históricas dos diversos grupos. Assim, dividiam-se
os cristãos em duas grandes classes, católicos e protestantes. Estes últi­
mos, por sua vez, eram organizados segundo duas categorias: as denomi­
nações históricas, estruturadas nos moldes de Igreja, e os grupos entu­
siásticos (na sua maioria pentecostais), do tipo seita. Mas assim como em
lingüística, se quisermos descobrir o significado de uma palavra, tere­
mos de olhar para o seu uso na linguagem corrente, e não para as suas
origens etimológicas, também no nosso caso específico é necessário en­
tender o protestantismo não a partir das suas origens históricas, mas
verificando a maneira como ele se comporta no contexto global da socie­
dade latino-americana. A tipologia histórica não só nada nos revela so­
bre esse comportamento, como também — o que é mais grave — masca-

5. A esse respeito acho muito interessantes duas afirmações. A primeira, de


Norman O. Brown (Vida contra a morte, Vozes): “A psicanálise está numa posi­
ção de definir o erro na religião somente após reconhecer a sua verdade”. E a
segunda, de BERCER & LUCKMANN, quando, à guisa de conclusão de seu livro,
declararam que “nossa compreensão da sociologia do conhecimento leva à con­
clusão de que as sociologías da linguagem e da religião não podem ser considera­
das especulações periféricas de pequeno interesse para a teoria sociológica como
tal, mas têm contribuições essenciais a fazer a elas... a sociologia do conhecimen
to sem uma sociologia da religião é impossível”.
► Dogmatismo e tolerancia

ra o protestantismo, tal como ele é, na realidade. Além disso, as profun­


das fraturas que dividem de alto a baixo, internamente, tanto as denomi­
nações protestantes como a Igreja católica, são uma evidência clara de
que a tipologia tradicional esconde profundas contradições.
Por que surgiram as fraturas? A resposta parece óbvia. Constatamos,
primeiramente, que elas surgiram paralelamente com a tomada de cons­
ciencia da situação de crise por que passa a América Latina. Esta situação
crítica forçou os grupos cristãos a reinterpretar a sua relação com o nos-
so mundo, de urna forma ou de outra. Esse é um processo inevitável
sempre que a “programação” das relações entre uma comunidade e o seu
mundo é problematizada pelo aparecimento de uma situação não pre­
vista. As alternativas seriam ou reafirmar a “programação” antiga, ne­
gando, dessa forma, a realidade dos problemas novos, ou reformular a
“programação” a fim de criar melhores condições de relacionamento com
o mundo. Na medida em que estas alternativas são escolhidas por gru­
pos, manifesta-se entre eles, imediatamente, a ruptura.
Mannheim, no livro que já citamos, oferece uma sugestão que me
parece muito útil para a compreensão do processo de reorganização
diante da crise latino-americana por que passam os grupos cristãos.
Segundo ele, a maneira pela qual grupos são levados a entender a sua
situação histórico-social dá origem à formação de estados mentais utó­
picos e ideológicos. Um estado mental utópico é definido como aquele
que, sendo “incongruente com o estado de realidade dentro do qual
ocorre (topia)”, tende, ao ser transformado em atividade, “a destruir
parcial ou completamente a ordem de coisas existente em determinada
época”. Chama então de utopias aquelas estruturas intelectuais que
“transcendem a realidade e que, ao mesmo tempo, rompem os laços da
ordem existente”6.

6. E necessário notar que, para Mannheim, a formação de tais mentalidades


não é um processo autônomo, nos moldes idealistas. Observa ele que as utopias
nada mais são que a condensação das “tendências não realizadas que representam
as necessidades de cada época” e que, portanto, elas só podem ser compreendi­
das por referência “à situação estrutural da camada social que as adota em de-
lei ininada época” (op. cit, 185, 193). A palavra utopia e o seu conteúdo foram
mtiito desacreditados pela crítica marxista. Buber nos ajuda a colocar a questão na

122
O protestantismo latino-americano: sua função ideológica e suas possibilidades utópicas (1970)

As ideologias, por outro lado, são as estruturas intelectuais que,


muito embora “transcendam a situação”, “nunca logram, de fato,
realizar o conteúdo projetado”. Utopias e ideologias se distinguem,
portanto, pela maneira como “programam” a ação do grupo que as
sustenta. Enquanto as utopias orientam ações de transformação, as
ideologias as inibem, preservando dessa forma as coisas tais como
elas se encontram.
A razão por que sugerimos atrás que a tipologia tradicional, ba­
seada em critérios históricos, se tornou obsoleta se deve ao fato de
que presentemente se observa que são as orientações utópicas e ideo­
lógicas que estão se constituindo nos novos princípios de organiza­
ção, de pensamento e de comunidade, para os grupos cristãos. Daí a
razão da fratura. Daí as tensões. Daí as lutas. Situação paralela àquela
do Antigo Testamento da polarização e da luta entre a mentalidade
profética, orientada para o futuro, e a sacerdotal, comprometida com
a preservação do presente. Permitam-me alguns comentários sobre o
problema, específicamente em relação ao protestantismo.

1. As possibilidades do protestantismo
No período anterior ao Concilio Vaticano II, católicos e protes­
tantes concordavam sobre poucas coisas. Uma delas era a sua inter­
pretação da Reforma como um movimento que contribuiu para a
desintegração da síntese medieval. É lógico que as avaliações deste
fato se opunham. Enquanto os protestantes o louvavam, os católicos
o amaldiçoavam. Hegel podia incluir a Reforma em sua Filosofia da
história7 como um novo avanço do espírito, agora consciente de que
“o homem, em sua própria natureza, está destinado a ser livre”. Já

perspectiva própria: “A polêmica de Marx e Engels fez com que a palavra‘utópico’


viesse a ser usada, dentro e fora do marxismo, para designar o socialismo que
apela para a razão, a justiça e a vontade do homem para remediar os desajus-
tamentos da sociedade, ao invés de simplesmente tomar consciência ativa daqui­
lo que está sendo‘dialeticamente’ quando no seio do industrialismo. Todo socia
lismo voluntarista é classificado como ‘utópico’” (Paths in Utopia, 1958).
7. Cf. G. W. E HEGEL, The Philosophy ofHistory, 416.

I ’i
Dogmatismo e tolerância

Nov.ilis ,i acusa de assassina da Cristandade, de ter dividido o mundo


c separado o inseparável8. Este conflito nos permite ver que, enquan­
to o pensamento católico se organizara para preservar a síntese me­
dieval, funcionando em relação a ela como ideologia, a Reforma con­
tinha elementos inegavelmente disfuncionais em relação àquela sín­
tese, o que dava ao seu pensamento a função utópica. Esta observa­
ção é de grande importância, porque o catolicismo que se implantou
na América Latina se propunha a restaurar ali a síntese que se rachara
na Europa. Tratava-se de um catolicismo organizado segundo as li­
nhas de Trento e, portanto, no espírito da Contra-Reforma. A socie­
dade latino-americana formou-se então como resultado do casamento
do espírito aristocrático, autoritário e elitista da tradição ibérica com
os ideais católicos. E fácil compreender que nessa sociedade a espiri­
tualidade católica não se constituía, de forma alguma, numa religião
que se colocava ao lado de muitas outras possíveis expressões cultu­
rais. Ela era a própria alma da América Latina, com a qual formou
uma síntese global que preservava a unidade cultural da Cristandade
assassinada pela Reforma.
Ora, quando o protestantismo ali chegou, trazido pelo movimen­
to missionário do século XIX, trouxe consigo a ameaça de uma nova
desintegração. Não se tratava simplesmente de um fenômeno reli­
gioso a mais. A Igreja católica latino-americana nunca teve medo de
fenômenos religiosos novos. Ao contrário, ela sempre soube batizá-los,
assimilando-os assim à espiritualidade católica. O protestantismo, ao
contrário, parecia caracterizar-se pela sua oposição estrutural ao Ca­
tolicismo. Resistente à assimilação, permanecia como um corpo es­
tranho, disfuncional, perturbador. Apresentava-se como uma possi­
bilidade de subversão da ordem dominante.
Na realidade, o protestantismo chegava não apenas como uma nova
religião, mas como parte da onda de modernidade que então invadia
a América Latina. Trazia em si os ideais e valores da sociedade bur­
guesa que na Europa e nos Estados Unidos havia desferido dois pro-

8. I l.ins RüCKERT, “The Reformation — Medieval or Modern?”, in R.


Bill i MANN, et al., Translading Theology into the Modern Age-, 1965.
O protestantismo latino-americano: sua Função ideológica e suas possibilidades utópicas (1970)

fundos golpes na sociedade aristocrática, através da Revolução Fran­


cesa e da Revolução Americana. O protestantismo oferecia uma ver­
são religiosa dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Re­
volução Francesa e das “verdades evidentes por si mesmas” a que se
referia a Declaração de Independencia dos Estados Unidos da Améri­
ca do Norte: “que todos os homens foram criados iguais, que foram
dotados, por seu Criador, de certos direitos inalienáveis, entre os quais
estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade”.
Daí a razão por que a Igreja católica julgou necessário perseguir
os protestantes na América Latina: porque, a seu ver, não se tratava
de uma religião a mais, mas da negação e da ameaça de destruição da
síntese Igreja-Civilização, última expressão ainda existente da Cris-
tandade. De fato, quando se analisam os valores protestantes do pon­
to de vista de sua possível função em relação à sociedade latino-
americana, parece óbvio que eles se constituíam numa ameaça de
desintegração da ordem dominante. Ou seja, o protestantismo pode­
ría vir a ser uma utopia. Vejamos alguns deles.
Historicamente, o protestantismo nasceu como a afirmação de que
o homem, em sua própria natureza, está destinado a ser livre. Lutero
afirmava assim, no seu tratado A liberdade do cristão: “o cristão é se­
nhor de todas as coisas e não está sob o domínio de coisa alguma”. Esta
ênfase representou algo de profundamente revolucionário. Porque, ao
contrário do pensamento católico medieval, que fazia o homem um
ser subordinado à estrutura hierárquica, a Reforma faz as estruturas
subordinadas ao pessoal. E se for o caso elas têm de ser quebradas para
que o homem expresse a sua liberdade. Este é, realmente, o centro do
conflito entre protestantismo e catolicismo. Não é necessária muita
imaginação para se comprender que o conflito é semelhante àquele
que hoje toma forma como história versus estrutura. A Reforma arti­
culou assim um humanismo de liberdade. K. Holl observou com mui­
ta perspicácia que o superhomem de Nietszche — o homen é livre para
criar um novo mundo — nada mais é que uma versão secularizada do
homem livre da lei de Lutero9.

9. K. HOLL, The Cultural Significance of the Reformation^ 1962, 137.


Dogmatismo e tolerancia

A mentalidade protestante, assim, nas suas origens, implicava uma


i adical rejeição do caráter final ou sagrado de quaisquer estruturas.
Paul Tillich chega mesmo a ver neste elemento crítico de todas as
estruturas o que poderia ser chamado de princípio protestante10.
E fácil ver que tal mentalidade se colocava ao lado das forças que
estavam contribuindo para a destruição da síntese medieval, que ar­
ticulava o seu humanismo em termos de integração do homem nas
estruturas eclesiásticas, políticas e sociais.
Como já indicamos atrás, a sociedade latino-americana tinha uma
grande semelhança com a sociedade medieval. Sociedade hierárquica,
dividida entre elites dominantes, cuja vontade era a lei, cujos interesses
eram a única norma, e as massas dominadas. Internacionalmente do­
minada pelos interesses de Espanha e Portugal, e internamente pelos
grupos que respondiam a estes interesses: colonialismo interno e exter­
no. Cabia às massas um papel puramente passivo. Nenhum valor ti­
nham em si. Sua significação era derivada da contribuição que pudes­
sem oferecer ao bem-estar e ao poder das classes dominantes. Não se
lhes permitia projetar o seu próprio futuro porque o único futuro que
poderiam ter era aquele que os dominadores lhes impunham.
Por sua vez, as estruturas de dominação criaram a mentalidade do
homem dominado: passivo, incapaz de pensar o seu futuro, impo­
tente para sonhar a sua própria libertação. Deu-se aquele fenômeno
que mencionamos na introdução: as estruturas criadas pelos homens
passaram a ser apreendidas como estruturas eternas, que não pode­
riam ser mudadas.
Nesse contexto, as estruturas católicas de pensamento contribuíam
duplamente para a sacralização do status quo. Primeiramente, porque
sua visão hierárquica da sociedade admitia como normais e necessárias
as desigualdades econômicas e a situação de controle das massas pelas
elites. E em segundo lugar porque ela legitimava as estruturas dominan­
tes como sendo da vontade de Deus. A consciência do homem oprimido
é então impedida de protestar, e irá expressar-se em termos de um fata-

10. Paul Tll.I.lCH, The Protestant Era, 1952, 163.

126
protestantismo latino-americano: sua função ideológica e suas possibilidades utópicas (1970)

lismo religioso, de resignação ante as condições de injustiça, que tudo


aceita e tudo afirma ao declarar: “É a vontade de Deus”.
Como indicamos, o protestantismo deslocou a ênfase das estrutu­
ras para o individuo. No caso do protestantismo latino-americano, a
preocupação com a pessoa era ainda mais forte, pois ele provinha do
pietismo, que nascera como um protesto contra a esterilidade doutri­
nai da ortodoxia protestante. Sua ênfase mais central era na experiên­
cia religiosa pessoal, nos conteúdos subjetivos e existenciais: tristeza
pelos pecados cometidos, certeza de salvação, paz e alegria. Ao abando­
nar as estruturas como o ponto de partida, o humanismo protestante
criava, germinalmente, urna forma de pensar que poderia, eventual­
mente, vir a romper os laços da ordem existente. Não há estruturas
sagradas. Deus não tem comunhão com estruturas, mas somente com
pessoas. Por isso os homens são sacerdotes e livres. O sacerdócio uni­
versal implicava assim o fim de todo autoritarismo religioso ou secular.
E ao mesmo tempo exigia uma sociedade fraterna, de comunhão, de
participação, de direitos humanos iguais. Se Deus se relaciona igualmen­
te com todos os homens, não se pode tolerar uma sociedade onde al­
guns homens dominam outros. Exige-se uma sociedade democrática.
Ainda mais, a consciência do pecado, tão típica da mentalidade
protestante, contribuiu para acentuar a oposição entre o pessoal e o
estrutural. Se as estruturas da América Latina eram uma expressão
do autoritarismo hierárquico do catolicismo de Trento, elas vieram a
ser consideradas expressões de pecado, como um todo. A afirmação
bíblica de que “a amizade ao mundo é inimizade contra Deus” pas­
sou necessariamente a ser interpretada como um julgamento contra
todas as estruturas dominantes. Havia, assim, a possibilidade de que
o protestantismo viesse a engrossar as vanguardas políticas e intelec­
tuais que no século XIX lutavam para o rompimento do status quo.
Por outro lado, o protestantismo criou um estilo diciplinado de
vida que estava em franca contradição com as atitudes mentais que a
“topia” latino-americana criara. No seu livro A ética protestante e o
espírito do capitalismo, Max Wcbcr mostrou que o fator disciplina dc
trabalho era um elemento fundamental da espiritualidade calvinista,

127
Dogmatismo e tolerância

porque por meio dela o crente encontrava a confirmação de que Deus


o predestinara à salvação. Disciplina, entretanto, exige uma atitude
mental de confiança no poder humano para determinar o mundo. O
homem se disciplina na medida em que ele está convencido de que,
através dela, poderá atingir determinados objetivos e modificar as
condições que dominam o seu presente. Quando tal atitude mental
existe, o homem organiza a sua vitalidade em função de um propósi­
to. Ora, urna das características da sociedade latino-americana era
que as suas estruturas tornavam impossível tal atitude. O individua­
lismo aristocrático ibérico das elites tomava forma numa indepen­
dência de conquistador e bandeirante, fundamentalmente anárqui­
ca, que acreditava mais na sorte que na disciplina (Comblin). Essa é a
mentalidade que vê a historia como um jogo. Assim, não se planeja o
futuro, joga-se sobre ele. Trata-se de urna forma diferente do fatalismo
das massas: o futuro é encarado como dádiva dos deuses. No meio das
massas, a mesma atitude prevalecia. Porque as elites nunca lhes per­
mitiam planejar e executar o seu futuro, elas passavam a crer que o
seu futuro se subordinava a um fatalismo cego. Participavam de um
jogo em que não tinham possibilidades de ganhar. Não podia ser de
outra forma. Sua firme convicção, que nada mais era que a generali­
zação da sua experiência histórica, era que seu trabalho não podia
criar nenhum futuro diferente. O futuro será o que Deus quiser. Esta
é a razão por que nunca surgiu entre as massas latino-americanas
aquela atividade febril que caracterizou o povo norte-americano. As
estruturas de dominação não permitiam que o homem viesse a con­
siderar o trabalho um instrumento para a criação de um mundo de
liberdade. Ao contrário, na sua mente o trabalho foi sempre uma for­
ma de opressão. De sua proverbial preguiça. Realmente, no contexto
do colonialismo disciplina não faz sentido. E isso porque será sempre
o dominador aquele que irá colher os frutos semeados pelo trabalho
árduo. A falta de disciplina do povo latino-americano, portanto, não
significa que os latinos se tenham tornado especialistas na arte do
lazer, como quer Harvey Cox. Ela é antes o retrato da impotência. O
eslilo disciplinado de vida que o protestantismo trazia consigo signi­
ficava uma possibilidade de rompimento das estruturas mentais tan-

128
O protestantismo latino-americano: sua função ideológica e suas possibilidades utópicas (1970)

to dos senhores como dos dominados: ela afirmava, implicitamente,


a liberdade e o poder do homem para construir o seu próprio mundo e
para dominar o seu próprio tempo.

2. O protestantismo como ideología


A América Latina vive um momento único na sua historia. E isso
porque, ao lado da permanência da situação de opressão e injustiça
em que se encontram as grandes massas, nota-se urna tomada de cons­
ciência da necessidade de se criar uma sociedade nova. Vivemos,
constatou a Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-ame­
ricano, uma situação de desigualdades excessivas entre as classes so­
ciais, em que poucos têm muito, enquanto muitos nada têm, situação
de frustrações crescentes, de opressão por parte de grupos e setores
dominantes, de poder exercido injustamente, de empobrecimento
geral do continente, devido às condições internacionais injustas a que
ele está submetido. Situação de violência institucionalizada. Entre­
tanto, a consciência dantes oprimida, incapaz de planejar o seu futuro,
despertou. Nota-se uma ânsia geral no sentido de que estruturas mais
justas sejam criadas. “Estamos no umbral de uma nova época da his­
tória do nosso continente”, continuam os bispos católicos. “Época ple­
na de um desejo de emancipação total, de libertação de qualquer ser­
vidão, de maturidade pessoal e integração coletiva. Notamos aqui os
prenúncios do parto doloroso de uma nova civilização.”11 O desafio
que se oferece hoje à América Latina é a exigência da construção de
uma sociedade de fraternidade humana. Não se trata simplesmente
de resolver as nossas contradições econômicas, embora este seja um
dado fundamental. Teoricamente é possível que os que dominam,
interna e externamente, venham a oferecer condições econômicas ra­
zoáveis aos dominados. Ê necessário ter sempre em mente que quan­
do os senhores melhoram as condições dos escravos eles melhoram,
neste próprio ato, as condições de exploração. O que eles não podem
fazer é libertá-los. Ora, o que se pretende hoje, fundamentalmente, é
a criação de uma sociedade de participação, isto é, que seja o resulta-

11. SEDOC, vol. I, nov. 1968, n. 5.

129
Dogmatismo e tolerância

<l<» <1.1 criaiividade, da vocação humana do povo latino-americano.


Nesle anúncio “do desejo de passar do conjunto de condições menos
luí manas para a totalidade de condições plenamente humanas e inte­
grar toda a escala de valores temporais na visão global da fé cristã,
tomamos consciência da ‘vocação original’ da América Latina: voca­
ção de unir, numa síntese nova e genial, o antigo e o moderno, o espi­
ritual e o temporal, o que outros nos legaram e nossa própria origi­
nalidade”, concluem os bispos12. Estas afirmações tornam claro que
as esperanças que hoje existem na América Latina entendem o desti­
no e o futuro do indivíduo somente dentro do destino e do futuro do
continente, como um todo. Nossa situação é tão intensamente histó­
rica, social, comunal, que não faz sentido falar do indivíduo como
um ser isolado. Vivemos aquilo que Paul Tillich denomina “a situa­
ção proletária”, ou seja, aquela em que o destino do indivíduo só pode
ser pensado do ponto de vista da sua solidariedade com as massas13.
E necessário que vejamos com clareza a fertilidade da situação. As
observações acima indicam que contemplamos o nascimento do pen­
samento utópico, com todas as suas promessas de transformação. Si­
tuação na qual o protestantismo poderia agir como catalisador se as
suas possibilidades utópicas encontrassem um meio de inserir-se no
nosso momento histórico. Mas, como Tillich bem observa, “a situa­
ção proletária, na medida em que ela representa o destino das mas­
sas, é impenetrável ao protestantismo, que, na sua mensagem, se diri­
ge à personalidade individual com a necessidade de uma decisão reli­
giosa, abandonando-a depois aos seus próprios recursos nas esferas
políticas e sociais...”14. O que está acontecendo com o protestantis­
mo latino-americano é uma confirmação total desta constatação. O
seu individualismo de tal forma dominou as suas formas de pensa­
mento que o protestantismo não pode produzir categorias para enten­
der os problemas de natureza estrutural. Por isso mesmo ele entende
os problemas sociais como um simples agregado, como uma simples
soma de problemas individuais. Daí a fórmula central da sua ética

12. Ibid., 666.


13. Paul Tillich, The Protestan! Era, 1962,161.
M. Ibkl., 161.

130
) protestantismo latino-americano: sua função ideológica e suas possibilidades utópicas {1970)

social: “Converta-se o indivíduo e a sociedade se transformará”. Isso


significa, é lógico, que o fenômeno do crescimento de Igrejas implica,
paralelamente, a criação de estruturas intelectuais que tornam im­
possível a compreensão do momento histórico que vivemos.
Isso é estranho porque a oposição entre o pessoal e as estruturas,
tão característica do protestantismo, poderia e deveria ter criado uma
ética pela qual o pessoal aceitaria como sua vocação a transformação
das mesmas estruturas às quais ele se opõe, a fim de se reconciliar com
elas. Mas tal não se deu. E a razão para isso é bem simples e de funda­
mental importância para se entender toda a estrutura e o funciona­
mento da mentalidade protestante. O protestantismo, em vez de enten­
der a oposição entre o pessoal, e as estruturas em termos dialéticos, inter­
pretou-a em termos de dualismo. Dialética significa que o sujeito que se
opõe ao mundo entende tal oposição como uma exigência de trans­
formá-lo. A consciência nega para, no fim, afirmar. Seu propósito é a
reconciliação. O dualismo significa, ao contrário, que o sujeito que se
opõe ao mundo entende tal oposição como uma exigência de afasta­
mento. Há uma dupla negação. O dualismo não pretende resolver a
oposição, mas perpetuá-la, intensificando-a ainda mais. Ele não vê pos­
sibilidade de reconciliação entre o pessoal e as estruturas. Nas palavras
de Hoekendijk, aqui nos encontramos como a pessoa que “desaprendeu
a esperança”. Busca-se então salvar a alma, já que o mundo está perdi­
do. A dialética teria dado origem a uma ética de transformação; mas o
dualismo não pode produzir outra coisa senão uma ética de conserva­
ção. Assim, para o protestante latino-americano o pessoal não trans­
forma o mundo, rejeita-o. A liberdade não o fertiliza, foge dele. Daí a
formulação típica da eclesiologia dominante: a Igreja, como comuni­
dade, não participa das transformações sociais. Sua tarefa é converter
os infiéis e alimentar os conversos. Conseqüentemente, o mundo como
tal, e de forma específica o mundo latino-americano com os seus valo­
res, o seu estilo de vida, a sua cultura, passou a ser considerado mau.
Observa-se mesmo que freqüentemente essa negação do mundo
latino-americano (por sua ligação com o catolicismo) toma a forma
inversa, em termos de identificação com os valores importados do
mundo anglo-saxão. O ato de se converter ao protestantismo pode en
Dogmatismo e tolerância

Mo implicar um desenraizamento pelo qual o homem é forçado a ne­


gar a cultura que o formou. Surge então uma antropologia em que as
relações do nosso homem com o seu mundo deixam de ser relações
essenciais de solidariedade e passam a ser relações acidentais de sim­
ples contato. Não há esperanças para o mundo. O protestante está no
mundo, mas não se solidariza com ele. Os seus olhos estão atentos à
sua vida pessoal e à promessa de salvação individual.
Outro artifício de que lança mão a mentalidade protestante para
impedir a dialética entre o pessoal e as estruturas é tomar o mundo
como um campo de provas. O seu aspecto negativo, as dores que ele
causa são provas mandadas por Deus. Por meio delas o homem é
levado a se desprender do mundo e a esperar somente nas coisas que
são do alto. Para tal atitude muito contribuiu a doutrina da provi­
dência, com os seus tons fatalistas. Assim, o importante não é que os
homens estão sofrendo, ou seja, as condições objetivas e estruturais
deles, mas como eles sofrem, ou seja, as condições subjetivas com que
eles enfrentam a provação. Fundamental contradição. De um lado, a
crítica às estruturas, como opostas ao pessoal. Do outro, a aceitação
passiva delas, como ordenadas pelo próprio Deus. Contradição que
torna impossível a dimensão de protesto, explícita no seu próprio
nome. Logicamente os impulsos transformadores da ação são subli­
mados na direção das virtudes passivas como a paciência, o confor­
mismo, a espera, a subserviência.
Isso significa que as teses de Weber, sobre o calvinismo, e a de Walzer,
sobre os puritanos, não encontram paralelo na situação latino-ame­
ricana. Para ambos, a espiritualidade protestante implicava uma ética
de caráter político que exigia a transformação do mundo para a glória
de Deus. No protestantismo latino-americano, o dualismo não permi­
tiu que tal ética surgisse. A ética é interiorizada e individualizada. O
crente usa sua disciplina não para transformar o mundo, mas para
reprimir-se e dominar-se. Ele não fuma, não bebe, não joga, diz sem­
pre a verdade, trabalha muito, economiza dinheiro. Ele tem a consciên­
cia de “ser diferente” e de que o mundo seria melhor se todos fossem
como ele... O seu estilo de vida, além dos elementos acima indicados,
se caracteriza então, do ponto de vista ético, por dois outros elementos.

132
> protestantismo latino-americano: sua função ideológica e suas possibilidades utópicas (1970)

Primeiro, uma tendência de adaptação ao mundo tal como ele é, pois


suas leis, jurídicas ou funcionais, são uma expressão da vontade de Deus.
Não se trata de uma simples tendência individual, mas no presente
fundamentalmente eclesiástica. Um capítulo que a história deverá in­
vestigar no futuro é a atitude que as Igrejas protestantes têm tido em
relação às estruturas dominantes, econômicas e políticas. A esta atitu­
de estão ligadas as práticas inquisitoriais que, em vários círculos pro­
testantes, voltaram a se manifestar. Em segundo lugar, a ética legalista,
conjugada com a disciplina pessoal, fez dos protestantes excelentes “fun­
cionários”. Criou-se mesmo uma “ética do funcionário” que canaliza a
vitalidade humana não na direção da criação do novo, mas antes no
sentido do aumento da eficiência das estruturas existentes. Ele é o bom
empregado, o bom funcionário, o bom cidadão, aquele que obedece às
regras do jogo, tais como foram impostas.
Ao passar a explicar as estruturas como expressão da vontade de
Deus, o protestantismo tornou impossível compreendê-la do ponto
de vista da sua gênese histórica e das funções e relações econômicas
que elas perpetuam. A ênfase protestante na reconciliação é muito
sugestiva, pois ela indica que os problemas humanos se situam no
nível dos mal-entendidos e nunca na esfera das relações injustas. E
como consequência torna-se difícil compreender a pobreza das mas­
sas como um problema estrutural. O protestantismo tendería, ao con­
trário, a interpretá-la como um problema de raízes puramente indi­
viduais. Daí a firme convicção de que “a conversão individual conduz
à solução dos problemas econômicos”. Ideologia idêntica àquela que,
nos Estados Unidos, interpreta a situação dos pobres como decorrência
do fato de que eles “não fazem força”. A crítica das estruturas é elimi­
nada e a crítica do individualismo toma o seu lugar. Consequentemen­
te, as promessas utópicas do protestantismo se revelam hoje como
nada mais que ideológicas.

3. Um novo protestantismo?
Há evidências, entretanto, de que a crise latino-americana está leva i)
do alguns a reinterpretar os símbolos da sua fé mais na direção utópii .1

1 ■
Dogmatismo e tolerância

< »11 messiânico-profética do Antigo Testamento. É bem verdade que isso


nao se refere às interpretações oficiais dos símbolos tais como as estrutu­
ras eclesiásticas adotam. Será antes em meio a certos grupos marginali­
zados pelas estruturas oficiais que poderemos ver esse processo ocorren­
do. É o conflito entre tendências ideológicas e utópicas que explica as
fraturas que hoje dividem não só as denominações protestantes tradicio­
nais, mas também a própria Igreja católica. Trata-se de tensões entre orien­
tações que não podem se reconciliar. O protestantismo, como ideologia,
se coloca ao lado das forças que desejam perpetuar as estruturas domi­
nantes. A história do século XX nos oferece alguns exemplos bastante
contundentes de tal postura. Como utopia, ao contrário, ele se abre para
o futuro e exige uma ética de transformações sociais. Entre estas duas
comunidades não pode existir nenhuma unidade ecumênica. Esta é uma
das razões por que afirmamos, no início, que os critérios denominacionais
se tornaram obsoletos para a compreensão da situação do protestantis­
mo na América Latina. Mas a outra razão por que os referidos critérios
não podem ser usados se deve ao fato de que, assim como as tendências
ideológicas e as tendências utópicas racham o protestantismo, os grupos de
orientação utópica no protestantismo descobriram uma nova unidade
com grupos de orientação idêntica na Igreja católica. Nasce, assim, uma
nova realidade eclesial, ecumênica, absolutamente real, muito embora
não tenha o rótulo “oficial”. Na Igreja católica as novas tendências mes-
siânico-proféticas não se restringem a grupos marginalizados. Pelo con­
trário, expressam-se nas mais altas esferas hierárquicas, como o atestam
os documentos da Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-
americano. Discussões sobre fé e ordem assumem um caráter marginal e
mesmo acidental ante o fato de que católicos e protestantes estão se des­
cobrindo como um só corpo, em função da sua esperança de uma Amé­
rica Latina nova. Talvez porque a unidade só nasça na medida em que
participamos de Cristo e nos constituímos então no seu corpo. Mas Cristo,
como ele mesmo o declara, se esconde naqueles que sofrem (Mt 26) e o
seu Espírito transforma os seus gemidos numa sinfonia de esperança
(Rm 8,22-23). Assim, ao se voltar para este homem em quem Cristo se
esconde, protestantes e católicos acham, repentinamente, aquela unida­
de há tanto tempo perdida.

134
9
Há algum futuro para o protestantismo
na América Latina? (1970)

1. O protestantismo latino-americano: fim da comunidade?


propósito deste capítulo é explorar o tema: o futuro do protes-
tantismo na América Latina. Tema que proponho apenas como
hipótese de trabalho. Realmente, as crises que estão fraturando as Igre­
jas protestantes históricas no nosso continente nos levam a duvidar
seriamente que o protestantismo esteja a caminho de algum futuro
que possa ser descrito como de alguma significação positiva. Esta não
c a primeira vez que alguém levanta essa interrogação. Creio que Tillich
foi o primeiro a formulá-la de forma clara. Perguntava ele: “Estare­
mos no fim da Era Protestante?”1. Tillich percebeu que havia uma
profunda contradição entre o seu desenvolvimento histórico (estrati-
ficação social, estrutura de pensamento e linguagem etc.) e as exigên­
cias da situação proletária do mundo moderno. Essa contradição sig­
nificava que o protestantismo, prisioneiro do seu passado, não tinha
os recursos para responder criativamente à situação em que ele se
encontrava. E isso era o prenúncio do seu fim. Ao escrever, Tillich
referia-se e dirigia-se à Europa. Não podemos, portanto, simplesmente
transferir a sua análise para a situação latino-americana. Antes de
mais nada, não podemos falar de “fim da era protestante” num conti­
nente que nunca a conheceu. “Era protestante” é uma expressão que

1. Paul TILLICH,“The End of the Protestant Era?” in The Protestant Em, 1962,2.’.’.
Dogmatismo e tolerancia

denota o poder criador do protestantismo para vitalizar uma civili­


zação. Ora, o que aconteceu no nosso continente é que o protestan-
I i sitio envelheceu muito antes de fecundá-lo com aquilo que de mais
criador ele possuía. Envelheceu prematuramente. Ainda menino fi­
cou senil.
Que queremos dizer com senilidade protestante? Desejamos indicar
que o protestantismo se acha dominado por um traço peculiar da psico­
logia da velhice: a obsessão pelo passado e a sua preservação. Senilidade
não é, realmente, uma simples categoria psicológica. Ela tem uma di­
mensão teológica que Kolakowski descreve como um estilo sacerdotal de
vida. “O estilo sacerdotal de vida”, ele observa, “não é simplesmente o
culto do passado, tal como ele é visto através dos olhos de hoje; ele impli­
ca, antes de mais nada, a sobrevivência do passado sob uma forma inal­
terada. Não se trata, portanto, de uma simples atitude intelectual diante
do mundo, mas, na realidade, de uma forma de existência do mundo, ou
seja, a continuação factual de uma realidade que não mais existe”2. Mas
como é possível que um mundo que não mais existe continue a se fazer
presente? A resposta é muito simples: o mundo morto se prolonga entre
os vivos por meio das estruturas que ele criou: estruturas de pensamen­
to, de linguagem, de comunidade, de poder. Estruturas que um dia fo­
ram a expressão autêntica de uma comunidade que as criou a fim de
expressar-se no seu mundo. Mas, quando a comunidade que as criou e o
mundo para que foram criadas passaram e morreram, elas continua­
ram. E pela sua presença os homens continuam acorrentados a um mun­
do que já morreu. A senilidade se caracteriza, portanto, pelo fato de que
a vitalidade das comunidades humanas é dominada pela rigidez das es­
truturas herdadas, fazendo, dessa forma, com que o velho triunfe sobre o
novo. Parece-nos ser esta a condição mais característica do protestantis­
mo histórico na América Latina: o triunfo dos critérios estruturais sobre
a vitalidade das comunidades humanas.
Note-se que não estamos sugerindo que exista uma alternativa: ou
comunidade ou estrutura. Alternativa falsa e impossível porque ne­

2. I .eszck KOLAKOWSKI,‘The Priest and the Jester”, in Maria KuáCEWIEZ (ed.),


The Modcrti Polich Miiid, 1962, 326.

136
I lá algum futuro para o protestantismo na América Latina? (1970)

nhuma comunidade humana pode existir sem estrutura. A dialética


comumdaãe-estrutura, em si mesma, apresenta possibilidades fecun­
das de reforma e rejuvenescimento. Quando, por exemplo, a vitalidade
de uma comunidade encontra os meios para tomar nas suas mãos as
estruturas petrificadas que a dominavam, estas últimas experimentam
uma radical transfiguração. Ou para ser mais exato: morte e ressurrei­
ção. Morrem como o prolongamento de um mundo passado e ressur­
gem agora como corpo de uma comunidade que vive. Tenho, pes­
soalmente, a impressão de que é isto que está ocorrendo em vários se­
tores da Igreja católica. Notemos, portanto, que a dialética entre comu­
nidade e estrutura, antes de ser um sintoma de senilidade, é, ao contrá­
rio, uma evidência de um processo vital de rejuvenescimento3. Se, ao
contrário, as estruturas triunfam sobre a comunidade, desaparece a dia­
lética que conduz à ressurreição e impõe-se uma relação em que a co­
munidade é reprimida pelo poder estrutural. Aqui, em vez de ser ex­
pressão da liberdade da comunidade, as estruturas são formas que a
mumificam. Quando isso acontece as alternativas que se abrem à co­
munidade são:
a) Ou viver sob repressão, dentro das estruturas eclesiásticas dominantes.
b) Ou recusar-se a permanecer sob repressão, optando então pela
liberdade, em dispersão.
Um grande número de evidências sugere ser esta a situação do
protestantismo latino-americano.

2. Comunidade: princípio do protestantismo?


Histórica e teologicamente há bases bastante sólidas para se afirmar
que o protestantismo nasceu como uma redescoberta da comunidade.
E mais do que isto: que a comunidade (koinonia) é a própria essência

3. No ensaio “Belief is Being”, que aparece em The Future of Catholic Christia-


nity (1966,40), Yvonne Lubock elucida a significação desta crise católica ao afir
mar que “qualquer que seja o seu sentido, uma coisa é certa: o velho catolicismo
ortodoxo como nós o conhecemos morreu. E impossível prever sob que forma ele
ressuscitará; mas cada cristão, nesse período de transposição, viverá pela inlcnsi
dade de sua esperança”.
Dogmatismo e tolerância

do protestantismo. Seria possível então afirmar que, se há um princi­


pio protestante, ele é a comunidade. Guardamos o sentido duplo da
palavra princípio: (1) como início histórico e (2) como idéia ou reali­
dade que se constitui na essência de algo. Se essa tese for verdadeira,
teremos de concluir que o protestantismo latino-americano, na medi­
da em que ele coloca a comunidade em crise, se constitui na negação
do principio histórico e do principio teológico do protestantismo4.
Já foi lugar-comum, aceito por católicos e protestantes, interpretar
a Reforma como o advento do individualismo. Harnack afirmava, não
sem um certo orgulho, que “aquilo que se denomina individualismo
protestante e a que, com justiça, se atribui um alto valor tem a sua raiz
no fato de que o cristão, por intermédio do seu Deus, é um ser inde­
pendente, que não precisa de coisa alguma, que não está sob o domínio
de lei alguma nem depende de nenhum homem”5. Modernamente, en­
tretanto, há outros estudos que apontam justamente na direção oposta
e que insistem que o que existe de único na Reforma é o novo conceito
de comunidade que então surgiu. A unicidade do novo conceito de
comunidade se torna evidente quando vemos que, para Lutero:
a) a Igreja é essencialmente “comunidade”,
b) o cristão só existe em comunidade e
c) que o homem experimenta Deus como comunidade, ou seja, que
Deus, historicamente, existe como comunidade.
Voltaremos a esses pontos mais tarde.
Essa nova compreensão da comunidade não foi simplesmente
uma sociologia diferente. Antes de mais nada ela era nova, pois im­

4. Devo a Tillich essa observação acerca da contradição entre o “princípio


protestante” e o desenvolvimento histórico das Igrejas protestantes. Tillich, entre­
tanto, vê o princípio mais em termos filosóficos, enquanto nós o consideramos
mais de uma perspectiva social. Os dois não se excluem. Na realidade, a comuni­
dade é a realidade, que transforma as idéias em práxis. Se assim não fosse, as
idéias nunca se transformariam em história.
5. A. von Harnack, History of Dogma, 1961, v. VII, 212. Troeltsch o segue: cf.
The Social Teachings of the Christian Churches, 1960, v. II, 471. Há bons motivos
para tal interpretação. O protestantismo influenciado por Kant e depois o exis­
tencial ¡sino tcm um inegável teor individualista.

138
Há algum futuro para o protestantismo na América Latina? (1970)

plicava, realmente, a negação de todas as pressuposições que domi­


navam a sociedade medieval. Ou seja, por meio dela se anunciava a
descoberta de um mundo novo, numa nova experiência da vida, do
mundo, do tempo. E apenas para orientar as nossas reflexões eu
sugeriria que, enquanto
a) a sociologia medieval toma a ordem como a sua estrutura básica
de referência,
b) a sociologia da Reforma representa a descoberta da história como
maneira de experimentar o mundo.
É necessário esclarecer o que essas duas afirmações taquigráficas
significam. Antes de mais nada temos dc ter uma idéia clara da signifi­
cação da palavra ordem, que usamos para caracterizar o pensamento
medieval. Ela se refere àquela estrutura unificada do universo na qual
os anjos, o cosmos, a Igreja, as estruturas políticas, os homens se arti­
culavam como partes de uma síntese total, da qual Deus era tanto a
origem histórico-metafísica como o principio de integração e funciona­
mento. Por se originar em Deus e funcionar em torno de Deus, essas
estruturas eram sagradas e por isso mesmo permanentes. Tinham não
só solidez ontológica como validez ética. A conclusão lógica que se tira
dessa ordem global é que a comunidade dos homens só pode existir
dentro (numa relação de subordinação ao todo) e como parte da sínte­
se. Isso significa que, por causa do caráter sagrado e permanente da
ordem, e como consequência da subordinação hierárquica e de depen­
dência funcional dos homens, a ordem se constituía na lei objetiva das
comunidades humanas. Era por meio da lei que as comunidades hu­
manas se integravam no todo. A conseqüência dessa filosofia é uma
antropologia fechada. Se o homem é uma função da ordem total, e se
esta ordem, na sua perfeição, não se abre, o homem, logicamente, se
fecha também; é um ser acabado, que encontra os seus limites nas es­
truturas objetivas que o passado lhe legou.
A Reforma rompeu essa visão do mundo porque, em vez de expe­
rimentar o mundo como ordem, ela passou a encará-lo como hisló
ria. É preciso dizer uma palavra para explicar o sentido de história lal
como o estamos usando. Geralmente — e esse é o sentido mais
Dogmatismo e tolerância

ti tu ni - - história se refere aos fatos passados da vida humana. Histo­


ria seria aquilo de que podemos nos lembrar, uma função da memoria.
Aqui, entretanto, usaremos a mesma palavra com um sentido dife­
rente. História será aquela maneira de entender a experiência huma­
na não em função de uma ordem divina, estática, terminada, mas
como inacabada, aberta para o futuro. A historicidade do homem se
ligaria, assim, não só à sua capacidade de sc lembrar do passado, mas
também à sua possibilidade de projetar-se para o futuro, de cortar o
cordão umbilical que o mantinha seguro no ventre de uma ordem
terminada. O homem descobre-se a si mesmo como diferente daqui­
lo que as gerações anteriores lhe haviam dito acerca dele mesmo. Não
fechado, terminado, mas aberto, incompleto, numa busca permanente.
Spero, ergo sum.
O processo pelo qual surge uma nova visão do mundo não é mui­
to simples. Uma interpretação positivista da história tendería a pen­
sar que o progresso do pensamento humano é um movimento na
direção da objetividade científica. Em certo sentido isto é verdade:
quando as ciências físicas estão em jogo. As coisas se complicam um
pouco quando o homem passa a se envolver existencialmente no ob­
jeto que ele procura conhecer. Este é o caso da história. K. Mannheim
nos mostra que a compreensão do tempo de uma certa comunidade
está intimamente associada aos seus desejos. Diz-nos ele: “Esse dese­
jo da (comunidade) é o principio organizador que molda até a ma­
neira pela qual experimentamos o tempo”. Kant fez uma grande contri­
buição à teoria do conhecimento ao mostrar que a mente não é uma
simples máquina de retratos, passiva, a repetir o mundo. Ela é ativa,
contribuindo dinamicamente para que percebamos o mundo como
um todo organizado e que faz sentido. Para Kant o tempo não era algo
objetivo, ali fora, independente da mente. Ao contrário, ele era parte
dos recursos com que a razão é dotada para poder organizar e conhe­
cer o mundo. Mannheim nos abre novas perspectivas, neste sentido,
ao indicar que o próprio tempo não é uma categoria mental, apriori,
como Kant pensava. Ao contrário: ele é filho dos nossos desejos, por­
que são estes que irão determinar a maneira pela qual o organizamos.
“Com base nesses propósitos e esperanças”, continua Mannheim, “uma

140
I lá algum futuro para o protestantismo na América Latina? (1970)

determinada mentalidade não só ordena os acontecimentos vindou­


ros, mas também o passado”. Esse fato é de grande importância para
a compreensão da natureza dos grupos sociais. “A estrutura íntima
da mentalidade de um grupo”, continua o mesmo autor, “nunca pode
ser melhor comprendida do que quando procuramos entender suas
concepções de tempo à luz de suas esperanças, aspirações e propó­
sitos”6. Abre-se aqui um caminho muito promissor para a nossa ex­
ploração da natureza íntima das comunidades que se formaram na
Reforma.
Basta que olhemos superficialmente para as duas comunidades —
católica medieval e reformada — para verificar que uma diferença
fundamental as distinguía. A primeira constituía-se em torno da par­
ticipação mecânica no sacramento (que era idêntica à participação
na ordem global), enquanto a segunda reunia-sc cm torno da prega­
ção. Ora, a pregação é uma certa articulação da linguagem. Não é
uma linguagem simplesmente descritiva, que retrata os fatos tais como
eles são; não é uma linguagem exclamativa, emocional, que comuni­
ca os estados da subjetividade humana; nem é, ainda, a linguagem da
mágica, que admite ter poder para mudar o mundo (tal como acon­
tecia com as fórmulas sacramentais medievais, instrumento para a
transubstanciação). A pregação é uma linguagem que relaciona o pre­
sente do ouvinte com certo horizonte histórico passado. Ela deseja
entender a situação tanto do que fala como do que ouve, à luz da histó­
ria. É uma linguagem histórica, portanto. Em outras palavras, é uma
linguagem de interpretação. Notemos, pois, que a primeira diferença
qualitativa entre as comunidades da Reforma e as comunidades católi­
cas medievais é que as primeiras se constituíam naquilo que poderia­
mos chamar de situação-interpretação (situação hermenêutica), en­
quanto nas segundas esta dimensão de memória desaparecia para dar
lugar a uma relação unidimensional com o presente. Sem desejar, de
forma alguma, ofender os meus irmãos católicos, e como uma con­
tribuição crítica à interpretação do seu próprio passado, parecc-mc
que tal relação se assemelha muito àquela que Marcuse descreve como

6. K. Manni-IEIM, Ideologia e utopia, 1954, 195.


Dogmatismo e tolerância

típica da sociedade tecnocrática: a pura participação, sacramental ou


de consumo (note-se que a mercadoria funciona como o sacramento
do homem da sociedade de consumo), conduz a uma relação de unidi-
mensionalidade.
É preciso notar que a diferença crítica não se encontra, funda­
mentalmente, na mensagem que a pregação continha: como se a pre­
gação fosse apenas um meio de comunicação que transmite certo
produto. A diferença radical se encontra na relação nova que essa si-
tuação-interpretação implicava.
Num estudo que fez da natureza dos meios de comunicação, Mar­
shall McLuhan chegou a uma conclusão espantosa: que “o meio de co­
municação é a mensagem”7. Ao contrário da conclusão mais evidente de
que os meios de comunicação servem apenas como meios, isto é, como
instrumentos para transmitir algo, ele afirma que o inverso é a verdade:
que os meios são os fins. E isso porque eles colocam o homem numa
situação global ou numa estrutura radicalmente nova que determina a
sua interpretação total da experiência. Assim, a própria interpretação da
mensagem óbvia que um certo meio de comunicação nos traz já é condi­
cionada pela estrutura global em que este mesmo meio nos coloca. Ora,
a pregação é um novo meio de comunicação! É por isso que afirmamos
que a sua importância se encontrava não no conteúdo consciente que ela
podia comunicar, mas na estrutura-interpretação inconsciente que ela cria­
va em volta daqueles que a ouviam. A comunidade então passa a se
constituir (sem nos referir aqui aos elementos ideológicos-teológicos cons­
cientes) em função de uma situação-interpretação que condicionou a sua
maneira de experimentar o mundo.
Essas observações sobre a situação-interpretação como aquilo que
constitui as novas comunidades nos permitem caminhar para a arti­
culação consciente do seu pensamento. Passamos a examinar a sua
mensagem (linguagem, na sua significação consciente), depois de
constatar que esse nível de significação tem as suas raízes numa
eslrulura-inconsciente a que denominamos situação-interpretação.
Voltemos a Mannheim, uma vez mais, para esclarecer o nosso ponto.

7. M. McLüIIAN, Understanding Media: The Extensions of Man, 1965, 7.

142
Há algum futuro para o protestantismo na América Latina? (1970)

“A psicologia moderna mostra que o todo (Gestalt) é anterior às par­


tes e que nossa compreensão destas nos chega através do todo; o mes­
mo sucede com a compreensão histórica. Temos aqui, também, o sen­
tido de tempo histórico como totalidade significativa, que ordena os acon­
tecimentos "anteriormente’ às partes...”*.
Indicamos que a visão católica do universo entendia que o tempo
histórico só teria significação na medida em que o homem conse­
guisse enchê-lo com ações ou coisas que fossem uma repetição da
ordem global. A atividade ética resumia-se na repetição do passado,
tal como ele se incorporara nas estruturas do mundo. O passado, por
ser sagrado, deveria ser preservado para o futuro. Ou melhor: o futu­
ro deveria ser a perpetuação do passado.
O valor da experiência existencial de Lutero foi que cia revelou o
conteúdo emotivo desse passado que deveria ser preservado, (lomo
conseqüência do fato de o ponto de referência para a interpretação
da experiência humana ser, para o catolicismo, a lei (isto é, conformi­
dade com as estruturas), o passado era experimentado fundamental­
mente como dívida (por conter a transgressão da lei). O passado era
uma experiência traumática, o início de uma neurose que dominava
a civilização com um senso permanente de culpa. Conseqüentemente,
o conteúdo emotivo do futuro era medo, por conter ir resolvida a pro­
blemática do passado. O padrão de repetição obsessiva do passado,
implícito nas exigências da lei, implicava uma eternização de uma
neurose coletiva.
A situação-interpretação a que nos referimos significou um deslo­
camento do ponto de referência para a compreensão da situação hu­
mana. O ponto de referência se moveu dos limites da ordem dominante
e se localizou nos horizontes bíblicos. Mas estes horizontes ofereciam
uma radical reinterpretação do conteúdo do passado. Não mais dívida
ou lei, mas promessa. Aqui está a razão por que para a Reforma a polê­
mica entre lei e graça era uma luta de vida ou morte! Esta era a essência
da Palavra (e portanto o segredo da interpretação): promessa. Ora, o
que caracteriza a promessa é que ela não tem a sua realidade cm si

8. K. Mannheim, op. cit., 195.


Dogmatismo e tolerância

mesma, ela aponta para um futuro em que o prometido se transforma­


rá cm cumprimento. O intérprete é forçado a uma imediata deslocação
da sua atenção ao ouvir, do passado, uma promessa. Se o passado pro­
mete é porque ele não é a coisa prometida. Não é aquilo que deve ser
preservado. Não é lei. Desloca-se a atenção para o tempo de cumpri­
mento: para o presente e para o futuro. Esvazia-se o passado e com isso
a consciência se abre para o tempo do cumprimento.
Ora, o que é que esse horizonte passado prometia? Na linguagem
dos reformadores: ele oferecia o ‘perdão dos pecados”, ou seja, uma
reinterpretação do passado que eliminava o seu conteúdo emotivo
como culpa. Perdão dos pecados é libertação do passado. Mas isso só
é possível porque o horizonte que determina a interpretação, em vez
de ser lei ou ordem, é amor e graça: Jesus Cristo9. A libertação do
passado significa, por outro lado, a libertação do padrão de repetição
obsessiva do passado no presente e no futuro. Nota-se, então, que as
dimensões tempo, dantes fechadas por culpa e medo, se abrem agora
diante do homem. E o homem, por sua vez, se abre ao tempo. Isto é
parte daquilo a que nos referimos antes como a experiência do mun­
do como história.
A atividade interpretativa trazia consigo, portanto, uma reinter­
pretação, da parte do homem, de sua própria condição. Reinterpretar
o mundo é reinterprertar-se. O intérprete descobre a impossibilidade
de uma relação objetiva com o tempo em que ele se acha, porque ele
mesmo sofre uma transformação estrutural à medida que a sua pers­
pectiva do mundo e do tempo se altera. Ao compreender o tempo
como livre para o homem o homem se descobre como livre para o

9. Indicamos atrás que a situação-interpretação é essencialmente histórica. Ela


nem toma em consideração seres metafísicos nem usa a história como ponto de
partida para a construção de uma metafísica. É nesse contexto que podemos enten­
der a oposição de Lutero aos teólogos escolásticos que pretendiam ter o segredo
para um mundo acima do nosso, e a sua obstinação em manter todo o universo do
discurso teológico dentro de limites históricos. Já em 1518 ele assim formulou as
teses 19 e 20 para a disputa de Heidelberg: “Aquele que contempla a parte invisível
de 1 >cus, por meio da percepção das coisas que foram feitas (cf. Rm 1,20), não pode
propriamente ser chamado teólogo. Mas antes aquele que percebe a parte visível de
Deus, as ‘costas de Deus’ (Ex 33,23), ao contemplar os sofrimentos e a cruz”.

144
Há algum futuro para o protestantismo na América Latina? (1970)

tempo. A teologia da história dá à luz uma antropologia da liberdade:


aqui se localiza a permanente preocupação de Lutero com a liberda­
de como a determinação fundamental do homem cristão1011 .
Toda essa atividade interpretativa existe em função de uma lingua­
gem. Repetimos o que já dissemos: a linguagem não é um simples meio
que comunica certa mensagem. A própria estrutura da linguagem é a
mensagem, porque ela articula os elementos inconscientes que subjazem
a essa nova experiência. Nela, realmente, estrutura inconsciente e ex­
plicitação consciente vão paralelamente. Muito embora, como frequen­
temente acontece com o neurótico, a formulação consciente seja
uma tentativa de reprimir a estrutura inconsciente. Mas o advento
de uma nova linguagem é o advento de uma nova realidade social. A
linguagem é um fato social. Ela existe como “criação”, como expressão
do esforço dos homens para compreender a sua experiência como se­
res humanos. Por isso a linguagem une e separa. “A linguagem cria
simultaneamente compreensão e incompreensão, ela liga e ela separa”,
comenta Ebeling". Porque a linguagem é o homem.
Ao ser articulada ela revela ou que os interlocutores participam de
uma mesma interpretação da sua vida e do seu mundo, descobrindo-se
assim como companheiros numa aventura comum, ou a sua irrecon-
ciliação e a sua oposição, o caráter contraditório das interpretações da
sua experiência. O que, naturalmente, implica o conflito entre as duas
comunidades a que eles, respectivamente, pertencem.
A nova interpretação e a sua linguagem nos colocam, assim, no meio
de uma nova comunidade. Muito mais que um conglomerado de pes­
soas: há uma dimensão de interioridade, de comunhão, derivada da
linguagem comum que se fala e da experiência comum em que se loca­
lizam. Os indivíduos, como mónadas, se quebram, para dar lugar às
pessoas. Articula-se uma antropologia do homem como ser aberto.
Abertura que é derivada desse constante jogo de relações humanas.
Relações que não permanecem na superfície, mas determinam mu­
danças fundamentais nos homens. A comunidade, nas palavras de

10. Cf. “The Freedom of a Christian”, in Three Treatises, I960, 262.


11. G. EBELING, The Na ture of Faith, 1961, 187.

145
Dogmatismo e tolerância

Lchmann, c um local de “transubstanciação” humana: porque, “por


.imor, somos transformados uns nos outros” (Lutero)12.
Essa nova realidade comunitária é a maneira pela qual Jesus Cristo
se dá aos homens. Nas palavras de Lutero, comunidade é sacramento.
Viver em comunidade é experimentar transcendência. Lutero con­
cordaria com Buber quando este se refere à realidade ontológica da
esfera da relação que liga o eu a um tu como o “local” da presença de
Deus, ou como a forma pela qual os homens experimentam Deus
(Das Zwischenmenschliche) . Aqui encontramos “Cristo existindo como
comunidade” (Bonhoeffer).
Essa “interpretação” da significação da comunidade tem uma im­
portante conseqüência para a articulação da relação entre comuni­
dade e estrutura. Se na Igreja medieval as estruturas eram a lei da
comunidade, agora elas perdem a sua densidade ontológica e a sua
validez ética. Passam a ser entendidas antes como funções da comuni­
dade, como instrumentos da sua liberdade. Passam a ter o caráter de
evento: subordinadas, funcionais, provisórias, abertas para o futuro.
É muito instrutivo o fato de Lutero haver se recusado a incluir as
estruturas da Igreja como parte da sua essência, como fez Calvino.
Isso corrobora as observações que fizemos atrás. Isso significa que as
estruturas têm de estar permanentemente submetidas à dialética de
morte e ressurreição que a comunidade lhes impõe, não lhes sendo
permitido nunca cristalizar-se.

3. Onde está a comunidade?


Para o catolicismo medieval, o problema da comunidade era um
problema resolvido. É bem verdade que esta ou aquela comunidade
poderia ter necessidade de certos reajustes interiores. Mas do ponto
de vista da relação entre comunidade e estruturas a questão Já estava
fechada havia muito tempo. “Onde está o bispo, ali está a Igreja”, ou
seja, a Igreja se encontra onde se encontram as estruturas legadas

12. Vale a pena seguir o pensamento de Lutero no seu Tratado acerca do aben­
çoado sacramento.

14ó
lio algum futuro pora o protestantismo na América Latina? (1970)

pelo passado. Ora, tais estruturas não ofereciam problema algum. Pelo
contrário: eram a grande certeza. Ali estavam elas, visíveis de todos os
lugares, presentes em todas as esferas da vida. Como corpo do Espírito
Santo, elas eram, naturalmente, o limite e a forma da comunidade.
Ora, Lutero descobriu que a santificação das estruturas conduzia
a uma ética de repetição obsessiva do passado que tinha como resul­
tado a perpetuação da culpa e do medo, como conteúdos permanen­
tes da experiência humana. A liberdade era assim destruída tanto
objetiva como subjetivamente: o tempo se fechava para o homem e o
homem se fechava para o tempo. Por outro lado, ele viu com grande
clareza que o Espírito Santo é o Espírito da liberdade. Duas conclu­
sões de inestimável valor crítico. Primeiro, porque elas permitiam que
se concluísse que uma estrutura que perpetua o problema do cativei­
ro não é expressão do Espírito de Cristo, mas antes do antiCristo. Em
segundo lugar, se “onde está o Espírito, ali está a liberdade”, pode-se
concluir que a Igreja se encontra onde se forma uma comunidade deter­
minada pela liberdade. Consequentemente, não podemos começar a
procurar a Igreja seguindo os critérios ditados pelas estruturas herda­
das. Temos de partir, ao contrário, das marcas éticas que o Espírito es­
tampa sobre a comunidade que a sua liberdade cria.
Duas teologías da história estão em conflito. A teologia católica,
que entendia que Deus constrói a cidade eterna por meio da Igreja, e
a teologia protestante, que afirmava que Deus constrói a sua comuni­
dade por meio da história. Na primeira o Espírito é imánente às es­
truturas, que a um tempo o monopolizam e se absolutizam. Na se­
gunda, o Espírito é livre, e aos homens compete permanecer numa
atitude de busca permanente, de abertura em relação ao novo, na
procura da comunidade que o Espírito, através da sua liberdade, cria.
Aqui está o que separa Erasmo de Lutero. Enquanto o primeiro já
achou a Igreja e pretende simplesmente reformá-la, o segundo deixa
as estruturas na busca da comunidade da liberdade.
***
Teologicamente essas conclusões signifitam que a comunidade
(koinonia) não pode ser compreendida sob uma perspectiva de con­
tinuidade histórica. A razão é clara. Indicamos atrás que a essência da

147
Dogmatismo e tolerancia

comunidade é uma função da situação-interpretação em que ela se


encontra. A continuidade temporal não garante a continuidade desta
essência. A sucessão temporal pode garantir a continuidade de ele­
mentos naturais, e é, assim, um elemento de suma importância para
a interpretação da esfera da natureza. Mas a esfera da interpretação é
histórica, e não cultural. Ela depende fundamentalmente de urna
opção de caráter existencial, como indica Mannheim.
O que acontece freqüentemente com a sucessão temporal é que
ela esconde inversões radicais nas essências de comunidade. O Anti­
go Testamento se refere a esse processo ao indicar que a comunidade
que outrora fora noiva tornou-se prostituta; a boa videira se degene­
ra, produzindo uvas bravas. E, como conseqiiência, nas palavras de
Oséias, a comunidade que uma vez fora povo de Deus não mais pode
pretender sê-lo: “Não sois mais o meu povo”.
Esse processo de queda e degeneração pode ser compreendido do
ponto de vista da dialética entre comunidade e estrutura.
a. Num primeiro momento a comunidade cria estruturas que a ex­
pressem e que funcionem como instrumento da sua liberdade.
b. Mas as estruturas, uma vez criadas, como todos os produtos do
trabalho humano, adquirem certa independência. Deixam de ser
instrumentos para ser limites. Funcionam agora como “a conti­
nuação factual de uma realidade que não mais existe” (Kolakowski),
ou seja, transformam-se em ídolos. O movimento da liberdade che­
ga ao fim.
Esse processo pode ser descrito como metamorfose regressiva: a
borboleta se transforma em lagarta. As estruturas abertas para o fu­
turo, como ferramentas de um sujeito livre, expressões de uma ati­
tude de fé, transformam-se em estruturas voltadas para o passado,
cárceres de uma consciência cativa que teme a liberdade, prisioneira
das pequenas certezas já alcançadas. Consciência que, nas palavras de
Bultmann, “vive para impedir o advento do futuro”.
Essas reflexões nos conduzem a uma conclusão de que, tanto do
ponto de vista metodológico como do de conteúdo, é absolutamente
fundamental para se libertar a compreensão da Igreja da camisa-de-

148
I lá algum futuro para o protestantismo na Américo Latina? (1 970)

força estrutural, entendendo-a, então, segundo novas linhas: a co­


munidade (koinonia) não pode ser compreendida se tomamos como
nosso ponto de partida a continuidade temporal daquela instituição
(ou instituições) historicamente chamada de Igreja. E isso porque a
essência da comunidade não pode ser compreendida se analisada da
perspectiva do tempo natural. O nome igreja designa estruturas que
se perpetuam mediante um processo de continuidade temporal, en­
quanto a essência da comunidade é um evento que depende de uma
opção existencial e de uma atividade interpretativa. A origem das “Igre­
jas” nada nos garante sobre o seu hoje; o seu amor ontem nada nos
garante sobre o seu amor agora.
Uma segunda conclusão é que só podemos conhecer a essência de
uma comunidade presente se a descrevemos. Sua essência se revela
fenomenologicamente.
A descrição fenomenológica das comunidades eclcsiais nos per­
mite classificá-las em dois tipos fundamentais:
1. Comunidades de essência messiânico-profética, orientadas para
o futuro.
2. Comunidades de essência sacerdotal, voltadas para o passado.
Tipologia inspirada no permanente conflito entre sacerdotes e
profetas que encontramos no Antigo Testamento. Semelhante àquela
que Bergson usa no seu livro As duas fontes de moralidade e religião,
ao se referir às religiões dinâmicas e às estáticas. Paralela, ainda, aos
dois tipos de mentalidade que Mannheim descreve: mentalidade utó­
pica e mentalidade ideológica.
Vejam quão ambíguo é o fenômeno “Igreja”. A que nos referimos
quando pronunciamos esse nome? Às comunidades voltadas para o
passado? Como cobrir duas essências irreconciliáveis com um mes­
mo nome? Mais ingênuo ainda é pensar que será possível reconciliar
as duas comunidades, que se opõem, numa síntese ecumênica, Es-
sências contraditórias não se reconciliam. Porque, nas palavras dc
Agostinho, elas são formas comunitárias de “diferentes amores”, (lomo
reconciliar o amor ao futuro com a preservação do passado?

M9
Dogmatismo e tolerância

/|. I rn busca da comunidade, ou o futuro


do protestantismo na América Latina
Por isso mesmo parece-me que a tarefa mais importante que te­
mos diante de nós no momento (falo como protestante) é levantar
novamente a pergunta: Onde está a Igreja? Pergunta que implica um
juízo sobre as estruturas que criaram a crise da comunidade. Se per­
guntamos é porque ou a perdemos de vista, ou ainda não a achamos.
Mas, se perguntamos, é porque a queremos encontrar. Temos de des­
cobrir a comunidade cujas marcas éticas e cuja linguagem exibam
uma harmonia com a opção pelo futuro e com o horizonte histórico
do qual derivamos a interpretação da nossa situação humana.
Se a comunidade refere suas interpretações a Jesus de Nazaré,
determinando dessa forma a sua essência, temos de encontrar nela
aquela “ética de ínterim” que Schweitzer descreveu como típica de
Jesus Cristo, aquela atividade que busca tornar o futuro presente,
atividade de parteira que força o mundo a dar à luz um “novo céu e
uma nova terra”.
E a sua linguagem, por outro lado, tem de ser expressão daquela
experiência de abertura, de “ser inacabado”, que se gera concomitan­
temente com a experiência do mundo como história.
Quando falamos de linguagem referimo-nos a algo bastante deli­
cado para os protestantes da América Latina. E isso porque estamos
colhendo os frutos amargos que alguns “consolidadores” da Reforma
inadvertidamente semearam (a começar por Mellanchton). Pressio­
nados pela Igreja católica que reclamava para si as marcas da Igreja
de Cristo, por causa da continuidade temporal das suas estruturas,
esses reformadores tiveram a idéia (que julgaram brilhante) de subs­
tituir a continuidade estrutural pela doutrina correta como marca da
verdadeira Igreja. Assim, diziam eles aos católicos, o que importa não
é a continuidade, mas o fato de que nós somos aqueles que possuem
as idéias certas. O que fizeram, realmente, foi simplesmente substi­
tuir uma estrutura por outra. Ambas as formulações terminaram por
“engarrafar” o Espírito — embora em duas garrafas de cores diferen­
tes. A eclesiologia da liberdade metamorfoseou-se regressivamente

150
Hó algum futuro para o protestantismo na América Latina? (1970)

numa nova eclesiologia estrutural, similar à católica. Para o protes­


tantismo as conseqüências foram funestas. O processo de interpreta­
ção que determinava uma linguagem sempre jovem enriqueceu-se.
Escreveram-se “confissões” que afirmavam ser a interpretação corre­
ta da Bíblia. A atividade interpretativa, processo dialético permanen­
te, foi substituída por uma codificação da interpretação, sob a forma
de proposições verdadeiras. O crente não mais se encontra numa
situação-interpretação; ele recebe, como pílula já pronta, a interpre­
tação correta que lhe foi legada. O passado eternizou-se assim numa
linguagem morta que passou a ser a linguagem definitiva das comu­
nidades protestantes. E ao aprender uma língua morta os homens
morreram. Deixaram de ser vozes para ser ecos. Como a mulher de
Lot, tentaram viver uma vida fotoelétrica. E desde então nunca mais
puderam mover-se (Lehmann).
Não são poucos os protestantes que concluíram que para achar a
comunidade é necessário sair das estruturas eclesiásticas tradicionais.
Repete-se a experiência da Reforma. Somos, realmente, maus estu­
dantes de história...
Haverá um futuro para o protestantismo? Somente se compreen­
dermos que as estruturas que se chamam protestantes são, em gran­
de medida, as responsáveis pelo eclipse das comunidades protestan­
tes. Estas ficaram invisíveis, de sorte que temos de sair à sua busca.
Onde está a Igreja? Ou a encontramos como um remanescente,
oprimido, dentro das estruturas eclesiásticas, confiando ainda nas
possibilidades de Reforma, ou como povo espalhado, ovelhas disper­
sas, ansiando por novas estruturas comunitárias que sejam expres­
sões e instrumentos de amor e liberdade. Ovelhas oprimidas, ovelhas
perdidas (Ez 34,16).
O futuro do protestantismo nos apresenta, assim, duas possibili­
dades. Ou se perpetuam as estruturas historicamente batizadas como
protestantes, mas que são, na sua essência, uma ressurreição do cato
licismo medieval, ou os grupos reprimidos e dispersos se descobrem
para constituir uma comunidade que expresse as marcas éticas da
liberdade e do amor, frutos do Espírito de Deus.
10
As idéias teológicas e os seus caminhos
pelos sulcos institucionais do
*
protestantismo brasileiro

1. Perguntas preliminares
que temos em nossas mãos é desapontador. Recolhidos os re-
V7 sultados do pensamento que o Protestantismo produziu e se­
meou por mais de cem anos no Brasil, sentimos um forte odor de
degenerescência, decadência e senilidade precoce.
Sei que este é um julgamento de valor. Sei, mais, que a objetividade
que deve animar o trabalho do historiador deveria mantê-lo a salvo de
desapontamentos e entusiasmos. Afinal de contas, no reino da necessi­
dade não há lugar para pranto... Deixando de lado o choro, as lamenta­
ções e repulsas, cumpre entender com tranqüilidade. Pelo menos era este
o conselho que Spinoza oferecia. Como eu não sou historiador nem pre­
tendo sê-lo, dou-me ao luxo de desrespeitar as regras do jogo. Concordo
com a ironia corrosiva de Nietzsche, que afirmava que o historiador, de
tanto ir ao passado, acaba se tornando um caranguejo, pensando da frente
para trás. É evidente que a sua picada tem endereço certo: os historiado­
res positivistas, colecionadores de fatos, como se os eventos fossem selos
ou figurinhas de álbuns, como se o propósito da investigação histórica
fosse preencher os claros com informações fácticas! Acontece que uma
deformação pessoal, possivelmente originária da minha formação cristã,

* Agradeço os informes dos professores Antônio G. Mendonça, 1 Juncan A. Reily


e Gerd Uwe Kliewer, que contribuíram para a articulação das idéias deste capítulo.

153
Dogmatismo e tolerância

me compele a ler o passado do ponto de vista da necessidade da reden-


sao do futuro. A memoria se subordina à esperança. E como a esperança
lento sen lugar na imaginação, por sua vez filha do desejo, a minha leitu­
ra do passado é claramente determinada pelas minhas expectativas. Nes­
te caso específico, as minhas esperanças frustradas daquilo que este pas­
sado poderia ter trazido à existência.
É evidente que as minhas redes são seletivas. Não estão prepara­
das para colher o heroísmo individual nem os “casos” sem fim que
chegam a constituir uma tradição oral em que o edificante e o cômi­
co se misturam. Procuro idéias: idéias na medida em que elas ou ex­
primiram ou determinaram a maneira de ser protestante, neste mais
que século de história da sociedade brasileira.
Como expectativa mínima, esperaria que, pelo menos, a tradição
tivesse sido preservada e cultivada.
“A memória do passado pode produzir visões perigosas... A reme-
moração é uma forma de nos distanciar dos fatos dados, um modo
de ‘mediação’ que quebra, por curtos momentos, o poder onipre­
sente destes mesmos fatos.”1
No caso específico da Reforma, existe uma tradição cheia de vi­
sões brilhantes e equívocos grotescos, e, se deles tivéssemos consciên­
cia, poderiamos evitar a repetição do passado e mesmo compreender
alguns dos desenvolvimentos históricos, nossos contemporâneos, que
se geravam naquela época: de Lutero à psicanálise, do calvinismo, ao
capitalismo, de Münzer a Marx e Engels.
Mas as redes voltam quase vazias, e o que nelas se encontra são carica­
turas, fórmulas, estereótipos e slogans. O passado foi diluído e dele não
tiramos nem instrumentos de compreensão nem armas de batalha. Eu
me perguntaria, incrédulamente, acerca daqueles que já se deram ao tra­
balho de lutar com Lutero e Calvino, pelo menos... E me perguntaria se
os dedos das mãos não seriam suficientes para indicá-los...
Deixando de lado os ancestrais europeus do protestantismo, eu pro­
curaria os pensamentos e os gestos que as comunidades protestantes

1.1 lerbei t MàRCUSE, One dimensional Man, Boston, Beacon Press, 1964,98.

154
As idéias teológicas e os seus caminhos pelos sulcos institucionais do protestantismo brasileiro

geraram, não a partir da sua memoria, mas em decorrencia do falo de


habitarem e viverem num espaço cultural brasileiro. A memória pode
ser perdida. Mas apenas os mortos não possuem um presente. Vejam o
que aconteceu com os católicos desgarrados, que se perderam por este
Brasil afora, vivendo sem padre e sem bispo. A memória quase desapa­
receu mas, mesmo assim (ou talvez por causa disso), surgiu do amor
católico uma religiosidade popular que foi capaz de dar nomes a coisas
que a tradição teológica erudita vomitaria: o selvagem, o mágico, o fes­
tivo, o para além ou para aquém da moralidade, o exótico. Sim, exóti­
co, no sentido preciso do termo, ex-ótico, fora da ótica, estranho, ofen­
sivo e surpreendente, tanto assim que os esforços para eliminá-lo não
foram poucos e os esforços para comercializá-lo são muitos.
Nada disso encontramos entre os protestantes, que, por mais hu­
mildes que tenham sido, sempre se colocaram dentro dos limites rigo­
rosos do racional, do próprio, do recomendável. De um lado, o cultivo
dos valores familiares, abençoados por um patriarcalismo benigno,
protetor da fidelidade conjugal, da educação dos filhos, da ordem hie­
rárquica que liga a mãe ao pai, cabeça da família, e ambos aos filhos.
Do outro lado, os valores pequeno-burgueses, tão próprios dos ho­
mens quase pobres e que desejam subir na vida: o esforço individual, o
trabalho árduo, a disciplina pessoal, a economia sistemática das obras
do trabalho, a rejeição de toda e qualquer forma de esbanjamento ir­
responsável com a bebida, o fumo e o jogo, o amor à limpeza, a hones­
tidade — base de todo e qualquer contrato social, a obediência às auto­
ridades, garantia dos direitos de cada um. Está aqui um pensamento
que prescinde de grandes gestos e grandes temas e se realiza no nível da
fraternidade doméstica e da paz de consciência individual — o que,
sem dúvida, produz um sono tranquilo e reparador.
Eu esperaria, por outro lado, que o protestantismo tivesse feito al­
guma contribuição à literatura brasileira. Procuramos um grande ro­
mance, uma grande novela... em vão. Aqui é necessário lembrar que, se
no catolicismo existe um privilégio dos olhos e da contemplação, no
protestantismo são os ouvidos que se hipertrofiam. Mas o que é
que deve ser ouvido? A Palavra de Deus, pregada na sua pureza.
Palavra que é regra de fé e prática, que se impõe como um imperativo.

155
Dogmatismo e tolerância

Ouvir seletivo, ouvir que sabe onde está a autoridade e de onde vem a
verdade. Esta é a razão para a austeridade arquitetônica dos templos
protestantes, reduzidos à condição de salas de aula, em que o pre-
gador-professor fala enquanto os fiéis-alunos ouvem. Ora, acontece que
a literatura não pode sobreviver em meio a essa obsessão didática, por­
que a sua vocação é estética, contemplativa, e o seu valor é tanto maior
quanto maior for a sua capacidade para produzir estruturas paradig­
máticas por meio das quais as fraturas e ligações ocultas do cotidiano
são radiografadas. Os literatos protestantes não podem fugir ao feitiço
dos seus hábitos de pensamento. Suas novelas são sermões travestidos
e lições de escola dominical mascaradas. No fim, a graça de Deus triun­
fa sempre, os crentes são recompensados e a impiedade é castigada. O
último capítulo não precisa ser lido. A didática protestante já tem a
moral da estória pronta, antes que ela aconteça...
Produzimos bons gramáticos, filólogos respeitados e mesmo boa
literatura educacional, como a série Braga2. Aqui os protestantes se
sentem em casa. A filologia os liga à exegese e à exigência de uma
leitura rigorosa dos textos sagrados. A gramática, por sua vez, é cen­
tral para aqueles que desejam pregar num português impecável. E a
preocupação didática sempre foi cara à alma protestante: corações
puros, idéias claras, pensamento lógico. A ação segue-se ao pensa­
mento: esta é a regra para todos aqueles que foram atingidos pela
graça salvífica.
Por fim, penso que não só os protestantes, mas também outros que
analisam as idéias que o passado nos legou como herança têm o direito
de saber das relações de tudo isso com a política. Que idéias foram
levantadas como bandeiras? Quais, entre elas, se constituíram em hori­
zontes de luta ou inspiração para sacrifícios? Sem dúvida, sacrifícios
houve muitos. Sacrifícios solitários de indivíduos heróicos que se
embrenharam por não se sabe que veredas, para pregar, curar e ensi­
nar. Mas não é por esse tipo de sacrifício que me pergunto. Pergunto-me
pelos sacrifícios políticos e pelas bandeiras para mudar o destino
de povos inteiros. Tal como aconteceu com Genebra, nas mãos férreas de

2. Livros dc “Leitura” escritos por Erasmo Carvalho Braga, educador.

156
As idéias teológicas e os seus caminhos pelos sulcos institucionais do protestantismo brasileiro

Calvino, ou com os Estados Unidos, que encontraram no protestantis­


mo a bênção para a sua epopéia.
E aqui?
Protestantismo, religião de estrangeiros e brasileiros marginaliza
dos, acuados pela intolerância católica, em busca de um lugar ao sol c
de ar para respirar, é compreensível que ele tenha pesado e medido
suas palavras, aplaudindo com entusiasmo a causa republicana, a se
paração da Igreja e do Estado, bem como todas as iniciativas senté
lhantes de se diminuir o poder do catolicismo que o ameaçava, sem
entretanto voar mais alto. Este era o limite possível de sua conscien­
cia política. Avançava a reboque da onda do capitalismo liberal, que,
aos seus olhos, parecia nada mais que a versão secularizada da fé cris­
tã. E não poderia o protestantismo ter pensado de outra forma, pois
era do seio mesmo do capitalismo liberal que ele nos chegava, a ele
pertencendo, portanto, por origem, convicção e financiamento...
Não, não dissemos toda a verdade. Porque em nossas malhas che­
gam também as memórias de tentativas abortadas de se levantar ban­
deiras. O fato de terem sido abortadas não as torna menos protestan­
tes, e é mesmo possível que ainda sobrevivam, subterrânea e incons­
cientemente, em alguns túmulos de onde poderão ressuscitar. O falo
é que os protestantes ousaram falar de justiça social e foram capazes
de contemplar uma profundeza do capitalismo oculta ao liberalismo
ingênuo. Voltaremos a essa temática mais tarde.
Agora, tendo em mãos os frutos de uma colheita, podemos olhar
para o passado e nos perguntar como? epor quê?.

2. As origens e o primeiro século (1821-1950)


Foi no início do século XIX que chegaram ao Brasil os primeiros
grupos protestantes, imigrantes alemães que se lixaram em 1 i iburgo,
estado do Rio de Janeiro, por volta de 1823, 182zl. Aqui, sao alemaes,
enraizados em sua tradição de povo, sofrendo as agonias c t rislezas do
choque cultural decorrente da violência migratória, que trazem consi­
go o protestantismo como sacramento da pátria que ficou para trás, e

157
Dogmatismo e tolerância

sem dúvida como promessa de que a pátria continuaria aqui. É com­


preensível que os alemães não tenham manifestado nenhum interesse
por sua integração — e sua dissolução—na cultura brasileira. O protes­
tantismo era parte do seu segredo, seu sagrado, sua marca de identida­
de que, juntamente com a língua, delimitava um espaço germânico por
aqui. Não é de estranhar que tenham continuado a falar alemão, que
não tenham se misturado com os brasileiros, que não tenham feito
aventuras evangelísticas, que seus cultos se realizassem em alemão e
que seus pastores tenham tido sua formação teológica na Alemanha. A
princípio, vinham da Alemanha. Quando, por volta de 1930, os pri­
meiros jovens luteranos nascidos no Brasil se interessaram pela teolo­
gia, foram mandados para a Alemanha para tal fim. Temas teológicos
próprios? Não os há, porque o espaço e tempo teológico das comuni­
dades luteranas se encontravam do outro lado do Atlântico. Segundo o
testemunho de um líder da Igreja evangélica de confissão luterana no
Brasil, o tema que “parece ter sido a grande preocupação das comuni­
dades e pastores na maior parte deste século” foi “fé evangélica e ger­
manismo” (Evangelium und Deutschturn). A discussão se tornou mais
aguda durante o período nazista, havendo provocado uma série de con­
flitos e confrontações na Alemanha mesma, com a ativa participação
de Karl Barth e Martin Niemõller, restando o nome de Bonhoeffer como
símbolo dos mártires sem conta que morreram. Será somente depois
da guerra, considerado o enorme risco que corre uma Igreja de se
autodenominar pelo nome do seu país de origem, que a “Igreja Evan­
gélica Alemã” assume o fato de viver no Brasil.
Dos Estados Unidos vem um tipo diferente de protestantismo. Não
se trata agora de criar um espaço cultural para uma população de imi­
grantes, mas de invadir a cultura dos nativos para convertê-los a uma
nova fé. No caso do protestantismo de imigração, o proselitismo e a evan-
gelização são questões que não surgem como temas teológicos, pois o
que importava era preservar um espaço cultural. E a abertura deste espa­
ço para os brasileiros só podia implicar a sua própria dissolução.
Que temas teológicos marcaram essa invasão missionária?
Antes de mais nada é necessário reconhecer que catolismo e protes­
tantismo, nos níveis mais profundos, são habitantes de um mesmo

158
As idéias teológicas e os seus caminhos pelos sulcos institucionais do pf< iIh-.I« intr.ifu > I >i<imI»»ii<>

mundo. E é somente isso que torna possível a polémica entre eles.bem


como o tránsito fácil de conversos. A passagem do catolicismo pata <>
protestantismo não é a passagem entre dois mundos incoinensiii.iveis.
Concordo inteiramente com Troeltsch quando ele afirma que
“O ponto fundamental a ser notado é que, de urna perspectiva his
tórica e teológica, o Protestantismo foi, antes de mais nada, lima
simples modificação do Catolicismo, na qual a formulação católica
dos problemas foi mantida, enquanto uma resposta diferente lhes
era oferecida”.
“De início o Protestantismo se preocupou em responder à velha ques­
tão acerca da certeza da salvação, que tem como seus pressupostos a
existência de Deus, seu caráter ético e pessoal e, em geral, a cosmo­
logía bíblica medieval, e tem como seu único e urgente problema a
absolvição no Juízo Final, visto que todos os homens foram conde­
nados ao inferno em conseqüência do pecado original...”34 .
O que Troeltsch aponta como o centro do pensamento religioso
protestante foi aquilo que se encontrou como pensamento missioná­
rio e como pensamento das primeiras congregações que se formaram.
Emile Leonard pensa mesmo que, nestes primeiros momentos, a situa­
ção do protestantismo brasileiro reduplicava as condições existentes
na Europa por ocasião da Reforma do século XVL E se ele se interessou
pelo estudo do protestantismo menino, do Brasil, foi porque cria que
tal estudo o ajudaria a entender a “história espiritual européia”1.
E mesmo em 1950 Leonard via o protestantismo brasileiro de fron­
teira missionária, naquele momento, como contemporâneo da idade
da Reforma, enquanto em outros lugares ele se encontraria nos pri­
meiros tempos após a Reforma (p. 16). E o que o missionário ameri­
cano ou evangelista brasileiro vai fazer é simplesmente anunciai a
suficiência da Bíblia, como livro inspirado, a necessidade de ai repen-
dimento, de entrega a Cristo, da eficácia única e suficiente do seu
sacrifício vicário, o imperativo a abandono da idolatria c dos santos,
a exigência da responsabilidade pessoal c da vida de santificaçao.

3. TROELTSCH, Protestantism and Progress, 5-61.


4. Emile Leonard, O protestantismo brasileiro, 15.

159
Dogmatismo e tolerância

É necessário notar um aspecto muito singular da situação missio­


nária na América Latina. Em 1910, na primeira conferência missioná­
ria ecumênica de Edinburgo, a América Latina não foi incluída como
fronteira missionária, pois se dizia que não se poderia considerar pa­
gão um continente católico. De fato, em oposição à penetração missio­
nária na Ásia e na África, aqui os protestantes abriam caminho em
meio a outros que se diziam também cristãos, e para os protestantes só
havia uma forma de justificar sua obra: definir o catolicismo como
paganismo mascarado. E isso não era novidade, porque a Confissão de
Fé Presbiteriana de Westminster já havia definido o papa como o anti-
Cristo. O protestantismo, filho das missões norte-americanas no Brasil
(em oposição à Igreja Luterana Alemã, que não tinha preocupações
proselitistas), para se justificar diante mesmo da comunidade protes­
tante mundial, tinha de definir o catolicismo brasileiro como paganis­
mo, isto é, como campo missionário no qual o proselitismo deveria ser
feito a fim de ganhar para Cristo almas perdidas. A Igreja católica, por
sua vez, contribuiu ativamente para que essa definição se consolidasse,
por meio da atitude intolerante e persecutoria que manteve para com
os protestantes. Do meu ponto de vista, essa foi a mais importante cris­
talização teológica desse período, com prolongamentos claros até o pre­
sente, estando à raiz da cautelosa reserva dos mais abertos ou do deci­
dido antiecumenismo dos mais fechados. O que está em jogo, em últi­
ma análise, é a própria identidade protestante e o sentido da missão da
Igreja. Se os católicos são considerados irmãos, que nos resta como
clientela possível para nossos bens salvíficos?
Este fato nos permite perceber que seria um equívoco interpretar
a invasão missionária como um simples transplante do protestantis­
mo norte-americano. A necessidade de definição do catolicismo como
ameaça e como inimigo colocou as mansas teses da pregação de sal­
vação num quadro de azedume polêmico que marcou o pensamento
protestante até meados do século passado, permanecendo ainda nos
círculos mais conservadores. Penso que não faria injustiça ao que ocor­
reu até então se dissesse que as energias do pensamento protestante
se canalizaram quase exclusivamente nas linhas da polêmica, sem ne­
nhum avanço no campo da produção teológica.

160
As idéias teológicas e os seus caminhos pelos sulcos institucionais do protestantismo brasileiro

Na verdade, os líderes protestantes haveríam de perguntar, com


espanto, sobre o sentido do avanço em teologia. O que se pressupu­
nha, sem maiores problemas, é que a teologia protestante havia ter­
minado a tarefa de codificar as verdades bíblicas, e que o sistema de
doutrinas em harmonia com as Escrituras já estava acabado. Os pas­
tores poderiam ser treinados em teologia, poderíam estudar teologia,
mas a idéia de uma produção teológica original era inconcebível. O
campo que se abria para a criatividade protestante era a prédica, e foi
aqui que se destacaram, com uma retórica fácil, direta, entremeada
de ilustrações retiradas da experiência cotidiana, a exemplo da tradi­
ção do revival que, com D. L. Moody5, produziu um impacto perma­
nente e profundo sobre as igrejas norte-americanas. Compreende-se,
neste contexto, a afirmação que, em 1959, centenário de urna das de­
nominações protestantes, fazia um dos seus líderes:
“Nossos pastores não são como Karl Barth, que faz teologia atrás
da fumaça do seu cachimbo. Nossos pastores são homens de ação”.
Na verdade, o cenário religioso dos Estados Unidos, durante a
segunda metade do século XIX, foi dominado por essa obsessão
com a ação, por um sentido de urgência aliado a um enorme oti­
mismo quanto aos frutos desta mesma ação. Combinam-se, neste
cacho, três tendências complementares: o reavivamento (revival),
o movimento missionário e o evangelho social (social gospel). É
necessário ter em mente a significação desses movimentos a fim
de se compreender algumas peculiaridades do nosso desenvolvi­
mento histórico.
Os revival foram movimentos marcados pelo calor das expe­
riências emocionais, e giravam em torno do sentimento íntimo
do novo nascimento, do sentido de culpa, do arrependimento, e
buscavam uma devoção total à causa do Salvador. Foram esses
movimentos que marcaram a religião dos Estados Unidos no sé­
culo XIX, tornando os norteamericanos talvez o povo mais reli­
gioso do mundo, ativista e perfeccionista, impulsionado pelo fer-

5. Livro de Confissões, publicado pela Missão Presbiteriana do Brasil, nota 14.

161
Dogmatismo e tolerância

v<»i <1.1 reforma social, das visões missionárias, o que se acopla bem
iom o expansionismo imperialista6.
E interessante notar que o reavivamento espiritual, e a ativação da
experiência de conversão que o acompanha, provocou a criação de
um sem-número de organizações dedicadas à promoção da renova­
ção pessoal, da reforma social e do avanço missionário. Considero
muito sugestivo esse acoplamento de fervor pessoal, individual, ínti­
mo, de um lado, com preocupações sociais, do outro. E isso porque,
no momento presente, essas duas tendencias se encontram pratica­
mente rachadas em dois campos opostos. O fato foi que, naquele sé­
culo, a busca da perfeição estava ligada à compaixão pelos pobres e
necessitados, juntamente com expectativas milenaristas.
O rápido crescimento da urbanização, resultante da industrializa­
ção, havia provocado o surgimento de sérios problemas sociais que
atingiam preferencialmente as classes trabalhadoras. Isso se consti­
tuiu um desafio às Igrejas, e foi deste contexto — o mesmo do
revival — que surgiu o “evangelho social”, que pretendia fomentar a
“aplicação dos ensinos de Jesus e da mensagem total da salvação cris­
tã à sociedade, à vida econômica, às instituições sociais... bem como
aos indivíduos”7. As obras de Walter Rauschenbusch, historiador ba­
tista, se tornaram clássicas. Dois exemplos: Christianizing the Social
Order (New York, Mcmillan, 1914) e The Social Principies ofJesus (New
York, Association Press, 1916). O títulos de alguns dos seus capítulos
são significativos: “Uma religião para a redenção social”, “O que que­
remos dizer por cristianização da ordem social?”, “Nossa presente or­
dem econômica”, “O reino do intermediário”, “Sob a lei do lucro”,
“Os valores morais do capitalismo: Lucro x vida, comércio x beleza”,
“Cristianismo x capitalismo”, “Conservação da vida”, “Socialização
da propriedade” etc. O estilo é direto e claro. Livros para ser lidos por
todos. Manifestos de ação. Um deles é impresso pelos movimentos
cristãos de estudantes e “sob os auspícios do subcomitê de escolas

6. Ronald C. WHITE, The Social Gospel, 5.


7. Methcws SHAILER, “Social Gospel”, in A Dictionary of Religion and Ethics,
Nova Iorque, 1921,416.

1Ó2
As idéias teológicas e os seus caminhos pelos sulcos inslilucionais <lo -.timilui.- • I > .1. i

dominicais das denominações evangélicas” (conservadoias!) (Wi nt< n


under ie direction of Sub-committee on collcge courses, Siimlay
School Council ofEvangelicalDenominations and Cominillcc on Vo
luntary Study, Council of North American Student Movenienl1.). I i n
resumo: teologia da libertação do século XIX, ativamenle pal roí m.i
da e implementada pelos setores emocionais e piedosos da igreja.
Acontece que foi deste caldeirão fervente que surgiram as voca^ocs
missionárias, e o missionário se entendia como um agente de transíoi
mação do mundo, em face das exigências do evangelho. Ligar o movi
mento missionário, pura e simplesmente, à expansão imperialista e
transformá-lo num cínico apêndice de interesses econômicos. Aconte
ce que, por detrás de tudo isso, estava um vulcão em erupção, em que < >
fervor individual se misturava com a indignação moral, o amor pelos
sofredores e a esperança de uma transformação do mundo. E se, ñas
polémicas com o catolicismo brasileiro, os protestantes insistiam na
cumplicidade do catolicismo com o atraso económico, o descaso pela
educação popular e o desenvolvimento de instituições políticas de ca ­
ráter totalitário, era porque, por detrás, ferviam as esperanças de unía
regeneração da ordem social, impulsionada pelo protestantismo ético,
em oposição ao catolicismo mágico. Não é necessário dizer que, fallan
do ao protestantismo incipiente a massa humana que tomasse sobre
seus ombros a causa da regeneração social, foi por meio das escolas e
dos hospitais que se pretendeu atingir tal fim.
No decorrer da historia norte-americana, entretanto, as Igrejas vie
ram a experimentar profundas cisões que se refletiram no Brasil. ()s
seus setores mais conservadores identificaram perigosas tendencias
modernistas em operação, sendo que o Social gospel foi considerado
uma delas. Sua heresia consistia na tendência de horizontalizar a irr
ticalidade do Reino de Deus. Ainda hoje, no Brasil, as palavras modei
nista e evangelho social são usadas como estigmas e conservam gran
de eficácia política. Foi a partir desses conflitos, por exemplo, qnc
sociedades missionárias chegaram mesmo a se dividir, institucional
mente: os“verticalistas”ocupando um determinado campo, enqitan
to os “horizontalistas” se mantinham em outro. Note-se, entielanio.
que no Brasil o calor do debate se diluiu, a ponto de o envolvimento
Dogmatismo e tolerancia

social praticamente se reduzir a uma preocupação com a educação e


a criação de escolas. A Escola Superior de Agricultura de Lavras, por
exemplo, tinha o objetivo único de melhorar as condições da lavoura,
e o Instituto Gammon, a que ela pertencia originalmente, se instalou
sob o moto “Dedicado à Gloria de Deus e ao progresso humano”, o
que não deixa de ser urna significativa alteração humanista na teolo­
gia calvinista8.
Por cerca de cem anos o pensamento protestante não experimen­
tou crises significativas. Tomando-se a tarefa teológica por encerra­
da, restava a combinatoria de alguns temas básicos, em face de duas
necessidades fundamentais:
1) A polêmica anti-romanista. A palavra “romanista” era usada pre-
ferencialmente a católico, por razões obvias. Um século de polé­
micas fez com que o anticatolicismo viesse a se constituir na mais
importante marca de identificação dos protestantes. Como certa
vez observou Erasmo Braga, o protestantismo brasileiro é o re­
trato negativo do catolicismo, com todos os inconvenientes do
negativo. Essa informação é necessária para o historiador que dese­
ja interpretar a assepsia do protestantismo brasileiro em relação
aos símbolos, em muito sobrepujando os europeus e norte-ame­
ricanos. Isso nos ajuda também a entender a relação do protestan­
tismo com a cultura brasileira. Na medida em que ela está entrela­
çada com o calendário litúrgico católico, os protestantes conside­
raram necessário dela se afastar.
2) O crescimento e o aumento das congregações. Estamos aqui no ni­
vel da sociologia das instituições, que, de maneira curiosa, pare­
cem redes que colhem peixes que as classes sociais isolam em
aquários separados. E o pensamento desliza e corre pelos sulcos
que as instituições estabelecem. O nosso problema é compreen-

8. Duas observações que são significativas, do ponto de vista histórico. A


primeira delas tem a ver com o espírito ecumênico de D. L. Moody que se recusa­
va a levar a cabo suas campanhas se as igrejas locais não cooperassem umas com
as outras. A segunda tem a ver com as Associações Cristãs de Moços, que, em suas
origens, eram organizações para juventude pobre e desempregada dos bairros
operários.

164
As idéios teológicas e os seus caminhos pelos sulcos institucionais <_lo prolosh itili*,ni< ■ biaslluin

der estes sulcos por onde se movem os portadores das idéias, de


maneira especial os pastores.
O pastor tem um seriíssimo problema a resolver: a sua própria
sobrevivência. Ao contrário do padre, celibatário, cujas decisões ale
tam somente a ele, o pastor, via de regra, traz consigo mulher e alguns
filhos. Este é o primeiro fato a ser notado.
Em segundo lugar é necessário compreender que a instituição pre­
parou seus servidores de forma cuidadosa. Exigia deles “dedicação
exclusiva” ao rebanho e aos problemas do céu. Pastores que se prepa­
ravam para atividades seculares eram considerados homens de fé pe­
quena e integridade questionável. Mas o que significava essa “dedica­
ção exclusiva”? Significava que o pastor deveria ser um homem sem
alternativas. Homens sem alternativas tendem a ser fiéis aos seus su­
periores... Sem votos de lealdade monástica, o pastor estaria conde­
nado, para sempre, à Igreja, pois ela é a única instituição em que o seu
saber pode ser transformado em um salário.
Ocorre, entretanto, que na verdade a relação empregatícia da gran­
de maioria dos pastores não se dá com a instituição Igreja, mas com
sua congregação local. O pastor é eleito. Quando não é eleito, é um
conselho de presbíteros ou anciãos que determina se ele deve ou não
continuar. Mesmo nos casos em que exista uma organização episco­
pal, os bispos são sensíveis aos desejos da congregação.
De que forma se articula o sucesso do trabalho de um pastor?
a. Deve ser um bom pregador. Não nos esqueçamos de que, para o
protestante, o poder ex opere operato do sacramento está fora de
questão. Não é pela magia do sacramento que ele vai ao culto,
mas para ser edificado, instruído, consolado. Maus pregadores só
produzem bom sono e bancos vazios...
b. Deve estabelecer relações de confiança, amizade e ascendência es­
piritual para com seus paroquianos. As pessoas necessitam ser con­
soladas. As palavras do pastor devem ser um bálsamo espiritual.
Cedo ele aprenderá que profetas não se reelegem. Ocorre com os
profetas o mesmo que ocorre com empregados grevistas: além de
perder o emprego, têm dificuldades em arranjar outro...

165
Dogmatismo e tolerâncii

c. Aumento de contribuições. Um pastor que seja um bom prega­


dor e que se imponha como um conselheiro simpático inevitavel­
mente aumenta o número de membros de sua congregação, o que
implica também o aumento das contribuições financeiras. Con-
seqüentemente, um melhor salário.
d. Quando as grandes Igrejas, por qualquer razão, perdem os seus pas­
tores, irão buscar um substituto, evidentemente, entre aqueles mais
promissores e que tenham se destacado por sua capacidade de pre­
gar, convencer, fazer amigos, fazer o rebanho e o orçamento cresce­
rem, construir templos. Os critérios são claramente empresariais.
e. O pastor se encontra, realmente, à mercê dos membros de sua con­
gregação, e os limites máximos de suas idéias são os limites máxi­
mos dentro dos quais o pastor pode trabalhar, sem riscos. Trata-se,
evidentemente, de uma organização democrática das relações pas-
tor-congregação, que pouco lugar faz para o profetismo.
f. Existe, portanto, um enorme abismo entre a situação de seminá­
rio e a situação de pastor de congregação. As idéias que circulam
no seminário, e que permitem a avaliação tanto de professores
como de alunos, não têm absolutamente nada a ver com as idéias
que circulam nas paróquias. É isso que explica, em grande parte,
a recaída conservadora, pietista, carismática e até mesmo mila-
greira de indivíduos que foram pelo menos liberais em seus dias
de estudantes de teologia.
Há um darwinismo generalizado. Alguns, mais aptos, sobrevivem
e sobem. Outros, menos aptos, são condenados aos subterrâneos. E
isto significa: congregações pequenas, em cidades pequenas ou bairros
operários (quando não em favelas), sem prestígio, salários mingua­
dos. Não é de estranhar,, portanto, que a situação seja extremamente
competitiva; e que as idéias sejam os pontos vulneráveis. É necessário
que cada pastor se apresente como defensor intransigente da fé salva­
dora, e se um deles se atreve a anunciar coisas que se desviam dos
padrões normativos de repetição cíclica é imediatamente acusado de
“pregador de novidades” — o que o liga à heresia. Nesse contexto, a
continuidade institucional indica sempre a ausência de idéias confli-

166
As idéias teológicas e os seus caminhos pelos sulcos inslitucionais d<> |>i< iiiINih > I <m iiikñH >

tivas. E, ao contemplar os caminhos institucionais neste primeiro sé-


culo de vida, vemos que foram muito poucas as erupções intclcc
tuais. A organização institucional das Igrejas protestantes é tal que o
aparecimento de idéias novas é inibido, em face dos perigos que elas
constituem para os caminhos de um pastor em meio aos corredores
da igreja que o abriga (e obriga).
Por outro lado, quando tais idéias aparecem, elas não permane­
cem dentro do grande corpo eclesial, como ocorre na Igreja católica.
Elas são expulsas e os seus portadores formam novas denominações.
Este é um mecanismo extremamente eficaz para fazer com que cada
grupo permaneça a salvo de germes intelectuais invasores. Esta é a
razão por que, para as Igrejas protestantes, o modelo preferido de sua
própria organização política é a de uma confederação de Igrejas que
possam eventualmente se proteger, sem que haja mecanismo para
que uma se intrometa na vida da outra.
Note-se que, durante este primeiro século, nossas instituições teo­
lógicas conseguiram isolar todo o pensamento europeu em rigorosa
quarentena. Todos os textos teológicos eram importados dos Estados
Unidos. A Igreja luterana, evidentemente, é um caso à parte.
Na verdade, os protestantes brasileiros sempre tiveram uma sé­
ria suspeita dos europeus. Igrejas frias, sem zelo missionário e, so­
bretudo, mundanas, já que seus crentes fumam, bebem e até mes­
mo dançam. Com exceção de alguns indivíduos isolados, que liam
por conta própria, e pagaram caro por isso, nada se sabia, por exem­
plo, de Barth, Brunner ou Bultmann até a década de 1950. Não es­
tou me referindo ao conhecimento de leigos. Refiro-me aos semi­
nários, que preferiam uma teologia metafísica que iniciava seus tex­
tos com as provas da existência de Deus. Kant ainda não havia nas­
cido.. . Teologia, por sua vez, que nenhuma relação tinha com a vida
das congregações, pois, como já indicamos, as regras de circulação
institucional de idéias nos seminários eram distintas das regras
operativas das igrejas locais.
Gostaria de apontar dois desenvolvimentos institucionais signifi­
cativos, que são expressão de fermentações teológicas.

1 ó7
Dogmatismo e tolerância

a. A Conferência Missionária Ecumênica de Edinburgo, em 1910,


havia excluído as missões na América Latina, pois este continente
não era tido como pagão. “Os interessados nas missões america­
nas, que se achavam em Edinburgo, reuniram-se num hotel da
cidade e discutiram a necessidade de promover uma outra confe­
rência para fazer um estudo das missões cristãs neste hemisfério.
A realização desse plano veio a efetuar-se no Panamá.”9
Do Congresso do Panamá (1916) surgiu o Committee of Coopera­
ron for Latin América, organização sediada em Nova Iorque, com
uma filial no Rio de Janeiro (1922), Comissão Brasileira de Coopera­
ção, mais tarde Confederação Evangélica do Brasil, de cujo desenvol­
vimento iria surgir a mais ousada tentativa de ligar o protestantismo
à cultura e à política brasileiras, a Conferência do Nordeste. Isto, evi­
dentemente, depois da fermentação intelectual dos anos 1950.
b. De 1938 a 1942 uma grande controvérsia sobre as penas eternas
abalou a Igreja Presbiteriana Independente. Desse conflito sur­
giram dois grupos, que se separaram da Igreja mãe: um grupo
conservador, fundamentalista, que mais tarde se filiaria ao mo­
vimento de Cari Maclntire, Conselho Internacional de Igrejas
Cristãs, fundou a Igreja Presbiteriana Conservadora; e um ou­
tro que, por se sentir praticamente expulso da IPI, fundou a Igreja
Cristã de São Paulo. Este grupo, pequeno, liberal, publicou du­
rante anos o periódico O Cristianismo, um dos únicos (talvez o
único) defensores, de forma clara e permanente, dos ideais do
ecumenismo e de uma ordem econômica fraterna, entre os si­
milares eclesiásticos no Brasil.
Se eu tivesse de escolher uma palavra para definir a tendência do­
minante do pensamento protestante neste período, eu diria que ele é
marcado pelo paroquialismo. Separado das correntes que, num âmbito
mundial, animam as Igrejas, separado das questões políticas univer­
sais, separado da cultura e da vida nacional, o protestantismo se moveu
ao sabor das exigências da paróquia. E isso porque, em decorrência de

9. Júlio Andrade Ferreira, Profeta da unidade, Rio dc Janeiro, Tempo e Pre­


sença, 1975,105.

168
As idéias teológicas e os seus caminhos pelos sulcos institucionais do protestantismo brasileiro

sua organização institucional específica, a sobrevivencia da liderança


intelectual dependia (como depende) de um suporte paroquial.

3. Turbulência: os anos 1 950


A década de 1950 marca uma convulsão intelectual nos meios pro­
testantes. De um lado, o país inteiro passava por uma fermentação
político-social, em decorrência das rápidas transformações sociais
resultantes da industrialização e da urbanização. As bandeiras desen-
volvimentistas, por outro lado, contribuíram para que largos segmen­
tos da nossa população se tornassem conscientes da imensa miséria e
do enorme atraso do país e das alternativas e possibilidades que se
estendiam à nossa frente.
Havia já muito tempo as igrejas tinham organizado movimentos de
juventude, cujo objetivo específico era criar um espaço de atuação.
A princípio a coisa funcionava como uma associação piedosa, que
propiciava “diversão sadia” (esportes, necessários à sublimação sexual, e
festinhas, nas quais a dança era evidentemente proibida, que funciona­
vam graças às brincadeiras de salão, na maioria importadas dos Estados
Unidos) e deveria se constituir numa “estufa espiritual” que preservasse
os jovens da contaminação do mundo. Paulatinamente, entretanto, as
lideranças do movimento se tornaram maduras e uma radical mudança
de orientação se processou. Tanto assim que, em meados daquela déca­
da, uma das atividades mais importantes do movimento eram os “acam­
pamentos de trabalho” — jovens, de várias denominações, dedicavam
suas férias a viver num local pobre, freqüentemente favelas, para ali rea­
lizar uma tarefa manual: construção de uma rua, de um reservatório de
água, ou qualquer coisa semelhante. Tal movimento já era fruto da pene­
tração de ideais ecumênicos no Brasil, e reduplicava coisas que moços
europeus e norte-americanos faziam. Evidentemente, idéias novas pro­
vocavam ebulições em todas as partes: o ideal ecumênico (naquela época
basicamente uma questão protestante), uma nova preocupação litúrgica
(que iria fazer os protestantes mais sensíveis ao catolicismo), estudos bí­
blicos num novo estilo (distante dos ideais polêmicos e moralizantes da
prédica pastoral) e, sobretudo, a preocupação social.

169
Dogmatismo e lolerâncic

I >ois fatores devem ser sublinhados:


a. Urna radical rachadura teológica que separou a juventude das li­
deranças pastorais clássicas.
b. A formação de uma liderança leiga, livre dos controles paroquiais
a que se achavam submetidos os pastores. Cada jovem tinha mui­
to pouco a perder, pois não vivia da Igreja e, por isso mesmo,
gozava de imensa liberdade.
A rachadura teológica separou caudais e estabeleceu conflitos que
iriam, no futuro, terminar com o esmagamento do movimento. Mas
foi exatamente daí que surgiu uma onda de vocações para o pastorado
(a minha inclusive), e que pode ser claramente visualizada nos gráfi­
cos representativos do número de estudantes nos nossos seminários.
É necessário notar que este é um movimento tipicamente de clas­
se média. Os protestantismos populares, do tipo pentecostal, perma­
necem à margem. De classe média e “erudito”, na medida em que irá
se valer de um instrumental teológico novo, em grande medida im­
portado da Europa.
Os paralelos com as condições que determinaram o surgimento
do evangelho social são sugestivos: rápidas mudanças sociais, a for­
mação de movimentos voluntários (não-cericais), especialmente en­
tre jovens e estudantes, uma releitura da fé, em termos de sua eficácia
político-social, e o inevitável aparecimento de crises. Creio que não
estarei equivocado se identificar o movimento do evangelho social
como o precursor moderno da teologia da libertação, antecedendo-a
por quase setenta anos, e em identificar, no movimento jovem dos
anos 1950, as origens da fermentação que iria produzir o lado protes­
tante da teologia da libertação.
Os conflitos se estabeleciam no nível das igrejas locais, no nível dos
seminários e no nível da Confederação Evangélica do Brasil, onde um
grupo também intimamente ligado ao movimento da juventude arti­
culava, em âmbito interdenominacional, a discussão da problemática
da “Responsabilidade Social das Igrejas Cristãs” ecoando diretamente
as preocupações do Conselho Mundial de Igrejas. Desse grupo surgiría
a Conferência do Nordeste, realizada em Recife, em 1962.

170
As idéias teológicas e os seus caminhos pelos sulcos institucionais do protestantismo brasileiro

4. O expurgo: a partir dos últimos anos da década de 1950


A reação foi violenta e radical.
Os movimentos de jovens foram dissolvidos.
Os seminários sofreram intervenções.
Dezenas de alunos foram expulsos.
Professores foram demitidos.
Jornais foram fechados.
Os defensores das novas idéias foram impiedosamente denuncia­
dos como modernistas, hereges, adeptos do evangelho social; ecu-
mênico-romanistas. O setor de Responsabilidade Social da Igreja, da
Confederação Evangélica, foi dissolvido e seus diretores despedidos,
imediatamente após o movimento militar de 1964. Depois dessa data,
passou a pairar sobre os dissidentes a possibilidade de serem também
acusados de subversivos, pela própria Igreja, o que de fato ocorreu.
O clima de “caça às bruxas”, próprio de situações de crise e funcional
aos grupos no poder, é, entretanto, incapaz de manter o calor e a devoção
espiritual de uma comunidade. Quando isso ocorre, o calor espiritual só
pode encontrar combustível em alguma fonte alternativa de energia.
Foi nessa situação que surgiu um fenômeno novo: a pentecosta-
lização de Igrejas de classe média, movimento que se caracterizou
pela ênfase nos dons extraordinários do Espírito, como a glossolalia,
os dons de profecia e de cura, e que tomou o nome de “renovação
espiritual”. Agora não são os proletários que falam línguas estranhas,
mas as respeitáveis e abastadas famílias de classe média, que cm ne­
nhum momento pensam em se unir a uma congregação pentecostal.
Preferiram viver o extraordinário de suas experiências dentro do es­
paço respeitável das congregações tradicionais.
A renovação espiritual criou, obviamente, lideranças paralelas. As
lideranças institucionais e burocráticas não se sobrepuseram às lide­
ranças carismáticas emergentes. Surgiram conflitos, mas os pastores
cedo aprenderam que a melhor política era de coexistência pacífica.
O custo da guerra era muito alto. Agora o perigo não era mais a perda
de alguns jovens que pouca ou nenhuma diferença faziam nos orça-

171
Dogmatismo e tolerância

metilos das igrejas, mas a deserção catastrófica de famílias inteiras de


i lasse média, sem as quais congregações florescentes e prósperas se­
riam reduzidas à condição de caricaturas do que haviam sido antes.
() que ocorreu com a geração que convulsionou as Igrejas nos anos
1950? Esta é uma pesquisa que está por ser feita. Um grande número
simplesmente abandonou as Igrejas. Outros se ligaram a congrega­
ções mais liberais, desenvolvendo aí as atividades dos crentes comuns,
sem vôos mais ousados. Alguns se ajustaram, sob as pressões institu­
cionais a que já nos referimos. Outro grupo, por fim, tratou de criar
espaços alternativos, ecumênicos e de certa forma paraeclesiásticos,
como instrumentos de seus ideais.
Chegamos, assim, ao fim de um mapa — grandes contornos, gran­
des linhas, sem os detalhes da realidade mesma. Se me disserem que
tal procedimento é pouco científico, direi duas coisas. A primeira de­
las é que é exatamente assim que a ciência procede: em primeiro lu­
gar os mapas, os grandes contornos, a busca de articulações gerais;
em segundo lugar, e somente então, desenvolve-se a investigação dos
detalhes. A segunda coisa é que não vejo por que uma atitude tão
servil para com a ciência. Parece-me, até, que as palavras científico e
anticientífico ou pouco científico são substitutos para as antigas pa­
lavras teológicas ortodoxia e heresia. Antes de ser uma atividade epis­
temológica, a ciência é uma atividade institucional, política e econô­
mica, porque também as idéias científicas deslizam pelos sulcos das
instituições: dinheiro disponível; símbolos litúrgicos do saber, como
os graus acadêmicos; pessoas no poder, na comunidade científica;
público a quem se dirige a produção acadêmica etc.
E aqui nos defrontamos com a questão crucial dos objetivos do
ato de se escrever a história. Uma perspectiva positivista respondería
que a história é escrita simplesmente porque ela está lá no passado, e
nos c oferecida por meio de documentos e monumentos. O impulso
por detrás do trabalho do historiador, portanto, seria semelhante àque­
le do menino que coleciona selos e procura preencher os claros que o
seu álbum contém. Há um espaço em branco? Há um nome ainda
não investigado? Ali se mete o historiador. Eu tendo a concordar com
Eugenc Rosenstock-Huessy quando afirma que, ao contrário,

172
As idéias teológicas e os seus caminhos pelos sulcos institucionais do protestantismo brasileiro

“o historiador não entra num mundo de natureza animal, mas num


mundo que a humanidade conquistou anteriormente pela ação,
pela descoberta, pelo sacrificio, pela emoção. Os fatos do historia­
dor não são fatos no sentido comum desta palavra desgastada. Os
seus fatos são as experiências do homem”10.
O historiador, assim, é alguém que recupera memórias perdidas e as
distribui, como se fossem um sacramento, por aqueles que perderam a
memória. Na verdade, que melhor sacramento comunitário existe que
as memórias de um passado comum, marcadas pela experiência da dor,
do sacrifício e da esperança? Recolher para distribuir. Ele não é apenas
um arqueólogo de memórias. Ê um plantador de visões e de esperanças.
E é por isso que me aborrece a preocupação científica, quando ela
invade a história. Pode um historiador ser objetivo e desapaixonado?
Não faz ele as suas investigações como alguém que procura uma car­
ta de amor perdida, carta que tornaria o amante para sempre feliz,
como alguém que procura um testamento esquecido, testamento que
faria rico o pobre que o busca? Onde a neutralidade? Todo trabalho
de história deveria começar com uma confissão de amor — o que lhe
tiraria sua assepsia científica e lhe daria significação política.
Que dizer dos mapas esboçados?
Vejam quão difícil é saber e dizer o que é o protestantismo. O que a
história nos dá é um complexo de oposições e conflitos que não pode­
mos separar. Inquisidores e sacrificados se chamavam de protestan­
tes... Se ainda me chamo de protestante é porque faço uma triagem
seletiva de materiais, a partir de um amor — da mesma forma como o
amante ignora as crises de mau humor da bem-amada, dizendo que a
bem-amada é sempre doce e que a megera que nela habita é nada mais
que um resultado efêmero da química hormonal...
Há uma tradição rica a ser desenterrada e distribuída. Holl afirma
ser o precursor do homem criador, de Nietzsche, e passando por Kant,
Hegel, Kierkegaard, Feuerbach, Albert Schweitzer, o eterno Bach, para
desembocar num sem-número de companheiros de luta, com quem
oramos, lutamos e tivemos medo, vivos ainda, outros mortos, outros

10. Eugen ROSENSTOC-HUESSY, Out of Revolution, Nova Iorque, 1964, 693.

173
Dogmatismo e tolerância

assassinados, pessoas por quem a gente está disposto a tudo, por leal­
dade e gratidão. Quero dizer que me sinto muito bem em companhia
desta gente, que é com eles que faço meus diálogos. E é isso que talvez
signifique continuar a ser protestante.
Isso sem que nos esqueçamos de que o protestantismo enforcou e
queimou bruxas, escravizou negros e justificou teologicamente a es­
cravidão e, com mais freqüência e proximidade do que desejaríamos,
ofereceu suas palavras religiosas às mãos armadas com a espada.
Angustia-me a suspeita de que o pensamento protestante de que
dispomos seja capaz de dar conta de situações ordenadas, não saben­
do, entretanto, o que fazer em situações cosmogónicas ou apocalíp­
ticas, quando mundos precisam ser destruídos e criados. Parece que
isso foi algo que o passado nos sussurrou.
É consolador (e irritante) reconhecer que foi a Igreja católica que
se apropriou dos melhores frutos do pensamento protestante. E isso
nos sugere uma estranha possibilidade: talvez um estudo das idéias
protestantes tenha de deixar as instituições protestantes para entrar
no seio do catolicismo.
Quanto ao futuro, nada tenho a dizer. Na verdade, esta questão
nem deveria surgir num ensaio que pretende contar algo da história,
do passado. A menos que o passado seja a origem da profecia. Pode­
riamos concordar com Nietzsche?
“O veredito do passado é sempre um oráculo.
Somente como arquitetos do futuro e como conhecedor do presente
podereis entendê-lo”.
Talvez para se falar do futuro do protestantismo seja necessário se
lembrar do passado do catolicismo. O que nos conduz à visão do vale
de ossos secos, do profeta Ezequiel, que miraculosamente se tornou
numa multidão incontável. Quem diria que a Igreja católica passaria
pela metamorfose por que passou? Ninguém, muito menos os pro­
testantes. Ê possível que, num futuro talvez não muito distante, o
protestantismo se redescubra na sua própria herança, viva no catoli­
cismo, e que isso conduza ao milagre da cura da inimizade e se abra
para um futuro comum.

174

Você também pode gostar