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e o
Senhor do Tempo
Michael Ende
Contra capas
Há muito, muito tempo, quando os homens ainda falavam lı́nguas muito
diferentes das nossas, nos paı́ses quentes já existiam cidades grandes e
magnı́ icas. Nelas erguiam-se palá cios de reis e imperadores, havia
largas avenidas, ruelas e becos estreitos, templos suntuosos com
está tuas de ouro e má rmore, feiras nas quais se encontravam à venda
mercadorias de todos os reinos, praças bonitas e espaçosas onde o povo
se reunia para discutir as ú ltimas notı́cias, ouvir ou fazer discursos. E
nessas cidades havia, sobretudo, grandes teatros.
Pareciam os circos de hoje, só que eram feitos de blocos de pedra. As
ileiras de assentos para o pú blico eram construı́das uma acima da
outra, como degraus de uma escada, formando uma espé cie de imenso
funil Vistas de cima, algumas dessas construçõ es eram circulares,
outras eram mais ovais e outras, ainda, tinham a forma de um amplo
semicı́rculo. Eram chamadas de an iteatros.
Alguns eram grandes como está dios de futebol, outros eram
menores, só podendo conter algumas centenas de espectadores. Alguns
eram luxuosos, ornamentados com está tuas e colunatas, outros eram
simples e modernos.
Esses an iteatros nã o tinham teto, e tudo se passava ao ar livre. Por
isso, nos de luxo eram estendidas tapeçarias bordadas em ouro, de
modo a proteger o pú blico contra o calor do sol ou as repentinas
tempestades. Nos modestos, esteiras de palha ou vime tinham a mesma
serventia. Em suı́na, cada um correspondia à s possibilidades dos
habitantes do lugar. Mas todos queriam ter um teatro, pois eram
ouvintes e espectadores apaixonados.
Acompanhando os acontecimentos emocionantes ou cô micos
representados no palco, as pessoas tinham a impressã o de que,
misteriosamente, aquela vida ictı́cia era mais real do que sua pró pria
vida cotidiana e adoravam mergulhar nessa outra realidade.
Passaram-se milhares de anos. As grandes cidades daquele tempo
desmoronaram, os templos e palá cios ruı́ram, o vento e a chuva, o calor
e o frio desgastaram as pedras, e dos grandes an iteatros só restaram
ruı́nas. Agora, entre as pedras caı́das, as cigarras cantam sua cançã o
monó tona, que soa como o respirar da terra adormecida.
Algumas dessas grandes cidades antigas, entretanto, continuam
sendo grandes cidades nos dias de hoje. A vida nelas mudou, é claro! As
pessoas andam de ô nibus ou de automó vel, tê m telefone e luz elé trica.
Mas aqui e ali, entre as casas modernas, há algumas colunas, uma
arcada, um pedaço de muro ou mesmo um an iteatro daquele tempo
antigo.
E foi numa dessas cidades que aconteceu a histó ria de Momo.
Alé m do limite sul da grande cidade, lá onde as casas vã o icando
menores, mais pobres, e começam os campos, escondidas num bosque
de pinheiros estã o as ruı́nas de um pequeno an iteatro. Mesmo nos
tempos antigos, nã o era dos mais importantes; era, digamos, um teatro
para as pessoas mais pobres. Em nossa é poca, isto é , na é poca em que
começa a histó ria de Momo, as ruı́nas estavam quase inteiramente
esquecidas. Só alguns professores de arqueologia as conheciam, mas
nã o manifestavam maior interesse por elas, porque nada mais havia
por descobrir. També m nã o era uma atraçã o compará vel a outras da
cidade, de modo que só alguns raros turistas apareciam de vez em
quando, subiam pelas pedras meio recobertas pelo capim, agitavam-se,
tiravam algumas fotos e iam embora.
Entã o a paz voltava ao semicı́rculo de pedra e as cigarras retomavam
sua cançã o interminá vel, igualzinha à de antigamente.
Na verdade, só as pessoas das vizinhanças conheciam aquela curiosa
construçã o.
Lá deixavam pastar suas cabras, as crianças aproveitavam o espaço
plano do centro para jogar bola e, à s vezes, namorados se encontravam
à noite por ali.
Mas um dia começaram a dizer que havia algué m morando nas
ruı́nas. Era uma criança, provavelmente uma menina, poré m era difı́cil
saber com certeza, pois sua maneira de se vestir era meio esquisita. Seu
nome era Momo, ou coisa parecida.
De fato, a aparê ncia de Momo era meio estranha e poderia
escandalizar algué m que izesse muita questã o de ordem e limpeza. Ela
era baixinha e magrinha, de modo que era impossı́vel dizer ao certo se
tinha apenas oito anos ou já estava com doze. Seu cabelo preto, de
cachos desgrenhados, parecia nunca ter visto tesoura ou pente. Tinha
olhos grandes e muito bonitos, pretos como piche, e seus pé s eram
quase da mesma cor, pois ela andava descalça. As vezes, no inverno,
calçava sapatos, mas eram grandes demais e um pé diferente do outro.
Isso acontecia porque nada do que Momo tinha era comprado ou feito
especialmente para ela; eram coisas usadas que achava ou que algué m
lhe dava. Sua saia, comprida até o tornozelo, era uma mistura de
retalhos de vá rias cores, costurados uns aos outros. Por cima de tudo,
ela usava um paletó de homem, grande demais, com as mangas
enroladas. Momo nã o quis cortá -las porque pensou, com muita razã o,
que ainda estava crescendo, e talvez nã o voltasse a encontrar outro
paletó bonito e prá tico como aquele, com tantos bolsos. Por baixo da
arena invadida pelo capim, no centro do an iteatro em ruı́nas, restavam
corredores e galerias à s quais se podia chegar por um buraco aberto no
muro. Era ali que Momo se havia instalado.
Certa manhã , chegaram alguns homens e mulheres da vizinhança,
para tentar descobrir alguma coisa a respeito da menina. Momo icou
parada diante deles, olhando para todos com muito medo, receando
que quisessem expulsá -la, mas logo percebeu que eram simpá ticos.
També m eram pobres e conheciam a vida.
- Muito bem - disse um dos homens -, entã o você gosta deste lugar?
- Gosto - respondeu Momo.
- E gostaria de icar aqui?
- Gostaria, sim.
- Mas ningué m está esperando por você em algum outro lugar?
- Nã o.
- Quer dizer, você nã o precisa voltar para casa?
- Minha casa é aqui - respondeu ela, prontamente.
- Mas de onde é que você veio, menina?
Momo fez um gesto vago na direçã o do horizonte.
- Entã o, quem sã o seus pais? - insistiu o homem.
A menina olhou para cada um deles, com ar perplexo, e encolheu os
ombros.
Todos se entreolharam, suspirando.
- Nã o precisa ter medo - continuou o homem. - Nã o vamos mandá -la
embora. Queremos ajudá -la.
Momo meneou a cabeça, calada, sem muita convicçã o.
- Você disse que seu nome é Momo, nã o é ?
- E.
- E um nome bonito, mas que eu nunca tinha ouvido antes. Quem lhe
deu esse nome?
- Eu mesma.
- Você mesma?...
-E
- Quando você nasceu?
Momo pensou um pouco e, inalmente, disse:
- Tanto que eu me lembre, sempre existi.
- Você nã o tem um tio, uma tia, uma avó ou algum parente com quem
possa morar?
Momo tornou a olhar para o homem, re letindo em silê ncio.
Finalmente, respondeu baixinho:
- Minha casa é aqui.
- Certo - retrucou o homem -, mas você ainda é criança. Quantos anos
você tem?
Momo hesitou, mas acabou respondendo:
- Cem.
Todos riram, achando que ela estava brincando.
- Falando sé rio, que idade você tem?
Ainda hesitante, Momo respondeu:
- Cento e dois anos.
Demorou um pouco para as pessoas perceberem que ela repetia, ao
acaso, nú meros de que tinha ouvido falar, sem saber o que signi icavam,
pois ningué m lhe havia ensinado a contar.
- Escute - disse o homem, depois de consultar um outro -, você se
incomodaria se avisá ssemos à polı́cia que você está aqui? Poderiam
colocá -la num orfanato, onde você teria boa comida, aprenderia a ler,
escrever, fazer contas, e uma porçã o de outras coisas. Que tal a ideia?
Momo murmurou, apavorada:
- Nã o. Eu nã o quero. Já estive no orfanato. Havia outras crianças
també m. Tinha grade nas janelas. Todos os dias uma de nó s levava uma
surra, sem razã o nenhuma. Entã o, uma noite, eu pulei o muro e fugi.
Nã o quero voltar para lá ...
- Compreendo - disse um velho, balançando a cabeça.
E todos os outros compreenderam.
- Muito bem - disse uma mulher -, mas você ainda é pequena. Algué m
precisa cuidar de você .
- E. Eu vou cuidar de mim - respondeu Momo, aliviada.
- Mas você é capaz? - perguntou a mulher.
Momo icou quieta, pensando, depois disse com voz suave:
- Eu nã o preciso de muita coisa...
As pessoas voltaram a suspirar e a se consultar com os olhos,
gesticulando.
- Sabe, Momo - recomeçou o homem que tinha falado primeiro -,
achamos que podı́amos dar um jeito de você morar na casa de um de
nó s. E verdade que ningué m tem muito espaço e quase todos tê m
muitos ilhos para alimentar. Mas, a inal..., um a mais ou a menos nã o
faz grande diferença. O que você acha?
- Muito obrigada - respondeu Momo, sorrindo pela primeira vez. -
Muitı́ssimo obrigada. Mas você s nã o podiam me deixar icar morando
aqui?
As pessoas cochicharam, discutiram e por im concordaram. A inal
de contas, a menina estaria tã o bem ali quanto na casa de algum deles.
E lá todos poderiam cuidar de Momo. Seria mais fá cil do que se um só
icasse incumbido disso.
Começaram imediatamente a fazer uma boa limpeza na galeria em
ruı́nas onde Momo morava e a arrumar tudo da melhor maneira
possı́vel. Um homem, que era pedreiro, fez um fogã ozinho de pedra
para ela, e com um velho cano enferrujado izeram uma chaminé .
Aproveitando uns caixotes, um velho carpinteiro fez uma mesinha e
duas cadeiras. Por im, as mulheres trouxeram uma cama enferrujada,
um colchã o meio rasgado e dois cobertores. A galeria de pedra debaixo
do an iteatro se transformou numa moradia bem jeitosa.
O pedreiro, que era dado a artista, pintou na parede um bonito
quadro de lores.
Pintou até a moldura em volta e o prego no qual o quadro deveria
estar pendurado.
Depois chegaram os ilhos daquelas pessoas, cada um trazendo o que
tinha poupado da sua comida: um trouxe um pedacinho de queijo,
outro um pã ozinho, outro uma fruta e assim por diante. Como todos
tinham muitos ilhos, naquela noite se juntaram tantas crianças que
acabaram armando uma festa no an iteatro, para comemorar a chegada
de Momo. Foi uma festa alegre, daquelas que só as pessoas simples sã o
capazes de apreciar.
Assim começou a amizade entre Momo e seus vizinhos.
Capítulo Dois
UM DOM RARO E UMA BRIGA COMUM
A partir de entã o, tudo passou a correr bem para Momo, pelo menos na
opiniã o dela. Sempre tinha alguma coisa para comer, à s vezes mais,
outras vezes menos, dependendo do que o pessoal conseguisse poupar.
Tinha um teto, uma cama, e, quando fazia frio, podia acender um fogo. O
mais importante, no entanto, era que tinha muitos bons amigos.
Era de se pensar que a sorte estava com Momo, que tinha encontrado
gente tã o amiga, e ela mesma achava isso. Entretanto, os outros logo
perceberam que a sorte estava com eles també m. Precisavam de Momo
e icavam se perguntando como tinham conseguido viver sem ela até
entã o. A medida que o tempo passava, a menina se tornava mais
necessá ria, tã o necessá ria que seus amigos tinham medo de que, um
belo dia, pudessem acordar e nã o a encontrar mais.
Por isso Momo passou a receber visitas constantemente. Havia
sempre algué m sentado perto dela, conversando com ar muito
interessado. Quem precisasse dela, mas nã o pudesse ir até lá , mandava
buscá -la. E, se algué m ainda nã o tivesse percebido que precisava dela,
ouvia logo o conselho:
- Ora, vá falar com Momo!
Essa expressã o tornou-se quase uma frase feita entre as pessoas da
vizinhança.
Assim como dizemos "Boa sorte!", "Bom apetite!" ou "Só Deus sabe!",
lá se dizia, sempre que havia oportunidade, "Ora, vá falar com Momo!"
Mas por quê ? Será que Momo era tã o sensata que sempre tinha um
bom conselho para dar? Será que encontrava sempre as palavras certas
para dizer a quem precisasse de consolo? Ou sempre proferia frases
sá bias e justas?
Nã o. Quanto a isso, Momo era igual a qualquer outra criança.
Entã o será que Momo sabia fazer alguma coisa para deixar as
pessoas sempre de bom humor? Será que ela sabia, por exemplo, cantar
bem? Ou tocar algum instrumento? Ou entã o - já que ela morava numa
espé cie de circo - sabia dançar ou fazer acrobacias?
Nã o, també m nã o era isso.
Será que ela sabia fazer má gicas? Ou conhecia alguma fó rmula
secreta para fazer as pessoas se esquecerem de suas preocupaçõ es? Ou
sabia ler as mã os ou prever o futuro de alguma outra maneira?
Nada disso.
O que Momo sabia fazer melhor do que ningué m era ouvir. Muitos
leitores devem estar achando que isso nã o é nada de mais, que
qualquer um sabe ouvir. Mas é engano. Muito pouca gente sabe ouvir de
verdade. E o jeito de Momo ouvir e entender era muito especial.
Momo ouvia de tal modo que as ideias acertadas acabavam surgindo
na cabeça de algué m que estivesse meio desorientado. Nã o é que ela
dissesse ou perguntasse alguma coisa que levasse a pessoa a pensar de
determinada maneira. A menina só icava ali sentada, ouvindo com
atençã o e simpatia. Ao mesmo tempo itava a outra pessoa com seus
grandes olhos negros, e nela surgiam pensamentos que nunca tivera
antes, como se lhe tivessem sido encravados por aquele olhar.
Momo ouvia de um jeito que fazia os desesperados ou hesitantes de
repente saberem o que queriam; ou os tı́midos sentirem-se à vontade e
con iantes; os infelizes e oprimidos sentirem-se felizes e cheios de
esperança. Quando algué m achava que sua vida nã o tinha sentido,
acreditando-se um fracassado, apenas um ser entre milhõ es, sem
qualquer importâ ncia e tã o fá cil de ser substituı́do como um prato
quebrado, ia procurar a menina. Entã o, à medida que contava suas
desventuras, a pessoa ia percebendo que, fosse ela o que fosse, era uma
pessoa ú nica no mundo inteiro, e por isso mesmo era importante para o
mundo, por ser de seu pró prio jeito.
Era assim que Momo ouvia.
Um dia, dois homens foram ao an iteatro procurar Momo. Eram
inimigos jurados e, embora fossem vizinhos, recusavam-se a falar um
com o outro. Outras pessoas tinham aconselhado que procurassem
Momo, pois nã o era possı́vel continuarem vivendo daquele jeito.
Embora a princı́pio os dois recusassem, acabaram consentindo, a
contragosto.
Ficaram ali sentados, em lados opostos do an iteatro, emburrados,
calados, hostis. Um deles era o pedreiro que havia construı́do o fogã o
para Momo e pintado o quadro de lores na parede da "sala" Chamava-
se Nicola, era corpulento e tinha um bigode preto revirado nas pontas.
O outro chamava-se Nino. Era magro e parecia sempre meio cansado.
Era dono de um pequeno bar, onde os principais fregueses eram alguns
velhinhos que pediam um copo de vinho e icavam horas inteiras
recordando os tempos antigos. Nino e sua mulher també m eram amigos
de Momo e costumavam levar coisas gostosas para ela comer Quando
Momo percebeu que os dois homens estavam brigados, icou um
momento sem saber com qual deles falava primeiro. A inal, para nã o
ofender nenhum, sentou-se numa pedra a igual distâ ncia de ambos,
olhando para um e para outro, aguardando os acontecimentos. Muitas
coisas precisam de tempo, e tempo era justamente a ú nica riqueza de
Momo. De repente Nicola levantou-se e disse:
- Vou-me embora. Vindo aqui mostrei boa vontade, mas como você
pode ver, Momo, esse sujeito é teimoso. Nã o adianta esperar mais.
E, de fato, virou-se para ir embora.
- Adeus, e vá pela sombra.. - gritou Nino. - Aliá s, você nem devia ter
vindo. Eu nã o ia mesmo apertar a mã o de um trapaceiro.
Nicola fez meia-volta, roxo de raiva.
- Quem é trapaceiro? - perguntou, avançando para Nino. - Repita o
que disse...
- Quantas vezes você quiser - berrou Nino. - Você pensa que, só
porque é forte, ningué m tem coragem de dizer a verdade na sua cara.
Pois eu tenho, e digo para você e para quem quiser ouvir. Vamos, avance
e venha me matar, como já tentou uma vez.
- Gostaria de ter conseguido - rosnou Nicola, cerrando os punhos. -
Está vendo, Momo, está vendo como ele mente e calunia a gente... O que
eu iz foi agarrá -lo pelo colarinho e jogá -lo no tanque de á gua suja que
tem atrá s daquela espelunca dele. Nã o dava nem para afogar um rato.
E, virando-se para Nino, gritou:
- Infelizmente você continua vivo...
As mais incrı́veis acusaçõ es continuaram a ser lançadas de um lado
para outro, e Momo nã o conseguia entender do que se tratava e por que
os dois estavam tã o furiosos um com o outro. Aos poucos, entretanto,
foi icando claro que Nicola havia cometido aquele ato terrı́vel porque
Nino lhe tinha dado uns bofetõ es diante dos fregueses, no bar. E isso
porque Nicola havia tentado quebrar toda a louça de Nino.
- Pura mentira! - exclamou Nicola, zangado. - Atirei na parede só um
jarro, e que já estava rachado.
- Mas o jarro era meu, nã o era? - disse Nino. - Você nã o tinha o direito
de fazer uma coisa dessas.
Nicola, poré m, estava convencido de que tinha razã o, porque antes
Nino havia colocado em dú vida sua competê ncia pro issional de
pedreiro-construtor.
- Sabe o que ele falou de mim? - gritou para Momo. Disse que eu
nunca consegui erguer uma parede reta porque estou bê bado vinte e
quatro horas por dia, e que meu tataravô era igualzinho a mim, e que foi
ele quem construiu a torre inclinada de Pisa!
- Ora, Nicola, era só brincadeira - atalhou Nino.
- Que brincadeira! - rosnou Nicola. - Nã o acho graça em brincadeiras
desse tipo...
Descobriu-se, entã o, que a "brincadeira" de Nino era para se vingar
de Nicola.
De fato, certa manhã aparecera escrito com letras vermelhas, na
porta do bar:
"Quem só sabe fracassar vira dono de bar." Nino, por sua vez, nã o
tinha achado graça nenhuma.
Começaram entã o a discutir qual das duas "brincadeiras" era a mais
engraçada, e eles se enfureciam cada vez mais.
Bruscamente os dois pararam. Momo observava-os, de olhos
arregalados, mas nenhum dos dois entendia bem o signi icado daquele
olhar. Será que a menina estava rindo deles? Ou estava triste? Nã o dava
para saber. De repente, no entanto, os dois homens tiveram a sensaçã o
de estarem se olhando no espelho e começaram a icar envergonhados.
- Tudo bem - disse Nicola -, eu nã o devia ter escrito aquilo na sua
porta, Nino. Mas eu nã o teria feito isso se você nã o se tivesse recusado a
me servir. Isso é contra a lei, sabe, porque eu sempre paguei direito e
você nã o tinha motivo para me tratar daquele jeito.
- Nã o tinha, é ? - retrucou Nino. - Você nã o se lembra do caso do Santo
Antô nio? Ah, está icando encabulado... Você me deu um golpe, e eu nã o
podia deixar de graça.
- Dei, é ? - gritou Nicola, furioso outra vez. - Quem deu foi você , mas
nã o conseguiu me tapear.
O fato é que na parede do barzinho do Nino havia uma imagem de
Santo Antô nio, que ele tinha recortado de uma revista e emoldurado.
Um dia Nicola quis comprar a gravura, dizendo que a achava linda. Nino
foi negociando até conseguir que Nicola desse em troca o seu rá dio, e
icou rindo por dentro, convencido de que tinha levado a melhor.
Fechado o negó cio, aconteceu que, entre a imagem e o papelã o de
trá s do quadro, apareceu uma nota de dinheiro, de alto valor, que Nino
nunca tinha visto. Entã o ele percebeu que, a inal de contas, tinha levado
prejuı́zo, e icou muito aborrecido. Quis exigir de Nicola a devoluçã o da
nota, porque nã o fazia parte do objeto vendido. Nicola recusou, e dali
em diante Nino nã o quis mais servi-lo.
Depois de chegarem à causa inicial da briga, os dois homens icaram
em silê ncio, até que Nino falou:
- Diga com franqueza, Nicola: antes de nó s fazermos o negó cio você
já sabia daquele dinheiro, nã o sabia?
- Claro que sabia. Caso contrá rio nã o teria feito o negó cio,
- Entã o você confessa que me tapeou.
- Como? Você nã o sabia mesmo que o dinheiro eslava ali?
- Nã o. Juro que nã o.
- Veja só ... Entã o foi você quem quis me dar um golpe, recebendo meu
rá dio em troca de um pedaço de papel que nã o valia nada.
- Mas como é que você icou sabendo da nota?
- Eu tinha visto um freguê s en iar ali, como oferenda para Santo
Antô nio.
Nino mordeu o beiço.
- E valia muito?
- Exatamente o valor do meu rá dio - respondeu Nicola.
- Entã o - disse Nino, pensativo -, nossa briga na verdade é por causa
do Santo Antô nio que eu recortei da revista.
Nicola coçou a cabeça.
- E mesmo - ele resmungou. - E, se você quiser, pode icar com ele,
Nino.
- De jeito nenhum! - Nino exclamou. - Trocou, está trocado! Um
aperto de mã o para selar a nossa dignidade!
Entã o os dois começaram a rir. Desceram os degraus de pedra,
encontraram-se no meio do an iteatro, apertaram-se as mã os e
trocaram tapinhas nas costas. Depois, eles abraçaram Momo, dizendo:
- Muito, muito obrigado.
Quando a inal foram embora, Momo icou acenando até eles
desaparecerem, muito contente porque seus dois amigos tinham feito
as pazes.
Em outra ocasiã o, um menino levou para Momo seu caná rio que nã o
queria cantar.
Foi uma tarefa difı́cil. Momo teve de ouvir o caná rio uma semana
inteira, até ele voltar a chilrear e cantar.
Momo ouvia todos com atençã o: gatos, cachorros, grilos e sapos, até
a chuva e o vento nas á rvores E cada um falava com ela à sua maneira.
Algumas noites, depois que todos os seus amigos já tinham ido para
casa, ela icava sentada, sozinha, no grande an iteatro de pedra, debaixo
do cé u estrelado, simplesmente ouvindo o grande silê ncio.
Sentia-se como se estivesse no meio de um imenso caramujo que
escutasse o mundo das estrelas. Era como se ouvisse uma mú sica suave,
mas poderosa, que ia direto ao seu coraçã o.
Em noites assim, ela sempre tinha sonhos lindos.
E, quem ainda acha que ouvir nã o é nada de mais, experimente fazê -
lo para ver se consegue.
Capítulo Três
UMA TEMPESTADE IMAGINÁRIA E UM TEMPORAL DE VERDADE
Capítulo Seis
A CONTA ESTÁ ERRADA, MAS DÁ CERTO
Existe um misté rio muito grande que, no entanto, faz parte do dia-a-dia.
Todos os seres humanos participam dele, embora muito poucos
re litam sobre ele. A maioria simplesmente o aceita, sem mais
indagaçõ es. Esse misté rio é o tempo.
Existem calendá rios e reló gios que o medem, mas signi icam pouco,
ou mesmo nada, porque todos nó s sabemos que uma hora à s vezes
parece uma eternidade e, outras vezes, passa como um relâ mpago,
dependendo do que acontece nessa hora.
Tempo é vida. E a vida mora no coraçã o.
Ningué m sabia disso melhor que os homens cinzentos. Ningué m
sabia como eles o valor de uma hora, um minuto ou até um segundo.
Claro que tinham sua maneira pró pria de entender o tempo, assim
como a sanguessuga tem sua maneira pró pria de entender o sangue. E
eles agiam de acordo com essa maneira de entender.
Tinham seus pró prios planos para o tempo das pessoas. Eram planos
a longo prazo, cuidadosamente preparados.
O principal era que ningué m percebesse suas atividades.
Dissimuladamente, tinham conseguido se estabelecer na vida da
grande cidade e na de seus habitantes. Aos poucos, sem ningué m notar,
avançavam dia a dia e se apossavam das pessoas.
Conheciam cada indivı́duo que lhes pudesse interessar, muito antes
que o atingido o percebesse. Só esperavam o momento certo para
apanhá -lo. E faziam tudo para esse momento chegar.
Era o caso, por exemplo, do barbeiro, o sr. Fusi. Nã o era nenhum
grande artista no seu ofı́cio, mas era muito respeitado na sua rua. Nã o
era rico nem pobre. Sua barbearia, que icava no centro da cidade, era
pequena e só tinha como empregado um jovem aprendiz.
Um dia, o sr. Fusi estava na porta da loja, esperando a clientela. Era
folga do aprendiz e o sr. Fusi estava sozinho, olhando a chuva cair na
calçada. Era um dia cinzento, e na alma do barbeiro o tempo també m
estava encoberto.
"Minha vida vai passando", ele pensava, "em meio ao barulho da
tesoura, conversinhas e espuma de sabã o. Na verdade, o que minha
existê ncia me oferece?
Quando eu morrer, será como se nunca tivesse existido."
Na verdade, o sr. Fusi nã o tinha nada contra conversinhas. Até
gostava de trocar ideias com os clientes e ouvir o que tinham a dizer.
També m nada tinha contra barulho de tesoura ou espuma de sabã o.
Gostava muito do seu trabalho e sabia que o executava bem.
Especialmente ao barbear debaixo do queixo, ningué m manejava a
navalha com tanta habilidade. Mas havia momentos em que nada disso
parecia valer a pena. Todo mundo tem momentos assim.
"Minha vida é um fracasso", pensava o sr. Fusi. "A inal de contas,
quem sou eu?
Só consegui ser um pequeno barbeiro. Se pelo menos pudesse levar
uma vida de verdade, eu seria uma pessoa muito diferente!"
Só que o sr. Fusi nã o sabia muito bem em que consistia essa "vida de
verdade".
Imaginava algo de importante e luxuoso, como ele via nas revistas.
Aborrecido, continuou suas re lexõ es: "A questã o é que meu trabalho
nã o me deixa tempo para essas coisas. Para viver uma vida de verdade,
é preciso ter tempo. E preciso ser livre Mas eu vou passar a vida inteira
preso ao barulho da tesoura, à s conversinhas e à espuma de sabã o."
Naquele momento, um elegante carro cinzento parou na porta da
barbearia. Um homem cinzento desceu do carro e entrou na loja.
Colocando sua pasta cinza-chumbo sobre a mesa na frente do espelho,
pendurou no cabide seu chapé u-coco cinza, sentou-se na cadeira de
barbear, tirou do bolso um caderninho e começou a folheá -lo, sempre
tirando baforadas de um pequeno charuto cinzento O sr. Fusi fechou a
porta da barbearia porque, de repente, começou a fazer um frio
esquisito.
- O que o senhor deseja? - perguntou, meio confuso. Vai barba ou
cabelo?
Mas na mesma hora censurou-se por sua falta de tato, pois o homem
tinha uma careca reluzente.
- Nem um nem outro - retrucou o homem cinzento, sem um sorriso,
com uma voz inexpressiva, cinzenta, por assim dizer. - Venho da parte
da Caixa Econô mica de Tempo. Sou o agente XYQ/384/b. Soubemos que
o senhor deseja abrir uma conta de poupança no nosso
estabelecimento
- Para mim isso é novidade - declarou o sr. Fusi. - Para ser franco, eu
nem sabia da existê ncia dessa tal caixa.
- Mas agora já sabe - retrucou secamente o outro. Consultou seu
caderninho e continuou: - E o sr. Fusi, barbeiro, nã o é ?
- Certo. Sou eu mesmo
- Entã o estou no lugar certo - e fechou abruptamente o caderninho. -
Está na nossa lista de pretendentes.
- Como assim? - indagou o sr. Fusi, sem compreender.
- Ora, vejamos, meu caro senhor. O seu tempo está sendo
desperdiçado entre barulho de tesouras, conversinhas e espuma de
sabã o. Quando morrer, será como se nunca tivesse existido. Se
dispusesse de tempo para levar uma vida de verdade, seria uma pessoa
muito diferente. Mas o que lhe falta é tempo. Estou certo?
- E exatamente nisso que eu estava pensando agora mesmo -
murmurou o sr. Fusi, tremendo porque1, apesar de a porta estar
fechada, o frio aumentava na barbearia.
- Está vendo? - disse o homem cinzento, com ar muito seguro,
tragando satisfeito o seu charuto. - Mas onde vai arranjar tempo? Só
poupando! Veja, sr. Fusi, tem desperdiçado seu tempo com a maior
imprudê ncia, conforme vou lhe provar apenas fazendo uma conta. Um
minuto tem sessenta segundos. Uma hora tem sessenta minutos. Até
aqui está entendendo?
- Claro que estou.
O agente XYQ/384/b começou a escrever nú meros no espelho com
um lá pis cinza.
- Sessenta vezes sessenta sã o trê s mil e seiscentos segundos. Entã o,
uma hora tem trê s mil e seiscentos segundos. Um dia tem vinte e quatro
horas. Portanto, trê s mil e seiscentas vezes vinte e quatro sã o oitenta e
seis mil quatrocentos e sessenta e cinco dias (excluindo o ano bissexto),
o que dá trinta e um milhõ es quinhentos e trinta e seis mil segundos
por ano. Ou trezentos e quinze milhõ es trezentos e sessenta segundos
em dez anos. Quanto tempo acha que vai durar sua vida, sr. Fusi?
- Bem... - gaguejou o barbeiro, perplexo. - Espero viver até os setenta
ou oitenta anos, se Deus quiser.
- Muito bem - prosseguiu o homem cinzento. - Vamos supor, por
precauçã o, que sejam setenta anos. Terı́amos trezentos e quinze
milhõ es trezentos e sessenta mil vezes sete. Dá dois bilhõ es duzentos e
sete milhõ es quinhentos e vinte mil segundos.
E escreveu no espelho em algarismos bem grandes: 2.207.520.000
Sublinhou vá rias vezes o nú mero e explicou: - Veja, sr. Fusi, esta é a
fortuna à sua disposiçã o.
O sr. Fusi engoliu em seco e enxugou a testa. A soma era de atordoar.
Nunca pensou que fosse tã o rico.
- Pois é - continuou o agente, tirando outra baforada do charuto
cinzento -, é um nú mero impressionante, nã o é ? Mas vamos em frente.
Qual é sua idade?
- Quarenta e dois - gaguejou novamente o barbeiro, de repente
sentindo-se culpado, como se tivesse cometido alguma fraude.
- Quantas horas, em mé dia, dorme por noite?
- Cerca de oito - confessou o sr. Fusi.
O agente calculava com a velocidade de um relâ mpago. O lá pis rangia
no espelho, arrepiando o sr. Fusi.
- Quarenta e dois anos e oito horas por dia vê m a ser quatrocentos e
quarenta e um milhõ es quinhentos e quatro mil segundos, e essa
quantidade de tempo deve, sem dú vida alguma, ser considerada
perdida. Agora, quantas horas por dia o senhor dedica ao trabalho?
- També m umas oito horas - respondeu o sr. Fusi, já meio
desanimado.
- Entã o temos que repetir a mesma quantidade na coluna do dé bito -
continuou o agente, implacá vel. - E, naturalmente, temos també m que
deduzir outro perı́odo de tempo, pois o senhor precisa comer. Quanto
tempo por dia o senhor gasta comendo, incluindo todas as refeiçõ es?
- Nã o sei bem - disse o sr. Fusi, muito nervoso. - Creio que umas duas
horas.
- Acho muito pouco - contestou o agente -, mas suponhamos que seja
isso, o que dá , em quarenta e dois anos, cento e dez milhõ es trezentos e
setenta L- seis mil segundos. Vamos continuar. Sabemos que o senhor
mora com sua velha mã e e todos os dias passa uma hora inteira com
ela, isto é , senta-se a seu lado e fala, embora ela seja muda e quase
surda. Isso també m conta como tempo desperdiçado, portanto,
cinquenta e cinco milhõ es cento e oitenta e oito mil segundos. Outra
coisa: o senhor tem um periquito, inteiramente desnecessá rio, cujo
trato exige diariamente um quarto de hora do seu tempo, o que soma
treze milhõ es setecentos e noventa e sete mil segundos.
- Mas... - tentou argumentar o sr. Fusi-
- Nã o interrompa! - gritou o agente, fazendo os cá lculos cada vez
mais depressa.
- Como sua mã e é aleijada, o senhor mesmo faz uma parte do serviço
da casa. Tem de fazer compras, limpar os sapatos e executar vá rias
outras tarefas. Quanto tempo isso lhe custa por dia?
- Talvez uma hora, mas...
- Resultado, cinquenta e cinco milhõ es cento e oitenta e oito mil
segundos desperdiçados. Alé m disso, sabemos que vai ao cinema uma
vez por semana, passa uma noite por semana com o grupo de canto
coral, vai ao bar duas noites por semana e, as outras noites, passa com
amigos ou lê um livro. Em suma, desperdiça com ocupaçõ es inú teis
cerca de trê s horas diariamente, o que dá cento e sessenta e cinco
milhõ es quinhentos e sessenta e quatro mil segundos. Está se sentindo
mal, sr. Fusi?
- Nã o, nã o estou - respondeu o sr. Fusi. - Desculpe...
- Estamos quase acabando - prosseguiu o homem cinzento -, mas
existe em sua vida um capı́tulo especial a ser considerado. E aquele seu
segredinho, o senhor sabe.
O sr. Fusi estava com tanto frio, que seus dentes começaram a bater.
Sentindo-se fraco, apenas murmurou:
- Sabe disso també m? Pensei que fosse um segredo entre mim e a
srta. Daria, e...
- No mundo de hoje nada é segredo - interrompeu o agente
XYQ/384/b. - Considere o caso com bom senso e realismo, sr. Fusi.
Responda à minha pergunta: o senhor pretende se casar com a srta.
Daria?
- Nã o, nã o dá ... - disse o sr. Fusi.
- Isso mesmo - continuou o homem cinza -, pois a srta. Daria vai
passar a vida toda numa cadeira de rodas, porque tem as pernas
paralı́ticas. Entretanto, o senhor vai visitá -la todos os dias durante meia
hora e leva lores... Por quê ?
- Ela ica tã o feliz... - respondeu o sr. Fusi, quase chorando.
- Mas, encarando as coisas racionalmente, para o senhor é tempo
perdido, somando vinte e sete milhõ es quinhentos e noventa e quatro
segundos. E, se considerarmos que costuma passar todas as noites um
quarto de hora sentado perto da janela, re letindo sobre o que
aconteceu durante o dia, temos que debitar mais treze
milhõ es setecentos e noventa e sete mil segundos. Agora vamos ver
quanto tempo lhe resta, sr. Fusi.
A conta escrita no espelho era esta:
Sono
Trabalho
Refeições
Mãe
Periquito
Compras etc.
Amigos, coral etc.
Segredo
Janela
TOTAL
- Esta soma - declarou o homem cinzento, batendo o lá pis contra o
espelho com tanta força que parecia estar dando tiros de revó lver -, esta
soma representa o tempo que o senhor desperdiçou até agora. O que
tem a dizer?
O sr. Fusi nã o tinha absolutamente nada a dizer. Sentou-se numa
cadeira, a um canto, e enxugou o suor que lhe escorria pela testa,
apesar do frio. O homem cinzento balançou a cabeça com ar pensativo:
- Pois é isso mesmo. O total é mais da metade da sua riqueza inicial.
Mas agora precisamos ver o que de fato ganhou dos seus quarenta e
dois anos. Como já sabe, um ano tem trinta e um milhõ es quinhentos e
trinta e seis mil segundos, e isso multiplicado por quarenta e dois vem a
ser um bilhã o trezentos e vinte e quatro milhõ es quinhentos e doze mil
segundos.
Abaixo da soma do tempo perdido, escreveu:
1.324.512.000 segundos
- 1.324.512.000 segundos
0.000.000.000 segundo
Feito isso, guardou seu lá pis e fez uma pausa, esperando até os zeros
fazerem efeito sobre o sr. Fusi.
E, de fato, eles produziram o resultado que ele queria.
"Entã o é esse o balanço da minha vida até hoje", pensou o sr. Fusi,
arrasado.
Estava tã o impressionado com a conta, feita com tanta precisã o, que
a aceitou sem contestar. E a conta dava mesmo muito certo. Era um dos
truques que os homens cinzentos utilizavam para enganar as pessoas
sempre que podiam.
- O senhor nã o acha que nã o pode continuar assim, sr. Fusi? -
recomeçou o agente XYQ/384/b, com voz suave. - Nã o gostaria de
começar a poupar um pouco do seu tempo, sr. Fusi?
O sr. Fusi fez sinal que sim, sem dizer nada e com os lá bios roxos de
frio.
- Por exemplo - continuou a voz cinzenta do agente -, se o senhor
tivesse começado, há vinte anos, a poupar uma hora por dia, agora teria
um capital de vinte e seis milhõ es duzentos e oitenta mil segundos. Se
tivesse poupado duas horas diá rias teria, é claro, o dobro dessa soma,
ou seja, cinquenta e dois milhõ es quinhentos e sessenta mil segundos.
Eu lhe pergunto, sr. Fusi, o que sã o suas mı́seras horinhas comparadas a
esse total?
- Nada! - gritou o sr. Fusi. - Uma coisa à toa!
- Fico satisfeito em ver que o senhor o admite - continuou o agente. -
E se agora calcularmos quanto o senhor teria economizado em mais
vinte anos assim, chegaremos à simpá tica soma de cento e cinco
milhõ es cento e vinte mil segundos.
Todo esse capital estaria à sua disposiçã o quando chegasse aos
sessenta e dois anos.
- Formidá vel! - gaguejou o sr. Fusi, com os olhos quase saindo das
ó rbitas.
- Espere um instante, ainda tem mais: a Caixa Econô mica de Tempo
nã o somente cuida do tempo que o senhor poupou, mas ainda lhe paga
os juros sobre isso. Quer dizer que, de fato, teria muito mais ainda.
- Quanto mais? - indagou sr. Fusi, ofegante.
- Isso dependeria do senhor - explicou o agente -, de quanto tempo
tivesse poupado e de quanto tivesse deixado depositado.
- Depositado? Como assim? - quis saber o sr. Fusi.
- Muito simples - explicou o homem cinzento. - Se durante cinco anos
o senhor nã o retirar seu tempo poupado, acrescentaremos a ele mais
uma vez a mesma quantia. Em outras palavras, sua fortuna dobrará a
cada cinco anos. Em dez anos, já valerá quatro vezes a quantia original,
em quinze anos, oito vezes, e assim por diante. Se há vinte anos o
senhor tivesse começado a poupar apenas duas horas por dia, no
aniversá rio dos seus sessenta e dois anos teria à sua disposiçã o
duzentas e cinquenta e seis vezes a soma que teria poupado até
hoje. Chegaria a vinte e seis bilhõ es novecentos e dez milhõ es
setecentos e vinte mil segundos.
Voltou a pegar o lá pis cinzento e escreveu o nú mero no espelho:
26.910.720.000 segundos
Pela primeira vez um ligeiro sorriso entreabriu os lá bios do homem
cinzento.
- O senhor pode veri icar que isso vem a ser dez vezes mais todo o
tempo de sua vida inteira. E pode ser conseguido simplesmente pela
economia de duas horas diá rias. Diga-me se nã o acha que é uma oferta
interessante.
- Claro que é ! - respondeu o barbeiro, esgotado. - Claro que é . Sou um
tolo por nã o ter começado a poupar tempo há muitos anos. Só agora
estou percebendo isso e confesso que ico desesperado.
- Nã o há motivo para isso - retrucou suavemente o homem cinzento. -
Nunca é tarde demais. Se quiser, poderemos começar hoje mesmo. Vai
ver como vale a pena.
- Claro que quero! - exclamou o sr. Fusi. - O que preciso fazer?
- Meu caro senhor - e o agente ergueu as sobrancelhas -, estou certo
de que sabe como poupar tempo! E só trabalhar mais depressa e deixar
de lado tudo o que nã o é essencial. Em vez de dedicar meia hora a cada
cliente, dedique apenas um quarto de hora. Poupe o tempo que tem
desperdiçado em conversas. Reduza para a metade a hora que passa
com sua mã e. Melhor ainda, mande-a para um asilo de velhos, barato,
onde tomarã o conta dela, e estará poupando uma hora inteira por
dia. Largue esse periquito, que nã o serve para nada. Visite a srta. Daria
só a cada quinze dias, se izer questã o. Acabe com o quarto de hora que
passa rememorando os acontecimentos do dia. Acima de tudo,
desperdice menos tempo com o coral, a leitura de livros e os seus
supostos amigos. A propó sito, aconselho que coloque na barbearia um
bom reló gio, bem grande, para poder controlar o trabalho do seu
aprendiz.
- Está certo - disse o sr. Fusi -, posso até fazer tudo isso, mas, e o
tempo que eu economizo? O que faço com ele? Tenho de entregar para
guardar? A quem? Ou eu mesmo guardo em algum lugar? Como é que
funciona a coisa?
O agente tornou a mostrar aquele ligeiro sorriso.
- Nã o se preocupe com nada disso. Deixe tudo por nossa conta. Fique
descansado, pode ter certeza de que nã o deixaremos se perder um só
momento do seu tempo poupado.
- Ah, entã o está bem - respondeu o barbeiro, boquiaberto. - Con iarei
em você s.
- Pode ter absoluta con iança, meu caro senhor - disse o agente,
levantando-se da cadeira. - Entã o agora posso cumprimentá -lo como
novo membro da Associaçã o dos Poupadores de Tempo. Sr. Fusi, o
senhor agora é de fato um homem moderno e progressista. Meus
parabé ns!
Dizendo isso, apanhou o chapé u e a pasta.
- Um minuto! - gritou o sr. Fusi. - Nã o precisamos fazer algum tipo cie
contrato? Eu nã o deveria assinar alguma coisa? Nã o recebo documento
nenhum?
O agente XYQ/384/b, já na porta, virou-se, lançando para o sr. Fusi
um olhar ligeiramente contrariado.
- Para quê ? A poupança de tempo é diferente de qualquer outro tipo
de poupança. E uma questã o apenas de con iança, de ambas as partes.
Para nó s, basta sua palavra. O senhor nã o pode voltar atrá s, e nó s nos
comprometemos a zelar pelas suas economias. O quanto o senhor
poupa é problema apenas seu. Nó s nã o lhe impomos nenhuma
obrigaçã o. Passe bem, sr. Fusi.
Com isso, o agente entrou no seu elegante carro cinzento e partiu
ruidosamente.
O sr. Fusi acompanhou-o com o olhar e enxugou a testa. Pouco a
pouco o frio foi passando, mas ele se sentia fraco e indisposto. A fumaça
cinza-azulada do charuto do agente ainda lutuava na sala, em nuvens
pesadas, e demorava para se dissipar.
O sr. Fusi só se sentiu uni pouco melhor quando a fumaça
desapareceu. Ao mesmo tempo foram també m desbotando os nú meros
no espelho. Depois que sumiram completamente, o visitante cinzento
també m se apagou da lembrança do sr. Fusi - o visitante, mas nã o o
resultado da visita, que ele agora atribuı́a a si mesmo. A decisã o de, a
partir de entã o, poupar tempo, para em algum momento do futuro
poder começar uma vida nova, encravou-se em sua alma como um
anzol.
Nisso chegou o primeiro cliente do dia. O sr. Fusi recebeu-o
secamente, fez o estritamente necessá rio e nã o conversou nada, de
modo que terminou em vinte minutos, em vez de levar a habitual meia
hora.
A partir de entã o, passou a tratar assim todos os clientes. Dessa
maneira, seu trabalho já nã o lhe dava qualquer prazer, mas isso
també m tinha perdido a importâ ncia. Alé m do aprendiz, contratou mais
dois ajudantes e icou de olho neles, iscalizando para que nã o
perdessem um minuto. Cada movimento da mã o era estabelecido
segundo um horá rio rigoroso, calculado até a fraçã o de segundo. Na
barbearia do sr. Fusi foi pendurada uma placa com o recado: TEMPO
POUPADO E TEMPO DOBRADO
O sr. Fusi escreveu uma carta curta e seca para a srta. Daria, dizendo
que, infelizmente, nã o tinha mais tempo para visitá -la. Vendeu o
periquito para uma loja de animais. Colocou a mã e num asilo de velhos
bom e barato, onde passou a visitá -la uma vez por mê s. Nas outras
coisas també m seguiu todos os conselhos do homem cinzento,
convencido de que eram suas pró prias ideias.
Ele foi icando cada vez mais nervoso e preocupado, pois achava
estranho, apesar de todo o tempo que economizava, nunca lhe sobrar
tempo. O tempo desaparecia misteriosamente e nunca mais voltava. Os
dias foram icando cada vez mais curtos, a princı́pio sem ele se dar
conta, depois ostensivamente. Sem o sr. Fusi perceber, mais uma
semana se passava, depois um mê s, um ano, outro ano e mais outro.
Como nã o se lembrava da visita do homem cinzento, devia ter se
perguntado seriamente para onde estava indo todo o seu tempo. Poré m,
essa pergunta lhe ocorreu tã o poucas vezes quanto para todos os
outros poupadores de tempo. Era como se estivesse tomado por uma
obsessã o cega. E, quando à s vezes percebia que seus dias estavam
passando cada vez mais depressa, só fazia redobrar seus esforços
desesperados para poupar o tempo.
O que estava acontecendo com o sr. Fusi já acontecia també m com
muita outra gente cia grande cidade. Cada dia era maior o nú mero de
pessoas que estavam começando a fazer o que chamavam de "poupar
tempo". E quanto mais aumentava seu nú mero, maior era també m o
nú mero das pessoas que as seguiam; mesmo aquelas que nã o queriam
acabavam sendo levadas a imitar as outras.
Todos os dias a televisã o, o rá dio, a imprensa anunciavam e
elogiavam os mé ritos de novos expedientes para poupar tempo,
deixando as pessoas livres para viver uma "vida de verdade". As
fachadas e muros cobriam-se de cartazes que mostravam todas as
imagens possı́veis da felicidade. Embaixo, em letras luminosas, lia-se:
OS POUPADORES DE TEMPO VIVEM CADA VEZ MELHOR! O FUTURO
PERTENCE A QUEM POUPA TEMPO! ou APROVEITE MELHOR A VIDA -
POUPE TEMPO!
A realidade, entretanto, era muito diferente. De fato, os poupadores
de tempo vestiam-se melhor do que as pessoas que moravam por perto
do velho an iteatro.
Ganhavam mais dinheiro e, assim, podiam gastar mais. Mas tinham a
isionomia mal-humorada, cansada ou amargurada e o olhar hostil.
Naturalmente, nã o conheciam a expressã o: "Ora, vá falar com Momo!"
Nã o tinham ningué m que os ouvisse de modo a torná -los lú cidos,
conciliadores ou até felizes. Mas, ainda que tivessem acesso a uma
pessoa assim, era pouco prová vel que a procurassem, a nã o ser que o
assunto pudesse ser resolvido em menos de cinco minutos - senã o
achariam que era perda de tempo. Do ponto de vista dos poupadores,
mesmo suas horas de folga precisavam ser aproveitadas ao má ximo,
fornecendo-lhes o mais depressa possı́vel o má ximo de diversã o e
prazer.
Assim, já nã o podiam comemorar direito os feriados, nem os alegres
nem os sé rios. Sonhar era quase um crime. Mas o que menos toleravam
era o silê ncio.
Quando estava tudo quieto, icavam apavorados, pois percebiam, na
verdade, o que estava acontecendo com suas vidas. Por isso, sempre
que sentiam a ameaça do silê ncio, faziam barulho. Nã o era um barulho
alegre, como se ouve num recreio de crianças; era um barulho irritado,
agressivo, que se tornava cada dia mais alto na grande cidade.
Já nã o tinha importâ ncia algué m gostar de seu trabalho ou fazê -lo
com prazer.
Pelo contrá rio, isso acarretava, perda de tempo. A ú nica coisa
importante era que cada um trabalhasse, o mais possı́vel no menor
tempo possı́vel.
Por isso, foram colocados letreiros nas fá bricas e nos escritó rios,
dizendo: O TEMPO E PRECIOSO - NAO O PERCA! ou TEMPO E
DINHEIRO - ECONOMIZE!
Avisos semelhantes foram a ixados nas paredes atrá s das mesas dos
chefes, das cadeiras dos diretores, nos consultó rios mé dicos, nas lojas,
nos restaurantes, até nas escolas e jardins de infâ ncia. Ningué m
escapou.
Por im, a aparê ncia da pró pria grande cidade foi mudando cada vez
mais. Os bairros antigos foram demolidos e construı́ram-se novas casas,
deixando-se cie lado tudo o que fosse considerado supé r luo. Já nã o
havia a preocupaçã o cie que as casas fossem adequadas à s pessoas que
morassem nelas, pois isso tornaria necessá rio construir muitas casas
diferentes umas das outras. Era muito mais barato e, sobretudo, mais
rá pido construir todas as casas iguais.
No lado norte da grande cidade já se espalhavam imensos bairros
residenciais novos. Pré dios de apartamentos para alugar dispunham-se
em ileiras interminá veis, tã o iguais quanto um ovo é igual ao outro. E,
como todas as casas se pareciam, també m as ruas acabavam se
parecendo. Essas ruas todas iguais cresciam cada vez mais, estendendo-
se em linhas retas até o horizonte: um deserto ordenado! A vida das
pessoas que moravam lá transcorria exatamente da mesma maneira,
em linha reta até o horizonte. Tudo era calculado e planejado, cada
centı́metro e cada instante.
Ningué m parecia notar que, ao poupar tempo, na verdade estava se
poupando de outra coisa. Ningué m queria admitir que sua vida estava
se tornando cada vez mais pobre, mais monó tona, mais fria. Quem mais
sentia isso eram as crianças, pois ningué m mais tinha tempo para elas.
Mas tempo é vida. E a vida reside no coraçã o.
E quanto mais as pessoas poupavam tempo menos tempo elas
tinham.
Capítulo Sete
MOMO PROCURA SEUS AMIGOS E É ENCONTRADA POR UM
INIMIGO
- Nã o sei - disse Momo certo dia -, mas tenho a impressã o de que nossos
velhos amigos tê m vindo me visitar muito menos do que antes. Há
alguns que nã o vejo há um tempã o.
Gigi Guia e Beppo Varredor estavam sentados perto dela nos degraus
de pedra cobertos de capim, olhando o pô r-do-sol.
- E - con irmou Gigi -, també m tenho essa impressã o. Cada vez menos
gente quer ouvir minhas histó rias. Nã o é mais como antes. Alguma
coisa está acontecendo.
- Mas o quê ? - indagou Momo.
Gigi sacudiu os ombros e apagou com cuspe algumas letras que tinha
escrito numa velha lousa Algumas semanas antes, Beppo Varredor
havia trazido para Momo aquela lousa, que encontrara no lixo. Nã o era
nova, é claro, e tinha uma rachadura bem no meio, mas ainda dava
muito bem para usá -la. Desde entã o, todos os dias Gigi ensinava
algumas letras para Momo. Como a menina tinha muito boa memó ria, já
conseguia ler direitinho. Mas escrever ela ainda nã o sabia muito bem.
Beppo Varredor, que icara pensando na pergunta de Momo,
balançou a cabeça e respondeu:
- E verdade. Está chegando mais perto. Na cidade já está por toda
parte. Já faz algum tempo que reparei.
- O quê ? - perguntou Momo.
Beppo pensou um pouco antes de responder:
- Nada de bom.
Fez nova pausa antes de prosseguir:
- Está esfriando.
- Imagine! - exclamou Gigi, passando o braço em torno dos ombros
cie Momo, num gesto de consolo. - Seja como for, aqui vê m cada vez
mais crianças.
- E por isso - disse Beppo -, é justamente por isso.
- O que você está querendo dizer? - indagou Momo. Beppo demorou
muito para responder:
- Elas nã o vê m por nossa causa. Vê m apenas à procura de um refú gio.
Os trê s olharam para o centro da arena, onde algumas crianças
estavam se divertindo com um novo jogo de bola que tinham inventado
aquela tarde.
Entre elas estavam alguns velhos amigos de Momo: Paulo, o menino
de ó culos; Maria, com a irmã zinha Dedé ; o garoto gordo de voz
estridente, chamado Má ssimo; e o outro menino, Franco, sempre com
jeito desleixado. Mas, alé m dessas, havia vá rias crianças que só tinham
começado a aparecer nos ú ltimos dias, entre as quais um menino
pequeno, que viera aquela tarde pela primeira vez. Parecia que Gigi
tinha razã o: a cada dia vinham mais crianças.
Momo, na verdade, icava muito feliz com a presença delas, mas a
maioria das crianças novas nã o sabia brincar. Elas icavam ali sentadas,
amuadas e aborrecidas, vendo Momo e seus amigos. De vez em quando
interrompiam de propó sito a brincadeira dos outros e estragavam tudo.
Era mais frequente saı́rem brigas e discussõ es. Mas nã o duravam muito,
pois a presença de Momo també m in luenciava as crianças novas, que
logo começavam a ter boas ideias e juntavam-se à s outras com
entusiasmo. No entanto, quase todos os dias chegavam mais crianças,
algumas vindas de longe, até do outro lado da grande cidade.
Entã o, estava sempre começando tudo de novo, pois, como se sabe,
basta um estraga-prazeres para pô r tudo a perder.
Havia mais uma coisa que Momo nã o conseguia entender. Já era
assim desde o inı́cio, e agora acontecia cada vez com maior frequê ncia.
As crianças traziam todo tipo de brinquedos, com os quais nã o dava
para brincar de verdade. Era o caso, por exemplo, de um tanque com
controle remoto, que andava sozinho, mas nã o fazia mais nada alé m
disso. Ou de um foguete espacial, que voava em cı́rculos em torno de
um suporte, mas nã o servia para nada mais. Ou de um robô de olhos
iluminados, que andava se balançando e girando a cabeça, mas que fora
isso era inú til.
Eram brinquedos muito caros, naturalmente. Os amigos de Momo
nunca haviam possuı́do iguais, e muito menos ela. Acima de tudo,
aqueles brinquedos eram perfeitos nos mı́nimos detalhes, de modo que
nã o sobrava nada para se imaginar.
Muitas vezes as crianças icavam horas olhando para uma coisa
daquelas, que rodopiava, balançava ou andava em cı́rculos. Elas icavam
fascinadas, mas ao mesmo tempo entediadas, pois nã o sabiam o que
fazer com aquilo. Acabavam voltando à s brincadeiras antigas, para as
quais bastavam algumas caixas vazias, uma velha toalha de mesa, um
montinho feito por alguma toupeira ou um punhado de pedrinhas. Era
o su iciente para imaginar o que quer que fosse.
Naquela tarde, parecia que alguma coisa estava atrapalhando o jogo.
Uma a uma, as crianças foram desistindo, até que a inal todas estavam
sentadas em torno de Momo, Beppó e Gigi. Queriam ouvir uma histó ria
de Gigi, mas nã o era possı́vel, porque o garotinho que estava ali pela
primeira vez tinha levado um rá dio.
Sentado meio afastado dos outros, ele ouvia propagandas, com o
rá dio a todo volume.
- Nã o dá para abaixar um pouco o volume dessa coisa boba? -
perguntou Franco, o menino de aspecto relaxado, em tom agressivo.
- Nã o estou ouvindo - respondeu o garoto, com um sorriso. - Meu
rá dio está muito alto. .
- Abaixe isso já ! - gritou Franco, levantando-se.
O garoto empalideceu ligeiramente, mas respondeu, teimando:
- Nem você nem ningué m manda em mim. Vou deixar meu rá dio no
volume que eu quiser.
- Ele tem razã o - disse o velho Beppo - Nã o podemos proibi-lo de
nada. No má ximo podemos pedir.
Franco tornou a sentar, mal-humorado:
- Entã o ele devia ir para algum outro lugar. A tarde inteira ele
atrapalhou tudo.
- Ele deve ter suas razõ es - disse Beppo, olhando para o garoto com
simpatia e compreensã o, atravé s de seus pequenos ó culos. - Com
certeza tem.
O garoto nã o disse nada, mas dali a pouco abaixou o volume do rá dio,
olhando para o outro lado.
Momo foi sentar-se ao lado dele. O garoto desligou o rá dio e, durante
alguns momentos, icou em silê ncio.
- Conte uma histó ria, Gigi - pediu uma das crianças novas no grupo.
- E, conte, por favor! - gritaram as outras - Conte uma histó ria
engraçada!
Nã o, de terror! Nã o, um conto de fadas! Nã o, uma histó ria de
aventuras!
Mas Gigi nã o queria. Era a primeira vez na sua vida que isso
acontecia.
- Pre iro que você s me contem alguma coisa - disse ele, inalmente. -
Alguma coisa sobre você s e suas casas, o que você s fazem o dia todo e
por que estã o aqui.
As crianças icaram quietas De repente suas isionomias se
entristeceram e se fecharam.
- Nó s agora temos um carro muito bonito - disse, por im, uma delas.
- Aos sá bados, quando papai e mamã e tê m tempo, eles lavam o carro
Quando me comporto bem, tenho autorizaçã o para ajudar. Quando
crescer vou ter um igual.
- Agora eu posso ir ao cinema quando me dá vontade disse uma
menininha. - Assim eu ico num lugar seguro, porque eles infelizmente
nã o tê m tempo para mim.
Ela fez uma pausa e acrescentou- - Mas eu nã o gosto de icar num
lugar seguro, entã o venho aqui, escondida, e economizo o dinheiro do
cinema. Quando eu tiver juntado bastante dinheiro, vou comprar uma
passagem para ir ver os sete anõ es.
- Nã o seja boba! - gritou outra criança. - Isso nã o existe!
- Existe, sim - insistiu a menina - Eu até vi um deles num folheto de
viagens.
- Eu já tenho onze discos de contos de fadas - disse um menininho. -
E posso tocar toda hora. Antes, meu pai sempre me contava histó rias
quando voltava do trabalho, e era muito bom. Mas agora ele nunca está
em casa, ou entã o está muito cansado e nã o tem vontade de contar
histó rias.
- E sua mã e? - perguntou Momo.
- Agora ela també m está fora de casa o dia inteiro.
- E - disse Maria -, na minha casa é a mesma coisa, mas por sorte eu
tenho a Dedé .
Beijou a irmã zinha, que estava sentada no seu colo, e continuou:
- Quando chego da escola, esquento a comida, depois faço minha
liçã o e depois... - ela sacudiu os ombros – depois nó s icamos andando
por aı́, até escurecer. Agora a gente quase sempre vem para cá .
As crianças balançavam a cabeça, con irmando, pois com todas
acontecia mais ou menos a mesma coisa.
- Acho ó timo meus pais nã o terem mais tempo para mim- disse
Franco, embora nã o parecesse nada contente. - Senã o eles começam a
brigar e eu acabo apanhando.
De repente o menino do rá dio virou-se para eles e disse:
- Agora estou ganhando uma mesada muito maior do que antes.
- Claro - atalhou Franco. - Eles fazem isso para icarem livres de nó s.
Eles nã o gostam mais de nó s, mas també m nã o gostam mais deles
mesmos, Nã o gostam mais de nada. E isso que eu acho.
- E mentira! - gritou zangado o garoto do rá dio. - Meus pais gostam
muito de mim. Eles nã o tê m culpa de nã o terem tempo. As coisas sã o
assim. Em compensaçã o me deram este rá dio, que custa muito caro.
Isso é uma prova, nã o é ?
Ningué m respondeu. De repente, o menino que tinha passado a tarde
toda estragando tudo começou a chorar. Tentou segurar o choro,
esfregou os olhos com suas mã os sujas, poré m as lá grimas escorriam,
deixando riscos mais claros nas bochechas encardidas.
As outras crianças olhavam com simpatia ou abaixavam os olhos.
Agora estavam entendendo o garoto. Na verdade, todas sentiam o
mesmo. Todas sentiam que haviam sido abandonadas.
- E - falou o velho Beppo, apó s uma longa pausa -, está icando frio.
- Acho que daqui a pouco nã o vou mais poder vir aqui disse Paulo, o
menino de ó culos.
- Por que nã o? - indagou Momo, surpresa.
- Meus pais disseram que você s todos sã o vagabundos e imprestá veis
- explicou Paulo. - Disseram que você s estã o roubando o tempo que é de
Deus, e é por isso que você s tê m tanto tempo. Que existe muita gente
como você s e, por isso, os outros tê m cada vez menos tempo. Eles nã o
querem mais que eu venha aqui, para nã o icar igualzinho a você s.
Algumas crianças mais uma vez balançaram a cabeça, con irmando
que já tinham ouvido a mesma coisa. Gigi encarou-as, uma a uma.
- Você s també m acham isso de nó s? Entã o por que continuam vindo
aqui, apesar de tudo?
Depois de um breve silê ncio, Franco disse:
- Eu nã o ligo. De qualquer jeito, meu pai sempre diz que quando eu
crescer vou ser ladrã o. Estou do lado de você s.
- Ah, é ? - perguntou Gigi, erguendo as sobrancelhas. - E você també m
acha que somos ladrõ es?
As crianças olhavam para o chã o, encabuladas. Por im, Paulo
encarou o velho Beppo.
- Meus pais nã o mentem - disse ele, baixinho. E, mais baixinho ainda,
perguntou:
- Entã o você s nã o sã o?
Ouvindo isso, o velho varredor cie ruas ergueu-se ao má ximo cie sua
altura, que nã o era muita, levantou solenemente a mã o e declarou:
- Nunca na minha vida, nunca mesmo, nunca roubei o menor
tiquinho de tempo nem de Deus nem dos homens. Isso eu juro, e Deus é
testemunha!
- Eu també m nã o - disse Momo.
- Eu també m nã o - repetiu Gigi, muito sé rio.
As crianças se calaram, impressionadas. Nenhuma delas duvidava da
palavra dos trê s amigos.
- E, já que estamos falando no assunto, quero dizer mais uma coisa -
continuou Gigi. - As pessoas costumavam vir procurar Momo para que
ela as ouvisse. Assim, encontravam a si mesmas, se é que você s me
entendem. Mas agora já nã o querem saber disso. As pessoas també m
gostavam de vir escutar minhas histó rias, que as faziam se esquecer de
si mesmas. També m nã o me procuram mais. Todos dizem que nã o tê m
mais tempo para isso. E també m nã o tê m mais tempo para você s. Dá
para perceber? E impressionante notar para que eles nã o tê m mais
tempo.
Gigi apertou os olhos e fez um gesto com a mã o.
- Um dia destes encontrei na cidade um velho amigo, um barbeiro
chamado Fusi.
Fazia algum tempo que eu nã o o via, e quase nã o o reconheci, pois
estava muito mudado: nervoso, irritado, infeliz. Antigamente ele era um
sujeito simpá tico, que cantava muito bem e, sobretudo, tinha opiniõ es
muito interessantes Agora, de repente, nã o tem mais tempo para nada.
Deixou de ser o sr. Fusi, barbeiro, e virou um fantasma de si mesmo,
você s me entendem? Se ele fosse o ú nico, eu diria que icou meio louco,
mas para onde olhamos damos com pessoas assim. E cada dia
aparecem mais e mais. Agora até alguns dos nossos velhos amigos estã o
começando a icar desse jeito! As vezes me pergunto se existem
loucuras que sã o contagiosas.
O velho Beppo concordou:
- Tem razã o, eleve ser algum tipo de contá gio
- Se é assim, precisamos socorrer nossos amigos! - disse Momo,
apavorada.
Naquela noite ainda passaram muito tempo juntos, conversando
sobre o que poderiam fazer. Mas nã o sabiam da existê ncia dos homens
cinzentos e de sua atividade inesgotá vel.
No decorrer dos dias seguintes, Momo foi procurar os velhos amigos,
para perguntar o que tinha acontecido e por que nã o iam mais visitá -la.
Primeiro foi procurar Nicola, o pedreiro. Ela conhecia a casa onde ele
morava, num quartinho do só tã o. Mas Nicola nã o estava. Os outros
moradores da casa só sabiam que ele estava trabalhando no novo
bairro residencial, do outro lado da cidade, e que estava ganhando
muito dinheiro. Voltava para casa muito raramente e, quando voltava,
era sempre muito tarde. També m estava sempre meio bê bado, e era
difı́cil conviver com ele.
Momo resolveu esperar por Nicola e sentou-se na escada, diante da
porta do quarto dele. Aos poucos foi escurecendo e ela adormeceu.
Devia ser tarde da noite quando a menina acordou com o barulho de
passos cambaleantes e uma voz rouca que cantava. Era Nicola, que
vinha tropeçando pela escada . Ao ver a menina, parou, espantado.
- Oi, Momo! - resmungou, evidentemente embaraçado por ser visto
pela menina naquele estado. - Entã o você ainda existe? O que está
procurando aqui?
- Você - respondeu Momo, timidamente.
- Ora, você tem cada uma! - disse Nicola, balançando a cabeça, com
um sorriso. -
Imagine só , vir aqui no meio da noite para visitar seu velho amigo
Nicola! Sabe que há muito tempo estou querendo visitá -la, mas hoje em
dia nã o tenho mais tempo para assuntos... particulares.
Fez um gesto vago e sentou-se pesadamente na escada, ao lado de
Momo.
- Você nem imagina o que virou minha vida, menina! As coisas nã o
sã o mais como antes. Os tempos mudaram. Lá onde estou trabalhando
agora, o ritmo é outro. E um inferno. Cada dia construı́mos um andar
inteiro, e é um atrá s cio outro. E muito diferente de antigamente. Eles já
tê m tudo planejado, cada gesto, entende? Tudo está previsto até nos
menores detalhes...
Ele continuou falando, e Momo ouvia com atençã o. A medida que ela
ia ouvindo, a voz de Nicola ia perdendo o entusiasmo. De repente ele
parou e passou a mã o cheia de calos pela testa.
- Tudo isso é um monte de bobagem - disse ele, com tristeza. - Sabe,
Momo, mais uma vez, eu bebi um pouco demais. Reconheço.
Ultimamente, muitas vezes passo da conta. E o ú nico jeito de aguentar o
que estamos fazendo lá . Quero dizer, vai contra a consciê ncia de um
pedreiro honesto. Por exemplo, muita areia no cimento, entende? Vai
durar uns quatro ou cinco anos e, entã o, bastará algué m dar uma
tossida para tudo desmoronar. Serviço ordiná rio, enganaçã o! E isso
ainda nã o é o pior. Pior é o tipo de casa que estamos construindo. Nã o
sã o casas, sã o... sã o depó sitos de almas! E de virar o estô mago! Mas,
a inal, o que eu tenho a ver com isso? Estou ganhando meu dinheiro, e
pronto! Pois é , os tempos mudaram. Antigamente era diferente, eu tinha
orgulho do meu trabalho, quando construı́amos coisas decentes. Mas
agora... Algum dia, depois que eu tiver ganho o su iciente, vou largar
essa pro issã o e fazer alguma outra coisa.
Ele deixou a cabeça pender para o lado e icou olhando o vazio.
Momo nã o dizia nada, apenas o ouvia.
Dali a pouco Nicola continuou, baixinho:
- Talvez eu devesse, mesmo, voltar a visitá -la e lhe contar tudo. Que
tal amanhã ? Ou entã o depois de amanhã ? Preciso ver quando é que vai
dar. Mas vou sem falta. Entã o, está combinado?
- Combinado - respondeu Momo, alegre.
E os dois se despediram, pois estavam muito cansados. Poré m Nicola
nã o apareceu no dia seguinte, nem no outro dia. Nã o apareceu mais.
Talvez estivesse, mesmo, sem tempo.
Depois Momo foi procurar Nino, o dono do bar, e sua mulher
gorducha. A casinha velha, com as paredes manchadas pela chuva e
uma videira na porta, icava nos limites da cidade. Como fazia
antigamente, Momo deu a volta para entrar pela porta da cozinha. A
porta estava aberta e muito antes de chegar Momo já ouviu que Nino e
Liliana estavam tendo um violento bate-boca. Liliana batia as panelas
no fogã o, seu rosto gorducho reluzia de suor. Nino gritava com ela e
gesticulava. Sentado no berço, a um canto, o bebê berrava.
Momo esgueirou-se silenciosamente até o bebê , pegou-o no colo e o
acalentou, até ele parar de gritar. Marido e mulher interromperam o
bate-boca e olharam para o ilho.
- Ah, Momo, é você ? - disse Nino, com um breve sorriso. - Que prazer
vê -la de novo.
- Quer comer alguma coisa? - perguntou Liliana, meio brusca.
Momo balançou negativamente a cabeça.
- Entã o o que você quer? - indagou Nino, irritado. - Agora nã o temos
tempo para atendê -la.
- Só vim perguntar por que faz tanto tempo que você s nã o vã o me
visitar - disse ela, baixinho.
- Ora, eu també m nã o sei - respondeu Nino, ainda mais irritado. -
Agora temos outras coisas para nos preocupar, sabe?
- E isso - gritou Liliana, sempre batendo as panelas -, ele tem mesmo
outras coisas para se preocupar... como por exemplo despachar os
antigos fregueses, tã o queridos... agora ele só pensa nisso! Lembra-se,
Momo, daqueles velhos que costumavam se sentar à mesa do canto?
Pois Nino mandou-os embora, expulsou-os!
- Nã o foi bem assim - protestou Nino. - Só pedi, com toda a gentileza,
que eles procurassem outro bar. Como dono, tenho o direito de fazer
isso.
- Ora, direito, direito! - exclamou Liliana, exasperada. Uma coisa
dessas simplesmente nã o se faz. E desumano e injusto. Você sabe muito
bem que eles nã o vã o encontrar outro bar. E aqui nã o incomodavam
ningué m.
- Claro que nã o incomodavam ningué m! - gritou Nino. Porque os
fregueses decentes, pagantes, nunca vinham aqui quando aqueles
velhos barbudos estavam amontoados lá no canto. Você acha que as
pessoas gostam disso? E eles só podiam consumir um copo de vinho
barato por noite, o que nã o dava lucro nenhum. Desse jeito nunca ı́amos
conseguir nada.
- Até agora nó s nos arranjamos muito bem - retrucou Liliana.
- Até agora, sim! - continuou Nino, com veemê ncia. - Mas você sabe
perfeitamente que nã o vai continuar sendo sempre assim. O aluguel
aumentou. Tenho que pagar um terço a mais do que antes. Os preços de
tudo estã o subindo. Onde é que eu vou arranjar dinheiro, se
transformar meu bar num asilo de velhos miserá veis? Por que é que eu
sou obrigado a cuidar dos outros? De mim ningué m cuida!
A gorda Liliana bateu uma frigideira no fogã o com tanta força que ela
até rachou.
- Vou lhe dizer uma coisa - ela gritou, com as mã os na cintura -, entre
esses velhos miserá veis, como você diz, está meu tio Ettore, e nã o vou
admitir que você ofenda minha famı́lia. Meu tio é um homem bom e
honesto, mesmo nã o tendo tanto dinheiro quanto esses seus fregueses
pagantes!
- Mas o Ettore pode continuar vindo - respondeu Nino, com um gesto
magnâ nimo -
Eu já disse que ele pode vir se quiser, mas ele nã o quer
- Claro que nã o quer, sem seus velhos amigos! O que você está
pensando? Acha que ele vai icar ali sozinho, encolhido no canto?
- Entã o nã o posso fazer mais nada! - berrou Nino. - O fato é que nã o
quero passar o resto da minha vida como dono de uma espelunca, só
para satisfazer ao seu tio Ettore. També m quero melhorar de vida! Por
acaso isso é crime? Quero arrumar este estabelecimento, quero que
seja um lugar concorrido. E nã o é só por mim, també m é por você e por
nossa ilha. Será que você nã o entende, Liliana?
- Nã o, nã o entendo - retrucou Liliana, com irmeza. - Se for para nã o
ter coraçã o, se já está começando assim, entã o nã o conte comigo. Um
belo dia eu me canso e vou embora. Você é quem sabe!
Ela foi até Momo, pegou a criança, que tinha voltado a chorar, e
correu para fora da cozinha.
Durante algum tempo Nino nã o disse nada. Acendeu um cigarro e
começou a enrolá -lo nos dedos.
Momo olhava para ele.
- E - disse Nino, inalmente - Sei que eles eram bons sujeitos. Até
gostava deles. Sabe, Momo, eu sinto muito, mesmo .. mas o que posso?
Os tempos mudaram.
Apó s outro silê ncio, ele tornou a falar:
- A inal, talvez Liliana tenha razã o. Desde que aqueles velhos
deixaram de aparecer, o bar me parece estranho, meio frio, entende? Eu
mesmo já nã o me sinto bem. Sinceramente, nã o sei o que fazer. Mas
hoje em dia todos agem assim. Por que eu haveria de ser o ú nico a agir
diferente? Ou você acha que eu deveria?
Com um movimento quase imperceptı́vel, Momo balançou a cabeça
a irmativamente.
Nino olhou para ela e també m meneou a cabeça. Depois, os dois
sorriram.
- Foi bom você ter vindo - disse Nino. - Eu tinha esquecido
completamente que antes, numa ocasiã o como esta, nó s costumá vamos
dizer: "Ora, vá falar com Momo!" Mas agora vou voltar a visitar você e
vou levar Liliana. Depois de amanhã é nosso dia de folga e vamos até lá
Combinado?
- Combinado - respondeu Momo.
Entã o Nino deu-lhe um saco cheio de laranjas e maçã s, e Momo
voltou para casa.
No dia combinado Nino e sua mulher foram, de fato, visitar Momo,
levando o bebê e uma cesta cheia de coisas gostosas.
- Imagine só , Momo - disse Liliana, radiante -, Nino foi procurar tio
Ettore e os outros velhos, um por um. Desculpou-se e pediu que
voltassem.
- E - continuou Nino, com um sorriso, cocando a orelha. - Todos
voltaram. Com isso, as mudanças no meu bar nã o vã o dar em nada. Mas
estou gostando dele de novo.
Ele riu, e sua mulher disse:
- Vamos conseguir tocar nossa vida, Nino.
Foi uma tarde maravilhosa. Finalmente, eles foram embora,
prometendo voltar em breve.
Assim, Momo foi procurar todos os seus velhos amigos, um por um.
Procurou o carpinteiro que tinha feito a mesinha e as cadeiras para ela.
Procurou as mulheres que lhe deram a cama. En im, procurou todos
aqueles a quem tinha ouvido e que, graças a ela, tinham se tornado mais
sensatos, mais con iantes ou mais felizes. Todos eles prometeram voltar
de novo. Alguns nã o cumpriram a promessa, ou nã o puderam cumprir
porque nã o tinham tempo. Entretanto, muitos voltaram, e tudo icou
sendo quase como era antes.
Sem querer, Momo tinha atrapalhado os planos dos homens
cinzentos, e isso eles nã o podiam tolerar.
Pouco tempo depois, numa manhã muito quente, Momo encontrou
uma boneca nos degraus de pedra do antigo an iteatro.
Muitas vezes já tinha acontecido as crianças esquecerem ou
simplesmente largarem ali um daqueles brinquedos caros com os quais
nã o dava para brincar direito. Mas Momo nã o se lembrava de ter visto
alguma criança com aquela boneca; e certamente teria reparado, pois
era uma boneca meio fora do comum. Era quase do tamanho da pró pria
Momo e tã o bem-feita que quase poderia ser confundida com um
pequeno ser humano. Mas nã o parecia uma criança ou um bebê , era
como uma moça elegante ou um manequim de vitrine. Usava um
vestido curto, vermelho, e sapatos de salto alto.
Momo icou olhando para ela, fascinada. Depois estendeu a mã o e
pegou a boneca, que, imediatamente, piscou os olhos, moveu os lá bios e
disse com uma voz meio fanhosa, como voz de telefone:
- Bom dia. Eu sou Bibigirl, a boneca perfeita.
Momo recuou, assustada, poré m respondeu automaticamente:
- Bom dia. Meu nome é Momo.
A boneca moveu novamente os lá bios, dizendo:
- Eu sou sua. Todo o mundo tem inveja de mim e de você .
- Acho que você nã o é minha, nã o - retrucou Momo. Acho que algué m
esqueceu você aqui.
A menina levantou a boneca, que voltou a mover os lá bios e disse:
- Eu gostaria de ter mais coisas.
- Ah, é ? - respondeu Momo, e re letiu um momento. Nã o sei se tenho
alguma coisa que sirva para você . Mas espere um instante. Vou lhe
mostrar minhas coisas e você poderá dizer se gosta de alguma delas.
Carregando a boneca, passou pelo buraco no muro que dava para o
seu quarto. De baixo da cama, puxou uma caixa cheia cie tesouros e
abriu-a diante da Bibigirl.
- Aqui está , isso é tudo o que eu tenho. Se você gostar de alguma
coisa, é só dizer.
E ela mostrou para a boneca uma pena de pá ssaro multicolorida,
uma pedrinha com bonitos veios, um botã o dourado, um pedacinho de
vidro colorido. Como a boneca nã o respondeu, Momo a cutucou.
- Bom dia - grasnou a boneca. - Eu sou Bibigirl, a boneca perfeita.
- Já sei - respondeu Momo. - Mas, Bibigirl, você disse que queria
escolher uma coisa. Olhe, eu tenho uma linda concha cor-de-rosa. Você
gosta?
- Eu sou sua. Todo o mundo tem inveja de mim e de você .
- Eu sei, você já disse - falou Momo. - Se você nã o gosta de nenhuma
das minhas coisas, nó s podemos brincar. Vamos?
- Eu gostaria de ter mais coisas - repetiu a boneca.
- Nã o tenho nada mais - respondeu Momo.
A menina carregou novamente a boneca e escalou a abertura no
muro. Lá fora, colocou Bibigirl no chã o e sentou-se na frente dela.
- Vamos brincar. Faz de conta que você veio me visitar - sugeriu
Momo.
- Bom dia. Eu sou Bibigirl, a boneca perfeita.
- Que prazer em receber sua visita. De onde a senhora veio, madame?
- falou Momo.
- Eu sou sua. Todo o mundo tem inveja de mim e de você .
- Tudo bem, mas escute: se você continuar repetindo as mesmas
coisas, nã o vamos poder brincar.
- Eu gostaria de ter mais coisas - continuou a boneca, piscando os
olhos.
Momo tentou outra brincadeira. Vendo que també m nã o dava certo,
experimentou outra e mais outra e mais outra. Mas nada dava certo. Se
pelo menos a boneca nã o falasse nada, Momo poderia responder por
ela, e a conversa seria ó tima. Poré m, pelo pró prio fato de falar, Bibigirl
impedia qualquer conversa.
Dali a pouco Momo começou a ter uma sensaçã o que nunca tivera
antes. Como era novidade, levou algum tempo para ela perceber que se
tratava de té dio.
Momo estava se sentindo perdida. Tinha vontade de simplesmente
deixar a boneca perfeita de lado e ir brincar com outra coisa. Mas, por
alguma razã o, nã o conseguia se afastar dela.
Entã o Momo icou ali sentada, itando a boneca, que a olhava
ixamente com seus olhos de vidro azul. Era como se uma tivesse
hipnotizado a outra.
Por im, Momo conseguiu desviar seu olhar da boneca e icou meio
assustada. Bem perto dali, estava um elegante automó vel cinzento, que
chegara sem ela perceber.
Dentro do carro estava sentado um homem, de terno cinza-teia de
aranha e chapé u-coco cinzento. Estava fumando um pequeno charuto
cinzento. Seu rosto també m parecia cinza cinzenta.
O homem já devia estar observando Momo havia algum tempo, pois
cumprimentou-a inclinando a cabeça, sorridente. E, embora o dia
estivesse tã o quente que o ar parecia tremular, de repente Momo
começou a tremer de frio.
O homem abriu a porta do carro, desceu e foi ao encontro da menina,
carregando uma pasta cinza-chumbo.
- Que linda boneca você tem! - disse ele, com uma voz estranha e sem
entonaçã o.
- Com certeza todos os seus companheiros tê m inveja de você .
Momo sacudiu os ombros sem responder.
- Deve ter custado caro, nã o é ? - continuou o homem cinzento.
- Nã o sei - murmurou Momo, meio sem jeito. - Eu a achei aqui.
- Nã o me diga! - exclamou o homem. - Entã o parece que você foi
mesmo favorecida pela sorte!
Momo nã o disse nada, enrolou-se mais em seu paletó imenso, pois o
frio aumentava.
Com um sorriso apertado, o homem continuou:
- Mas você nã o me dá a impressã o de estar muito feliz, menina.
Momo sacudiu a cabeça. De repente era como se toda a felicidade
tivesse desaparecido do mundo para sempre, ou melhor, como se nunca
tivesse existido. E como se tudo aquilo que ela julgava ser felicidade
fosse apenas fruto da imaginaçã o. Ao mesmo tempo, sentia como que
um sinal de alerta.
- Eu a estive observando durante algum tempo - continuou o homem
cinzento -, e parece-me que você nã o faz ideia de como brincar com
uma boneca tã o maravilhosa. Quer que eu lhe mostre como se faz?
Momo olhou para o homem, espantada, e balançou a cabeça
a irmativamente.
- Eu gostaria de ter mais coisas - grasnou a boneca, de repente.
- Está ouvindo, menina? - prosseguiu o homem. - Ela mesma até lhe
ensina. E claro que nã o se pode brincar com uma boneca tã o
maravilhosa do mesmo jeito que se brinca com qualquer outra. Ela nã o
foi feita para isso. E preciso lhe oferecer sempre alguma coisa, para
brincar sem se aborrecer. Veja só , menina.
Ele abriu o porta-malas do carro:
- Primeiro, ela precisa de muitos vestidos. Aqui está , por exemplo,
um lindo vestido de noite.
O homem pegou o vestido e o jogou para Momo.
- E aqui um casaco de pele de marta autê ntica. E aqui uma camisola
de seda. E aqui uma roupa de tê nis. E um conjunto para esquiar. E um
maiô de banho. E uma roupa de montaria. E um pijama. E um penhoar.
E outro vestido. E outro. E outro. E mais outro...
Ia jogando uma coisa atrá s da outra, formando uma pilha cada
vez mais alta entre Momo e a boneca.
- Entã o - e ele tornou a esboçar aquele sorriso super icial -, com tudo
isso vai dar para você brincar durante algum tempo, nã o é ? Mas, depois
de alguns dias, vai acabar icando sem graça, você nã o acha? Muito bem,
nesse caso o que você tem a fazer é arranjar mais coisas para a sua
boneca.
Tornou a se debruçar sobre o porta-malas do carro e recomeçou a
jogar coisas para Momo.
- Aqui, por exemplo, está uma bolsinha de couro de cobra autê ntico,
e dentro um batonzinho de verdade e um estojinho de pó -de-arroz.
Aqui uma maquininha fotográ ica. Aqui uma raquete de tê nis. Aqui uma
televisã ozinha cie boneca que funciona de verdade. Aqui uma pulseira,
um colar, brincos, um revó lver de boneca, meias de seda, um
chapeuzinho de plumas, um chapé u de palha, um conjunto para jogar
golfe, um talã ozinho de cheques, um vidrinho de perfume, sais de
banho, loçõ es para o corpo...
Ele fez uma pausa e lançou um olhar inquisidor para Momo, que
estava sentada no chã o, no meio cie todos aqueles objetos, como que
paralisada.
- Está vendo? E muito simples. E só você ir arranjando sempre mais
coisas, e assim nunca icará entediada. Mas talvez você pense que um
dia Bibigirl, a boneca perfeita, terá tudo, e entã o virá o té dio. Nã o,
menina, nã o se preocupe. Veja só , temos um companheiro perfeito para
Bibigirl.
Dizendo isso, ele tirou um boneco do porta-malas. Era do mesmo
tamanho cie Bibigirl, perfeito como ela, e tinha a aparê ncia de um
rapaz. O homem cinzento colocou-o ao lado de Bibigirl, a boneca
perfeita, e explicou:
p p
- Este é Bubiboy. També m para ele existe uma quantidade enorme cie
coisas. E, quando tudo isso també m icar sem graça, temos uma amiga
para Bibigirl, com roupas que só servem para ela. E Bubiboy també m
tem um amigo, e esse amigo tem outros amigos. Como você vê , nã o
haverá mais lugar para té dio, pois isso tudo poderá
continuar inde inidamente e sempre restará alguma coisa para ser
desejada.
Enquanto falava, ele ia tirando uma boneca atrá s da outra do porta-
malas, parecia inesgotá vel, colocando-as em torno de Momo. A menina
continuava sentada, sem se mexer, olhando para ele com uma expressã o
quase de pavor.
- Entã o? - indagou o homem, soltando baforadas do charuto. -
Entendeu agora como é que se brinca com essas bonecas?
- Entendi - retrucou Momo, que estava tremendo de frio.
O homem cinzento acenou, satisfeito, e soltou outra baforada.
- Naturalmente, você gostaria de icar com todas essas coisas lindas,
nã o é ?
Pois bem, vou lhe dar isso tudo de presente! Nã o tudo de uma vez, é
claro, mas aos poucos... e vou lhe dar muito, muito mais ainda. Você nã o
precisa fazer nada em troca. A ú nica coisa é brincar do jeito que eu
ensinei. Que tal?
O homem cinzento sorria para Momo, esperando a resposta. A
menina continuava em silê ncio, encarando-o muito sé ria. Entã o ele
acrescentou, depressa:
- Agora você nã o precisa mais dos seus amigos, entende? Já que
todas essas coisas lindas sã o suas, e você ainda vai ganhar mais, vai ter
muito com o que se divertir, nã o é ? E é isso que você quer, nã o é ? Você
quer mesmo essa boneca maravilhosa, nã o é verdade?
Momo sentia vagamente que tinha uma luta pela frente, ou melhor,
que já estava em pleno campo de batalha. Mas nã o sabia por que e
contra quem se travava essa batalha. Quanto mais ouvia o visitante,
mais ia tendo a mesma sensaçã o que tivera antes, com a boneca: ouvia
uma voz, ouvia as palavras, mas nã o ouvia a pessoa que estava falando.
Sacudiu a cabeça, recusando.
- O quê ? - disse o homem cinzento, erguendo as sobrancelhas. -
Ainda nã o está satisfeita? Você s, crianças de hoje. sã o mesmo difı́ceis...
Quer fazer o favor de me dizer o que ainda está faltando nesta boneca
perfeita?
Momo olhou para o chã o, re letindo. Depois disse baixinho:
- Acho que nã o dá para ter amor por ela.
O homem icou algum tempo sem responder. Fitava o espaço como se
seus olhos fossem de vidro, como os da boneca. Por im, ele se
recompô s.
- Isso nã o tem importâ ncia - disse, num tom gelado.
Momo encarou-o de frente. O homem a assustava, principalmente
por causa do frio que brotava de seus olhos. Entretanto, també m sentia
pena dele, embora nã o soubesse explicar por que.
- Mas eu tenho amor pelos meus amigos - ela retrucou.
O homem cinzento contraiu o rosto, como se tivesse um acesso de
dor de dente.
Mas logo se controlou e deu um sorriso mordaz.
- Menina - disse ele, com voz mansa -, acho que precisamos ter uma
conversa sé ria, para você aprender como sã o as coisas.
Tirou do bolso um caderninho cinzento e foi virando as pá ginas, até
encontrar o que procurava.
- Seu nome é Momo, nã o é ?
Momo con irmou, balançando a cabeça.
O homem fechou o caderninho com um estalo, voltou a guardá -lo e
foi se abaixando, com certa di iculdade, até se .sentar no chã o, ao lado
cie Momo.
Ficou algum tempo sem dizer nada, só soltando baforadas do
charuto, com ar pensativo.
- Vamos lá , ouça com atençã o - começou ele, inalmente. Era isso que
Momo estava tentando fazer, o tempo todo.
Mas aquele homem era muito mais difı́cil de ouvir do que as pessoas
que ela ouvira até entã o. Em geral, ela tinha a impressã o de conseguir
penetrar e compreender o que as pessoas pensavam e como realmente
eram. Mas com aquele visitante simplesmente nã o clava. Sempre que
q p p q
tentava, Momo tinha a impressã o de entrar no escuro e no vazio, como
se dentro dele nã o houvesse ningué m. Aquilo nunca acontecera com
ela.
- A ú nica coisa que importa na vida é o sucesso - continuou o homem
-, é ser algué m, é ter posses. Para quem tem sucesso, para quem
consegue ser e ter mais do que os outros, o resto vem
automaticamente: amizade, amor, honra e assim por diante. Ora, você
me diz que tem amor pelos seus amigos. Vamos examinar as coisas
objetivamente.
O homem cinzento soprou no ar algumas argolas de fumaça. Momo
en iou os pé s por baixo da saia, agasalhando-se o melhor possı́vel
dentro do paletó .
- A primeira questã o que surge - ele continuou - é a seguinte: o que
seus amigos ganham, na verdade, pelo fato de você gostar deles? Você é
ú til a eles? Nã o.
Você os ajuda a ter sucesso, a ganhar mais dinheiro ou a subir na
vida? Claro que nã o. Você os auxilia em seus esforços para poupar
tempo? Pelo contrá rio.
Você os prejudica em tudo, você é como uma pedra amarrada nos pé s
deles, você impede sua prosperidade! Talvez até agora nã o tenha
percebido isso, Momo, mas você prejudica seus amigos pelo simples
fato de existir. Na verdade, sem querer é inimiga deles. E isso que você
chama ter amor por algué m?
Momo nã o sabia o que responder. Nunca tinha enxergado as coisas
sob aquele aspecto. Teve até um momento de incerteza: talvez o homem
cinzento tivesse razã o.
- Por isso - continuou o homem cinzento - precisamos proteger seus
amigos contra você . E, se gostar realmente deles, você vai nos ajudar.
Queremos que eles tenham sucesso. Somos os verdadeiros amigos
deles. Nã o podemos icar quietos, olhando, enquanto você os afasta de
tudo aquilo que importa. Queremos cuidar para que você os deixe
sossegados. Por isso estamos lhe dando de presente todas essas coisas
lindas.
- Quem é nó s? - perguntou Momo, com os lá bios trê mulos.
- Nó s, da Caixa Econô mica de Tempo. Sou o agente BLW/553/c.
Pessoalmente, só quero o seu bem, pois a Caixa Econô mica de Tempo
nã o brinca em serviço.
Nesse momento, Momo lembrou-se do que Beppo e Gigi tinham dito
sobre economia de tempo e contá gio. De repente percebeu, apavorada,
que aquele homem cinzento tinha alguma coisa a ver com isso. Desejou
ardentemente que seus dois amigos estivessem ali, a seu lado. Nunca se
sentira tã o sozinha. Apesar disso, resolveu nã o se deixar amedrontar.
Juntou toda a sua força e a sua coragem e mergulhou de cabeça na
escuridã o e no vazio por trá s dos quais o homem cinzento se escondia.
O homem observava Momo com o rabo dos olhos. Nã o lhe passou
despercebida a mudança de expressã o da menina. Sorriu ironicamente,
acendendo um novo charuto no toco do outro.
- Nã o se dê ao trabalho - disse ele -, você nã o vai conseguir resistir
contra nó s.
Momo nã o recuou.
- Entã o ningué m gosta de você ? - ela sussurrou.
O homem cinzento se encolheu e, de repente, pareceu retrair-se em
si mesmo. Com uma voz cinzenta, ele respondeu:
- Devo dizer que nunca encontrei ningué m como você , nunca mesmo.
E olhe que eu conheço muita gente. Se houvesse mais pessoas da sua
espé cie, logo serı́amos obrigados a fechar a Caixa Econô mica de Tempo
e a nos dissolver no vazio, pois do que irı́amos viver?
O agente se interrompeu. Fitava Momo e parecia estar lutando contra
alguma coisa que nã o podia entender e com a qual nã o sabia lidar. Seu
rosto tornou-se ainda mais cinzento.
Quando recomeçou a falar, foi como se o izesse contra a sua vontade,
como se as palavras saı́ssem sozinhas, sem que ele tivesse força para
impedir. Seu rosto se contorcia, cada vez mais, de horror por aquilo que
lhe estava acontecendo.
Entã o, inalmente, Momo pô de ouvir sua voz verdadeira.
- Precisamos continuar incó gnitos - ela ouviu, como se a voz viesse
de muito longe. - Ningué m pode saber que existimos, ningué m pode
descobrir o que estamos fazendo... Tomamos o cuidado de fazer com
que ningué m nunca se lembre de nó s... pois só poderemos prosseguir
nosso negó cio enquanto permanecermos desconhecidos.
E um negó cio difı́cil esse de extrair horas, minutos e segundos do
tempo da vida das pessoas... pois todo o tempo que poupam está
perdido para elas. Nó s usurpamos esse tempo... o armazenamos...
precisamos dele... temos fome dele.
Você s nã o sabem o que é seu tempo! Mas nó s sabemos e sugamos
você s até os ossos... e precisamos de mais... cada vez mais... porque
somos cada vez mais numerosos... cada vez mais... e mais...
O homem cinzento soltou essas ú ltimas palavras quase como um
estertor. Mas depois segurou a pró pria boca com as duas mã os. Seus
olhos saltavam das ó rbitas, ixos em Momo.
Apó s um momento, pareceu emergir de uma espé cie de transe.
- O que... aconteceu? - ele gaguejou. - Você icou me escutando! Estou
doente! Você me fez icar doente! Você !
Depois mudou para um tom suplicante:
- Eu disse uma porçã o de tolices, minha menina. Esqueça! Você
precisa se esquecer de mim, assim como todos os outros se esquecem
de nó s. Precisa! Precisa!
Ele agarrou Momo e começou a sacudi-la. A menina movia os lá bios
mas nã o conseguia dizer nada.
De repente, o homem cinzento se levantou de um salto, olhou para
trá s como se estivesse sendo perseguido, pegou sua pasta cinza-
chumbo e correu para o carro.
Aconteceu entã o algo muito estranho. Como uma explosã o ao
contrá rio, todas as bonecas e seus pertences, que estavam espalhados
por ali, voaram para dentro do porta-malas, que se fechou com um
estrondo. O carro partiu à toda, espirrando pedreguIhos para os lados.
Momo continuou sentada no mesmo lugar durante muito tempo,
tentando compreender o que acabara de ouvir. Pouco a pouco, foi
passando aquele frio horrı́vel nas juntas e tudo foi se tornando mais
claro. Ela nã o se esqueceu de nada, porque ouvira a voz de verdade de
um homem cinzento.
Uma leve espiral de fumaça subia da grama ressecada, a seus pé s. O
toco do charuto do visitante, que icara caı́do ali, foi se apagando e
virando cinza.
Capítulo Oito
MUITOS SONHOS E ALGUMAS IDEIAS
Momo estava agora numa sala enorme, a maior que já tinha visto na
vida. Era maior do que a mais imensa das igrejas ou a mais ampla das
estaçõ es de trem.
Grossas colunas sustentavam o teto, que lá no alto, no meio da
escuridã o, mais se adivinhava do que se via. Nã o havia janelas. A
claridade dourada e tê nue que cintilava na sala imensa provinha de
inú meras velas, dispostas por todos os lados, cujas chamas eram tã o
está ticas que pareciam ter sido pintadas em cores luminosas e nã o
precisar de cera para luzir.
Os milhares de sons de roncos, tique-taques, campainhas e rangidos
que Momo ouvira ao entrar provinham cie inú meros reló gios cie todos
os tamanhos e feitios. Uns estavam em pé ou deitados em longas mesas,
dentro de vitrines de vidro, em mı́sulas douradas ou sobre prateleiras
interminá veis.
Havia minú sculos reló gios de bolso ornados com pedras preciosas,
despertadores comuns de metal, ampulhetas, reló gios com caixinhas
cie mú sica e bonequinhas que dançavam, reló gios de sol, reló gios de
madeira e reló gios de pedra, reló gios de vidro e outros movidos a á gua.
Pendurados nas paredes havia reló gios-cuco de vá rios tipos, reló gios de
pesos, reló gios de pê ndulos grandes que oscilavam devagar e
solenemente, outros de pê ndulos pequenos que se moviam muito
depressa de um lado para outro. A altura de um primeiro andar, havia
uma galeria que rodeava toda a sala, e a ela se chegava por uma escada
em espiral. Mais acima, havia uma segunda galeria, e depois outra e
mais outra. Por todo lado viam-se reló gios em pé , deitados ou
pendurados. Havia també m reló gios em forma de esfera, que marcavam
as horas de todas as regiõ es do mundo, e planetá rios grandes e
pequenos, com Sol, Lua e estrelas. No centro da sala, erguia-se como
que uma loresta de reló gios de pé , desde os reló gios de salã o, de
tamanho comum, até verdadeiros reló gios de torres de igreja.
Nã o havia um só momento em que nã o se ouvisse algum reló gio
batendo ou tilintando, pois cada um deles marcava uma hora diferente.
No entanto, nã o era um barulho desagradá vel. Era um murmú rio
constante, que lembrava o ruı́do de uma loresta no verã o.
Momo passeava pela sala, observando com olhos arregalados
aquelas raridades.
Parou diante de um reló gio musical, ricamente trabalhado, no qual
havia duas delicadas igurinhas de mã os dadas, uma mulherzinha e um
homenzinho, como se fossem dançar A menina estava até pensando em
lhes dar um empurrã ozinho para ver se começavam a dançar, quando
ouviu uma voz amá vel dizer:
- Ah! Entã o você está de volta, Cassiopé ia! E trouxe a pequena
Momo?
A menina se virou e viu, num dos corredores entre os reló gios de pé ,
um elegante senhor de cabelos prateados, agachado para olhar para a
tartaruga, que estava no chã o a seus pé s. O homem usava um casaco
comprido bordado de dourado, calçõ es de seda azul, meias brancas e
sapatos com grandes ivelas douradas. Pela gola e pelos punhos do
casaco apareciam rendas, e os cabelos prateados eram presos na nuca,
formando um rabicho. Momo nunca tinha visto trajes como aqueles,
mas algué m menos ignorante do que ela reconheceria imediatamente a
moda de duzentos anos atrá s.
- O que você disse? - perguntou o velho senhor, sempre agachado
perto da tartaruga. - Ela veio? E onde ela está ?
Ele colocou uns ó culos pequeninos, parecidos com os do velho
Beppo, só que eram de ouro, e começou a procurar à sua volta.
- Estou aqui! - gritou Momo.
Com um sorriso alegre e as mã os estendidas, o velho senhor foi ao
encontro dela.
Momo teve a impressã o de que, a cada passo que dava, ele se tornava
mais jovem.
Quando a inal se encontraram e ele apertou-lhe as duas mã os
cordialmente, parecia nã o ser mais velho do que a pró pria menina.
- Bem-vinda! - exclamou alegremente. - Afetuosas boas vindas à Casa
de Lugar Nenhum. Peço licença, querida Momo, para me apresentar:
sou Mestre Hora, Secundus Minutius Hora.
- Estava mesmo me esperando? - perguntou Momo, admirada.
- Decerto, pois até mandei minha tartaruga Cassiopé ia especialmente
para buscar você !
Tirou do bolsinho do colete um pequeno reló gio cravejado de
brilhantes e fez saltar sua tampinha.
- Você até chegou com extraordiná ria pontualidade - disse ele,
sorrindo e mostrando o reló gio à menina.
Momo notou que nã o havia ponteiros nem nú meros, apenas duas
espirais muito inas, colocadas uma sobre a outra, em sentidos opostos,
que se moviam muito devagar. No lugar em que as linhas se cruzavam,
apareciam de quando em quando minú sculos pontos luminosos.
- Este é um reló gio estelar. Ele marca ielmente as raras horas
estelares, e exatamente agora começou uma delas.
- O que é uma hora estelar? - perguntou Momo.
- Bem - explicou Mestre Hora -, no correr do mundo há momentos
especiais em que todos os seres e coisas, até a estrela mais distante,
conjugam-se de um modo singular, podendo entã o ocorrer alguma
coisa que, antes ou depois, seria impossı́vel. Infelizmente, em geral as
pessoas nã o sabem aproveitá -las, e as horas estelares acabam passando
despercebidas. Mas, quando algué m as reconhece, grandes coisas
acontecem entã o no mundo.
- Talvez seja preciso ter um reló gio como o seu para reconhecê -las -
observou Momo.
Mestre Hora sacudiu a cabeça negativamente e sorriu:
- O reló gio por si só nã o adiantaria a ningué m. E preciso saber lê -lo.
Com um rá pido estalo fechou de novo o reloginho e colocou-o no
bolso do colete.
Depois, notando o olhar de espanto de Momo diante de sua
aparê ncia, olhou para baixo examinando a si mesmo, franziu a testa e
disse:
- Ah! Acho que estou meio atrasado quanto à moda! Que descuido, o
meu! Vou já corrigir isso!
Estalou os dedos e imediatamente apareceu de sobrecasaca e
colarinho duro.
- Estou melhor assim? - perguntou, na dú vida. Vendo, poré m, a
expressã o perplexa da menina, acrescentou rapidamente:
- Nã o, claro que nã o! Onde estou com a cabeça? Estalou de novo os
dedos e surgiu com uma roupa que nem Momo nem ningué m jamais
poderia ter visto, pois só estaria em moda cem anos depois.
- També m nã o? - disse ele, consultando Momo. - Ora, por Orion, está
difı́cil acertar! Espere, vou tentar de novo.
Estalou os dedos pela terceira vez e, inalmente, apareceu diante da
menina com um traje de passeio como os que se usavam comumente.
- Assim está bem, nã o é ? - perguntou ele, dando uma piscadela. -
Espero nã o ter assustado você , Momo. Foi só uma brincadeira. Agora,
querida menina, está na hora de convidá -la para vir até a mesa. O café
da manhã está pronto. Você fez uma longa viagem e espero que aprecie
a refeiçã o.
Tomou-a pela mã o e a conduziu atravé s da loresta de reló gios. A
tartaruga ia um pouco atrá s deles. O caminho que seguiam fazia voltas e
mais voltas, como um labirinto de jardim, desembocando inalmente
numa salinha cujas paredes eram formadas pela parte de trá s de
algumas das imensas caixas dos reló gios. A um canto, viam-se uma
mesinha de pernas recurvadas e um elegante sofá com poltronas
combinando. També m ali tudo era iluminado pelas velas com as chamas
está ticas.
Sobre a mesinha havia um bule dourado bojudo, duas xicrinhas com
os respectivos pires, colherinhas e facas, tudo de ouro maciço. Numa
cestinha havia pã ezinhos dourados e crocantes; numa vasilhinha,
manteiga amarelo-ouro; em outra, mel que parecia ouro lı́quido. Mestre
Hora pegou o bule bojudo e verteu chocolate quente nas duas xı́caras,
oferecendo com um gesto amá vel:
- Por favor, minha querida hó spede, sirva-se à vontade! Momo nã o
esperou novo convite. Até entã o, nem sabia que existia chocolate de
beber. Pã ezinhos com manteiga e mel eram uma raridade em sua vida. E
aqueles estavam especialmente deliciosos!
Assim, no começo icou inteiramente entretida com a maravilhosa
refeiçã o, saboreando-a de boca cheia, sem pensar em mais nada.
Surpreendentemente, enquanto ela comia, todo o seu cansaço ia
desaparecendo, sentia-se disposta e revigorada, embora nã o tivesse
dormido um só instante durante toda a noite.
Quanto mais comia, mais achava tudo saboroso! Tinha a impressã o
de que seria capaz de passar o dia inteiro comendo.
Mestre Hora olhava-a amavelmente, tendo a delicadeza de, no inı́cio,
nã o a importunar com conversa. Compreendia que sua pequena
hó spede tinha de saciar a fome de muitos anos. Talvez por essa razã o, à
medida que a observava ele ia envelhecendo novamente, até se tornar
outra vez um homem de cabelos brancos. Ao perceber que Momo nã o
sabia manejar bem a faca, foi passando manteiga e mel nos pã ezinhos e
colocando-os diante da menina Ele mesmo comia muito pouco, só para
lhe fazer companhia.
Finalmente, Momo icou satisfeita. Bebendo o chocolate, lançou, por
cima da xı́cara dourada, um olhar curioso para seu an itriã o, tentando
adivinhar quem era ele. Percebia, é claro, que nã o se tratava de uma
pessoa comum, mas até agora nada sabia a seu respeito, a nã o ser seu
nome.
- Por que você mandou a tartaruga me buscar? - perguntou ela,
pousando a xı́cara.
- Para protegê -la dos homens cinzentos - respondeu Mestre Hora,
com toda a seriedade. - Estã o todos à sua procura, por toda parte, e o
ú nico lugar onde você está segura é aqui comigo
- Eles querem me fazer algum mal? - perguntou a menina, assustada.
- Querem, sim, minha menina! - suspirou Mestre Hora. Com certeza!
- Por quê ?
- Tê m medo de você - explicou Mestre Hora -, pois você lhes causou o
que há de pior para eles.
- Mas eu nã o iz nada contra eles! - retrucou Momo.
- Fez, sim! Você levou um deles a se trair. Depois contou tudo a seus
amigos Você s até quiseram dizer a todo o inundo a verdade sobre os
homens cinzentos.
Nã o acha que é o su iciente para torná -los seus inimigos mortais?
- Mas a tartaruga e eu atravessamos todo o centro da minha cidade -
respondeu Momo. - Se estã o me procurando por toda parte, teria sido
fá cil me pegarem. Alé m do mais, andamos sempre muito devagar.
Mestre Hora pegou a tartaruga, que se acomodara a seus pé s,
colocou-a no colo e lhe fez có cegas no pescoço.
- O que você acha, Cassiopé ia? - ele perguntou, sorrindo. - Eles
poderiam ter pego você s?
Na carapaça da tartaruga apareceu a palavra "NUNCA", e as letras
cintilavam tã o alegremente que até se tinha a impressã o de ouvir um
risinho.
- Cassiopé ia consegue enxergar um pouco o futuro - explicou Mestre
Hora. - Nã o muito, mas ainda assim com uma antecedê ncia de mais ou
menos meia hora "EXATAMENTE", viu-se escrito nas suas costas.
- Desculpe - corrigiu-se Mestre Hora -, exatamente meia hora. Ela
sabe com certeza o que vai acontecer na pró xima meia hora. Sabia,
portanto, se ia encontrar os homens cinzentos ou nã o.
- Puxa - exclamou Momo, maravilhada -, mas isso é muito prá tico! Se
ela sabia de antemã o onde iria encontrar os homens cinzentos, entã o
era só tomar outro caminho?
- Nã o - respondeu Mestre Hora -, infelizmente nã o é tã o simples
assim. O fato de saber as coisas com antecedê ncia nã o quer dizer que
possa mudá -las. Ela só ica sabendo o que vai realmente acontecer.
Assim, ao saber que encontraria os homens cinzentos aqui ou ali, nã o
poderia deixar de encontrá -los. Nã o poderia fazer nada para evitar.
- Nã o estou entendendo - disse Momo, desapontada. Entã o nã o
adianta nada saber as coisas com antecedê ncia.
- As vezes adianta - replicou Mestre Hora. - No seu caso, por exemplo,
a tartaruga sabia que passaria por este e aquele caminho e que nã o
encontraria os homens cinzentos. Já é alguma coisa, você nã o acha?
Momo icou calada. Seus pensamentos se emaranhavam como num
novelo.
- Mas, voltando a você e seus amigos - prosseguiu Mestre Hora -,
quero felicitá -la. Seus cartazes e faixas me impressionaram muito bem.
- Você os leu? - perguntou Momo, contente.
- Todos, palavra por palavra! - respondeu Mestre Hora.
- Foi uma pena! Acho que ningué m mais leu - disse a menina.
Mestre Hora acenou a irmativamente com a cabeça:
- E, foi uma pena! E os responsá veis por isso foram os homens
cinzentos.
- Você os conhece bem? - indagou Momo.
Mestre Hora voltou a balançar a cabeça, con irmando, e suspirou:
- Sim, eu os conheço e eles me conhecem.
- Já esteve muitas vezes com eles?
- Nã o, nunca. Nunca saio da Casa de Lugar Nenhum.
- Mas entã o os homens cinzentos à s vezes vê m até aqui?
Mestre Hora sorriu:
- Nã o se preocupe, minha querida Momo! Eles nã o poderiam entrar
aqui, mesmo que conhecessem o caminho até o Beco do Nunca. E, de
qualquer modo, nã o conhecem.
Momo icou um momento pensativa. Ficara mais tranquila com a
explicaçã o de Mestre Hora, mas tinha vontade de saber mais a respeito
dele.
- Como é que você sabe de tudo isso - ela voltou a perguntar -, quer
dizer, sobre os nossos cartazes e os homens cinzentos?
- Estou sempre de olho neles e em tudo o que tem relaçã o com eles -
declarou Mestre Hora. - Por isso també m andei vigiando você e seus
amigos.
- Mas você nunca sai desta casa!
- Nem é preciso! - disse Mestre Hora, tornando-se de novo
visivelmente mais jovem. - A inal de contas, tenho os meus ó culos de
visã o global.
Entã o ele tirou seus pequenos ó culos de ouro e estendeu-os para
Momo.
- Quer dar uma olhada?
A menina pô s os ó culos, piscou, forçou os olhos e disse:
- Nã o estou enxergando absolutamente nada!
De fato, ela só via uma mistura de cores, luzes e sombras inde inidas.
Chegou até a icar meio tonta,
- No começo é assim mesmo - a menina ouviu Mestre Hora explicar. -
Nã o é muito fá cil enxergar com os ó culos de visã o global. Mas logo você
vai se acostumar!
Ele se levantou, postou-se atrá s da cadeira de Momo e segurou de
leve no aro dos ó culos. Imediatamente a imagem se fez clara Momo viu
primeiro o grupo de homens cinzentos nos trê s carros, no limite da
regiã o da cidade que tinha aquela luminosidade estranha. Estavam
justamente tentando fazer os carros voltarem.
Olhando mais para longe, viu outros grupos nas ruas da cidade,
gesticulando e falando agitadamente uns com os outros, como se
estivessem trocando informaçõ es.
- Estã o falando de você - explicou Mestre Hora. - Nã o conseguem
entender como conseguiu escapar deles.
- Por que eles tê m o rosto tã o cinzento? - perguntou Momo,
continuando a observá -los.
- Porque nutrem sua existê ncia de algo morto - respondeu Mestre
Hora. - Como você sabe, o que manté m sua existê ncia é o tempo de vida
dos seres humanos. Mas esse tempo morre, literalmente, quando é
arrancado de seu verdadeiro dono. Pois cada pessoa tem seu tempo. E
esse tempo só permanece vivo enquanto é , de fato, dela.
- Entã o os homens cinzentos nã o sã o seres humanos?
- Nã o, só adquiriram a forma humana.
- O que eles sã o, entã o?
- Na verdade nã o sã o nada.
- De onde eles vê m?
- Eles surgem porque as pessoas lhes dã o oportunidade para surgir.
Basta isso para acontecer. E agora as pessoas estã o dando oportunidade
para que eles as dominem. També m isso basta para que possa
acontecer.
- E se eles nã o conseguissem mais roubar tempo nenhum?
- Seriam obrigados a voltar ao nada de onde vieram. Mestre Hora
tirou os ó culos de Momo e guardou-os.
- Infelizmente - continuou depois de uma pausa -, agora eles já tê m
muitos cú mplices entre os seres humanos. O ruim é isso.
- Pois eu nã o vou deixar ningué m roubar o meu tempo! a irmou
Momo, decidida.
- Espero que nã o - disse Mestre Hora. - Venha, Momo, quero lhe
mostrar minha coleçã o.
Agora estava de novo com aparê ncia de velho.
Tomou Momo pela mã o e levou-a de volta à enorme sala. Lá ele lhe
mostrou este e aquele reló gio, pô s caixinhas de mú sica para funcionar,
mostrou-lhe os reló gios que marcavam o tempo do mundo e també m os
planetá rios. Diante da alegria que sua pequena hó spede mostrava ao
ver todas aquelas maravilhas, ele foi se tornando, novamente, cada vez
mais jovem.
- Você gosta de enigmas? - ele perguntou de passagem, enquanto
continuavam perambulando.
- Gosto muito! - respondeu Momo. - Você sabe algum?
- Sei - disse ele, sorrindo. - Mas é muito difı́cil. Pouca gente consegue
decifrá -lo.
- Otimo! - disse Momo. - Entã o quero aprendê -lo para depois ensiná -
lo para meus amigos.
- Estou curioso para ver se você vai ser capaz de decifrá -lo - disse
mestre Hora. - Entã o preste atençã o.
"Moram numa casa três parentes, ou melhor, três irmãos diferentes.
Mas cada um se parece com os outros dois.
O primeiro não está, só vai chegar depois.
O segundo não está, já foi embora.
Só o terceiro está em casa agora.
Sem ele não haveria os outros no mundo.
E ele existe porque o primeiro vira o segundo.
Se você olhar bem não vai ver o terceiro,
só vai enxergar o segundo ou o primeiro.
Então me diga: serão os três apenas um?
Ou serão dois, ou até nenhum?
Esses senhores são os três governantes
de um mesmo reino, dos mais importantes,
e que é eles mesmos além do mais.
Dentro desse reino eles são iguais."
Mestre Hora olhou para Momo, balançando a cabeça para animá -la.
Ela ouvira atentamente, e, como tinha excelente memó ria, repetiu o
enigma lentamente, palavra por palavra.
- Ufa! - suspirou ela. - E difı́cil mesmo! Nã o tenho a menor ideia da
resposta e nem sei por onde começar.
- Experimente! - disse Mestre Hora, estimulando-a. Momo repetiu de
novo o enigma inteiro. Depois balançou a cabeça.
- Nã o sei mesmo! - disse, desistindo.
Cassiopé ia tinha se aproximado. Estava aos pé s de Mestre Hora e
observava Momo atentamente.
- Entã o, Cassiopé ia, já que você sabe tudo com meia hora de
antecedê ncia, diga lá : Momo vai resolver o enigma ou nã o vai? -
perguntou Mestre Hora.
A resposta apareceu nas costas da tartaruga: "VAI RESOLVER".
- Está vendo? - disse ele à menina. - Você vai acertar, Cassiopé ia
nunca se engana!
Momo franziu a testa, esforçando-se para adivinhar. Quem eram
aqueles trê s irmã os que moravam na mesma casa? Claro que nã o se
tratava de seres humanos. Em enigmas, irmã os eram em geral sementes
de maçã , os dentes, ou coisas desse tipo.
No caso, poré m, eram trê s irmã os que de certo modo se
transformavam um no outro.
Que coisas existiam que se transformavam uma na outra? Momo
olhou em volta.
Havia, por exemplo, aquelas velas com as chamas está ticas. A cera,
atravé s da chama, se transformava em luz. Sim, eram trê s irmã os. Mas
nã o dava certo, pois os trê s estavam ali, e no enigma dois irmã os nã o
estavam em casa. Talvez fosse alguma coisa como lor, fruto, e semente.
E, podia ser, mesmo. A semente, era o menor dos trê s irmã os. E quando
ela estava os outros dois nã o estavam. Mas nã o era isso! Olhando-se
para a semente dava para vê -la muito bem. E o enigma dizia que,
quando se olhava o terceiro irmã o, só se enxergava o segundo ou o
primeiro.
Os pensamentos da menina vagueavam por todos os lados. Nã o
conseguia encontrar nenhuma pista que a levasse adiante. Mas
Cassiopé ia tinha dito que ela conseguiria encontrar a resposta. Momo
entã o começou tudo de novo e, mais uma vez, foi repetindo
devagarinho as palavras do enigma. Quando pronunciou as palavras: "O
primeiro nã o está , mas chega logo depois", viu a tartaruga piscando
para ela. Nas suas costas apareceram as palavras "AQUILO QUE EU SEI",
que se apagaram logo depois.
- Quieta, Cassiopé ia - disse Mestre Hora, sorrindo, sem ter olhado
para a tartaruga. - Nã o diga nada. Momo vai conseguir responder
sozinha.
Naturalmente, a menina leu o que tinha aparecido nas costas da
tartaruga e começou a imaginar o que signi icaria aquilo. O que
Cassiopé ia sabia? Ela sabia que Momo ia decifrar o enigma. Mas isso
nã o fazia sentido.
O que mais ela sabia? Cassiopé ia sempre sabia o que iria acontecer.
Ela sabia...
- O futuro! - exclamou Momo. - O primeiro nã o está , só vai chegar
depois... é o futuro!
Mestre Hora balançou a cabeça, con irmando.
- E o segundo - continuou Momo - nã o está , já foi embora... entã o é o
passado!
Mestre Hora con irmou mais uma vez, sorrindo satisfeito.
- Mas agora - continuou a menina, pensativa -, agora está mais difı́cil.
Quem será o terceiro? E o menor dos trê s, sem ele os dois outros nã o
existiriam... e é o ú nico que está em casa.
q
Re letiu um pouco e gritou de repente:
- E agora! E este momento! O passado sã o os momentos que já se
foram e o futuro sã o os que ainda estã o para vir. E os dois nã o
existiriam se nã o houvesse o presente. E isso!
As bochechas de Momo estavam coradas de entusiasmo:
- Mas o que quer dizer o que vem a seguir? "E ele existe porque o
primeiro vira o segundo." Ah, já sei, signi ica que o presente só existe
porque o futuro vira passado.
Olhou para Mestre Hora, admirada.
- E verdade, e eu nunca tinha pensado nisso antes. Mas entã o o
momento presente na verdade nã o existe, só existem o passado e o
futuro? Por exemplo, este momento... falei nele e já se tornou passado.
Agora també m entendo o que quer dizer: "Se você olhar bem nã o vai
ver o terceiro, só vai enxergar o segundo ou o primeiro." També m estou
entendendo o resto, pois podemos pensar que existe apenas um dos
trê s irmã os, isto é , o presente, ou só passado e futuro. Ou nenhum, pois
um só existe se existirem os outros dois! Nossa, tudo isso é de virar a
cabeça!
- Mas o enigma ainda nã o acabou - disse Mestre Hora. Qual é o
grande reino que os trê s governam juntos, e o que é eles mesmos?
Momo voltou-se para ele, atordoada. O que seria? O que seria o
passado, o presente e o futuro, tudo junto?
Momo olhou toda a sala imensa à sua volta. Seu olhar percorreu os
milhares e milhares de reló gios e, de repente, sua expressã o se
iluminou.
- O tempo! - ela gritou, batendo palmas. - E o tempo! Isso mesmo, o
tempo!
E Momo pulava de alegria.
- E agora me diga que casa é essa em que moram os trê s irmã os? -
indagou Mestre Hora.
- E o mundo - respondeu a menina.
- Muito bem - exclamou Mestre Hora, batendo palmas també m. -
Parabé ns, Momo!
Você é ó tima em enigmas! Gostei de ver!
- Eu també m! - disse a criança, que no fundo perguntava a si mesma
por que Mestre Hora teria icado tã o contente por ela ter conseguido
resolver o enigma.
Continuaram passeando pela sala cheia de reló gios. Mestre Hora lhe
mostrava muitas outras coisas interessantes, mas Momo ainda estava
com o pensamento voltado para o enigma.
- Diga-me uma coisa - perguntou ela, inalmente -, na verdade, o que
é o tempo?
- Você mesma acabou de descobrir isso! - respondeu Mestre Hora.
- Nã o - explicou Momo -, o tempo em si. Deve ser alguma coisa!
A inal, ele existe. O que é realmente o tempo?
- Seria bom se você també m conseguisse responder a isso sozinha -
disse Mestre Hora.
Momo icou muito tempo pensativa.
- Ele existe - murmurou ela, absorta -, isso é certo. Mas nã o se pode
pegar o tempo. Segurá -lo també m nã o. Será como uma espé cie de
perfume? Mas é uma coisa que está sempre passando, deve vir de
algum lugar. Será que é como o vento? Nã o! Já sei! Talvez seja uma
espé cie de mú sica, que a gente nã o ouve porque ela está sempre ali.
Mas acho que eu já a ouvi, muito baixinho.
- Eu sei - con irmou Mestre Hora -, e foi por isso que consegui
chamar você .
- Mas deve haver mais alguma coisa - continuou Momo, sempre
re letindo. - A mú sica veio de muito longe e, no entanto, ressoou bem lá
no fundo, dentro de mim. Talvez com o tempo aconteça a mesma coisa.
A menina se calou, confusa, e acrescentou, meio perdida.
- Quer dizer, talvez seja como as ondas que aparecem na á gua por
causa do vento.
Ah, vai ver que só estou falando bobagem!
- Pois eu acho que você disse muito bem! - exclamou Mestre Hora. - E
por isso vou contar um segredo: daqui, da Casa de Lugar Nenhum, no
im do Beco do Nunca, é que sai todo o tempo dos seres humanos.
Momo olhou-o, toda admirada.
- E você mesmo quem faz o tempo? - ela perguntou baixinho.
Mestre Hora sorriu novamente:
- Nã o, minha menina, eu sou apenas o distribuidor. Minha tarefa é
dar a cada ser humano o tempo que lhe cabe.
- Será que entã o nã o seria fá cil você dar um jeito para que os ladrõ es
de tempo nã o pudessem mais roubar tempo das pessoas? - perguntou
Momo.
- Nã o - respondeu Mestre Hora -, pois sã o as pró prias pessoas que
devem decidir o que fazer com seu tempo. També m sã o elas que devem
defendê -lo. Eu só o distribuo.
Momo lançou um olhar à sua volta e perguntou:
- Por isso você tem tantos reló gios? Um para cada pessoa, é ? - Nã o,
Momo - respondeu Mestre Hora. - Esses reló gios sã o meus objetos de
estimaçã o. Sã o apenas uma imitaçã o muito imperfeita de algo que cada
ser humano tem no peito.
Pois, assim como você s tê m olhos para enxergar a luz, ouvidos para
ouvir sons, també m tê m um coraçã o para perceber o tempo. Todo o
tempo que nã o é percebido pelo coraçã o é tã o desperdiçado quanto
seriam as cores do arco-ı́ris para um cego ou o canto de um pá ssaro
para um surdo. Infelizmente, poré m, existem alguns coraçõ es cegos e
surdos, que nada percebem, apesar de baterem.
- E quando meu coraçã o parar de bater? - perguntou Momo.
- Entã o - respondeu Mestre Hora -, o tempo terminará para você ,
minha menina.
Podemos dizer també m que é você quem volta atravé s do tempo,
atravé s de todos os seus dias e noites, meses e anos. Você caminha de
volta atravé s de sua vida, até chegar ao grande portã o redondo de
prata, pelo qual certo dia você entrou. Entã o você volta a sair.
- E o que há do outro lado?
- Você estará no lugar de onde vem a mú sica que já ouviu algumas
vezes, bem baixinho. Mas entã o você fará parte dela, será um som dela.
Mestre Hora olhou a criança, perscrutando-a.
- Acho que você ainda nã o é capaz de entender isso.
- Acho que sou, sim - murmurou Momo.
Lembrou-se de sua caminhada pelo Beco do Nunca, quando vivera
tudo de trá s para frente, e perguntou: - Você é a morte?
Mestre Hora sorriu e icou em silê ncio por alguns momentos, antes
de responder
- Se as pessoas soubessem o que é a morte, nã o teriam medo dela. E
se nã o tivessem medo da morte, ningué m mais poderia roubar seu
tempo de vida.
- Entã o precisamos dizer isso a elas - sugeriu Momo.
- Você acha? - indagou Mestre Hora - Digo isso a elas a cada hora que
lhes entrego. Mas parece que nã o querem nem ouvir. Preferem
acreditar em quem lhes dá medo. Isso també m é um enigma
- Eu nã o tenho medo - a irmou Momo.
Mestre Hora meneou a cabeça devagar. Olhou demoradamente para a
menina e, inalmente, perguntou.
- Você quer ver de onde vem o tempo?
- Quero - sussurrou ela.
- Pois vou levá -la até lá - disse Mestre Hora. - Mas naquele lugar é
preciso icar em silê ncio. Você nã o vai poder perguntar nem dizer nada.
Promete?
Momo balançou a cabeça a irmativamente.
Mestre Hora se abaixou e ergueu a menina, segurando-a irmemente
nos braços. De repente ele lhe pareceu muito alto e incrivelmente velho,
nã o um homem velho como os outros, mas como se fosse uma á rvore
secular ou uma montanha de tempos remotos. Mestre Hora cobriu os
olhos da menina com as mã os, e ela teve a sensaçã o de que uma neve
leve e fresca lhe caı́a sobre o rosto.
Momo tinha a impressã o de que ele a levava por um corredor longo e
escuro. Mas sentia-se protegida e nã o tinha medo. No começo, pensou
estar ouvindo as batidas de seu pró prio coraçã o, mas logo lhe pareceu,
cada vez mais, que era o eco dos passos de Mestre Hora.
O percurso foi longo, até que por im Mestre Hora pô s a menina no
chã o. Seu rosto estava bem junto ao dela, olhava-a com os olhos bem
abertos e estava com um dedo sobre os lá bios. Depois endireitou-se e
deu um passo atrá s. Um crepú sculo dourado envolveu a menina. .
Aos poucos, Momo viu que estava sob uma cú pula imensa, que lhe
parecia do tamanho da abó bada celeste. E aquela cú pula gigantesca era
toda de puro ouro.
No alto, bem no centro, havia uma abertura redonda. Por ela entrava
uma verdadeira coluna de luz, que caı́a verticalmente sobre um lago,
igualmente redondo, cuja á gua preta, lisa e imó vel, formava como que
um espelho escuro.
Pouco acima da á gua, alguma coisa cintilava à luz da coluna, como
uma estrela brilhante. Movia-se com majestosa lentidã o, e Momo
reconheceu um pê ndulo enorme, que oscilava de um lado para outro
sobre o espelho preto do lago. Nã o estava preso a nada e pairava no ar
como se nã o tivesse peso.
Quando o pê ndulo estelar foi se aproximando lentamente da margem
do lago, um grande botã o de lor surgiu da á gua escura. Quanto mais
perto chegava o pê ndulo, mais o botã o se abria, até desabrochar
plenamente sobre o espelho de á gua.
Era a lor mais maravilhosa que Momo jamais tinha visto. Parecia ser
feita apenas de cores luminosas. Momo nem mesmo imaginara que
aquelas cores pudessem existir.
O pê ndulo estelar se deteve um instante sobre a lor e Momo
absorveu-se completamente naquela visã o, esquecendo-se de tudo o
mais à sua volta. O perfume da lor parecia-lhe uma coisa que sempre
havia desejado, sem saber o que era.
Aos poucos, poré m, devagar, muito devagar, o pê ndulo foi recuando.
Momo observou com espanto que, à medida que ele se distanciava, a
lor maravilhosa ia murchando. As pé talas iam caindo, uma apó s outra,
nas escuras profundezas.
Quando o pê ndulo chegou ao meio do lago, a linda lor tinha se
desmanchado inteira. Ao mesmo tempo, no entanto, do lado oposto, um
outro botã o começou a surgir da á gua. E, à medida que o pê ndulo se
aproximava dele, Momo viu desabrochar uma outra lor, ainda mais
bonita. A menina deu a volta ao lago, para apreciá -la mais de perto.
Era completamente diferente da lor anterior. Cores iguais à s suas
Momo també m nunca tinha visto, e pareciam até mais raras e preciosas
do que as da primeira lor. Seu perfume també m era outro, mais
delicioso ainda. Quanto mais Momo contemplava a lor, mais lindos
detalhes ela descobria.
També m desta vez, no entanto, o pê ndulo estelar afastou-se e toda
aquela maravilha se desfez e desapareceu, caindo, pé tala por pé tala, na
insondá vel profundeza do lago.
Devagar, muito devagar, o pê ndulo se deslocou para a outra margem,
mas nã o exatamente para o mesmo ponto de antes. Lá , a um passo do
lugar da primeira lor, um novo botã o começou a surgir e foi
desabrochando aos poucos.
Momo achou aquela lor a mais bela de todas. Era a lor de todas as
lores, uma maravilha ú nica!
Momo teve vontade de chorar alto quando viu que també m aquela
beleza perfeita começou a se desmanchar e a mergulhar nas
profundezas escuras. Mas lembrou-se da promessa que izera a Mestre
Hora e icou em silê ncio.
Na outra margem, o pê ndulo també m chegou a um passo do lugar
anterior, e uma nova lor surgiu da á gua escura.
Aos poucos, Momo foi compreendendo que cada nova lor era bem
diferente da anterior e que sempre aquela que acabava de desabrochar
parecia ser a mais bonita de todas.
Sempre caminhando em torno do lago, ia vendo surgir e desaparecer
uma lor apó s a outra. Tinha a impressã o de que nunca se cansaria de
assistir à quele espetá culo.
Pouco a pouco, no entanto, a menina percebeu que estava
constantemente acontecendo uma outra coisa, que ela ainda nã o havia
notado.
A coluna de luz que descia do alto da cú pula até embaixo nã o era
apenas de se ver. Momo també m começou a ouvi-la.
No princı́pio era apenas um sussurro, como o som do vento
soprando na copa das á rvores. Depois o ruı́do tornou-se mais intenso,
como o de uma cachoeira ou do estrondo das ondas do mar se
quebrando contra os rochedos.
Momo foi percebendo cada vez mais nitidamente que aquele barulho
era constituı́do por inú meros sons, que iam se combinando de
maneiras diferentes, se transformando e compondo harmonias sempre
novas. Era mú sica e, ao mesmo tempo, uma coisa completamente
diferente.
De repente, Momo reconheceu: era a mú sica que ela à s vezes ouvia
muito ao longe e baixinho, quando se punha a escutar o silê ncio sob o
cé u estrelado.
Os sons se tornaram mais nı́tidos e esplendorosos. A menina
começou a perceber que era aquela luz sonora que fazia surgir as lores
das profundezas do lago, uma a partir da outra, cada uma delas com
uma forma ú nica e preciosa.
Quanto mais ouvia, mais claramente conseguia distinguir cada uma
das vozes. Mas nã o eram vozes humanas. Soavam como se fossem o
cantar do ouro, da prata e de todos os outros metais. Alé m disso, no
fundo, emergiam vozes de um tipo bem diferente, de uma distâ ncia
incalculá vel e de uma potê ncia indescritı́vel.
Tornavam-se cada vez mais claras e Momo passou a ouvir palavras.
Eram palavras numa lı́ngua que a menina jamais ouvira e que, no
entanto, ela compreendia. O
Sol, a Lua, os planetas e todas as estrelas lhe revelavam seus nomes
verdadeiros. E os nomes continham o que faziam e como atuavam
juntos para que cada uma daquelas lores-das-horas pudessem surgir e
desaparecer.
Subitamente Momo compreendeu que aquelas palavras se dirigiam a
ela! O mundo todo, desde a mais longı́nqua estrela, voltava-se para ela
como um ú nico grande rosto, inimaginá vel, olhando-a e falando com
ela.
E foi tomada por algo maior do que o medo.
Nesse instante, viu Mestre Hora, que acenava para ela em silê ncio.
Momo correu para ele. Mestre Hora tomou-a nos braços e ela escondeu
o rosto no seu peito.
Mais uma vez ele cobriu os olhos da menina com as mã os, com a
leveza da neve.
Tudo se tornou escuro e silencioso, e Momo sentiu-se protegida. Ele
a carregou de volta pelo longo corredor.
Quando chegaram novamente à salinha entre os reló gios, ele deitou a
menina no sofá .
- Mestre Hora - murmurou Momo -, nunca pensei que o tempo dos
homens fosse tã o... - procurava a palavra certa mas nã o conseguia
encontrar. - Tã o grande - ela disse, inalmente.
- O que você viu e ouviu, Momo, nã o foi o tempo de todos os homens,
foi apenas o seu tempo - replicou Mestre Hora. - Em todas as pessoas
existe um lugar como esse em que você esteve há pouco. Mas só pode
chegar a ele quem se deixa levar por mim. E també m nã o se pode vê -lo
com olhos comuns.
- Mas onde é que eu estive?
- No seu pró prio coraçã o - respondeu Mestre Hora, acariciando seus
cabelos emaranhados.
- Mestre Hora - disse ela, baixinho -, posso trazer meus amigos até
você ?
- Nã o - respondeu ele. - Por enquanto nã o é possı́vel.
- E quanto tempo posso icar com você ?
- Até você mesma sentir que deve voltar para seus amigos, minha
menina.
- Posso contar a eles o que as estrelas disseram? - Pode, mas você
nã o será capaz.
- Por que nã o?
- Primeiro as palavras para isso precisam crescer dentro de você
- Mas eu queria contar para todos eles! Queria ser capaz de repetir
para eles o que as vozes cantavam. Acho que entã o tudo icaria bem de
novo
- Se você quer isso de verdade, Momo, precisa saber esperar.
- Nã o me importo de esperar.
- Esperar, minha menina, como uma semente que ica adormecida na
terra durante as quatro estaçõ es de um ciclo solar, antes de poder
brotar. E o tempo que vai levar para as palavras crescerem em você .
Você quer?
- Quero! - murmurou Momo.
- Entã o durma - disse Mestre Hora, acariciando-lhe os olhos. -
Durma!
Momo respirou fundo e adormeceu, feliz.
Terceira Parte
AS FLORES-DAS-HORAS
Capítulo Treze
UM DIA LÁ, UM ANO AQUI
Momo acordou e abriu os olhos. Levou algum tempo para saber onde
estava. Ficou muito admirada ao perceber que voltara aos degraus
cobertos de capim do velho an iteatro. Será , entã o, que nã o tinha estado
na Casa de Lugar Nenhum com Mestre Hora? Como era possı́vel ter
voltado tã o depressa?
Estava escuro e frio. No horizonte, a leste, surgiam os primeiros
clarõ es cinzentos do amanhecer. Momo estremeceu e se aconchegou
mais no casaco enorme.
Lembrava-se nitidamente de tudo o que tinha vivido: da caminhada
noturna com a tartaruga atravé s da grande cidade, daquela regiã o de
estranha luminosidade e casas de um branco ofuscante, do Beco do
Nunca, cia sala cheia de reló gios, do chocolate, dos pã ezinhos com mel,
de cada palavra da conversa com Mestre Hora e do enigma que ele
propusera. Acima de tudo, poré m, lembrava-se de tudo o que vivera
debaixo da cú pula de ouro. Bastava-lhe fechar os olhos para rever o
inimaginá vel esplendor colorido das lores. As vozes do Sol, cia Lua e
das estrelas ainda ressoavam em seus ouvidos, com tanta nitidez que
ela até conseguia repetir suas melodias.
Ao fazê -lo, dentro dela se formavam palavras, as quais realmente
exprimiam o perfume das lores e suas cores nunca vistas. As vozes, na
memó ria de Momo, é que diziam as palavras. E, com essa pró pria
lembrança, aconteceu algo maravilhoso! Momo encontrava dentro de si
nã o só o que tinha visto e ouvido.
Havia mais, e cada vez mais. Como de uma fonte má gica, brotavam
milhares de imagens de lores-das-horas. E a cada lor soavam novas
palavras. Era só Momo ouvir com atençã o dentro de si para ser capaz de
repeti-las e até de cantar com elas. Falavam de coisas misteriosas e
lindas. A medida que pronunciava as palavras, Momo ia entendendo seu
signi icado.
Entã o era isso que Mestre Hora queria dizer, ao adverti-la de que
antes era preciso que as palavras crescessem dentro dela. Ou teria sido
tudo apenas um sonho? Será que tudo aquilo, na verdade, nã o tinha
acontecido?
Enquanto ainda re letia, Momo viu alguma coisa rastejando lá
embaixo, no meio da arena. Era uma tartaruga à procura de plantas
comestı́veis.
A menina desceu correndo ao seu encontro e se agachou ao lado
dela. A tartaruga levantou a cabeça, deu uma rá pida olhada para a
menina, com seus velhı́ssimos olhos pretos, e voltou a comer
tranquilamente.
- Bom dia, tartaruga! - disse Momo. Nenhuma resposta apareceu na
carapaça.
- Foi você que me levou esta noite até o Mestre Hora? perguntou
Momo.
Mais uma vez, nã o houve resposta. Momo suspirou, desapontada
- Que pena - ela murmurou. - Entã o você é uma tartaruga comum e
nã o... ah, esqueci o nome. Era bonito, mas era comprido e raro. Eu
nunca tinha ouvido aquele nome antes.
"CASSIOPEIA" apareceu de repente, em letras levemente luminosas,
nas costas da tartaruga.
- Isso! - exclamou a menina, batendo palmas. - Era esse o nome!
Entã o é você !
Você é a tartaruga de Mestre Hora, nã o é ?
"QUEM MAIS PODERIA SER?"
- Por que nã o me respondeu de inı́cio?
"ESTOU TOMANDO CAFE DA MANHA", apareceu na carapaça.
- Desculpe - disse Momo. - Nã o queria atrapalhar. Só queria saber
como vim parar de volta aqui.
"SEU DESEJO", foi a resposta.
- Engraçado - observou Momo -, nã o consigo me lembrar de nada. E
você , Cassiopé ia, por que nã o icou com Mestre Hora em vez de voltar
para perto de mim?
"MEU DESEJO", apareceu na carapaça.
- Muito obrigada! E muita gentileza sua! - disse Momo.
"DE NADA!", foi a resposta Com isso a tartaruga considerou a
conversa encerrada e, rastejando, voltou ao café da manhã que tinha
sido interrompido.
Momo sentou-se nos degraus de pedra, pensando com alegria em
Beppo, em Gigi e nas crianças. Escutava de novo a mú sica que
continuava sempre ressoando dentro dela. Embora estivesse
completamente sozinha e ningué m a ouvisse, foi cantando cada vez
mais alto e com maior ı́mpeto as melodias e as palavras, dirigindo-se ao
sol nascente. Parecia-lhe agora que os pá ssaros, os grilos, as á rvores e
até as velhas pedras estavam ouvindo.
Nã o podia saber que, por muito tempo, nã o teria outros ouvintes.
Nã o podia saber que era inú til esperar por seus amigos, que estivera
ausente durante muito tempo e que, enquanto isso, o mundo havia
mudado muito.
Com Gigi Guia, os homens cinzentos nã o tiveram muito trabalho.
Tudo começara um ano atrá s, um pouco depois do dia em que Momo
havia desaparecido de repente, sem deixar vestı́gios. O jornal publicou
um longo artigo sobre Gigi, com o tı́tulo "O ú ltimo verdadeiro contador
de histó rias".
Indicava-se quando e onde ele poderia ser encontrado, e dizia-se que
era uma atraçã o que ningué m podia perder.
A notı́cia atraiu ao velho an iteatro um grande nú mero de pessoas,
que queriam ver e ouvir Gigi. E claro que Gigi nã o tinha nada contra.
Contava, como sempre, as histó rias que lhe vinham à cabeça e, no im,
passava o seu quepe, que se enchia cada vez mais de moedas e notas de
dinheiro. Logo ele foi contratado por uma agê ncia de turismo, que
ainda lhe pagava uma quantia ixa para apresentá -lo como atraçã o. Os
turistas chegavam em grandes ô nibus, e em pouco tempo Gigi viu-se
obrigado a estabelecer horá rios regulares para que todos aqueles que
pagassem tivessem, de fato, oportunidade de ouvi-lo.
Naquela é poca Gigi sentia falta de Momo, pois suas histó rias estavam
perdendo as asas. No entanto, continuava se recusando a contar duas
vezes a mesma histó ria, mesmo que lhe oferecessem o dobro do
dinheiro.
Depois de alguns meses, já nã o precisava ir ao velho an iteatro e
passar o quepe no inal. Tinha sido descoberto pelo rá dio e logo em
seguida pela televisã o.
Contava suas histó rias trê s vezes por semana, para milhares de
ouvintes, e ganhava muito dinheiro.
Nã o morava mais perto do an iteatro. Tinha ido para um outro
bairro, completamente diferente, onde só morava gente rica e famosa.
Alugara uma casa grande e moderna, que icava no meio de um parque
muito bem cuidado. Já nã o se chamava Gigi, mas Girolamo.
Naturalmente, acabou deixando de inventar sempre novas histó rias,
como fazia antes. Nã o tinha mais tempo para isso. Começou a poupar
suas ideias. As vezes, fazia uma só ideia render cinco histó rias
diferentes. E, quando até isso deixou de ser su iciente para atender à s
solicitaçõ es cada vez, maiores, certo dia ele fez uma coisa que nã o devia
ter feito: contou uma das histó rias que pertenciam só a Momo.
As pessoas engoliram a histó ria rapidamente, como sempre
acontecia, e logo a esqueceram. Mas continuavam a exigir dele cada vez
mais histó rias. Gigi estava tã o atrapalhado com aquele ritmo que, sem
perceber, foi entregando, uma atrá s da outra, todas as histó rias que
pertenciam apenas a Momo. No entanto, depois de contar a ú ltima,
sentiu-se completamente vazio, esgotado, sem capacidade para
inventar mais nada.
Com medo de que seu sucesso pudesse acabar, começou entã o a
repetir todas as suas histó rias anteriores, com outros nomes e com
ligeiras modi icaçõ es. O mais espantoso é que ningué m parecia
perceber. Pelo menos, ele nã o deixou de ser procurado.
Gigi agarrou-se a isso como um afogado a uma tá bua de salvaçã o.
Estava rico e famoso e, a inal, aquele sempre tinha sido seu sonho.
Mas à s vezes, à noite, deitado em sua cama, debaixo do acolchoado
de seda, tinha saudades dos velhos tempos, quando vivia perto de
Momo, do velho Beppo, das crianças, e era realmente capaz de contar
histó rias.
Poré m nã o havia como voltar atrá s, mesmo porque Momo
desaparecera para sempre. A princı́pio, Gigi ainda tinha tentado
seriamente encontrá -la; agora já nã o lhe sobrava tempo para isso.
Tinha trê s e icientes secretá rias que irmavam seus contratos, para
quem ele ditava suas histó rias, que se encarregavam de sua divulgaçã o
e organizavam sua agenda de compromissos. E nessa agenda nunca
havia lugar para encaixar as buscas a Momo.
Do antigo Gigi restava muito pouco. Um dia, poré m, ele juntou esse
pouco e resolveu re letir sobre si mesmo. Tornara-se um homem cujas
palavras eram levadas em conta e ouvidas por milhõ es de pessoas.
Quem seria mais indicado para lhes dizer a verdade? Queria lhes
contar tudo a respeito dos homens cinzentos! Diria que nã o se tratava
de mais uma histó ria inventada por ele e pediria a todos os ouvintes
que o ajudassem a encontrar Momo.
Tomou essa resoluçã o uma noite em que sentiu saudade dos velhos
amigos. Quando o dia amanheceu, sentou-se em sua grande
escrivaninha, para esboçar seu plano.
Ainda nem tinha escrito uma palavra, quando o telefone tocou. Gigi
atendeu e icou duro de pavor
Uma voz estranha, inexpressiva, cinzenta, começou a lhe falar.
Enquanto ouvia, sentiu um frio subir por ele, como se viesse da medula
de seus ossos.
- Desista disso - dizia a voz -, para seu pró prio bem.
- Quem está falando? - perguntou Gigi.
- Você sabe perfeitamente quem é - respondeu a voz. Nã o precisamos
nos apresentar. Até agora você ainda nã o teve o prazer de nos
encontrar, mas há muito tempo já nos pertence de corpo e alma. E nã o
vá dizer que nã o sabia!
- O que você s querem de mim?
- Seus planos nã o nos agradam. Seja bonzinho e desista, certo?
Gigi apelou para toda a sua coragem.
- Nã o - ele disse -, nã o vou desistir de coisa nenhuma. Nã o sou mais o
insigni icante e desconhecido Gigi Guia. Agora sou um grande homem.
Veremos se você s podem me impedir de fazer o que quer que seja A voz
deu uma risada sem expressã o e, subitamente, Gigi começou a bater os
dentes
- Você nã o é ningué m - continuou a voz - Nó s o izemos. Você é um
boneco de borracha. Nó s o enchemos de ar. Mas, se nos contrariar,
iremos esvaziá -lo. Ou será que você pensa que deve tudo o que é hoje
ao seu talento medı́ocre?
- E! E isso mesmo que eu penso - respondeu Gigi, rouco.
- Coitadinho do Gigi! - disse a voz. - Você é e sempre foi um româ ntico
sonhador. Antes era o prı́ncipe Girolamo fantasiado de Gigi, o pobre
diabo; hoje é o pobre diabo Gigi fantasiado de prı́ncipe Girolamo.
Contudo, você deveria ser grato a nó s, que izemos seu sonho se
realizar
- Nã o... nã o é verdade! - gaguejou Gigi. - E mentira!
- Meu Tempo! - exclamou a voz, com outro riso inexpressivo. - Justo
você vem nos falar em verdade? Antes você sempre dizia tantas frases
bonitas a respeito do que era ou nã o era verdade! Ah, nã o, pobre Gigi,
nem ica bem você querer invocar a verdade. Você icou famoso porque
nó s o ajudamos com suas mentiras.
Certamente nã o é a pessoa indicada para discorrer sobre a verdade.
Por isso, desista!
- O que você s izeram com Momo? - perguntou Gigi, num sussurro.
- Ora, nã o ocupe essa sua cabeça virada com isso. A ela você nã o
poderá mais ajudar se contar tudo a nosso respeito. A ú nica coisa que
irá conseguir será fazer sua fama desaparecer tã o depressa quanto
surgiu. Evidentemente, a decisã o é sua! Se izer questã o, nã o
poderemos impedi-lo de bancar o heró i e se arruinar. No entanto, nã o
poderá esperar que continuemos a lhe dar nossa proteçã o, caso você se
mostre tã o ingrato. Nã o é mais agradá vel ser rico e famoso?
- Claro - respondeu Gigi, quase sufocando.
- Está vendo? Entã o deixe-nos fora desse jogo, ouviu? E melhor
continuar contando à s pessoas o que elas querem ouvir.
- Mas como posso fazer isso - perguntou Gigi, com esforço -, agora
que estou sabendo de tudo?
- Vou lhe dar um conselho: nã o se leve tã o a sé rio, rapaz! Realmente,
você nã o pode fazer nada. Pensando assim, poderá continuar agindo
como fez até hoje.
- E - murmurou Gigi, os olhos itos no espaço -, pensando assim...
Ouviu-se um estalido e Gigi també m colocou o fone no gancho.
Debruçou-se sobre o tampo da escrivaninha imensa, escondeu o rosto
entre os braços e foi sacudido por soluços silenciosos.
Desse dia em diante, Gigi perdeu toda a dignidade. Abandonou seus
planos e continuou como até entã o, mas sentia-se um traidor. Em
outros tempos, a imaginaçã o o conduzia por caminhos acidentados e
ele a seguia despreocupado.
Agora, no entanto, ele mentia!
Tornara-se um fantoche, um palhaço para divertir o pú blico. Sabia
disso e começou a odiar sua pro issã o. Suas histó rias iam icando cada
vez mais bobas ou sentimentaló ides.
No entanto, isso nã o prejudicava seu sucesso. Pelo contrá rio, diziam
que era seu novo estilo, e muitos tentavam imitá -lo. Ele se tornou moda.
Gigi, poré m, nã o estava feliz. Sabia agora a quem devia tudo aquilo. Nã o
ganhara nada. Perdera tudo.
Mas continuava correndo no seu carro de um compromisso para
outro, voava nos aviõ es mais velozes e, onde quer que estivesse, nã o
parava de ditar para suas secretá rias as mesmas velhas histó rias, com
alguma roupagem diferente. Todos os jornais comentavam sua
extraordiná ria "fecundidade literá ria".
Assim o sonhador Gigi transformou-se no mentiroso Girolamo.
Para os homens cinzentos, foi bem mais difı́cil lidar com Beppo
Varredor.
Depois da noite em que Momo tinha desaparecido, sempre que o
trabalho permitia ele se sentava no an iteatro e icava à espera da
menina. Sua preocupaçã o e seus cuidados aumentavam de dia para dia.
Finalmente, nã o suportando mais o peso daquela ansiedade, apesar de
todas as justas objeçõ es de Gigi, resolveu ir à polı́cia.
"A inal", pensava ele, "é preferı́vel Momo ser levada para um
orfanato, mesmo com grades nas janelas, a icar prisioneira dos homens
cinzentos... caso ainda esteja viva. Se ela já fugiu uma vez do asilo, talvez
possa escapar de novo.
Pode até ser que eu consiga dar um jeito de ela nã o ser internada.
Mas primeiro precisamos encontrá -la."
Dirigiu-se entã o à delegacia de polı́cia mais pró xima, que icava nos
limites da cidade. Ficou por algum tempo parado diante da porta,
girando o boné entre as mã os, até que criou coragem e entrou.
- O que deseja? - perguntou o policial, ocupado em preencher um
longo e complicado formulá rio.
Beppo demorou um pouco até conseguir pronunciar estas palavras:
- Deve ter acontecido uma coisa terrı́vel.
- Ah, é ? - disse o policial, sempre escrevendo. - Do que se trata?
- De nossa pequena Momo - respondeu Beppo.
- E uma criança?
- E. Uma menina.
- E sua ilha?
- Nã o - replicou Beppo, confuso -, ou melhor, sim. Mas nã o sou seu
pai.
- Nã o, ou melhor, sim - disse o policial, mal-humorado. A inal, ela é
ilha de quem? Quem sã o seus pais?
- Ningué m sabe - murmurou o varredor.
- Onde ela foi registrada?
- Registrada? Bem, todos nó s conhecemos a menina.
- Entã o nã o foi registrada! - disse o policial, suspirando. O senhor
sabe que isso é proibido? Onde estamos, a inal? Com quem mora essa
criança?
- Com ela mesma, quer dizer, no velho an iteatro. Mas nã o mora mais.
Ela sumiu.
- Um momento - pediu o policial -, se entendi bem, naquelas ruı́nas
morava uma menina vadia chamada... como é mesmo?
- Momo - respondeu Beppo.
O policial começou a escrever tudo.
- ... chamada Momo. Momo de quê ? O nome completo, por favor!
- Só Momo.
O policial cocou o queixo e olhou para Beppo, contrariado.
- Assim nã o dá , meu caro. Estou querendo ajudar, mas nã o posso
redigir um relató rio desse jeito. Entã o me diga primeiro o nome do
senhor.
- Beppo.
- Beppo de quê ?
- Beppo Varredor.
- Quero saber o nome, nã o a pro issã o.
- Mas é as duas coisas - respondeu Beppo, humildemente. O policial
largou a caneta e escondeu o rosto entre as mã os.
- Meu Deus do cé u! - murmurou ele, desesperado. - Por que justo eu
estou de serviço?
Depois ele se endireitou, sorriu animadoramente para o velho e
falou, com a mansidã o de um enfermeiro:
- Vamos deixar os dados pessoais para depois. Agora conte tudo
direitinho, do começo ao im.
- Tudo? - indagou Beppo, na dú vida.
- Tudo o que vem ao caso - respondeu o policial. - Estou sem tempo,
preciso preencher esta montanha de formulá rios até meio-dia. Estou no
im das minhas forças e dos meus nervos. Mas nã o se afobe, conte-me
tudo o que lhe vai no coraçã o.
Recostou-se e fechou os olhos, com cara de um má rtir que está sendo
tostado na fogueira. E o velho Beppo começou, com aquele seu modo
minucioso, a narrar o caso todo, desde o imprevisto aparecimento de
Momo e seu extraordiná rio dom de saber ouvir até a cena dos homens
cinzentos, reunidos no depó sito de lixo, que ele tinha presenciado.
- Naquela mesma noite a menina desapareceu - Beppo concluiu.
O policial lançou-lhe um olhar demorado e desgostoso.
- Em outras palavras - disse ele, inalmente -, era uma vez uma
menina altamente inverossı́mil, de cuja existê ncia nã o temos provas,
que foi raptada por uma espé cie de fantasma, que todo o mundo sabe
que nã o existe, e levada sabe-se lá para onde. Mas també m isso nã o é
certo. Ora, e é com isso que a polı́cia tem que se ocupar?
- E, por favor! - disse Beppo.
A essa altura, o policial debruçou-se por cima da mesa e gritou,
furioso:
- Deixe-me cheirar o seu bafo.
Beppo nã o compreendeu a razã o da ordem, mas encolheu os ombros
e soprou documente no rosto do policial, que sacudiu a cabeça
negativamente, dizendo:
- Nã o, parece que bê bado o senhor nã o está .
- Nã o - disse Beppo, vermelho de indignaçã o -, nunca iquei bê bado.
- Entã o por que está me contando todas essas tolices? - perguntou o
policial. - Acha que a polı́cia é tã o idiota que vai acreditar nessas
histó rias absurdas?
- Acho, sim! - respondeu Beppo inocentemente.
Diante disso, o policial perdeu a paciê ncia. Pulou da cadeira e deu um
murro no formulá rio longo e complicado.
- Chega! - gritou ele, com a cara roxa. - Saia já daqui, antes que mande
prendê -lo por desacato à autoridade.
- Desculpe - murmurou Beppo -, nã o tive essa intençã o. Eu queria
dizer...
- Fora! - rugiu o policial. Beppo fez meia-volta e saiu.
Nos dias seguintes procurou vá rias outras delegacias, mas a cena era
sempre a mesma. Ou o colocavam na rua, ou o mandavam embora
gentilmente, ou o faziam esperar para depois se livrarem dele.
Certa vez, no entanto, Beppo acabou encontrando um policial mais
graduado, que tinha menos senso de humor que seus colegas. Ouviu-o
com a isionomia impassı́vel e declarou friamente:
- Esse velho é maluco. Precisamos saber se ele oferece perigo para o
pú blico.
Prendam-no numa cela.
Assim, Beppo foi obrigado a esperar meio dia na cadeia, até ser
levado para um carro por dois policiais. Atravessaram a cidade, até um
grande edifı́cio branco com grades nas janelas. Nã o era uma prisã o,
como Beppo pensou de inı́cio, mas um hospital para doentes mentais.
Ali ele passou por um exame completo. Os mé dicos especialistas e as
enfermeiras foram gentis com Beppo, nã o zombaram dele e nã o o
xingaram, pareciam até muito interessados na sua histó ria, pois teve de
repeti-la vá rias vezes. Embora nã o o contestassem, Beppo també m nã o
teve a impressã o de que estivessem acreditando nele. Nã o conseguiam
entendê -lo bem, mas també m nã o o deixavam ir embora.
Cada vez que ele perguntava quando poderia sair, diziam:
- Logo, mas ainda estamos precisando do senhor. Tente entender,
ainda nã o chegamos a um resultado, mas estamos investigando.
Beppo, imaginando que se tratava de investigaçõ es sobre o
desaparecimento de Momo, enchia-se de paciê ncia.
Deram-lhe uma cama num grande dormitó rio, onde havia muitos
outros pacientes.
Uma noite ele acordou e, sob a fraca luz noturna, percebeu algué m de
pé a seu lado. Primeiro distinguiu apenas a ponta de um charuto aceso;
depois reconheceu o chapé u-coco e a pasta cinza-chumbo que o vulto
trazia. Quando compreendeu que se tratava de um dos homens
cinzentos, sentiu um frio que o penetrou até a medula e já ia gritar por
socorro.
- Quieto! - ordenou uma voz cinzenta, saı́da da escuridã o. - Fui
encarregado de lhe fazer uma proposta. Escute e só responda quando
eu mandar! O senhor já teve ocasiã o de veri icar o alcance cio nosso
poder. Se quiser, poderá saber mais, dependerá só do senhor. As
histó rias que anda contando a nosso respeito absolutamente nã o nos
prejudicam, mas nã o nos agradam. Por outro lado, tem toda a razã o ao
supor que sua amiguinha Momo está em nosso poder. No entanto, pode
perder a esperança de encontrá -la. Isso jamais acontecerá . Seus
esforços para libertar a menina nã o a ajudam em nada. Pelo contrá rio,
ela é castigada a cada tentativa sua. Daqui por diante, portanto, pense
muito bem antes de fazer ou dizer qualquer coisa.
O homem cinzento soprou uma sé rie de ané is de fumaça e observou,
satisfeito, o efeito de seu discurso sobre o velho Beppo, que acreditou
em tudo.
- Serei o mais breve possı́vel, porque meu tempo també m é valioso -
continuou ele. - A proposta que lhe fazemos é a seguinte: Momo voltará ,
desde que o senhor nunca mais deixe escapar uma só palavra sobre nó s
e nossas atividades. Alé m disso, a tı́tulo de perdas e danos, terá de nos
dar cem mil horas de tempo poupado. Nã o se preocupe com o modo
pelo qual entraremos de posse desse tempo, isso é problema nosso. Ao
senhor caberá poupar esse tempo. Como o fará , é problema seu. Se
estiver de acordo, faremos com que dentro de poucos dias seja
mandado para casa; caso contrá rio, icará aqui para sempre e Momo
continuará conosco. Pense bem! Só faremos esta proposta generosa
uma vez! E entã o?
Beppo engoliu em seco algumas vezes e, por im, resmungou:
- Concordo!
- Muito sensato! - disse o homem cinzento, satisfeito. Mas nã o
esqueça silê ncio absoluto e cem mil horas! Logo que as tivermos,
soltaremos Momo.
Portanto, comece seu trabalho o quanto antes.
Com isso, o homem cinzento saiu, deixando atrá s de si o toco do
charuto, que icou luzindo fracamente no escuro, como um fogo-fá tuo.
A partir daquela noite, Beppo nunca mais contou sua histó ria.
Quando lhe perguntavam por que tinha inventado tudo aquilo, encolhia
tristemente os ombros, em silê ncio. Alguns dias depois, mandaram-no
para casa.
Mas ele nã o foi para casa. Dirigiu-se para o grande edifı́cio onde, com
seus companheiros, costumava apanhar a vassoura e o carrinho de
mã o. Pegou a vassoura, foi para a grande cidade e começou a varrer.
Mas já nã o varria no ritmo de antes, a cada passo uma respirada, a
cada respirada uma varrida. Fazia tudo depressa e sem amor pelo
trabalho, com a ú nica preocupaçã o de poupar as horas. Sabia com
dolorosa clareza que estava agindo contra suas mais profundas
convicçõ es, traindo os há bitos adquiridos durante toda a sua vida.
Sentia-se desgostoso e, se fosse apenas por ele, teria preferido morrer
de fome a ser in iel a si mesmo. Mas era por Momo, precisava resgatá -la,
e aquele era o ú nico jeito que conhecia de poupar tempo.
Varria dia e noite, sem voltar para casa. Quando o cansaço o
aniquilava, sentava-se num banco de praça ou mesmo no meio- io e
tirava um cochilo. Depois de um tempinho, levantava-se e continuava a
varrer. De vez em quando, sempre com a mesma pressa, comia qualquer
coisa. Nunca mais voltou à sua cabana, perto do an iteatro. Varreu
semanas e semanas, meses e meses. Chegou o outono, depois o inverno.
Beppo varria.
Depois chegou a primavera e de novo o verã o. Beppo quase nã o
percebeu. Varria, varria e varria, para juntar as cem mil horas exigidas.
As pessoas da grande cidade nã o tinham tempo para reparar no
velho varredor. As poucas que o notavam batiam na testa
signi icativamente, à s suas costas, ao vê -lo sem fô lego, empurrando a
vassoura, como se daquilo dependesse sua vida.
Para Beppo nã o era novidade que o considerassem maluco e nã o se
importava com isso.
Só quando algué m lhe perguntava o motivo de tanta pressa,
interrompia o trabalho por um instante, olhava assustado e ansioso
para o interlocutor e punha o dedo nos lá bios.
A tarefa mais difı́cil para os homens cinzentos era ajustar aos seus
planos as crianças que tinham sido amigas de Momo. Mesmo depois do
desaparecimento da menina, elas continuavam a se reunir no
an iteatro, sempre que podiam, e inventavam novas brincadeiras.
Algumas caixas e caixotes vazios eram o bastante para embarcarem em
longas e arriscadas viagens ao redor do mundo ou construı́rem castelos
e altas montanhas. Alé m disso, faziam planos para o futuro, contando
histó rias umas à s outras. En im, faziam tudo como se Momo ainda
estivesse ali. E, de fato, parecia mesmo que a menina continuava entre
elas.
Aliá s, aquelas crianças nunca duvidaram de que algum dia Momo
voltaria. Nunca falavam nisso, mas nem era preciso. A certeza silenciosa
as unia. Momo lhes pertencia e era seu eixo secreto, estando presente
ou nã o.
Os homens cinzentos nada puderam fazer contra isso.
Como nã o conseguiam in luenciar diretamente as crianças para fazê -
las esquecer Momo, tiveram que utilizar meios indiretos. Esses meios
indiretos eram os adultos, em cujas mã os estavam as decisõ es a
respeito das crianças. Nã o todos os> adultos, é claro, mas aqueles que
se prestavam ao papel de cú mplices... que, infelizmente, nã o eram
poucos. As armas utilizadas foram aquelas das pró prias crianças.
De repente, algumas pessoas lembraram-se daquela passeata das
crianças, com cartazes e faixas.
- Temos que tomar alguma providê ncia - diziam algumas -, nã o dá
para continuar assim. Há cada vez mais crianças que icam sozinhas,
entregues a si mesmas. Nã o se pode culpar os pais, pois o ritmo da vida
moderna nã o lhes deixa tempo para se ocuparem dos ilhos. O Estado é
que deve fazer alguma coisa!
- Desse jeito nã o pode continuar - diziam outras. - O trâ nsito nã o
pode ser prejudicado por crianças que icam perambulando pelas ruas.
O aumento do nú mero de acidentes causado por crianças está custando
caro, e esse dinheiro poderia ser aplicado de maneira mais ú til.
- Está tudo errado! - diziam ainda outras. - Crianças que nã o sã o
vigiadas acabam se corrompendo moralmente e tornam-se criminosas.
O Estado deve tomar providê ncias para que essas crianças sejam
recolhidas. E preciso criar estabelecimentos onde sejam educadas para
se tornarem membros ú teis e produtivos da sociedade.
E havia outras que alegavam. - As crianças sã o o material humano do
futuro. O futuro será a era da propulsã o a jato e dos cé rebros
eletrô nicos. Para operar essas má quinas, será necessá rio um
contingente de especialistas e operá rios de alto nı́vel. Mas, em vez de
prepararmos nossas crianças para o mundo de amanhã , deixamos que
desperdicem anos de seu precioso tempo com brincadeiras tolas. E uma
desgraça para a civilizaçã o e um crime contra a humanidade do futuro!
Tudo isso expressava as ideias dos poupadores de tempo, e, como
eram numerosos na grande cidade, conseguiram relativamente
depressa convencer as autoridades a tomar as devidas providê ncias.
Instalaram-se entã o os chamados "depó sitos de crianças" em todos
os bairros.
Eram grandes casas, onde os pais deixavam as crianças, quando nã o
tinham condiçõ es de cuidar delas, e iam buscá -las quando fosse
possı́vel. As crianças foram terminantemente proibidas de brincar na
rua, nos parques ou em qualquer outra parte. Quando alguma criança
era vista brincando em lugar pú blico, era levada imediatamente ao
depó sito mais pró ximo e os pais pagavam uma multa.
Os amigos de Momo nã o escaparam desse novo regulamento. Foram
separados uns dos outros, segundo o distrito a que pertenciam, e
colocados em diversos depó sitos.
Naturalmente, nã o lhes era permitido inventar brincadeiras a seu
gosto. Um supervisor determinava seus brinquedos, com os quais as
crianças deveriam sempre aprender algo de ú til. Ao mesmo tempo, com
certeza, desaprendiam a capacidade de serem felizes, de se
empolgarem e de sonhar.
Pouco a pouco, as crianças foram adquirindo a isionomia cios
poupadores de tempo Mal-humoradas, aborrecidas, hostis, faziam o
que se exigia delas. E, quando por acaso eram deixadas sozinhas, já nã o
conseguiam imaginar nada que pudessem fazer.
A ú nica coisa que lhes restava era fazer barulho. Nã o era um barulho
alegre, é claro, mas frené tico e agressivo.
Os homens cinzentos, poré m, nunca se aproximaram das crianças. A
rede que haviam tecido sobre a grande cidade era espessa e,
aparentemente, indestrutı́vel. Nem a criança mais esperta conseguiria
passar entre suas malhas. O plano dos homens cinzentos teve sucesso
absoluto. Tudo estava preparado para a volta de Momo.
O velho an iteatro fora inteiramente esquecido e abandonado.
Momo continuava sentada nos degraus de pedra, esperando por seus
amigos. Desde sua volta, esperou o dia todo. Mas nã o apareceu
ningué m. Ningué m!
O sol já estava se pondo. As sombras alongavam-se e o frio vinha
chegando.
Finalmente, Momo levantou-se. Estava com fome, pois ningué m tinha
pensado em lhe trazer alguma coisa para comer. Nunca tinha
acontecido isso antes. Até Gigi e Beppo pareciam ter-se esquecido dela.
Mas a menina achou que, com certeza, tinha sido apenas algum
contratempo, que se esclareceria no dia seguinte.
Desceu para junto da tartaruga, que já se tinha recolhido para dentro
da carapaça para dormir. Momo aproximou-se e bateu timidamente nas
suas costas; a tartaruga pô s a cabeça para fora e olhou para a menina.
- Desculpe - disse Momo -, sinto muito tê -la acordado, mas queria
saber por que nenhum dos seus amigos veio me ver hoje.
Na carapaça da tartaruga apareceu a resposta: "NAO SOBROU
NENHUM."
Momo leu as palavras sem compreender seu sentido.
- Bem - ela disse, entã o, cheia de con iança -, amanhã icarei sabendo.
Amanhã com certeza meus amigos virã o.
"NUNCA MAIS", foi a resposta de Cassiopé ia A menina icou olhando
por algum tempo as palavras fracamente iluminadas.
- O que você está querendo dizer? - perguntou ela inalmente,
amedrontada. - O que aconteceu com meus amigos?
"FORAM TODOS EMBORA", Momo leu. A menina sacudiu a cabeça.
- Nã o - ela disse, baixinho -, nã o pode ser verdade. Você deve estar
enganada, Cassiopé ia. Ainda ontem estavam todos aqui, naquela
manifestaçã o que deu era7nada.
"VOCE DORMIU MUITO TEMPO", luziu a resposta de Cassiopé ia.
Momo lembrou-se entã o do que lhe dissera Mestre Hora: teria de
dormir durante todo um ciclo solar, como a semente dorme na terra. Ao
concordar, ela nem pensara no tempo que aquilo representaria Só agora
começava a entender.
- Quanto tempo eu dormi? "UM ANO E UM DIA."
Momo demorou um pouco para compreender a resposta.
- Mas... Beppo e Gigi - ela gaguejou, inalmente -, os dois com certeza
ainda estã o me esperando.
"NAO SOBROU NINGUEM", apareceu na carapaça da tartaruga.
- Como é possı́vel? - Momo sussurrou, com os lá bios trê mulos. - Nã o
é possı́vel que tudo tenha sumido... tudo aquilo que...
E, lentamente, nas costas de Cassiopé ia surgiu uma palavra.
"PASSADO".
Pela primeira vez na vida, a menina sentiu plenamente o signi icado
daquela palavra. Seu coraçã o pesava mais do que nunca.
- Mas eu... - murmurou, desamparada - eu ainda estou aqui...
Teve vontade de chorar, mas nã o conseguia. Apó s alguns instantes,
sentiu que a tartaruga roçava seus pé s descalços. "EU ESTOU COM
VOCE!", apareceu em sua carapaça
- Sim - respondeu a menina, com um sorrisinho apertado -, você está
comigo, Cassiopé ia, e ico feliz com isso. Agora, vamos dormir.
g , p , g ,
Momo pegou a tartaruga e, passando com ela pelo buraco do muro,
carregou-a para seu quarto. A luz do crepú sculo, veri icou que tudo
estava conforme ela tinha deixado. (Beppo, na ocasiã o, arrumara a
desordem feita pelos homens cinzentos.) Só que estava tudo coberto de
pó e havia teias de aranha por toda parte.
Sobre a mesa feita de caixotes, havia uma carta, apoiada numa lata,
tudo coberto, també m, de teias de aranha.
"Para Momo", estava escrito.
O coraçã o da menina começou a bater mais depressa. Nunca tinha
recebido uma carta antes. Pegou-a e a revirou de todos os lados. Depois,
rasgou o envelope e tirou um papel de dentro dele.
"Querida Momo!", ela leu "Eu me mudei. Se você voltar, procure-me
logo. Estou muito preocupado com você . Sinto muito sua falta. Tomara
que nã o tenha acontecido nada com você . Se tiver fome, vá até o Nino.
Depois ele me manda a conta e eu pago tudo. Portanto, coma à vontade,
está ouvindo? O Nino vai lhe contar tudo. Continue sempre me
querendo bem! També m a quero muito bem!
Seu amigo de sempre
Gigi"
Momo demorou para soletrar a carta, embora Gigi tivesse se
esforçado para fazer uma letra bonita e clara. Quando ela inalmente
terminou, o ú ltimo clarã o do dia acabava de se apagar.
Momo sentia-se confortada.
Ergueu a tartaruga e colocou-a na cama, a seu lado. Enrolando-se no
cobertor empoeirado, murmurou baixinho:
- Está vendo, Cassiopé ia? A inal eu nã o estou sozinha.
Mas a tartaruga parecia já ter adormecido.
Momo, que ao ler a carta vira a imagem nı́tida de Gigi, nã o se dava
conta de que aquela carta estava ali havia quase um ano.
Deitou o rosto sobre a folha de papel. O frio tinha passado.
Capítulo Quatorze
MUITA COMIDA, POUCAS RESPOSTAS
Momo nã o sabia quanto tempo havia se passado. O reló gio da igreja
batia de vez em quando, mas ela mal o ouvia. Só muito devagar o calor
voltou a seus membros gelados. Sentia-se paralisada e incapaz de tomar
qualquer decisã o.
Deveria voltar ao velho an iteatro e deitar-se para dormir? Toda a
esperança, para ela e seus amigos, estava perdida para sempre. Agora
sabia de fato que nunca mais as coisas icariam bem, nunca mais...
També m temia por Cassiopé ia. O que aconteceria se os homens
cinzentos a encontrassem? A menina começou a censurar-se
amargamente por ter mencionado a tartaruga. Mas tinha icado tã o
atordoada que nem sabia direito o que estava fazendo.
"E talvez", pensou Momo para se consolar, "Cassiopé ia já esteja há
muito tempo junto de Mestre Hora! Tomara que nã o esteja mais me
procurando. Seria melhor para ela... e para mim se..."
Nesse instante, sentiu alguma coisa tocar seus pé s descalços Momo
levou um susto e foi se agachando devagarinho.
Lá estava a tartaruga! E, em meio à escuridã o, lentamente se
acenderam as letras: "AQUI ESTOU DE NOVO".
Sem re letir, Momo pegou-a e en iou-a debaixo do casaco. Depois,
endireitou-se e icou à escuta, perscrutando a escuridã o, com medo de
que os homens cinzentos ainda estivessem por perto.
Mas tudo permaneceu em silê ncio.
Cassiopé ia debatia-se furiosamente dentro do casaco, tentando
libertar-se. Momo manteve-a irmemente apertada contra o corpo,
espiou para dentro do casaco e sussurrou:
- Fique quieta, por favor.
"POR QUE A AFLIÇAO?", apareceu na carapaça.
- Você nã o pode ser vista - murmurou a menina.
Entã o, nas costas da tartaruga, acenderam-se as palavras: "VOCE
NAO ESTA CONTENTE?"
- Claro que estou! - murmurou Momo, quase soluçando. Claro,
Cassiopé ia, e como!
E a menina beijou-lhe o focinho vá rias vezes. As palavras na carapaça
da tartaruga enrubesceram visivelmente quando ela respondeu: "ORA,
POR FAVOR!" Momo sorriu.
- Você esteve realmente à minha procura durante todo esse tempo?
"CLARO!"
- E como me encontrou exatamente neste lugar e neste momento?
"SABIA COM ANTECEDENCIA."
Será que a tartaruga tinha realmente procurado Momo todo o tempo,
sabendo que nã o a encontraria? Ou, na verdade, nem tinha sido preciso
procurar? Era mais um dos enigmas de Cassiopé ia, que imobilizava o
raciocı́nio de quem tentasse pensar no assunto. Poré m nã o era hora de
tentar resolver o problema.
Momo contou-lhe baixinho tudo o que acontecera.
- O que devemos fazer agora? - perguntou ela, inalmente. Cassiopé ia
escutara com atençã o e nas suas costas veio a resposta:
"VAMOS FALAR COM HORA".
- Agora? - exclamou Momo, apavorada. - Mas os homens cinzentos
estã o procurando você por toda parte! Este é o ú nico lugar onde nã o/há
nenhum deles. Nã o seria mais razoá vel icarmos aqui?
Nas costas da tartaruga apareceu simplesmente: "EU SEI, " VAMOS."
- Entã o, no caminho, vamos cair nos braços deles! - declarou Momo.
"NAO ENCONTRAREMOS NENHUM", foi a resposta de Cassiopé ia.
Bem, se ela tinha tanta certeza, podia-se con iar. Momo pô s
Cassiopeia no chã o.
No entanto, ao pensar no caminho longo e cansativo que já
percorrera uma vez, sentiu que nã o tinha mais forças para isso.
- Vá sozinha, Cassiopé ia - disse ela, baixinho -, eu nã o aguento mais.
Vá sozinha e leve minhas lembranças a Mestre Hora.
"ESTAMOS PERTO!", apareceu nas costas de Cassiopé ia.
Momo leu e olhou à sua volta, espantada. Pouco a pouco, no entanto,
percebeu que estavam naquela parte deserta e pobre da cidade por
onde, da outra vez, tinham passado antes de entrar na regiã o de casas
brancas e luminosidade estranha.
Sendo assim, talvez ela ainda conseguisse chegar ao Beco do Nunca e
à Casa de Lugar Nenhum.
- Tudo bem - disse Momo -, vou com você . Será que posso carregá -la,
para chegarmos mais depressa?
"INFELIZMENTE NAO", Momo leu nas costas de Cassiopé ia.
- Por que é que você sempre tem que rastejar sozinha? perguntou a
menina.
Entã o apareceu a resposta enigmá tica: "O CAMINHO ESTA DENTRO
DE MIM."
Com isso, a tartaruga começou a andar e Momo foi atrá s, passo a
passo, lentamente.
Mal a tartaruga e a menina tinham desaparecido por uma das ruelas,
algo se movimentou em torno da praça, nas sombras das casas. Um
ruı́do crepitou pelo imenso espaço vazio, como um risinho gé lido de
zombaria. Eram os homens cinzentos, que tinham assistido a toda a
cena. Alguns tinham icado para trá s, para vigiar a menina, em segredo.
Esperaram muito, mas nem eles imaginaram que seria uma espera tã o
bem-sucedida.
- Lá vã o elas! - sussurrou uma voz cinzenta. - Vamos agarrá -las?
- Claro que nã o! - murmurou outra voz. - Vamos deixá -las andar.
- Como assim? - perguntou a primeira voz. - Pois nã o recebemos
ordens para pegar a tartaruga a qualquer custo?
- Certo. Mas para que precisamos dela?
- Para que nos leve à morada de Mestre Hora.
- Exatamente. E o que ela está fazendo agora. E nem estamos
precisando forçá -la.
Está caminhando por livre e espontâ nea vontade, embora nã o com
essa intençã o.
Mais uma vez, um risinho gé lido de zombaria atravessou as sombras
escuras em torno da praça
- Avisem imediatamente a todos os agentes da cidade que a busca
está suspensa.
Todos devem se juntar a nó s. Mas tenham muito cuidado, senhores!
Nenhum de nó s deve se colocar em seu caminho. Devemos lhes dar
passagem livre. Elas nã o podem nos encontrar. Agora, senhores, vamos
seguir tranquilamente nossos dois guias involuntá rios!
Assim, Momo e Cassiopé ia nã o encontraram, de fato, nenhum de seus
perseguidores.
Para onde quer que fossem, eles se desviavam e sumiam a tempo,
para em seguida juntarem-se a seus companheiros, atrá s dá tartaruga e
da menina. Uma procissã o cada vez maior de homens cinzentos,
sempre se dissimulando atrá s dos muros e das esquinas, seguia
silenciosamente a caminhada das duas fugitivas.
Nunca na vida Momo tinha sentido tanto cansaço. As vezes achava
que no momento seguinte ia cair e adormecer. Mas entã o fazia um
esforço para dar mais um passo, e mais outro. Depois, por mais alguns
instantes, as coisas melhoravam um pouco
Se pelo menos a tartaruga nã o rastejasse tã o terrivelmente devagar!
Quanto a isso, no entanto, nã o havia o que fazer. Momo já nã o olhava
nem para a direita nem para a esquerda, mas só para seus pró prios pé s
e para Cassiopé ia.
Depois de algum tempo, que lhe pareceu uma eternidade, percebeu
que o chã o sob seus pé s estava mais claro. Suas pá lpebras pesavam
como chumbo, mas Momo fez força para mantê -las abertas e olhou à
sua volta.
Sim, inalmente tinham chegado à quela regiã o da cidade em que a
luminosidade nã o era nem da aurora nem do crepú sculo e em que as
sombras se projetavam em todas as direçõ es. Lá estavam as casas
misteriosas, de um branco ofuscante, com suas janelas escuras. E lá
estava també m o curioso monumento, que nada mais era do que
um imenso ovo sobre um pedestal de pedra preto.
p p p
Momo recuperou sua coragem, pois certamente nã o demoraria
muito para estarem junto de Mestre Hora.
- Por favor, nã o podemos andar um pouco mais depressa? -
perguntou a Cassiopé ia.
"QUANTO MAIS DEVAGAR, MAIS DEPRESSA", foi a resposta da
tartaruga.
Ela continuou rastejando, mais devagar ainda do que antes. E de fato,
como da outra vez, Momo percebeu que, andando devagar, avançavam
mais depressa. Era como se a rua deslizasse sob seus pé s, tanto mais
depressa quanto mais devagar elas caminhavam.
Esse era o misté rio daquela regiã o branca da cidade: quanto mais
devagar se caminhava, mais depressa se saı́a do lugar. E, quanto mais se
tinha pressa, mais devagar se avançava. Da outra vez, os homens
cinzentos nã o sabiam disso, quando tentaram perseguir Momo com
seus trê s automó veis. Por isso ela conseguira escapar.
Isso, no entanto, tinha sido da outra vez!
Agora era diferente. Eles nã o queriam pegar a menina e a tartaruga.
Estavam seguindo as duas, caminhando tã o lentamente quanto elas.
Assim també m descobriram o segredo. Lentamente, as ruas brancas
atrá s das duas foram se enchendo com o batalhã o de homens cinzentos.
Como agora eles sabiam como se movimentar naquele lugar,
caminhavam até um pouco mais devagar do que a tartaruga, chegando
cada vez mais perto dela. Era como uma corrida ao contrá rio, uma
corrida de lentidã o.
O caminho atravé s daquelas ruas de sonho dava voltas e mais voltas,
aprofundando-se cada vez mais na regiã o branca. Finalmente chegou a
esquina do Beco do Nunca.
Cassiopé ia já entrara no beco e caminhava para a Casa de Lugar
Nenhum. Momo lembrou-se de que, naquela rua, só conseguira avançar
depois de se virar e começar a andar de costas. Por isso, fez o mesmo.
Entã o, seu coraçã o quase parou de susto.
Como um muro cinzento mó vel, os ladrõ es de tempo vinham
chegando, dispostos em ileiras que ocupavam toda a largura da rua e
se sucediam uma atrá s da outra, a perder de vista.
Momo deu um grito, mas nã o conseguiu ouvir sua pró pria voz
Andando de costas, entrou no Beco do Nunca enquanto itava, de olhos
arregalados, o batalhã o dos homens cinzentos.
Naquele momento, aconteceu algo incrı́vel: quando os primeiros
perseguidores tentaram enveredar pelo Beco do Nunca, literalmente
dissolveram-se em nada diante dos olhos de Momo. Primeiro sumiram
suas mã os, depois as pernas, o tronco e, inalmente, també m seus
rostos, que mostravam uma expressã o de espanto e pavor.
Só que Momo nã o fora a ú nica a presenciar o que tinha ocorrido.
Naturalmente, os homens cinzentos que vinham atrá s també m viram
tudo Os primeiros estacaram, detendo a massa dos que vinham atrá s, e
no inı́cio houve como que uma briga corporal entre eles. Momo via seus
rostos furiosos e seus punhos que brandiam ameaçadores. Nenhum
deles, poré m, ousou continuar a perseguiçã o.
A inal, a menina chegou à Casa de Lugar Nenhum. A grande e pesada
porta de metal verde se abriu. Momo entrou correndo e passou por
todo o corredor com as esculturas de pedra. Abriu a portinha que havia
na outra extremidade e se esgueirou por ela, percorreu a sala com os
inú meros reló gios até a salinha formada pelas caixas dos reló gios de pé .
Lá , jogou-se no sofá macio e escondeu o rosto debaixo de uma
almofada, para nã o ver nem ouvir mais nada
Capítulo Dezenove
OS SITIADOS PRECISAM TOMAR UMA DECISÃO
A primeira coisa que Momo fez -foi abrir a portinha interna com o
nome de Mestre Hora. Em seguida, correu pelo corredor com as
grandes está tuas de pedra e abriu a enorme porta de metal verde. Teve
que usar toda a sua força, pois as folhas da porta eram muito pesadas.
Feito isso, voltou para a grande sala dos reló gios e, com Cassiopé ia
debaixo do braço, icou à espera do que aconteceria.
Entã o aconteceu!
Subitamente houve uma espé cie de tremor, que nã o fez a sala tremer,
mas o tempo.
Foi, por assim dizer, um tremor de tempo. Nã o há palavras capazes
de descrever o que aconteceu. O fenô meno foi acompanhado por um
som que nenhum ser humano jamais ouvira. Era como um gemido
provindo das profundezas dos sé culos.
Depois tudo passou.
No mesmo instante, as muitas vozes dos tique-taques, roncos,
campainhas, rangidos e batidas dos inú meros reló gios cessaram
repentinamente. Os pê ndulos interromperam suas oscilaçõ es no ponto
em que se encontravam. Nada, nada mais se movia. Imediatamente fez-
se um silê ncio tã o absoluto como jamais ocorrera em parte alguma do
mundo. O tempo havia parado.
Momo viu entã o que tinha na mã o uma imensa e maravilhosa lor-
das-horas A menina nã o percebera como aquela lor tinha chegado à
sua mã o. Apareceu de repente, como se sempre tivesse estado ali.
Cautelosamente, Momo deu um passo. De fato, conseguia
movimentar-se com a mesma facilidade de sempre. Os restos do café da
manhã ainda estavam sobre a mesinha.
Momo sentou-se numa das poltronas, poré m as almofadas estavam
duras como má rmore e muito desconfortá veis. Na sua xı́cara restava
ainda um gole de chocolate, só que nã o dava mais para levantá -la do
pires. Momo quis mergulhar o dedo no lı́quido, que no entanto estava
duro como vidro. També m nã o conseguiu apanhar as migalhas de pã o
que tinham icado no prato. Como nã o havia mais tempo, nada mais se
alterava nem se movia.
Cassiopé ia começou a se agitar e Momo olhou para ela
"ESTA PERDENDO TEMPO!", apareceu na carapaça.
Meu Deus, de fato! Momo se apressou. Atravessou a sala, esgueirou-
se pela portinha e continuou correndo pelo longo corredor. Quando
chegou à porta verde, deu uma espiada para a esquina e recuou na
mesma hora. Seu coraçã o começou a bater aos saltos. Os ladrõ es de
tempo nã o estavam indo embora. Pelo contrá rio, vinham andando pelo
Beco do Nunca, onde també m cessara a contracorrente do tempo, na
direçã o da Casa de Lugar Nenhum. Aquilo nã o estava previsto no plano.
Momo voltou em disparada para a sala e escondeu-se atrá s de um
grande reló gio de pé , sempre com Cassiopé ia debaixo do braço.
- Começou bem - murmurou ela.
Ouviu os passos dos homens cinzentos no corredor. Passaram um de
cada vez pela portinha, até se formar um batalhã o deles na sala. Todos
olhavam à sua volta.
- Impressionante! - disse um deles. - Entã o é esta nossa nova morada!
- Foi a menina Momo que abriu a porta - disse uma outra voz
cinzenta. - Eu vi muito bem. Criança inteligente! E admirá vel como ela
conseguiu dar um jeito no velho.
Uma terceira voz, idê ntica, respondeu:
- Na minha opiniã o, o tal fulano deu seu consentimento. Pois, se a
contracorrente no Beco do Nunca cessou, só pode ser porque ele a
desligou. Deve ter compreendido que precisa se submeter a nó s. Agora
vamos acabar logo com ele.
Onde será que se escondeu?
Os homens cinzentos puseram-se a olhar em volta, quando um deles
exclamou, com uma voz mais cinzenta ainda:
- Alguma coisa está errada, senhores! Os reló gios! Vejam, os reló gios
estã o todos parados. Todos! Até este reló gio de areia!
- Ele mesmo os parou - disse outro, sem muita segurança.
- Nã o dá para parar um reló gio de areia - gritou o primeiro. -
Reparem, a areia parou no meio da queda! També m nã o dá para mover
o reló gio! O que signi ica isso?
Ele ainda estava falando, quando se ouviram passos apressados no
corredor. Um outro homem cinzento entrou, gesticulando agitado, e
gritou:
- Acabamos de receber notı́cias de nossos agentes da cidade. Seus
carros pararam.
Tudo parou. O mundo está parado. Nã o é mais possı́vel tirar a menor
parcela de tempo de qualquer ser humano. Nosso sistema de
abastecimento sucumbiu. Nã o há mais tempo. Hora desligou o tempo!
Por um momento, houve um silê ncio mortal. Depois, um deles
perguntou:
- O que está dizendo? Nosso sistema de abastecimento sucumbiu? O
que vai ser de nó s, entã o, quando os charutos que estã o conosco
tiverem acabado?
- Todos sabem perfeitamente o que vai ser de nó s! - gritou um outro.
- E uma catá strofe terrı́vel, senhores!
Começaram a gritar todos ao mesmo tempo:
- Hora pretende nos destruir!
- Temos de levantar o cerco imediatamente!
- Precisamos chegar ao nosso depó sito de tempo!
- Sem carros? Nã o vai dar! Meus charutos só vã o durar mais vinte e
sete minutos.
- Os meus, quarenta e oito.
- Entã o me dê alguns!
- Está louco?
- Salve-se quem puder!
Os homens cinzentos se precipitaram para a portinha, tentando sair
todos ao mesmo tempo. De seu esconderijo, Momo observava como
lutavam, em pâ nico, empurrando, puxando uns aos outros, numa
confusã o cada vez mais violenta Cada um queria passar à frente do
q p
outro, lutando por sua vida cinzenta. Os chapé us voavam de suas
cabeças, saı́am brigas e um tentava arrancar o charuto da boca
do outro. Cada um que icava sem charuto parecia perder as forças de
repente.
Ficava ali, com as mã os estendidas, com uma expressã o de desespero
e medo no rosto, tornando-se cada vez mais transparente, até sumir.
Nada sobrava dele, nem mesmo o chapé u.
No inal, só restaram na sala trê s homens cinzentos, que
conseguiram sair pela portinha estreita e foram embora.
Momo, sempre com a tartaruga debaixo do braço e a lor-das-horas
na outra mã o, correu atrá s deles. Agora tudo dependia de ela nã o
perder de vista os homens cinzentos.
Ao passar pelo portã o, viu que os ladrõ es de tempo já tinham
chegado ao im do Beco do Nunca. Lá , no meio das nuvens de fumaça,
havia outros grupos de homens cinzentos, que gesticulavam agitados e
falavam todos ao mesmo tempo. Quando viram chegar correndo os que
saı́am da Casa de Lugar Nenhum, começaram a correr també m, outros
juntaram-se aos fugitivos. Em pouco tempo, todo o exé rcito batia em
retirada. Uma interminá vel caravana de homens cinzentos corria na
direçã o da cidade pela estranha regiã o dos sonhos, com as casas
brancas como neve e as sombras que se projetavam em todas as
direçõ es. Com o im do tempo, també m ali cessara a misteriosa inversã o
entre devagar e depressa.
A coluna de homens cinzentos passou pelo imenso monumento-ovo
e continuou até onde surgiam as primeiras casas comuns, aqueles
quarté is de aluguel cinzentos e esquá lidos em que as pessoas moravam
no limite do tempo. També m ali estava tudo imó vel.
A uma certa distâ ncia, atrá s dos ú ltimos da ila, seguia Momo. Assim
iniciou-se uma caçada invertida atravé s da grande cidade. Era uma
caçada em que um imenso bando de homens cinzentos fugia,
perseguido por uma menininha com uma lor na mã o e uma tartaruga
debaixo do braço.
Como era estranho o aspecto da grande cidade! Nas ruas e avenidas,
viam-se ilas e ilas de carros parados, com os motoristas imó veis atrá s
do volante, a mã o no câ mbio ou na buzina (um deles estava com a mã o
na testa, olhando furioso para o que estava a seu lado). Alguns ciclistas
mantinham o braço estendido, indicando que iam virar a esquina. Nas
calçadas, todos os pedestres, homens, mulheres e crianças, cã es e gatos
estavam parados e duros. Até a fumaça dos canos de escapamento
estava imó vel.
No cruzamento das ruas, guardas de trâ nsito com o apito na boca
tinham se paralisado no meio de seus gestos. Na praça, um bando de
pombos pairava imó vel no ar. Acima, um aviã o parecia pintado no cé u.
A á gua da fonte tinha aspecto de gelo. Algumas folhas, ao cair das
á rvores, tinham icado suspensas no ar. Um cachorrinho, que acabara
de levantar a pata traseira ao lado de um poste, parecia empalhado.
Atravé s daquela cidade imó vel como uma fotogra ia, os homens
cinzentos corriam em disparada. Momo ia atrá s deles, sempre com
cuidado para nã o ser percebida pelos ladrõ es de tempo. De qualquer
modo, eles já nã o prestavam atençã o em nada, pois sua fuga tornava-se
cada vez mais difı́cil e cansativa.
Nã o estavam acostumados a percorrer distâ ncias tã o grandes a pé .
Estavam ofegantes e sem fô lego. Alé m disso, ainda precisavam cuidar
para manter o charuto na boca. As vezes, algum deles o deixava cair e,
antes que conseguisse pegá -lo no chã o, dissolvia-se em nada.
Mas nã o eram apenas os fatores externos que di icultavam sua fuga.
Cada vez mais aumentava a ameaça por parte de seus pró prios
companheiros. Muitos deles, vendo seu charuto chegar ao im,
simplesmente arrancavam desesperados o charuto da boca de quem
estivesse ao lado. Assim, seu nú mero ia diminuindo, devagar mas
constantemente.
Aqueles que ainda levavam uma pequena reserva na pasta
precisavam tomar cuidado para que os outros nã o o percebessem, pois
os que nã o tinham mais nenhum charuto avançavam nos mais ricos,
tentando tomar-lhes o tesouro. Aconteciam brigas ferozes. Montes
deles lançavam-se uns sobre os outros para se apoderarem de suas
provisõ es. Os charutos acabavam rolando pela rua, provocando
tumulto. O medo de sumir do mundo izera os homens cinzentos
perderem a cabeça.
Havia outro problema, que aumentava à medida que avançavam. Em
alguns lugares da cidade, a multidã o era tã o compacta que os homens
cinzentos tinham di iculdade para passar entre as pessoas, que se
comprimiam como á rvores numa loresta densa. Para Momo, que era
baixinha e magra era muito mais fá cil. Mas até as peninhas pairando no
ar estavam tã o solidamente imobilizadas que os homens cinzentos
quase quebravam a cabeça quando, por distraçã o, esbarravam nelas.
Era um trajeto longo, e Momo nã o tinha ideia de quanto ainda faltava
para chegarem. Olhava preocupada para sua lor-das-horas. Mas só
agora ela desabrochara plenamente, portanto ainda nã o havia motivo
para se preocupar. Aconteceu entã o uma coisa que fez Momo, por um
instante, esquecer todo o resto.
Numa ruazinha transversal, ela avistou Beppo Varredor.
- Beppo! - ela gritou, exultante de alegria e correndo para ele. -
Beppo, procurei você por todo lado! Onde esteve esse tempo todo? Por
que nunca mais apareceu? Ah, Beppo, querido Beppo!
A menina quis pular no pescoço de Beppo, mas ricocheteou, como se
ele fosse de gelo. Momo se machucou e as lá grimas subiram a seus
olhos. Ficou olhando para ele, soluçando
Seu corpo baixinho estava mais encurvado do que antes. Seu rosto
bondoso estava magro e pá lido. Em torno do queixo, crescera-lhe uma
barba branca e rala, pois nem tinha mais tempo para se barbear.
Segurava nas mã os uma vassoura velha, já muito gasta de tanto varrer.
Beppo estava ali, imó vel, como todas as outras pessoas, olhando para a
frente, para a sujeira da rua, atravé s dos seus pequenos ó culos.
Finalmente Momo o encontrara, agora que nã o adiantava mais, pois
ele nã o podia mais notá -la. E talvez estivessem se encontrando pela
ú ltima vez. Ningué m poderia saber o que iria acontecer dali para a
frente. Se as coisas nã o dessem certo, o velho Beppo icaria ali, parado
daquele jeito, por toda a eternidade.
A tartaruga começou a arranhar o braço de Momo.
"ADIANTE!", apareceu na sua carapaça.
Momo voltou depressa para a rua principal e levou um susto. Nã o
havia mais nenhum ladrã o de tempo à vista! Correu na direçã o em que
os homens cinzentos estavam fugindo, mas foi em vã o. Tinha perdido
sua pista!
Ficou parada no lugar, desesperada. O que fazer agora? Olhou
interrogativamente para Cassiopé ia.
"CONTINUE, VOCE VAI ACHA-LOS!", respondeu a tartaruga.
Ora, se Cassiopé ia sabia com antecedê ncia que ela encontraria os
ladrõ es de tempo, nã o importava que rumo tomasse, pois qualquer
caminho daria certo.
Entã o Momo saiu andando por onde lhe dava na cabeça, ora
entrando à direita, ora à esquerda, ora seguindo reto.
Acabou chegando à parte norte da grande cidade, os bairros recé m-
construı́dos, com as casas todas iguais e as ruas compridas e retas, que
se perdiam no horizonte.
Momo continuou andando, andando, mas como todas as casas e ruas
se pareciam, logo teve a impressã o de que nã o estava saindo do lugar.
Era um verdadeiro labirinto, mas um labirinto de regularidade e
igualdade.
A menina já estava perdendo a coragem, quando avistou de repente
um homem cinzento virando uma esquina. Ele mancava, estava com a
calça rasgada, perdera o chapé u e a pasta. Só na sua boca de lá bios
apertados ainda queimava o toco de um charutinho cinzento.
Momo seguiu-o até um lugar em que, numa ileira interminá vel de
casas, de repente faltava uma. Em vez dela, havia ali uma cerca alta de
tá buas, que rodeava um amplo espaço quadrado. Na cerca havia um
portã o, que estava entreaberto, e foi por ele que entrou o ú ltimo
retardatá rio dos homens cinzentos.
Sobre o portã o havia um aviso, e Momo parou para soletrá -lo.
PERIGO DE VIDA
EXPRESSAMENTE PROIBIDA
A ENTRADA DE ESTRANHOS
Capítulo Vinte e Um
O FIM, QUANDO COMEÇA ALGO NOVO
Momo demorou um pouco para ler o aviso. Quando entrou pelo portã o,
o ú ltimo homem cinzento també m havia sumido
Diante dela, havia uma vala enorme, com vinte ou trinta metros de
profundidade.
Em torno da vala havia escavadeiras e outras má quinas de
construçã o. Sobre uma rampa que levava ao fundo, estavam parados
alguns vagõ es de carga. Aqui e ali havia vá rios operá rios, imobilizados
em diferentes posturas. Para onde ir agora?
Momo nã o conseguia descobrir nenhuma entrada que o homem
cinzento pudesse ter utilizado. Olhou para Cassiopé ia, que també m
parecia nã o saber de nada. Nenhuma palavra apareceu em sua
carapaça.
Momo desceu ao fundo da vala e olhou à sua volta. De repente, viu
mais um rosto conhecido. Era Nicola, o pedreiro que certa vez pintara
um bonito quadro de lores na parede de seu quarto. Evidentemente,
ele també m estava imó vel, como todos os outros, mas numa posiçã o
muito curiosa. Tinha a mã o em concha ao redor da boca, como se
estivesse gritando alguma coisa para um companheiro, e com a outra
mã o apontava para a abertura de um cano enorme, a seu lado, no fundo
da vala. Parecia estar olhando para Momo.
A menina nã o pensou muito. Entendeu aquilo como um sinal e
entrou pela abertura.
Imediatamente começou a escorregar, pois o cano descia em declive
ı́ngreme, fazendo curvas fechadas. Momo, como num imenso
escorregador, era jogada de um lado para outro. Praticamente perdeu a
audiçã o e a visã o, naquela corrida louca, que a levava cada vez mais
para o fundo. As vezes dava uma cambalhota e continuava
escorregando de cabeça para baixo. Mas nã o largava a tartaruga nem a
lor. Quanto mais se aprofundava, mais sentia frio.
Houve um momento em que chegou a se perguntar se sairia daquele
tú nel. No entanto, assim que lhe ocorreu essa ideia, o cano terminou de
repente, num corredor subterrâ neo.
Ali já nã o era tã o escuro. Havia uma luminosidade cinzenta, que
parecia emanar das pró prias paredes.
Momo pô s-se de pé e continuou andando. Como estava descalça, seus
passos nã o faziam barulho, mas os dos homens cinzentos voltaram a
ressoar à sua frente. Ela foi seguindo o ruı́do.
O corredor rami icava-se numa in inidade de outras passagens. Era
uma rede de arté rias subterrâ neas que parecia estender-se por baixo
de todo o bairro novo.
A certa altura, a menina escutou um burburinho de vozes. Adiantou-
se e icou à espreita num canto, cautelosamente.
Viu à sua frente uma sala gigantesca, em cujo centro havia uma mesa
de reuniõ es extraordinariamente comprida. Sentados à mesa, em duas
ileiras, estavam os homens cinzentos, ou melhor, os pouquı́ssimos que
restavam! Que aparê ncia miserá vel tinham aqueles ú ltimos ladrõ es de
tempo! Seus ternos estavam em farrapos, tinham cortes e galos nas
carecas cinzentas e seus rostos estavam contorcidos de pavor.
Seus charutos, no entanto, continuavam acesos.
Momo observou que atrá s, no fundo da sala, havia uma enorme porta
de cofre, que estava entreaberta. A sala exalava um frio gé lido. Embora
soubesse que nã o adiantava nada, Momo se encolheu toda e escondeu
os pé s debaixo da saia.
- Precisamos economizar nossas reservas - disse um dos homens
cinzentos, que estava sentado bem na frente da porta blindada. - Nã o
sabemos quanto tempo teremos que resistir. Precisamos nos restringir.
- Agora somos muito poucos! - gritou um outro. - Nossas reservas
darã o para anos!
- Quanto antes começarmos a poupar - retomou o orador -, mais
iremos durar. E os senhores bem sabem o que quero dizer com poupar.
Será su iciente que alguns de nó s sobrevivam a essa catá strofe.
Precisamos examinar os fatos objetivamente!
Assim, nó s que aqui estamos, senhores, já somos demais! Precisamos
reduzir consideravelmente nosso nú mero. E uma questã o de
racionalidade. Permitam que lhes peça, senhores, para fazermos uma
contagem.
Os homens cinzentos izeram a contagem, sendo atribuı́do um
nú mero a cada um.
Depois, o presidente da sessã o tirou uma moeda do bolso e explicou:
- Vamos tirar a sorte. Coroa signi ica que os senhores com nú meros
pares icam, cara signi ica que permanecem os de nú meros ı́mpares.
Jogou a moeda para o alto e voltou a pegá -la.
- Coroa! - ele gritou. - Os que tê m nú meros pares icam, os que tê m
nú meros ı́mpares sã o solicitados a se dissolver!
Um lamento inexpressivo percorreu a ileira dos perdedores, mas
nenhum deles protestou.
Os ladrõ es de tempo com nú meros pares tiraram os charutos dos
outros, e os condenados dissolveram-se em nada.
- Agora - disse o presidente da sessã o, quebrando o silê ncio -, vamos
fazer o mesmo mais uma vez, por favor.
O mesmo procedimento cruel foi repetido, depois mais uma vez e
mais outra, quatro vezes ao todo. Finalmente, só tinham sobrado seis
homens cinzentos.
Estavam sentados trê s de cada lado, numa das extremidades da
mesa, e olhavam-se gelidamente.
Momo observou tudo horrorizada. Notou que, cada vez que diminuı́a
o nú mero de homens cinzentos, o frio també m diminuı́a
consideravelmente. Agora já estava quase suportá vel
- Seis - disse um dos homens cinzentos - é um nú mero feio.
- Agora chega! - protestou um dos que estavam do outro lado da
mesa. - Nã o há razã o para diminuirmos mais ainda nosso nú mero. Se
nó s seis nã o conseguirmos sobreviver à catá strofe, trê s també m nã o
conseguirã o.
- Nã o necessariamente - retrucou um outro. - No entanto, se for o
caso, sempre poderemos voltar a conversar sobre isso mais tarde.
Fizeram silê ncio por um momento, até que um deles comentou:
- E uma sorte a porta do depó sito estar aberta quando a catá strofe
começou. Se naquele momento a porta estivesse fechada, agora nã o
haveria força no mundo capaz de abri-la. Estarı́amos perdidos.
- Infelizmente nã o é bem assim, meu caro - respondeu um outro. - A
porta estando aberta, o frio dos congeladores irá diminuir. Aos poucos,
as lores-das-horas irã o degelar. E, como os senhores sabem, nã o
poderemos impedir que elas voltem a seus antigos donos.
- O senhor acha - perguntou um terceiro - que nosso frio já nã o é
su iciente para manter as reservas congeladas?
- Infelizmente somos apenas seis - replicou o segundo - e o senhor
pode avaliar por si mesmo a quantidade de frio que somos capazes de
produzir. Estou achando que fomos precipitados reduzindo nosso
nú mero tã o drasticamente. Nã o ganharemos nada com isso.
- Tı́nhamos de escolher entre duas possibilidades - respondeu o
primeiro homem cinzento - e nos decidimos por essa.
Mais uma vez icaram em silê ncio.
- Quer dizer que talvez tenhamos que icar aqui durante anos, só
olhando uns para os outros? - perguntou um deles. - Confesso que a
perspectiva nã o me parece animadora.
Momo começou a re letir. Certamente nã o tinha sentido icar ali, só
esperando.
Quando nã o houvesse mais homens cinzentos, as lores-das-horas
degelariam por si. Só que por enquanto eles ainda existiam. E
continuariam existindo sempre, se ela nã o izesse alguma coisa. Mas
fazer o que, já que a porta do depó sito estava aberta e os ladrõ es de
tempo poderiam se abastecer a qualquer momento?
Cassiopé ia esperneou e Momo olhou para ela.
"FECHE A PORTA", estava escrito na sua carapaça.
- Nã o dá - sussurrou a menina. - Ela está imó vel.
"TOQUE COM A FLOR", foi a resposta.
- Se eu tocar a porta com a lor-das-horas, ela se fechará ? - sussurrou
Momo.
"ISSO MESMO", apareceu nas costas da tartaruga.
Se Cassiopé ia estava dizendo, era porque ia acontecer. Momo pô s a
tartaruga no chã o, com todo o cuidado. Depois pegou a lor, que já
estava começando a murchar e tinha perdido algumas pé talas, e a
escondeu debaixo do casaco.
Sem que os homens cinzentos a vissem, ela se esgueirou para baixo
da mesa. Foi engatinhando até a outra ponta. Viu-se, entã o, entre os pé s
cios ladrõ es cie tempo, com o coraçã o aos saltos.
Devagarinho, tirou a lor-das-horas de baixo do casaco, colocou-a
entre os dentes e foi se rastejando entre as cadeiras, sempre sem que os
homens cinzentos a notassem.
Momo alcançou a porta entreaberta, tocou-a com a lor e, ao mesmo
tempo, empurrou-a com a mã o.
A porta girou silenciosamente nas dobradiças e se fechou com um
estrondo. O som se repercutiu pela sala em mú ltiplos ecos, que foram se
espalhando pelos milhares de corredores.
Momo deu um salto. Os homens cinzentos, que nem de longe
imaginavam que algum outro ser alé m deles pudesse ter escapado
à quela completa imobilidade, continuaram sentados, paralisados de
susto, olhando para a menina.
Sem perder tempo, Momo passou por eles, correndo para a saı́da da
sala. Logo os homens cinzentos se recuperaram e saı́ram correndo atrá s
dela.
- E aquela menina horrorosa! - ela ouviu um deles gritar.
- E Momo!
- Nã o é possı́vel! - gritou um outro. - Como é que ela consegue se
mover?
- Ela tem uma lor-das-horas - urrou um terceiro.
- Foi com isso que ela conseguiu mover a porta? - perguntou o
quarto.
O quinto bateu com força na testa: - Entã o també m poderı́amos ter
conseguido. Nó s temos um monte delas.
- Tı́nhamos, tı́nhamos! - berrou o sexto. - Mas agora a porta está
fechada! Só temos uma saı́da: precisamos tomar a lor-das-horas da
menina, senã o estará tudo acabado!
Enquanto isso, Momo já tinha desaparecido pelos corredores, que se
rami icavam in initamente. Mas os homens cinzentos conheciam tudo
aquilo bem melhor. Momo ia para um lado, ia para o outro, à s vezes
quase caı́a nos braços de algum de seus perseguidores, mas sempre
conseguia escapar.
Cassiopé ia també m, a seu modo, participava da batalha Só conseguia
rastejar muito devagar, mas, como sabia de antemã o por onde os
perseguidores iriam passar, chegava ao lugar na hora certa, colocava-se
no meio do caminho, de tal modo que os cinzentos tropeçavam nela e se
estatelavam no chã o. Os que vinham atrá s iam caindo um por cima do
outro. Desse modo, a tartaruga salvou Momo vá rias vezes de ser
apanhada. E claro que muitas vezes ela mesma acabava sendo chutada
contra a parede. Isso, no entanto, nã o a impedia de continuar fazendo o
que sabia de antemã o que iria fazer.
Nessa correria, alguns homens cinzentos, atordoados pelo anseio de
se apossar da lor-das-horas, perderam seus charutos e se dissolveram
em nada. Finalmente, só restaram dois.
Momo voltou para a sala de reuniõ es. Os dois ladrõ es de tempo
correram atrá s dela em volta da mesa, mas nã o conseguiram pegá -la. A
uma certa altura, separaram-se, cada um correndo num sentido.
Momo nã o tinha mais saı́da. Ficou encurralada num canto da sala,
olhando amedrontada para os dois perseguidores. Continuava
segurando a lor apertada contra o corpo. Só lhe restavam mais trê s
pé talas.
O primeiro perseguidor esticou a mã o para pegar a lor quando o
segundo o empurrou para trá s.
- Nã o! - ele gritou - A lor é minha! E minha!
Os dois começaram a brigar. O primeiro arrancou o charuto da boca
do outro, que se virou e, com um gemido fantasmagó rico, foi icando
transparente, até sumir.
O ú ltimo homem cinzento avançou para Momo. No canto de sua boca
ainda queimava um minú sculo toco de charuto.
- Dê -me a lor! - disse ele, ofegante. Com isso, o toco de charuto caiu-
lhe cia boca e rolou pelo chã o. O homem cinzento se jogou no chã o e,
esticando o braço, tentou pegá -lo, mas nã o conseguiu mais.
Voltou seu rosto cinzento, com muito esforço soergueu o corpo e
estendeu a mã o trê mula.
- Por favor - ele murmurou -, por favor, menina boazinha, dê -me a
lor!
Momo continuava encolhida no canto da sala, com a lor apertada
contra o peito.
Já sem conseguir articular uma palavra, recusou, balançando a
cabeça.
O ú ltimo homem cinzento meneou a cabeça devagar.
- Está bem - murmurou. - Está bem. Agora... tudo .. se acabou...
E també m ele desapareceu.
Momo itava com olhos arregalados o lugar em que ele estivera
deitado. Mas lá estava Cassiopé ia, em cuja carapaça apareceu: "ABRA A
PORTA".
Momo foi até a porta, voltou a tocá -la com a lor, que agora só tinha
mais uma pé tala, e a escancarou.
Com o desaparecimento do ú ltimo ladrã o de tempo, també m o frio se
fora, Momo entrou no imenso depó sito, com os olhos arregalados. As
lores-das-horas, em nú mero incalculá vel, en ileiravam-se em longas
prateleiras, como cá lices de vidro. Cada uma era mais linda do que as
outras, e nã o havia duas que fossem iguais. Eram centenas de milhares,
milhõ es de horas de vida. O ar foi icando quente, como dentro de uma
estufa.
Quando a ú ltima pé tala da lor-das-horas de Momo estava caindo,
começou de repente uma espé cie de tempestade. Nuvens de lores-das-
horas rodopiavam em torno dela e iam passando. Era como uma
tempestade quente de primavera, mas uma tempestade de tempo
liberto.
Como num sonho, Momo olhou à sua volta e viu Cassiopé ia no chã o à
sua frente. Na sua carapaça apareceram, luminosas, estas palavras:
"VOE PARA CASA, MOMO, VOE PARA CASA!"
Foi a ú ltima vez que Momo viu Cassiopé ia. A tempestade das lores
intensi icou-se de uma maneira indescritı́vel e tornou-se tã o forte que
ergueu
Momo, como se ela també m fosse uma das lores. Momo foi
carregada para fora dos corredores escuros, para cima da Terra e da
grande cidade. A menina sobrevoou telhados e torres numa imensa
nuvem de lores, que se tornava cada vez maior.
Era como se fosse uma dança alegre acompanhando uma mú sica
maravilhosa, em que ela lutuava para cima, para baixo e girando em
torno de si mesma.
Depois a nuvem de lores foi mergulhando suavemente, e as lores
foram caindo como locos de neve sobre o mundo imó vel. E, como
locos de neve, elas se dissolviam e voltavam a se tornar invisı́veis, para
voltarem ao lugar a que pertenciam: o coraçã o das pessoas.
No mesmo instante, o tempo recomeçou. Tudo voltou a se mover e a
se deslocar. Os carros avançavam, os guardas de trâ nsito apitavam, os
pombos voavam e o cachorrinho fez sua pocinha ao pé do poste.
As pessoas nem perceberam que durante uma hora o mundo havia
parado. Pois, na verdade, nã o se passara nenhum tempo entre a
interrupçã o e o recomeço. Para elas, fora o tempo de um piscar de
olhos.
No entanto, alguma coisa havia mudado. De repente, todas as
pessoas tinham muito tempo. E claro que todas estavam muito
contentes com isso, mas ningué m sabia que, na verdade, era seu
pró prio tempo economizado que estava voltando de um modo
maravilhoso.
Quando Momo recuperou totalmente a consciê ncia, estava
novamente numa rua. Era a rua transversal onde antes encontrara
Beppo. E, de fato, lá estava ele! Estava de costas para ela, apoiado na sua
vassoura, olhando pensativo à sua frente, exatamente como antes. Nã o
tinha mais pressa e nã o conseguia entender por que, de repente, sentia-
se tã o confortado e tã o cheio de esperança.
"Talvez agora eu já tenha poupado as cem mil horas para resgatar
Momo", pensou entã o.
No mesmo instante, algué m o puxou pela manga. Voltou-se e viu
Momo a seu lado.
Nã o há palavras para descrever a alegria daquele reencontro. Os dois
riam e choravam, falavam ao mesmo tempo e, naturalmente, muita
tolice, como sempre acontece quando estamos embriagados de
felicidade. Nã o paravam de se abraçar, e as pessoas que passavam
icavam olhando, alegrando-se, rindo e chorando com eles, pois agora
todas tinham tempo para isso.
A inal, Beppo pô s a vassoura no ombro, pois, como é de se
compreender, por aquele dia o trabalho estava encerrado. Os dois
saı́ram andando pela grande cidade, de braços dados, a caminho de
casa, o velho an iteatro. Tinham muita coisa para contar um ao outro.
Havia muito tempo també m nã o se via a grande cidade como naquele
dia. Crianças brincavam no meio da rua, e os motoristas que eram
obrigados a esperar as observavam sorridentes. Muitos até desciam do
carro para brincar junto. Por todo lado viam-se pessoas conversando
amigavelmente e trocando notı́cias detalhadas sobre suas vidas. Quem
ia para o trabalho, tinha tempo para admirar as lores de uma janela ou
alimentar um passarinho. Os mé dicos tinham tempo para se dedicar a
seus doentes. Os trabalhadores podiam realizar seu ofı́cio com
tranquilidade e amor, pois já nã o havia a preocupaçã o de fazer o mais
possı́vel no menor tempo.
Muitos, poré m, nunca souberam a quem deveriam agradecer tudo
aquilo e o que de fato acontecera naquele instante, que para eles havia
durado um piscar de olhos.
A maioria das pessoas nã o teria acreditado. As ú nicas que
acreditavam e sabiam eram os amigos de Momo.
Assim, naquele dia, quando Beppo e a menina chegaram ao
an iteatro, já estavam todos à sua espera: Gigi Guia, Paulo, Má ssimo,
Franco, Maria com sua irmã zinha Dedé , Clá udio e as outras crianças,
Nino e Liliana, os donos do bar, com seu bebê , Nicola, o pedreiro, e as
demais pessoas da vizinhança, que sempre iam até lá e que Momo
gostava de ouvir.
Entã o houve uma festa, tã o animada como só os amigos de Momo
sabiam fazer, que durou até as velhas estrelas ocuparem o cé u.
Depois que a alegria, os abraços, os apertos de mã o, os risos e os
gritos se acalmaram, sentaram-se todos nos degraus cobertos de capim.
Fez-se silê ncio.
Momo foi para o centro da grande arena. Lembrou-se das vozes das
estrelas e das lores-das-horas. E, com voz clara, começou a cantar.
Na Casa de Lugar Nenhum, Mestre Hora, que o tempo, ao voltar,
acordara de seu primeiro e ú nico sono, estava sentado sorridente em
sua poltrona junto à mesinha, observando Momo e seus amigos atravé s
dos ó culos de visã o global. Ainda estava muito pá lido e parecia
convalescer de uma doença grave. Mas seus olhos brilhavam
- Cassiopé ia - disse ele, carinhosamente, coçando-lhe o pescoço -,
você s duas se saı́ram muito bem! Vai ler de me contar tudo, pois desta
vez nã o pude observá -las.
"MAIS TARDE", apareceu nas costas da tartaruga e ela deu um
espirro.
- Será que você se resfriou? - perguntou Mestre Hora, preocupado.
"E COMO!", respondeu Cassiopé ia.
- Deve ter sido por causa do frio dos homens cinzentos disse Mestre
Hora. - Imagino que você deve estar exausta e querendo, antes de mais
nada, dar uma boa descansada. Portanto, pode se recolher.
"OBRIGADA!", apareceu na carapaça
Cassiopé ia saiu rastejando, procurando um canto escuro e
sossegado. Recolheu a cabeça e as quatro patas e, nas suas costas,
visı́veis apenas para quem leu esta histó ria, foram aparecendo
devagarinho as letras:
FIM
BREVE POSFÁCIO DO AUTOR
im do livro