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MOMO

e o
Senhor do Tempo

Michael Ende
Contra capas

“Contei-lhe esta histó ria", diz o passageiro misterioso ao autor, “como


se já tivesse acontecido. Mas també m poderia ter contado como se fosse
acontecer no futuro. Para mim, nã o há muita diferença.”
O tempo é um enigma que intriga crianças e adultos que ainda nã o
desaprenderam de se maravilhar com aquilo que parece evidente. A
histó ria de Momo se passa num reino de fantasia situado no nada e em
lugar nenhum, ou numa regiã o sem tempo. Nã o é uma histó ria de
prı́ncipes, princesas e fadas. Seu contexto se inspira totalmente na vida
atual, seu cená rio é uma grande cidade de algum lugar da Europa do
sul. E ela mostra que o mundo moderno nã o é mais pobre em
maravilhas e misté rios do que o passado, quando o vemos atravé s dos
olhos de MOMO e de seus amigos.
Sob a in luê ncia dos "homens cinzentos", uma organizaçã o
fantasmagó rica, um nú mero cada vez maior de seres humanos é levado
a economizar tempo. Mas, na verdade, 0 que signi ica esse tempo
poupado? Ora, tempo é vida, e a vida mora nos coraçõ es. Quanto mais
as pessoas poupam tempo, mais pobre, super icial e fria se torna uma
existê ncia e mais alheias elas se tornam a si mesmas. Quem mais sente
essa ausê ncia de amor e vida sã o as crianças. Seu protesto, no entanto,
nã o passa despercebido.
Quando o perigo se agrava e o mundo parece já estar nas mã os dos
homens cinzentos, Mestre Hora, o misterioso "distribuidor e tempo",
resolve agir drasticamente. Para isso, precisa da ajuda de uma criança
humana. O mundo pá ra, e MOMO, a pequena heroı́na desgrenhada
desta histó ria, luta sozinha contra todo um batalhã o de homens
cinzentos. Leva como armas apenas uma lor na mã o e uma tartaruga
debaixo do braço, e acaba triunfando maravilhosamente. Todo o tempo
de vida até entã o roubado dos seres humanos volta a seus verdadeiros
donos e a esperança volta a um mundo desenganado.
Uma fá bula? Pode-se dizer que sim, uma vez que essa designaçã o
seja entendida no sentido româ ntico, pois realidade e sonho se
interpenetram de maneira poé tica.
Ao mesmo tempo, nos mú ltiplos personagens e destinos re letem-se
perguntas a respeito de nossa verdade presente e futura. Talvez, entã o,
um romance?
Dirı́amos: um romance fabuloso.
Tua luz brilha na escuridã o,
nã o sei de onde ela vem.
Brilha tã o perto e tã o distante.
Como te chamas nã o sei.
També m nã o sei o que desejas.
Brilha, brilha, estrelinha!
(De uma velha cançã o infantil irlandesa)
PRIMEIRA PARTE
MOMO E SEUS AMIGOS
Capítulo Um
UMA CIDADE GRANDE E UMA MENINA PEQUENA

Há muito, muito tempo, quando os homens ainda falavam lı́nguas muito
diferentes das nossas, nos paı́ses quentes já existiam cidades grandes e
magnı́ icas. Nelas erguiam-se palá cios de reis e imperadores, havia
largas avenidas, ruelas e becos estreitos, templos suntuosos com
está tuas de ouro e má rmore, feiras nas quais se encontravam à venda
mercadorias de todos os reinos, praças bonitas e espaçosas onde o povo
se reunia para discutir as ú ltimas notı́cias, ouvir ou fazer discursos. E
nessas cidades havia, sobretudo, grandes teatros.
Pareciam os circos de hoje, só que eram feitos de blocos de pedra. As
ileiras de assentos para o pú blico eram construı́das uma acima da
outra, como degraus de uma escada, formando uma espé cie de imenso
funil Vistas de cima, algumas dessas construçõ es eram circulares,
outras eram mais ovais e outras, ainda, tinham a forma de um amplo
semicı́rculo. Eram chamadas de an iteatros.
Alguns eram grandes como está dios de futebol, outros eram
menores, só podendo conter algumas centenas de espectadores. Alguns
eram luxuosos, ornamentados com está tuas e colunatas, outros eram
simples e modernos.
Esses an iteatros nã o tinham teto, e tudo se passava ao ar livre. Por
isso, nos de luxo eram estendidas tapeçarias bordadas em ouro, de
modo a proteger o pú blico contra o calor do sol ou as repentinas
tempestades. Nos modestos, esteiras de palha ou vime tinham a mesma
serventia. Em suı́na, cada um correspondia à s possibilidades dos
habitantes do lugar. Mas todos queriam ter um teatro, pois eram
ouvintes e espectadores apaixonados.
Acompanhando os acontecimentos emocionantes ou cô micos
representados no palco, as pessoas tinham a impressã o de que,
misteriosamente, aquela vida ictı́cia era mais real do que sua pró pria
vida cotidiana e adoravam mergulhar nessa outra realidade.
Passaram-se milhares de anos. As grandes cidades daquele tempo
desmoronaram, os templos e palá cios ruı́ram, o vento e a chuva, o calor
e o frio desgastaram as pedras, e dos grandes an iteatros só restaram
ruı́nas. Agora, entre as pedras caı́das, as cigarras cantam sua cançã o
monó tona, que soa como o respirar da terra adormecida.
Algumas dessas grandes cidades antigas, entretanto, continuam
sendo grandes cidades nos dias de hoje. A vida nelas mudou, é claro! As
pessoas andam de ô nibus ou de automó vel, tê m telefone e luz elé trica.
Mas aqui e ali, entre as casas modernas, há algumas colunas, uma
arcada, um pedaço de muro ou mesmo um an iteatro daquele tempo
antigo.
E foi numa dessas cidades que aconteceu a histó ria de Momo.
Alé m do limite sul da grande cidade, lá onde as casas vã o icando
menores, mais pobres, e começam os campos, escondidas num bosque
de pinheiros estã o as ruı́nas de um pequeno an iteatro. Mesmo nos
tempos antigos, nã o era dos mais importantes; era, digamos, um teatro
para as pessoas mais pobres. Em nossa é poca, isto é , na é poca em que
começa a histó ria de Momo, as ruı́nas estavam quase inteiramente
esquecidas. Só alguns professores de arqueologia as conheciam, mas
nã o manifestavam maior interesse por elas, porque nada mais havia
por descobrir. També m nã o era uma atraçã o compará vel a outras da
cidade, de modo que só alguns raros turistas apareciam de vez em
quando, subiam pelas pedras meio recobertas pelo capim, agitavam-se,
tiravam algumas fotos e iam embora.
Entã o a paz voltava ao semicı́rculo de pedra e as cigarras retomavam
sua cançã o interminá vel, igualzinha à de antigamente.
Na verdade, só as pessoas das vizinhanças conheciam aquela curiosa
construçã o.
Lá deixavam pastar suas cabras, as crianças aproveitavam o espaço
plano do centro para jogar bola e, à s vezes, namorados se encontravam
à noite por ali.
Mas um dia começaram a dizer que havia algué m morando nas
ruı́nas. Era uma criança, provavelmente uma menina, poré m era difı́cil
saber com certeza, pois sua maneira de se vestir era meio esquisita. Seu
nome era Momo, ou coisa parecida.
De fato, a aparê ncia de Momo era meio estranha e poderia
escandalizar algué m que izesse muita questã o de ordem e limpeza. Ela
era baixinha e magrinha, de modo que era impossı́vel dizer ao certo se
tinha apenas oito anos ou já estava com doze. Seu cabelo preto, de
cachos desgrenhados, parecia nunca ter visto tesoura ou pente. Tinha
olhos grandes e muito bonitos, pretos como piche, e seus pé s eram
quase da mesma cor, pois ela andava descalça. As vezes, no inverno,
calçava sapatos, mas eram grandes demais e um pé diferente do outro.
Isso acontecia porque nada do que Momo tinha era comprado ou feito
especialmente para ela; eram coisas usadas que achava ou que algué m
lhe dava. Sua saia, comprida até o tornozelo, era uma mistura de
retalhos de vá rias cores, costurados uns aos outros. Por cima de tudo,
ela usava um paletó de homem, grande demais, com as mangas
enroladas. Momo nã o quis cortá -las porque pensou, com muita razã o,
que ainda estava crescendo, e talvez nã o voltasse a encontrar outro
paletó bonito e prá tico como aquele, com tantos bolsos. Por baixo da
arena invadida pelo capim, no centro do an iteatro em ruı́nas, restavam
corredores e galerias à s quais se podia chegar por um buraco aberto no
muro. Era ali que Momo se havia instalado.
Certa manhã , chegaram alguns homens e mulheres da vizinhança,
para tentar descobrir alguma coisa a respeito da menina. Momo icou
parada diante deles, olhando para todos com muito medo, receando
que quisessem expulsá -la, mas logo percebeu que eram simpá ticos.
També m eram pobres e conheciam a vida.
- Muito bem - disse um dos homens -, entã o você gosta deste lugar?
- Gosto - respondeu Momo.
- E gostaria de icar aqui?
- Gostaria, sim.
- Mas ningué m está esperando por você em algum outro lugar?
- Nã o.
- Quer dizer, você nã o precisa voltar para casa?
- Minha casa é aqui - respondeu ela, prontamente.
- Mas de onde é que você veio, menina?
Momo fez um gesto vago na direçã o do horizonte.
- Entã o, quem sã o seus pais? - insistiu o homem.
A menina olhou para cada um deles, com ar perplexo, e encolheu os
ombros.
Todos se entreolharam, suspirando.
- Nã o precisa ter medo - continuou o homem. - Nã o vamos mandá -la
embora. Queremos ajudá -la.
Momo meneou a cabeça, calada, sem muita convicçã o.
- Você disse que seu nome é Momo, nã o é ?
- E.
- E um nome bonito, mas que eu nunca tinha ouvido antes. Quem lhe
deu esse nome?
- Eu mesma.
- Você mesma?...
-E
- Quando você nasceu?
Momo pensou um pouco e, inalmente, disse:
- Tanto que eu me lembre, sempre existi.
- Você nã o tem um tio, uma tia, uma avó ou algum parente com quem
possa morar?
Momo tornou a olhar para o homem, re letindo em silê ncio.
Finalmente, respondeu baixinho:
- Minha casa é aqui.
- Certo - retrucou o homem -, mas você ainda é criança. Quantos anos
você tem?
Momo hesitou, mas acabou respondendo:
- Cem.
Todos riram, achando que ela estava brincando.
- Falando sé rio, que idade você tem?
Ainda hesitante, Momo respondeu:
- Cento e dois anos.
Demorou um pouco para as pessoas perceberem que ela repetia, ao
acaso, nú meros de que tinha ouvido falar, sem saber o que signi icavam,
pois ningué m lhe havia ensinado a contar.
- Escute - disse o homem, depois de consultar um outro -, você se
incomodaria se avisá ssemos à polı́cia que você está aqui? Poderiam
colocá -la num orfanato, onde você teria boa comida, aprenderia a ler,
escrever, fazer contas, e uma porçã o de outras coisas. Que tal a ideia?
Momo murmurou, apavorada:
- Nã o. Eu nã o quero. Já estive no orfanato. Havia outras crianças
també m. Tinha grade nas janelas. Todos os dias uma de nó s levava uma
surra, sem razã o nenhuma. Entã o, uma noite, eu pulei o muro e fugi.
Nã o quero voltar para lá ...
- Compreendo - disse um velho, balançando a cabeça.
E todos os outros compreenderam.
- Muito bem - disse uma mulher -, mas você ainda é pequena. Algué m
precisa cuidar de você .
- E. Eu vou cuidar de mim - respondeu Momo, aliviada.
- Mas você é capaz? - perguntou a mulher.
Momo icou quieta, pensando, depois disse com voz suave:
- Eu nã o preciso de muita coisa...
As pessoas voltaram a suspirar e a se consultar com os olhos,
gesticulando.
- Sabe, Momo - recomeçou o homem que tinha falado primeiro -,
achamos que podı́amos dar um jeito de você morar na casa de um de
nó s. E verdade que ningué m tem muito espaço e quase todos tê m
muitos ilhos para alimentar. Mas, a inal..., um a mais ou a menos nã o
faz grande diferença. O que você acha?
- Muito obrigada - respondeu Momo, sorrindo pela primeira vez. -
Muitı́ssimo obrigada. Mas você s nã o podiam me deixar icar morando
aqui?
As pessoas cochicharam, discutiram e por im concordaram. A inal
de contas, a menina estaria tã o bem ali quanto na casa de algum deles.
E lá todos poderiam cuidar de Momo. Seria mais fá cil do que se um só
icasse incumbido disso.
Começaram imediatamente a fazer uma boa limpeza na galeria em
ruı́nas onde Momo morava e a arrumar tudo da melhor maneira
possı́vel. Um homem, que era pedreiro, fez um fogã ozinho de pedra
para ela, e com um velho cano enferrujado izeram uma chaminé .
Aproveitando uns caixotes, um velho carpinteiro fez uma mesinha e
duas cadeiras. Por im, as mulheres trouxeram uma cama enferrujada,
um colchã o meio rasgado e dois cobertores. A galeria de pedra debaixo
do an iteatro se transformou numa moradia bem jeitosa.
O pedreiro, que era dado a artista, pintou na parede um bonito
quadro de lores.
Pintou até a moldura em volta e o prego no qual o quadro deveria
estar pendurado.
Depois chegaram os ilhos daquelas pessoas, cada um trazendo o que
tinha poupado da sua comida: um trouxe um pedacinho de queijo,
outro um pã ozinho, outro uma fruta e assim por diante. Como todos
tinham muitos ilhos, naquela noite se juntaram tantas crianças que
acabaram armando uma festa no an iteatro, para comemorar a chegada
de Momo. Foi uma festa alegre, daquelas que só as pessoas simples sã o
capazes de apreciar.
Assim começou a amizade entre Momo e seus vizinhos.
Capítulo Dois
UM DOM RARO E UMA BRIGA COMUM

A partir de entã o, tudo passou a correr bem para Momo, pelo menos na
opiniã o dela. Sempre tinha alguma coisa para comer, à s vezes mais,
outras vezes menos, dependendo do que o pessoal conseguisse poupar.
Tinha um teto, uma cama, e, quando fazia frio, podia acender um fogo. O
mais importante, no entanto, era que tinha muitos bons amigos.
Era de se pensar que a sorte estava com Momo, que tinha encontrado
gente tã o amiga, e ela mesma achava isso. Entretanto, os outros logo
perceberam que a sorte estava com eles també m. Precisavam de Momo
e icavam se perguntando como tinham conseguido viver sem ela até
entã o. A medida que o tempo passava, a menina se tornava mais
necessá ria, tã o necessá ria que seus amigos tinham medo de que, um
belo dia, pudessem acordar e nã o a encontrar mais.
Por isso Momo passou a receber visitas constantemente. Havia
sempre algué m sentado perto dela, conversando com ar muito
interessado. Quem precisasse dela, mas nã o pudesse ir até lá , mandava
buscá -la. E, se algué m ainda nã o tivesse percebido que precisava dela,
ouvia logo o conselho:
- Ora, vá falar com Momo!
Essa expressã o tornou-se quase uma frase feita entre as pessoas da
vizinhança.
Assim como dizemos "Boa sorte!", "Bom apetite!" ou "Só Deus sabe!",
lá se dizia, sempre que havia oportunidade, "Ora, vá falar com Momo!"
Mas por quê ? Será que Momo era tã o sensata que sempre tinha um
bom conselho para dar? Será que encontrava sempre as palavras certas
para dizer a quem precisasse de consolo? Ou sempre proferia frases
sá bias e justas?
Nã o. Quanto a isso, Momo era igual a qualquer outra criança.
Entã o será que Momo sabia fazer alguma coisa para deixar as
pessoas sempre de bom humor? Será que ela sabia, por exemplo, cantar
bem? Ou tocar algum instrumento? Ou entã o - já que ela morava numa
espé cie de circo - sabia dançar ou fazer acrobacias?
Nã o, també m nã o era isso.
Será que ela sabia fazer má gicas? Ou conhecia alguma fó rmula
secreta para fazer as pessoas se esquecerem de suas preocupaçõ es? Ou
sabia ler as mã os ou prever o futuro de alguma outra maneira?
Nada disso.
O que Momo sabia fazer melhor do que ningué m era ouvir. Muitos
leitores devem estar achando que isso nã o é nada de mais, que
qualquer um sabe ouvir. Mas é engano. Muito pouca gente sabe ouvir de
verdade. E o jeito de Momo ouvir e entender era muito especial.
Momo ouvia de tal modo que as ideias acertadas acabavam surgindo
na cabeça de algué m que estivesse meio desorientado. Nã o é que ela
dissesse ou perguntasse alguma coisa que levasse a pessoa a pensar de
determinada maneira. A menina só icava ali sentada, ouvindo com
atençã o e simpatia. Ao mesmo tempo itava a outra pessoa com seus
grandes olhos negros, e nela surgiam pensamentos que nunca tivera
antes, como se lhe tivessem sido encravados por aquele olhar.
Momo ouvia de um jeito que fazia os desesperados ou hesitantes de
repente saberem o que queriam; ou os tı́midos sentirem-se à vontade e
con iantes; os infelizes e oprimidos sentirem-se felizes e cheios de
esperança. Quando algué m achava que sua vida nã o tinha sentido,
acreditando-se um fracassado, apenas um ser entre milhõ es, sem
qualquer importâ ncia e tã o fá cil de ser substituı́do como um prato
quebrado, ia procurar a menina. Entã o, à medida que contava suas
desventuras, a pessoa ia percebendo que, fosse ela o que fosse, era uma
pessoa ú nica no mundo inteiro, e por isso mesmo era importante para o
mundo, por ser de seu pró prio jeito.
Era assim que Momo ouvia.
Um dia, dois homens foram ao an iteatro procurar Momo. Eram
inimigos jurados e, embora fossem vizinhos, recusavam-se a falar um
com o outro. Outras pessoas tinham aconselhado que procurassem
Momo, pois nã o era possı́vel continuarem vivendo daquele jeito.
Embora a princı́pio os dois recusassem, acabaram consentindo, a
contragosto.
Ficaram ali sentados, em lados opostos do an iteatro, emburrados,
calados, hostis. Um deles era o pedreiro que havia construı́do o fogã o
para Momo e pintado o quadro de lores na parede da "sala" Chamava-
se Nicola, era corpulento e tinha um bigode preto revirado nas pontas.
O outro chamava-se Nino. Era magro e parecia sempre meio cansado.
Era dono de um pequeno bar, onde os principais fregueses eram alguns
velhinhos que pediam um copo de vinho e icavam horas inteiras
recordando os tempos antigos. Nino e sua mulher també m eram amigos
de Momo e costumavam levar coisas gostosas para ela comer Quando
Momo percebeu que os dois homens estavam brigados, icou um
momento sem saber com qual deles falava primeiro. A inal, para nã o
ofender nenhum, sentou-se numa pedra a igual distâ ncia de ambos,
olhando para um e para outro, aguardando os acontecimentos. Muitas
coisas precisam de tempo, e tempo era justamente a ú nica riqueza de
Momo. De repente Nicola levantou-se e disse:
- Vou-me embora. Vindo aqui mostrei boa vontade, mas como você
pode ver, Momo, esse sujeito é teimoso. Nã o adianta esperar mais.
E, de fato, virou-se para ir embora.
- Adeus, e vá pela sombra.. - gritou Nino. - Aliá s, você nem devia ter
vindo. Eu nã o ia mesmo apertar a mã o de um trapaceiro.
Nicola fez meia-volta, roxo de raiva.
- Quem é trapaceiro? - perguntou, avançando para Nino. - Repita o
que disse...
- Quantas vezes você quiser - berrou Nino. - Você pensa que, só
porque é forte, ningué m tem coragem de dizer a verdade na sua cara.
Pois eu tenho, e digo para você e para quem quiser ouvir. Vamos, avance
e venha me matar, como já tentou uma vez.
- Gostaria de ter conseguido - rosnou Nicola, cerrando os punhos. -
Está vendo, Momo, está vendo como ele mente e calunia a gente... O que
eu iz foi agarrá -lo pelo colarinho e jogá -lo no tanque de á gua suja que
tem atrá s daquela espelunca dele. Nã o dava nem para afogar um rato.
E, virando-se para Nino, gritou:
- Infelizmente você continua vivo...
As mais incrı́veis acusaçõ es continuaram a ser lançadas de um lado
para outro, e Momo nã o conseguia entender do que se tratava e por que
os dois estavam tã o furiosos um com o outro. Aos poucos, entretanto,
foi icando claro que Nicola havia cometido aquele ato terrı́vel porque
Nino lhe tinha dado uns bofetõ es diante dos fregueses, no bar. E isso
porque Nicola havia tentado quebrar toda a louça de Nino.
- Pura mentira! - exclamou Nicola, zangado. - Atirei na parede só um
jarro, e que já estava rachado.
- Mas o jarro era meu, nã o era? - disse Nino. - Você nã o tinha o direito
de fazer uma coisa dessas.
Nicola, poré m, estava convencido de que tinha razã o, porque antes
Nino havia colocado em dú vida sua competê ncia pro issional de
pedreiro-construtor.
- Sabe o que ele falou de mim? - gritou para Momo. Disse que eu
nunca consegui erguer uma parede reta porque estou bê bado vinte e
quatro horas por dia, e que meu tataravô era igualzinho a mim, e que foi
ele quem construiu a torre inclinada de Pisa!
- Ora, Nicola, era só brincadeira - atalhou Nino.
- Que brincadeira! - rosnou Nicola. - Nã o acho graça em brincadeiras
desse tipo...
Descobriu-se, entã o, que a "brincadeira" de Nino era para se vingar
de Nicola.
De fato, certa manhã aparecera escrito com letras vermelhas, na
porta do bar:
"Quem só sabe fracassar vira dono de bar." Nino, por sua vez, nã o
tinha achado graça nenhuma.
Começaram entã o a discutir qual das duas "brincadeiras" era a mais
engraçada, e eles se enfureciam cada vez mais.
Bruscamente os dois pararam. Momo observava-os, de olhos
arregalados, mas nenhum dos dois entendia bem o signi icado daquele
olhar. Será que a menina estava rindo deles? Ou estava triste? Nã o dava
para saber. De repente, no entanto, os dois homens tiveram a sensaçã o
de estarem se olhando no espelho e começaram a icar envergonhados.
- Tudo bem - disse Nicola -, eu nã o devia ter escrito aquilo na sua
porta, Nino. Mas eu nã o teria feito isso se você nã o se tivesse recusado a
me servir. Isso é contra a lei, sabe, porque eu sempre paguei direito e
você nã o tinha motivo para me tratar daquele jeito.
- Nã o tinha, é ? - retrucou Nino. - Você nã o se lembra do caso do Santo
Antô nio? Ah, está icando encabulado... Você me deu um golpe, e eu nã o
podia deixar de graça.
- Dei, é ? - gritou Nicola, furioso outra vez. - Quem deu foi você , mas
nã o conseguiu me tapear.
O fato é que na parede do barzinho do Nino havia uma imagem de
Santo Antô nio, que ele tinha recortado de uma revista e emoldurado.
Um dia Nicola quis comprar a gravura, dizendo que a achava linda. Nino
foi negociando até conseguir que Nicola desse em troca o seu rá dio, e
icou rindo por dentro, convencido de que tinha levado a melhor.
Fechado o negó cio, aconteceu que, entre a imagem e o papelã o de
trá s do quadro, apareceu uma nota de dinheiro, de alto valor, que Nino
nunca tinha visto. Entã o ele percebeu que, a inal de contas, tinha levado
prejuı́zo, e icou muito aborrecido. Quis exigir de Nicola a devoluçã o da
nota, porque nã o fazia parte do objeto vendido. Nicola recusou, e dali
em diante Nino nã o quis mais servi-lo.
Depois de chegarem à causa inicial da briga, os dois homens icaram
em silê ncio, até que Nino falou:
- Diga com franqueza, Nicola: antes de nó s fazermos o negó cio você
já sabia daquele dinheiro, nã o sabia?
- Claro que sabia. Caso contrá rio nã o teria feito o negó cio,
- Entã o você confessa que me tapeou.
- Como? Você nã o sabia mesmo que o dinheiro eslava ali?
- Nã o. Juro que nã o.
- Veja só ... Entã o foi você quem quis me dar um golpe, recebendo meu
rá dio em troca de um pedaço de papel que nã o valia nada.
- Mas como é que você icou sabendo da nota?
- Eu tinha visto um freguê s en iar ali, como oferenda para Santo
Antô nio.
Nino mordeu o beiço.
- E valia muito?
- Exatamente o valor do meu rá dio - respondeu Nicola.
- Entã o - disse Nino, pensativo -, nossa briga na verdade é por causa
do Santo Antô nio que eu recortei da revista.
Nicola coçou a cabeça.
- E mesmo - ele resmungou. - E, se você quiser, pode icar com ele,
Nino.
- De jeito nenhum! - Nino exclamou. - Trocou, está trocado! Um
aperto de mã o para selar a nossa dignidade!
Entã o os dois começaram a rir. Desceram os degraus de pedra,
encontraram-se no meio do an iteatro, apertaram-se as mã os e
trocaram tapinhas nas costas. Depois, eles abraçaram Momo, dizendo:
- Muito, muito obrigado.
Quando a inal foram embora, Momo icou acenando até eles
desaparecerem, muito contente porque seus dois amigos tinham feito
as pazes.
Em outra ocasiã o, um menino levou para Momo seu caná rio que nã o
queria cantar.
Foi uma tarefa difı́cil. Momo teve de ouvir o caná rio uma semana
inteira, até ele voltar a chilrear e cantar.
Momo ouvia todos com atençã o: gatos, cachorros, grilos e sapos, até
a chuva e o vento nas á rvores E cada um falava com ela à sua maneira.
Algumas noites, depois que todos os seus amigos já tinham ido para
casa, ela icava sentada, sozinha, no grande an iteatro de pedra, debaixo
do cé u estrelado, simplesmente ouvindo o grande silê ncio.
Sentia-se como se estivesse no meio de um imenso caramujo que
escutasse o mundo das estrelas. Era como se ouvisse uma mú sica suave,
mas poderosa, que ia direto ao seu coraçã o.
Em noites assim, ela sempre tinha sonhos lindos.
E, quem ainda acha que ouvir nã o é nada de mais, experimente fazê -
lo para ver se consegue.
Capítulo Três
UMA TEMPESTADE IMAGINÁRIA E UM TEMPORAL DE VERDADE

Nã o é preciso dizer que Momo ouvia crianças e adultos da mesma


maneira.
Mas havia outra razã o para as crianças gostarem de ir ao an iteatro.
Desde que Momo chegara, elas brincavam como nunca tinham feito
antes. Nã o havia um só instante de té dio. Nã o é que Momo tivesse
sugestõ es maravilhosas. Nã o, Momo só estava ali e brincava junto. E
isso era su iciente, nã o se sabe por que razã o, para que as pró prias
crianças acabassem tendo as melhores ideias. Todos os dias inventavam
brincadeiras novas, uma mais divertida do que a outra.
Certa vez, num dia quente e abafado, dez ou onze crianças estavam
sentadas nas pedras, esperando por Momo, que tinha ido dar uma
voltinha para explorar a regiã o, como à s vezes fazia. No cé u as nuvens
eram escuras e baixas, parecia que dali a pouco ia desabar um
temporal.
- Acho que vou para casa - disse uma menina, que estava com a
irmã zinha. - Tenho medo de relâ mpago e trovã o.
- E em casa? - perguntou um garoto de ó culos. - Em casa você nã o
tem medo?
- E. També m tenho...
- Entã o ique aqui, pois dá na mesma - disse o menino.
A menina fez que sim com a cabeça, mas dali a pouco disse:
- Pode ser que Momo nem volte mais.
- E daı́? - falou outro garoto, de aspecto meio relaxado. Podemos
brincar de alguma coisa, mesmo sem Momo.
- Está certo. Mas vamos brincar do quê ?
- Ah, nã o sei. De qualquer coisa...
- Qualquer coisa nã o quer dizer nada. Quem tem alguma ideia?
- Eu tenho - disse um menino gordo, de voz ina. - Vamos fazer de
conta que esta ruı́na é um navio de verdade, que nó s estamos
navegando por mares desconhecidos, vivendo aventuras... Eu sou o
capitã o, você é o piloto e você um naturalista, um professor, porque vai
ser uma expediçã o de pesquisas, entenderam? E os outros sã o os
marinheiros.
- E nó s, as meninas? O que nó s vamos ser?
- Marinheiras. Vai ser um navio do futuro.
A ideia era excelente. Começaram a brincar, mas nã o paravam de
discutir, e a brincadeira nã o ia adiante. Dali a pouco estavam todos
novamente sentados nas pedras, esperando.
Por im Momo chegou.
Ouvia-se o marulho da á gua batendo na proa. O navio de pesquisas,
"Argo", balançava suavemente avançando pelas ondas, a todo o vapor,
em direçã o ao mar de Coral. Desde tempos imemoriais, navio algum se
atrevera a atravessar aquelas á guas perigosas, que escondiam inú meros
bancos de areia, recifes de coral e estranhos monstros marinhos. Pior
do que tudo era o chamado Tufã o Perpé tuo, um furacã o que nã o tinha
descanso. Percorria constantemente aqueles mares procurando uma
presa, como se fosse um ser vivo, e até mesmo inteligente. Seu caminho
era imprevisı́vel. Tudo o que caı́a nas garras daquele furacã o nã o se
soltava mais, até se destroçar em lascas do tamanho de palitos de
fó sforo.
O navio de pesquisa "Argo" fora especialmente equipado para um
encontro com aquele Tufã o Errante. Era todo construı́do de aço azul,
lexı́vel e elá stico feito uma lâ mina de espada. Por um processo especial,
fora fundido em uma só peça, sem emendas nem soldaduras.
Assim mesmo, di icilmente outro capitã o e outra tripulaçã o teriam a
coragem de enfrentar perigos tã o incrı́veis. O capitã o Gordon tinha essa
coragem. Do alto da ponte de comando, olhava com orgulho seus
marinheiros e marinheiras, todos especialistas experimentados em
suas á reas.
Ao lado do capitã o estava o primeiro-o icial, Dom Melu, tı́pico lobo-
do-mar, que já sobrevivera a cento e vinte e sete furacõ es.
Atrá s deles, no convé s, estava o professor Eisenstein, chefe cientı́ ico
da expediçã o, com suas duas assistentes, Maurin e Sara, cujas memó rias
prodigiosas valiam por uma biblioteca inteira. Os trê s estavam
debruçados sobre os instrumentos de precisã o, trocando ideias naquela
sua complicada linguagem cientı́ ica.
Um pouco à parte estava a bela nativa Momosan, sentada com as
pernas cruzadas.
De vez em quando, o professor fazia-lhe perguntas sobre vá rias
caracterı́sticas daquelas á guas, e ela respondia no melodioso dialeto
hula, que só o professor entendia.
O objetivo da expediçã o era descobrir a causa do Tufã o Errante e, se
possı́vel, destruı́-lo, de modo que aquelas á guas voltassem a ser
navegá veis. Mas até entã o tudo estava tranquilo e nã o havia prenú ncio
de tempestade.
De repente, um grito do vigia interrompeu as re lexõ es do
comandante.
- Capitã o! - gritou ele, com as mã os em concha em torno da boca. - Ou
estou maluco ou estou vendo, mesmo, uma ilha de vidro na nossa
frente!
Imediatamente o capitã o e Dom Melu olharam pelo telescó pio. O
professor e suas duas assistentes també m se interessaram. Só a bela
nativa continuou calmamente sentada, pois as curiosas tradiçõ es de seu
povo proibiam demonstrar curiosidade.
Chegaram logo à ilha de vidro. O professor desceu pela escada de
corda amarrada no costado do navio e pisou no chã o de vidro. Era
horrivelmente escorregadio, e ele teve imensa di iculdade em se manter
de pé .
A pequena ilha era toda redonda e devia ter uns vinte metros de
diâ metro. Era mais elevada no centro, formando urna espé cie de
cú pula. Quando o professor atingiu o ponto mais alto, olhou para baixo
e pô de ver distintamente uma luzinha que pulsava, bem no nú cleo da
ilha
Comunicou o que tinha visto aos outros, que esperavam ansiosos na
balaustrada.
- Pelos dados obtidos - disse Maurin, uma das assistentes do
professor -, eu diria que se trata de um Oggclmump bistrozinalis.
- E possı́vel - comentou Sara, a outra assistente -, mas també m pode
ser uma Shluckula tapetozifera
O professor Eisenstein se empertigou, ajustou os ó culos e disse:
- Na minha opiniã o temos aqui uma variedade do Strumpus
quietshinensus comum, poré m só poderemos ter certeza depois de
examinarmos essa criatura por baixo.
Imediatamente, trê s marinheiras, todas elas nadadoras e
mergulhadoras mundialmente famosas, vestiram suas roupas de
mergulho, desceram pelo lanco do navio e desapareceram nas
profundezas do mar azul.
Durante algum tempo só se viam algumas bolhas na superfı́cie da
á gua, mas de repente surgiu Sandra, uma das moças, e disse com voz
ofegante:
- E uma medusa gigante! Minhas duas companheiras estã o presas
nos seus tentá culos e nã o conseguem se soltar. Temos que as socorrer
antes que seja tarde.
Dizendo isso, tornou a mergulhar.
Imediatamente mergulharam cem homens-rã s, sob o comando de
seu experiente chefe, comandante Franco, chamado de "Gol inho". Uma
tremenda batalha se desenrolou lá embaixo, fazendo a superfı́cie
cobrir-se de espuma. Poré m, era tal a força da medusa gigante, que nem
os cem homens-rã s conseguiram libertar as mergulhadoras.
O professor franziu a testa e disse à s suas assistentes:
- Há alguma coisa nestas á guas que parece provocar um crescimento
desmesurado. E extremamente interessante.
Enquanto isso, o capitã o Gordon e o primeiro-o icial Dom Melu
examinaram a situaçã o e chegaram a uma conclusã o.
- Voltem! - gritou Dom Melu. - Voltem todos imediatamente para o
navio. Vamos ter que cortar o monstro em dois. Nã o há outro jeito de
salvar as moças.
O Gol inho e seus homens-rã s voltaram para bordo. O "Argo" recuou
um pouco e depois avançou, a toda velocidade, na direçã o da medusa. A
proa do navio de aço era cortante como uma navalha. Sem barulho e
sem qualquer impacto, dividiu em dois a gigantesca criatura. A
manobra era perigosa para as duas moças, ainda enrascadas nos
tentá culos, poré m Dom Melu tinha traçado seu rumo com a má xima
precisã o e dirigiu o "Argo" exatamente pelo estreito espaço entre as
duas. No mesmo instante, os enormes tentá culos de cada uma das
metades da medusa tombaram, moles e sem força, e as prisioneiras
conseguiram se desvencilhar.
Foram alegremente recebidas a bordo. O professor Eisenstein disse-
lhes:
- Foi minha culpa. Nunca deveria ter mandado você s lá para baixo.
Perdoem-me por tê -las exposto a esse perigo.
Com uma risada alegre, uma delas respondeu:
- Nã o há o que perdoar, professor. A inal, foi para isso mesmo que
nó s viemos.
E a outra acrescentou:
- O perigo faz parte da nossa funçã o!
Nã o havia tempo para mais conversa. Ocupados com o trabalho de
resgate, o capitã o e a tripulaçã o haviam se esquecido de se manter
vigilantes. Assim, só no ú ltimo momento perceberam que o Tufã o
Errante tinha surgido no horizonte e estava agora avançando a toda a
velocidade sobre o "Argo".
Um primeiro vagalhã o atingiu o navio de aço, atirou-o para o ar,
derrubou-o para o lado e lançou-o no abismo formado pelas ondas, de
cerca de cinquenta metros de profundidade. Já nesse primeiro ataque,
se os marinheiros do "Argo" nã o fossem tã o corajosos e experientes,
metade deles teria caı́do pelas bordas da embarcaçã o e outra metade
teria desmaiado de pavor. Mas o capitã o Gordon continuava se
equilibrando na ponte de comando, como se nada tivesse acontecido, e
seus homens també m se mantinham irmes. Só Momosan, a bela nativa,
nã o estando acostumada a viagens tã o tempestuosas, tinha subido num
bote salva-vidas.
Em questã o de segundos, o cé u tornou-se escuro como breu. Rugindo
e uivando, o furacã o envolveu o navio, lançando-o ora para as alturas,
ora para o fundo do abismo. A cada minuto que passava sua fú ria
parecia crescer, enquanto golpeava inutilmente a nave de aço.
Calmamente o capitã o dava suas ordens ao primeiro-o icial, que as
gritava para a tripulaçã o. Cada um ocupava seu posto. O professor
Eisenstein e suas assistentes nã o haviam abandonado seus
instrumentos cientı́ icos e calculavam onde seria o nú cleo do furacã o,
pois era para esse centro que o navio devia ser dirigido. Em seu ı́ntimo,
o capitã o admirava o sangue-frio daqueles cientistas, que nã o estavam
habituados ao mar como ele e sua tripulaçã o.
p ç
Um raio cortou o cé u em ziguezague e veio cair sobre o "Argo",
eletrizando da proa à popa o navio de aço. Tudo o que se tocasse
lançava centelhas, mas o pessoal já vinha sendo treinado havia meses
para enfrentar uma emergê ncia daquele tipo e ningué m pareceu se
abalar.
No entanto, as partes mais frá geis do navio, cabos de aço e barras de
ferro, tornaram-se incandescentes como ilamentos de lâ mpadas
elé tricas. Isso naturalmente di icultava o trabalho, mas todos se
protegeram calçando luvas de amianto.
Felizmente a incandescê ncia logo se apagou, pois começou a cair
uma chuvarada como nunca nenhum dos membros da tripulaçã o tinha
enfrentado, com exceçã o de Dom Melu. Era uma chuva tã o densa que
mal havia espaço para o ar que se respirava. A tripulaçã o, entã o, foi
obrigada a usar capacetes de mergulho e balõ es de oxigê nio.
Um raio atrá s do outro, um trovã o atrá s do outro! A tempestade
rugia! Ondas da altura de casas formavam uma densa espuma branca!
Com as má quinas a todo o vapor, o "Argo" abria seu caminho em
meio à violê ncia primitiva do furacã o. Na casa de má quinas, mecâ nicos
e foguistas faziam esforços sobre-humanos. Tinham se amarrado com
cordas fortes, para evitar que os violentos solavancos do navio os
lançassem dentro das fornalhas.
Finalmente chegaram ao ponto central do furacã o, e aı́ se depararam
com um espetá culo magnı́ ico!
Na superfı́cie da á gua, que ali era lisa como um espelho porque a
força da tempestade aplainara as ondas, pairava um objeto gigantesco.
Apoiava-se numa perna só e seu contorno alargava-se da base para o
topo. Era como se fosse um piã o imenso, do tamanho de uma
montanha. Mas ele rodopiava a uma tal velocidade que nã o era possı́vel
ver detalhe algum.
- E um Shum-shum gummilastikum! - gritou o professor, encantado,
segurando os ó culos, que a chuva teimava em arrancar do seu nariz.
- Poderia nos explicar o que isso signi ica? - resmungou Dom Melu. -
Nó s somos simples marinheiros e...
- Nã o atrapalhe o professor agora - interrompeu Sara, uma das
assistentes. -
Esta é uma oportunidade ú nica numa vida inteira. Essa criatura
rodopiante data, provavelmente, dos primó rdios do desenvolvimento
p p p
da Terra. Deve ter mais de um bilhã o de anos. A ú nica variedade que
conhecemos só pode ser vista ao microscó pio, e só se encontra,
ocasionalmente, no molho de tomate ou, ainda mais raramente, na tinta
verde. Talvez este seja o ú nico espé cime desse tamanho que ainda
sobrevive.
- Mas nossa missã o é descobrir a origem do Tufã o Perpé tuo - disse o
capitã o, gritando para se fazer ouvir em meio à tempestade -, de modo
que é melhor o professor nos dizer como fazer essa coisa infernal parar
de rodopiar!
- Isso eu sei tanto quanto você s - disse o professor. - Até agora, a
ciê ncia nã o teve oportunidade de estudar o assunto.
- Muito bem - resolveu o capitã o. - Vamos começar por atirar nele e
depois veremos o que acontece.
- Que pena... - lastimou o professor. - Imagine só , atirar contra o ú nico
espé cime vivo do Shum-shum gummilastikuml
Mas o canhã o Kontra iktion já estava apontado para o imenso piã o.
- Fogo! - ordenou o capitã o.
Uma lı́ngua de chama azul de um quilô metro de comprimento foi
expelida atravé s do cano duplo, sem barulho algum, é claro, pois, como
todo o mundo sabe, os canhõ es Kontra iktion sã o movidos a proteı́nas.
O mı́ssil brilhante partiu a toda a velocidade na direçã o do Shum-
shum, poré m o enorme piã o o agarrou e o desviou. Depois de rodopiar
vá rias vezes em torno do Shum-shum, cada vez mais depressa, o mı́ssil
acabou sendo lançado para cima e desapareceu atrá s das nuvens
negras.
- Assim nã o adianta! - gritou o capitã o Gordon. - Temos que chegar
mais perto dessa coisa.
- Nã o podemos chegar mais perto - retrucou, també m gritando, Dom
Melu. - As má quinas já estã o trabalhando a todo o vapor, o que é apenas
o su iciente para impedir que a tempestade nos arraste para trá s.
- Alguma sugestã o, professor? - perguntou o capitã o.
Mas o professor Eisenstein nã o fez mais do que encolher os ombros.
Nem ele nem suas assistentes tinham qualquer resposta. Parecia que a
expediçã o teria de ser abandonada, tendo fracassado em sua missã o.
Nesse momento o professor sentiu um puxã o na manga. Era a bela
nativa.
- Malumba! - disse ela, com um gesto gracioso. - Malumba oisitu
sono. Erwini samba insaltu lobindra. Kramuna beu beni sadogau.
- Babalu? - indagou o professor, admirado. - Didi maha feinosi intu se
goinen malutnba?
A bela jovem acenou alegremente com a cabeça e respondeu:
- Dodo um aufu shulamat wawada.
- Oi, oi - disse o professor, coçando o queixo com ar pensativo.
- O ela quer? - indagou o primeiro-o icial.
- Ela está dizendo que existe uma cançã o muito antiga de seu povo
que é capaz de embalar o Tufã o Errante até fazê -lo adormecer, se
algué m tiver a coragem de cantar para ele.
- Nã o me faça rir... - resmungou Dom Melu. - Uma cantiga de ninar
para um furacã o?
- O que acha, professor? - perguntou a assistente Sara - Será possı́vel
uma coisa dessas?
- Nã o devemos ter preconceitos - retrucou o professor. Nessas
tradiçõ es nativas existe, à s vezes, uma semente de verdade. Pode ser
que haja certas harmonias que produzem efeito sobre o Shum-shum
gummilastikum. Na verdade ainda sabemos muito pouco a respeito do
modo de vida desses seres.
- Mal nã o pode fazer - declarou o capitã o, em tom resoluto. - Vamos
pelo menos tentar. Diga a ela que cante.
O professor Eisenstein virou-se para a bela nativa e disse:
- Malumba didi oisafal huna-huna wawadu?
Momosan balançou a cabeça a irmativamente e logo começou a
cantar a mais extraordiná ria cançã o, formada apenas por algumas
notas e o constante estribilho:
Em meni allubeni
Wanna tai susura teni
Ela acompanhava o ritmo da cançã o batendo palmas e dançando.
A melodia simples e as palavras eram fá ceis de decorar. Os outros
foram aderindo, e pouco depois toda a tripulaçã o estava cantando,
dançando e batendo palmas. Era um espetá culo sensacional ver o velho
lobo-do-mar Dom Melu e até o professor cantando e batendo palmas
como crianças no recreio.
E entã o... aconteceu aquilo que nenhum deles acreditara que pudesse
acontecer! O piã o gigante começou a rodar cada vez mais devagar, até
que parou de uma vez e começou a afundar.
Com o estrondo de um trovã o, as á guas se fecharam sobre ele. A
tempestade se abrandou de repente, a chuva parou, o cé u icou limpo e
azul, as ondas se acalmaram. O "Argo" estava imó vel no mar
transparente, como se a paz e a alegria nunca tivessem deixado de
reinar.
- Pessoal - disse o capitã o Gordon, olhando agradecido para cada um
dos membros da tripulaçã o -, nó s conseguimos!
Todos sabiam que ele era homem de poucas palavras, portanto
sentiram-se ainda mais grati icados quando ele acrescentou.
- Estou orgulhoso de você s.
- Acho que choveu de verdade - disse a menina que estava
acompanhada da irmã zinha. - Eu, pelo menos, estou ensopada.
De fato, o temporal tinha passado. E, mais do que todas as crianças, a
menina que estava com a irmã zinha admirou-se ao perceber que,
durante a viagem no barco de aço, tinha esquecido completamente o
medo de trovõ es e de relâ mpagos.
Durante algum tempo ainda icaram comentando suas aventuras, um
contando ao outro sua experiê ncia pessoal. Depois despediram-se e
foram para casa, trocar aquelas roupas molhadas
Só uma das crianças nã o estava plenamente satisfeita com o
desenrolar da brincadeira. Era o menino de ó culos. Despedindo-se de
Momo, ele disse:
- Foi uma pena a gente afundar o Shum-shum gummilastikum. A inal,
ele era o ú nico sobrevivente de sua espé cie. Eu gostaria muito de
descobrir mais coisas sobre ele.
Numa coisa, entretanto, todos concordavam: as melhores
brincadeiras do mundo eram as que eles faziam com Momo.
Capítulo Quatro
UM VELHO CALADO E UM JOVEM TAGARELA

Mesmo quando temos muitos amigos, sempre há um ou outro com


quem temos mais intimidade e de quem gostamos mais. Isso també m
acontecia com Momo Ela tinha dois amigos muito especiais, que
costumavam visitá -la todos os dias e repartiam com ela tudo o que
tinham. Um era jovem, o outro era velho, e Momo nã o sabia dizer de
qual deles gostava mais.
O velho chamava-se Beppo Varredor. Na verdade, seu sobrenome era
outro, mas, como ele era varredor de pro issã o e todos o chamavam
assim, acabou adotando esse nome
Beppo Varredor morava perto do an iteatro, numa cabana que ele
mesmo havia construı́do com tijolos, pedaços de chapa e papelã o
alcatroado Era um homem muito baixinho e andava sempre meio
encurvado, de modo que parecia só um pouco mais alto do que Momo.
Muita gente achava que Beppo nã o era muito bom da cabeça, porque,
quando lhe faziam alguma pergunta, ele apenas sorria, sem dizer nada.
Re letia e, quando achava que a questã o nã o merecia resposta, icava
calado. No entanto, quando achava a pergunta importante, continuava
re letindo sobre ela. As vezes demorava duas horas, ou até dois dias,
para responder. Enquanto isso, é claro, a pessoa que havia feito a
pergunta a esquecia, e o que Beppo dizia acabava parecendo fora de
propó sito.
Somente Momo se dispunha a esperar horas ou dias por uma
resposta e depois entendia o que Beppo dizia. Sabia que ele demorava
tanto porque fazia questã o de nunca dizer alguma coisa que nã o fosse
verdade. Na opiniã o dele, a infelicidade do mundo era causada pelas
mentiras, intencionais ou nã o, que as pessoas diziam por serem
desatentas ou apressadas.
Todas as manhã s, horas antes de o sol nascer, Beppo pegava sua
velha bicicleta e ia até um pré dio muito grande na cidade. Ali esperava,
no pá tio, com os companheiros de trabalho, até lhe darem uma
vassoura, um carrinho de mã o, e indicarem as ruas que deveria varrer.
Beppo adorava aquelas horas matutinas, quando a cidade ainda
estava adormecida, e fazia sua tarefa com boa vontade e empenho, pois
sabia que era um trabalho muito importante.
Varria as ruas devagar, mas com muita regularidade: a cada passo
uma respirada, a cada respirada uma varrida. Passo respirada - varrida.
Passo - respirada - varrida. De vez em quando parava um pouco e icava
olhando para longe, com ar pensativo. Depois recomeçava, passo -
respirada - varrida...
Enquanto se deslocava assim, uma rua suja na frente, uma rua limpa
atrá s, com frequê ncia lhe vinham à cabeça grandes ideias. Mas eram
ideias sem palavras, pensamentos tã o difı́ceis de expressar quanto a
lembrança de um perfume ou de uma cor vista em sonho. Depois do
trabalho, quando sentava perto de Momo, costumava contar-lhe
suas ideias brilhantes. E, enquanto a menina ouvia daquela sua maneira
especial, a lı́ngua dele se soltava e surgiam as palavras adequadas.
- Veja só , Momo - certa vez ele disse, por exemplo -, é assim. As vezes
temos à nossa frente uma rua muito comprida. Achamos que ela é
terrivelmente comprida e que nunca seremos capazes de chegar até o
im.
Ficou algum tempo olhando para longe, com ar distraı́do, depois
continuou:
- Entã o começamos a nos apressar. E nos apressamos cada vez mais.
Cada vez que levantamos os olhos temos a impressã o de que o trabalho
que temos pela frente nã o diminuiu em nada. Nosso esforço aumenta,
começamos a sentir medo, acabamos icando sem fô lego e
completamente esgotados. E a rua continua inteirinha na nossa frente,
tã o comprida quanto antes. Nã o é assim que se deve fazer.
Pensou um pouco e continuou:
- Nunca elevemos pensar na rua inteira de uma vez, está
entendendo? Devemos pensar apenas no passo seguinte, na respiraçã o
seguinte, na varrida seguinte, e continuar sempre pensando só naquilo
que vem a seguir.
Ele fez outra pausa e re letiu, antes de prosseguir:
- Fazendo assim, temos prazer. Isso é importante, e o trabalho sai
bem-feito.
Assim é que deve ser.
Depois de mais uma longa pausa, concluiu:
- De repente, veri icamos que, passo a passo, chegamos ao im da rua
comprida, sem perceber e sem perder o fô lego.
Meneou a cabeça e concluiu, devagar:
- Isso é muito importante.
Outra vez Beppo chegou, sentou-se perto de Moino, e a menina
percebeu que ele estava re letindo e tinha alguma coisa especial a dizer.
De repente, Beppo olhou-a bem nos olhos e disse:
- Eu nos reconheci.
Passou-se algum tempo e ele continuou, baixinho:
- Acontece à s vezes, ao meio-dia, quando tudo está adormecido ao
calor do sol...
O mundo ica transparente. Como um rio, entende? Dá até para
enxergar o fundo.
Em silê ncio, ele balançou a cabeça e depois continuou, na mesma voz
suave:
- Existem outras é pocas lá embaixo, no fundo. Calou-se novamente,
re letindo, procurando as palavras certas. Mas parecia nã o as ter
encontrado e acabou explicando, de repente, em tom muito natural:
- Hoje estive varrendo lá pelos lados da antiga muralha da cidade. Na
muralha há cinco pedras de cor diferente, colocadas assim, está vendo?
- e com o dedo ele riscou na areia um T grande.
Com a cabeça de lado, olhou um momento e sussurrou:
- Eu reconheci essas pedras.
Apó s uma pausa ainda mais longa, prosseguiu em tom hesitante:
- Elas pertencem a outras é pocas, ao tempo em que a muralha foi
erguida. Muita gente trabalhou nisso. Poré m houve duas pessoas que
colocaram aquelas pedras na muralha. Era um sinal, sabe? Eu o
reconheci.
Beppo esfregou os olhos. O que tinha a dizer parecia exigir um
grande esforço, pois as palavras saı́am com di iculdade:
- Essas duas pessoas, naquele tempo, tinham uma aparê ncia
diferente, muito diferente.
,
A inal, num tom decidido e quase provocante, falou entre os dentes:
- Mesmo assim eu nos reconheci, você e eu. Eu nos reconheci.
Nã o podemos levar a mal as pessoas que sorriam quando ouviam
Beppo Varredor dizer coisas desse tipo. Ou que, quando ele virava as
costas, faziam o gesto signi icativo de bater com o dedo na testa. Mas
Momo gostava dele e dava grande valor à s suas palavras.
O outro grande amigo de Momo era jovem e exatamente o oposto de
Beppo Varredor.
Era um rapaz bonito, de olhos sonhadores e muito falador. Era
sempre espirituoso e alegre e ria com tanto gosto, que os outros nã o
podiam deixar de rir junto, quisessem ou nã o. Seu nome era Girolamo,
mas todos o chamavam apenas de Gigi.
Já que demos ao velho Beppo o nome de sua pro issã o, vamos fazer a
mesma coisa com Gigi, embora, na verdade, ele nã o tivesse nenhuma
pro issã o ixa. Varnos chamá -lo cie Gigi Guia. Mas guia turı́stico era
apenas uma das suas muitas ocupaçõ es, quando surgia a oportunidade,
e mesmo assim ele nã o era guia o icialmente.
Sua ú nica credencial para essa funçã o era um quepe. Assim que
apareciam alguns turistas perdidos pelas redondezas, ele colocava o
quepe na cabeça e, com ar muito sé rio, ia falar com eles, propondo
mostrar-lhes as ruı́nas e explicar tudo.
Quando os estrangeiros aceitavam, ele começava imediatamente a
discursar, contando as histó rias mais fantá sticas, inventando nomes,
datas e acontecimentos, deixando todos atordoados. Alguns visitantes
nã o se deixavam enganar por ele e viravam as costas com ar zangado.
Mas a maioria acreditava em tudo e dava um bom dinheiro quando, ao
inal, Gigi estendia o quepe.
As pessoas das vizinhanças achavam graça nos arroubos da fantasia
de Gigi, embora muitas vezes dissessem, com ar de preocupaçã o, que
nã o era muito correto ele ganhar tanto dinheiro para contar mentiras.
- Todos os poetas inventam coisas - dizia entã o Gigi. - E, seja como
for, as pessoas recebem alguma coisa em troca do seu dinheiro, nã o é ?
Vou dizer mais: elas recebem exatamente o que desejam! E que
diferença faz que as coisas estejam ou nã o escritas em algum livro?
Quem disse que as histó rias dos livros també m nã o sã o pura invençã o,
só que ningué m sabe?
Outras vezes, ele dizia:
- Quem sabe o que é verdade e o que nã o é ? Quem sabe o que
aconteceu aqui há mil ou dois mil anos? Você s por acaso sabem?
- Nã o - confessavam os outros.
- Entã o! - exclamava Gigi Guia. - Como é que você s podem saber se
minhas histó rias sã o verdade ou mentira? As coisas podem muito bem
ter acontecido exatamente do jeito como eu conto. Nesse caso, o que eu
conto é verdade.
Era difı́cil contestá -lo. Na verdade, era sempre difı́cil vencer a
argumentaçã o de Gigi.
Infelizmente, no entanto, era muito raro aparecerem turistas
interessados em ver o an iteatro, de modo que Gigi era obrigado a
arranjar outras ocupaçõ es Conforme a ocasiã o, era guardador de
carros, testemunha de casamento, babá de cachorros, portador de
cartas de amor, acompanhante de enterro, vendedor de souvernirs,
fornecedor de raçã o para gatos e muitas coisas mais.
O sonho de Gigi era se tornar rico e famoso. Ambicionava morar num
palá cio maravilhoso, no meio de um imenso parque, comer em baixela
de ouro e dormir em travesseiros de seda. Imaginava-se no futuro como
um sol resplandecente, cujos raios já agora o aqueciam, de longe, em
sua pobreza.
- Hei de conseguir - retrucava ele, quando os outros caçoavam de
seus sonhos. - E aı́ você s haverã o de se lembrar do que eu dizia...
Nã o tinha a menor ideia de como iria conseguir, pois trabalho sé rio e
perseverança nã o eram seu forte.
- Isso nã o é nenhuma obra de arte - costumava dizer para Momo. -
Quem quiser que enriqueça desse jeito. Mas olhe só para as pessoas que
venderam a alma por um punhado de dinheiro, veja só no que elas se
tornaram! Nessa eu nã o caio. Mesmo que à s vezes eu nem tenha
dinheiro para comprar um café , Gigi será sempre Gigi.
Na verdade, é de se pensar que seria impossı́vel existir amizade
entre duas pessoas tã o diferentes, com pontos de vista tã o divergentes
sobre a vida e o mundo em geral, como Gigi Guia e Beppo Varredor. No
entanto, Gigi e Beppo eram amigos. Por estranho que pareça, o velho
Beppo era a ú nica pessoa que nunca criticava Gigi por sua leviandade, e
també m o tagarela Gigi, estranhamente, era a ú nica pessoa que jamais
caçoava do velho Beppo.
Isso talvez acontecesse por causa da maneira como Momo ouvia os
dois.
Nenhum dos trê s suspeitava que, em breve, uma sombra cairia sobre
sua amizade, e nã o só sobre sua amizade, mas sobre todo aquele lugar.
Era uma sombra que vinha crescendo cada vez mais e já se estendia,
escura e fria, por sobre a grande cidade.
Era uma espé cie de invasã o silenciosa e imperceptı́vel, que avançava
a cada dia e à qual ningué m se opunha porque ningué m tinha
consciê ncia dela. Mas quem eram os invasores?
Até o velho Beppo, que reparava em muita coisa que escapava aos
outros, nã o notou a presença dos homens cinzentos, que vinham
ocupando a cidade em nú mero sempre crescente, incansá veis em sua
atividade Entretanto, nã o eram invisı́veis.
As pessoas os viam, mas nã o os enxergavam. Eles tinham o dom
misterioso de passar despercebidos, de modo que ou o olhar das
pessoas passava direto por eles, ou elas os esqueciam imediatamente.
Assim, esses invasores conseguiam trabalhar em segredo, exatamente
porque nã o precisavam se esconder. Alé m disso, naturalmente, já que
ningué m reparava neles, també m ningué m se perguntava de onde
vinham, e eles continuavam chegando, eram cada dia mais numerosos.
Circulavam pelas ruas em elegantes automó veis cinzentos, entravam
em todas as casas, encontravam-se em todos os restaurantes De vez em
quando anotavam alguma coisa em seus caderninhos.
Os homens vestiam-se de cinza-teia de aranha. Até seus rostos eram
cinzentos.
Usavam chapé u-coco cinzento, fumavam pequenos charutos
cinzentos e cada um carregava uma pasta cinza-chumbo.
Nem Gigi Guia tinha reparado que alguns daqueles homens andavam
rondando pelas vizinhanças do an iteatro, escrevendo febrilmente em
seus caderninhos.
Somente Momo os havia visto, quando, certa noite, suas silhuetas
escuras destacaram-se nos limites das ruı́nas. Gesticulavam uns com os
outros, depois suas cabeças se juntaram, como se estivessem
conferenciando. Nã o se podia ouvir uma palavra. Poré m, Momo sentiu
um frio na espinha como nunca sentira igual.
Enrolou-se mais no seu casaco, mas nã o adiantou, pois nã o era um
frio comum.
Depois os homens cinzentos se foram e nã o apareceram mais.
Naquela noite, Momo nã o conseguiu ouvir a mú sica suave e distante
que sempre chegava aos seus ouvidos. Mas no dia seguinte a vida
continuou como sempre, e Momo nã o pensou mais nos estranhos
visitantes. També m ela os esqueceu.
Capítulo Cinco
HISTÓRIAS PARA MUITOS E HISTÓRIAS PARA UMA

Aos poucos, Momo foi se tornando absolutamente indispensá vel para


Gigi Guia. Se é que se pode dizer isso, em se tratando de um rapaz tã o
super icial e inconstante, Gigi tinha desenvolvido um amor profundo
por aquela menina esfarrapada, e sua vontade, na verdade, era levá -la
sempre junto com ele, onde quer que fosse.
Como já dissemos, sua grande paixã o era inventar histó rias
Exatamente nesse aspecto Gigi tinha passado por uma mudança, que
ele mesmo sentia nitidamente Antes, suas histó rias à s vezes chegavam
a um impasse Ficava sem ideias e, entã o, ou repetia sempre a mesma
coisa ou buscava inspiraçã o em algum ilme ou notı́cia de jornal. Suas
histó rias, por assim dizer, se arrastavam. Mas, desde que ele conhecera
Momo, era como se, de repente, elas tivessem criado asas
Principalmente quando Momo estava ouvindo, sua fantasia brotava
como relva de primavera. Crianças e adultos aglomeravam-se em torno
dele. Agora era capaz de contar histó rias que se prolongavam por dias e
semanas, e suas ideias eram inesgotá veis. Ele mesmo, aliá s, se ouvia
com a maior admiraçã o, pois à s vezes nã o tinha ideia do rumo em que
sua fantasia o levaria.
Quando, certo dia, voltaram a aparecer turistas interessados em
conhecer o an iteatro (Momo estava sentada nos degraus de pedra, um
pouco mais longe), Gigi começou a contar:
- Prezadas senhoras, prezados senhores! Como todos devem saber, a
imperatriz Strapazia Augustina viu-se forçada a empreender inú meras
guerras a im de defender seu reino contra os constantes ataques dos
Tremores e dos Medos.
"Certa ocasiã o, apó s ter subjugado mais uma vez esses povos, estava
tã o irritada com os eternos problemas que era obrigada a enfrentar,
que ameaçou exterminá -los se o seu rei, Xaxotraxolus, nã o lhe
entregasse como indenizaçã o o seu peixe dourado.
"Naquela é poca, senhoras e senhores, o peixe dourado era
desconhecido neste paı́s. Poré m a imperatriz Strapazia icara sabendo
atravé s de um viajante que o rei Xaxotraxolus tinha um peixinho que
iria se transformar em ouro puro quando crescesse. A imperatriz
resolveu entã o se apossar daquela raridade a qualquer custo.
"Ao saber da exigê ncia, o rei Xaxotraxolus deu muita risada.
Escondeu o verdadeiro peixinho dourado debaixo da cama, e, em vez
dele, mandou para a imperatriz um ilhote de baleia, dentro de uma
terrina de sopa encravada de pedras preciosas.
"Devo dizer que a imperatriz icou meio espantada com o tamanho
do peixe, pois tinha imaginado o peixinho dourado muito menor. Mas
ela pensou: 'Quanto maior, melhor, pois maior será a quantidade cie
ouro em que ele irá se transformar.' De fato, o peixe nã o apresentava
qualquer brilho dourado, o que a preocupou um pouco, mas o enviado
do rei Xaxotraxolus explicou que o peixe só ia icar dourado quando
atingisse o má ximo de seu crescimento. Por isso era essencial que seu
desenvolvimento nã o fosse prejudicado em nada A imperatriz Strapazia
deu-se por satisfeita.
"O peixinho ia crescendo dia a dia, consumindo enormes
quantidades de alimento.
Como nã o era pobre, a imperatriz Strapazia dava ao peixe tudo o que
ele conseguisse comer. O ilhote foi se tornando grande e balofo. Logo a
terrina de sopa icou muito pequena para ele.
"- Quanto maior, melhor - dizia a imperatriz, e instalou-o na sua
banheira. Mas em pouco tempo o peixe já estava grande demais para a
banheira. Foi preciso colocá -lo na piscina da imperatriz, o que foi uma
di iculdade, pois ele agora pesava tanto quanto um boi. Um dos
escravos que estava ajudando a carregá -lo escorregou, e imediatamente
a soberana ordenou que o infeliz fosse atirado aos leõ es, pois agora só
estava interessada no peixe.
"Todos os dias ela icava durante horas sentada à beira da piscina,
vendo o peixe crescer, só pensando no ouro que ia render, pois, como
você s certamente sabem, ela levava uma vida altamente luxuosa e
nunca tinha ouro su iciente
"- Quanto maior, melhor - estava sempre murmurando consigo
mesma. Essas palavras foram declaradas lema nacional e a imperatriz
mandou inscrevê -las em letras de bronze na fachada de todos os
edifı́cios pú blicos.
"A inal, até a piscina imperial acabou se tornando muito pequena
para o peixe.
Entã o a imperatriz Strapazia mandou seu povo construir o edifı́cio
cujas ruı́nas estamos vendo aqui, senhoras e senhores. Era um
gigantesco aquá rio redondo, cheio de á gua até a borda, e dentro dele,
inalmente, o peixe podia se esticar à vontade.
"A imperatriz entã o passava dia e noite sentada ali, naquele lugar,
vigiando o peixe imenso, para veri icar se já estava se transformando
em ouro. Nã o con iava em ningué m, nem nos escravos nem nos
parentes, pois tinha medo de que lhe roubassem o precioso peixe.
Entã o icava ali sentada, emagrecendo a cada dia, de tanto medo e
a liçã o. Nunca fechava os olhos, estava sempre com eles cravados no
peixe, que se esbaldava alegremente na á gua, sem a menor intençã o de
algum dia virar ouro.
A imperatriz foi abandonando cada vez mais suas funçõ es de
governante.
"Era exatamente isso que os Tremores e os Medos estavam
esperando. Sob o comando do rei Xaxotraxolus, lançaram um ataque, e
dessa vez conquistaram o paı́s inteiro num instante. Nã o encontraram
um só soldado pela frente, e para o povo nã o importava quem estivesse
governando.
"Quando, inalmente, a imperatriz Strapazia soube o que tinha
acontecido, proferiu aquele lamento tã o conhecido: 'Ai de mim! Ah, se
eu tivesse...'
Infelizmente o resto da frase nã o chegou até nó s. O fato é que ela se
atirou dentro deste aquá rio e afogou-se ao lado cio peixe, neste tú mulo
de todas as suas esperanças. Para comemorar a vitó ria, o rei
Xaxotraxolus mandou matar a baleia, e durante uma semana inteira o
povo todo comeu ilé de baleia."
Com essas palavras Gigi encerrou suas explicaçõ es, deixando o
pú blico, visivelmente impressionado, contemplar respeitosamente as
ruı́nas. Só um homem, meio cé tico, indagou:
- Quando se supõ e que tudo isso tenha acontecido? Gigi, que tinha
respostas sempre prontas, nã o vacilou:
- Como o senhor sabe, a imperatriz Strapazia foi contemporâ nea do
famoso iló sofo Noiosius, o Velho.
O homem que tinha perguntado nã o podia, é claro, confessar que nã o
fazia a menor ideia de quando tinha vivido o famoso iló sofo Noiosius,
portanto só respondeu:
- Ah... Muito obrigado.
Os turistas icaram encantados. Todos diziam que a visita ao
an iteatro valera realmente a pena e que jamais ningué m lhes tinha
falado dos tempos antigos de maneira tã o viva e interessante.
Modestamente, Gigi estendeu o quepe, e os turistas mostraram-se
mais do que generosos. Até mesmo o cé tico contribuiu com alguns
nı́queis. O fato é que, desde a chegada de Momo, Gigi nunca mais havia
contado duas vezes a mesma histó ria.
Quando Momo estava entre os ouvintes, era como se dentro dele se
abrisse uma comporta, deixando luir torrentes de ideias novas e
invençõ es, sem que ele precisasse fazer esforço para pensar.
Pelo contrá rio, muitas vezes até tentava conter sua imaginaçã o, para
nã o ir longe demais, como naquela ocasiã o em que duas senhoras
americanas tinham aceitado seus serviços. Ele as deixara apavoradas
com a seguinte histó ria:
- Até na sua bela e livre Amé rica, minhas senhoras, naturalmente
todos sabem que o notoriamente cruel tirano Marxentius Communis,
cognominado 'O Vermelho', concebeu o plano de alterar o mundo
inteiro conforme sua vontade. Entretanto, apesar de todos os seus
esforços, os homens continuaram sempre os mesmos e nã o se deixaram
modi icar.
Ora, na velhice, Marxentius icou louco. Naquele tempo, como as
senhoras sabem, nã o existiam psiquiatras para ajudar a curar essa
doença. Entã o nã o havia o que fazer a nã o ser deixá -lo entregue a seu
delı́rio. Foi no auge da loucura que ele teve a ideia cie abandonar o
mundo tal como era e criar um outro mundo, totalmente novo.
"Para isso, mandou construir um globo exatamente do tamanho cio
antigo, contendo uma có pia exata de tudo o que existia nele: casas,
á rvores, montanhas, oceanos.
A humanidade toda foi forçada, sob pena de morte, a trabalhar nessa
empresa gigantesca.
"Começaram por construir a base sobre a qual iria ser colocado o
novo globo. E os restos dessa base sã o o que as senhoras estã o vendo
aqui.
"Depois começaram a construir o pró prio globo, uma esfera imensa,
do tamanho da Terra. Quando, a inal, icou pronta essa esfera, foi
copiado tudo o que havia no velho mundo, com imensa di iculdade.
"Naturalmente, era preciso obter grande quantidade de material, e o
ú nico lugar onde se podia consegui-lo era na pró pria Terra. Entã o a
Terra foi icando cada vez menor, enquanto crescia o novo globo. A inal,
para completar o novo mundo, tiveram de usar até o ú ltimo restinho do
velho mundo. Naturalmente, també m toda a humanidade teve de se
mudar para o mundo novo, já que o velho tinha sido todo usado.
Quando Marxentius Communis compreendeu que, apesar de tudo, as
coisas eram as mesmas que sempre tinham sido, enrolou-se em seu
manto e saiu em majestosa atitude.
Ningué m sabe para onde ele foi.
"Entã o, senhoras, esta depressã o em forma de funil, hoje em ruı́nas,
outrora formava a base do globo de Marxentius Communis, que
repousava sobre o mundo anterior. Portanto, as senhoras devem tentar
imaginar tudo ao contrá rio."
As duas inas senhoras americanas empalideceram, e uma delas
perguntou:
- E que aconteceu com o mundo de Marxentius Comunis?
- A senhora está em cima dele - respondeu Gigi. - Este mundo é o
novo globo.
As duas velhas senhoras deram um grito assustado e saı́ram
correndo. Daquela vez nã o adiantou Gigi estender o quepe.
Gigi gostava acima de tudo de contar histó rias só para a pequenina
Momo, quando ningué m mais estava ouvindo. Geralmente eram contos
de fadas, pois era deles que Momo mais gostava, e quase sempre os
personagens eram Gigi e Momo. Inventados especialmente para eles,
eram completamente diferentes das outras histó rias que Gigi
costumava contar.
Num im de tarde quente e agradá vel, os dois estavam sentados em
silê ncio, lado a lado, na ileira mais alta de degraus de pedra. No cé u
cintilavam as primeiras estrelas e a lua grande e prateada começava a
se elevar acima do contorno escuro dos pinheiros.
- Você me conta uma histó ria maravilhosa? - pediu Momo, baixinho.
- Tudo bem - disse Gigi. - Quem você quer que sejam os personagens?
- De preferê ncia Momo e Girolamo - respondeu Momo. Gigi pensou
um pouco e perguntou: - E qual vai ser o nome da histó ria?
- Que tal... "A histó ria do espelho má gico"? Gigi meneou a cabeça,
pensativo.
- Soa bem. Vamos ver no que vai dar.
Ele passou um braço em torno dos ombros de Momo e começou.
- Era uma vez uma linda princesa chamada Momo. Vestia-se de
veludos e sedas e morava no alto do mundo, no cume de uma montanha
coberta de neve, num palá cio de vidro colorido.
"Ela tinha tudo o que se poderia desejar, só comia as iguarias mais
saborosas e bebia os vinhos mais deliciosos. Dormia em travesseiros de
seda e sentava-se em cadeiras de mar im. Tinha tudo, mas era
completamente só .
"Tudo o que a cercava, seus criados, suas camareiras, seus cã es,
gatos, passarinhos e até suas lores, tudo eram apenas imagens
re letidas em espelhos.
"Ora, a princesa Momo tinha um espelho má gico, grande e redondo,
que era feito da mais ina prata. Todos os dias e todas as noites, ela o
mandava para o mundo. O grande espelho sobrevoava terras e, mares,
cidades e campos. As pessoas que o viam nã o se espantavam nem um
pouco. Simplesmente diziam: - E a Lua.
"E, ao voltar, o espelho sempre se sacudia e despejava aos pé s da
princesa todas as imagens que recolhera durante sua viagem. Eram
imagens bonitas e feias, interessantes e desinteressantes, conforme o
que tivesse acontecido. A princesa escolhia algumas e, as outras, ela
simplesmente jogava num riacho. Mais depressa do que se pode
imaginar, as imagens de espelho libertadas corriam pelas á guas da
Terra ao encontro de seus donos. Por isso, sempre que nos debruçamos
sobre um poço ou uma poça d'á gua, encontramos imediatamente nossa
imagem re letida.
"Mas eu ia me esquecendo de dizer que a princesa Momo era imortal,
pois ela mesma nunca se vira no espelho má gico. Ora, quem visse a
pró pria imagem re letida nele se tornaria mortal. A princesa Momo
sabia disso, por isso nunca o fazia.
"Assim vivia a princesa com todas as suas imagens de espelho,
brincava com elas e sentia-se muito feliz.
"Um belo dia, no entanto, o espelho má gico lhe trouxe uma imagem
que teve para ela uma importâ ncia maior do que todas as outras. Era a
imagem de espelho de um jovem prı́ncipe. Assim que se deparou com
g p j p p q p
seu re lexo, sentiu tanta vontade de ver o prı́ncipe, que desejou ir a seu
encontro imediatamente. Mas por onde começar? Nã o sabia onde ele
morava, quem ele era, nã o sabia nem mesmo seu nome.
"Nã o conseguindo ter outra ideia, resolveu olhar-se no espelho
má gico. A princesa Momo pensou: 'Talvez ele possa levar minha
imagem até o prı́ncipe.
Talvez o prı́ncipe olhe para cima justo quando o espelho má gico
estiver passando e entã o veja minha imagem. Talvez ele siga o espelho
má gico e acabe me encontrando aqui.'
"Assim ela se olhou demoradamente no espelho má gico e mandou-o
levar sua imagem pelo mundo. Só que, com isso, naturalmente ela se
tornou mortal.
"Daqui a pouco você vai saber como continua a histó ria da princesa.
Antes quero lhe falar sobre o prı́ncipe.
"O tal prı́ncipe se chamava Girolamo e reinava sobre um grande
territó rio que ele mesmo conquistara. Onde icava esse reino? Nã o
icava no ontem; nem no hoje, mas sempre em algum dia do futuro. Por
isso se chamava Terra do Amanhã . Todos os seus habitantes gostavam
do prı́ncipe e o admiravam. Certo dia, os ministros disseram ao prı́ncipe
da Terra do Amanhã : - Vossa Majestade precisa se casar!
"O prı́ncipe Girolamo nã o tinha nada contra, e assim as moças mais
bonitas da Terra do Amanhã foram levadas ao palá cio, para que ele
escolhesse uma.
Naturalmente, todas o queriam e por isso se enfeitaram o mais que
puderam. Entre as moças, no entanto, introduziu-se no palá cio uma
fada má , em cujas veias nã o corria sangue vermelho e quente, mas
sangue verde e frio. Isso nã o se notava por sua aparê ncia, pois ela havia
se maquiado com muita arte.
"Quando o prı́ncipe da Terra do Amanhã entrou no salã o dourado do
trono para fazer sua escolha, a fada pronunciou depressa uma fó rmula
má gica, de modo que o pobre Girolamo nã o conseguia ver ningué m
alé m dela. E ele a enxergava tã o linda, que ali mesmo lhe perguntou se
queria ser sua mulher.
"- Com muito gosto - disse a fada má -, mas sob uma condiçã o.
"- Eu a aceitarei - a irmou o prı́ncipe, sem re letir.
"- Otimo - disse ela, com um sorriso tã o gracioso, que o pobre
prı́ncipe icou atordoado. - Durante um ano você nã o poderá erguer os
olhos para o espelho de prata que paira no cé u. Se o izer, na mesma
hora você esquecerá tudo o que é seu. Esquecerá quem você é de
verdade. Irá para a Terra do Hoje, onde ningué m o conhece, e lá viverá
como um pobre coitado desconhecido. Você concorda?
- Se for só isso - exclamou Girolamo -, a condiçã o será fá cil de
cumprir.
"Enquanto isso, o que aconteceu com a princesa Momo? Ela esperou,
esperou, mas o prı́ncipe nã o veio. Entã o a princesa resolveu sair
pessoalmente pelo mundo, para procurá -lo. Libertou todas as imagens
de espelho que estavam com ela. Calçando seus chinelinhos, saiu
sozinha do seu palá cio de vidro colorido, atravessou as montanhas
cobertas de neve e foi descendo para o mundo. Atravessou todos os
paı́ses, até chegar à Terra do Hoje. Aquela altura seus chinelinhos já
estavam gastos, e ela foi obrigada a continuar a pé . Mas o espelho
má gico com sua imagem continuava sobrevoando o mundo.
"Uma noite, o prı́ncipe Girolamo estava sentado no telhado do seu
palá cio dourado, jogando damas com sua fada de sangue verde e frio De
repente, uma gotinha minú scula caiu na mã o do prı́ncipe.
"- Está começando a chover - disse a fada de sangue verde.
"- Nã o - disse o prı́ncipe -, nã o pode ser, pois nã o há nuvens no cé u.
"E o prı́ncipe olhou para cima, direto para o espelho má gico grande e
prateado, que pairava lá no alto. Entã o ele viu a imagem da princesa
Momo. Percebeu que ela estava chorando e que uma lá grima tinha
caı́do em sua mã o. No mesmo instante compreendeu que a fada má o
tinha enganado, que ela nã o era bonita de verdade e que só tinha
sangue verde e frio correndo pelas veias. A princesa Momo era quem
ele amava de verdade.
"- Você quebrou sua promessa - disse a fada verde, e seu rosto se
contorceu como se fosse o de uma serpente. - Agora vai ter que pagar.
"Com seus longos dedos verdes, ela agarrou o peito do prı́ncipe
Girolamo, que continuava sentado, imó vel, e deu um nó no coraçã o dele.
Na mesma hora ele se esqueceu de que era o prı́ncipe da Terra do
Amanhã . Deixou seu palá cio e seu reino na calada da noite, como se
fosse um ladrã o. Percorreu um longo caminho, atravé s do mundo, até
chegar à Terra do Hoje, onde passou a viver como um pobre e infeliz
desconhecido, tendo por nome apenas Gigi. A ú nica coisa que ainda
conservava era a imagem do espelho má gico, que a partir de entã o icou
vazio.
"Nesse meio tempo, as roupas de seda e veludo da princesa Momo
també m se rasgaram. Ela passou a usar um paletó de homem grande
demais e uma saia toda remendada. E ela morava numa velha ruı́na. Foi
lá que, um belo dia, os dois se encontraram. Mas a princesa nã o
reconheceu o prı́ncipe da Terra do Amanhã , pois ele se transformara
num pobre diabo. Gigi també m nã o reconheceu a princesa, pois na
verdade sua aparê ncia nã o era mais cie princesa. Mas, em sua
infelicidade comum, os dois tornaram-se amigos e consolaram-se um
ao outro.
"Uma noite, quando o espelho má gico, agora vazio, voltou a passar
por aquele cé u, Gigi pegou a imagem que guardara e a mostrou para
Momo. Já estava muito amarrotada e manchada, mas a princesa
reconheceu imediatamente que se tratava da sua pró pria imagem, que
em outros tempos ela havia enviado pelo mundo afora.
També m reconheceu, por baixo da má scara do pobre coitado Gigi, o
prı́ncipe Girolamo, que ela sempre procurara e por quem se tornara
mortal. Entã o lhe contou tudo.
"Mas Gigi balançou a cabeça tristemente e disse:
"- Nã o consigo entender nada do que você está dizendo, pois há um
nó no meu coraçã o que faz com que nã o me lembre de nada.
"A princesa Momo agarrou-lhe o peito e, com a maior facilidade,
desfez o nó de seu coraçã o. Na mesma hora o prı́ncipe Girolamo voltou
a saber quem era e de onde vinha. Pegou a princesa pela mã o e foi com
ela para longe, para muito longe, lá onde icava a Terra do Amanhã .
Quando Gigi terminou, os dois icaram em silê ncio por algum tempo
Depois Momo perguntou
- Mais tarde eles se tornaram mando e mulher?
- Acho que sim - disse Gigi - Mais tarde - Eles já morreram'
- Nã o - disse Gigi, resoluto -, disso eu tenho certeza O espelho má gico
só torna uma pessoa mortal quando ela se olha sozinha Mas, quando
duas pessoas se olham juntas, voltam a se tornar imortais E foi isso que
os dois izeram.
Grande e prateada, a Lua se elevava acima dos pinheiros escuros e
fazia as velhas pedras da ruı́na brilharem misteriosamente Momo e Gigi
icaram sentados em silê ncio, um ao lado do outro, observando-a por
um longo tempo Sentiam nitidamente que naquele momento eram
imortais.
Segunda Parte
OS HOMENS CINZENTOS

Capítulo Seis
A CONTA ESTÁ ERRADA, MAS DÁ CERTO

Existe um misté rio muito grande que, no entanto, faz parte do dia-a-dia.
Todos os seres humanos participam dele, embora muito poucos
re litam sobre ele. A maioria simplesmente o aceita, sem mais
indagaçõ es. Esse misté rio é o tempo.
Existem calendá rios e reló gios que o medem, mas signi icam pouco,
ou mesmo nada, porque todos nó s sabemos que uma hora à s vezes
parece uma eternidade e, outras vezes, passa como um relâ mpago,
dependendo do que acontece nessa hora.
Tempo é vida. E a vida mora no coraçã o.
Ningué m sabia disso melhor que os homens cinzentos. Ningué m
sabia como eles o valor de uma hora, um minuto ou até um segundo.
Claro que tinham sua maneira pró pria de entender o tempo, assim
como a sanguessuga tem sua maneira pró pria de entender o sangue. E
eles agiam de acordo com essa maneira de entender.
Tinham seus pró prios planos para o tempo das pessoas. Eram planos
a longo prazo, cuidadosamente preparados.
O principal era que ningué m percebesse suas atividades.
Dissimuladamente, tinham conseguido se estabelecer na vida da
grande cidade e na de seus habitantes. Aos poucos, sem ningué m notar,
avançavam dia a dia e se apossavam das pessoas.
Conheciam cada indivı́duo que lhes pudesse interessar, muito antes
que o atingido o percebesse. Só esperavam o momento certo para
apanhá -lo. E faziam tudo para esse momento chegar.
Era o caso, por exemplo, do barbeiro, o sr. Fusi. Nã o era nenhum
grande artista no seu ofı́cio, mas era muito respeitado na sua rua. Nã o
era rico nem pobre. Sua barbearia, que icava no centro da cidade, era
pequena e só tinha como empregado um jovem aprendiz.
Um dia, o sr. Fusi estava na porta da loja, esperando a clientela. Era
folga do aprendiz e o sr. Fusi estava sozinho, olhando a chuva cair na
calçada. Era um dia cinzento, e na alma do barbeiro o tempo també m
estava encoberto.
"Minha vida vai passando", ele pensava, "em meio ao barulho da
tesoura, conversinhas e espuma de sabã o. Na verdade, o que minha
existê ncia me oferece?
Quando eu morrer, será como se nunca tivesse existido."
Na verdade, o sr. Fusi nã o tinha nada contra conversinhas. Até
gostava de trocar ideias com os clientes e ouvir o que tinham a dizer.
També m nada tinha contra barulho de tesoura ou espuma de sabã o.
Gostava muito do seu trabalho e sabia que o executava bem.
Especialmente ao barbear debaixo do queixo, ningué m manejava a
navalha com tanta habilidade. Mas havia momentos em que nada disso
parecia valer a pena. Todo mundo tem momentos assim.
"Minha vida é um fracasso", pensava o sr. Fusi. "A inal de contas,
quem sou eu?
Só consegui ser um pequeno barbeiro. Se pelo menos pudesse levar
uma vida de verdade, eu seria uma pessoa muito diferente!"
Só que o sr. Fusi nã o sabia muito bem em que consistia essa "vida de
verdade".
Imaginava algo de importante e luxuoso, como ele via nas revistas.
Aborrecido, continuou suas re lexõ es: "A questã o é que meu trabalho
nã o me deixa tempo para essas coisas. Para viver uma vida de verdade,
é preciso ter tempo. E preciso ser livre Mas eu vou passar a vida inteira
preso ao barulho da tesoura, à s conversinhas e à espuma de sabã o."
Naquele momento, um elegante carro cinzento parou na porta da
barbearia. Um homem cinzento desceu do carro e entrou na loja.
Colocando sua pasta cinza-chumbo sobre a mesa na frente do espelho,
pendurou no cabide seu chapé u-coco cinza, sentou-se na cadeira de
barbear, tirou do bolso um caderninho e começou a folheá -lo, sempre
tirando baforadas de um pequeno charuto cinzento O sr. Fusi fechou a
porta da barbearia porque, de repente, começou a fazer um frio
esquisito.
- O que o senhor deseja? - perguntou, meio confuso. Vai barba ou
cabelo?
Mas na mesma hora censurou-se por sua falta de tato, pois o homem
tinha uma careca reluzente.
- Nem um nem outro - retrucou o homem cinzento, sem um sorriso,
com uma voz inexpressiva, cinzenta, por assim dizer. - Venho da parte
da Caixa Econô mica de Tempo. Sou o agente XYQ/384/b. Soubemos que
o senhor deseja abrir uma conta de poupança no nosso
estabelecimento
- Para mim isso é novidade - declarou o sr. Fusi. - Para ser franco, eu
nem sabia da existê ncia dessa tal caixa.
- Mas agora já sabe - retrucou secamente o outro. Consultou seu
caderninho e continuou: - E o sr. Fusi, barbeiro, nã o é ?
- Certo. Sou eu mesmo
- Entã o estou no lugar certo - e fechou abruptamente o caderninho. -
Está na nossa lista de pretendentes.
- Como assim? - indagou o sr. Fusi, sem compreender.
- Ora, vejamos, meu caro senhor. O seu tempo está sendo
desperdiçado entre barulho de tesouras, conversinhas e espuma de
sabã o. Quando morrer, será como se nunca tivesse existido. Se
dispusesse de tempo para levar uma vida de verdade, seria uma pessoa
muito diferente. Mas o que lhe falta é tempo. Estou certo?
- E exatamente nisso que eu estava pensando agora mesmo -
murmurou o sr. Fusi, tremendo porque1, apesar de a porta estar
fechada, o frio aumentava na barbearia.
- Está vendo? - disse o homem cinzento, com ar muito seguro,
tragando satisfeito o seu charuto. - Mas onde vai arranjar tempo? Só
poupando! Veja, sr. Fusi, tem desperdiçado seu tempo com a maior
imprudê ncia, conforme vou lhe provar apenas fazendo uma conta. Um
minuto tem sessenta segundos. Uma hora tem sessenta minutos. Até
aqui está entendendo?
- Claro que estou.
O agente XYQ/384/b começou a escrever nú meros no espelho com
um lá pis cinza.
- Sessenta vezes sessenta sã o trê s mil e seiscentos segundos. Entã o,
uma hora tem trê s mil e seiscentos segundos. Um dia tem vinte e quatro
horas. Portanto, trê s mil e seiscentas vezes vinte e quatro sã o oitenta e
seis mil quatrocentos e sessenta e cinco dias (excluindo o ano bissexto),
o que dá trinta e um milhõ es quinhentos e trinta e seis mil segundos
por ano. Ou trezentos e quinze milhõ es trezentos e sessenta segundos
em dez anos. Quanto tempo acha que vai durar sua vida, sr. Fusi?
- Bem... - gaguejou o barbeiro, perplexo. - Espero viver até os setenta
ou oitenta anos, se Deus quiser.
- Muito bem - prosseguiu o homem cinzento. - Vamos supor, por
precauçã o, que sejam setenta anos. Terı́amos trezentos e quinze
milhõ es trezentos e sessenta mil vezes sete. Dá dois bilhõ es duzentos e
sete milhõ es quinhentos e vinte mil segundos.
E escreveu no espelho em algarismos bem grandes: 2.207.520.000
Sublinhou vá rias vezes o nú mero e explicou: - Veja, sr. Fusi, esta é a
fortuna à sua disposiçã o.
O sr. Fusi engoliu em seco e enxugou a testa. A soma era de atordoar.
Nunca pensou que fosse tã o rico.
- Pois é - continuou o agente, tirando outra baforada do charuto
cinzento -, é um nú mero impressionante, nã o é ? Mas vamos em frente.
Qual é sua idade?
- Quarenta e dois - gaguejou novamente o barbeiro, de repente
sentindo-se culpado, como se tivesse cometido alguma fraude.
- Quantas horas, em mé dia, dorme por noite?
- Cerca de oito - confessou o sr. Fusi.
O agente calculava com a velocidade de um relâ mpago. O lá pis rangia
no espelho, arrepiando o sr. Fusi.
- Quarenta e dois anos e oito horas por dia vê m a ser quatrocentos e
quarenta e um milhõ es quinhentos e quatro mil segundos, e essa
quantidade de tempo deve, sem dú vida alguma, ser considerada
perdida. Agora, quantas horas por dia o senhor dedica ao trabalho?
- També m umas oito horas - respondeu o sr. Fusi, já meio
desanimado.
- Entã o temos que repetir a mesma quantidade na coluna do dé bito -
continuou o agente, implacá vel. - E, naturalmente, temos també m que
deduzir outro perı́odo de tempo, pois o senhor precisa comer. Quanto
tempo por dia o senhor gasta comendo, incluindo todas as refeiçõ es?
- Nã o sei bem - disse o sr. Fusi, muito nervoso. - Creio que umas duas
horas.
- Acho muito pouco - contestou o agente -, mas suponhamos que seja
isso, o que dá , em quarenta e dois anos, cento e dez milhõ es trezentos e
setenta L- seis mil segundos. Vamos continuar. Sabemos que o senhor
mora com sua velha mã e e todos os dias passa uma hora inteira com
ela, isto é , senta-se a seu lado e fala, embora ela seja muda e quase
surda. Isso també m conta como tempo desperdiçado, portanto,
cinquenta e cinco milhõ es cento e oitenta e oito mil segundos. Outra
coisa: o senhor tem um periquito, inteiramente desnecessá rio, cujo
trato exige diariamente um quarto de hora do seu tempo, o que soma
treze milhõ es setecentos e noventa e sete mil segundos.
- Mas... - tentou argumentar o sr. Fusi-
- Nã o interrompa! - gritou o agente, fazendo os cá lculos cada vez
mais depressa.
- Como sua mã e é aleijada, o senhor mesmo faz uma parte do serviço
da casa. Tem de fazer compras, limpar os sapatos e executar vá rias
outras tarefas. Quanto tempo isso lhe custa por dia?
- Talvez uma hora, mas...
- Resultado, cinquenta e cinco milhõ es cento e oitenta e oito mil
segundos desperdiçados. Alé m disso, sabemos que vai ao cinema uma
vez por semana, passa uma noite por semana com o grupo de canto
coral, vai ao bar duas noites por semana e, as outras noites, passa com
amigos ou lê um livro. Em suma, desperdiça com ocupaçõ es inú teis
cerca de trê s horas diariamente, o que dá cento e sessenta e cinco
milhõ es quinhentos e sessenta e quatro mil segundos. Está se sentindo
mal, sr. Fusi?
- Nã o, nã o estou - respondeu o sr. Fusi. - Desculpe...
- Estamos quase acabando - prosseguiu o homem cinzento -, mas
existe em sua vida um capı́tulo especial a ser considerado. E aquele seu
segredinho, o senhor sabe.
O sr. Fusi estava com tanto frio, que seus dentes começaram a bater.
Sentindo-se fraco, apenas murmurou:
- Sabe disso també m? Pensei que fosse um segredo entre mim e a
srta. Daria, e...
- No mundo de hoje nada é segredo - interrompeu o agente
XYQ/384/b. - Considere o caso com bom senso e realismo, sr. Fusi.
Responda à minha pergunta: o senhor pretende se casar com a srta.
Daria?
- Nã o, nã o dá ... - disse o sr. Fusi.
- Isso mesmo - continuou o homem cinza -, pois a srta. Daria vai
passar a vida toda numa cadeira de rodas, porque tem as pernas
paralı́ticas. Entretanto, o senhor vai visitá -la todos os dias durante meia
hora e leva lores... Por quê ?
- Ela ica tã o feliz... - respondeu o sr. Fusi, quase chorando.
- Mas, encarando as coisas racionalmente, para o senhor é tempo
perdido, somando vinte e sete milhõ es quinhentos e noventa e quatro
segundos. E, se considerarmos que costuma passar todas as noites um
quarto de hora sentado perto da janela, re letindo sobre o que
aconteceu durante o dia, temos que debitar mais treze
milhõ es setecentos e noventa e sete mil segundos. Agora vamos ver
quanto tempo lhe resta, sr. Fusi.
A conta escrita no espelho era esta:
Sono
Trabalho
Refeições
Mãe
Periquito
Compras etc.
Amigos, coral etc.
Segredo
Janela
TOTAL
- Esta soma - declarou o homem cinzento, batendo o lá pis contra o
espelho com tanta força que parecia estar dando tiros de revó lver -, esta
soma representa o tempo que o senhor desperdiçou até agora. O que
tem a dizer?
O sr. Fusi nã o tinha absolutamente nada a dizer. Sentou-se numa
cadeira, a um canto, e enxugou o suor que lhe escorria pela testa,
apesar do frio. O homem cinzento balançou a cabeça com ar pensativo:
- Pois é isso mesmo. O total é mais da metade da sua riqueza inicial.
Mas agora precisamos ver o que de fato ganhou dos seus quarenta e
dois anos. Como já sabe, um ano tem trinta e um milhõ es quinhentos e
trinta e seis mil segundos, e isso multiplicado por quarenta e dois vem a
ser um bilhã o trezentos e vinte e quatro milhõ es quinhentos e doze mil
segundos.
Abaixo da soma do tempo perdido, escreveu:
1.324.512.000 segundos
- 1.324.512.000 segundos
0.000.000.000 segundo
Feito isso, guardou seu lá pis e fez uma pausa, esperando até os zeros
fazerem efeito sobre o sr. Fusi.
E, de fato, eles produziram o resultado que ele queria.
"Entã o é esse o balanço da minha vida até hoje", pensou o sr. Fusi,
arrasado.
Estava tã o impressionado com a conta, feita com tanta precisã o, que
a aceitou sem contestar. E a conta dava mesmo muito certo. Era um dos
truques que os homens cinzentos utilizavam para enganar as pessoas
sempre que podiam.
- O senhor nã o acha que nã o pode continuar assim, sr. Fusi? -
recomeçou o agente XYQ/384/b, com voz suave. - Nã o gostaria de
começar a poupar um pouco do seu tempo, sr. Fusi?
O sr. Fusi fez sinal que sim, sem dizer nada e com os lá bios roxos de
frio.
- Por exemplo - continuou a voz cinzenta do agente -, se o senhor
tivesse começado, há vinte anos, a poupar uma hora por dia, agora teria
um capital de vinte e seis milhõ es duzentos e oitenta mil segundos. Se
tivesse poupado duas horas diá rias teria, é claro, o dobro dessa soma,
ou seja, cinquenta e dois milhõ es quinhentos e sessenta mil segundos.
Eu lhe pergunto, sr. Fusi, o que sã o suas mı́seras horinhas comparadas a
esse total?
- Nada! - gritou o sr. Fusi. - Uma coisa à toa!
- Fico satisfeito em ver que o senhor o admite - continuou o agente. -
E se agora calcularmos quanto o senhor teria economizado em mais
vinte anos assim, chegaremos à simpá tica soma de cento e cinco
milhõ es cento e vinte mil segundos.
Todo esse capital estaria à sua disposiçã o quando chegasse aos
sessenta e dois anos.
- Formidá vel! - gaguejou o sr. Fusi, com os olhos quase saindo das
ó rbitas.
- Espere um instante, ainda tem mais: a Caixa Econô mica de Tempo
nã o somente cuida do tempo que o senhor poupou, mas ainda lhe paga
os juros sobre isso. Quer dizer que, de fato, teria muito mais ainda.
- Quanto mais? - indagou sr. Fusi, ofegante.
- Isso dependeria do senhor - explicou o agente -, de quanto tempo
tivesse poupado e de quanto tivesse deixado depositado.
- Depositado? Como assim? - quis saber o sr. Fusi.
- Muito simples - explicou o homem cinzento. - Se durante cinco anos
o senhor nã o retirar seu tempo poupado, acrescentaremos a ele mais
uma vez a mesma quantia. Em outras palavras, sua fortuna dobrará a
cada cinco anos. Em dez anos, já valerá quatro vezes a quantia original,
em quinze anos, oito vezes, e assim por diante. Se há vinte anos o
senhor tivesse começado a poupar apenas duas horas por dia, no
aniversá rio dos seus sessenta e dois anos teria à sua disposiçã o
duzentas e cinquenta e seis vezes a soma que teria poupado até
hoje. Chegaria a vinte e seis bilhõ es novecentos e dez milhõ es
setecentos e vinte mil segundos.
Voltou a pegar o lá pis cinzento e escreveu o nú mero no espelho:
26.910.720.000 segundos
Pela primeira vez um ligeiro sorriso entreabriu os lá bios do homem
cinzento.
- O senhor pode veri icar que isso vem a ser dez vezes mais todo o
tempo de sua vida inteira. E pode ser conseguido simplesmente pela
economia de duas horas diá rias. Diga-me se nã o acha que é uma oferta
interessante.
- Claro que é ! - respondeu o barbeiro, esgotado. - Claro que é . Sou um
tolo por nã o ter começado a poupar tempo há muitos anos. Só agora
estou percebendo isso e confesso que ico desesperado.
- Nã o há motivo para isso - retrucou suavemente o homem cinzento. -
Nunca é tarde demais. Se quiser, poderemos começar hoje mesmo. Vai
ver como vale a pena.
- Claro que quero! - exclamou o sr. Fusi. - O que preciso fazer?
- Meu caro senhor - e o agente ergueu as sobrancelhas -, estou certo
de que sabe como poupar tempo! E só trabalhar mais depressa e deixar
de lado tudo o que nã o é essencial. Em vez de dedicar meia hora a cada
cliente, dedique apenas um quarto de hora. Poupe o tempo que tem
desperdiçado em conversas. Reduza para a metade a hora que passa
com sua mã e. Melhor ainda, mande-a para um asilo de velhos, barato,
onde tomarã o conta dela, e estará poupando uma hora inteira por
dia. Largue esse periquito, que nã o serve para nada. Visite a srta. Daria
só a cada quinze dias, se izer questã o. Acabe com o quarto de hora que
passa rememorando os acontecimentos do dia. Acima de tudo,
desperdice menos tempo com o coral, a leitura de livros e os seus
supostos amigos. A propó sito, aconselho que coloque na barbearia um
bom reló gio, bem grande, para poder controlar o trabalho do seu
aprendiz.
- Está certo - disse o sr. Fusi -, posso até fazer tudo isso, mas, e o
tempo que eu economizo? O que faço com ele? Tenho de entregar para
guardar? A quem? Ou eu mesmo guardo em algum lugar? Como é que
funciona a coisa?
O agente tornou a mostrar aquele ligeiro sorriso.
- Nã o se preocupe com nada disso. Deixe tudo por nossa conta. Fique
descansado, pode ter certeza de que nã o deixaremos se perder um só
momento do seu tempo poupado.
- Ah, entã o está bem - respondeu o barbeiro, boquiaberto. - Con iarei
em você s.
- Pode ter absoluta con iança, meu caro senhor - disse o agente,
levantando-se da cadeira. - Entã o agora posso cumprimentá -lo como
novo membro da Associaçã o dos Poupadores de Tempo. Sr. Fusi, o
senhor agora é de fato um homem moderno e progressista. Meus
parabé ns!
Dizendo isso, apanhou o chapé u e a pasta.
- Um minuto! - gritou o sr. Fusi. - Nã o precisamos fazer algum tipo cie
contrato? Eu nã o deveria assinar alguma coisa? Nã o recebo documento
nenhum?
O agente XYQ/384/b, já na porta, virou-se, lançando para o sr. Fusi
um olhar ligeiramente contrariado.
- Para quê ? A poupança de tempo é diferente de qualquer outro tipo
de poupança. E uma questã o apenas de con iança, de ambas as partes.
Para nó s, basta sua palavra. O senhor nã o pode voltar atrá s, e nó s nos
comprometemos a zelar pelas suas economias. O quanto o senhor
poupa é problema apenas seu. Nó s nã o lhe impomos nenhuma
obrigaçã o. Passe bem, sr. Fusi.
Com isso, o agente entrou no seu elegante carro cinzento e partiu
ruidosamente.
O sr. Fusi acompanhou-o com o olhar e enxugou a testa. Pouco a
pouco o frio foi passando, mas ele se sentia fraco e indisposto. A fumaça
cinza-azulada do charuto do agente ainda lutuava na sala, em nuvens
pesadas, e demorava para se dissipar.
O sr. Fusi só se sentiu uni pouco melhor quando a fumaça
desapareceu. Ao mesmo tempo foram també m desbotando os nú meros
no espelho. Depois que sumiram completamente, o visitante cinzento
també m se apagou da lembrança do sr. Fusi - o visitante, mas nã o o
resultado da visita, que ele agora atribuı́a a si mesmo. A decisã o de, a
partir de entã o, poupar tempo, para em algum momento do futuro
poder começar uma vida nova, encravou-se em sua alma como um
anzol.
Nisso chegou o primeiro cliente do dia. O sr. Fusi recebeu-o
secamente, fez o estritamente necessá rio e nã o conversou nada, de
modo que terminou em vinte minutos, em vez de levar a habitual meia
hora.
A partir de entã o, passou a tratar assim todos os clientes. Dessa
maneira, seu trabalho já nã o lhe dava qualquer prazer, mas isso
també m tinha perdido a importâ ncia. Alé m do aprendiz, contratou mais
dois ajudantes e icou de olho neles, iscalizando para que nã o
perdessem um minuto. Cada movimento da mã o era estabelecido
segundo um horá rio rigoroso, calculado até a fraçã o de segundo. Na
barbearia do sr. Fusi foi pendurada uma placa com o recado: TEMPO
POUPADO E TEMPO DOBRADO
O sr. Fusi escreveu uma carta curta e seca para a srta. Daria, dizendo
que, infelizmente, nã o tinha mais tempo para visitá -la. Vendeu o
periquito para uma loja de animais. Colocou a mã e num asilo de velhos
bom e barato, onde passou a visitá -la uma vez por mê s. Nas outras
coisas també m seguiu todos os conselhos do homem cinzento,
convencido de que eram suas pró prias ideias.
Ele foi icando cada vez mais nervoso e preocupado, pois achava
estranho, apesar de todo o tempo que economizava, nunca lhe sobrar
tempo. O tempo desaparecia misteriosamente e nunca mais voltava. Os
dias foram icando cada vez mais curtos, a princı́pio sem ele se dar
conta, depois ostensivamente. Sem o sr. Fusi perceber, mais uma
semana se passava, depois um mê s, um ano, outro ano e mais outro.
Como nã o se lembrava da visita do homem cinzento, devia ter se
perguntado seriamente para onde estava indo todo o seu tempo. Poré m,
essa pergunta lhe ocorreu tã o poucas vezes quanto para todos os
outros poupadores de tempo. Era como se estivesse tomado por uma
obsessã o cega. E, quando à s vezes percebia que seus dias estavam
passando cada vez mais depressa, só fazia redobrar seus esforços
desesperados para poupar o tempo.
O que estava acontecendo com o sr. Fusi já acontecia també m com
muita outra gente cia grande cidade. Cada dia era maior o nú mero de
pessoas que estavam começando a fazer o que chamavam de "poupar
tempo". E quanto mais aumentava seu nú mero, maior era també m o
nú mero das pessoas que as seguiam; mesmo aquelas que nã o queriam
acabavam sendo levadas a imitar as outras.
Todos os dias a televisã o, o rá dio, a imprensa anunciavam e
elogiavam os mé ritos de novos expedientes para poupar tempo,
deixando as pessoas livres para viver uma "vida de verdade". As
fachadas e muros cobriam-se de cartazes que mostravam todas as
imagens possı́veis da felicidade. Embaixo, em letras luminosas, lia-se:
OS POUPADORES DE TEMPO VIVEM CADA VEZ MELHOR! O FUTURO
PERTENCE A QUEM POUPA TEMPO! ou APROVEITE MELHOR A VIDA -
POUPE TEMPO!
A realidade, entretanto, era muito diferente. De fato, os poupadores
de tempo vestiam-se melhor do que as pessoas que moravam por perto
do velho an iteatro.
Ganhavam mais dinheiro e, assim, podiam gastar mais. Mas tinham a
isionomia mal-humorada, cansada ou amargurada e o olhar hostil.
Naturalmente, nã o conheciam a expressã o: "Ora, vá falar com Momo!"
Nã o tinham ningué m que os ouvisse de modo a torná -los lú cidos,
conciliadores ou até felizes. Mas, ainda que tivessem acesso a uma
pessoa assim, era pouco prová vel que a procurassem, a nã o ser que o
assunto pudesse ser resolvido em menos de cinco minutos - senã o
achariam que era perda de tempo. Do ponto de vista dos poupadores,
mesmo suas horas de folga precisavam ser aproveitadas ao má ximo,
fornecendo-lhes o mais depressa possı́vel o má ximo de diversã o e
prazer.
Assim, já nã o podiam comemorar direito os feriados, nem os alegres
nem os sé rios. Sonhar era quase um crime. Mas o que menos toleravam
era o silê ncio.
Quando estava tudo quieto, icavam apavorados, pois percebiam, na
verdade, o que estava acontecendo com suas vidas. Por isso, sempre
que sentiam a ameaça do silê ncio, faziam barulho. Nã o era um barulho
alegre, como se ouve num recreio de crianças; era um barulho irritado,
agressivo, que se tornava cada dia mais alto na grande cidade.
Já nã o tinha importâ ncia algué m gostar de seu trabalho ou fazê -lo
com prazer.
Pelo contrá rio, isso acarretava, perda de tempo. A ú nica coisa
importante era que cada um trabalhasse, o mais possı́vel no menor
tempo possı́vel.
Por isso, foram colocados letreiros nas fá bricas e nos escritó rios,
dizendo: O TEMPO E PRECIOSO - NAO O PERCA! ou TEMPO E
DINHEIRO - ECONOMIZE!
Avisos semelhantes foram a ixados nas paredes atrá s das mesas dos
chefes, das cadeiras dos diretores, nos consultó rios mé dicos, nas lojas,
nos restaurantes, até nas escolas e jardins de infâ ncia. Ningué m
escapou.
Por im, a aparê ncia da pró pria grande cidade foi mudando cada vez
mais. Os bairros antigos foram demolidos e construı́ram-se novas casas,
deixando-se cie lado tudo o que fosse considerado supé r luo. Já nã o
havia a preocupaçã o cie que as casas fossem adequadas à s pessoas que
morassem nelas, pois isso tornaria necessá rio construir muitas casas
diferentes umas das outras. Era muito mais barato e, sobretudo, mais
rá pido construir todas as casas iguais.
No lado norte da grande cidade já se espalhavam imensos bairros
residenciais novos. Pré dios de apartamentos para alugar dispunham-se
em ileiras interminá veis, tã o iguais quanto um ovo é igual ao outro. E,
como todas as casas se pareciam, també m as ruas acabavam se
parecendo. Essas ruas todas iguais cresciam cada vez mais, estendendo-
se em linhas retas até o horizonte: um deserto ordenado! A vida das
pessoas que moravam lá transcorria exatamente da mesma maneira,
em linha reta até o horizonte. Tudo era calculado e planejado, cada
centı́metro e cada instante.
Ningué m parecia notar que, ao poupar tempo, na verdade estava se
poupando de outra coisa. Ningué m queria admitir que sua vida estava
se tornando cada vez mais pobre, mais monó tona, mais fria. Quem mais
sentia isso eram as crianças, pois ningué m mais tinha tempo para elas.
Mas tempo é vida. E a vida reside no coraçã o.
E quanto mais as pessoas poupavam tempo menos tempo elas
tinham.
Capítulo Sete
MOMO PROCURA SEUS AMIGOS E É ENCONTRADA POR UM
INIMIGO

- Nã o sei - disse Momo certo dia -, mas tenho a impressã o de que nossos
velhos amigos tê m vindo me visitar muito menos do que antes. Há
alguns que nã o vejo há um tempã o.
Gigi Guia e Beppo Varredor estavam sentados perto dela nos degraus
de pedra cobertos de capim, olhando o pô r-do-sol.
- E - con irmou Gigi -, també m tenho essa impressã o. Cada vez menos
gente quer ouvir minhas histó rias. Nã o é mais como antes. Alguma
coisa está acontecendo.
- Mas o quê ? - indagou Momo.
Gigi sacudiu os ombros e apagou com cuspe algumas letras que tinha
escrito numa velha lousa Algumas semanas antes, Beppo Varredor
havia trazido para Momo aquela lousa, que encontrara no lixo. Nã o era
nova, é claro, e tinha uma rachadura bem no meio, mas ainda dava
muito bem para usá -la. Desde entã o, todos os dias Gigi ensinava
algumas letras para Momo. Como a menina tinha muito boa memó ria, já
conseguia ler direitinho. Mas escrever ela ainda nã o sabia muito bem.
Beppo Varredor, que icara pensando na pergunta de Momo,
balançou a cabeça e respondeu:
- E verdade. Está chegando mais perto. Na cidade já está por toda
parte. Já faz algum tempo que reparei.
- O quê ? - perguntou Momo.
Beppo pensou um pouco antes de responder:
- Nada de bom.
Fez nova pausa antes de prosseguir:
- Está esfriando.
- Imagine! - exclamou Gigi, passando o braço em torno dos ombros
cie Momo, num gesto de consolo. - Seja como for, aqui vê m cada vez
mais crianças.
- E por isso - disse Beppo -, é justamente por isso.
- O que você está querendo dizer? - indagou Momo. Beppo demorou
muito para responder:
- Elas nã o vê m por nossa causa. Vê m apenas à procura de um refú gio.
Os trê s olharam para o centro da arena, onde algumas crianças
estavam se divertindo com um novo jogo de bola que tinham inventado
aquela tarde.
Entre elas estavam alguns velhos amigos de Momo: Paulo, o menino
de ó culos; Maria, com a irmã zinha Dedé ; o garoto gordo de voz
estridente, chamado Má ssimo; e o outro menino, Franco, sempre com
jeito desleixado. Mas, alé m dessas, havia vá rias crianças que só tinham
começado a aparecer nos ú ltimos dias, entre as quais um menino
pequeno, que viera aquela tarde pela primeira vez. Parecia que Gigi
tinha razã o: a cada dia vinham mais crianças.
Momo, na verdade, icava muito feliz com a presença delas, mas a
maioria das crianças novas nã o sabia brincar. Elas icavam ali sentadas,
amuadas e aborrecidas, vendo Momo e seus amigos. De vez em quando
interrompiam de propó sito a brincadeira dos outros e estragavam tudo.
Era mais frequente saı́rem brigas e discussõ es. Mas nã o duravam muito,
pois a presença de Momo també m in luenciava as crianças novas, que
logo começavam a ter boas ideias e juntavam-se à s outras com
entusiasmo. No entanto, quase todos os dias chegavam mais crianças,
algumas vindas de longe, até do outro lado da grande cidade.
Entã o, estava sempre começando tudo de novo, pois, como se sabe,
basta um estraga-prazeres para pô r tudo a perder.
Havia mais uma coisa que Momo nã o conseguia entender. Já era
assim desde o inı́cio, e agora acontecia cada vez com maior frequê ncia.
As crianças traziam todo tipo de brinquedos, com os quais nã o dava
para brincar de verdade. Era o caso, por exemplo, de um tanque com
controle remoto, que andava sozinho, mas nã o fazia mais nada alé m
disso. Ou de um foguete espacial, que voava em cı́rculos em torno de
um suporte, mas nã o servia para nada mais. Ou de um robô de olhos
iluminados, que andava se balançando e girando a cabeça, mas que fora
isso era inú til.
Eram brinquedos muito caros, naturalmente. Os amigos de Momo
nunca haviam possuı́do iguais, e muito menos ela. Acima de tudo,
aqueles brinquedos eram perfeitos nos mı́nimos detalhes, de modo que
nã o sobrava nada para se imaginar.
Muitas vezes as crianças icavam horas olhando para uma coisa
daquelas, que rodopiava, balançava ou andava em cı́rculos. Elas icavam
fascinadas, mas ao mesmo tempo entediadas, pois nã o sabiam o que
fazer com aquilo. Acabavam voltando à s brincadeiras antigas, para as
quais bastavam algumas caixas vazias, uma velha toalha de mesa, um
montinho feito por alguma toupeira ou um punhado de pedrinhas. Era
o su iciente para imaginar o que quer que fosse.
Naquela tarde, parecia que alguma coisa estava atrapalhando o jogo.
Uma a uma, as crianças foram desistindo, até que a inal todas estavam
sentadas em torno de Momo, Beppó e Gigi. Queriam ouvir uma histó ria
de Gigi, mas nã o era possı́vel, porque o garotinho que estava ali pela
primeira vez tinha levado um rá dio.
Sentado meio afastado dos outros, ele ouvia propagandas, com o
rá dio a todo volume.
- Nã o dá para abaixar um pouco o volume dessa coisa boba? -
perguntou Franco, o menino de aspecto relaxado, em tom agressivo.
- Nã o estou ouvindo - respondeu o garoto, com um sorriso. - Meu
rá dio está muito alto. .
- Abaixe isso já ! - gritou Franco, levantando-se.
O garoto empalideceu ligeiramente, mas respondeu, teimando:
- Nem você nem ningué m manda em mim. Vou deixar meu rá dio no
volume que eu quiser.
- Ele tem razã o - disse o velho Beppo - Nã o podemos proibi-lo de
nada. No má ximo podemos pedir.
Franco tornou a sentar, mal-humorado:
- Entã o ele devia ir para algum outro lugar. A tarde inteira ele
atrapalhou tudo.
- Ele deve ter suas razõ es - disse Beppo, olhando para o garoto com
simpatia e compreensã o, atravé s de seus pequenos ó culos. - Com
certeza tem.
O garoto nã o disse nada, mas dali a pouco abaixou o volume do rá dio,
olhando para o outro lado.
Momo foi sentar-se ao lado dele. O garoto desligou o rá dio e, durante
alguns momentos, icou em silê ncio.
- Conte uma histó ria, Gigi - pediu uma das crianças novas no grupo.
- E, conte, por favor! - gritaram as outras - Conte uma histó ria
engraçada!
Nã o, de terror! Nã o, um conto de fadas! Nã o, uma histó ria de
aventuras!
Mas Gigi nã o queria. Era a primeira vez na sua vida que isso
acontecia.
- Pre iro que você s me contem alguma coisa - disse ele, inalmente. -
Alguma coisa sobre você s e suas casas, o que você s fazem o dia todo e
por que estã o aqui.
As crianças icaram quietas De repente suas isionomias se
entristeceram e se fecharam.
- Nó s agora temos um carro muito bonito - disse, por im, uma delas.
- Aos sá bados, quando papai e mamã e tê m tempo, eles lavam o carro
Quando me comporto bem, tenho autorizaçã o para ajudar. Quando
crescer vou ter um igual.
- Agora eu posso ir ao cinema quando me dá vontade disse uma
menininha. - Assim eu ico num lugar seguro, porque eles infelizmente
nã o tê m tempo para mim.
Ela fez uma pausa e acrescentou- - Mas eu nã o gosto de icar num
lugar seguro, entã o venho aqui, escondida, e economizo o dinheiro do
cinema. Quando eu tiver juntado bastante dinheiro, vou comprar uma
passagem para ir ver os sete anõ es.
- Nã o seja boba! - gritou outra criança. - Isso nã o existe!
- Existe, sim - insistiu a menina - Eu até vi um deles num folheto de
viagens.
- Eu já tenho onze discos de contos de fadas - disse um menininho. -
E posso tocar toda hora. Antes, meu pai sempre me contava histó rias
quando voltava do trabalho, e era muito bom. Mas agora ele nunca está
em casa, ou entã o está muito cansado e nã o tem vontade de contar
histó rias.
- E sua mã e? - perguntou Momo.
- Agora ela també m está fora de casa o dia inteiro.
- E - disse Maria -, na minha casa é a mesma coisa, mas por sorte eu
tenho a Dedé .
Beijou a irmã zinha, que estava sentada no seu colo, e continuou:
- Quando chego da escola, esquento a comida, depois faço minha
liçã o e depois... - ela sacudiu os ombros – depois nó s icamos andando
por aı́, até escurecer. Agora a gente quase sempre vem para cá .
As crianças balançavam a cabeça, con irmando, pois com todas
acontecia mais ou menos a mesma coisa.
- Acho ó timo meus pais nã o terem mais tempo para mim- disse
Franco, embora nã o parecesse nada contente. - Senã o eles começam a
brigar e eu acabo apanhando.
De repente o menino do rá dio virou-se para eles e disse:
- Agora estou ganhando uma mesada muito maior do que antes.
- Claro - atalhou Franco. - Eles fazem isso para icarem livres de nó s.
Eles nã o gostam mais de nó s, mas també m nã o gostam mais deles
mesmos, Nã o gostam mais de nada. E isso que eu acho.
- E mentira! - gritou zangado o garoto do rá dio. - Meus pais gostam
muito de mim. Eles nã o tê m culpa de nã o terem tempo. As coisas sã o
assim. Em compensaçã o me deram este rá dio, que custa muito caro.
Isso é uma prova, nã o é ?
Ningué m respondeu. De repente, o menino que tinha passado a tarde
toda estragando tudo começou a chorar. Tentou segurar o choro,
esfregou os olhos com suas mã os sujas, poré m as lá grimas escorriam,
deixando riscos mais claros nas bochechas encardidas.
As outras crianças olhavam com simpatia ou abaixavam os olhos.
Agora estavam entendendo o garoto. Na verdade, todas sentiam o
mesmo. Todas sentiam que haviam sido abandonadas.
- E - falou o velho Beppo, apó s uma longa pausa -, está icando frio.
- Acho que daqui a pouco nã o vou mais poder vir aqui disse Paulo, o
menino de ó culos.
- Por que nã o? - indagou Momo, surpresa.
- Meus pais disseram que você s todos sã o vagabundos e imprestá veis
- explicou Paulo. - Disseram que você s estã o roubando o tempo que é de
Deus, e é por isso que você s tê m tanto tempo. Que existe muita gente
como você s e, por isso, os outros tê m cada vez menos tempo. Eles nã o
querem mais que eu venha aqui, para nã o icar igualzinho a você s.
Algumas crianças mais uma vez balançaram a cabeça, con irmando
que já tinham ouvido a mesma coisa. Gigi encarou-as, uma a uma.
- Você s també m acham isso de nó s? Entã o por que continuam vindo
aqui, apesar de tudo?
Depois de um breve silê ncio, Franco disse:
- Eu nã o ligo. De qualquer jeito, meu pai sempre diz que quando eu
crescer vou ser ladrã o. Estou do lado de você s.
- Ah, é ? - perguntou Gigi, erguendo as sobrancelhas. - E você també m
acha que somos ladrõ es?
As crianças olhavam para o chã o, encabuladas. Por im, Paulo
encarou o velho Beppo.
- Meus pais nã o mentem - disse ele, baixinho. E, mais baixinho ainda,
perguntou:
- Entã o você s nã o sã o?
Ouvindo isso, o velho varredor cie ruas ergueu-se ao má ximo cie sua
altura, que nã o era muita, levantou solenemente a mã o e declarou:
- Nunca na minha vida, nunca mesmo, nunca roubei o menor
tiquinho de tempo nem de Deus nem dos homens. Isso eu juro, e Deus é
testemunha!
- Eu també m nã o - disse Momo.
- Eu també m nã o - repetiu Gigi, muito sé rio.
As crianças se calaram, impressionadas. Nenhuma delas duvidava da
palavra dos trê s amigos.
- E, já que estamos falando no assunto, quero dizer mais uma coisa -
continuou Gigi. - As pessoas costumavam vir procurar Momo para que
ela as ouvisse. Assim, encontravam a si mesmas, se é que você s me
entendem. Mas agora já nã o querem saber disso. As pessoas també m
gostavam de vir escutar minhas histó rias, que as faziam se esquecer de
si mesmas. També m nã o me procuram mais. Todos dizem que nã o tê m
mais tempo para isso. E també m nã o tê m mais tempo para você s. Dá
para perceber? E impressionante notar para que eles nã o tê m mais
tempo.
Gigi apertou os olhos e fez um gesto com a mã o.
- Um dia destes encontrei na cidade um velho amigo, um barbeiro
chamado Fusi.
Fazia algum tempo que eu nã o o via, e quase nã o o reconheci, pois
estava muito mudado: nervoso, irritado, infeliz. Antigamente ele era um
sujeito simpá tico, que cantava muito bem e, sobretudo, tinha opiniõ es
muito interessantes Agora, de repente, nã o tem mais tempo para nada.
Deixou de ser o sr. Fusi, barbeiro, e virou um fantasma de si mesmo,
você s me entendem? Se ele fosse o ú nico, eu diria que icou meio louco,
mas para onde olhamos damos com pessoas assim. E cada dia
aparecem mais e mais. Agora até alguns dos nossos velhos amigos estã o
começando a icar desse jeito! As vezes me pergunto se existem
loucuras que sã o contagiosas.
O velho Beppo concordou:
- Tem razã o, eleve ser algum tipo de contá gio
- Se é assim, precisamos socorrer nossos amigos! - disse Momo,
apavorada.
Naquela noite ainda passaram muito tempo juntos, conversando
sobre o que poderiam fazer. Mas nã o sabiam da existê ncia dos homens
cinzentos e de sua atividade inesgotá vel.
No decorrer dos dias seguintes, Momo foi procurar os velhos amigos,
para perguntar o que tinha acontecido e por que nã o iam mais visitá -la.
Primeiro foi procurar Nicola, o pedreiro. Ela conhecia a casa onde ele
morava, num quartinho do só tã o. Mas Nicola nã o estava. Os outros
moradores da casa só sabiam que ele estava trabalhando no novo
bairro residencial, do outro lado da cidade, e que estava ganhando
muito dinheiro. Voltava para casa muito raramente e, quando voltava,
era sempre muito tarde. També m estava sempre meio bê bado, e era
difı́cil conviver com ele.
Momo resolveu esperar por Nicola e sentou-se na escada, diante da
porta do quarto dele. Aos poucos foi escurecendo e ela adormeceu.
Devia ser tarde da noite quando a menina acordou com o barulho de
passos cambaleantes e uma voz rouca que cantava. Era Nicola, que
vinha tropeçando pela escada . Ao ver a menina, parou, espantado.
- Oi, Momo! - resmungou, evidentemente embaraçado por ser visto
pela menina naquele estado. - Entã o você ainda existe? O que está
procurando aqui?
- Você - respondeu Momo, timidamente.
- Ora, você tem cada uma! - disse Nicola, balançando a cabeça, com
um sorriso. -
Imagine só , vir aqui no meio da noite para visitar seu velho amigo
Nicola! Sabe que há muito tempo estou querendo visitá -la, mas hoje em
dia nã o tenho mais tempo para assuntos... particulares.
Fez um gesto vago e sentou-se pesadamente na escada, ao lado de
Momo.
- Você nem imagina o que virou minha vida, menina! As coisas nã o
sã o mais como antes. Os tempos mudaram. Lá onde estou trabalhando
agora, o ritmo é outro. E um inferno. Cada dia construı́mos um andar
inteiro, e é um atrá s cio outro. E muito diferente de antigamente. Eles já
tê m tudo planejado, cada gesto, entende? Tudo está previsto até nos
menores detalhes...
Ele continuou falando, e Momo ouvia com atençã o. A medida que ela
ia ouvindo, a voz de Nicola ia perdendo o entusiasmo. De repente ele
parou e passou a mã o cheia de calos pela testa.
- Tudo isso é um monte de bobagem - disse ele, com tristeza. - Sabe,
Momo, mais uma vez, eu bebi um pouco demais. Reconheço.
Ultimamente, muitas vezes passo da conta. E o ú nico jeito de aguentar o
que estamos fazendo lá . Quero dizer, vai contra a consciê ncia de um
pedreiro honesto. Por exemplo, muita areia no cimento, entende? Vai
durar uns quatro ou cinco anos e, entã o, bastará algué m dar uma
tossida para tudo desmoronar. Serviço ordiná rio, enganaçã o! E isso
ainda nã o é o pior. Pior é o tipo de casa que estamos construindo. Nã o
sã o casas, sã o... sã o depó sitos de almas! E de virar o estô mago! Mas,
a inal, o que eu tenho a ver com isso? Estou ganhando meu dinheiro, e
pronto! Pois é , os tempos mudaram. Antigamente era diferente, eu tinha
orgulho do meu trabalho, quando construı́amos coisas decentes. Mas
agora... Algum dia, depois que eu tiver ganho o su iciente, vou largar
essa pro issã o e fazer alguma outra coisa.
Ele deixou a cabeça pender para o lado e icou olhando o vazio.
Momo nã o dizia nada, apenas o ouvia.
Dali a pouco Nicola continuou, baixinho:
- Talvez eu devesse, mesmo, voltar a visitá -la e lhe contar tudo. Que
tal amanhã ? Ou entã o depois de amanhã ? Preciso ver quando é que vai
dar. Mas vou sem falta. Entã o, está combinado?
- Combinado - respondeu Momo, alegre.
E os dois se despediram, pois estavam muito cansados. Poré m Nicola
nã o apareceu no dia seguinte, nem no outro dia. Nã o apareceu mais.
Talvez estivesse, mesmo, sem tempo.
Depois Momo foi procurar Nino, o dono do bar, e sua mulher
gorducha. A casinha velha, com as paredes manchadas pela chuva e
uma videira na porta, icava nos limites da cidade. Como fazia
antigamente, Momo deu a volta para entrar pela porta da cozinha. A
porta estava aberta e muito antes de chegar Momo já ouviu que Nino e
Liliana estavam tendo um violento bate-boca. Liliana batia as panelas
no fogã o, seu rosto gorducho reluzia de suor. Nino gritava com ela e
gesticulava. Sentado no berço, a um canto, o bebê berrava.
Momo esgueirou-se silenciosamente até o bebê , pegou-o no colo e o
acalentou, até ele parar de gritar. Marido e mulher interromperam o
bate-boca e olharam para o ilho.
- Ah, Momo, é você ? - disse Nino, com um breve sorriso. - Que prazer
vê -la de novo.
- Quer comer alguma coisa? - perguntou Liliana, meio brusca.
Momo balançou negativamente a cabeça.
- Entã o o que você quer? - indagou Nino, irritado. - Agora nã o temos
tempo para atendê -la.
- Só vim perguntar por que faz tanto tempo que você s nã o vã o me
visitar - disse ela, baixinho.
- Ora, eu també m nã o sei - respondeu Nino, ainda mais irritado. -
Agora temos outras coisas para nos preocupar, sabe?
- E isso - gritou Liliana, sempre batendo as panelas -, ele tem mesmo
outras coisas para se preocupar... como por exemplo despachar os
antigos fregueses, tã o queridos... agora ele só pensa nisso! Lembra-se,
Momo, daqueles velhos que costumavam se sentar à mesa do canto?
Pois Nino mandou-os embora, expulsou-os!
- Nã o foi bem assim - protestou Nino. - Só pedi, com toda a gentileza,
que eles procurassem outro bar. Como dono, tenho o direito de fazer
isso.
- Ora, direito, direito! - exclamou Liliana, exasperada. Uma coisa
dessas simplesmente nã o se faz. E desumano e injusto. Você sabe muito
bem que eles nã o vã o encontrar outro bar. E aqui nã o incomodavam
ningué m.
- Claro que nã o incomodavam ningué m! - gritou Nino. Porque os
fregueses decentes, pagantes, nunca vinham aqui quando aqueles
velhos barbudos estavam amontoados lá no canto. Você acha que as
pessoas gostam disso? E eles só podiam consumir um copo de vinho
barato por noite, o que nã o dava lucro nenhum. Desse jeito nunca ı́amos
conseguir nada.
- Até agora nó s nos arranjamos muito bem - retrucou Liliana.
- Até agora, sim! - continuou Nino, com veemê ncia. - Mas você sabe
perfeitamente que nã o vai continuar sendo sempre assim. O aluguel
aumentou. Tenho que pagar um terço a mais do que antes. Os preços de
tudo estã o subindo. Onde é que eu vou arranjar dinheiro, se
transformar meu bar num asilo de velhos miserá veis? Por que é que eu
sou obrigado a cuidar dos outros? De mim ningué m cuida!
A gorda Liliana bateu uma frigideira no fogã o com tanta força que ela
até rachou.
- Vou lhe dizer uma coisa - ela gritou, com as mã os na cintura -, entre
esses velhos miserá veis, como você diz, está meu tio Ettore, e nã o vou
admitir que você ofenda minha famı́lia. Meu tio é um homem bom e
honesto, mesmo nã o tendo tanto dinheiro quanto esses seus fregueses
pagantes!
- Mas o Ettore pode continuar vindo - respondeu Nino, com um gesto
magnâ nimo -
Eu já disse que ele pode vir se quiser, mas ele nã o quer
- Claro que nã o quer, sem seus velhos amigos! O que você está
pensando? Acha que ele vai icar ali sozinho, encolhido no canto?
- Entã o nã o posso fazer mais nada! - berrou Nino. - O fato é que nã o
quero passar o resto da minha vida como dono de uma espelunca, só
para satisfazer ao seu tio Ettore. També m quero melhorar de vida! Por
acaso isso é crime? Quero arrumar este estabelecimento, quero que
seja um lugar concorrido. E nã o é só por mim, també m é por você e por
nossa ilha. Será que você nã o entende, Liliana?
- Nã o, nã o entendo - retrucou Liliana, com irmeza. - Se for para nã o
ter coraçã o, se já está começando assim, entã o nã o conte comigo. Um
belo dia eu me canso e vou embora. Você é quem sabe!
Ela foi até Momo, pegou a criança, que tinha voltado a chorar, e
correu para fora da cozinha.
Durante algum tempo Nino nã o disse nada. Acendeu um cigarro e
começou a enrolá -lo nos dedos.
Momo olhava para ele.
- E - disse Nino, inalmente - Sei que eles eram bons sujeitos. Até
gostava deles. Sabe, Momo, eu sinto muito, mesmo .. mas o que posso?
Os tempos mudaram.
Apó s outro silê ncio, ele tornou a falar:
- A inal, talvez Liliana tenha razã o. Desde que aqueles velhos
deixaram de aparecer, o bar me parece estranho, meio frio, entende? Eu
mesmo já nã o me sinto bem. Sinceramente, nã o sei o que fazer. Mas
hoje em dia todos agem assim. Por que eu haveria de ser o ú nico a agir
diferente? Ou você acha que eu deveria?
Com um movimento quase imperceptı́vel, Momo balançou a cabeça
a irmativamente.
Nino olhou para ela e també m meneou a cabeça. Depois, os dois
sorriram.
- Foi bom você ter vindo - disse Nino. - Eu tinha esquecido
completamente que antes, numa ocasiã o como esta, nó s costumá vamos
dizer: "Ora, vá falar com Momo!" Mas agora vou voltar a visitar você e
vou levar Liliana. Depois de amanhã é nosso dia de folga e vamos até lá
Combinado?
- Combinado - respondeu Momo.
Entã o Nino deu-lhe um saco cheio de laranjas e maçã s, e Momo
voltou para casa.
No dia combinado Nino e sua mulher foram, de fato, visitar Momo,
levando o bebê e uma cesta cheia de coisas gostosas.
- Imagine só , Momo - disse Liliana, radiante -, Nino foi procurar tio
Ettore e os outros velhos, um por um. Desculpou-se e pediu que
voltassem.
- E - continuou Nino, com um sorriso, cocando a orelha. - Todos
voltaram. Com isso, as mudanças no meu bar nã o vã o dar em nada. Mas
estou gostando dele de novo.
Ele riu, e sua mulher disse:
- Vamos conseguir tocar nossa vida, Nino.
Foi uma tarde maravilhosa. Finalmente, eles foram embora,
prometendo voltar em breve.
Assim, Momo foi procurar todos os seus velhos amigos, um por um.
Procurou o carpinteiro que tinha feito a mesinha e as cadeiras para ela.
Procurou as mulheres que lhe deram a cama. En im, procurou todos
aqueles a quem tinha ouvido e que, graças a ela, tinham se tornado mais
sensatos, mais con iantes ou mais felizes. Todos eles prometeram voltar
de novo. Alguns nã o cumpriram a promessa, ou nã o puderam cumprir
porque nã o tinham tempo. Entretanto, muitos voltaram, e tudo icou
sendo quase como era antes.
Sem querer, Momo tinha atrapalhado os planos dos homens
cinzentos, e isso eles nã o podiam tolerar.
Pouco tempo depois, numa manhã muito quente, Momo encontrou
uma boneca nos degraus de pedra do antigo an iteatro.
Muitas vezes já tinha acontecido as crianças esquecerem ou
simplesmente largarem ali um daqueles brinquedos caros com os quais
nã o dava para brincar direito. Mas Momo nã o se lembrava de ter visto
alguma criança com aquela boneca; e certamente teria reparado, pois
era uma boneca meio fora do comum. Era quase do tamanho da pró pria
Momo e tã o bem-feita que quase poderia ser confundida com um
pequeno ser humano. Mas nã o parecia uma criança ou um bebê , era
como uma moça elegante ou um manequim de vitrine. Usava um
vestido curto, vermelho, e sapatos de salto alto.
Momo icou olhando para ela, fascinada. Depois estendeu a mã o e
pegou a boneca, que, imediatamente, piscou os olhos, moveu os lá bios e
disse com uma voz meio fanhosa, como voz de telefone:
- Bom dia. Eu sou Bibigirl, a boneca perfeita.
Momo recuou, assustada, poré m respondeu automaticamente:
- Bom dia. Meu nome é Momo.
A boneca moveu novamente os lá bios, dizendo:
- Eu sou sua. Todo o mundo tem inveja de mim e de você .
- Acho que você nã o é minha, nã o - retrucou Momo. Acho que algué m
esqueceu você aqui.
A menina levantou a boneca, que voltou a mover os lá bios e disse:
- Eu gostaria de ter mais coisas.
- Ah, é ? - respondeu Momo, e re letiu um momento. Nã o sei se tenho
alguma coisa que sirva para você . Mas espere um instante. Vou lhe
mostrar minhas coisas e você poderá dizer se gosta de alguma delas.
Carregando a boneca, passou pelo buraco no muro que dava para o
seu quarto. De baixo da cama, puxou uma caixa cheia cie tesouros e
abriu-a diante da Bibigirl.
- Aqui está , isso é tudo o que eu tenho. Se você gostar de alguma
coisa, é só dizer.
E ela mostrou para a boneca uma pena de pá ssaro multicolorida,
uma pedrinha com bonitos veios, um botã o dourado, um pedacinho de
vidro colorido. Como a boneca nã o respondeu, Momo a cutucou.
- Bom dia - grasnou a boneca. - Eu sou Bibigirl, a boneca perfeita.
- Já sei - respondeu Momo. - Mas, Bibigirl, você disse que queria
escolher uma coisa. Olhe, eu tenho uma linda concha cor-de-rosa. Você
gosta?
- Eu sou sua. Todo o mundo tem inveja de mim e de você .
- Eu sei, você já disse - falou Momo. - Se você nã o gosta de nenhuma
das minhas coisas, nó s podemos brincar. Vamos?
- Eu gostaria de ter mais coisas - repetiu a boneca.
- Nã o tenho nada mais - respondeu Momo.
A menina carregou novamente a boneca e escalou a abertura no
muro. Lá fora, colocou Bibigirl no chã o e sentou-se na frente dela.
- Vamos brincar. Faz de conta que você veio me visitar - sugeriu
Momo.
- Bom dia. Eu sou Bibigirl, a boneca perfeita.
- Que prazer em receber sua visita. De onde a senhora veio, madame?
- falou Momo.
- Eu sou sua. Todo o mundo tem inveja de mim e de você .
- Tudo bem, mas escute: se você continuar repetindo as mesmas
coisas, nã o vamos poder brincar.
- Eu gostaria de ter mais coisas - continuou a boneca, piscando os
olhos.
Momo tentou outra brincadeira. Vendo que també m nã o dava certo,
experimentou outra e mais outra e mais outra. Mas nada dava certo. Se
pelo menos a boneca nã o falasse nada, Momo poderia responder por
ela, e a conversa seria ó tima. Poré m, pelo pró prio fato de falar, Bibigirl
impedia qualquer conversa.
Dali a pouco Momo começou a ter uma sensaçã o que nunca tivera
antes. Como era novidade, levou algum tempo para ela perceber que se
tratava de té dio.
Momo estava se sentindo perdida. Tinha vontade de simplesmente
deixar a boneca perfeita de lado e ir brincar com outra coisa. Mas, por
alguma razã o, nã o conseguia se afastar dela.
Entã o Momo icou ali sentada, itando a boneca, que a olhava
ixamente com seus olhos de vidro azul. Era como se uma tivesse
hipnotizado a outra.
Por im, Momo conseguiu desviar seu olhar da boneca e icou meio
assustada. Bem perto dali, estava um elegante automó vel cinzento, que
chegara sem ela perceber.
Dentro do carro estava sentado um homem, de terno cinza-teia de
aranha e chapé u-coco cinzento. Estava fumando um pequeno charuto
cinzento. Seu rosto també m parecia cinza cinzenta.
O homem já devia estar observando Momo havia algum tempo, pois
cumprimentou-a inclinando a cabeça, sorridente. E, embora o dia
estivesse tã o quente que o ar parecia tremular, de repente Momo
começou a tremer de frio.
O homem abriu a porta do carro, desceu e foi ao encontro da menina,
carregando uma pasta cinza-chumbo.
- Que linda boneca você tem! - disse ele, com uma voz estranha e sem
entonaçã o.
- Com certeza todos os seus companheiros tê m inveja de você .
Momo sacudiu os ombros sem responder.
- Deve ter custado caro, nã o é ? - continuou o homem cinzento.
- Nã o sei - murmurou Momo, meio sem jeito. - Eu a achei aqui.
- Nã o me diga! - exclamou o homem. - Entã o parece que você foi
mesmo favorecida pela sorte!
Momo nã o disse nada, enrolou-se mais em seu paletó imenso, pois o
frio aumentava.
Com um sorriso apertado, o homem continuou:
- Mas você nã o me dá a impressã o de estar muito feliz, menina.
Momo sacudiu a cabeça. De repente era como se toda a felicidade
tivesse desaparecido do mundo para sempre, ou melhor, como se nunca
tivesse existido. E como se tudo aquilo que ela julgava ser felicidade
fosse apenas fruto da imaginaçã o. Ao mesmo tempo, sentia como que
um sinal de alerta.
- Eu a estive observando durante algum tempo - continuou o homem
cinzento -, e parece-me que você nã o faz ideia de como brincar com
uma boneca tã o maravilhosa. Quer que eu lhe mostre como se faz?
Momo olhou para o homem, espantada, e balançou a cabeça
a irmativamente.
- Eu gostaria de ter mais coisas - grasnou a boneca, de repente.
- Está ouvindo, menina? - prosseguiu o homem. - Ela mesma até lhe
ensina. E claro que nã o se pode brincar com uma boneca tã o
maravilhosa do mesmo jeito que se brinca com qualquer outra. Ela nã o
foi feita para isso. E preciso lhe oferecer sempre alguma coisa, para
brincar sem se aborrecer. Veja só , menina.
Ele abriu o porta-malas do carro:
- Primeiro, ela precisa de muitos vestidos. Aqui está , por exemplo,
um lindo vestido de noite.
O homem pegou o vestido e o jogou para Momo.
- E aqui um casaco de pele de marta autê ntica. E aqui uma camisola
de seda. E aqui uma roupa de tê nis. E um conjunto para esquiar. E um
maiô de banho. E uma roupa de montaria. E um pijama. E um penhoar.
E outro vestido. E outro. E outro. E mais outro...
Ia jogando uma coisa atrá s da outra, formando uma pilha cada
vez mais alta entre Momo e a boneca.
- Entã o - e ele tornou a esboçar aquele sorriso super icial -, com tudo
isso vai dar para você brincar durante algum tempo, nã o é ? Mas, depois
de alguns dias, vai acabar icando sem graça, você nã o acha? Muito bem,
nesse caso o que você tem a fazer é arranjar mais coisas para a sua
boneca.
Tornou a se debruçar sobre o porta-malas do carro e recomeçou a
jogar coisas para Momo.
- Aqui, por exemplo, está uma bolsinha de couro de cobra autê ntico,
e dentro um batonzinho de verdade e um estojinho de pó -de-arroz.
Aqui uma maquininha fotográ ica. Aqui uma raquete de tê nis. Aqui uma
televisã ozinha cie boneca que funciona de verdade. Aqui uma pulseira,
um colar, brincos, um revó lver de boneca, meias de seda, um
chapeuzinho de plumas, um chapé u de palha, um conjunto para jogar
golfe, um talã ozinho de cheques, um vidrinho de perfume, sais de
banho, loçõ es para o corpo...
Ele fez uma pausa e lançou um olhar inquisidor para Momo, que
estava sentada no chã o, no meio cie todos aqueles objetos, como que
paralisada.
- Está vendo? E muito simples. E só você ir arranjando sempre mais
coisas, e assim nunca icará entediada. Mas talvez você pense que um
dia Bibigirl, a boneca perfeita, terá tudo, e entã o virá o té dio. Nã o,
menina, nã o se preocupe. Veja só , temos um companheiro perfeito para
Bibigirl.
Dizendo isso, ele tirou um boneco do porta-malas. Era do mesmo
tamanho cie Bibigirl, perfeito como ela, e tinha a aparê ncia de um
rapaz. O homem cinzento colocou-o ao lado de Bibigirl, a boneca
perfeita, e explicou:
p p
- Este é Bubiboy. També m para ele existe uma quantidade enorme cie
coisas. E, quando tudo isso també m icar sem graça, temos uma amiga
para Bibigirl, com roupas que só servem para ela. E Bubiboy també m
tem um amigo, e esse amigo tem outros amigos. Como você vê , nã o
haverá mais lugar para té dio, pois isso tudo poderá
continuar inde inidamente e sempre restará alguma coisa para ser
desejada.
Enquanto falava, ele ia tirando uma boneca atrá s da outra do porta-
malas, parecia inesgotá vel, colocando-as em torno de Momo. A menina
continuava sentada, sem se mexer, olhando para ele com uma expressã o
quase de pavor.
- Entã o? - indagou o homem, soltando baforadas do charuto. -
Entendeu agora como é que se brinca com essas bonecas?
- Entendi - retrucou Momo, que estava tremendo de frio.
O homem cinzento acenou, satisfeito, e soltou outra baforada.
- Naturalmente, você gostaria de icar com todas essas coisas lindas,
nã o é ?
Pois bem, vou lhe dar isso tudo de presente! Nã o tudo de uma vez, é
claro, mas aos poucos... e vou lhe dar muito, muito mais ainda. Você nã o
precisa fazer nada em troca. A ú nica coisa é brincar do jeito que eu
ensinei. Que tal?
O homem cinzento sorria para Momo, esperando a resposta. A
menina continuava em silê ncio, encarando-o muito sé ria. Entã o ele
acrescentou, depressa:
- Agora você nã o precisa mais dos seus amigos, entende? Já que
todas essas coisas lindas sã o suas, e você ainda vai ganhar mais, vai ter
muito com o que se divertir, nã o é ? E é isso que você quer, nã o é ? Você
quer mesmo essa boneca maravilhosa, nã o é verdade?
Momo sentia vagamente que tinha uma luta pela frente, ou melhor,
que já estava em pleno campo de batalha. Mas nã o sabia por que e
contra quem se travava essa batalha. Quanto mais ouvia o visitante,
mais ia tendo a mesma sensaçã o que tivera antes, com a boneca: ouvia
uma voz, ouvia as palavras, mas nã o ouvia a pessoa que estava falando.
Sacudiu a cabeça, recusando.
- O quê ? - disse o homem cinzento, erguendo as sobrancelhas. -
Ainda nã o está satisfeita? Você s, crianças de hoje. sã o mesmo difı́ceis...
Quer fazer o favor de me dizer o que ainda está faltando nesta boneca
perfeita?
Momo olhou para o chã o, re letindo. Depois disse baixinho:
- Acho que nã o dá para ter amor por ela.
O homem icou algum tempo sem responder. Fitava o espaço como se
seus olhos fossem de vidro, como os da boneca. Por im, ele se
recompô s.
- Isso nã o tem importâ ncia - disse, num tom gelado.
Momo encarou-o de frente. O homem a assustava, principalmente
por causa do frio que brotava de seus olhos. Entretanto, també m sentia
pena dele, embora nã o soubesse explicar por que.
- Mas eu tenho amor pelos meus amigos - ela retrucou.
O homem cinzento contraiu o rosto, como se tivesse um acesso de
dor de dente.
Mas logo se controlou e deu um sorriso mordaz.
- Menina - disse ele, com voz mansa -, acho que precisamos ter uma
conversa sé ria, para você aprender como sã o as coisas.
Tirou do bolso um caderninho cinzento e foi virando as pá ginas, até
encontrar o que procurava.
- Seu nome é Momo, nã o é ?
Momo con irmou, balançando a cabeça.
O homem fechou o caderninho com um estalo, voltou a guardá -lo e
foi se abaixando, com certa di iculdade, até se .sentar no chã o, ao lado
cie Momo.
Ficou algum tempo sem dizer nada, só soltando baforadas do
charuto, com ar pensativo.
- Vamos lá , ouça com atençã o - começou ele, inalmente. Era isso que
Momo estava tentando fazer, o tempo todo.
Mas aquele homem era muito mais difı́cil de ouvir do que as pessoas
que ela ouvira até entã o. Em geral, ela tinha a impressã o de conseguir
penetrar e compreender o que as pessoas pensavam e como realmente
eram. Mas com aquele visitante simplesmente nã o clava. Sempre que
q p p q
tentava, Momo tinha a impressã o de entrar no escuro e no vazio, como
se dentro dele nã o houvesse ningué m. Aquilo nunca acontecera com
ela.
- A ú nica coisa que importa na vida é o sucesso - continuou o homem
-, é ser algué m, é ter posses. Para quem tem sucesso, para quem
consegue ser e ter mais do que os outros, o resto vem
automaticamente: amizade, amor, honra e assim por diante. Ora, você
me diz que tem amor pelos seus amigos. Vamos examinar as coisas
objetivamente.
O homem cinzento soprou no ar algumas argolas de fumaça. Momo
en iou os pé s por baixo da saia, agasalhando-se o melhor possı́vel
dentro do paletó .
- A primeira questã o que surge - ele continuou - é a seguinte: o que
seus amigos ganham, na verdade, pelo fato de você gostar deles? Você é
ú til a eles? Nã o.
Você os ajuda a ter sucesso, a ganhar mais dinheiro ou a subir na
vida? Claro que nã o. Você os auxilia em seus esforços para poupar
tempo? Pelo contrá rio.
Você os prejudica em tudo, você é como uma pedra amarrada nos pé s
deles, você impede sua prosperidade! Talvez até agora nã o tenha
percebido isso, Momo, mas você prejudica seus amigos pelo simples
fato de existir. Na verdade, sem querer é inimiga deles. E isso que você
chama ter amor por algué m?
Momo nã o sabia o que responder. Nunca tinha enxergado as coisas
sob aquele aspecto. Teve até um momento de incerteza: talvez o homem
cinzento tivesse razã o.
- Por isso - continuou o homem cinzento - precisamos proteger seus
amigos contra você . E, se gostar realmente deles, você vai nos ajudar.
Queremos que eles tenham sucesso. Somos os verdadeiros amigos
deles. Nã o podemos icar quietos, olhando, enquanto você os afasta de
tudo aquilo que importa. Queremos cuidar para que você os deixe
sossegados. Por isso estamos lhe dando de presente todas essas coisas
lindas.
- Quem é nó s? - perguntou Momo, com os lá bios trê mulos.
- Nó s, da Caixa Econô mica de Tempo. Sou o agente BLW/553/c.
Pessoalmente, só quero o seu bem, pois a Caixa Econô mica de Tempo
nã o brinca em serviço.
Nesse momento, Momo lembrou-se do que Beppo e Gigi tinham dito
sobre economia de tempo e contá gio. De repente percebeu, apavorada,
que aquele homem cinzento tinha alguma coisa a ver com isso. Desejou
ardentemente que seus dois amigos estivessem ali, a seu lado. Nunca se
sentira tã o sozinha. Apesar disso, resolveu nã o se deixar amedrontar.
Juntou toda a sua força e a sua coragem e mergulhou de cabeça na
escuridã o e no vazio por trá s dos quais o homem cinzento se escondia.
O homem observava Momo com o rabo dos olhos. Nã o lhe passou
despercebida a mudança de expressã o da menina. Sorriu ironicamente,
acendendo um novo charuto no toco do outro.
- Nã o se dê ao trabalho - disse ele -, você nã o vai conseguir resistir
contra nó s.
Momo nã o recuou.
- Entã o ningué m gosta de você ? - ela sussurrou.
O homem cinzento se encolheu e, de repente, pareceu retrair-se em
si mesmo. Com uma voz cinzenta, ele respondeu:
- Devo dizer que nunca encontrei ningué m como você , nunca mesmo.
E olhe que eu conheço muita gente. Se houvesse mais pessoas da sua
espé cie, logo serı́amos obrigados a fechar a Caixa Econô mica de Tempo
e a nos dissolver no vazio, pois do que irı́amos viver?
O agente se interrompeu. Fitava Momo e parecia estar lutando contra
alguma coisa que nã o podia entender e com a qual nã o sabia lidar. Seu
rosto tornou-se ainda mais cinzento.
Quando recomeçou a falar, foi como se o izesse contra a sua vontade,
como se as palavras saı́ssem sozinhas, sem que ele tivesse força para
impedir. Seu rosto se contorcia, cada vez mais, de horror por aquilo que
lhe estava acontecendo.
Entã o, inalmente, Momo pô de ouvir sua voz verdadeira.
- Precisamos continuar incó gnitos - ela ouviu, como se a voz viesse
de muito longe. - Ningué m pode saber que existimos, ningué m pode
descobrir o que estamos fazendo... Tomamos o cuidado de fazer com
que ningué m nunca se lembre de nó s... pois só poderemos prosseguir
nosso negó cio enquanto permanecermos desconhecidos.
E um negó cio difı́cil esse de extrair horas, minutos e segundos do
tempo da vida das pessoas... pois todo o tempo que poupam está
perdido para elas. Nó s usurpamos esse tempo... o armazenamos...
precisamos dele... temos fome dele.
Você s nã o sabem o que é seu tempo! Mas nó s sabemos e sugamos
você s até os ossos... e precisamos de mais... cada vez mais... porque
somos cada vez mais numerosos... cada vez mais... e mais...
O homem cinzento soltou essas ú ltimas palavras quase como um
estertor. Mas depois segurou a pró pria boca com as duas mã os. Seus
olhos saltavam das ó rbitas, ixos em Momo.
Apó s um momento, pareceu emergir de uma espé cie de transe.
- O que... aconteceu? - ele gaguejou. - Você icou me escutando! Estou
doente! Você me fez icar doente! Você !
Depois mudou para um tom suplicante:
- Eu disse uma porçã o de tolices, minha menina. Esqueça! Você
precisa se esquecer de mim, assim como todos os outros se esquecem
de nó s. Precisa! Precisa!
Ele agarrou Momo e começou a sacudi-la. A menina movia os lá bios
mas nã o conseguia dizer nada.
De repente, o homem cinzento se levantou de um salto, olhou para
trá s como se estivesse sendo perseguido, pegou sua pasta cinza-
chumbo e correu para o carro.
Aconteceu entã o algo muito estranho. Como uma explosã o ao
contrá rio, todas as bonecas e seus pertences, que estavam espalhados
por ali, voaram para dentro do porta-malas, que se fechou com um
estrondo. O carro partiu à toda, espirrando pedreguIhos para os lados.
Momo continuou sentada no mesmo lugar durante muito tempo,
tentando compreender o que acabara de ouvir. Pouco a pouco, foi
passando aquele frio horrı́vel nas juntas e tudo foi se tornando mais
claro. Ela nã o se esqueceu de nada, porque ouvira a voz de verdade de
um homem cinzento.
Uma leve espiral de fumaça subia da grama ressecada, a seus pé s. O
toco do charuto do visitante, que icara caı́do ali, foi se apagando e
virando cinza.
Capítulo Oito
MUITOS SONHOS E ALGUMAS IDEIAS

No o im da tarde, chegaram Gigi e Beppo. Encontraram Momo sentada


à sombra do muro, ainda meio pá lida e a lita. Sentaram-se entã o junto
dela e, preocupados, perguntaram o que ela tinha.
Momo, hesitante, começou a contar o que havia acontecido. Acabou
repetindo palavra por palavra toda a conversa com o homem cinzento.
Enquanto ouvia, o velho Beppo observava Momo, com ar muito sé rio
e perscrutador.
As rugas na sua testa se aprofundaram. Ficou calado, mesmo depois
que Momo terminou seu relato.
Gigi, ao contrá rio, ia se agitando à medida que escutava. Seus olhos
começaram a brilhar, como acontecia quando se entusiasmava com uma
de suas histó rias.
- Agora, Momo - disse ele, pondo a mã o no ombro da menina -,
chegou a nossa hora! Você descobriu uma coisa que ningué m sabia
direito o que era. Vamos poder salvar nã o só os nossos velhos amigos,
mas a cidade inteira! Só nó s trê s, eu, Beppo, e você .
Dizendo isso, ele se ergueu de um pulo e estendeu os braços. Estava
imaginando uma imensa multidã o à sua frente, aclamando-o como
libertador.
- Otimo - respondeu Momo, meio desnorteada -, mas como vamos
fazer isso?
- Como assim? - perguntou Gigi, meio irritado.
- Quero saber como vamos fazer para derrotar os homens cinzentos -
esclareceu Momo.
- Pois é - retrucou Gigi -, por enquanto é claro que també m nã o sei
exatamente.
Vamos ter que re letir. Mas uma coisa é evidente: agora que sabemos
que eles existem e como agem, precisamos combatê -los. A nã o ser que
você tenha medo!
Momo balançou a cabeça, timidamente:
- Acho que eles nã o sã o pessoas como as outras. O homem que esteve
comigo parecia meio diferente. E o frio é terrı́vel. Se eles sã o muitos,
devem ser mesmo perigosos. Tenho medo, sim.
- Ora, bobagem! - gritou Gigi, entusiasmado. - A coisa é muito
simples. Esses homens cinzentos só poderã o levar adiante seus
negó cios sinistros enquanto permanecerem incó gnitos. Foi seu
visitante mesmo quem admitiu isso. Entã o! E só fazermos com que eles
sejam reconhecidos. Quem os icar conhecendo irá guardá -los na
lembrança, e quem se lembrar deles irá reconhecê -los imediatamente.
Assim nã o poderã o nos fazer mal algum. Seremos inatingı́veis.
- Você acha? - perguntou Momo, meio descon iada.
- Sem a menor dú vida! - prosseguiu Gigi, com os olhos brilhando. - Se
nã o fosse assim, seu visitante nã o teria dado o fora tã o depressa. Eles
tremem só de pensar em nó s.
- Mas entã o - disse Momo - pode ser que a gente nã o consiga
encontrá -los. Talvez se escondam de nó s.
- Pode ser, mesmo, que isso aconteça - concordou Gigi. - Nesse caso,
vamos ter que os atrair para fora do seu esconderijo.
- De que jeito? - perguntou Momo. - Acho que sã o muito espertos...
- Nada mais simples! - exclamou Gigi, dando risada. - Vamos pegá -los
com sua pró pria isca. Camundongo se apanha com toucinho, ladrã o de
tempo se apanha com tempo. E isso nó s temos de sobra. Por exemplo,
você poderia icar sentada aqui, como isca para atraı́-los, e entã o Beppo
e eu saltarı́amos de nosso esconderijo e agarrarı́amos os tais homens.
- Mas eles já me conhecem - contestou Momo. - Acho que nã o vã o
cair nessa.
- Certo - continuou Gigi, com as ideias se atropelando em sua cabeça.
- Entã o vamos fazer outra coisa. O homem cinzento falou numa Caixa
Econô mica de Tempo.
Deve ser um pré dio e, decerto, ica na cidade. E só a gente encontrá -
lo. E nã o vai ser difı́cil, pois com certeza deve ser um pré dio bem
caracterı́stico: cinzento, frio, sem janelas, um imenso cofre de concreto!
Já estou até imaginando. Quando o encontrarmos, vamos entrar, cada
um com dois revó lveres nas mã os. E eu digo: "Entreguem
imediatamente todo o tempo roubado!"
- Mas nó s nã o temos revó lveres... - interrompeu Momo, a lita.
- Entã o vamos sem revó lveres - respondeu Gigi, entusiasmado. - Eles
vã o icar ainda mais assustados. Nossa apariçã o já vai ser su iciente
para deixá -los em pâ nico...
- Talvez fosse bom se fô ssemos em maior nú mero - disse Momo -, e
nã o só nó s trê s. Acho que encontrarı́amos mais depressa a Caixa
Econô mica de Tempo se mais gente ajudasse a procurar.
- Otima ideia! - respondeu Gigi. - Vamos mobilizar todos os nossos
velhos amigos. E també m as crianças que costumam vir aqui. Acho que
nó s trê s devemos partir imediatamente, cada um informando o maior
nú mero possı́vel de pessoas. E todas essas pessoas deverã o passar a
notı́cia adiante. Vamos todos nos encontrar aqui amanhã , à s seis horas
da tarde, em assemblé ia geral.
Partiram imediatamente. Momo numa direçã o, Beppo e Gigi em
outra.
Depois que os dois homens caminharam um pouco, Beppo, que até
entã o tinha icado calado, parou de repente.
- Escute, Gigi - disse ele. - Estou preocupado.
- Por quê ?
Beppo itou o amigo por alguns momentos e disse:
- Eu acredito em Momo.
- E daı́? - indagou Gigi, surpreso.
- Quer dizer - continuou Beppo -, acredito que é verdade o que Momo
nos contou.
- Certo, e dal? - voltou a perguntar Gigi, sem entender o que Beppo
estava querendo.
- Sabe - explicou Beppo -, se o que Momo contou é verdade mesmo,
precisamos pensar muito bem no que vamos fazer. Se estamos
realmente lidando com um bando de criminosos, nã o podemos
enfrentá -los assim, sem mais nem menos. Se simplesmente os
desa iarmos, Momo poderá icar numa situaçã o difı́cil. Nã o estou
preocupado com você , nem comigo, mas, se envolvermos crianças no
caso, elas estarã o correndo perigo. Precisamos re letir muito bem antes
de agir.
- Ora, que bobagem! - exclamou Gigi, rindo. - Você está sempre
preocupado com alguma coisa. E claro que, quanto mais gente tivermos
conosco, melhor.
- Acho que você nã o está acreditando que é verdade o que Momo
contou - retrucou Beppo, muito sé rio.
- Depende do que você entende por verdade - respondeu Gigi. - Você
nã o tem imaginaçã o, Beppo. O mundo todo é apenas uma grande
histó ria, e todos nó s participamos dela. Seja como for, acredito em tudo
o que Momo nos contou, tanto quanto você .
Beppo nã o tinha o que responder, mas as palavras de Gigi nã o
afastaram seus receios. Os dois se separaram, saindo um para cada lado
para avisar todos os amigos e todas as crianças sobre a reuniã o do dia
seguinte. Gigi ia, de coraçã o leve, Beppo de coraçã o pesado.
Naquela noite, Gigi sonhou com sua futura fama de libertador da
cidade. Viu a si mesmo de fraque, Beppo de casaca e Momo com um
vestido de seda branca. Os trê s receberam medalhas de ouro e coroas
de louro de uma comissã o de cidadã os. Soou uma mú sica triunfal e a
cidade organizou, em homenagem aos seus salvadores, um longo
cortejo à luz de tochas, mais magnı́ ico do que jamais se tinha visto.
Enquanto isso, o velho Beppo estava deitado na cama sem conseguir
dormir. Quanto mais re letia sobre o assunto, mais claro lhe parecia o
perigo. Naturalmente nã o podia deixar Momo e Gigi se arriscarem
sozinhos. Estaria junto com eles para o que desse e viesse. Mas
precisava pelo menos tentar detê -los.
No dia seguinte, à s seis horas da tarde, nas ruı́nas do antigo
an iteatro ressoavam gritos entusiasmados e o burburinho de muitas
vozes. Infelizmente, os amigos adultos de Momo nã o tinham
comparecido (com exceçã o de Gigi e Beppo, é claro), mas ali estavam
cinquenta ou sessenta crianças, vindas de perto e de longe, ricas e
pobres, bem-comportadas e travessas, grandes e pequenas. Algumas,
como Maria, traziam pela mã o, ou no colo, um irmã o ou uma irmã zinha,
que de olhos arregalados e dedo na boca observava aquela reuniã o
extraordiná ria.
Naturalmente Franco, Paulo e Má ssimo estavam lá , e as outras
crianças eram quase todas as que tinham começado a frequentar o
an iteatro nos ú ltimos tempos.
Estavam especialmente interessadas no assunto em discussã o. O
menino do rá dio també m apareceu, mas desta vez sem o rá dio. Sentou-
se ao lado de Momo e logo foi dizendo que se chamava Clá udio e que
estava muito feliz por participar da reuniã o.
Quando icou claro que nã o chegaria mais ningué m, Gigi Guia
levantou-se e, com gestos largos, pediu silê ncio. As vozes e gritos
cessaram, e no an iteatro de pedra fez-se um silê ncio cheio de
expectativa
- Amigos - começou Gigi, em voz alta -, você s todos sabem mais ou
menos do que se trata. Já foram informados ao serem convidados para a
nossa assemblé ia secreta. O que acontece é que cada vez mais pessoas
tê m tido menos tempo, apesar de tentarem economizar tempo de todas
as maneiras possı́veis Mas, vejam, justamente esse tempo poupado
acaba, sendo perdido. Por quê ' Pois foi isso que Momo descobriu Esse
tempo tem sido literalmente roubado por um bando de ladrõ es de
tempo. Precisamos da ajuda de você s para acabar com essa organizaçã o
gé lida de criminosos. Se todos estiverem dispostos a colaborar,
poderemos acabar de uma vez com esse fantasma que se abateu sobre
todo o mundo. Você s nã o acham que vale a pena lutar por essa causa?
Ele fez uma pausa e as crianças bateram palmas.
- Mais adiante - continuou Gigi -, discutiremos o que pretendemos
fazer.
Primeiro, poré m, Momo vai contar o encontro que teve com um
desses bandidos e como ele pró prio se desmascarou.
- Um momento - disse o velho Beppo, levantando-se. Ouçam,
crianças! Sou contra Momo falar. Nã o vai dar. Se ela falar, estará
correndo um grande perigo, assim como todas você s...
- Nada disso! - gritaram as crianças. - Momo deve falar!
Outras vozes se ergueram e, por im, todos bradavam em coro:
- Momo! Momo! Momo!
O velho Beppo sentou-se, tirou os ó culos e esfregou os olhos.
Momo levantou-se, atordoada. Nã o sabia muito bem se atendia ao
desejo de Beppo ou ao das crianças. Finalmente, começou seu relato. As
crianças ouviam, encantadas. Quando terminou, seguiu-se um longo
silê ncio.
Enquanto Momo falava, muitas começaram a sentir um estranho
mal-estar. Nã o imaginavam que aqueles ladrõ es de tempo fossem tã o
maus. Um dos irmã ozinhos começou a chorar alto e logo foi consolado.
- Bem - disse Gigi, rompendo o silê ncio -, quem se arrisca a se unir a
nó s na luta contra os homens cinzentos?
- Por que Beppo nã o queria que Momo contasse o que aconteceu com
ela? - perguntou Franco.
Gigi sorriu, respondendo com segurança:
- Beppo acha que os homens cinzentos considerarã o seus inimigos
todos aqueles que descobrirem seu segredo e passarã o a persegui-los.
Mas estou convencido do contrá rio. Acho que quem conhece seu
segredo está imunizado e nã o poderá mais ser dominado por eles. Nã o
é ó bvio? Ora, Beppo, admita!
Mas Beppo só balançou a cabeça, muito devagar. As crianças icaram
em silê ncio.
Gigi tomou de novo a palavra:
- De qualquer modo, o certo é que temos de permanecer unidos,
aconteça o que acontecer. Temos que ter cuidado, mas nã o podemos
nos deixar amedrontar. Entã o, volto a perguntar: quem de você s quer se
juntar a nó s?
- Eu! - disse Clá udio, levantando-se, um pouco pá lido. Outros
seguiram seu exemplo, meio hesitantes a princı́pio, depois com
entusiasmo cada vez maior.
A inal, todos os presentes aderiram.
- Entã o, Beppo - perguntou Gigi, apontando para as crianças -, o que
você tem a dizer?
- Tudo bem - respondeu Beppo, balançando tristemente a cabeça. - E
claro que estarei junto com você s!
- Certo! - e Gigi voltou-se de novo para as crianças. - Entã o agora
vamos discutir nosso plano de açã o. Quem tem alguma sugestã o?
Todos puseram-se a re letir, e inalmente Paulo, o menino de ó culos,
falou:
- Como é que eles fazem? Quer dizer, como é que dá para roubar o
tempo? Como é possı́vel?
- E isso aı́! - gritou Clá udio. - A inal, o que é o tempo? Ningué m soube
responder.
Do outro lado do an iteatro, Maria se levantou, carregando a
irmã zinha no colo, e disse:
- Será que o tempo é alguma coisa como os á tomos? Eles podem
registrar até as ideias, que só estã o na cabeça das pessoas. Vi isso na
televisã o. Hoje existem especialistas em tudo.
- Tenho uma ideia - gritou Má ssimo, o menino gordo de voz
estridente. - Quando se faz uma ilmagem, tudo ica registrado no ilme.
E quando se faz uma gravaçã o de som, tudo ica registrado na ita.
Talvez exista um aparelho para registrar o tempo. Se descobrirmos
onde ele está , é só fazermos a ita voltar para trá s e teremos o tempo de
volta!
- De qualquer modo - disse Paulo, ajeitando os ó culos em cima do
nariz -, antes de mais nada temos que procurar um cientista para nos
ajudar,, Caso contrá rio nã o vamos conseguir nada.
- Você e seus cientistas! - exclamou Franco. - Nã o daria para con iar!
Suponhamos que a gente ache um cientista que conheça tudo sobre o
assunto. Como vamos saber se ele nã o está a serviço dos ladrõ es de
tempo? Aı́ sim icarı́amos numa enrascada!
A objeçã o pareceu vá lida,
Nisso uma menina, visivelmente bem-educada, levantou-se e falou:
- Acho que o melhor é ir à polı́cia e contar tudo!
- Só faltava essa! O que a polı́cia vai poder fazer? - protestou Franco. -
Nã o se trata de ladrõ es comuns. Ou a polı́cia já os conhece há muito
tempo e nã o consegue fazer nada, ou ela nã o sabe de nada, e portanto é
incompetente. E isso que eu acho!
Seguiu-se um silê ncio de impotê ncia.
- Mas temos cie fazer alguma coisa! - disse Paulo, a inal -. E tem que
ser o mais depressa possı́vel, antes que os ladrõ es, iquem sabendo dos
nossos planos.
Novamente, Gigi levantou-se e começou a falar:
- Meus queridos amigos, já examinei a questã o a fundo. Já formulei
centenas de planos e deixei todos de lado, até encontrar um capaz de
atingir o nosso alvo.
Se todos ajudarem, é claro! Eu só quis saber se algum de você s teria
alguma ideia melhor. Pois bem, agora vou dizer o que vamos fazer.
Ele se calou por um momento e seu olhar percorreu demoradamente
toda a volta do an iteatro. Mais de cinquenta rostos de criança o
itavam. Havia muito tempo nã o contava com uma assistê ncia tã o
numerosa.
- Como você s sabem - continuou -, a força dos homens cinzentos está
no fato cie poderem agir em segredo, sem serem reconhecidos.
Portanto, o meio mais simples e e icaz para torná -los inofensivos é cada
um conhecer a verdade a respeito deles.
Como conseguir isso? Faremos uma imensa manifestaçã o pú blica de
crianças. Vamos pintar faixas e cartazes e des ilar pelas ruas. Vamos
chamar a atençã o da opiniã o pú blica. Entã o convidaremos toda a cidade
para vir a este an iteatro para explicarmos tudo. Isso provocará uma
grande agitaçã o. Milhares de pessoas virã o até aqui e, quando a imensa
multidã o estiver reunida, revelaremos o terrı́vel segredo. Entã o, no
mesmo instante, o mundo se transformará ! Nã o será mais possı́vel
roubar o tempo de ningué m. Cada um terá o tempo que quiser, pois
novamente haverá tempo su iciente para todos. Seremos capazes disso,
meus amigos, se trabalharmos unidos. Basta querer! Será que nó s
queremos?
A resposta foi uma enorme aclamaçã o de jú bilo.
- Concluindo - terminou Gigi -, declaro que resolvemos por
unanimidade convidar a cidade inteira para vir ao velho an iteatro no
pró ximo domingo à tarde. Até lá , temos de conservar o mais absoluto
segredo quanto ao nosso plano. Entendido?
Agora, meus amigos, mã os à obra!
Naquele dia e nos dias que se seguiram, uma atividade secreta, mas
febril, tomou conta das ruı́nas. Surgiram potes de tinta, pincé is, papel,
papelã o, cola e todos os outros materiais necessá rios. (E melhor nã o
perguntar como e de onde surgiu tudo aquilo.)
Enquanto algumas crianças montavam cartazes e faixas, outras, que
tinham boa letra, imaginavam e escreviam frases que chamassem a
atençã o, como por exemplo:
POR QUE?
VOCES NAO TEM MAIS TEMPO?
NOS, AS CRIANCAS, LHES DIREMOS!
Todos os cartazes anunciavam a hora e o lugar do encontro.
Finalmente, quando tudo icou pronto, as crianças se colocaram a
postos no an iteatro, tendo à frente Gigi, Beppo e Momo. Entã o, numa
longa ila, dirigiram-se para a cidade, empunhando os cartazes e as
faixas. Ao mesmo tempo, iam fazendo um barulhã o com apitos e tampas
de panelas, gritavam as frases e entoavam uma cançã o especialmente
composta por Gigi para a oportunidade:
"Ouçam todos com atençã o,
está na hora de acordar.
Por aı́ tem muito ladrã o
que seu tempo quer roubar.
Ouçam todos com atençã o,
domingo à s seis da tarde compareçam à nossa reuniã o
pois vamos contar a verdade."
A cançã o tinha muito mais estrofes, vinte e oito ao todo, mas nã o é
preciso apresentar todas aqui.
A polı́cia interferiu algumas vezes, para dispersar os manifestantes
quando a passeata interrompia o trâ nsito. Mas as crianças nã o se
deixavam desanimar.
Voltavam a se reunir em outro lugar e começavam tudo de novo. Fora
isso, nada aconteceu com elas e, apesar de se manterem vigilantes, nã o
conseguiram descobrir nenhum homem cinzento.
Outras crianças, que até entã o nã o sabiam de nada, foram se
juntando à manifestaçã o, e no im elas já eram muitas centenas ou até
milhares. Por todos os lados da cidade havia crianças des ilando pelas
ruas, em longas procissõ es, convidando os adultos para a importante
assemblé ia que iria mudar o mundo.
Capítulo Nove
UMA REUNIÃO BOA QUE NÃO SE REALIZA, UMA REUNIÃO MÁ QUE
SE REALIZA

A grande hora passou.


Passou e nenhum convidado apareceu. Justo os adultos, os maiores
interessados no assunto, nem tinham notado a passeata as crianças.
Portanto, tudo tinha sido em vã o.
O sol, vermelho e resplandecente, num mar de nuvens arroxeadas, já
estava se pondo. Seus raios, agora, apenas roçavam os ú ltimos degraus
do an iteatro, nos quais, durante horas, centenas cie crianças estiveram
sentadas, esperando. Nã o se ouvia mais nenhum ruı́do cie vozes,
nenhum burburinho alegre. Todos estavam tristes e silenciosos.
As sombras alongavam-se rapidamente, logo escureceria. As crianças
começavam a tiritar, pois o tempo esfriara. O reló gio cie uma igreja
distante bateu oito vezes.
Nã o havia mais nenhuma dú vida de que tudo fracassara.
As primeiras crianças começaram a se levantar e ir embora em
silê ncio, e logo foram seguidas por outras. Ningué m dizia uma palavra.
A decepçã o era grande demais.
A inal, Paulo chegou perto de Momo e disse:
- Nã o adianta esperar mais, Momo. Nã o vem ningué m mesmo! Boa
noite.
E ele foi embora.
Depois Franco se aproximou e disse:
- Nã o podemos fazer nada! Já deu para ver que nã o se pode contar
com os adultos.
Aliá s, eu já nã o con iava muito neles, e agora, entã o, nã o quero mais
saber de gente grande.
També m ele foi embora, e outros o seguiram. Por im, quando
escureceu totalmente, as ú ltimas crianças perderam as esperanças e se
foram.
Momo icou só com Beppo e Gigi. Apó s alguns instantes, o velho
varredor de rua levantou-se.
- Você també m já vai? - perguntou Momo.
- Preciso ir - respondeu Beppo -, tenho que fazer hora extra.
- Mas à noite?
- E! Puseram a gente para descarregar lixo no depó sito. Preciso ir
para lá .
- Mas hoje é domingo! E você nunca teve de fazer isso antes.
- Pois é , mas disseram que é só excepcionalmente, pois senã o nã o
iam conseguir terminar o serviço. Falta de pessoal, essas coisas.
- Que pena! - suspirou Momo. - Gostaria que você icasse aqui hoje!
- També m nã o estou gostando de ter que ir embora - disse Beppo. -
Entã o, boa noite e até amanhã !
Ele montou na sua velha bicicleta e sumiu na escuridã o.
Gigi assobiava para si mesmo uma mú sica melancó lica. Sabia
assobiar muito bem e Momo o ouvia. De repente, ele interrompeu a
melodia.
- També m vou embora - ele disse. - Hoje é domingo e preciso bancar
o guarda-noturno. Até me esqueci de contar que essa é minha nova
funçã o.
Momo olhou para ele, espantada, e nã o disse nada.
- Nã o ique triste porque nosso plano nã o deu certo continuou Gigi. -
Eu també m imaginava um resultado muito diferente! Mas nã o importa,
mesmo assim foi divertido! Foi fantá stico!
Momo continuava em silê ncio. Gigi acariciou-lhe os cabelos, tentando
consolá -la:
- Nã o leve tã o a sé rio, Momo! Amanhã tudo vai parecer diferente!
Vamos pensar em alguma outra coisa... numa nova histó ria, está bem?
- Mas nã o era uma histó ria - respondeu Momo, baixinho. Gigi pô s-se
de pé :
- Claro, eu sei, mas falaremos disso amanhã , está bem? Agora preciso
ir embora, já estou atrasado. E você precisa ir dormir.
E ele se foi, assobiando sua melodia melancó lica.
Momo icou sozinha, sentada no grande an iteatro de pedra. A noite
nã o tinha estrelas e o cé u estava carregado de nuvens. Começou um
vento estranho. Nã o era forte, mas soprava constantemente, trazendo
um frio estranho. Era, por assim dizer, um vento cinzento.
Fora da grande cidade, bem longe, erguiam-se imensos montõ es de
lixo. Eram verdadeiras montanhas de cinzas, cacos de vidro, latas,
colchõ es velhos, restos de plá stico, caixas de papelã o e outros tipos de
entulho, que todos os dias se jogavam fora na grande cidade e lá
icavam esperando para serem queimados em imensos incineradores.
Até tarde da noite, o velho Beppo, junto com seus colegas de
trabalho, ajudou a tirar o lixo dos caminhõ es, que esperavam em ila,
com os faró is acesos, para serem descarregados. A medida que iam
sendo, esvaziados, mais caminhõ es iam se colocando no im da ila.
- Depressa, pessoal! - era o grito que se ouvia sem cessar.
- Vamos, vamos, senã o nunca vamos acabar com isso!
Beppo nã o largou a pá um só instante, até icar com a camisa
grudada no corpo.
Finalmente, lá pela meia-noite, o serviço terminou.
Alé m de velho, Beppo nã o era de constituiçã o muito forte. Exausto,
sentou-se num balde de plá stico virado, procurando recuperar o fô lego.
- Ei, Beppo! - gritou um colega seu. - Vamos para casa! Você nã o vem?
- Daqui a pouco - respondeu Beppo, pondo a mã o no coraçã o, que
estava doendo.
- Está se sentindo mal, velho? - perguntou um outro.
- Está tudo bem - disse Beppo. - Podem ir! Só vou descansar aqui
mais um instante.
- Entã o boa noite! - gritaram os homens, e foram embora. Estava tudo
quieto. Só os ratos remexiam o lixo, guinchando de vez em quando. Com
a cabeça apoiada nos braços, Beppo adormeceu.
De repente foi acordado por uma rajada de vento frio. Nã o sabia
quanto tempo tinha dormido. Olhou à sua volta e imediatamente
sentiu-se totalmente desperto.
Sobre toda a montanha de lixo, havia homens cinzentos, com ternos
elegantes, chapé us-coco na cabeça, pastas cinza-chumbo nas mã os e
pequenos charutos cinzentos entre os lá bios. Estavam todos calados,
com o olhar ixo no cume do monte, onde havia uma espé cie de mesa de
tribunal, à qual estavam sentados trê s homens, aliá s, exatamente iguais
a todos os outros.
No primeiro momento, Beppo teve medo. Temia ser descoberto e
sabia, sem sombra de dú vida, que nã o devia estar ali. Logo, poré m,
observou que os homens estavam com os olhos como que amarrados à
mesa do tribunal. Talvez nem estivessem vendo Beppo, ou poderiam até
estar pensando que ele fosse algum objeto jogado no lixo.
Resolveu icar ali mesmo, absolutamente quieto.
A voz do homem que estava sentado no meio, lá no alto, quebrou o
silê ncio:
- Que o agente BLW/553/c se apresente diante da Suprema Corte.
A ordem foi sendo passada para baixo, repetidamente, ressoando
como um eco prolongado. Entã o, abriu-se caminho na multidã o e um
homem foi subindo lentamente o montã o de lixo. A ú nica coisa que o
diferenciava dos outros era o fato de que o cinzento de seu rosto era
quase branco.
Finalmente ele se postou diante do tribunal.
- O senhor é o agente BLW/553/c? - perguntou o homem do centro.
- Exatamente.
- Desde quando está trabalhando para a Caixa Econô mica de Tempo?
- Desde a minha origem.
- Isso é ó bvio. Poupe-se dessas observaçõ es desnecessá rias. Quando
o senhor se originou?
- Há onze anos, trê s meses, seis dias, oito horas, trinta e dois minutos
e, neste exato momento, dezoito segundos.
Embora esse diá logo se realizasse em voz muito baixa e bem longe
cie onde ele estava, o velho Beppo nã o perdia uma palavra.
O homem do meio continuou o interrogató rio:
- O senhor está ciente de que crianças desta cidade, em nú mero
considerá vel, des ilaram carregando faixas e cartazes por toda parte, e
até mesmo conceberam o monstruoso plano de convidar a cidade
inteira para uma assemblé ia na qual pretendiam fazer revelaçõ es a
nosso respeito?
- Estou ciente disso - respondeu o agente.
- Como explica que essas crianças saibam da nossa existê ncia e das
nossas atividades? - prosseguiu o juiz, implacá vel.
- Nã o consigo encontrar uma explicaçã o - respondeu o agente - Mas,
se me for permitida uma observaçã o, gostaria de sugerir a esta
Suprema Corte que nã o dê ao episó dio importâ ncia maior do que ele
teve. Uma infantilidade sem consequê ncias, nada mais do que isso!
Alé m disso, peço à Corte que lembre o quanto foi fá cil fazermos a
assemblé ia planejada fracassar, simplesmente nã o dando tempo à s
pessoas para comparecerem. Mesmo que a reuniã o tivesse se realizado,
estou certo de que as crianças nada teriam a revelar alé m de uma
historinha infantil sobre assaltantes. Na minha opiniã o, deverı́amos ter
deixado a assemblé ia se realizar, para que...
- Que o ré u se cale! - interrompeu severamente o homem do tribunal.
- O senhor sabe onde se encontra?
O agente se encolheu um pouco e limitou-se a responder:
- Sim.
- O senhor nã o está diante de uma corte humana - prosseguiu o juiz -,
mas perante seus semelhantes. Sabe perfeitamente que é impossı́vel
nos enganar. Por que tenta fazê -lo?
- E... é um vı́cio pro issional - gaguejou o acusado
- Quanto à maior ou menor importâ ncia que se deve atribuir ao
plano das crianças
- continuou o juiz -, a decisã o cabe à che ia. O ré u sabe muito bem
que nada nem ningué m representa maior perigo para a nossa obra do
que a infâ ncia.
- Sim, eu sei - confessou humildemente o ré u.
- As crianças sã o nossas inimigas naturais - declarou o juiz. - Se nã o
fossem elas, há muito tempo toda a humanidade estaria em nosso
poder. E muito mais difı́cil persuadir crianças do que adultos a
pouparem tempo. Por isso temos uma norma rigorosa: só se envolvem
crianças em ú ltimo caso. Essa norma era do conhecimento do ré u?
- Sim, sem dú vida, senhor - murmurou o acusado, ofegante.
- Nã o obstante, temos prova irrefutá vel de que um de nó s... repito,
um de nó s... nã o só falou com uma criança como nos traiu, contando a
verdade a nosso respeito - a irmou o juiz. - O ré u por acaso sabe quem
de nó s fez isso?
- Fui eu - replicou o agente BLW/553/c, arrasado.
- E por que razã o o senhor transgrediu uma das nossas normas mais
rigorosas? - indagou o juiz
O ré u tentou se defender
- Por sua grande in luê ncia sobre as outras pessoas, a criança em
questã o di icultava nosso trabalho. Assim, agi com a intençã o de servir
aos interesses da Caixa Econô mica de Tempo.
- Suas intençõ es nã o nos interessam - retrucou o juiz, friamente. - Só
levamos em conta as consequê ncias. E, no seu caso, agente BLW/553/c,
elas foram desastrosas: alé m de nã o ganharmos tempo algum, ainda
fomos traı́dos! Alguns de nossos segredos vitais foram revelados a uma
criança. O ré u admite?
- Admito - disse o agente, baixando a cabeça.
- Entã o se confessa culpado?
- Sim, mas peço à Suprema Corte que leve em consideraçã o as
circunstâ ncias atenuantes. Fiquei, na verdade, como que enfeitiçado.
Aquela criança me ouviu de uma tal maneira que conseguiu arrancar
tudo de mim. Nã o consigo explicar como aconteceu, mas juro que foi
assim.
- Suas desculpas nã o nos interessam. Para nó s, circunstâ ncias
atenuantes nã o tê m valor algum. Nossas normas sã o inviolá veis e nã o
fazemos exceçã o. Contudo, passaremos a dar um pouco de atençã o a
essa criança notá vel. Como é seu nome?
- Momo.
- Menino ou menina?
- Menina.
- Residê ncia?
- As ruı́nas de um velho an iteatro.
- Bem - disse o juiz, escrevendo tudo no seu caderninho de
anotaçõ es. - O ré u pode ter certeza de uma coisa: essa criança nã o nos
prejudicará mais.
Utilizaremos todos os recursos. Que isso lhe traga algum consolo,
quando proferirmos a sentença que o espera.
O acusado começou a tremer.
- Qual é a sentença? - murmurou ele.
Os trê s homens do tribunal inclinaram-se um para o outro,
cochicharam alguma coisa, balançaram a cabeça a irmativamente. O do
meio voltou a se dirigir ao acusado, declarando:
- O veredito unâ nime que recai sobre o agente BLW/553/c é o
seguinte: o ré u é considerado culpado por crime de alta traiçã o. Ele
pró prio admitiu sua culpa. A sentença determinada por nossa lei é que
lhe seja imediatamente retirado todo o tempo.
- Piedade! Piedade! - clamou o ré u.
Mas dois homens cinzentos que estavam de pé a seu lado já lhe
arrancavam a pasta cinza-chumbo das mã os e o charuto da boca.
Entã o aconteceu algo extraordiná rio. Assim que lhe tiraram o
charuto, o acusado começou a se tornar cada vez mais transparente.
També m seus gritos foram se enfraquecendo.
Ele icou ali, cobrindo o rosto com as mã os, literalmente se
dissolvendo em nada. Acabou se transformando num punhado de
cinzas redemoinhando ao vento.
Finalmente, també m estas sumiram.
Todos os homens cinzentos, juizes e assistentes, foram se afastando
em silê ncio.
A escuridã o os engoliu e só restou o vento cinzento gemendo sobre o
lú gubre montã o de lixo.
Beppo Varredor permaneceu sentado, imó vel, itando o ponto em
que o agente BLW/553/c havia desaparecido. Tinha a sensaçã o de que
havia se congelado e agora estava degelando aos poucos. Vira com os
pró prios olhos que os homens cinzentos de fato existiam.
Quase na mesma hora, o reló gio da igreja distante bateu meia-noite.
A pequena Momo achava-se ainda nos degraus de pedra do an iteatro.
Estava esperando, mas ela mesma nã o sabia o que. Só tinha a sensaçã o
de que devia esperar. Por isso ainda nã o conseguira se resolver a ir para
a cama.
De repente, sentiu alguma coisa roçar levemente seus pé s descalços.
Estava muito escuro. A menina inclinou-se para a frente e viu uma
grande tartaruga com a cabeça erguida, olhando para ela, com a boca
entreaberta num sorriso. Seus olhinhos pretos e vivos brilhavam
amavelmente, como se estivesse querendo conversar.
Momo se inclinou mais e afagou-a sob o queixo.
- Oi, quem é você ? - ela perguntou, baixinho. - Seja quem for, estou
contente que pelo menos você tenha vindo me visitar, tartaruga! O que
quer de mim?
Momo nã o sabia se nã o havia notado antes ou se só naquele instante
tinham se tornado visı́veis as letras que apareciam nas costas da
tartaruga, ligeiramente luminosas, como se fossem formadas pelo
desenho de sua carapaça.
"VENHA COMIGO", soletrou Momo, devagar.
Espantada, a menina perguntou:
- Isso é para mim?
Mas a tartaruga já saı́ra caminhando. Parou um pouco adiante, virou
a cabeça e voltou a olhar para a menina.
"E para mim, mesmo!", pensou Momo. Entã o ela se levantou e foi
atrá s do misterioso animal.
- Pode ir andando que eu a acompanho! - disse baixinho.
Passo a passo, a menina seguiu a tartaruga, que lentamente, muito
lentamente, conduziu-a para fora do an iteatro de pedra e, depois,
tomou o rumo da grande cidade.
Capítulo Dez
PERSEGUIÇÃO FEROZ E FUGA TRANQUILA

Beppo montou na velha bicicleta e saiu noite afora. Pedalava o mais


depressa que podia. As palavras do juiz cinzento ainda ressoavam em
seus ouvidos: "Passaremos a dar um pouco de atençã o a essa criança
notá vel... o ré u pode ter certeza de uma coisa, essa criança nã o nos
prejudicará mais... utilizaremos todos os recursos..."
Nã o havia dú vida, Momo corria grande perigo. Precisava encontrá -la
imediatamente e preveni-la contra os homens cinzentos, protegê -la,
embora nã o soubesse como.
Contudo, haveria de encontrar um jeito. Beppo pô s mais força no
pedal. Seu cabelo branco esvoaçava ao vento. O an iteatro ainda estava
longe.
As ruı́nas brilhavam à luz dos faró is de uma frota de elegantes carros
cinzentos que as cercavam por todos os lados. Dezenas de homens
cinzentos percorriam de cima a baixo os degraus cobertos de capim,
procurando a criança por todos os cantos. Finalmente, alguns
descobriram no muro o buraco que levava aos aposentos de Momo.
Entraram por ele e olharam embaixo da cama e até dentro do pequeno
fogã o de pedra. Depois saı́ram, sacudindo a poeira dos elegantes ternos
cinzentos.
- O pá ssaro bateu asas! - disse um deles.
- E um absurdo - disse um outro - crianças saı́rem perambulando por
aı́, à noite, em vez de icarem quietinhas na carnal
- Nã o estou gostando nada dessa histó ria - declarou um terceiro. -
Até parece que ela foi avisada a tempo por algué m!
- Impossı́vel! - disse o primeiro. - Para que algué m tivesse dado o
aviso, seria preciso saber das nossas intençõ es antes mesmo de nó s.
Os homens cinzentos se entreolharam alarmados.
- Se algué m de fato a preveniu, nã o deve nem mais estar por perto -
observou, preocupado, o terceiro. - Entã o, continuar procurando aqui
seria perda de tempo.
- Tem alguma sugestã o melhor?
- Acho que devemos informar imediatamente a Central para que ela
nos dê instruçõ es para ampliar as buscas.
- Mas a primeira coisa que a Central vai perguntar é se já
vasculhamos as redondezas. Aliá s, seria uma pergunta razoá vel.
- Muito bem! - declarou o primeiro homem cinzento. Pois vamos,
antes de mais nada, vasculhar as redondezas. Entretanto, se a menina
recebeu ajuda de algué m, estaremos cometendo um grave erro.
- Bobagem! - retrucou outro, zangado. - Nada impede que nesse caso
o alto comando ordene uma operaçã o ampla, com a participaçã o de
todos os agentes disponı́veis. A menina nã o terá a mı́nima chance de
nos escapar. Agora, mã os à obra, cavalheiros. Todos sabem o que está
em jogo!
Naquela noite, muitos moradores da vizinhança nã o entenderam por
que nã o cessava o barulho de carros passando. Mesmo as ruelas mais
estreitas e as ruas mais esburacadas foram tomadas, até a madrugada
cinzenta, por uma movimentaçã o que geralmente só ocorria nas vias
principais Ningué m conseguiu pregar o olho!
Enquanto isso acontecia, a pequena Momo, guiada pela tartaruga,
atravessava a grande cidade, que já nã o dormia mesmo nas horas mais
tardias.
As pessoas se deslocavam incansavelmente, em grandes multidõ es,
acotovelando-se com impaciê ncia, empurrando umas à s outras ou
caminhando em ileiras cerradas e interminá veis. Os carros se
amontoavam nas pistas e entre eles rugiam os ô nibus, invariavelmente
lotados. Anú ncios luminosos brilhavam nas fachadas, projetando sobre
a massa suas luzes coloridas que acendiam e apagavam.
Momo, que nunca tinha visto aquilo, caminhava como num sonho, de
olhos arregalados, sempre atrá s da tartaruga. Atravessaram praças
imensas, ruas muito iluminadas. Carros vinham por trá s delas e as
ultrapassavam, transeuntes as rodeavam, mas ningué m prestava
atençã o à menina e à tartaruga.
Nem uma vez precisaram se desviar de algum pedestre, nã o levaram
encontrõ es, nenhum carro teve de frear por causa delas. Era como se a
tartaruga soubesse de antemã o e com certeza o momento exato em que
nã o passaria nenhum pedestre ou nenhum carro para abalroá -las.
Assim, nunca precisaram correr nem esperar para prosseguirem seu
caminho. Momo estava admirada de como era possı́vel caminharem tã o
devagar e avançarem tã o depressa.
Quando Beppo Varredor inalmente chegou ao an iteatro, antes
mesmo de descer da bicicleta já viu, à luz fraca do farol de sua bicicleta,
as marcas de pneu em volta das ruı́nas. Alarmado, correu para o buraco
no muro.
- Momo! - chamou ele, primeiro em voz baixa e depois mais alta -
Momo! Momo!
Nenhuma resposta.
Beppo engoliu em seco, engasgado. Entrou no quarto de Momo,
escuro como breu, tropeçou e torceu o tornozelo. Com a mã o trê mula,
conseguiu riscar um fó sforo e olhar à sua volta.
A mesinha e as duas cadeiras feitas de caixotes estavam de pernas
para o ar, o colchã o e as cobertas tinham sido revirados. E Momo nã o
estava lá !
Beppo mordeu os lá bios, sufocando um soluço, que por um momento
pareceu que ia lhe arrebentar o peito.
- Meu Deus - murmurou -, meus Deus! Levaram a menina! Já levaram
minha menininha! O que vou fazer agora?
Nesse momento o fó sforo começou a queimar seus dedos e ele o
jogou fora, icando em completa escuridã o.
Voltou a sair pelo buraco do muro, o mais rá pido possı́vel, e foi
pulando com um pé só , por causa do tornozelo machucado, até a
bicicleta. Entã o saiu pedalando.
- Gigi tem que entrar nessa! - foi repetindo para si mesmo. - Gigi tem
que entrar nessa! Tomara que eu consiga encontrar a cabana onde ele
costuma dormir.
Beppo sabia que Gigi ultimamente estava ganhando um dinheiro
extra, passando as noites de domingo numa pequena o icina de
conserto de automó veis, que era també m depó sito de carros velhos. Sua
tarefa era vigiar para que carros ainda em condiçõ es de funcionamento
nã o desaparecessem inesperadamente, como já acontecera mais de
uma vez.
Quando Beppo chegou e bateu na porta com o punho, Gigi manteve-
se primeiro em completo silê ncio, imaginando que poderia ser um
ladrã o em busca de algum carro ainda prestá vel. Mas, depois, ele
reconheceu a voz de Beppo e abriu
- O que foi que aconteceu? - reclamou, assustado. - Detesto que me
acordem assim de repente!
- E Momo! - explicou Beppo, ofegante. - Aconteceu uma coisa terrı́vel
com a menina!
- O que é que você está dizendo? - perguntou Gigi, sentando na cama,
atordoado.
- O que houve com Momo?
- També m ainda nã o sei - arquejou Beppo. - Mas foi alguma coisa
ruim!
Entã o contou ao amigo o que sabia- o julgamento no alto do montã o
de lixo, as marcas dos pneus em volta do an iteatro e o
desaparecimento de Momo. Levou algum tempo para contar tudo, pois,
apesar da preocupaçã o pela menina, nã o sabia explicar as coisas
rapidamente
- Percebi isso desde o começo - concluiu ele. - Eu sabia que nã o ia dar
certo. Agora eles estã o se vingando. Raptaram Momo! Oh! Gigi,
precisamos ajudar a menina! Mas como? Como?
A medida que Beppo falava, Gigi ia perdendo a cor. Era como se
tivesse sumido o chã o debaixo dos seus pé s. Até entã o, tinha levado o
caso na brincadeira, como as histó rias que inventava, sem pensar em
suas consequê ncias. Agora, pela primeira vez na vida, uma histó ria
prosseguia sem ele, tornava-se independente, e nã o haveria imaginaçã o
no mundo que a izesse voltar atrá s. Sentia-se paralisado.
- Sabe, Beppo - disse depois de uma pausa -, pode ser que Momo
tenha saı́do só para ciar uma volta. As vezes ela faz isso. Já chegou a
icar trê s dias e trê s noites passeando pelos campos. Quero dizer que
talvez nã o haja motivo para nos preocuparmos assim!
- E as marcas dos pneus? - perguntou Beppo, irritado. - E o colchã o
revirado?
- Bem... - respondeu Gigi, evasivamente -, vamos supor que algué m
tenha realmente estado lá . Isso nã o prova que tenham encontrado
Momo! Talvez ela já tivesse saı́do antes. Caso contrá rio nã o teriam
remexido tudo.
- Mas e se eles a encontraram? - gritou Beppo, agarrando o amigo
pela gola do paletó e sacudindo-o. - Gigi, nã o seja idiota, os homens
cinzentos sã o uma realidade! Temos de agir imediatamente!
- Calma, Beppo! - murmurou Gigi, meio desanimado. Claro que
vamos agir... mas primeiro é preciso pensar cuidadosamente no que
vamos fazer. A inal, nem sabemos por onde começar a procurar Momo!
Beppo largou o paletó de Gigi.
- Vou à polı́cia! - declarou ele
- Nã o faça essa loucura! - gritou Gigi, horrorizado. - Isso nã o, de jeito
nenhum. Imagine se a polı́cia sai procurando e encontra nossa querida
Momo. Sabe o que vã o fazer com ela? Você sabe, Beppo? Sabe para onde
eles levam ó rfã os perdidos? Para um asilo com grades nas janelas. Você
quer que isso aconteça com Momo?
- Nã o - sussurrou Beppo, desalentado, com o olhar perdido no vazio.
- Nã o, nã o quero! Mas e se ela estiver correndo perigo?
- Bem - continuou Gigi -, e se nã o tiver acontecido nada, se ela só
estiver dando uma volta por aı́, e você alertar a polı́cia? Nesse caso, eu
nã o queria estar na sua pele quando ela olhar para a sua cara.
Beppo deixou-se cair numa cadeira junto à mesa, com a cabeça entre
as mã os.
- Francamente, nã o sei o que será melhor fazer... nã o sei! - suspirou
ele.
- De qualquer forma - respondeu Gigi -, acho que devemos esperar
até amanhã ou mesmo até depois de amanhã , antes de tomar alguma
providê ncia. Se até lá Momo nã o tiver aparecido, iremos à polı́cia. Mas
provavelmente tudo estará resolvido da melhor maneira e estaremos
rindo de toda essa confusã o!
- Você acha mesmo? - murmurou Beppo, subitamente tomado por
extremo cansaço.
Para o velho homem, o dia tinha sido muito puxado.
- Decerto - a irmou Gigi.
Ele tirou os sapatos de Beppo, ajudou-o a atravessar a o icina, levou-
o para sua cama, enrolando-lhe o tornozelo num pano molhado, e
repetiu baixinho:
- Vai dar tudo certo! Tudo vai acabar bem!
Quando viu Beppo adormecido, Gigi suspirou fundo e deitou-se no
chã o, usando o paletó dobrado como travesseiro. Mas nã o conseguiu
dormir. Durante toda a noite icou pensando nos homens cinzentos-
pela primeira vez em sua vida, sempre tã o despreocupada, sentiu medo.
A Central da Caixa Econô mica de Tempo organizou uma operaçã o em
larga escala.
Vá rios agentes da grande cidade receberam ordens de interromper o
que estivessem fazendo para se dedicar inteiramente à procura de
Momo.
Todas as ruas se encheram de vultos cinzentos. Alguns se instalaram
nos telhados, outros rastejavam pelos encanamentos de esgoto, outros,
ainda, vigiavam discretamente as estaçõ es ferroviá rias e os aeroportos,
os ô nibus e os bondes; em suma, estavam por toda parte
Mas nã o encontraram Momo.
- Escute, tartaruga, a inal para onde você está me levando? -
perguntou Momo a certa altura.
Naquele momento, as duas atravessavam um escuro pá tio interno.
"NAO TENHA MEDO", foi a resposta que apareceu na carapaça da
tartaruga.
- Nã o estou com medo - disse Momo, depois de soletrar aquelas
palavras.
Mas ela dizia aquilo mais para si mesma, para se encorajar, pois na
verdade estava meio assustada. O caminho pelo qual a tartaruga a
conduzia tornava-se cada vez mais estranho e tortuoso. Já haviam
atravessado parques, pontes, tú neis, portõ es, grandes vestı́bulos, e por
vezes até passagens subterrâ neas.
Se Momo soubesse que um verdadeiro exé rcito de homens cinzentos
estava no seu encalço, certamente ainda icaria muito mais
atemorizada. Mas disso ela nã o sabia, portanto acompanhava
pacientemente a tartaruga, passo a passo, por aquele seu trajeto que
parecia tã o disparatado.
Tal como antes abrira caminho atravé s do trá fego, també m agora a
tartaruga parecia saber exatamente o momento em que iam surgir os
inimigos. As vezes, os homens cinzentos chegavam a algum lugar
apenas um instante depois de elas terem passado. Assim, nunca as
encontravam.
- E uma sorte eu já saber ler tã o bem, nã o é ? - perguntou a menina,
inocentemente.
Nas costas da tartaruga, brilhou como um alerta luminoso a palavra:
"SILENCIO".
Momo nã o entendeu por que, mas obedeceu à ordem. Trê s vultos
escuros passaram bem perto delas.
Na regiã o da cidade que estavam percorrendo, as casas tornavam-se
cada vez mais cinzentas e pobres. Altos pré dios de apartamentos, com o
reboco das paredes caindo, ladeavam as ruas esburacadas, cheias de
poças d'á gua. Tudo era sombrio e deserto.
A Central da Caixa Econô mica de Tempo recebera o comunicado de
que Momo tinha sido vista.
- Otimo! - foi a resposta. - E você s a capturaram?
- Nã o. De repente foi como se o chã o a tivesse engolido. Assim,
voltamos a perder sua pista.
- Como é possı́vel?
- E o que nó s també m nos perguntamos. Alguma coisa está errada!
- Onde ela estava a ú ltima vez que a viram?
- Pois é essa a questã o. Estava numa regiã o da cidade inteiramente
desconhecida para nó s.
- Impossı́vel, isso nã o existe - a irmou a Central.
- Ao que tudo indica, existe, sim. Como se poderia descrevê -la?... E
como se fosse uma regiã o situada no limite do tempo e a menina
caminhasse ao longo desse limite.
- O quê ? - gritou a Central. - Retomem a perseguiçã o. A menina deve
ser capturada a qualquer custo. Entenderam?
- Entendemos - foi a resposta cinzenta à ordem ameaçadora.
A princı́pio, Momo pensou que fosse o amanhecer. Mas aquela luz
fora do comum apareceu de repente, no momento exato em que virou a
esquina daquela rua. Ali já nã o era noite e també m ainda nã o era dia.
q q j
Aquela luz nã o era de aurora nem de crepú sculo. Era uma luz que
tornava os contornos extraordinariamente nı́tidos e claros; no entanto,
nã o parecia vir de lugar algum, ou melhor, parecia vir de todos os
lugares ao mesmo tempo. As sombras longas e escuras projetadas na
rua, até pelas menores pedrinhas, tomavam todas as direçõ es: uma
á rvore era iluminada pela esquerda, uma casa pela direita e um
monumento pela frente.
Aliá s, o pró prio monumento tinha um aspecto muito singular. Sobre
um enorme pedestal cú bico, de pedra preta, destacava-se um
gigantesco ovo branco. Era só isso.
També m as casas eram diferentes de todas as que Momo já vira.
Eram quase ofuscantes de tã o brancas. Por trá s das janelas havia
apenas uma sombra escura, de modo que era impossı́vel perceber se
havia gente lá dentro. De certo modo, no entanto, Momo tinha a
impressã o de que aquelas casas nã o tinham sido construı́das para
serem habitadas, mas para alguma outra inalidade misteriosa.
Aquelas ruas estavam totalmente vazias, nã o só de gente, mas
també m de cã es, pá ssaros e carros. Nada se movia, como se tudo
estivesse fechado dentro de vidro. Nã o soprava nem uma brisa.
Momo estava admirada por terem chegado até lá tã o depressa,
embora a tartaruga agora caminhasse mais devagar ainda do que antes.
Longe daquela regiã o estranha da cidade, lá onde era noite, trê s
automó veis elegantes, com os faró is acesos, percorriam a toda a
velocidade uma rua esburacada. Em cada automó vel iam vá rios homens
cinzentos. Um deles, que estava no primeiro carro, havia avistado
Momo justamente quando ela virava para entrar na rua das casas
brancas, onde começava aquela claridade fora do comum.
Quando ela dobrou a esquina, aconteceu uma coisa incrı́vel: os
carros pararam de repente. Os motoristas pisavam no acelerador, as
rodas giravam, mas os automó veis nã o saı́am do lugar. Era como se
estivessem numa esteira rolante que se deslocasse, com a mesma
velocidade que eles, em sentido contrá rio. Quanto mais
aceleravam, menos avançavam. Ao perceberem isso, os homens
cinzentos pularam de seus carros, praguejando, e tentaram ir a pé no
encalço de Momo, que ainda entreviam ao longe. De cara amarrada,
saı́ram correndo atrá s da menina; quando, poré m, tiveram de parar
para tomar fô lego, viram que mal tinham avançado dez metros. Momo
desaparecera na distâ ncia, entre as casas brancas como neve.
- Pronto! Acabou-se! - disse um dos homens. - Nã o vamos mais
conseguir alcançá -la.
- Nã o compreendo por que nã o conseguimos sair do lugar! - disse
outro.
- Nem eu! - replicou o primeiro. - O mais importante, poré m, é saber
se isso contará como circunstâ ncia atenuante quando tivermos de
confessar nosso fracasso.
- Acha que seremos julgados?
- Em todo caso, elogios nó s nã o vamos receber.
Todos os homens que tinham participado da açã o estavam
cabisbaixos e sentaram-se nos radiadores e pá ra-choques dos carros,
pois já nã o tinham por que se apressar.
Longe, bem longe, em algum lugar em meio ao labirinto das ruas e
praças brancas como neve, Momo continuava seguindo a tartaruga. E,
justamente por andarem tã o devagar, as ruas iam icando para trá s
como se deslizassem sob seus pé s e as casas pareciam passar voando.
A tartaruga virou mais uma esquina. Momo foi atrá s dela e parou,
deslumbrada!
Aquela rua oferecia uma visã o totalmente diferente de todas as
outras.
Na verdade, era uma ruela estreita. As casas, que se apertavam umas
contra as outras dos dois lados, pareciam palá cios de vidro, cheios de
torrinhas, balcõ es e terraços, que, depois de permanecerem imersos no
mar durante longo tempo, tivessem acabado de emergir, cobertos de
algas, conchas e corais. O conjunto todo resplandecia em cores
mú ltiplas, como madrepé rola.
A ruela ia dar numa casa isolada, perpendicular à s outras, que a
fechava. Em seu centro havia uma grande porta verde, toda
ornamentada cie esculturas.
Momo levantou os olhos para uma placa de má rmore branco que
havia no muro e leu: BECO DO NUNCA
A menina levara apenas um instante para decifrar as letras, mas a
tartaruga já estava longe, quase no im da rua, na frente da ú ltima casa.
- Espere por mim, tartaruga! - gritou Momo. Mas, estranhamente,
nã o conseguia ouvir sua pró pria voz.
A tartaruga, no entanto, parecia tê -la ouvido, pois parou e virou-se
para ela.
Momo tentou segui-la, mas quando começou a caminhar pelo Beco
do Nunca teve a sensaçã o de estar lutando contra uma correnteza
poderosa ou uma ventania forte, embora imperceptı́vel, que a
empurrava para trá s. Pô s-se de lado para resistir à misteriosa pressã o,
tentou avançar agarrando-se à s saliê ncias do muro e chegou até a icar
de quatro. Foi inú til!
- Nã o consigo caminhar! - gritou Momo para a tartaruga, que já
estava no im da ruela. - Por favor, me ajude!
A tartaruga foi voltando devagarinho. Quando inalmente chegou
perto de Momo, na sua carapaça apareceu a recomendaçã o: "ANDE DE
COSTAS!"
Momo experimentou. Virou-se e começou a andar de costas. Entã o,
conseguiu avançar sem di iculdade. No entanto, aconteceu uma coisa
notá vel com ela. Ao mesmo tempo que caminhava de costas, passou a
pensar ao contrá rio, a respirar ao contrá rio, a sentir ao contrá rio... ou
seja, estava vivendo ao contrá rio!
Acabou batendo as costas numa coisa só lida, Virou-se e viu que
estava diante da casa que fechava o beco. Assustou-se um pouco, pois,
vista de perto, a porta de metal verde coberta de esculturas parecia
gigantesca.
"Será que consigo abrir esta porta?", pensou Momo, duvidando. Mas,
no mesmo instante, as duas imensas folhas se abriram.
Momo deteve-se ainda por um momento, pois notou uma placa com
uma inscriçã o logo acima da entrada. A placa, sustentada por um
unicó rnio branco, trazia a inscriçã o:
CASA DE LUGAR NENHUM
Como a menina nã o sabia ler muito depressa, quando terminou as
duas folhas já iam se fechando devagar. Momo se apressou e ainda
conseguiu entrar antes que a porta imensa se fechasse atrá s dela, com
um leve ruı́do.
Encontrava-se agora num corredor alto, muito longo. A esquerda e à
direita, em intervalos regulares, está tuas nuas de homens e mulheres
pareciam sustentar o teto. Nã o havia mais vestı́gio daquela misteriosa
corrente contrá ria.
Momo seguia a tartaruga, que rastejava pelo corredor comprido. No
inal dele, a tartaruga parou diante de uma portinha, tã o pequena que
mal dava para a menina entrar.
Na carapaça da tartaruga apareceu mais um aviso: "CHEGAMOS!"
Momo ajoelhou-se e viu em cima da portinha, na frente de seu nariz,
uma plaquinha com a inscriçã o:
MESTRE SECUNDUS MINUTIUS HORA
Respirou fundo e baixou resolutamente o trinco. Quando a portinha
se abriu, izeram-se ouvir vindos lá de dentro, numa melodia a muitas
vozes, tique-taques, roncos, campainhas e rangidos. A menina seguiu a
tartaruga e a portinha se trancou atrá s delas.
Capítulo Onze
QUANDO OS MAUS TIRAM O MELHOR PARTIDO DO QUE É RUIM

Na luz cinzenta de in indá veis corredores e gaIerias, agentes da Caixa


Econô mica de Tempo agitavam-se e faziam correr as ú ltimas notı́cias:
todos os membros da diretoria haviam sido convocados para uma
assemblé ia extraordiná ria!
Segundo alguns, só podia ser sinal de que havia surgido algum
grande perigo.
Segundo outros, era sinal de que haviam surgido novas
oportunidades de se ganhar tempo.
No enorme salã o de reuniõ es, encontravam-se os homens cinzentos
da diretoria.
Sentavam-se um ao lado do outro, numa mesa interminavelmente
longa. Cada um deles, como sempre, levava uma pasta cinza-chumbo e
fumava seu pequeno charuto cinzento. Só nã o estavam com os chapé us
costumeiros, revelando que todos tinham carecas reluzentes como
espelhos.
A atmosfera, se é que se podia falar em atmosfera em se tratando dos
homens cinzentos, era pesada.
O presidente, à cabeceira da longa mesa, levantou-se. Cessaram os
murmú rios e duas ileiras interminá veis de rostos cinzentos voltaram-
se para ele.
- Senhores - ele disse -, nossa situaçã o é muito sé ria. Sinto-me no
dever de pô -los imediatamente a par de fatos desagradá veis mas
inegá veis.
"Quase todos os nossos agentes disponı́veis foram empregados na
procura da menina Momo. Essa busca durou seis horas, treze minutos e
oito segundos. Os agentes nela empenhados foram forçados a
negligenciar o objetivo de suas pró prias existê ncias, ou seja, obter
tempo. A esse dé icit, devemos acrescentar o tempo que nossos homens
gastaram nas buscas. Esses dois itens representam uma perda de
tempo que, de acordo com os cá lculos mais exatos, soma um prejuı́zo
de trê s bilhõ es setecentos e trinta e oito milhõ es duzentos e cinquenta e
nove mil cento e catorze segundos.
"Ora, senhores, é mais do que a vida inteira de um ser humano! Nã o
preciso dizer o que isso signi ica para nó s."
O presidente parou, apontando com um gesto largo para uma imensa
porta de aço cheia de nú meros e fechaduras de segurança, na parede de
um dos lados da sala.
- Nossos estoques de tempo, meus senhores - gritou ele, levantando a
voz -, nã o sã o inesgotá veis. Se pelo menos as buscas tivessem tido ê xito!
Mas o tempo gasto com elas foi totalmente perdido. A menina escapuliu
de nossas mã os.
"Fato semelhante simplesmente nã o pode se repetir, senhores. No
futuro, hei de me opor categoricamente a qualquer empreendimento
que implique gastos tã o elevados. Precisamos poupar, meus senhores, e
nã o desperdiçar! Peço-lhes pois que, ao elaborar quaisquer outros
planos, tenham sempre isso em mente. E só o que tenho a
dizer. Obrigado!"
Sentou-se e lançou grossas baforadas de fumaça. Os outros
começaram a sussurrar, inquietos.
Nisso levantou-se um outro orador, que se encontrava do outro lado
da longa mesa, e todos os rostos voltaram-se para ele.
- Senhores - começou ele -, o desejo de que a Caixa Econô mica de
Tempo tenha sucesso está no coraçã o de todos nó s. Parece-me, no
entanto, inteiramente desnecessá rio nos deixarmos perturbar por esse
caso ou transformá -lo quase numa catá strofe. Nada está mais longe da
realidade. Sabemos que nosso estoque de tempo já atinge tais quantias
que, mesmo submetidos a muitos outros prejuı́zos como este nã o
estarı́amos correndo perigo sé rio. A inal, o que é para nó s a vida de um
ser humano? Na verdade, uma ninharia!
"Contudo, estou de acordo com nosso respeitá vel presidente quando
diz que um tal fato nã o deve se repetir. No entanto, o caso da menina
Momo é ú nico. Jamais até hoje ocorreu algo semelhante, e é
absolutamente imprová vel que volte a ocorrer no futuro.
"Finalmente, nosso presidente censurou-nos, com razã o, por termos
deixado a menina Momo escapar. Mas nosso intuito, a inal, nã o era
tornar a menina inofensiva? Ora, esse objetivo foi plenamente atingido!
Momo desapareceu, fugiu para alé m da esfera do tempo. Estamos livres
dela. Acho, pois, que podemos nos dar por satisfeitos com esse
resultado."
O orador sentou-se com um sorriso de satisfaçã o. Ouviram-se alguns
aplausos isolados.
Levantou-se um terceiro orador, que estava sentado ao centro da
longa mesa.
- Serei breve - disse ele, com a cara fechada. - Considero inteiramente
irresponsá veis as palavras de tranquilizaçã o que acabamos de ouvir. A
menina em questã o nã o é uma criança comum. Sabemos que ela possui
certos dons que podem ser extremamente perigosos para nó s e nossos
negó cios. O fato de um incidente como esse nunca ter ocorrido até hoje
nã o quer dizer que nã o possa se repetir.
Devemos nos manter atentos. Nã o poderemos nos dar por satisfeitos
enquanto nã o tivermos essa menina inteiramente em nosso poder. E o
ú nico meio de termos certeza de que ela nã o nos prejudicará mais. Se
ela foi capaz de transpor a esfera do tempo, també m poderá voltar a
qualquer momento. E voltará .
O orador se sentou. Os demais membros da diretoria baixaram a
cabeça, humilhados.
Um quarto orador, sentado na frente do terceiro, tomou a palavra.
- Meus senhores, perdoem-me, mas preciso falar com franqueza. Até
agora icamos apenas rodeando o assunto. Temos de encarar o fato de
que há um estranho poder envolvido nesse caso. Examinei todos os
aspectos, nos menores detalhes. A probabilidade de que uma criança
humana viva seja capaz de transpor por vontade pró pria a esfera o
tempo é de um para quarenta e dois milhõ es. Em outras palavras, é
praticamente impossı́vel.
Um murmú rio de agitaçã o fez-se ouvir entre os membros da
diretoria.
- Tudo indica que Momo recebeu ajuda de algué m para escapar à
nossa perseguiçã o.
Os senhores sabem a quem me re iro. Trata-se do assim chamado
Mestre Hora.
Ao ouvirem esse nome, alguns dos homens cinzentos se encolheram,
como se tivessem levado uma pancada, enquanto outros puseram-se de
pé , gritando e gesticulando.
- Senhores, por favor! - prosseguiu o orador, estendendo os braços. -
Peço-lhes que se controlem! Sei tã o bem quanto os senhores que
pronunciar esse nome nã o é , digamos, de bom-tom, e eu mesmo só o
faço com grande relutâ ncia. Mas queremos e precisamos ser claros! Se o
tal fulano ajudou Momo, teve razõ es para isso. E essas razõ es, é claro,
sã o dirigidas contra nó s. Em resumo, senhores, devemos levar em
consideraçã o que o tal fulano nã o só mandará a criança de volta como
també m lhe dará instruçõ es para nos combater. A menina será entã o,
para nó s, um perigo mortal! Assim, alé m de estarmos preparados para
sacri icar mais uma vez o tempo de uma vida humana, ou de muitas,
teremos de empregar todos, repito, todos os nossos recursos, senhores!
Caso contrá rio, nossa economia poderá nos custar terrivelmente caro.
Creio que todos me entenderam.
O nervosismo cresceu entre os homens cinzentos, e começaram a
falar todos ao mesmo tempo. Um quinto orador pulou da cadeira e
agitou violentamente os braços:
- Calma! Calma! - gritou ele. - O nosso colega, infelizmente, ateve-se a
sugerir todos os tipos de catá strofe possı́veis. No entanto, ele mesmo
nã o sabe o que devemos fazer contra elas. Diz que devemos estar
preparados para tudo... muito bem! Que nã o devemos poupar nossos
recursos... muito bem! Mas tudo isso sã o palavras vazias. Ele que nos
diga o que podemos realmente fazer. Ningué m de nó s sabe, na verdade,
com que armas a tal menina Momo irá nos enfrentar! Estamos diante
de um perigo inteiramente desconhecido. Esse é , de fato, o nosso
problema.
O barulho da sala transformou-se em tumulto. Cada um berrava mais
do que os outros, alguns esmurravam a mesa, outros cobriam o rosto
com as mã os, estavam todos tomados pelo pâ nico.
Com muita di iculdade, um sexto orador se fez ouvir.
- Senhores, por favor! - repelia ele, tentando acalmá -los, até
conseguir silê ncio. - Peço que se mantenham tranquilos e razoá veis. No
momento é isso o mais importante. Suponhamos que a menina Momo
volte do tal lugar, até mesmo armada. Ainda assim, nã o teremos
necessidade de nos lançar pessoalmente no combate. Nã o somos
especialmente aptos a tais confrontos, como icou demonstrado pelo
caso infeliz do nosso agente BLW/553/c, há pouco liquidado. Nem isso
será necessá rio. A inal, temos um nú mero su iciente de cú mplices entre
os seres humanos. Se soubermos utilizá -los com inteligê ncia e
discriçã o, meus senhores, poderemos fazer sumir do mundo a menina
Momo e todo o perigo que ela representa, sem nunca aparecermos
abertamente. Essa tá tica será econô mica, sem riscos e altamente e icaz.
Houve um suspiro de alı́vio na assemblé ia. A proposta agradou a
todos. Sem dú vida teria sido aceita imediatamente, se na outra ponta da
mesa um sé timo orador nã o tivesse tomado a palavra.
- Senhores, estamos apenas pensando em uma maneira de nos livrar
da menina Momo.
Devemos reconhecer que estamos sendo levados a isso pelo medo.
Mas o medo, meus senhores, é mau conselheiro. Parece-me que
estamos perdendo uma oportunidade realmente ú nica. Diz um ditado:
"Se nã o puder vencê -los, alie-se a eles." Por que nã o procuramos trazer
a menina para o nosso lado?
- Vá em frente! Continue! Ouçam todos! - gritaram vá rias vozes ao
mesmo tempo.
- E ó bvio - prosseguiu o orador - que essa criança encontrou o
caminho para chegar ao tal fulano, caminho esse que desde o inı́cio
temos procurado em vã o.
Ora, a menina voltará a encontrá -lo e poderá nos levar até lá .
Negociaremos entã o com o tal fulano segundo nossos pró prios
mé todos. Estou certo de que o conseguiremos num instante. E, assim
que ocuparmos o lugar dele, nã o seremos mais obrigados a nos esforçar
tanto para obter horas, minutos ou segundos. De um só golpe, seremos
os donos do tempo de todas as pessoas do mundo. Quem possui todo o
tempo dos seres humanos tem poder ilimitado! Imaginem, senhores, se
alcançarmos nosso alvo! Para isso, Momo, de quem estã o querendo se
livrar, poderá nos ser ú til!
Um silê ncio de morte tomou conta da sala.
- Mas todos sabem - gritou um dos presentes - que é impossı́vel
mentir para essa menina! Lembrem-se do agente BLW/553/c; qualquer
um de nó s teria o mesmo destino.
- Ora, quem falou em mentir? - perguntou o orador. Nó s lhe
contaremos nossos planos com toda a franqueza.
- Mas entã o ela nã o nos ajudará ! - gritou um outro. - Essa ideia é
simplesmente absurda!
- Nã o tenho tanta certeza disso - interferiu um nono participante. - E
claro que terı́amos que lhe oferecer alguma coisa atraente. Estou
pensando que lhe poderı́amos prometer, por exemplo, todo o tempo
que ela quiser...
- Promessa que jamais cumprirı́amos - interferiu outro participante
da assemblé ia.
- Claro que terı́amos que cumprir - replicou ainda outro, com um
sorriso gé lido.
- Se tivé ssemos a intençã o de nã o agir corretamente, ela sentiria
imediatamente.
- Nã o, nã o! - declarou o presidente, batendo com o punho fechado na
mesa. - Nã o posso de modo algum consentir em tal coisa! Se formos
obrigados a lhe ceder todo o tempo que ela quiser, isso nos custará uma
fortuna!
- Nem tanto! - retrucou o orador, acalmando-o. - Quanto tempo uma
criança é capaz de gastar realmente? Decerto seria uma pequena
despesa permanente, mas pensem no que ganharı́amos em troca! O
tempo de todos os seres humanos! O pouco que Momo gastaria seria
lançado como despesa. Pensem nas imensas vantagens que terı́amos,
senhores!
O orador sentou-se e todos puseram-se a pensar nas vantagens!
- Seja como for - disse o sexto orador, inalmente -, nã o daria certo!
- Por que nã o?
- Pela simples razã o de que essa criança infelizmente dispõ e de todo
o tempo de que necessita. Nã o adianta procurar suborná -la com uma
coisa que ela já tem de sobra!
- Entã o primeiro teremos que lhe tirar esse tempo - concluiu o nono
orador.
- Meus senhores - disse o presidente, cansado. - Estamos
caminhando em cı́rculo.
O fato é que nã o conseguimos apanhar a menina.
Das longas ileiras dos membros da diretoria, levantou-se um suspiro
de desâ nimo.
- Tenho uma sugestã o - anunciou um dé cimo orador. Com licença?
- A palavra é sua! - respondeu o presidente.
Apó s inclinar-se diante do presidente, o homem começou a falar:
- Essa criança é muito dedicada aos amigos. Ela adora dar seu tempo
aos outros.
Vamos imaginar, entã o, o que aconteceria se nã o restasse ningué m
para partilhar o tempo com ela! Se a menina nã o quiser cooperar
conosco voluntariamente, bastará nos apoderarmos de seus amigos.
Tirou da pasta um ichá rio e abriu-o:
- Os principais atingidos deverã o ser um tal Beppo Varredor e um tal
Gigi Guia.
També m tenho uma longa lista de crianças que costumam visitá -la
frequentemente.
Como vê em, senhores, o caso nã o é difı́cil.
"Simplesmente afastaremos todas essas pessoas de Momo, de modo
que ela nã o consiga mais encontrá -las. Entã o a pobre menina acabará
icando completamente só . Que valor o tempo terá para ela? Acabará se
transformando num peso, até numa maldiçã o. Mais cedo ou mais tarde,
ela nã o conseguirá mais suportá -lo.
"Entã o, meus senhores, será o momento de impormos nossas
condiçõ es. Aposto mil anos contra um dé cimo de segundo que ela nos
mostrará o caminho desejado para, em troca, ter seus amigos de volta.
Os homens cinzentos, que momentos antes estavam tã o abatidos,
levantaram a cabeça. Traziam nos lá bios um sorriso mordaz e
triunfante. Bateram palmas, e seus aplausos ressoaram pelos
corredores e galerias interminá veis como o barulho de uma avalanche
de pedras.
Capítulo Doze
MOMO CHEGA AO LUGAR DE ONDE VEM O TEMPO

Momo estava agora numa sala enorme, a maior que já tinha visto na
vida. Era maior do que a mais imensa das igrejas ou a mais ampla das
estaçõ es de trem.
Grossas colunas sustentavam o teto, que lá no alto, no meio da
escuridã o, mais se adivinhava do que se via. Nã o havia janelas. A
claridade dourada e tê nue que cintilava na sala imensa provinha de
inú meras velas, dispostas por todos os lados, cujas chamas eram tã o
está ticas que pareciam ter sido pintadas em cores luminosas e nã o
precisar de cera para luzir.
Os milhares de sons de roncos, tique-taques, campainhas e rangidos
que Momo ouvira ao entrar provinham cie inú meros reló gios cie todos
os tamanhos e feitios. Uns estavam em pé ou deitados em longas mesas,
dentro de vitrines de vidro, em mı́sulas douradas ou sobre prateleiras
interminá veis.
Havia minú sculos reló gios de bolso ornados com pedras preciosas,
despertadores comuns de metal, ampulhetas, reló gios com caixinhas
cie mú sica e bonequinhas que dançavam, reló gios de sol, reló gios de
madeira e reló gios de pedra, reló gios de vidro e outros movidos a á gua.
Pendurados nas paredes havia reló gios-cuco de vá rios tipos, reló gios de
pesos, reló gios de pê ndulos grandes que oscilavam devagar e
solenemente, outros de pê ndulos pequenos que se moviam muito
depressa de um lado para outro. A altura de um primeiro andar, havia
uma galeria que rodeava toda a sala, e a ela se chegava por uma escada
em espiral. Mais acima, havia uma segunda galeria, e depois outra e
mais outra. Por todo lado viam-se reló gios em pé , deitados ou
pendurados. Havia també m reló gios em forma de esfera, que marcavam
as horas de todas as regiõ es do mundo, e planetá rios grandes e
pequenos, com Sol, Lua e estrelas. No centro da sala, erguia-se como
que uma loresta de reló gios de pé , desde os reló gios de salã o, de
tamanho comum, até verdadeiros reló gios de torres de igreja.
Nã o havia um só momento em que nã o se ouvisse algum reló gio
batendo ou tilintando, pois cada um deles marcava uma hora diferente.
No entanto, nã o era um barulho desagradá vel. Era um murmú rio
constante, que lembrava o ruı́do de uma loresta no verã o.
Momo passeava pela sala, observando com olhos arregalados
aquelas raridades.
Parou diante de um reló gio musical, ricamente trabalhado, no qual
havia duas delicadas igurinhas de mã os dadas, uma mulherzinha e um
homenzinho, como se fossem dançar A menina estava até pensando em
lhes dar um empurrã ozinho para ver se começavam a dançar, quando
ouviu uma voz amá vel dizer:
- Ah! Entã o você está de volta, Cassiopé ia! E trouxe a pequena
Momo?
A menina se virou e viu, num dos corredores entre os reló gios de pé ,
um elegante senhor de cabelos prateados, agachado para olhar para a
tartaruga, que estava no chã o a seus pé s. O homem usava um casaco
comprido bordado de dourado, calçõ es de seda azul, meias brancas e
sapatos com grandes ivelas douradas. Pela gola e pelos punhos do
casaco apareciam rendas, e os cabelos prateados eram presos na nuca,
formando um rabicho. Momo nunca tinha visto trajes como aqueles,
mas algué m menos ignorante do que ela reconheceria imediatamente a
moda de duzentos anos atrá s.
- O que você disse? - perguntou o velho senhor, sempre agachado
perto da tartaruga. - Ela veio? E onde ela está ?
Ele colocou uns ó culos pequeninos, parecidos com os do velho
Beppo, só que eram de ouro, e começou a procurar à sua volta.
- Estou aqui! - gritou Momo.
Com um sorriso alegre e as mã os estendidas, o velho senhor foi ao
encontro dela.
Momo teve a impressã o de que, a cada passo que dava, ele se tornava
mais jovem.
Quando a inal se encontraram e ele apertou-lhe as duas mã os
cordialmente, parecia nã o ser mais velho do que a pró pria menina.
- Bem-vinda! - exclamou alegremente. - Afetuosas boas vindas à Casa
de Lugar Nenhum. Peço licença, querida Momo, para me apresentar:
sou Mestre Hora, Secundus Minutius Hora.
- Estava mesmo me esperando? - perguntou Momo, admirada.
- Decerto, pois até mandei minha tartaruga Cassiopé ia especialmente
para buscar você !
Tirou do bolsinho do colete um pequeno reló gio cravejado de
brilhantes e fez saltar sua tampinha.
- Você até chegou com extraordiná ria pontualidade - disse ele,
sorrindo e mostrando o reló gio à menina.
Momo notou que nã o havia ponteiros nem nú meros, apenas duas
espirais muito inas, colocadas uma sobre a outra, em sentidos opostos,
que se moviam muito devagar. No lugar em que as linhas se cruzavam,
apareciam de quando em quando minú sculos pontos luminosos.
- Este é um reló gio estelar. Ele marca ielmente as raras horas
estelares, e exatamente agora começou uma delas.
- O que é uma hora estelar? - perguntou Momo.
- Bem - explicou Mestre Hora -, no correr do mundo há momentos
especiais em que todos os seres e coisas, até a estrela mais distante,
conjugam-se de um modo singular, podendo entã o ocorrer alguma
coisa que, antes ou depois, seria impossı́vel. Infelizmente, em geral as
pessoas nã o sabem aproveitá -las, e as horas estelares acabam passando
despercebidas. Mas, quando algué m as reconhece, grandes coisas
acontecem entã o no mundo.
- Talvez seja preciso ter um reló gio como o seu para reconhecê -las -
observou Momo.
Mestre Hora sacudiu a cabeça negativamente e sorriu:
- O reló gio por si só nã o adiantaria a ningué m. E preciso saber lê -lo.
Com um rá pido estalo fechou de novo o reloginho e colocou-o no
bolso do colete.
Depois, notando o olhar de espanto de Momo diante de sua
aparê ncia, olhou para baixo examinando a si mesmo, franziu a testa e
disse:
- Ah! Acho que estou meio atrasado quanto à moda! Que descuido, o
meu! Vou já corrigir isso!
Estalou os dedos e imediatamente apareceu de sobrecasaca e
colarinho duro.
- Estou melhor assim? - perguntou, na dú vida. Vendo, poré m, a
expressã o perplexa da menina, acrescentou rapidamente:
- Nã o, claro que nã o! Onde estou com a cabeça? Estalou de novo os
dedos e surgiu com uma roupa que nem Momo nem ningué m jamais
poderia ter visto, pois só estaria em moda cem anos depois.
- També m nã o? - disse ele, consultando Momo. - Ora, por Orion, está
difı́cil acertar! Espere, vou tentar de novo.
Estalou os dedos pela terceira vez e, inalmente, apareceu diante da
menina com um traje de passeio como os que se usavam comumente.
- Assim está bem, nã o é ? - perguntou ele, dando uma piscadela. -
Espero nã o ter assustado você , Momo. Foi só uma brincadeira. Agora,
querida menina, está na hora de convidá -la para vir até a mesa. O café
da manhã está pronto. Você fez uma longa viagem e espero que aprecie
a refeiçã o.
Tomou-a pela mã o e a conduziu atravé s da loresta de reló gios. A
tartaruga ia um pouco atrá s deles. O caminho que seguiam fazia voltas e
mais voltas, como um labirinto de jardim, desembocando inalmente
numa salinha cujas paredes eram formadas pela parte de trá s de
algumas das imensas caixas dos reló gios. A um canto, viam-se uma
mesinha de pernas recurvadas e um elegante sofá com poltronas
combinando. També m ali tudo era iluminado pelas velas com as chamas
está ticas.
Sobre a mesinha havia um bule dourado bojudo, duas xicrinhas com
os respectivos pires, colherinhas e facas, tudo de ouro maciço. Numa
cestinha havia pã ezinhos dourados e crocantes; numa vasilhinha,
manteiga amarelo-ouro; em outra, mel que parecia ouro lı́quido. Mestre
Hora pegou o bule bojudo e verteu chocolate quente nas duas xı́caras,
oferecendo com um gesto amá vel:
- Por favor, minha querida hó spede, sirva-se à vontade! Momo nã o
esperou novo convite. Até entã o, nem sabia que existia chocolate de
beber. Pã ezinhos com manteiga e mel eram uma raridade em sua vida. E
aqueles estavam especialmente deliciosos!
Assim, no começo icou inteiramente entretida com a maravilhosa
refeiçã o, saboreando-a de boca cheia, sem pensar em mais nada.
Surpreendentemente, enquanto ela comia, todo o seu cansaço ia
desaparecendo, sentia-se disposta e revigorada, embora nã o tivesse
dormido um só instante durante toda a noite.
Quanto mais comia, mais achava tudo saboroso! Tinha a impressã o
de que seria capaz de passar o dia inteiro comendo.
Mestre Hora olhava-a amavelmente, tendo a delicadeza de, no inı́cio,
nã o a importunar com conversa. Compreendia que sua pequena
hó spede tinha de saciar a fome de muitos anos. Talvez por essa razã o, à
medida que a observava ele ia envelhecendo novamente, até se tornar
outra vez um homem de cabelos brancos. Ao perceber que Momo nã o
sabia manejar bem a faca, foi passando manteiga e mel nos pã ezinhos e
colocando-os diante da menina Ele mesmo comia muito pouco, só para
lhe fazer companhia.
Finalmente, Momo icou satisfeita. Bebendo o chocolate, lançou, por
cima da xı́cara dourada, um olhar curioso para seu an itriã o, tentando
adivinhar quem era ele. Percebia, é claro, que nã o se tratava de uma
pessoa comum, mas até agora nada sabia a seu respeito, a nã o ser seu
nome.
- Por que você mandou a tartaruga me buscar? - perguntou ela,
pousando a xı́cara.
- Para protegê -la dos homens cinzentos - respondeu Mestre Hora,
com toda a seriedade. - Estã o todos à sua procura, por toda parte, e o
ú nico lugar onde você está segura é aqui comigo
- Eles querem me fazer algum mal? - perguntou a menina, assustada.
- Querem, sim, minha menina! - suspirou Mestre Hora. Com certeza!
- Por quê ?
- Tê m medo de você - explicou Mestre Hora -, pois você lhes causou o
que há de pior para eles.
- Mas eu nã o iz nada contra eles! - retrucou Momo.
- Fez, sim! Você levou um deles a se trair. Depois contou tudo a seus
amigos Você s até quiseram dizer a todo o inundo a verdade sobre os
homens cinzentos.
Nã o acha que é o su iciente para torná -los seus inimigos mortais?
- Mas a tartaruga e eu atravessamos todo o centro da minha cidade -
respondeu Momo. - Se estã o me procurando por toda parte, teria sido
fá cil me pegarem. Alé m do mais, andamos sempre muito devagar.
Mestre Hora pegou a tartaruga, que se acomodara a seus pé s,
colocou-a no colo e lhe fez có cegas no pescoço.
- O que você acha, Cassiopé ia? - ele perguntou, sorrindo. - Eles
poderiam ter pego você s?
Na carapaça da tartaruga apareceu a palavra "NUNCA", e as letras
cintilavam tã o alegremente que até se tinha a impressã o de ouvir um
risinho.
- Cassiopé ia consegue enxergar um pouco o futuro - explicou Mestre
Hora. - Nã o muito, mas ainda assim com uma antecedê ncia de mais ou
menos meia hora "EXATAMENTE", viu-se escrito nas suas costas.
- Desculpe - corrigiu-se Mestre Hora -, exatamente meia hora. Ela
sabe com certeza o que vai acontecer na pró xima meia hora. Sabia,
portanto, se ia encontrar os homens cinzentos ou nã o.
- Puxa - exclamou Momo, maravilhada -, mas isso é muito prá tico! Se
ela sabia de antemã o onde iria encontrar os homens cinzentos, entã o
era só tomar outro caminho?
- Nã o - respondeu Mestre Hora -, infelizmente nã o é tã o simples
assim. O fato de saber as coisas com antecedê ncia nã o quer dizer que
possa mudá -las. Ela só ica sabendo o que vai realmente acontecer.
Assim, ao saber que encontraria os homens cinzentos aqui ou ali, nã o
poderia deixar de encontrá -los. Nã o poderia fazer nada para evitar.
- Nã o estou entendendo - disse Momo, desapontada. Entã o nã o
adianta nada saber as coisas com antecedê ncia.
- As vezes adianta - replicou Mestre Hora. - No seu caso, por exemplo,
a tartaruga sabia que passaria por este e aquele caminho e que nã o
encontraria os homens cinzentos. Já é alguma coisa, você nã o acha?
Momo icou calada. Seus pensamentos se emaranhavam como num
novelo.
- Mas, voltando a você e seus amigos - prosseguiu Mestre Hora -,
quero felicitá -la. Seus cartazes e faixas me impressionaram muito bem.
- Você os leu? - perguntou Momo, contente.
- Todos, palavra por palavra! - respondeu Mestre Hora.
- Foi uma pena! Acho que ningué m mais leu - disse a menina.
Mestre Hora acenou a irmativamente com a cabeça:
- E, foi uma pena! E os responsá veis por isso foram os homens
cinzentos.
- Você os conhece bem? - indagou Momo.
Mestre Hora voltou a balançar a cabeça, con irmando, e suspirou:
- Sim, eu os conheço e eles me conhecem.
- Já esteve muitas vezes com eles?
- Nã o, nunca. Nunca saio da Casa de Lugar Nenhum.
- Mas entã o os homens cinzentos à s vezes vê m até aqui?
Mestre Hora sorriu:
- Nã o se preocupe, minha querida Momo! Eles nã o poderiam entrar
aqui, mesmo que conhecessem o caminho até o Beco do Nunca. E, de
qualquer modo, nã o conhecem.
Momo icou um momento pensativa. Ficara mais tranquila com a
explicaçã o de Mestre Hora, mas tinha vontade de saber mais a respeito
dele.
- Como é que você sabe de tudo isso - ela voltou a perguntar -, quer
dizer, sobre os nossos cartazes e os homens cinzentos?
- Estou sempre de olho neles e em tudo o que tem relaçã o com eles -
declarou Mestre Hora. - Por isso també m andei vigiando você e seus
amigos.
- Mas você nunca sai desta casa!
- Nem é preciso! - disse Mestre Hora, tornando-se de novo
visivelmente mais jovem. - A inal de contas, tenho os meus ó culos de
visã o global.
Entã o ele tirou seus pequenos ó culos de ouro e estendeu-os para
Momo.
- Quer dar uma olhada?
A menina pô s os ó culos, piscou, forçou os olhos e disse:
- Nã o estou enxergando absolutamente nada!
De fato, ela só via uma mistura de cores, luzes e sombras inde inidas.
Chegou até a icar meio tonta,
- No começo é assim mesmo - a menina ouviu Mestre Hora explicar. -
Nã o é muito fá cil enxergar com os ó culos de visã o global. Mas logo você
vai se acostumar!
Ele se levantou, postou-se atrá s da cadeira de Momo e segurou de
leve no aro dos ó culos. Imediatamente a imagem se fez clara Momo viu
primeiro o grupo de homens cinzentos nos trê s carros, no limite da
regiã o da cidade que tinha aquela luminosidade estranha. Estavam
justamente tentando fazer os carros voltarem.
Olhando mais para longe, viu outros grupos nas ruas da cidade,
gesticulando e falando agitadamente uns com os outros, como se
estivessem trocando informaçõ es.
- Estã o falando de você - explicou Mestre Hora. - Nã o conseguem
entender como conseguiu escapar deles.
- Por que eles tê m o rosto tã o cinzento? - perguntou Momo,
continuando a observá -los.
- Porque nutrem sua existê ncia de algo morto - respondeu Mestre
Hora. - Como você sabe, o que manté m sua existê ncia é o tempo de vida
dos seres humanos. Mas esse tempo morre, literalmente, quando é
arrancado de seu verdadeiro dono. Pois cada pessoa tem seu tempo. E
esse tempo só permanece vivo enquanto é , de fato, dela.
- Entã o os homens cinzentos nã o sã o seres humanos?
- Nã o, só adquiriram a forma humana.
- O que eles sã o, entã o?
- Na verdade nã o sã o nada.
- De onde eles vê m?
- Eles surgem porque as pessoas lhes dã o oportunidade para surgir.
Basta isso para acontecer. E agora as pessoas estã o dando oportunidade
para que eles as dominem. També m isso basta para que possa
acontecer.
- E se eles nã o conseguissem mais roubar tempo nenhum?
- Seriam obrigados a voltar ao nada de onde vieram. Mestre Hora
tirou os ó culos de Momo e guardou-os.
- Infelizmente - continuou depois de uma pausa -, agora eles já tê m
muitos cú mplices entre os seres humanos. O ruim é isso.
- Pois eu nã o vou deixar ningué m roubar o meu tempo! a irmou
Momo, decidida.
- Espero que nã o - disse Mestre Hora. - Venha, Momo, quero lhe
mostrar minha coleçã o.
Agora estava de novo com aparê ncia de velho.
Tomou Momo pela mã o e levou-a de volta à enorme sala. Lá ele lhe
mostrou este e aquele reló gio, pô s caixinhas de mú sica para funcionar,
mostrou-lhe os reló gios que marcavam o tempo do mundo e també m os
planetá rios. Diante da alegria que sua pequena hó spede mostrava ao
ver todas aquelas maravilhas, ele foi se tornando, novamente, cada vez
mais jovem.
- Você gosta de enigmas? - ele perguntou de passagem, enquanto
continuavam perambulando.
- Gosto muito! - respondeu Momo. - Você sabe algum?
- Sei - disse ele, sorrindo. - Mas é muito difı́cil. Pouca gente consegue
decifrá -lo.
- Otimo! - disse Momo. - Entã o quero aprendê -lo para depois ensiná -
lo para meus amigos.
- Estou curioso para ver se você vai ser capaz de decifrá -lo - disse
mestre Hora. - Entã o preste atençã o.
"Moram numa casa três parentes, ou melhor, três irmãos diferentes.
Mas cada um se parece com os outros dois.
O primeiro não está, só vai chegar depois.
O segundo não está, já foi embora.
Só o terceiro está em casa agora.
Sem ele não haveria os outros no mundo.
E ele existe porque o primeiro vira o segundo.
Se você olhar bem não vai ver o terceiro,
só vai enxergar o segundo ou o primeiro.
Então me diga: serão os três apenas um?
Ou serão dois, ou até nenhum?
Esses senhores são os três governantes
de um mesmo reino, dos mais importantes,
e que é eles mesmos além do mais.
Dentro desse reino eles são iguais."
Mestre Hora olhou para Momo, balançando a cabeça para animá -la.
Ela ouvira atentamente, e, como tinha excelente memó ria, repetiu o
enigma lentamente, palavra por palavra.
- Ufa! - suspirou ela. - E difı́cil mesmo! Nã o tenho a menor ideia da
resposta e nem sei por onde começar.
- Experimente! - disse Mestre Hora, estimulando-a. Momo repetiu de
novo o enigma inteiro. Depois balançou a cabeça.
- Nã o sei mesmo! - disse, desistindo.
Cassiopé ia tinha se aproximado. Estava aos pé s de Mestre Hora e
observava Momo atentamente.
- Entã o, Cassiopé ia, já que você sabe tudo com meia hora de
antecedê ncia, diga lá : Momo vai resolver o enigma ou nã o vai? -
perguntou Mestre Hora.
A resposta apareceu nas costas da tartaruga: "VAI RESOLVER".
- Está vendo? - disse ele à menina. - Você vai acertar, Cassiopé ia
nunca se engana!
Momo franziu a testa, esforçando-se para adivinhar. Quem eram
aqueles trê s irmã os que moravam na mesma casa? Claro que nã o se
tratava de seres humanos. Em enigmas, irmã os eram em geral sementes
de maçã , os dentes, ou coisas desse tipo.
No caso, poré m, eram trê s irmã os que de certo modo se
transformavam um no outro.
Que coisas existiam que se transformavam uma na outra? Momo
olhou em volta.
Havia, por exemplo, aquelas velas com as chamas está ticas. A cera,
atravé s da chama, se transformava em luz. Sim, eram trê s irmã os. Mas
nã o dava certo, pois os trê s estavam ali, e no enigma dois irmã os nã o
estavam em casa. Talvez fosse alguma coisa como lor, fruto, e semente.
E, podia ser, mesmo. A semente, era o menor dos trê s irmã os. E quando
ela estava os outros dois nã o estavam. Mas nã o era isso! Olhando-se
para a semente dava para vê -la muito bem. E o enigma dizia que,
quando se olhava o terceiro irmã o, só se enxergava o segundo ou o
primeiro.
Os pensamentos da menina vagueavam por todos os lados. Nã o
conseguia encontrar nenhuma pista que a levasse adiante. Mas
Cassiopé ia tinha dito que ela conseguiria encontrar a resposta. Momo
entã o começou tudo de novo e, mais uma vez, foi repetindo
devagarinho as palavras do enigma. Quando pronunciou as palavras: "O
primeiro nã o está , mas chega logo depois", viu a tartaruga piscando
para ela. Nas suas costas apareceram as palavras "AQUILO QUE EU SEI",
que se apagaram logo depois.
- Quieta, Cassiopé ia - disse Mestre Hora, sorrindo, sem ter olhado
para a tartaruga. - Nã o diga nada. Momo vai conseguir responder
sozinha.
Naturalmente, a menina leu o que tinha aparecido nas costas da
tartaruga e começou a imaginar o que signi icaria aquilo. O que
Cassiopé ia sabia? Ela sabia que Momo ia decifrar o enigma. Mas isso
nã o fazia sentido.
O que mais ela sabia? Cassiopé ia sempre sabia o que iria acontecer.
Ela sabia...
- O futuro! - exclamou Momo. - O primeiro nã o está , só vai chegar
depois... é o futuro!
Mestre Hora balançou a cabeça, con irmando.
- E o segundo - continuou Momo - nã o está , já foi embora... entã o é o
passado!
Mestre Hora con irmou mais uma vez, sorrindo satisfeito.
- Mas agora - continuou a menina, pensativa -, agora está mais difı́cil.
Quem será o terceiro? E o menor dos trê s, sem ele os dois outros nã o
existiriam... e é o ú nico que está em casa.
q
Re letiu um pouco e gritou de repente:
- E agora! E este momento! O passado sã o os momentos que já se
foram e o futuro sã o os que ainda estã o para vir. E os dois nã o
existiriam se nã o houvesse o presente. E isso!
As bochechas de Momo estavam coradas de entusiasmo:
- Mas o que quer dizer o que vem a seguir? "E ele existe porque o
primeiro vira o segundo." Ah, já sei, signi ica que o presente só existe
porque o futuro vira passado.
Olhou para Mestre Hora, admirada.
- E verdade, e eu nunca tinha pensado nisso antes. Mas entã o o
momento presente na verdade nã o existe, só existem o passado e o
futuro? Por exemplo, este momento... falei nele e já se tornou passado.
Agora també m entendo o que quer dizer: "Se você olhar bem nã o vai
ver o terceiro, só vai enxergar o segundo ou o primeiro." També m estou
entendendo o resto, pois podemos pensar que existe apenas um dos
trê s irmã os, isto é , o presente, ou só passado e futuro. Ou nenhum, pois
um só existe se existirem os outros dois! Nossa, tudo isso é de virar a
cabeça!
- Mas o enigma ainda nã o acabou - disse Mestre Hora. Qual é o
grande reino que os trê s governam juntos, e o que é eles mesmos?
Momo voltou-se para ele, atordoada. O que seria? O que seria o
passado, o presente e o futuro, tudo junto?
Momo olhou toda a sala imensa à sua volta. Seu olhar percorreu os
milhares e milhares de reló gios e, de repente, sua expressã o se
iluminou.
- O tempo! - ela gritou, batendo palmas. - E o tempo! Isso mesmo, o
tempo!
E Momo pulava de alegria.
- E agora me diga que casa é essa em que moram os trê s irmã os? -
indagou Mestre Hora.
- E o mundo - respondeu a menina.
- Muito bem - exclamou Mestre Hora, batendo palmas també m. -
Parabé ns, Momo!
Você é ó tima em enigmas! Gostei de ver!
- Eu també m! - disse a criança, que no fundo perguntava a si mesma
por que Mestre Hora teria icado tã o contente por ela ter conseguido
resolver o enigma.
Continuaram passeando pela sala cheia de reló gios. Mestre Hora lhe
mostrava muitas outras coisas interessantes, mas Momo ainda estava
com o pensamento voltado para o enigma.
- Diga-me uma coisa - perguntou ela, inalmente -, na verdade, o que
é o tempo?
- Você mesma acabou de descobrir isso! - respondeu Mestre Hora.
- Nã o - explicou Momo -, o tempo em si. Deve ser alguma coisa!
A inal, ele existe. O que é realmente o tempo?
- Seria bom se você també m conseguisse responder a isso sozinha -
disse Mestre Hora.
Momo icou muito tempo pensativa.
- Ele existe - murmurou ela, absorta -, isso é certo. Mas nã o se pode
pegar o tempo. Segurá -lo també m nã o. Será como uma espé cie de
perfume? Mas é uma coisa que está sempre passando, deve vir de
algum lugar. Será que é como o vento? Nã o! Já sei! Talvez seja uma
espé cie de mú sica, que a gente nã o ouve porque ela está sempre ali.
Mas acho que eu já a ouvi, muito baixinho.
- Eu sei - con irmou Mestre Hora -, e foi por isso que consegui
chamar você .
- Mas deve haver mais alguma coisa - continuou Momo, sempre
re letindo. - A mú sica veio de muito longe e, no entanto, ressoou bem lá
no fundo, dentro de mim. Talvez com o tempo aconteça a mesma coisa.
A menina se calou, confusa, e acrescentou, meio perdida.
- Quer dizer, talvez seja como as ondas que aparecem na á gua por
causa do vento.
Ah, vai ver que só estou falando bobagem!
- Pois eu acho que você disse muito bem! - exclamou Mestre Hora. - E
por isso vou contar um segredo: daqui, da Casa de Lugar Nenhum, no
im do Beco do Nunca, é que sai todo o tempo dos seres humanos.
Momo olhou-o, toda admirada.
- E você mesmo quem faz o tempo? - ela perguntou baixinho.
Mestre Hora sorriu novamente:
- Nã o, minha menina, eu sou apenas o distribuidor. Minha tarefa é
dar a cada ser humano o tempo que lhe cabe.
- Será que entã o nã o seria fá cil você dar um jeito para que os ladrõ es
de tempo nã o pudessem mais roubar tempo das pessoas? - perguntou
Momo.
- Nã o - respondeu Mestre Hora -, pois sã o as pró prias pessoas que
devem decidir o que fazer com seu tempo. També m sã o elas que devem
defendê -lo. Eu só o distribuo.
Momo lançou um olhar à sua volta e perguntou:
- Por isso você tem tantos reló gios? Um para cada pessoa, é ? - Nã o,
Momo - respondeu Mestre Hora. - Esses reló gios sã o meus objetos de
estimaçã o. Sã o apenas uma imitaçã o muito imperfeita de algo que cada
ser humano tem no peito.
Pois, assim como você s tê m olhos para enxergar a luz, ouvidos para
ouvir sons, també m tê m um coraçã o para perceber o tempo. Todo o
tempo que nã o é percebido pelo coraçã o é tã o desperdiçado quanto
seriam as cores do arco-ı́ris para um cego ou o canto de um pá ssaro
para um surdo. Infelizmente, poré m, existem alguns coraçõ es cegos e
surdos, que nada percebem, apesar de baterem.
- E quando meu coraçã o parar de bater? - perguntou Momo.
- Entã o - respondeu Mestre Hora -, o tempo terminará para você ,
minha menina.
Podemos dizer també m que é você quem volta atravé s do tempo,
atravé s de todos os seus dias e noites, meses e anos. Você caminha de
volta atravé s de sua vida, até chegar ao grande portã o redondo de
prata, pelo qual certo dia você entrou. Entã o você volta a sair.
- E o que há do outro lado?
- Você estará no lugar de onde vem a mú sica que já ouviu algumas
vezes, bem baixinho. Mas entã o você fará parte dela, será um som dela.
Mestre Hora olhou a criança, perscrutando-a.
- Acho que você ainda nã o é capaz de entender isso.
- Acho que sou, sim - murmurou Momo.
Lembrou-se de sua caminhada pelo Beco do Nunca, quando vivera
tudo de trá s para frente, e perguntou: - Você é a morte?
Mestre Hora sorriu e icou em silê ncio por alguns momentos, antes
de responder
- Se as pessoas soubessem o que é a morte, nã o teriam medo dela. E
se nã o tivessem medo da morte, ningué m mais poderia roubar seu
tempo de vida.
- Entã o precisamos dizer isso a elas - sugeriu Momo.
- Você acha? - indagou Mestre Hora - Digo isso a elas a cada hora que
lhes entrego. Mas parece que nã o querem nem ouvir. Preferem
acreditar em quem lhes dá medo. Isso també m é um enigma
- Eu nã o tenho medo - a irmou Momo.
Mestre Hora meneou a cabeça devagar. Olhou demoradamente para a
menina e, inalmente, perguntou.
- Você quer ver de onde vem o tempo?
- Quero - sussurrou ela.
- Pois vou levá -la até lá - disse Mestre Hora. - Mas naquele lugar é
preciso icar em silê ncio. Você nã o vai poder perguntar nem dizer nada.
Promete?
Momo balançou a cabeça a irmativamente.
Mestre Hora se abaixou e ergueu a menina, segurando-a irmemente
nos braços. De repente ele lhe pareceu muito alto e incrivelmente velho,
nã o um homem velho como os outros, mas como se fosse uma á rvore
secular ou uma montanha de tempos remotos. Mestre Hora cobriu os
olhos da menina com as mã os, e ela teve a sensaçã o de que uma neve
leve e fresca lhe caı́a sobre o rosto.
Momo tinha a impressã o de que ele a levava por um corredor longo e
escuro. Mas sentia-se protegida e nã o tinha medo. No começo, pensou
estar ouvindo as batidas de seu pró prio coraçã o, mas logo lhe pareceu,
cada vez mais, que era o eco dos passos de Mestre Hora.
O percurso foi longo, até que por im Mestre Hora pô s a menina no
chã o. Seu rosto estava bem junto ao dela, olhava-a com os olhos bem
abertos e estava com um dedo sobre os lá bios. Depois endireitou-se e
deu um passo atrá s. Um crepú sculo dourado envolveu a menina. .
Aos poucos, Momo viu que estava sob uma cú pula imensa, que lhe
parecia do tamanho da abó bada celeste. E aquela cú pula gigantesca era
toda de puro ouro.
No alto, bem no centro, havia uma abertura redonda. Por ela entrava
uma verdadeira coluna de luz, que caı́a verticalmente sobre um lago,
igualmente redondo, cuja á gua preta, lisa e imó vel, formava como que
um espelho escuro.
Pouco acima da á gua, alguma coisa cintilava à luz da coluna, como
uma estrela brilhante. Movia-se com majestosa lentidã o, e Momo
reconheceu um pê ndulo enorme, que oscilava de um lado para outro
sobre o espelho preto do lago. Nã o estava preso a nada e pairava no ar
como se nã o tivesse peso.
Quando o pê ndulo estelar foi se aproximando lentamente da margem
do lago, um grande botã o de lor surgiu da á gua escura. Quanto mais
perto chegava o pê ndulo, mais o botã o se abria, até desabrochar
plenamente sobre o espelho de á gua.
Era a lor mais maravilhosa que Momo jamais tinha visto. Parecia ser
feita apenas de cores luminosas. Momo nem mesmo imaginara que
aquelas cores pudessem existir.
O pê ndulo estelar se deteve um instante sobre a lor e Momo
absorveu-se completamente naquela visã o, esquecendo-se de tudo o
mais à sua volta. O perfume da lor parecia-lhe uma coisa que sempre
havia desejado, sem saber o que era.
Aos poucos, poré m, devagar, muito devagar, o pê ndulo foi recuando.
Momo observou com espanto que, à medida que ele se distanciava, a
lor maravilhosa ia murchando. As pé talas iam caindo, uma apó s outra,
nas escuras profundezas.
Quando o pê ndulo chegou ao meio do lago, a linda lor tinha se
desmanchado inteira. Ao mesmo tempo, no entanto, do lado oposto, um
outro botã o começou a surgir da á gua. E, à medida que o pê ndulo se
aproximava dele, Momo viu desabrochar uma outra lor, ainda mais
bonita. A menina deu a volta ao lago, para apreciá -la mais de perto.
Era completamente diferente da lor anterior. Cores iguais à s suas
Momo també m nunca tinha visto, e pareciam até mais raras e preciosas
do que as da primeira lor. Seu perfume també m era outro, mais
delicioso ainda. Quanto mais Momo contemplava a lor, mais lindos
detalhes ela descobria.
També m desta vez, no entanto, o pê ndulo estelar afastou-se e toda
aquela maravilha se desfez e desapareceu, caindo, pé tala por pé tala, na
insondá vel profundeza do lago.
Devagar, muito devagar, o pê ndulo se deslocou para a outra margem,
mas nã o exatamente para o mesmo ponto de antes. Lá , a um passo do
lugar da primeira lor, um novo botã o começou a surgir e foi
desabrochando aos poucos.
Momo achou aquela lor a mais bela de todas. Era a lor de todas as
lores, uma maravilha ú nica!
Momo teve vontade de chorar alto quando viu que també m aquela
beleza perfeita começou a se desmanchar e a mergulhar nas
profundezas escuras. Mas lembrou-se da promessa que izera a Mestre
Hora e icou em silê ncio.
Na outra margem, o pê ndulo també m chegou a um passo do lugar
anterior, e uma nova lor surgiu da á gua escura.
Aos poucos, Momo foi compreendendo que cada nova lor era bem
diferente da anterior e que sempre aquela que acabava de desabrochar
parecia ser a mais bonita de todas.
Sempre caminhando em torno do lago, ia vendo surgir e desaparecer
uma lor apó s a outra. Tinha a impressã o de que nunca se cansaria de
assistir à quele espetá culo.
Pouco a pouco, no entanto, a menina percebeu que estava
constantemente acontecendo uma outra coisa, que ela ainda nã o havia
notado.
A coluna de luz que descia do alto da cú pula até embaixo nã o era
apenas de se ver. Momo també m começou a ouvi-la.
No princı́pio era apenas um sussurro, como o som do vento
soprando na copa das á rvores. Depois o ruı́do tornou-se mais intenso,
como o de uma cachoeira ou do estrondo das ondas do mar se
quebrando contra os rochedos.
Momo foi percebendo cada vez mais nitidamente que aquele barulho
era constituı́do por inú meros sons, que iam se combinando de
maneiras diferentes, se transformando e compondo harmonias sempre
novas. Era mú sica e, ao mesmo tempo, uma coisa completamente
diferente.
De repente, Momo reconheceu: era a mú sica que ela à s vezes ouvia
muito ao longe e baixinho, quando se punha a escutar o silê ncio sob o
cé u estrelado.
Os sons se tornaram mais nı́tidos e esplendorosos. A menina
começou a perceber que era aquela luz sonora que fazia surgir as lores
das profundezas do lago, uma a partir da outra, cada uma delas com
uma forma ú nica e preciosa.
Quanto mais ouvia, mais claramente conseguia distinguir cada uma
das vozes. Mas nã o eram vozes humanas. Soavam como se fossem o
cantar do ouro, da prata e de todos os outros metais. Alé m disso, no
fundo, emergiam vozes de um tipo bem diferente, de uma distâ ncia
incalculá vel e de uma potê ncia indescritı́vel.
Tornavam-se cada vez mais claras e Momo passou a ouvir palavras.
Eram palavras numa lı́ngua que a menina jamais ouvira e que, no
entanto, ela compreendia. O
Sol, a Lua, os planetas e todas as estrelas lhe revelavam seus nomes
verdadeiros. E os nomes continham o que faziam e como atuavam
juntos para que cada uma daquelas lores-das-horas pudessem surgir e
desaparecer.
Subitamente Momo compreendeu que aquelas palavras se dirigiam a
ela! O mundo todo, desde a mais longı́nqua estrela, voltava-se para ela
como um ú nico grande rosto, inimaginá vel, olhando-a e falando com
ela.
E foi tomada por algo maior do que o medo.
Nesse instante, viu Mestre Hora, que acenava para ela em silê ncio.
Momo correu para ele. Mestre Hora tomou-a nos braços e ela escondeu
o rosto no seu peito.
Mais uma vez ele cobriu os olhos da menina com as mã os, com a
leveza da neve.
Tudo se tornou escuro e silencioso, e Momo sentiu-se protegida. Ele
a carregou de volta pelo longo corredor.
Quando chegaram novamente à salinha entre os reló gios, ele deitou a
menina no sofá .
- Mestre Hora - murmurou Momo -, nunca pensei que o tempo dos
homens fosse tã o... - procurava a palavra certa mas nã o conseguia
encontrar. - Tã o grande - ela disse, inalmente.
- O que você viu e ouviu, Momo, nã o foi o tempo de todos os homens,
foi apenas o seu tempo - replicou Mestre Hora. - Em todas as pessoas
existe um lugar como esse em que você esteve há pouco. Mas só pode
chegar a ele quem se deixa levar por mim. E també m nã o se pode vê -lo
com olhos comuns.
- Mas onde é que eu estive?
- No seu pró prio coraçã o - respondeu Mestre Hora, acariciando seus
cabelos emaranhados.
- Mestre Hora - disse ela, baixinho -, posso trazer meus amigos até
você ?
- Nã o - respondeu ele. - Por enquanto nã o é possı́vel.
- E quanto tempo posso icar com você ?
- Até você mesma sentir que deve voltar para seus amigos, minha
menina.
- Posso contar a eles o que as estrelas disseram? - Pode, mas você
nã o será capaz.
- Por que nã o?
- Primeiro as palavras para isso precisam crescer dentro de você
- Mas eu queria contar para todos eles! Queria ser capaz de repetir
para eles o que as vozes cantavam. Acho que entã o tudo icaria bem de
novo
- Se você quer isso de verdade, Momo, precisa saber esperar.
- Nã o me importo de esperar.
- Esperar, minha menina, como uma semente que ica adormecida na
terra durante as quatro estaçõ es de um ciclo solar, antes de poder
brotar. E o tempo que vai levar para as palavras crescerem em você .
Você quer?
- Quero! - murmurou Momo.
- Entã o durma - disse Mestre Hora, acariciando-lhe os olhos. -
Durma!
Momo respirou fundo e adormeceu, feliz.
Terceira Parte
AS FLORES-DAS-HORAS

Capítulo Treze
UM DIA LÁ, UM ANO AQUI

Momo acordou e abriu os olhos. Levou algum tempo para saber onde
estava. Ficou muito admirada ao perceber que voltara aos degraus
cobertos de capim do velho an iteatro. Será , entã o, que nã o tinha estado
na Casa de Lugar Nenhum com Mestre Hora? Como era possı́vel ter
voltado tã o depressa?
Estava escuro e frio. No horizonte, a leste, surgiam os primeiros
clarõ es cinzentos do amanhecer. Momo estremeceu e se aconchegou
mais no casaco enorme.
Lembrava-se nitidamente de tudo o que tinha vivido: da caminhada
noturna com a tartaruga atravé s da grande cidade, daquela regiã o de
estranha luminosidade e casas de um branco ofuscante, do Beco do
Nunca, cia sala cheia de reló gios, do chocolate, dos pã ezinhos com mel,
de cada palavra da conversa com Mestre Hora e do enigma que ele
propusera. Acima de tudo, poré m, lembrava-se de tudo o que vivera
debaixo da cú pula de ouro. Bastava-lhe fechar os olhos para rever o
inimaginá vel esplendor colorido das lores. As vozes do Sol, cia Lua e
das estrelas ainda ressoavam em seus ouvidos, com tanta nitidez que
ela até conseguia repetir suas melodias.
Ao fazê -lo, dentro dela se formavam palavras, as quais realmente
exprimiam o perfume das lores e suas cores nunca vistas. As vozes, na
memó ria de Momo, é que diziam as palavras. E, com essa pró pria
lembrança, aconteceu algo maravilhoso! Momo encontrava dentro de si
nã o só o que tinha visto e ouvido.
Havia mais, e cada vez mais. Como de uma fonte má gica, brotavam
milhares de imagens de lores-das-horas. E a cada lor soavam novas
palavras. Era só Momo ouvir com atençã o dentro de si para ser capaz de
repeti-las e até de cantar com elas. Falavam de coisas misteriosas e
lindas. A medida que pronunciava as palavras, Momo ia entendendo seu
signi icado.
Entã o era isso que Mestre Hora queria dizer, ao adverti-la de que
antes era preciso que as palavras crescessem dentro dela. Ou teria sido
tudo apenas um sonho? Será que tudo aquilo, na verdade, nã o tinha
acontecido?
Enquanto ainda re letia, Momo viu alguma coisa rastejando lá
embaixo, no meio da arena. Era uma tartaruga à procura de plantas
comestı́veis.
A menina desceu correndo ao seu encontro e se agachou ao lado
dela. A tartaruga levantou a cabeça, deu uma rá pida olhada para a
menina, com seus velhı́ssimos olhos pretos, e voltou a comer
tranquilamente.
- Bom dia, tartaruga! - disse Momo. Nenhuma resposta apareceu na
carapaça.
- Foi você que me levou esta noite até o Mestre Hora? perguntou
Momo.
Mais uma vez, nã o houve resposta. Momo suspirou, desapontada
- Que pena - ela murmurou. - Entã o você é uma tartaruga comum e
nã o... ah, esqueci o nome. Era bonito, mas era comprido e raro. Eu
nunca tinha ouvido aquele nome antes.
"CASSIOPEIA" apareceu de repente, em letras levemente luminosas,
nas costas da tartaruga.
- Isso! - exclamou a menina, batendo palmas. - Era esse o nome!
Entã o é você !
Você é a tartaruga de Mestre Hora, nã o é ?
"QUEM MAIS PODERIA SER?"
- Por que nã o me respondeu de inı́cio?
"ESTOU TOMANDO CAFE DA MANHA", apareceu na carapaça.
- Desculpe - disse Momo. - Nã o queria atrapalhar. Só queria saber
como vim parar de volta aqui.
"SEU DESEJO", foi a resposta.
- Engraçado - observou Momo -, nã o consigo me lembrar de nada. E
você , Cassiopé ia, por que nã o icou com Mestre Hora em vez de voltar
para perto de mim?
"MEU DESEJO", apareceu na carapaça.
- Muito obrigada! E muita gentileza sua! - disse Momo.
"DE NADA!", foi a resposta Com isso a tartaruga considerou a
conversa encerrada e, rastejando, voltou ao café da manhã que tinha
sido interrompido.
Momo sentou-se nos degraus de pedra, pensando com alegria em
Beppo, em Gigi e nas crianças. Escutava de novo a mú sica que
continuava sempre ressoando dentro dela. Embora estivesse
completamente sozinha e ningué m a ouvisse, foi cantando cada vez
mais alto e com maior ı́mpeto as melodias e as palavras, dirigindo-se ao
sol nascente. Parecia-lhe agora que os pá ssaros, os grilos, as á rvores e
até as velhas pedras estavam ouvindo.
Nã o podia saber que, por muito tempo, nã o teria outros ouvintes.
Nã o podia saber que era inú til esperar por seus amigos, que estivera
ausente durante muito tempo e que, enquanto isso, o mundo havia
mudado muito.
Com Gigi Guia, os homens cinzentos nã o tiveram muito trabalho.
Tudo começara um ano atrá s, um pouco depois do dia em que Momo
havia desaparecido de repente, sem deixar vestı́gios. O jornal publicou
um longo artigo sobre Gigi, com o tı́tulo "O ú ltimo verdadeiro contador
de histó rias".
Indicava-se quando e onde ele poderia ser encontrado, e dizia-se que
era uma atraçã o que ningué m podia perder.
A notı́cia atraiu ao velho an iteatro um grande nú mero de pessoas,
que queriam ver e ouvir Gigi. E claro que Gigi nã o tinha nada contra.
Contava, como sempre, as histó rias que lhe vinham à cabeça e, no im,
passava o seu quepe, que se enchia cada vez mais de moedas e notas de
dinheiro. Logo ele foi contratado por uma agê ncia de turismo, que
ainda lhe pagava uma quantia ixa para apresentá -lo como atraçã o. Os
turistas chegavam em grandes ô nibus, e em pouco tempo Gigi viu-se
obrigado a estabelecer horá rios regulares para que todos aqueles que
pagassem tivessem, de fato, oportunidade de ouvi-lo.
Naquela é poca Gigi sentia falta de Momo, pois suas histó rias estavam
perdendo as asas. No entanto, continuava se recusando a contar duas
vezes a mesma histó ria, mesmo que lhe oferecessem o dobro do
dinheiro.
Depois de alguns meses, já nã o precisava ir ao velho an iteatro e
passar o quepe no inal. Tinha sido descoberto pelo rá dio e logo em
seguida pela televisã o.
Contava suas histó rias trê s vezes por semana, para milhares de
ouvintes, e ganhava muito dinheiro.
Nã o morava mais perto do an iteatro. Tinha ido para um outro
bairro, completamente diferente, onde só morava gente rica e famosa.
Alugara uma casa grande e moderna, que icava no meio de um parque
muito bem cuidado. Já nã o se chamava Gigi, mas Girolamo.
Naturalmente, acabou deixando de inventar sempre novas histó rias,
como fazia antes. Nã o tinha mais tempo para isso. Começou a poupar
suas ideias. As vezes, fazia uma só ideia render cinco histó rias
diferentes. E, quando até isso deixou de ser su iciente para atender à s
solicitaçõ es cada vez, maiores, certo dia ele fez uma coisa que nã o devia
ter feito: contou uma das histó rias que pertenciam só a Momo.
As pessoas engoliram a histó ria rapidamente, como sempre
acontecia, e logo a esqueceram. Mas continuavam a exigir dele cada vez
mais histó rias. Gigi estava tã o atrapalhado com aquele ritmo que, sem
perceber, foi entregando, uma atrá s da outra, todas as histó rias que
pertenciam apenas a Momo. No entanto, depois de contar a ú ltima,
sentiu-se completamente vazio, esgotado, sem capacidade para
inventar mais nada.
Com medo de que seu sucesso pudesse acabar, começou entã o a
repetir todas as suas histó rias anteriores, com outros nomes e com
ligeiras modi icaçõ es. O mais espantoso é que ningué m parecia
perceber. Pelo menos, ele nã o deixou de ser procurado.
Gigi agarrou-se a isso como um afogado a uma tá bua de salvaçã o.
Estava rico e famoso e, a inal, aquele sempre tinha sido seu sonho.
Mas à s vezes, à noite, deitado em sua cama, debaixo do acolchoado
de seda, tinha saudades dos velhos tempos, quando vivia perto de
Momo, do velho Beppo, das crianças, e era realmente capaz de contar
histó rias.
Poré m nã o havia como voltar atrá s, mesmo porque Momo
desaparecera para sempre. A princı́pio, Gigi ainda tinha tentado
seriamente encontrá -la; agora já nã o lhe sobrava tempo para isso.
Tinha trê s e icientes secretá rias que irmavam seus contratos, para
quem ele ditava suas histó rias, que se encarregavam de sua divulgaçã o
e organizavam sua agenda de compromissos. E nessa agenda nunca
havia lugar para encaixar as buscas a Momo.
Do antigo Gigi restava muito pouco. Um dia, poré m, ele juntou esse
pouco e resolveu re letir sobre si mesmo. Tornara-se um homem cujas
palavras eram levadas em conta e ouvidas por milhõ es de pessoas.
Quem seria mais indicado para lhes dizer a verdade? Queria lhes
contar tudo a respeito dos homens cinzentos! Diria que nã o se tratava
de mais uma histó ria inventada por ele e pediria a todos os ouvintes
que o ajudassem a encontrar Momo.
Tomou essa resoluçã o uma noite em que sentiu saudade dos velhos
amigos. Quando o dia amanheceu, sentou-se em sua grande
escrivaninha, para esboçar seu plano.
Ainda nem tinha escrito uma palavra, quando o telefone tocou. Gigi
atendeu e icou duro de pavor
Uma voz estranha, inexpressiva, cinzenta, começou a lhe falar.
Enquanto ouvia, sentiu um frio subir por ele, como se viesse da medula
de seus ossos.
- Desista disso - dizia a voz -, para seu pró prio bem.
- Quem está falando? - perguntou Gigi.
- Você sabe perfeitamente quem é - respondeu a voz. Nã o precisamos
nos apresentar. Até agora você ainda nã o teve o prazer de nos
encontrar, mas há muito tempo já nos pertence de corpo e alma. E nã o
vá dizer que nã o sabia!
- O que você s querem de mim?
- Seus planos nã o nos agradam. Seja bonzinho e desista, certo?
Gigi apelou para toda a sua coragem.
- Nã o - ele disse -, nã o vou desistir de coisa nenhuma. Nã o sou mais o
insigni icante e desconhecido Gigi Guia. Agora sou um grande homem.
Veremos se você s podem me impedir de fazer o que quer que seja A voz
deu uma risada sem expressã o e, subitamente, Gigi começou a bater os
dentes
- Você nã o é ningué m - continuou a voz - Nó s o izemos. Você é um
boneco de borracha. Nó s o enchemos de ar. Mas, se nos contrariar,
iremos esvaziá -lo. Ou será que você pensa que deve tudo o que é hoje
ao seu talento medı́ocre?
- E! E isso mesmo que eu penso - respondeu Gigi, rouco.
- Coitadinho do Gigi! - disse a voz. - Você é e sempre foi um româ ntico
sonhador. Antes era o prı́ncipe Girolamo fantasiado de Gigi, o pobre
diabo; hoje é o pobre diabo Gigi fantasiado de prı́ncipe Girolamo.
Contudo, você deveria ser grato a nó s, que izemos seu sonho se
realizar
- Nã o... nã o é verdade! - gaguejou Gigi. - E mentira!
- Meu Tempo! - exclamou a voz, com outro riso inexpressivo. - Justo
você vem nos falar em verdade? Antes você sempre dizia tantas frases
bonitas a respeito do que era ou nã o era verdade! Ah, nã o, pobre Gigi,
nem ica bem você querer invocar a verdade. Você icou famoso porque
nó s o ajudamos com suas mentiras.
Certamente nã o é a pessoa indicada para discorrer sobre a verdade.
Por isso, desista!
- O que você s izeram com Momo? - perguntou Gigi, num sussurro.
- Ora, nã o ocupe essa sua cabeça virada com isso. A ela você nã o
poderá mais ajudar se contar tudo a nosso respeito. A ú nica coisa que
irá conseguir será fazer sua fama desaparecer tã o depressa quanto
surgiu. Evidentemente, a decisã o é sua! Se izer questã o, nã o
poderemos impedi-lo de bancar o heró i e se arruinar. No entanto, nã o
poderá esperar que continuemos a lhe dar nossa proteçã o, caso você se
mostre tã o ingrato. Nã o é mais agradá vel ser rico e famoso?
- Claro - respondeu Gigi, quase sufocando.
- Está vendo? Entã o deixe-nos fora desse jogo, ouviu? E melhor
continuar contando à s pessoas o que elas querem ouvir.
- Mas como posso fazer isso - perguntou Gigi, com esforço -, agora
que estou sabendo de tudo?
- Vou lhe dar um conselho: nã o se leve tã o a sé rio, rapaz! Realmente,
você nã o pode fazer nada. Pensando assim, poderá continuar agindo
como fez até hoje.
- E - murmurou Gigi, os olhos itos no espaço -, pensando assim...
Ouviu-se um estalido e Gigi també m colocou o fone no gancho.
Debruçou-se sobre o tampo da escrivaninha imensa, escondeu o rosto
entre os braços e foi sacudido por soluços silenciosos.
Desse dia em diante, Gigi perdeu toda a dignidade. Abandonou seus
planos e continuou como até entã o, mas sentia-se um traidor. Em
outros tempos, a imaginaçã o o conduzia por caminhos acidentados e
ele a seguia despreocupado.
Agora, no entanto, ele mentia!
Tornara-se um fantoche, um palhaço para divertir o pú blico. Sabia
disso e começou a odiar sua pro issã o. Suas histó rias iam icando cada
vez mais bobas ou sentimentaló ides.
No entanto, isso nã o prejudicava seu sucesso. Pelo contrá rio, diziam
que era seu novo estilo, e muitos tentavam imitá -lo. Ele se tornou moda.
Gigi, poré m, nã o estava feliz. Sabia agora a quem devia tudo aquilo. Nã o
ganhara nada. Perdera tudo.
Mas continuava correndo no seu carro de um compromisso para
outro, voava nos aviõ es mais velozes e, onde quer que estivesse, nã o
parava de ditar para suas secretá rias as mesmas velhas histó rias, com
alguma roupagem diferente. Todos os jornais comentavam sua
extraordiná ria "fecundidade literá ria".
Assim o sonhador Gigi transformou-se no mentiroso Girolamo.
Para os homens cinzentos, foi bem mais difı́cil lidar com Beppo
Varredor.
Depois da noite em que Momo tinha desaparecido, sempre que o
trabalho permitia ele se sentava no an iteatro e icava à espera da
menina. Sua preocupaçã o e seus cuidados aumentavam de dia para dia.
Finalmente, nã o suportando mais o peso daquela ansiedade, apesar de
todas as justas objeçõ es de Gigi, resolveu ir à polı́cia.
"A inal", pensava ele, "é preferı́vel Momo ser levada para um
orfanato, mesmo com grades nas janelas, a icar prisioneira dos homens
cinzentos... caso ainda esteja viva. Se ela já fugiu uma vez do asilo, talvez
possa escapar de novo.
Pode até ser que eu consiga dar um jeito de ela nã o ser internada.
Mas primeiro precisamos encontrá -la."
Dirigiu-se entã o à delegacia de polı́cia mais pró xima, que icava nos
limites da cidade. Ficou por algum tempo parado diante da porta,
girando o boné entre as mã os, até que criou coragem e entrou.
- O que deseja? - perguntou o policial, ocupado em preencher um
longo e complicado formulá rio.
Beppo demorou um pouco até conseguir pronunciar estas palavras:
- Deve ter acontecido uma coisa terrı́vel.
- Ah, é ? - disse o policial, sempre escrevendo. - Do que se trata?
- De nossa pequena Momo - respondeu Beppo.
- E uma criança?
- E. Uma menina.
- E sua ilha?
- Nã o - replicou Beppo, confuso -, ou melhor, sim. Mas nã o sou seu
pai.
- Nã o, ou melhor, sim - disse o policial, mal-humorado. A inal, ela é
ilha de quem? Quem sã o seus pais?
- Ningué m sabe - murmurou o varredor.
- Onde ela foi registrada?
- Registrada? Bem, todos nó s conhecemos a menina.
- Entã o nã o foi registrada! - disse o policial, suspirando. O senhor
sabe que isso é proibido? Onde estamos, a inal? Com quem mora essa
criança?
- Com ela mesma, quer dizer, no velho an iteatro. Mas nã o mora mais.
Ela sumiu.
- Um momento - pediu o policial -, se entendi bem, naquelas ruı́nas
morava uma menina vadia chamada... como é mesmo?
- Momo - respondeu Beppo.
O policial começou a escrever tudo.
- ... chamada Momo. Momo de quê ? O nome completo, por favor!
- Só Momo.
O policial cocou o queixo e olhou para Beppo, contrariado.
- Assim nã o dá , meu caro. Estou querendo ajudar, mas nã o posso
redigir um relató rio desse jeito. Entã o me diga primeiro o nome do
senhor.
- Beppo.
- Beppo de quê ?
- Beppo Varredor.
- Quero saber o nome, nã o a pro issã o.
- Mas é as duas coisas - respondeu Beppo, humildemente. O policial
largou a caneta e escondeu o rosto entre as mã os.
- Meu Deus do cé u! - murmurou ele, desesperado. - Por que justo eu
estou de serviço?
Depois ele se endireitou, sorriu animadoramente para o velho e
falou, com a mansidã o de um enfermeiro:
- Vamos deixar os dados pessoais para depois. Agora conte tudo
direitinho, do começo ao im.
- Tudo? - indagou Beppo, na dú vida.
- Tudo o que vem ao caso - respondeu o policial. - Estou sem tempo,
preciso preencher esta montanha de formulá rios até meio-dia. Estou no
im das minhas forças e dos meus nervos. Mas nã o se afobe, conte-me
tudo o que lhe vai no coraçã o.
Recostou-se e fechou os olhos, com cara de um má rtir que está sendo
tostado na fogueira. E o velho Beppo começou, com aquele seu modo
minucioso, a narrar o caso todo, desde o imprevisto aparecimento de
Momo e seu extraordiná rio dom de saber ouvir até a cena dos homens
cinzentos, reunidos no depó sito de lixo, que ele tinha presenciado.
- Naquela mesma noite a menina desapareceu - Beppo concluiu.
O policial lançou-lhe um olhar demorado e desgostoso.
- Em outras palavras - disse ele, inalmente -, era uma vez uma
menina altamente inverossı́mil, de cuja existê ncia nã o temos provas,
que foi raptada por uma espé cie de fantasma, que todo o mundo sabe
que nã o existe, e levada sabe-se lá para onde. Mas també m isso nã o é
certo. Ora, e é com isso que a polı́cia tem que se ocupar?
- E, por favor! - disse Beppo.
A essa altura, o policial debruçou-se por cima da mesa e gritou,
furioso:
- Deixe-me cheirar o seu bafo.
Beppo nã o compreendeu a razã o da ordem, mas encolheu os ombros
e soprou documente no rosto do policial, que sacudiu a cabeça
negativamente, dizendo:
- Nã o, parece que bê bado o senhor nã o está .
- Nã o - disse Beppo, vermelho de indignaçã o -, nunca iquei bê bado.
- Entã o por que está me contando todas essas tolices? - perguntou o
policial. - Acha que a polı́cia é tã o idiota que vai acreditar nessas
histó rias absurdas?
- Acho, sim! - respondeu Beppo inocentemente.
Diante disso, o policial perdeu a paciê ncia. Pulou da cadeira e deu um
murro no formulá rio longo e complicado.
- Chega! - gritou ele, com a cara roxa. - Saia já daqui, antes que mande
prendê -lo por desacato à autoridade.
- Desculpe - murmurou Beppo -, nã o tive essa intençã o. Eu queria
dizer...
- Fora! - rugiu o policial. Beppo fez meia-volta e saiu.
Nos dias seguintes procurou vá rias outras delegacias, mas a cena era
sempre a mesma. Ou o colocavam na rua, ou o mandavam embora
gentilmente, ou o faziam esperar para depois se livrarem dele.
Certa vez, no entanto, Beppo acabou encontrando um policial mais
graduado, que tinha menos senso de humor que seus colegas. Ouviu-o
com a isionomia impassı́vel e declarou friamente:
- Esse velho é maluco. Precisamos saber se ele oferece perigo para o
pú blico.
Prendam-no numa cela.
Assim, Beppo foi obrigado a esperar meio dia na cadeia, até ser
levado para um carro por dois policiais. Atravessaram a cidade, até um
grande edifı́cio branco com grades nas janelas. Nã o era uma prisã o,
como Beppo pensou de inı́cio, mas um hospital para doentes mentais.
Ali ele passou por um exame completo. Os mé dicos especialistas e as
enfermeiras foram gentis com Beppo, nã o zombaram dele e nã o o
xingaram, pareciam até muito interessados na sua histó ria, pois teve de
repeti-la vá rias vezes. Embora nã o o contestassem, Beppo també m nã o
teve a impressã o de que estivessem acreditando nele. Nã o conseguiam
entendê -lo bem, mas també m nã o o deixavam ir embora.
Cada vez que ele perguntava quando poderia sair, diziam:
- Logo, mas ainda estamos precisando do senhor. Tente entender,
ainda nã o chegamos a um resultado, mas estamos investigando.
Beppo, imaginando que se tratava de investigaçõ es sobre o
desaparecimento de Momo, enchia-se de paciê ncia.
Deram-lhe uma cama num grande dormitó rio, onde havia muitos
outros pacientes.
Uma noite ele acordou e, sob a fraca luz noturna, percebeu algué m de
pé a seu lado. Primeiro distinguiu apenas a ponta de um charuto aceso;
depois reconheceu o chapé u-coco e a pasta cinza-chumbo que o vulto
trazia. Quando compreendeu que se tratava de um dos homens
cinzentos, sentiu um frio que o penetrou até a medula e já ia gritar por
socorro.
- Quieto! - ordenou uma voz cinzenta, saı́da da escuridã o. - Fui
encarregado de lhe fazer uma proposta. Escute e só responda quando
eu mandar! O senhor já teve ocasiã o de veri icar o alcance cio nosso
poder. Se quiser, poderá saber mais, dependerá só do senhor. As
histó rias que anda contando a nosso respeito absolutamente nã o nos
prejudicam, mas nã o nos agradam. Por outro lado, tem toda a razã o ao
supor que sua amiguinha Momo está em nosso poder. No entanto, pode
perder a esperança de encontrá -la. Isso jamais acontecerá . Seus
esforços para libertar a menina nã o a ajudam em nada. Pelo contrá rio,
ela é castigada a cada tentativa sua. Daqui por diante, portanto, pense
muito bem antes de fazer ou dizer qualquer coisa.
O homem cinzento soprou uma sé rie de ané is de fumaça e observou,
satisfeito, o efeito de seu discurso sobre o velho Beppo, que acreditou
em tudo.
- Serei o mais breve possı́vel, porque meu tempo també m é valioso -
continuou ele. - A proposta que lhe fazemos é a seguinte: Momo voltará ,
desde que o senhor nunca mais deixe escapar uma só palavra sobre nó s
e nossas atividades. Alé m disso, a tı́tulo de perdas e danos, terá de nos
dar cem mil horas de tempo poupado. Nã o se preocupe com o modo
pelo qual entraremos de posse desse tempo, isso é problema nosso. Ao
senhor caberá poupar esse tempo. Como o fará , é problema seu. Se
estiver de acordo, faremos com que dentro de poucos dias seja
mandado para casa; caso contrá rio, icará aqui para sempre e Momo
continuará conosco. Pense bem! Só faremos esta proposta generosa
uma vez! E entã o?
Beppo engoliu em seco algumas vezes e, por im, resmungou:
- Concordo!
- Muito sensato! - disse o homem cinzento, satisfeito. Mas nã o
esqueça silê ncio absoluto e cem mil horas! Logo que as tivermos,
soltaremos Momo.
Portanto, comece seu trabalho o quanto antes.
Com isso, o homem cinzento saiu, deixando atrá s de si o toco do
charuto, que icou luzindo fracamente no escuro, como um fogo-fá tuo.
A partir daquela noite, Beppo nunca mais contou sua histó ria.
Quando lhe perguntavam por que tinha inventado tudo aquilo, encolhia
tristemente os ombros, em silê ncio. Alguns dias depois, mandaram-no
para casa.
Mas ele nã o foi para casa. Dirigiu-se para o grande edifı́cio onde, com
seus companheiros, costumava apanhar a vassoura e o carrinho de
mã o. Pegou a vassoura, foi para a grande cidade e começou a varrer.
Mas já nã o varria no ritmo de antes, a cada passo uma respirada, a
cada respirada uma varrida. Fazia tudo depressa e sem amor pelo
trabalho, com a ú nica preocupaçã o de poupar as horas. Sabia com
dolorosa clareza que estava agindo contra suas mais profundas
convicçõ es, traindo os há bitos adquiridos durante toda a sua vida.
Sentia-se desgostoso e, se fosse apenas por ele, teria preferido morrer
de fome a ser in iel a si mesmo. Mas era por Momo, precisava resgatá -la,
e aquele era o ú nico jeito que conhecia de poupar tempo.
Varria dia e noite, sem voltar para casa. Quando o cansaço o
aniquilava, sentava-se num banco de praça ou mesmo no meio- io e
tirava um cochilo. Depois de um tempinho, levantava-se e continuava a
varrer. De vez em quando, sempre com a mesma pressa, comia qualquer
coisa. Nunca mais voltou à sua cabana, perto do an iteatro. Varreu
semanas e semanas, meses e meses. Chegou o outono, depois o inverno.
Beppo varria.
Depois chegou a primavera e de novo o verã o. Beppo quase nã o
percebeu. Varria, varria e varria, para juntar as cem mil horas exigidas.
As pessoas da grande cidade nã o tinham tempo para reparar no
velho varredor. As poucas que o notavam batiam na testa
signi icativamente, à s suas costas, ao vê -lo sem fô lego, empurrando a
vassoura, como se daquilo dependesse sua vida.
Para Beppo nã o era novidade que o considerassem maluco e nã o se
importava com isso.
Só quando algué m lhe perguntava o motivo de tanta pressa,
interrompia o trabalho por um instante, olhava assustado e ansioso
para o interlocutor e punha o dedo nos lá bios.
A tarefa mais difı́cil para os homens cinzentos era ajustar aos seus
planos as crianças que tinham sido amigas de Momo. Mesmo depois do
desaparecimento da menina, elas continuavam a se reunir no
an iteatro, sempre que podiam, e inventavam novas brincadeiras.
Algumas caixas e caixotes vazios eram o bastante para embarcarem em
longas e arriscadas viagens ao redor do mundo ou construı́rem castelos
e altas montanhas. Alé m disso, faziam planos para o futuro, contando
histó rias umas à s outras. En im, faziam tudo como se Momo ainda
estivesse ali. E, de fato, parecia mesmo que a menina continuava entre
elas.
Aliá s, aquelas crianças nunca duvidaram de que algum dia Momo
voltaria. Nunca falavam nisso, mas nem era preciso. A certeza silenciosa
as unia. Momo lhes pertencia e era seu eixo secreto, estando presente
ou nã o.
Os homens cinzentos nada puderam fazer contra isso.
Como nã o conseguiam in luenciar diretamente as crianças para fazê -
las esquecer Momo, tiveram que utilizar meios indiretos. Esses meios
indiretos eram os adultos, em cujas mã os estavam as decisõ es a
respeito das crianças. Nã o todos os> adultos, é claro, mas aqueles que
se prestavam ao papel de cú mplices... que, infelizmente, nã o eram
poucos. As armas utilizadas foram aquelas das pró prias crianças.
De repente, algumas pessoas lembraram-se daquela passeata das
crianças, com cartazes e faixas.
- Temos que tomar alguma providê ncia - diziam algumas -, nã o dá
para continuar assim. Há cada vez mais crianças que icam sozinhas,
entregues a si mesmas. Nã o se pode culpar os pais, pois o ritmo da vida
moderna nã o lhes deixa tempo para se ocuparem dos ilhos. O Estado é
que deve fazer alguma coisa!
- Desse jeito nã o pode continuar - diziam outras. - O trâ nsito nã o
pode ser prejudicado por crianças que icam perambulando pelas ruas.
O aumento do nú mero de acidentes causado por crianças está custando
caro, e esse dinheiro poderia ser aplicado de maneira mais ú til.
- Está tudo errado! - diziam ainda outras. - Crianças que nã o sã o
vigiadas acabam se corrompendo moralmente e tornam-se criminosas.
O Estado deve tomar providê ncias para que essas crianças sejam
recolhidas. E preciso criar estabelecimentos onde sejam educadas para
se tornarem membros ú teis e produtivos da sociedade.
E havia outras que alegavam. - As crianças sã o o material humano do
futuro. O futuro será a era da propulsã o a jato e dos cé rebros
eletrô nicos. Para operar essas má quinas, será necessá rio um
contingente de especialistas e operá rios de alto nı́vel. Mas, em vez de
prepararmos nossas crianças para o mundo de amanhã , deixamos que
desperdicem anos de seu precioso tempo com brincadeiras tolas. E uma
desgraça para a civilizaçã o e um crime contra a humanidade do futuro!
Tudo isso expressava as ideias dos poupadores de tempo, e, como
eram numerosos na grande cidade, conseguiram relativamente
depressa convencer as autoridades a tomar as devidas providê ncias.
Instalaram-se entã o os chamados "depó sitos de crianças" em todos
os bairros.
Eram grandes casas, onde os pais deixavam as crianças, quando nã o
tinham condiçõ es de cuidar delas, e iam buscá -las quando fosse
possı́vel. As crianças foram terminantemente proibidas de brincar na
rua, nos parques ou em qualquer outra parte. Quando alguma criança
era vista brincando em lugar pú blico, era levada imediatamente ao
depó sito mais pró ximo e os pais pagavam uma multa.
Os amigos de Momo nã o escaparam desse novo regulamento. Foram
separados uns dos outros, segundo o distrito a que pertenciam, e
colocados em diversos depó sitos.
Naturalmente, nã o lhes era permitido inventar brincadeiras a seu
gosto. Um supervisor determinava seus brinquedos, com os quais as
crianças deveriam sempre aprender algo de ú til. Ao mesmo tempo, com
certeza, desaprendiam a capacidade de serem felizes, de se
empolgarem e de sonhar.
Pouco a pouco, as crianças foram adquirindo a isionomia cios
poupadores de tempo Mal-humoradas, aborrecidas, hostis, faziam o
que se exigia delas. E, quando por acaso eram deixadas sozinhas, já nã o
conseguiam imaginar nada que pudessem fazer.
A ú nica coisa que lhes restava era fazer barulho. Nã o era um barulho
alegre, é claro, mas frené tico e agressivo.
Os homens cinzentos, poré m, nunca se aproximaram das crianças. A
rede que haviam tecido sobre a grande cidade era espessa e,
aparentemente, indestrutı́vel. Nem a criança mais esperta conseguiria
passar entre suas malhas. O plano dos homens cinzentos teve sucesso
absoluto. Tudo estava preparado para a volta de Momo.
O velho an iteatro fora inteiramente esquecido e abandonado.
Momo continuava sentada nos degraus de pedra, esperando por seus
amigos. Desde sua volta, esperou o dia todo. Mas nã o apareceu
ningué m. Ningué m!
O sol já estava se pondo. As sombras alongavam-se e o frio vinha
chegando.
Finalmente, Momo levantou-se. Estava com fome, pois ningué m tinha
pensado em lhe trazer alguma coisa para comer. Nunca tinha
acontecido isso antes. Até Gigi e Beppo pareciam ter-se esquecido dela.
Mas a menina achou que, com certeza, tinha sido apenas algum
contratempo, que se esclareceria no dia seguinte.
Desceu para junto da tartaruga, que já se tinha recolhido para dentro
da carapaça para dormir. Momo aproximou-se e bateu timidamente nas
suas costas; a tartaruga pô s a cabeça para fora e olhou para a menina.
- Desculpe - disse Momo -, sinto muito tê -la acordado, mas queria
saber por que nenhum dos seus amigos veio me ver hoje.
Na carapaça da tartaruga apareceu a resposta: "NAO SOBROU
NENHUM."
Momo leu as palavras sem compreender seu sentido.
- Bem - ela disse, entã o, cheia de con iança -, amanhã icarei sabendo.
Amanhã com certeza meus amigos virã o.
"NUNCA MAIS", foi a resposta de Cassiopé ia A menina icou olhando
por algum tempo as palavras fracamente iluminadas.
- O que você está querendo dizer? - perguntou ela inalmente,
amedrontada. - O que aconteceu com meus amigos?
"FORAM TODOS EMBORA", Momo leu. A menina sacudiu a cabeça.
- Nã o - ela disse, baixinho -, nã o pode ser verdade. Você deve estar
enganada, Cassiopé ia. Ainda ontem estavam todos aqui, naquela
manifestaçã o que deu era7nada.
"VOCE DORMIU MUITO TEMPO", luziu a resposta de Cassiopé ia.
Momo lembrou-se entã o do que lhe dissera Mestre Hora: teria de
dormir durante todo um ciclo solar, como a semente dorme na terra. Ao
concordar, ela nem pensara no tempo que aquilo representaria Só agora
começava a entender.
- Quanto tempo eu dormi? "UM ANO E UM DIA."
Momo demorou um pouco para compreender a resposta.
- Mas... Beppo e Gigi - ela gaguejou, inalmente -, os dois com certeza
ainda estã o me esperando.
"NAO SOBROU NINGUEM", apareceu na carapaça da tartaruga.
- Como é possı́vel? - Momo sussurrou, com os lá bios trê mulos. - Nã o
é possı́vel que tudo tenha sumido... tudo aquilo que...
E, lentamente, nas costas de Cassiopé ia surgiu uma palavra.
"PASSADO".
Pela primeira vez na vida, a menina sentiu plenamente o signi icado
daquela palavra. Seu coraçã o pesava mais do que nunca.
- Mas eu... - murmurou, desamparada - eu ainda estou aqui...
Teve vontade de chorar, mas nã o conseguia. Apó s alguns instantes,
sentiu que a tartaruga roçava seus pé s descalços. "EU ESTOU COM
VOCE!", apareceu em sua carapaça
- Sim - respondeu a menina, com um sorrisinho apertado -, você está
comigo, Cassiopé ia, e ico feliz com isso. Agora, vamos dormir.
g , p , g ,
Momo pegou a tartaruga e, passando com ela pelo buraco do muro,
carregou-a para seu quarto. A luz do crepú sculo, veri icou que tudo
estava conforme ela tinha deixado. (Beppo, na ocasiã o, arrumara a
desordem feita pelos homens cinzentos.) Só que estava tudo coberto de
pó e havia teias de aranha por toda parte.
Sobre a mesa feita de caixotes, havia uma carta, apoiada numa lata,
tudo coberto, també m, de teias de aranha.
"Para Momo", estava escrito.
O coraçã o da menina começou a bater mais depressa. Nunca tinha
recebido uma carta antes. Pegou-a e a revirou de todos os lados. Depois,
rasgou o envelope e tirou um papel de dentro dele.
"Querida Momo!", ela leu "Eu me mudei. Se você voltar, procure-me
logo. Estou muito preocupado com você . Sinto muito sua falta. Tomara
que nã o tenha acontecido nada com você . Se tiver fome, vá até o Nino.
Depois ele me manda a conta e eu pago tudo. Portanto, coma à vontade,
está ouvindo? O Nino vai lhe contar tudo. Continue sempre me
querendo bem! També m a quero muito bem!
Seu amigo de sempre
Gigi"
Momo demorou para soletrar a carta, embora Gigi tivesse se
esforçado para fazer uma letra bonita e clara. Quando ela inalmente
terminou, o ú ltimo clarã o do dia acabava de se apagar.
Momo sentia-se confortada.
Ergueu a tartaruga e colocou-a na cama, a seu lado. Enrolando-se no
cobertor empoeirado, murmurou baixinho:
- Está vendo, Cassiopé ia? A inal eu nã o estou sozinha.
Mas a tartaruga parecia já ter adormecido.
Momo, que ao ler a carta vira a imagem nı́tida de Gigi, nã o se dava
conta de que aquela carta estava ali havia quase um ano.
Deitou o rosto sobre a folha de papel. O frio tinha passado.
Capítulo Quatorze
MUITA COMIDA, POUCAS RESPOSTAS

No dia seguinte, Momo pô s a tartaruga debaixo do braço e saiu rumo ao


bar de Nino.
- Você vai ver, Cassiopé ia - dizia ela -, como agora tudo vai se
esclarecer Nino sabe onde estã o Gigi e Beppo. Entã o vamos chamar as
crianças e estaremos todos juntos de novo Pode ser que Nino e sua
mulher també m venham se reunir aos outros. Tenho certeza de que
você vai gostar dos meus amigos. Podemos até fazer uma festinha hoje
à noite. Vou contar a eles das lores, da mú sica, de Mestre Hora, de tudo.
Como estou contente em rever todos eles! Mas agora vou icar mais
contente ainda com um bom almoço. Estou com muita fome, sabia?
A menina continuou tagarelando, feliz. Volta e meia apalpava a carta
de Gigi, que ela levava no bolso do casaco. A tartaruga só a olhava com
seus velhos e sá bios olhos, sem dizer nada.
Momo começou a cantarolar enquanto caminhava e depois pô s-se a
cantar Mais uma vez, eram a melodia e as palavras das vozes que
ecoavam em sua memó ria tã o claramente quanto no dia anterior. Agora
ela sabia que nunca mais as esqueceria.
Mas, de repente, Momo parou. Estava na frente do bar de Nino. Num
primeiro momento, pensou que tivesse errado o caminho. No lugar da
casa velha, com as paredes manchadas pela chuva e a videira na porta,
via um caixote de concreto, meio alongado, com enormes janelas de
vidro ocupando toda a fachada. A rua fora asfaltada e tinha um trâ nsito
bastante intenso. Do outro lado, havia um posto de gasolina e, ao lado
dele, um imenso edifı́cio de escritó rios. Na frente do novo bar havia
muitos automó veis estacionados e, sobre sua porta, via-se uma placa:
RESTAURANTE EXPRESSO DO NINO
Momo entrou e, de inı́cio, icou meio desorientada. Ao longo da
janela havia uma ileira de mesas com tampos minú sculos e pernas
altas, parecendo cogumelos. Eram tã o altas que um adulto podia comer
em pé . Nã o havia mais cadeiras.
Do outro lado, havia uma extensa grade de barras de metal
brilhantes, uma espé cie de cerca. Atrá s dela, a pequenos intervalos,
dispunham-se compridas caixas de vidro, dentro das quais havia
sanduı́ches de queijo e presunto, salsichas, pratos com saladas, pudins,
bolos e muitas outras coisas que Momo nem conhecia.
Momo foi observando tudo aos poucos, pois o lugar estava lotado de
gente, e ela tinha a impressã o de estar sempre atrapalhando o caminho.
Para onde quer que fosse, era sempre empurrada para o lado ou para a
frente. A maioria das pessoas carregava bandejas com pratos e garrafas,
procurando um lugar nas mesinhas.
Atrá s das que já tinham se instalado e comiam apressadas, muitas
outras já esperavam para ocupar seus lugares De vez em quando, as
pessoas que esperavam trocavam palavras á speras com as que estavam
comendo. Na verdade, todo o mundo tinha cara de insatisfaçã o.
Entre a cerca e as vitrines de comida, uma imensa ila de gente se
arrastava lentamente. Cada um pegava da vitrine, aqui ou ali, um prato,
uma garrafa, um copo de papel.
Momo estava perplexa Cada um podia pegar o que quisesse! Nã o via
ningué m que impedisse as pessoas de pegar as coisas ou que lhes
pedisse para pagar. Talvez fosse tudo de graça! Isso explicaria aquela
multidã o!
A inal, depois de algum tempo, conseguiu enxergar Nino! Escondido
por trá s daquela gente toda, bem no im da ila de vitrines, ele estava
sentado diante de uma caixa, o tempo todo dedilhando, pegando
dinheiro e devolvendo troco. Entã o era para ele que as pessoas
pagavam! E, ao longo da cerca de metal, as pessoas eram conduzidas de
modo que nã o pudessem chegar à s mesinhas sem passar por Nino.
- Nino! - gritou Momo, tentando atravessar a multidã o. Ela acenava
com a carta de Gigi, mas Nino nã o conseguia ouvi-la. A caixa fazia muito
barulho e absorvia toda a sua atençã o.
Momo tomou coragem, passou por cima da cerca e conseguiu furar a
ila, aproximando-se de Nino. Ele levantou os olhos, porque algumas
pessoas estavam começando a achar ruim.
Quando viu Momo, a expressã o mal-humorada sumiu imediatamente
de seu rosto.
- Momo! - exclamou ele, radiante, como antigamente - Você voltou!
Que surpresa!
- Vamos em frente! - gritaram as pessoas da ila. - Essa menina que vá
para o im da ila, como nó s. Onde já se viu furar a ila desse jeito? Que
desaforo!
- Um momento! - gritou Nino, levantando as mã os num gesto de
apaziguamento. - Só um pouco de paciê ncia, por favor!
- Assim, qualquer um vai achar que pode fazer a mesma coisa! -
reclamou um dos que esperavam na ila. - Vamos, vamos! Essa menina
tem mais tempo do que nó s.
- Gigi vai pagar tudo para você ! - Nino sussurrou para ela, apressado.
- Pode pegar o que quiser. Mas vá para o im da ila, como os outros.
Você mesma está ouvindo!
Antes que Momo pudesse fazer qualquer pergunta, as pessoas a
afastaram aos empurrõ es. Assim, só lhe restou fazer como os outros.
Colocou-se no im da ila.
Numa prateleira pegou uma bandeja e, numa caixa, pegou garfo e
faca. Lentamente, passo a passo, foi sendo empurrada para a frente.
Como precisava das duas mã os para segurar a bandeja,
simplesmente colocou
Cassiopé ia em cima dela. Foi passando pelas vitrines e, aqui e ali, ia
pegando algumas coisas, que ela arrumava em volta da tartaruga.
Momo estava meio confusa, por isso acabou fazendo uma
combinaçã o meio estranha de comidas. Um pedaço de peixe assado, um
pã o com gelé ia, uma salsicha, um pastel e um copo de limonada.
Cassiopé ia, no meio daquilo tudo, achou melhor se recolher para dentro
da carapaça e nã o dar sua opiniã o.
Quando inalmente chegou de novo perto de Nino, Momo perguntou,
depressa:
- Você sabe onde está Gigi?
- Sei - disse Nino. - Nosso Gigi icou famoso. Temos muito orgulho
dele, pois, a inal, é um dos nossos. Sempre aparece na televisã o e
també m fala no rá dio. Os jornais sempre trazem alguma coisa sobre ele.
Há pouco tempo até fui procurado por dois repó rteres, que me pediram
para falar sobre o passado. Entã o contei aquela histó ria do Gigi, que
certa vez...
- Vamos avançar aı́ na frente! - gritaram algumas vozes da ila.
- Mas por que ele nã o aparece mais? - perguntou Momo.
- Ah, sabe como é - disse Nino, já meio nervoso -, ele nã o tem mais
tempo. Tem coisas mais importantes para fazer. E, de qualquer modo,
no velho an iteatro já nã o acontece mais nada.
- O que deu em você s? - gritaram outras vozes zangadas, lá de trá s. -
Estã o pensando que é bom icar aqui de pé a vida toda?
- Onde ele está morando agora? - perguntou Momo, insistente.
- Em algum lugar lá pelos lados do Monte Verde - respondeu Nino. -
Dizem que tem uma linda mansã o, no meio de um parque. Agora vá
andando, por favor.
Momo queria icar mais, pois ainda tinha muitas perguntas, mas foi
simplesmente empurrada para frente. Foi com sua bandeja para uma
das mesinhas de cogumelo e, de fato, depois de esperar um pouco,
conseguiu um lugar. Só que a mesa era muito alta e o tampo lhe chegava
à altura do nariz.
Quando conseguiu apoiar sua bandeja, as pessoas que estavam em
volta olharam enojadas para a tartaruga.
- Onde já se viu? - disse um homem para seu vizinho. Hoje em dia
somos obrigados a aguentar cada coisa!
E o outro resmungou:
- O que o senhor queria? Essa juventude de hoje...
Mas pararam por aı́ e nã o deram mais atençã o à menina. Para ela,
comer já foi uma tarefa bastante difı́cil, pois nã o conseguia enxergar o
prato. No entanto, como estava esfomeada, comeu tudo, até a ú ltima
migalha.
Já estava satisfeita, poré m queria se informar, de qualquer jeito,
sobre o que tinha acontecido com Beppo. Assim, voltou para a ila.
Temia que as pessoas voltassem a se zangar com ela se icasse apenas
ali no meio. Por isso, ao passar, voltou a pegar algumas coisas das
vitrines.
Quando inalmente chegou perto de Nino outra vez, perguntou:
- E onde está Beppo Varredor?
- Ele esperou por você durante muito tempo - explicou Nino,
apressado, pois tinha medo de que seus clientes voltassem a se irritar. -
Pensou que tivesse acontecido alguma coisa terrı́vel com você . Estava
sempre contando alguma coisa sobre uns tais homens cinzentos, nem
sei mais o que era. Você o conhece, ele sempre foi meio esquisito.
- Ei, você s dois aı́ na frente - gritou algué m da ila. - Estã o dormindo?
- Já , já , meu senhor - gritou Nino.
- E depois? - perguntou Momo.
- Depois foi alvoroçar a polı́cia - continuou Nino, nervoso, passando a
mã o pelo rosto. - Queria que procurassem você de qualquer jeito. Fiquei
sabendo que acabaram levando Beppo para uma espé cie de sanató rio.
Depois nã o soube mais nada.
- Outra vez? - gritou uma voz furiosa lá de trá s. - A inal, isto é
restaurante expresso ou sala de espera? Você s, aı́ na frente, estã o
fazendo reuniã o de famı́lia, é ?
- Mais ou menos - disse Nino, suplicante.
- Ele ainda está lá ? - perguntou Momo.
- Acho que nã o - respondeu Nino. - Quer dizer, parece que o deixaram
ir embora porque nã o era perigoso.
- Entã o onde é que ele está agora?
- Nã o tenho ideia, Momo, realmente. Por favor, agora vá andando.
Mais uma vez, Momo foi simplesmente empurrada pelas pessoas.
Voltou para uma mesinha de cogumelo, esperou até conseguir um lugar
e engoliu a refeiçã o que estava na bandeja. Dessa vez já nã o achou tudo
tã o gostoso. Mas nã o lhe passava pela cabeça deixar a comida no prato.
Agora ainda faltava saber o que tinha acontecido com as crianças, que
antes sempre iam visitá -la. O ú nico jeito era voltar para a ila, esperar,
passar pelas vitrines e encher a bandeja de comida, para que as pessoas
nã o se zangassem com ela. Finalmente, chegou de novo até Nino.
- E as crianças? - perguntou. - O que aconteceu com elas?
- Está tudo diferente - explicou Nino, que tinha começado a suar ao
ver Momo de novo. - Agora nã o posso explicar, pois você mesma está
vendo como sã o as coisas por aqui.
- Mas por que elas nã o aparecem mais? - Momo insistiu na pergunta.
- Todas as crianças que nã o tê m ningué m para cuidar delas sã o
levadas para depó sitos de crianças. Nã o podem mais icar sozinhas,
pois..., bem, em resumo, porque agora tê m quem cuide delas.
- Vamos logo, seus molengas aı́ na frente! - voltaram a gritar algumas
vozes na ila. - A inal, queremos ver se també m conseguimos comer!
- Meus amigos? - perguntou a menina, surpresa. - Mas foram eles que
quiseram isso?
- Ningué m lhes perguntou - respondeu Nino, batendo, nervoso, os
dedos no teclado da caixa. - A inal de contas, crianças nã o podem
decidir essas coisas. Agora tem quem se preocupe em tirá -las da rua.
Isso é o mais importante, nã o é mesmo?
Momo nã o respondeu nada, só icou observando Nino, atentamente.
Isso o deixou totalmente confuso.
- Nã o é possı́vel, outra vez? - voltou a gritar uma voz zangada, lá de
trá s. - E incrı́vel o que está acontecendo aqui hoje! Será que você s nã o
podem deixar essa conversinha para depois?
- E agora? - perguntou Momo, baixinho. - O que vou fazer sem meus
amigos?
Nino encolheu os ombros e estalou os dedos.
- Momo - disse ele, respirando fundo, como se estivesse tentando se
controlar -, por favor, seja razoá vel, volte outra hora. Agora nã o tenho
tempo, mesmo, para lhe dar qualquer conselho. Você já sabe que pode
comer sempre aqui. Mas, se eu fosse você , també m procuraria um
depó sito de crianças. Lá você receberia todos os cuidados e, alé m do
mais, aprenderia alguma coisa. De qualquer modo, vai acabar sendo
levada para lá , se continuar andando sozinha pelo mundo.
Mais uma vez, Momo nã o disse nada, só icou olhando para Nino. A
multidã o que vinha atrá s dela a empurrou. Automaticamente, a menina
foi para uma mesinha e engoliu sua terceira refeiçã o, apesar de ser
difı́cil fazer descer aquela comida com gosto de papelã o e serragem.
Depois, icou com enjoo.
Pô s Cassiopé ia embaixo do braço e foi saindo em silê ncio, sem olhar
para trá s.
- Ei, Momo! - chamou Nino atrá s dela, ao vê -la sair. - Espere um
pouco! Você nã o me contou onde esteve escondida todo esse tempo!
Mas já havia outras pessoas passando e ele voltou a bater nas teclas
da caixa, pegar o dinheiro e devolver o troco. O sorriso de seu rosto já
se des izera havia muito tempo.
- Comi demais - disse Momo para Cassiopé ia, ao chegarem de volta
ao velho an iteatro. - Comi demais e mesmo assim tenho a sensaçã o de
que nã o estou satisfeita.
Depois de algum tempo, continuou, pensativa:
- Nã o deu para contar ao Nino sobre as lores e a mú sica. E, depois de
mais alguns instantes, ela disse:
- Amanhã vamos procurar Gigi. Tenho certeza de que vai gostar
muito dele, Cassiopé ia. Você vai ver.
Nas costas da tartaruga apareceu apenas um grande ponto de
interrogaçã o.
Capitulo Quinze
ACHADO E PERDIDO

No dia seguinte, Momo levantou cedo e saiu com a tartaruga debaixo do


braço para procurar a casa de Gigi.
Sabia onde era o Monte Verde. Era um bairro de mansõ es, bem
distante do velho an iteatro. Ficava perto dos bairros novos, de pré dios
todos iguais, portanto, do outro lado da grande cidade.
Era uma caminhada longa. Apesar de estar acostumada a andar
descalça, Momo chegou ao Monte Verde com os pé s doendo. Sentou-se
no meio- io para descansar um pouco.
De fato, era um bairro elegante: ruas largas, muito limpas, quase
vazias. Nos jardins, por trá s de grades ou muros muito altos, as copas
de velhas á rvores erguiam-se na direçã o do cé u. No meio dos parques,
as casas eram, em sua maioria, construçõ es baixas e esparramadas, de
concreto e vidro, com telhados planos. Os gramados regularmente
aparados tinham um verde intenso e eram um convite formal para virar
cambalhotas, mas nã o se via ningué m passeando ou brincando na relva.
Provavelmente os proprietá rios nã o tinham tempo para isso.
- Só queria saber como vou descobrir onde mora o Gigi disse Momo à
tartaruga.
"VOCE JA VAI SABER", foi a resposta que apareceu nas costas de
Cassiopé ia.
- Você acha? - perguntou a menina, esperançosa.
- Ei, vagabunda! - disse de repente uma voz atrá s dela. O que está
procurando por aqui?
Momo virou-se e viu um homem com um colete listrado muito
estranho. Nã o sabia que empregados de gente rica usavam roupa
daquele tipo.
Momo levantou-se e disse:
- Bom dia! Estou procurando a casa do Gigi. Nino me disse que ele
mora por aqui.
- Casa de quem?
- Do Gigi Guia. Ele é meu amigo.
O homem de colete listrado olhou descon iado para a menina. Por
trá s dele, o portã o icara entreaberto e Momo deu uma espiada lá para
dentro. Viu um gramado amplo, onde brincavam alguns cachorros
galgos e no meio do qual jorrava um chafariz. Pousado numa á rvore em
lor, havia um casal de pavõ es.
- Oh, que lindos pá ssaros! - exclamou Momo, maravilhada. Quis
entrar para vê -los mais de perto, mas o homem de colete a deteve,
agarrando-a pela gola do casaco.
- Fique onde está ! - ele disse. - Quem você pensa que é , sua
vagabunda?
Largando Momo, apressou-se em limpar as mã os no lenço, como se
tivesse tocado em algo repugnante.
- Tudo isso é seu? - perguntou, ainda, Momo, apontando para o
parque atrá s das grades.
- Nã o - respondeu o sujeito de colete, mais á spero ainda. - Agora
desapareça! Você nã o tem nada que fazer aqui!
- Tenho, sim! - disse a menina, num tom seguro. - Estou à procura do
Gigi Guia, ele está à minha espera. Você nã o o conhece?
- Aqui nã o tem guia nenhum - replicou o homem cie colete, voltando-
lhe as costas.
Ele entrou no jardim e já ia fechando o portã o quando, de repente,
pareceu lembrar-se de alguma coisa.
- Será que você está falando do Girolamo, o famoso contador de
histó rias?
- E ele mesmo, Gigi Guia - respondeu Momo, radiante. O nome dele é
esse. Você sabe onde é a casa do Gigi?
- Mas ele está mesmo à sua espera? - indagou o homem.
- Claro que está ! - disse Momo. - Ele é meu amigo e paga tudo o que
eu como no restaurante do Nino.
O homem de colete ergueu as sobrancelhas e balançou a cabeça.
- Esses artistas! - disse ele, amargo. - Eles tê m cada mania! En im, se
você acha mesmo que ele está aguardando sua visita, a casa é a ú ltima,
bem no im da rua.
E o portã o se trancou.
"BOBAO", apareceu na carapaça de Cassiopé ia, mas as letras se
apagaram bem depressa.
A ú ltima casa da rua era cercada por um muro muito alto. O portã o
de entrada era de chapa de ferro, como o do homem de colete, para
ningué m poder enxergar lá dentro. Nã o havia campainha nem placa
com o nome do proprietá rio.
- Será que esta é mesmo a casa nova do Gigi? - perguntou Momo. -
Nã o se parece nem um pouco com ele.
"MAS E", apareceu nas costas da tartaruga.
- Por que está tudo trancado desse jeito? - indagou a menina. - Desse
jeito nã o vou poder entrar!
"ESPERE!", foi a resposta.
- Está bem - suspirou Momo. - Mas acho que vou ter que esperar
muito. Como é que o Gigi vai saber que estou aqui fora... se é que ele
está aı́ dentro?
"ELE JA VEM", apareceu na carapaça.
A menina sentou-se diante do portã o e pô s-se a esperar,
pacientemente. Durante muito tempo nã o aconteceu nada, e Momo
começou a imaginar se Cassiopé ia, daquela vez, nã o estaria enganada.
- Você tem certeza, mesmo? - ela perguntou.
Mas em lugar da esperada resposta, a palavra que surgiu na carapaça
foi:
"ADEUS". Momo levou um susto.
- Cassiopé ia, o que quer dizer isso? Vai me abandonar? O que você
vai fazer?
"VOU PROCURAR VOCE!", foi a resposta de Cassiopé ia, mais
enigmá tica ainda.
Exatamente nesse momento, o portã o se escancarou e um automó vel
comprido e elegante saiu a toda a velocidade. Momo só teve tempo de
pular para trá s e cair de costas.
O automó vel passou voando e, logo adiante, parou com uma freada,
fazendo cantar os pneus. Uma porta se abriu e Gigi saltou para fora.
- Momo! - ele gritou, abrindo os braços. - E mesmo a minha querida
Momo, em carne e osso!
Momo també m saiu correndo ao encontro dele. Gigi pegou-a nos
braços e levantou-a no ar, beijou-a centenas de vezes nas duas
bochechas e saiu dançando com ela pela rua.
- Você se machucou? - perguntou ele, quase sem fô lego. Mas, sem
esperar resposta, continuou falando, agitado. - Desculpe ter assustado
você , mas é que estou com uma pressa danada, sabe? Estou atrasado de
novo! Onde é que você se escondeu esse tempo todo? Precisa me contar
tudo direitinho. Achei que você nã o fosse mais voltar. Recebeu minha
carta? Recebeu? Ainda estava lá ? Otimo! E tem ido comer no Nino? Ah,
Momo, temos tanto que conversar! Tanta coisa aconteceu durante esse
tempo. Como você está ? Fale! E o nosso velho Beppo, onde anda? Nã o o
vejo há i sé culos. E as crianças? Ah, Momo! Penso tanto naquela é poca
em que ainda está vamos todos juntos e eu costumava contar histó rias.
Que bons tempos!
Agora está tudo diferente, completamente diferente.
Momo tentara vá rias vezes responder à s perguntas de Gigi. Mas,
como ele nã o parava de falar, ela simplesmente esperava, olhando para
ele. Gigi tinha mudado muito, estava bem-vestido e perfumado. Mas, de
certo modo, sentia-o como um estranho.
Enquanto isso, quatro pessoas desceram do carro e juntaram-se a
eles: um homem com uniforme de motorista e trê s moças de
isionomias duras e maquiagem carregada.
- A menina se machucou? - perguntou uma delas, em tom mais de
censura do que de preocupaçã o.
- Nã o, nã o foi nada! - a irmou Gigi. - Foi só o susto.
- També m, o que ela estava fazendo grudada no portã o? - disse a
segunda.
- Mas é Momo! - explicou Gigi, rindo. - E minha querida amiguinha
Momo!
- Ah! Entã o essa garota existe mesmo? - indagou a terceira moça,
surpresa. - Sempre pensei que fosse invençã o sua. Temos de divulgar
logo a notı́cia para a imprensa e para a televisã o: "Reencontro com a
princesa encantada", ou qualquer coisa assim. O pú blico vai vibrar! Vou
já cuidar disso. Vai ser um furo!
- Nã o - declarou Gigi -, nã o quero que façam isso.
- Mas a menina vai gostar de sair nos jornais, nã o é mesmo? - disse a
primeira para Momo, com um sorriso.
- Deixem a menina em paz! - interveio Gigi, zangado.
A segunda moça deu uma olhada no seu reló gio de pulso.
- Se nã o nos apressarmos, vamos perder o aviã o. E o senhor sabe o
que isso signi icaria! - disse ela.
- Meu Deus! - exclamou Gigi, nervoso. - Será que nem posso ter
sossego para trocar algumas palavras com Momo, depois de uma
separaçã o tã o longa? Está vendo só , Momo, essas feitoras de escravos
nã o me largam! Nã o me deixam em paz por um segundo!
- Ora - disse a segunda moça, mordaz. - Para nó s tanto faz. Só
estamos cumprindo nossa funçã o. O senhor nos paga para
organizarmos sua agenda, prezado patrã o.
- Claro, claro, eu sei. - concordou Gigi. - Entã o vamos embora! Sabe de
uma coisa, Momo? Você vai junto até o aeroporto. Assim podemos ir
conversando no caminho e depois meu motorista a levará de volta para
casa, está bem?
Sem esperar pela resposta de Momo, pegou-a pela mã o e puxou-a até
o carro. As trê s moças sentaram-se no banco de trá s; Gigi ia na frente,
ao lado do motorista, levando a menina no colo.
- Bem, Momo, agora, conte! - disse Gigi. - Mas desde o começo. Como
foi que você desapareceu tã o de repente?
Momo ia começar a falar de Mestre Hora e das lores maravilhosas,
quando uma das moças debruçou-se para a frente:
- Com licença, tenho uma ideia maravilhosa. Poderı́amos levar Momo
imediatamente até a Companhia Pú blica de Cinema. Ela é a estrela
infantil ideal para a histó ria sobre vagabundos de rua que eles estã o
para ilmar. Imagine que sensaçã o! Momo representando Momo!
- Nã o ouviu o que eu disse? - respondeu Gigi, zangado. Nã o quero
esta criança metida nisso!
- Nã o consigo entender o que o senhor está querendo respondeu a
moça, amuada. -
Qualquer um icaria lambendo os beiços diante dessa oportunidade.
- Eu nã o sou qualquer um! - gritou Gigi, furioso. E, voltando-se para
Momo, ele disse: - Desculpe, Momo, talvez você nã o compreenda, mas
nã o posso permitir que esse bando també m ponha as mã os em você .
As trê s moças icaram ofendidas.
Gigi pô s a mã o na cabeça, gemendo, pegou uma caixinha de prata do
bolso do colete, tirou dela um comprimido e o engoliu.
Durante alguns momentos, ningué m disse nada.
Depois, Gigi voltou-se para o banco de trá s:
- Nã o me levem a mal, nã o quis ofendê -las, mas meus nervos estã o
esgotados.
- Nã o se preocupe, já estamos acostumadas com suas explosõ es -
respondeu uma das moças.
- Agora - disse Gigi, voltando-se para Momo e sorrindo meio de lado
-, vamos falar de nó s.
- Só mais uma pergunta, antes que seja tarde - interrompeu a
segunda moça. - Já estamos chegando. O senhor nã o permitiria que eu
izesse, pelo menos, uma rá pida entrevista com a menina?
- Chega! - berrou Gigi, fora de si. - Agora eu vou conversar com
Momo, e em particular! E importante para mim! Quantas vezes vou ter
que explicar?
- Ora - replicou a moça, també m furiosa -, mas é o senhor quem vive
dizendo que eu deveria fazer mais publicidade em torno do seu nome.
- Está certo - explodiu Gigi. - Mas nã o agora. Nã o agora!
- E pena! - disse a moça. - Uma histó ria dessas levaria as pessoas à s
lá grimas.
Mas o senhor é quem sabe. Talvez possamos fazer isso mais tarde,
quando...
q
- Nã o! - interrompeu Gigi. - Nem agora nem mais tarde, de jeito
nenhum. E agora cale essa boca, enquanto eu converso com Momo.
- Desculpe - insistiu a moça. - A inal de contas, trata-se da sua
publicidade, nã o da minha! Pense bem se o senhor pode se dar ao luxo
de perder uma oportunidade como essa.
- Nã o - gritou Gigi, desesperado -, nã o posso me dar a esse luxo. Mas
Momo vai icar fora disso! Agora, eu lhe imploro, deixe-nos em paz por
cinco minutos!
As moças se calaram. Gigi esfregou os olhos, exausto.
- Veja, Momo, a que ponto cheguei! - disse ele, com um risinho
amargo. - Mesmo que eu queira, nã o posso mais voltar atrá s. Estou
acabado! "Gigi será sempre Gigi"... você lembra? Pois bem, Gigi deixou
de ser Gigi. Vou lhe dizer uma coisa, Momo: a coisa mais perigosa na
vida sã o os sonhos realizados. Pelo menos quando acontece como
aconteceu comigo. Nã o tenho mais com o que sonhar. També m nã o
conseguiria aprender de novo com você . Estou tã o farto de tudo!
Olhou melancolicamente pela janela do carro.
- A ú nica coisa que eu ainda poderia fazer seria calar a boca, nã o
contar mais nada, emudecer, talvez até o im da minha vida. Ou pelo
menos até que todos tivessem se esquecido de mim e eu voltasse a ser
um pobre diabo desconhecido.
Mas ser pobre e sem sonhos... nã o, Momo, seria o inferno. E melhor
icar onde estou. També m é um inferno, mas pelo menos é confortá vel.
Mas por que estou falando tudo isso? E claro que você nã o pode
compreender.
Momo apenas olhava para Gigi. Compreendia antes de tudo que ele
estava doente, terrivelmente doente. Suspeitava que os homens
cinzentos tivessem alguma coisa a ver com aquilo tudo. Nã o sabia como
poderia ajudá -lo, uma vez que ele nã o queria nada.
- Mas continuo falando só de mim - disse Gigi. - Agora, a inal, fale de
você , do que viveu esse tempo todo, Momo.
Nesse instante, o carro parou no aeroporto. Todos desceram e
entraram correndo no saguã o. Gigi já estava sendo esperado por
recepcionistas uniformizadas.
Alguns repó rteres o fotografaram e lhe izeram perguntas. Mas as
recepcionistas o apressavam, pois o aviã o iria decolar em alguns
minutos.
Gigi curvou-se para Momo, contemplou-a longamente. De repente,
seus olhos encheram-se de lá grimas.
- Escute, Momo - disse ele, tã o baixinho que ningué m ouviu -, ique
comigo! Levarei você nesta viagem e em todas as outras. Você icará
morando na minha bela casa e se vestirá de veludo e de seda, como uma
princesinha de verdade. Bastará icar perto de mim e me ouvir. Talvez
entã o eu volte a inventar histó rias bonitas, como aquelas de antes,
lembra? E só você dizer sim, Momo, e tudo dará certo outra vez! Ajude-
me, por favor!
A menina gostaria muito de ajudar Gigi. Estava com o coraçã o
apertado. Mas sentiu que daquele jeito nã o ia dar certo. Ele precisava
voltar a ser Gigi, e em nada o ajudaria se deixasse de ser Momo. Seus
olhos també m se encheram de lá grimas. Ela recusou, balançando a
cabeça. Gigi a compreendeu. Concordou, tristemente, e foi arrastado
pelas moças, que ele pagava para isso. Acenou mais uma vez, de longe.
Momo acenou també m e ele desapareceu.
Durante todo o seu encontro com Gigi, Momo nã o conseguira dizer
uma só palavra.
No entanto, tinha tanta coisa para lhe contar! Tinha a impressã o de
que, justamente ao encontrá -lo, ela o perdera.
Lentamente, Momo virou as costas e foi saindo do saguã o do
aeroporto. De repente, teve um sobressalto: també m perdera
Cassiopé ia.
Capítulo Dezesseis
A MISÉRIA NA FARTURA

- Para onde? - perguntou o motorista, quando Momo se sentou ao seu


lado, no elegante carro de Gigi.
A menina icou olhando, confusa, à sua frente. O que iria dizer? Para
onde, na verdade, queria ir? Precisava procurar Cassiopé ia. Mas onde?
Quando e em que lugar a perdera? Tinha certeza de que ela já nã o
estava a seu lado durante o percurso de automó vel com Gigi.
Talvez na frente da casa de Gigi. Lembrou-se també m de que havia
lido nas costas dela as palavras "ADEUS" e "VOU PROCURAR VOCE". E
claro que Cassiopé ia sabia com antecedê ncia que icaria perdida e por
isso sairia à procura de Momo. Mas onde Momo deveria procurar
Cassiopé ia?
- Vai demorar muito? - disse o motorista, tamborilando no volante. -
Tenho mais o que fazer do que levar você para passear.
- Para a casa de Gigi, por favor - pediu Momo. O motorista olhou para
ela, meio surpreso.
- Pensei que devia levar você para casa. Ou será que vai icar
morando conosco?
- Nã o - respondeu a menina -, mas perdi uma coisa na rua e preciso
encontrá -la.
Para o motorista estava ó timo, pois de qualquer modo teria que
voltar para lá .
Quando chegaram, Momo saltou logo do carro e começou sua busca
por toda parte.
- Cassiopé ia! - ela chamava, baixinho. - Cassiopé ia!
- A inal, o que é que você está procurando? - perguntou o motorista,
pela janela do carro.
- E a tartaruga de Mestre Hora - respondeu Momo. - Ela se chama
Cassiopé ia e sempre sabe o que vai acontecer, com meia hora de
antecedê ncia. Ela escreve letras na sua carapaça. Preciso encontrá -la de
qualquer jeito. Quer me ajudar, por favor?
- Nã o tenho tempo para brincadeiras bobas! - resmungou o
motorista, entrando pelo portã o, que se fechou atrá s do carro.
Momo continuou a procurar sozinha. Procurou pela rua inteira, mas
nã o viu nem sinal de Cassiopé ia.
"Talvez ela esteja indo para o an iteatro", pensou a menina.
Momo foi voltando devagarinho pelo mesmo caminho que tomara na
vinda. Olhava por todos os cantos e todas as esquinas. Chamava sem
cessar pela tartaruga, mas tudo em vã o.
Quando a menina chegou ao an iteatro, já era tarde da noite. Lá
també m procurou por todos os cantos, tanto quanto lhe permitia a
escuridã o. Tinha a esperança de que, por algum passe de má gica, a
tartaruga tivesse chegado antes que ela. No entanto, é claro que seria
impossı́vel, pois Cassiopé ia andava muito devagar.
Momo deitou-se na cama. Pela primeira vez, estava completamente
sozinha.
A menina passou as semanas seguintes perambulando pela grande
cidade, esperando encontrar Beppo Varredor. Já que ningué m sabia
indicar seu paradeiro, só lhe restava a esperança de que em algum
momento seus caminhos se cruzassem. Poré m, numa cidade tã o
imensa, a probabilidade cie duas pessoas se encontrarem por acaso era
tã o pequena quanto a de que uma mensagem dentro de uma garrafa,
jogada no oceano por um ná ufrago, fosse resgatada por um barco de
pescadores numa costa distante.
No entanto, Momo à s vezes imaginava que eles poderiam estar muito
perto um do outro. Quem poderia saber quantas vezes ela nã o passara
por algum lugar em que Beppo estivera uma hora, um minuto, um
segundo antes. Ou, ao contrá rio, quem poderia dizer se, cedo ou tarde,
Beppo nã o passaria depois dela por alguma praça ou rua. Por isso,
muitas vezes Momo icava durante horas esperando num mesmo lugar.
No entanto, em algum momento ela era obrigada a continuar andando,
e entã o, mais uma vez, podia ser que os dois se desencontrassem por
pouco.
Como seria bom se Cassiopé ia estivesse com ela, para poder lhe dizer
"ESPERE" ou "PROSSIGA". Sozinha, poré m, Momo nunca sabia o que
fazer. Tinha medo de se desencontrar de Beppo se esperasse e tinha
medo de se desencontrar dele se continuasse caminhando.
A menina també m tentava localizar as crianças que antes sempre
iam visitá -la.
Mas nunca viu nenhuma delas. Aliá s, nã o via mais crianças nas ruas
de jeito nenhum, e lembrou-se de que Nino dissera que agora havia
quem cuidasse delas.
O fato de a pró pria Momo nunca ter sido apanhada por um policial
ou qualquer outro adulto e levada para um depó sito de crianças devia-
se à constante vigilâ ncia dos homens cinzentos. Nã o fazia parte dos
planos deles. Mas isso Momo nã o sabia.
Uma vez por dia, ela ia comer no restaurante do Nino. No entanto,
nunca conseguia conversar com ele mais do que naquele primeiro
encontro. Nino estava sempre com a mesma pressa e nunca tinha
tempo.
As semanas transformaram-se em meses, e Momo continuava
sozinha. Uma ú nica vez, quando estava sentada na amurada de uma
ponte, na hora do pô r-do-sol, Momo viu ao longe, numa outra ponte,
uma igurinha encurvada, que varria apressadamente, como se daquilo
dependesse sua vida. Acreditando ter reconhecido Beppo, ela gritou e
acenou, mas a tal igura nã o interrompeu seu trabalho nem por um
instante. Momo saiu correndo, mas quando chegou à outra ponte nã o
viu mais ningué m.
"Nã o deve ter sido Beppo", a menina disse a si mesma, para se
consolar. "Nã o podia ser ele. Ele nã o varre daquele jeito."
As vezes icava em casa, sem sair do an iteatro, porque de repente
lhe vinha a esperança de que Beppo pudesse passar por lá para saber se
ela tinha voltado. Se nã o a encontrasse, naturalmente pensaria que ela
nã o tinha voltado. Mais uma vez, imaginava se isso já nã o teria
acontecido, uma semana ou um dia antes.
Entã o esperava, mas sempre em vã o. Acabou escrevendo em letras
grandes, na parede do quarto: ESTOU DE VOLTA. Só que, alé m dela,
ningué m leu o recado.
Uma coisa, no entanto, nunca abandonou Momo durante todo esse
tempo: a lembrança viva do que tinha vivido com Mestre Hora, a
lembrança sempre presente das lores, da mú sica. Era só fechar os
olhos e escutar dentro de si mesma que ela revia as cores brilhantes e
magnı́ icas das lores e ouvia a mú sica das vozes.
Tal como no primeiro dia, conseguia repetir as palavras e cantar as
melodias, embora elas sempre se transformassem e nunca fossem as
mesmas.
Momo passava dias a io sentada nos degraus de pedra, falando e
cantando para si mesma. Ningué m a ouvia, a nã o ser as á rvores, os
pá ssaros e as velhas pedras.
Há muitas formas de solidã o. A de Momo era um tipo de solidã o que
poucas pessoas conhecem, menos ainda com tanta intensidade. Sentia-
se como que aprisionada numa gruta cheia de tesouros de inestimá vel
valor, que cresciam continuamente, ameaçando sufocá -la. E nã o havia
saı́da. Ningué m conseguia chegar até ela e, por outro lado, ela nã o
conseguia se fazer notar por ningué m, profundamente enterrada sob
uma montanha de tempo.
Havia momentos em que desejava nunca ter ouvido aquela mú sica e
visto aquelas cores. No entanto, se lhe oferecessem a escolha, nã o
trocaria aquelas lembranças por nada no mundo. Nem que morresse
por isso. Momo descobrira que há tesouros que nos arruı́nam quando
nã o podemos compartilhá -los com os outros.
De vez em quando, ia até a casa de Gigi e esperava longamente diante
do portã o.
Tinha esperança de vê -lo de novo. Resolvera concordar com tudo.
Queria morar com ele, ouvi-lo e conversar com ele, exatamente como
antes. Mas o portã o nunca se abria.
Apenas alguns meses se passaram assim, mas era o tempo mais
longo que Momo já vivera. Pois o tempo verdadeiro nã o é o que se mede
por reló gios ou calendá rios.
E indescritı́vel a solidã o que ela vivia. Pode-se acrescentar apenas
que, se Momo conseguisse encontrar o caminho para chegar a Mestre
Hora, e isso ela tinha tentado muitas vezes, pediria que ele nã o lhe
desse mais tempo, ou entã o que a deixasse icar morando para sempre
com ele, na Casa de Lugar Nenhum.
Mas sem Cassiopé ia nã o conseguia mais achar o caminho. E
Cassiopé ia tinha mesmo sumido. Talvez tivesse voltado para junto de
Mestre Hora ou estivesse perdida em algum lugar do mundo. De
qualquer modo, nunca mais voltara.
No entanto, aconteceu algo inesperado.
Certo dia Momo encontrou-se na cidade com trê s crianças que antes
costumavam ir encontrá -la no an iteatro. Eram Paulo, Franco e Maria, a
menina que estava sempre com a irmã zinha Dedé . Os trê s tinham
mudado muito. Vestiam uma espé cie de uniforme cinzento e seus rostos
tinham uma expressã o estranhamente vazia e sem vida. Mesmo quando
Momo os cumprimentou efusivamente, eles mal sorriram.
- Tenho procurado tanto por você s! - exclamou a menina, quase sem
fô lego. - Vamos agora até minha casa?
Os trê s se entreolharam e balançaram a cabeça negativamente.
- Bem, entã o você s irã o amanhã ? Ou depois de amanhã ? - insistiu
Momo.
Mais uma vez, os trê s balançaram a cabeça.
- Ora, você s precisam voltar! - suplicou a menina. - Antigamente
você s sempre iam me ver!
- Antigamente! - respondeu Paulo -, mas agora tudo mudou. Nã o
podemos mais gastar nosso tempo com coisas inú teis.
- Mas isso nó s nunca izemos! - disse Momo.
- Pois é , era bom - disse Maria -, mas isso nã o vem ao caso.
As trê s crianças saı́ram andando apressadas, e Momo as
acompanhou.
- Para onde você s estã o indo?
- Para a aula de brincar - respondeu Franco. - Lá nó s aprendemos a
brincar.
- Brincar do quê ? - perguntou Momo.
- Hoje vamos brincar de ichas perfuradas - disse Paulo. E muito ú til,
mas exige muita concentraçã o.
- Como funciona essa brincadeira?
- Cada um de nó s é uma icha, com vá rios dados diferentes como
peso, altura, idade e assim por diante. Mas nunca sã o nossos dados de
verdade, senã o seria muito fá cil. As vezes també m somos apenas um
longo nú mero, como por exemplo MUX/763/y. Entã o somos
g , p p / /y
embaralhados e colocados num arquivo. Daı́ um de nó s precisa
descobrir uma determinada icha vai fazendo perguntas até eliminar
todas as outras e deixar sobrar apenas a icha certa. Ganha quem
conseguir descobrir mais depressa.
- E isso é divertido? - perguntou Momo, duvidando.
- Nã o é isso que importa - disse Maria, meio nervosa. Nã o se deve
falar assim.
- Entã o o que é que importa'
- O importante é que seja ú til para o nosso futuro - explicou Paulo.
Nesse meio-tempo, chegaram ao portã o de uma grande casa
cinzenta, onde estava escrito: "Depó sito de Crianças".
- Tenho tanta coisa para contar a você s - disse Momo.
- Talvez qualquer dia a gente volte a se encontrar - respondeu Maria,
com tristeza.
Em torno deles havia outras crianças, que iam entrando pelo portã o.
Todas elas se pareciam com os trê s amigos de Momo.
- Com você era muito melhor - disse Franco, de repente. - Nó s
mesmos sempre tı́nhamos um monte de ideias. Mas eles dizem que a
gente nã o aprende nada com isso.
- Você s nã o podem fugir? - perguntou Momo.
Os trê s sacudiram a cabeça, olhando em torno para ver se ningué m
tinha escutado.
- No começo, tentei algumas vezes - murmurou Franco. Mas nã o
adianta. Sempre trazem a gente de volta.
- Nã o diga isso - aconselhou Maria -, a inal agora estã o cuidando de
nó s.
Ficaram todos calados, com o olhar vago. Por im, Momo criou
coragem e pediu:
- Você s nã o podem me levar junto? Estou sempre tã o sozinha!
Entã o aconteceu uma coisa muito estranha. Antes que alguma das
crianças pudesse responder, foram todas tragadas para dentro da casa,
como que atraı́das pela força de um ı́mã gigantesco. E o portã o se
fechou atrá s delas, com um estrondo.
Momo assustou-se ao ver aquilo. Mesmo assim, depois de um
momento, aproximou-se do portã o para tocar a campainha ou bater.
Queria pedir, mais uma vez, para brincar com as crianças, de qualquer
coisa que fosse. Mal deu um passo, poré m, icou gelada de medo. Entre
ela e o portã o, estava postado um dos homens cinzentos.
- E inú til - disse ele, com o charuto no canto da boca. Nem adianta
tentar. Nã o é do nosso interesse que você entre neste lugar.
- Por quê ? - perguntou a menina, sentindo aquele frio gé lido subir
por ela
- Porque temos outros planos para você - explicou o homem
cinzento, soltando uma baforada de fumaça, que se enrolou no pescoço
cie Momo como um laço e só aos poucos foi se diluindo.
Muita gente passava, mas sempre com muita pressa. A menina
apontou para o homem cinzento e tentou gritar por socorro, mas nã o
conseguiu emitir um som.
- Desista! - disse o homem cinzento, dando uma risada gé lida e
cinzenta. - Você ainda nã o nos conhece? Ainda nã o sabe o quanto somos
poderosos? Tiramos de você todos os seus amigos. Ningué m mais pode
ajudá -la. Podemos fazer com você o que quisermos. Mas, como você vê ,
nó s a poupamos.
- Por quê ? - a menina conseguiu dizer, com di iculdade.
- Porque queremos que preste um servicinho - respondeu o homem.
- Se tiver juı́zo, poderá obter muitas vantagens, para você e també m
para seus amigos. Você quer?
- Quero - sussurrou Momo.
O homem cinzento deu um sorrisinho apertado.
- Entã o vamos nos encontrar à meia-noite, para combinar tudo.
Momo meneou a cabeça, calada.
O homem cinzento já tinha sumido. Só a fumaça do seu charuto ainda
pairava no ar.
Ele nã o dissera onde deveriam se encontrar.
Capítulo Dezessete
GRANDE MEDO E MAIOR CORAGEM

Momo estava com medo de voltar ao velho an iteatro. Com certeza o


homem cinzento, que queria encontrá -la à meia-noite, iria até lá .
Só de pensar em icar ali sozinha com ele, a menina se enchia de
pavor.
Nã o, nã o queria mais vê -lo, nem ali nem em qualquer outro lugar.
Fosse qual fosse sua proposta, estava claro que, na verdade, nã o traria
nada de bom para ela nem para seus amigos.
Onde poderia se esconder dele?
O lugar mais seguro, provavelmente, era no meio da multidã o. Momo
tinha percebido que ningué m reparara nela e no homem cinzento. Mas,
se ele fosse lhe fazer algum mal, ela gritaria por socorro e, certamente,
as pessoas iriam ajudá -la Alé m do mais, no meio de um monte de gente
seria mais difı́cil encontrá -la.
Durante o resto do dia e até bem tarde da noite, Momo icou andando
em meio à multidã o, pelas ruas e praças mais movimentadas, até fechar
um cı́rculo enorme, voltando ao lugar por onde começara sua
caminhada. Percorreu o mesmo trajeto pela segunda e pela terceira vez.
Simplesmente deixava-se arrastar pela corrente da massa humana
sempre apressada.
Já tinha andado o dia inteiro, e seus pé s estavam doendo de cansaço.
O tempo passava, e a menina, meio dormindo, continuava andando,
andando, andando...
"Só vou descansar um momento," pensou ela, a inal, "um
momentinho só , e já vou icar mais disposta!"
Estacionado no meio- io havia um pequeno veı́culo de carga,
daqueles de trê s rodas, com o bagageiro cheio de sacos e caixas. Momo
subiu nele e encostou-se num saco bem macio. Encolheu os pé s
cansados, escondendo-os debaixo da saia.
Como era bom! Suspirou aliviada, acomodou-se melhor junto do saco
e, sem perceber, adormeceu exausta.
Foi assaltada, poré m, por sonhos a litivos. Viu o velho Beppo, usando
sua vassoura como uma longa vara de equilibrista, oscilando numa
corda sobre um precipı́cio. "Onde está a outra ponta? Nã o consigo
encontrar a outra ponta!", gritava ele.
E a corda parecia, mesmo, interminá vel. Suas duas extremidades
perdiam-se no meio da escuridã o.
Momo queria ajudar Beppo, mas ele nã o a ouvia, pois estava muito
longe e muito lá no alto.
Depois, viu Gigi, tirando da boca uma tira de papel interminá vel. Por
mais que ele puxasse, a tira nã o tinha im e també m nã o se rasgava. Gigi
já estava em cima de uma montanha de papel. Olhava para Momo com
ar de sú plica, como se fosse parar de respirar se a menina nã o o
ajudasse.
Ela quis chegar até ele, mas icou com os pé s enredados nas tiras de
papel e, quanto mais tentava se soltar, mais se emaranhava.
Depois viu as crianças. Estavam achatadas como cartas de baralho e
cada carta apresentava um padrã o de pequenas perfuraçõ es. As cartas
eram embaralhadas e precisavam voltar a se ordenar sozinhas, e novas
perfuraçõ es iam surgindo nelas.
As cartas-crianças choravam silenciosamente e sempre voltavam a
ser embaralhadas, caindo umas sobre as outras, batendo e estalando.
Momo queria gritar, "Parem, chega!", mas o ruı́do abafava sua voz
fraca. E o barulho foi se tornando cada vez mais forte, até acordá -la.
Num primeiro momento, Momo nã o sabia onde estava, pois à sua
volta só havia escuridã o. Depois lembrou-se de que tinha subido na
caminhonete, que agora estava em movimento. O barulho do sonho era
do motor. Momo enxugou as faces, que ameia estavam molhadas de
lá grimas. Que lugar seria aquele?
A caminhonete certamente já havia rodado muito sem que ela tivesse
percebido, pois estavam atravessando uma regiã o da cidade em que,
à quela hora da noite, nã o se via uma viva alma. As ruas estavam vazias
e os pré dios à s escuras.
Nã o rodavam em grande velocidade e, sem pensar muito no que
estava fazendo, Momo saltou para o chã o. Queria voltar para as ruas
movimentadas, onde se sentia mais protegida contra os homens
cinzentos. Mas lembrou-se do que havia sonhado, e icou parada.
O barulho do motor foi se afastando pelas ruas escuras, até tudo icar
em completo silê ncio.
Momo nã o queria mais fugir. Até entã o, tentara escapar na esperança
de se salvar. O tempo todo só pensara em si, em seu abandono, em seu
pró prio medo! Na verdade, quem precisava de ajuda eram seus amigos.
Se é que algué m ainda os podia socorrer, esse algué m era ela. Por
menor que fosse a possibilidade de conseguir que os homens cinzentos
os libertassem, precisava pelo menos tentar.
Ao chegar a essa conclusã o, Momo de repente sentiu que alguma
coisa nela havia mudado. O sentimento de medo e desamparo era tã o
grande que de repente se transformou no contrá rio. Tinha sido
superado. Sentia-se corajosa e con iante, como se nenhum poder do
mundo fosse capaz de lhe fazer mal. Mais ainda, nã o se preocupava
mais com o que lhe pudesse acontecer.
Agora Momo queria encontrar os homens cinzentos, a qualquer
custo.
"Preciso voltar imediatamente ao velho an iteatro", pensou ela.
"Talvez nã o seja tarde demais, pode ser que ele tenha esperado por
mim."
Foi mais fá cil dizer do que fazer. A menina nã o sabia onde estava e
nã o tinha a menor ideia da direçã o em que deveria caminhar. Apesar
disso, saiu andando ao acaso.
Foi andando, andando, pelas ruas escuras e mortalmente silenciosas.
Como estava descalça, nã o ouvia sequer o barulho de seus passos. Cada
vez que virava uma esquina, tinha esperança de descobrir alguma coisa
que a orientasse, algum sinal que ela reconhecesse Mas nã o achava
nada. També m nã o podia perguntar nada a ningué m, pois o ú nico ser
vivo que encontrou foi um cachorro magro e imundo, que remexia um
monte de lixo à procura de alimento e fugiu assustado quando ela se
aproximou.
Finalmente, Momo chegou a uma praça enorme e deserta. Nã o era
uma daquelas praças bonitas, com á rvores e fontes, mas apenas um
espaço imenso e vazio. A sua volta, viam-se os contornos escuros das
casas, que se destacavam contra o cé u noturno.
Quando Momo alcançou o centro da praça, o reló gio da torre de
alguma igreja das redondezas começou a bater. Foram muitas batidas,
talvez fosse meia-noite. Se o homem cinzento já estivesse esperando no
an iteatro, seria impossı́vel chegar a tempo. Ele iria embora e Momo
teria perdido para sempre a oportunidade de ajudar seus amigos.
A menina mordeu os pulsos. O que poderia fazer? Nã o tinha ideia.
- Estou aqui! - ela gritou, o mais alto que pô de, para dentro da
escuridã o. Mas nã o tinha qualquer esperança de que o homem cinzento
pudesse ouvi-la. No entanto, estava enganada.
Mal se ouviu a ú ltima batida do reló gio, quando de todas as ruas que
desembocavam na praça enorme surgiram, simultaneamente, luzinhas
muito fracas, que rapidamente foram se tornando mais intensas. Momo
percebeu que eram os faró is de muitos automó veis, que chegavam
lentamente por todos os lados, aproximando-se do centro da praça,
onde ela se encontrava. Para qualquer lado que se voltasse, uma luz
ofuscante a atingia, de tal modo que foi obrigada a proteger os olhos
com as mã os. Eles tinham vindo!
A menina nã o contava com um contingente tã o grande. Por um
instante, toda a sua coragem desapareceu. Estava completamente
cercada, nã o tinha como fugir, e encolheu-se o mais que pô de dentro de
seu velho casaco.
Lembrou-se entã o das lores e das vozes na melodia grandiosa e
voltou a se sentir segura e fortalecida.
Diminuindo a velocidade, os carros foram se aproximando cada vez
mais. Por im, com os pá ra-choques encostados um no outro, formaram
um cı́rculo, em cujo centro estava Momo.
Entã o, os homens desceram. Momo nã o conseguia ver quantos eram,
pois icaram no escuro, por trá s dos faró is. Mas sentia muitos olhares
voltados para ela, e eram olhares nada amigá veis. Momo sentiu frio.
Durante algum tempo, ningué m disse nada.
- Aı́ está - disse, inalmente, uma voz cinzenta-, essa é a menina
Momo, que achou que poderia nos desa iar! Vejam como está agora
esse montinho de desgraça!
Um barulho metá lico seguiu-se a essas palavras. A distâ ncia, soava
como o riso de muitas vozes.
- Cuidado! - disse uma outra voz cinzenta. - Todos sabem o quanto
essa menina pode se tomar perigosa. Nã o vale a pena tentar enganá -la.
Momo ouvia com atençã o.
- Pois bem - disse a primeira voz, saindo da escuridã o. - Vamos tentar
com a verdade.
Novamente, houve um longo silê ncio. Momo percebeu que os
homens cinzentos temiam dizer a verdade. Aquilo parecia custar-lhes
imenso esforço. Ela ouviu um ruı́do de inú meras gargantas se limpando.
A inal, um deles voltou a falar. A voz vinha de outra direçã o, mas era
igualmente cinzenta.
- Vamos falar francamente. Você está sozinha, pobre criança. Seus
amigos estã o longe. Nã o há ningué m mais com quem você possa
partilhar seu tempo. Esse foi exatamente o nosso plano. Veja como
somos poderosos. Nã o adianta querer se opor à nossa força. O que
signi icam agora para você suas muitas horas solitá rias?
Uma desgraça que a oprime, um peso que a esmaga, um oceano que a
submerge, uma tortura que a a lige. Você está isolada de todo o resto da
humanidade.
Momo ouvia, sempre em silê ncio.
- Mais cedo ou mais tarde - prosseguiu a voz -, chegará um momento
em que você nã o poderá mais suportar isso, talvez amanhã , daqui a
uma semana ou um ano. Para nó s tanto faz, vamos simplesmente
esperar. Sabemos que, em algum momento, você virá de joelhos nos
dizer: "Farei qualquer coisa, livrem-me desse peso!" Ou será que você já
chegou a esse ponto? E só dizer.
Momo balançou a cabeça, negando.
- Nã o quer nossa ajuda? - perguntou a voz, num tom gé lido.
Uma onda de frio, vinda de todos os lados, envolveu a menina. No
entanto, ela cerrou os dentes e voltou a balançar a cabeça.
- Ela sabe o que é o tempo - sibilou outra voz.
- Isso prova que esteve de fato com o tal fulano - respondeu a
primeira voz. E, mais alto, dirigindo-se a Momo: - Você conhece Mestre
Hora?
A menina balançou a cabeça a irmativamente.
- Esteve mesmo com ele?
De novo, Momo fez sinal de que sim.
- Entã o conhece as lores-das-horas?
Pela terceira vez, ela balançou a cabeça con irmando. Ah, e como as
conhecia bem!
Seguiu-se novamente um longo silê ncio. A voz que recomeçou a falar
vinha de outra direçã o:
- Você tem amor a seus amigos, nã o tem? Momo balançou a cabeça
a irmativamente.
- Gostaria de libertá -los do nosso poder, nã o é mesmo? Momo
con irmou novamente.
- Pois você pode fazer isso. Basta querer.
Tremendo dos pé s à cabeça, a menina aconchegou-se mais ainda no
seu casaco.
- Na verdade, custaria muito pouco você libertar seus amigos. Nó s a
ajudamos e você nos ajuda. E mais do que justo e muito barato.
Momo icou olhando, atenta, para a direçã o de onde vinha a voz.
- També m gostarı́amos de conhecer pessoalmente esse tal Mestre
Hora, compreende?
Mas nã o sabemos onde ele mora. Só queremos que você nos leve até
ele. E só isso.
Ouça bem, Momo, para que saiba que queremos ser francos e agir
corretamente: em troca, você terá seus amigos de volta, para que você s
possam voltar à sua antiga vida de alegria. E uma proposta que vale a
pena!
Pela primeira vez, Momo abriu a boca. Tinha que fazer muito esforço
para falar, pois seus lá bios estavam duros de frio.
- O que você s querem com Mestre Hora? - ela perguntou, lentamente.
- Queremos conhecê -lo - respondeu asperamente a voz. E o frio
voltou. - Isso deve bastar para você .
Momo icou muda, à espera. Houve uma certa agitaçã o entre os
homens cinzentos, eles pareciam meio inquietos.
- Nã o consigo compreendê -la! - disse a voz. - Pense em você mesma e
em seus amigos! Nã o se preocupe com Mestre Hora. Ele tem idade para
g p p p
cuidar de si mesmo.
Aliá s, se for razoá vel e cooperar conosco amigavelmente, nã o
tocaremos num io de cabelo dele. Caso contrá rio, teremos meios de
forçá -lo.
- Forçá -lo a quê ? - indagou a menina, com os lá bios roxos.
Subitamente a voz soou estridente e cansada, ao dizer:
- Estamos fartos de icar juntando horas, minutos e segundos das
pessoas.
Queremos todo o tempo dos seres humanos de uma vez. E isso que
Mestre Hora vai ter que nos entregar.
Indignada, Momo itou a escuridã o, na direçã o de onde vinha a voz.
- E as pessoas? - perguntou. - O que vai ser delas?
- Pessoas! - gritou a voz esganiçada. - Faz muito tempo que elas sã o
supé r luas.
Elas pró prias levaram o mundo a tal ponto que logo nã o haverá mais
lugar para seus semelhantes. Nó s governaremos o mundo!
O frio era agora tã o terrı́vel que Momo movia os lá bios com muita
di iculdade, sem conseguir pronunciar uma só palavra.
- Mas nã o se preocupe, Momo - continuou a voz, repentinamente
mansa e quase agradá vel -, você e seus amigos serã o exceçã o. Serã o os
ú ltimos seres humanos a brincar e contar histó rias. Nã o se metam mais
em nossos assuntos e nó s os deixaremos em paz.
A voz se calou, mas quase imediatamente voltou a falar, vinda de
outra direçã o:
- Você sabe que dissemos a verdade. Cumpriremos nossa palavra.
Agora leve-nos até Mestre Hora.
Momo tentou falar. O frio quase lhe fazia perder a consciê ncia. A
muito custo, conseguiu pronunciar estas palavras:
- Mesmo que eu pudesse, nã o faria isso!
De algum lugar, a voz perguntou, ameaçadora:
- O que você quer dizer com "mesmo que eu pudesse"? Você pode!
Você esteve com Mestre Hora, portanto sabe o caminho!
,p
- Nã o consigo mais achá -lo - murmurou Momo. - Já tentei... só
Cassiopé ia é que sabe!
- Quem é Cassiopé ia?
- E a tartaruga de Mestre Hora.
- Onde está ela?
Quase inconsciente, Momo gaguejou:
- Ela... voltou comigo... mas... mas depois eu a perdi!
A menina ouviu uma confusã o de vozes agitadas, como se viessem de
muito longe.
- Alerta imediato! - ela ouviu gritar. - Precisamos achar a tartaruga.
Todas as tartarugas devem ser identi icadas! Essa tal Cassiopé ia precisa
ser encontrada!
Precisa! Precisa!
As vozes cessaram. Tudo icou em silê ncio. Aos poucos, Momo foi
voltando à consciê ncia. Estava sozinha na praça enorme, sobre a qual
soprou uma rajada de vento frio, que parecia vir de um imenso vazio.
Era um vento cinzento.
Capítulo Dezoito
OLHANDO O FUTURO SEM OLHAR PARA TRÁS

Momo nã o sabia quanto tempo havia se passado. O reló gio da igreja
batia de vez em quando, mas ela mal o ouvia. Só muito devagar o calor
voltou a seus membros gelados. Sentia-se paralisada e incapaz de tomar
qualquer decisã o.
Deveria voltar ao velho an iteatro e deitar-se para dormir? Toda a
esperança, para ela e seus amigos, estava perdida para sempre. Agora
sabia de fato que nunca mais as coisas icariam bem, nunca mais...
També m temia por Cassiopé ia. O que aconteceria se os homens
cinzentos a encontrassem? A menina começou a censurar-se
amargamente por ter mencionado a tartaruga. Mas tinha icado tã o
atordoada que nem sabia direito o que estava fazendo.
"E talvez", pensou Momo para se consolar, "Cassiopé ia já esteja há
muito tempo junto de Mestre Hora! Tomara que nã o esteja mais me
procurando. Seria melhor para ela... e para mim se..."
Nesse instante, sentiu alguma coisa tocar seus pé s descalços Momo
levou um susto e foi se agachando devagarinho.
Lá estava a tartaruga! E, em meio à escuridã o, lentamente se
acenderam as letras: "AQUI ESTOU DE NOVO".
Sem re letir, Momo pegou-a e en iou-a debaixo do casaco. Depois,
endireitou-se e icou à escuta, perscrutando a escuridã o, com medo de
que os homens cinzentos ainda estivessem por perto.
Mas tudo permaneceu em silê ncio.
Cassiopé ia debatia-se furiosamente dentro do casaco, tentando
libertar-se. Momo manteve-a irmemente apertada contra o corpo,
espiou para dentro do casaco e sussurrou:
- Fique quieta, por favor.
"POR QUE A AFLIÇAO?", apareceu na carapaça.
- Você nã o pode ser vista - murmurou a menina.
Entã o, nas costas da tartaruga, acenderam-se as palavras: "VOCE
NAO ESTA CONTENTE?"
- Claro que estou! - murmurou Momo, quase soluçando. Claro,
Cassiopé ia, e como!
E a menina beijou-lhe o focinho vá rias vezes. As palavras na carapaça
da tartaruga enrubesceram visivelmente quando ela respondeu: "ORA,
POR FAVOR!" Momo sorriu.
- Você esteve realmente à minha procura durante todo esse tempo?
"CLARO!"
- E como me encontrou exatamente neste lugar e neste momento?
"SABIA COM ANTECEDENCIA."
Será que a tartaruga tinha realmente procurado Momo todo o tempo,
sabendo que nã o a encontraria? Ou, na verdade, nem tinha sido preciso
procurar? Era mais um dos enigmas de Cassiopé ia, que imobilizava o
raciocı́nio de quem tentasse pensar no assunto. Poré m nã o era hora de
tentar resolver o problema.
Momo contou-lhe baixinho tudo o que acontecera.
- O que devemos fazer agora? - perguntou ela, inalmente. Cassiopé ia
escutara com atençã o e nas suas costas veio a resposta:
"VAMOS FALAR COM HORA".
- Agora? - exclamou Momo, apavorada. - Mas os homens cinzentos
estã o procurando você por toda parte! Este é o ú nico lugar onde nã o/há
nenhum deles. Nã o seria mais razoá vel icarmos aqui?
Nas costas da tartaruga apareceu simplesmente: "EU SEI, " VAMOS."
- Entã o, no caminho, vamos cair nos braços deles! - declarou Momo.
"NAO ENCONTRAREMOS NENHUM", foi a resposta de Cassiopé ia.
Bem, se ela tinha tanta certeza, podia-se con iar. Momo pô s
Cassiopeia no chã o.
No entanto, ao pensar no caminho longo e cansativo que já
percorrera uma vez, sentiu que nã o tinha mais forças para isso.
- Vá sozinha, Cassiopé ia - disse ela, baixinho -, eu nã o aguento mais.
Vá sozinha e leve minhas lembranças a Mestre Hora.
"ESTAMOS PERTO!", apareceu nas costas de Cassiopé ia.
Momo leu e olhou à sua volta, espantada. Pouco a pouco, no entanto,
percebeu que estavam naquela parte deserta e pobre da cidade por
onde, da outra vez, tinham passado antes de entrar na regiã o de casas
brancas e luminosidade estranha.
Sendo assim, talvez ela ainda conseguisse chegar ao Beco do Nunca e
à Casa de Lugar Nenhum.
- Tudo bem - disse Momo -, vou com você . Será que posso carregá -la,
para chegarmos mais depressa?
"INFELIZMENTE NAO", Momo leu nas costas de Cassiopé ia.
- Por que é que você sempre tem que rastejar sozinha? perguntou a
menina.
Entã o apareceu a resposta enigmá tica: "O CAMINHO ESTA DENTRO
DE MIM."
Com isso, a tartaruga começou a andar e Momo foi atrá s, passo a
passo, lentamente.
Mal a tartaruga e a menina tinham desaparecido por uma das ruelas,
algo se movimentou em torno da praça, nas sombras das casas. Um
ruı́do crepitou pelo imenso espaço vazio, como um risinho gé lido de
zombaria. Eram os homens cinzentos, que tinham assistido a toda a
cena. Alguns tinham icado para trá s, para vigiar a menina, em segredo.
Esperaram muito, mas nem eles imaginaram que seria uma espera tã o
bem-sucedida.
- Lá vã o elas! - sussurrou uma voz cinzenta. - Vamos agarrá -las?
- Claro que nã o! - murmurou outra voz. - Vamos deixá -las andar.
- Como assim? - perguntou a primeira voz. - Pois nã o recebemos
ordens para pegar a tartaruga a qualquer custo?
- Certo. Mas para que precisamos dela?
- Para que nos leve à morada de Mestre Hora.
- Exatamente. E o que ela está fazendo agora. E nem estamos
precisando forçá -la.
Está caminhando por livre e espontâ nea vontade, embora nã o com
essa intençã o.
Mais uma vez, um risinho gé lido de zombaria atravessou as sombras
escuras em torno da praça
- Avisem imediatamente a todos os agentes da cidade que a busca
está suspensa.
Todos devem se juntar a nó s. Mas tenham muito cuidado, senhores!
Nenhum de nó s deve se colocar em seu caminho. Devemos lhes dar
passagem livre. Elas nã o podem nos encontrar. Agora, senhores, vamos
seguir tranquilamente nossos dois guias involuntá rios!
Assim, Momo e Cassiopé ia nã o encontraram, de fato, nenhum de seus
perseguidores.
Para onde quer que fossem, eles se desviavam e sumiam a tempo,
para em seguida juntarem-se a seus companheiros, atrá s dá tartaruga e
da menina. Uma procissã o cada vez maior de homens cinzentos,
sempre se dissimulando atrá s dos muros e das esquinas, seguia
silenciosamente a caminhada das duas fugitivas.
Nunca na vida Momo tinha sentido tanto cansaço. As vezes achava
que no momento seguinte ia cair e adormecer. Mas entã o fazia um
esforço para dar mais um passo, e mais outro. Depois, por mais alguns
instantes, as coisas melhoravam um pouco
Se pelo menos a tartaruga nã o rastejasse tã o terrivelmente devagar!
Quanto a isso, no entanto, nã o havia o que fazer. Momo já nã o olhava
nem para a direita nem para a esquerda, mas só para seus pró prios pé s
e para Cassiopé ia.
Depois de algum tempo, que lhe pareceu uma eternidade, percebeu
que o chã o sob seus pé s estava mais claro. Suas pá lpebras pesavam
como chumbo, mas Momo fez força para mantê -las abertas e olhou à
sua volta.
Sim, inalmente tinham chegado à quela regiã o da cidade em que a
luminosidade nã o era nem da aurora nem do crepú sculo e em que as
sombras se projetavam em todas as direçõ es. Lá estavam as casas
misteriosas, de um branco ofuscante, com suas janelas escuras. E lá
estava també m o curioso monumento, que nada mais era do que
um imenso ovo sobre um pedestal de pedra preto.
p p p
Momo recuperou sua coragem, pois certamente nã o demoraria
muito para estarem junto de Mestre Hora.
- Por favor, nã o podemos andar um pouco mais depressa? -
perguntou a Cassiopé ia.
"QUANTO MAIS DEVAGAR, MAIS DEPRESSA", foi a resposta da
tartaruga.
Ela continuou rastejando, mais devagar ainda do que antes. E de fato,
como da outra vez, Momo percebeu que, andando devagar, avançavam
mais depressa. Era como se a rua deslizasse sob seus pé s, tanto mais
depressa quanto mais devagar elas caminhavam.
Esse era o misté rio daquela regiã o branca da cidade: quanto mais
devagar se caminhava, mais depressa se saı́a do lugar. E, quanto mais se
tinha pressa, mais devagar se avançava. Da outra vez, os homens
cinzentos nã o sabiam disso, quando tentaram perseguir Momo com
seus trê s automó veis. Por isso ela conseguira escapar.
Isso, no entanto, tinha sido da outra vez!
Agora era diferente. Eles nã o queriam pegar a menina e a tartaruga.
Estavam seguindo as duas, caminhando tã o lentamente quanto elas.
Assim també m descobriram o segredo. Lentamente, as ruas brancas
atrá s das duas foram se enchendo com o batalhã o de homens cinzentos.
Como agora eles sabiam como se movimentar naquele lugar,
caminhavam até um pouco mais devagar do que a tartaruga, chegando
cada vez mais perto dela. Era como uma corrida ao contrá rio, uma
corrida de lentidã o.
O caminho atravé s daquelas ruas de sonho dava voltas e mais voltas,
aprofundando-se cada vez mais na regiã o branca. Finalmente chegou a
esquina do Beco do Nunca.
Cassiopé ia já entrara no beco e caminhava para a Casa de Lugar
Nenhum. Momo lembrou-se de que, naquela rua, só conseguira avançar
depois de se virar e começar a andar de costas. Por isso, fez o mesmo.
Entã o, seu coraçã o quase parou de susto.
Como um muro cinzento mó vel, os ladrõ es de tempo vinham
chegando, dispostos em ileiras que ocupavam toda a largura da rua e
se sucediam uma atrá s da outra, a perder de vista.
Momo deu um grito, mas nã o conseguiu ouvir sua pró pria voz
Andando de costas, entrou no Beco do Nunca enquanto itava, de olhos
arregalados, o batalhã o dos homens cinzentos.
Naquele momento, aconteceu algo incrı́vel: quando os primeiros
perseguidores tentaram enveredar pelo Beco do Nunca, literalmente
dissolveram-se em nada diante dos olhos de Momo. Primeiro sumiram
suas mã os, depois as pernas, o tronco e, inalmente, també m seus
rostos, que mostravam uma expressã o de espanto e pavor.
Só que Momo nã o fora a ú nica a presenciar o que tinha ocorrido.
Naturalmente, os homens cinzentos que vinham atrá s també m viram
tudo Os primeiros estacaram, detendo a massa dos que vinham atrá s, e
no inı́cio houve como que uma briga corporal entre eles. Momo via seus
rostos furiosos e seus punhos que brandiam ameaçadores. Nenhum
deles, poré m, ousou continuar a perseguiçã o.
A inal, a menina chegou à Casa de Lugar Nenhum. A grande e pesada
porta de metal verde se abriu. Momo entrou correndo e passou por
todo o corredor com as esculturas de pedra. Abriu a portinha que havia
na outra extremidade e se esgueirou por ela, percorreu a sala com os
inú meros reló gios até a salinha formada pelas caixas dos reló gios de pé .
Lá , jogou-se no sofá macio e escondeu o rosto debaixo de uma
almofada, para nã o ver nem ouvir mais nada
Capítulo Dezenove
OS SITIADOS PRECISAM TOMAR UMA DECISÃO

Uma voz sussurrava.


Devagarinho, Momo emergiu das profundezas de seu sono sem
sonhos. Sentia-se maravilhosamente revigorada e descansada
- A menina nã o teve culpa - ela ouviu a voz dizer -, mas você ,
Cassiopé ia, por que fez isso?
Momo abriu os olhos Mestre Hora estava sentado à mesinha na
frente do sofá .
Olhava com expressã o fechada para o chã o, onde estava a tartaruga.
- Você nã o supô s que os homens cinzentos poderiam segui-las?
"APENAS SEI COM ANTECEDENCIA", apareceu nas costas de
Cassiopé ia. "NAO SUPONHO!"
Mestre Hora sacudiu a cabeça e suspirou:
- Ah, Cassiopé ia, Cassiopé ia. As vezes você també m é um enigma
para mim!
Momo sentou-se.
- Ah, nossa querida Momo acordou - disse Mestre Hora, amá vel. -
Espero que você esteja se sentindo bem de novo!
- Muito bem, obrigada - respondeu a menina - Desculpe eu ter caı́do
direto no sono!
- Ora, nã o se incomode com isso - replicou Mestre Hora. - Está tudo
bem. Nã o precisa explicar nada. Cassiopé ia já me contou tudo o que eu
nã o pude ver com meus ó culos de visã o global.
- E o que aconteceu com os homens cinzentos? - perguntou Momo.
Mestre Hora tirou do bolso um grande lenço azul.
- Eles nos cercaram. Cercaram a Casa de Lugar Nenhum por todos os
lados. Ou melhor, chegaram o mais perto que conseguiram.
- Mas eles nã o podem entrar aqui, nã o é ? - perguntou Momo.
- Nã o. Você mesma viu que, ao chegarem ao Beco do Nunca, eles se
dissolvem em nada.
- Como é que isso acontece? - perguntou ela.
- E a contracorrente do tempo - explicou Mestre Hora. Você sabe que
lá é preciso fazer tudo ao contrá rio, nã o é ? Em torno da Casa de Lugar
Nenhum o tempo corre ao contrá rio. Normalmente, o que acontece é
que o tempo entra na pessoa. Assim, a pessoa ica cada vez mais velha,
pois há cada vez mais tempo nela. Mas no Beco do
Nunca o tempo sai dela. Pode-se dizer que a pessoa ica mais jovem
quando o percorre. Nã o muito mais jovem, é claro, apenas o tempo que
levou para percorrê -lo.
- Nã o reparei nisso - disse Momo, surpresa.
- Bem - explicou Mestre Hora -, para um ser humano isso nã o
signi ica muito, pois ele é muito mais do que o tempo que conté m. Mas
para os homens cinzentos é diferente. Eles se constituem apenas de
tempo roubado. E esse tempo sai deles quando entram na
contracorrente do tempo, tal como o ar sai de um balã o que estoura. Só
que do balã o resta pelo menos o invó lucro, ao passo que deles nã o
sobra nada.
Momo pô s-se a re letir intensamente.
- Nã o seria possı́vel fazer todo o tempo correr ao contrá rio? -
perguntou ela, depois de alguns momentos. - Quer dizer, só por alguns
instantes? Todas as pessoas icariam um pouco mais jovens, o que nã o
teria importâ ncia. E os ladrõ es de tempo se dissolveriam em nada.
Mestre Hora sorriu.
- De fato, seria bom. Mas infelizmente nã o é possı́vel. As duas
correntes estã o em equilı́brio. Se uma fosse eliminada, a outra també m
desapareceria. Entã o nã o haveria mais tempo...
Mestre Hora se calou e empurrou os ó culos de visã o global para a
testa.
- Isto é ... - murmurou ele, levantando-se e andando de um lado para
outro, mergulhado em seus pensamentos.
Momo observava-o admirada, e Cassiopé ia també m o acompanhava
com o olhar.
A inal, ele voltou a sentar e lançou para Momo um olhar
perscrutador.
- Você me deu uma ideia - disse ele -, mas nã o depende só de mim
colocá -la em prá tica.
Dirigiu-se entã o à tartaruga, que estava a seus pé s.
- Cassiopé ia, minha cara! Na sua opiniã o, qual é a melhor coisa que se
tem a fazer durante um cerco?
"TOMAR CAFE DA MANHA", foi a resposta que apareceu na carapaça
da tartaruga.
- E - concordou Mestre Hora -, també m é uma boa ideia. No mesmo
instante, a mesinha apareceu arrumada para a refeiçã o. Ou será que já
tinha sido preparada antes, sem que Momo o tivesse notado? De
qualquer modo, lá estavam novamente as xicrinhas de ouro e todo o
resto do café da manhã , com seu brilho dourado: o bule com o chocolate
fumegante, o mel, a manteiga e os pã ezinhos crocantes.
Desde sua primeira visita, Momo pensava muitas vezes com saudade
naquelas coisas deliciosas, e imediatamente começou a comer, com
muito apetite. Parecia que estava tudo mais gostoso ainda do que da
outra vez. Alé m disso, també m Mestre Hora lançou-se à refeiçã o com
muito apetite.
- Eles querem que você lhes dê todo o tempo de todas as pessoas -
disse Momo, depois de alguns instantes, mastigando e com as
bochechas cheias. - Mas isso você nã o vai fazer nã o é mesmo?
- Nã o, minha menina - respondeu Mestre Hora. - Isso nã o vou fazer,
nunca! O tempo começou em determinado momento e vai acabar em
determinado momento, mas só quando as pessoas nã o precisarem mais
dele. De mim os homens cinzentos nã o vã o conseguir um só instante de
tempo.
- Só que eles dizem que poderã o obrigar você a isso - insistiu Momo.
- Antes de continuarmos a conversa - disse ele, muito sé rio - quero
que você mesma os observe.
Tirando seus pequenos ó culos dourados, Mestre Hora os entregou a
Momo, que os colocou.
No começo ela só viu uma confusã o de cores e formas, que a
deixaram tonta, como da primeira vez. Mas dessa vez passou depressa e
seus olhos logo se adaptaram à visã o global.
Entã o ela viu o exé rcito dos sitiantes.
Ombro a ombro, lá estavam os homens cinzentos, em interminá veis
ileiras cerradas. Nã o se alinhavam apenas à entrada do Beco do Nunca,
mas estendiam-se mais alé m, formando um grande cı́rculo, que
abrangia toda aquela regiã o da cidade com as casas brancas como neve,
cujo centro era a Casa de Lugar Nenhum. Nã o havia uma só brecha no
cerco.
Momo, no entanto, notou uma outra coisa, algo muito estranho.
Primeiro pensou que as lentes dos ó culos de visã o global estivessem
embaçadas ou que ainda nã o estivesse enxergando com nitidez, pois
uma estranha né voa tornava indistintos os contornos dos homens
cinzentos.
Veri icou depois que a né voa nada tinha a ver com as lentes dos
ó culos ou com os seus olhos. Levantava-se das ruas onde eles se
encontravam. Em alguns lugares, já era densa e opaca, em outros estava
apenas começando a se formar.
Os homens cinzentos permaneciam imó veis. Cada um tinha o
chapé u-coco na cabeça, a pasta cinza-chumbo na mã o e o charuto aceso
na boca. Mas a fumaça nã o se dispersava, como acontecia normalmente.
Ali, onde nã o havia sequer uma brisa, naquele ar vı́treo, formava vé us
resistentes como teias de aranha, cobrindo as ruas e subindo pelas
fachadas das casas brancas como neve, estendendo-se em longas
lâ mulas. Depois concentrava-se em nuvens verde-azuladas viscosas,
que iam se acumulando devagar mas persistentemente, envolvendo a
Casa de Lugar Nenhum por todos os lados, como um muro que fosse
crescendo cada vez mais.
Momo també m observou que de tempos em tempos chegavam mais
homens cinzentos, para ocupar o lugar daqueles que iam se
dissolvendo. Por que estaria acontecendo tudo aquilo? Qual seria o
plano dos ladrõ es de tempo? A menina tirou os ó culos e olhou para
Mestre Hora, com ar de interrogaçã o.
- Já viu o su iciente? - perguntou ele. - Entã o me dê os ó culos, por
favor.
Enquanto os colocava, continuou:
- Você perguntou se eles poderiam me obrigar a alguma coisa. A mim
mesmo, como você sabe, nã o serã o capazes de atingir. No entanto,
poderiam fazer cair sobre as pessoas uma desgraça pior do que
qualquer outra coisa que tenham feito até agora. E estã o tentando me
pressionar com essa ameaça.
- Coisa pior? - disse Momo, assustada. Mestre Hora con irmou,
meneando a cabeça.
- Eu distribuo para cada pessoa o tempo que lhe cabe. Isso os
homens cinzentos nã o podem impedir. També m nã o podem se
apropriar do tempo concedido por mim. Mas podem envenená -lo.
- Envenenar o tempo? - perguntou ela, perplexa
- Com a fumaça de seus charutos - explicou Mestre Hora.
- Você já viu algum deles sem aquele pequeno charuto cinzento na
boca?
Certamente, pois sem o charuto deixariam de existir.
- Do que sã o feitos esses charutos? - indagou Momo.
- Certamente você se lembra das lores-das-horas - disse Mestre
Hora. - Naquela ocasiã o eu lhe disse que cada ser humano tem dentro
de si um templo dourado do tempo, pois cada um tem coraçã o. Quando
as pessoas deixam os homens cinzentos entrarem nesse templo, eles
vã o tirando pedaços da lor. Mas as lores-das-horas que sã o arrancadas
dessa maneira do coraçã o das pessoas nã o podem morrer, pois na
verdade elas nã o murcharam. També m nã o podem viver, já que foram
separadas de seus verdadeiros donos. Elas se empenham com todas as
ibras do seu ser para voltar à s pessoas a quem pertencem.
Momo ouvia, com a respiraçã o suspensa.
- Você precisa saber, Momo, que o mal també m tem seu segredo. Nã o
sei onde os homens cinzentos guardam as lores-das-horas roubadas.
Só sei que as congelam atravé s de sua pró pria frieza, tornando-as
só lidas como pequenas taças de cristal, impedindo assim que elas
voltem. Em algum ponto, profundamente escondidos sob a terra, deve
haver gigantescos depó sitos, onde ica todo o tempo congelado. Mesmo
lá , as lores-das-horas nã o morrem.
As faces de Momo ardiam de indignaçã o.
- Os homens cinzentos vã o continuamente se abastecer nesses
depó sitos. Arrancam as pé talas das lores, deixam-nas murchar até
icarem completamente secas e cinzentas, e com elas enrolam seus
charutinhos. Mas sempre ainda há um resto de vida nas pé talas. Os
homens cinzentos nã o conseguem obter tempo vivo, por isso acendem
esses charutos e os fumam. Só nessa fumaça é que o tempo está
totalmente morto. E desse tempo morto dos seres humanos os homens
cinzentos extraem sua existê ncia.
Momo tinha se levantado
- Ah! - disse ela. - Quanto tempo morto...
- Pois é . Aquele muro de fumaça que eles levantaram lá fora, em
torno da Casa de Lugar Nenhum, é todo feito de tempo morto. Ainda há
cé u limpo su iciente, ainda posso mandar para as pessoas seu tempo
integral. No entanto, quando essa abó bada escura se fechar sobre nó s, a
cada hora enviada por mim irá se misturar um pouco do tempo morto e
fantasmagó rico dos homens cinzentos. E, quando as pessoas acolherem
essas horas, icarã o doentes, até mesmo mortalmente doentes.
Momo itava Mestre Hora sem compreender.
- Que espé cie de doença é essa? - perguntou baixinho.
- No começo, mal dá para perceber. Um belo dia, a pessoa nã o tem
mais vontade de fazer nada. Nada lhe interessa, tudo a aborrece Mas
essa falta de vontade nã o desaparece, pelo contrá rio, aumenta cada vez
mais. Piora de dia para dia, de semana para semana. A pessoa se sente
cada vez mais desanimada, mais vazia, cada vez mais insatisfeita
consigo mesma e com o mundo. Até que esse pró prio sentimento
desaparece, a pessoa nã o sente mais nada. Torna-se inteiramente
indiferente e cinzenta. Distancia-se do mundo e desliga-se dele. Nã o
sente mais raiva nem satisfaçã o, nã o sente alegria nem tristeza, nã o
sabe mais rir nem chorar. Torna-se fria, nã o consegue mais gostar de
nada nem de ningué m. Quando chega a esse ponto, a doença é
incurá vel. Nã o há mais volta. A pessoa corre de um lado para outro, com
uma isionomia vazia e cinzenta. Torna-se igual aos homens cinzentos,
ou seja, é um deles O nome dessa doença é té dio mortal.
Momo teve um calafrio.
- Se você se recusar a lhes entregar o tempo de todos os seres
humanos, os homens cinzentos transformarã o todas as pessoas em
seres iguais a eles? - perguntou ela.
- Sim - respondeu Mestre Hora -, e com isso querem me pressionar.
Levantou-se e continuou:
- Até agora, eu tinha esperança de que as pessoas se libertassem
sozinhas desses espı́ritos malignos. Isso seria possı́vel, pois foram elas
mesmas que contribuı́ram para que eles passassem a existir. Mas nã o
posso esperar mais. Preciso fazer alguma coisa. Só que nã o posso agir
sozinho.
Ele olhou para Momo.
- Você quer me ajudar?
- Quero - sussurrou a menina.
- Terei de expô -la a perigos incalculá veis - disse Mestre Hora. - Ou o
mundo irá parar para sempre ou começará de novo a viver. E isso
dependerá só de você , Momo. Quer mesmo se arriscar?
- Quero! - repetiu Momo, e dessa vez em tom decidido.
- Muito bem! - declarou Mestre Hora. - Entã o preste muita atençã o no
que vou dizer, pois você estará totalmente entregue a si mesma e nã o
poderei mais ajudá -la. Nem eu, nem ningué m!
Momo meneou a cabeça e itou Mestre Hora atentamente.
- Em primeiro lugar - disse ele -, saiba que eu nunca durmo. Se eu
adormecer, no mesmo instante todo o tempo cessará . O mundo icará
parado. No entanto, nã o havendo mais tempo, os homens cinzentos
també m nã o poderã o roubar ningué m.
Talvez ainda possam existir por alguns momentos, pois tê m grandes
reservas. Mas, quando seus suprimentos se esgotarem, eles se
dissolverã o em nada.
- Entã o é fá cil - declarou a menina.
- Infelizmente, nã o é tã o fá cil assim. Se fosse, eu nã o precisaria da sua
ajuda.
Nã o havendo mais tempo, eu també m nã o poderia mais acordar. O
mundo icaria parado por toda a eternidade. No entanto, está em meu
poder, Momo, dar só a você uma lor-das-horas. Mas apenas uma, pois
só uma loresce de cada vez. Assim, quando o tempo do mundo parar,
você ainda terá uma hora.
- E poderei acordar você ! - disse Momo.
- Só com isso nã o conseguiremos nada - continuou ele -, pois as
reservas dos homens cinzentos sã o muito, muito maiores. Em apenas
uma hora eles teriam gasto uma parte mı́nima delas. Portanto,
continuariam existindo. Sua tarefa será muito mais difı́cil! Os homens
cinzentos logo perceberã o que o tempo parou, pois nã o poderã o mais
se abastecer de charutos. Assim que isso acontecer, suspenderã o
o cerco e correrã o para seus depó sitos. Entã o você deverá segui-los,
Momo. Se você descobrir seu esconderijo, poderá impedir que eles
tenham acesso a suas reservas de tempo. Quando terminarem seus
charutos, també m os homens cinzentos terã o chegado ao im. Mas
ainda restará uma coisa a fazer, e talvez essa seja a parte mais difı́cil.
Depois que o ú ltimo ladrã o de tempo desaparecer, você deverá libertar
todo o tempo roubado. Só quando esse tempo voltar aos seres humanos
é que o mundo deixará de icar parado e que eu poderei acordar de
novo. Para tudo isso, você terá apenas uma hora.
Momo olhou para Mestre Hora desarvorada. Nã o contava com aquele
monte de di iculdades e perigos.
- Quer tentar assim mesmo? - perguntou Mestre Hora. - E a ú nica e
ú ltima possibilidade.
Momo icou calada. Achava-se incapaz de fazer tudo aquilo. "VOU
COM VOCE", a menina leu, de repente, nas costas de Cassiopé ia.
Como a tartaruga poderia ajudá -la? No entanto, era pelo menos um
minú sculo raio de esperança para Momo. A perspectiva de nã o estar
completamente sozinha lhe deu coragem. Embora fosse uma coragem
sem nenhum fundamento real, era su iciente para ela tomar uma
decisã o.
- Vou tentar - disse ela, resoluta.
Mestre Hora olhou-a demoradamente e sorriu.
- Muita coisa será mais fá cil do que parece agora. Você ouviu a
mú sica das estrelas. Nã o precisa ter medo.
Voltando-se para a tartaruga, perguntou:
- Entã o, Cassiopé ia, você quer ir també m'
"E CLARO", apareceu na sua carapaça. Essas letras se apagaram e
apareceram as palavras. "ALGUEM PRECISA CUIDAR DELA"
Mestre Hora e Momo sorriram um para o outro.
- Ela també m vai receber uma lor-das-horas? - perguntou Momo.
- Cassiopé ia nã o precisa - explicou ele, coçando carinhosamente o
pescoço da tartaruga. - E um ser fora do tempo. Ela carrega em si o seu
pró prio tempinho.
Poderia continuar rastejando pelo mundo inteiro, mesmo que tudo
parasse para sempre.
- Bem - disse Momo, tomada por um sú bito desejo de açã o -, entã o o
que vamos fazer agora?
- Agora vamos nos despedir! - respondeu Mestre Hora. Momo
engoliu em seco e perguntou, baixinho:
- Será que nunca mais nos veremos?
- Voltaremos a nos ver, sim, Momo - respondeu Mestre Hora. - E, até
entã o, cada hora de sua vida lhe trará uma lembrança de mim. Pois
vamos continuar amigos, nã o é mesmo?
- Claro! - a irmou Momo.
- Agora vou embora - continuou Mestre Hora. - Você nã o deve me
seguir nem me perguntar para onde vou. Meu sono nã o é um sono
comum, e é melhor que você nã o esteja perto Só mais uma coisa: assim
que eu sair, abra imediatamente as duas portas, a pequenina com meu
nome e a grande, de metal verde, que dá para o Beco do Nunca. Pois,
assim que o tempo parar, tudo icará imó vel. E nã o haverá poder no
mundo que faça essas duas portas se moverem. Entendeu e guardou
tudo direitinho, minha menina?
- Entendi - respondeu Momo -, mas como vou reconhecer o momento
em que o tempo parar?
- Nã o se preocupe, você vai perceber.
Mestre Hora levantou-se e Momo també m. Ele acariciou levemente
seus cabelos desgrenhados.
- Adeus, Momo - disse ele. - Para mim foi uma grande alegria você me
ouvir també m.
- Mais tarde, vou falar de você para todo o mundo - respondeu
Momo.
De repente, Mestre Hora voltou a parecer incrivelmente velho, como
daquela vez em que a levara ao templo dourado, velho como uma
montanha de tempos remotos ou uma á rvore secular
Ele se virou e saiu depressa da salinha formada pelas caixas dos
reló gios. Momo ouvia seus passos se afastarem cada vez mais, até se
confundirem com os tique-taques dos reló gios. Talvez tivesse entrado
naqueles tique-taques.
Momo pegou Cassiopé ia no colo e estreitou-a contra si. Sua maior
aventura tinha começado, irrevogavelmente
Capítulo Vinte
OS PERSEGUIDORES PERSEGUIDOS

A primeira coisa que Momo fez -foi abrir a portinha interna com o
nome de Mestre Hora. Em seguida, correu pelo corredor com as
grandes está tuas de pedra e abriu a enorme porta de metal verde. Teve
que usar toda a sua força, pois as folhas da porta eram muito pesadas.
Feito isso, voltou para a grande sala dos reló gios e, com Cassiopé ia
debaixo do braço, icou à espera do que aconteceria.
Entã o aconteceu!
Subitamente houve uma espé cie de tremor, que nã o fez a sala tremer,
mas o tempo.
Foi, por assim dizer, um tremor de tempo. Nã o há palavras capazes
de descrever o que aconteceu. O fenô meno foi acompanhado por um
som que nenhum ser humano jamais ouvira. Era como um gemido
provindo das profundezas dos sé culos.
Depois tudo passou.
No mesmo instante, as muitas vozes dos tique-taques, roncos,
campainhas, rangidos e batidas dos inú meros reló gios cessaram
repentinamente. Os pê ndulos interromperam suas oscilaçõ es no ponto
em que se encontravam. Nada, nada mais se movia. Imediatamente fez-
se um silê ncio tã o absoluto como jamais ocorrera em parte alguma do
mundo. O tempo havia parado.
Momo viu entã o que tinha na mã o uma imensa e maravilhosa lor-
das-horas A menina nã o percebera como aquela lor tinha chegado à
sua mã o. Apareceu de repente, como se sempre tivesse estado ali.
Cautelosamente, Momo deu um passo. De fato, conseguia
movimentar-se com a mesma facilidade de sempre. Os restos do café da
manhã ainda estavam sobre a mesinha.
Momo sentou-se numa das poltronas, poré m as almofadas estavam
duras como má rmore e muito desconfortá veis. Na sua xı́cara restava
ainda um gole de chocolate, só que nã o dava mais para levantá -la do
pires. Momo quis mergulhar o dedo no lı́quido, que no entanto estava
duro como vidro. També m nã o conseguiu apanhar as migalhas de pã o
que tinham icado no prato. Como nã o havia mais tempo, nada mais se
alterava nem se movia.
Cassiopé ia começou a se agitar e Momo olhou para ela
"ESTA PERDENDO TEMPO!", apareceu na carapaça.
Meu Deus, de fato! Momo se apressou. Atravessou a sala, esgueirou-
se pela portinha e continuou correndo pelo longo corredor. Quando
chegou à porta verde, deu uma espiada para a esquina e recuou na
mesma hora. Seu coraçã o começou a bater aos saltos. Os ladrõ es de
tempo nã o estavam indo embora. Pelo contrá rio, vinham andando pelo
Beco do Nunca, onde també m cessara a contracorrente do tempo, na
direçã o da Casa de Lugar Nenhum. Aquilo nã o estava previsto no plano.
Momo voltou em disparada para a sala e escondeu-se atrá s de um
grande reló gio de pé , sempre com Cassiopé ia debaixo do braço.
- Começou bem - murmurou ela.
Ouviu os passos dos homens cinzentos no corredor. Passaram um de
cada vez pela portinha, até se formar um batalhã o deles na sala. Todos
olhavam à sua volta.
- Impressionante! - disse um deles. - Entã o é esta nossa nova morada!
- Foi a menina Momo que abriu a porta - disse uma outra voz
cinzenta. - Eu vi muito bem. Criança inteligente! E admirá vel como ela
conseguiu dar um jeito no velho.
Uma terceira voz, idê ntica, respondeu:
- Na minha opiniã o, o tal fulano deu seu consentimento. Pois, se a
contracorrente no Beco do Nunca cessou, só pode ser porque ele a
desligou. Deve ter compreendido que precisa se submeter a nó s. Agora
vamos acabar logo com ele.
Onde será que se escondeu?
Os homens cinzentos puseram-se a olhar em volta, quando um deles
exclamou, com uma voz mais cinzenta ainda:
- Alguma coisa está errada, senhores! Os reló gios! Vejam, os reló gios
estã o todos parados. Todos! Até este reló gio de areia!
- Ele mesmo os parou - disse outro, sem muita segurança.
- Nã o dá para parar um reló gio de areia - gritou o primeiro. -
Reparem, a areia parou no meio da queda! També m nã o dá para mover
o reló gio! O que signi ica isso?
Ele ainda estava falando, quando se ouviram passos apressados no
corredor. Um outro homem cinzento entrou, gesticulando agitado, e
gritou:
- Acabamos de receber notı́cias de nossos agentes da cidade. Seus
carros pararam.
Tudo parou. O mundo está parado. Nã o é mais possı́vel tirar a menor
parcela de tempo de qualquer ser humano. Nosso sistema de
abastecimento sucumbiu. Nã o há mais tempo. Hora desligou o tempo!
Por um momento, houve um silê ncio mortal. Depois, um deles
perguntou:
- O que está dizendo? Nosso sistema de abastecimento sucumbiu? O
que vai ser de nó s, entã o, quando os charutos que estã o conosco
tiverem acabado?
- Todos sabem perfeitamente o que vai ser de nó s! - gritou um outro.
- E uma catá strofe terrı́vel, senhores!
Começaram a gritar todos ao mesmo tempo:
- Hora pretende nos destruir!
- Temos de levantar o cerco imediatamente!
- Precisamos chegar ao nosso depó sito de tempo!
- Sem carros? Nã o vai dar! Meus charutos só vã o durar mais vinte e
sete minutos.
- Os meus, quarenta e oito.
- Entã o me dê alguns!
- Está louco?
- Salve-se quem puder!
Os homens cinzentos se precipitaram para a portinha, tentando sair
todos ao mesmo tempo. De seu esconderijo, Momo observava como
lutavam, em pâ nico, empurrando, puxando uns aos outros, numa
confusã o cada vez mais violenta Cada um queria passar à frente do
q p
outro, lutando por sua vida cinzenta. Os chapé us voavam de suas
cabeças, saı́am brigas e um tentava arrancar o charuto da boca
do outro. Cada um que icava sem charuto parecia perder as forças de
repente.
Ficava ali, com as mã os estendidas, com uma expressã o de desespero
e medo no rosto, tornando-se cada vez mais transparente, até sumir.
Nada sobrava dele, nem mesmo o chapé u.
No inal, só restaram na sala trê s homens cinzentos, que
conseguiram sair pela portinha estreita e foram embora.
Momo, sempre com a tartaruga debaixo do braço e a lor-das-horas
na outra mã o, correu atrá s deles. Agora tudo dependia de ela nã o
perder de vista os homens cinzentos.
Ao passar pelo portã o, viu que os ladrõ es de tempo já tinham
chegado ao im do Beco do Nunca. Lá , no meio das nuvens de fumaça,
havia outros grupos de homens cinzentos, que gesticulavam agitados e
falavam todos ao mesmo tempo. Quando viram chegar correndo os que
saı́am da Casa de Lugar Nenhum, começaram a correr també m, outros
juntaram-se aos fugitivos. Em pouco tempo, todo o exé rcito batia em
retirada. Uma interminá vel caravana de homens cinzentos corria na
direçã o da cidade pela estranha regiã o dos sonhos, com as casas
brancas como neve e as sombras que se projetavam em todas as
direçõ es. Com o im do tempo, també m ali cessara a misteriosa inversã o
entre devagar e depressa.
A coluna de homens cinzentos passou pelo imenso monumento-ovo
e continuou até onde surgiam as primeiras casas comuns, aqueles
quarté is de aluguel cinzentos e esquá lidos em que as pessoas moravam
no limite do tempo. També m ali estava tudo imó vel.
A uma certa distâ ncia, atrá s dos ú ltimos da ila, seguia Momo. Assim
iniciou-se uma caçada invertida atravé s da grande cidade. Era uma
caçada em que um imenso bando de homens cinzentos fugia,
perseguido por uma menininha com uma lor na mã o e uma tartaruga
debaixo do braço.
Como era estranho o aspecto da grande cidade! Nas ruas e avenidas,
viam-se ilas e ilas de carros parados, com os motoristas imó veis atrá s
do volante, a mã o no câ mbio ou na buzina (um deles estava com a mã o
na testa, olhando furioso para o que estava a seu lado). Alguns ciclistas
mantinham o braço estendido, indicando que iam virar a esquina. Nas
calçadas, todos os pedestres, homens, mulheres e crianças, cã es e gatos
estavam parados e duros. Até a fumaça dos canos de escapamento
estava imó vel.
No cruzamento das ruas, guardas de trâ nsito com o apito na boca
tinham se paralisado no meio de seus gestos. Na praça, um bando de
pombos pairava imó vel no ar. Acima, um aviã o parecia pintado no cé u.
A á gua da fonte tinha aspecto de gelo. Algumas folhas, ao cair das
á rvores, tinham icado suspensas no ar. Um cachorrinho, que acabara
de levantar a pata traseira ao lado de um poste, parecia empalhado.
Atravé s daquela cidade imó vel como uma fotogra ia, os homens
cinzentos corriam em disparada. Momo ia atrá s deles, sempre com
cuidado para nã o ser percebida pelos ladrõ es de tempo. De qualquer
modo, eles já nã o prestavam atençã o em nada, pois sua fuga tornava-se
cada vez mais difı́cil e cansativa.
Nã o estavam acostumados a percorrer distâ ncias tã o grandes a pé .
Estavam ofegantes e sem fô lego. Alé m disso, ainda precisavam cuidar
para manter o charuto na boca. As vezes, algum deles o deixava cair e,
antes que conseguisse pegá -lo no chã o, dissolvia-se em nada.
Mas nã o eram apenas os fatores externos que di icultavam sua fuga.
Cada vez mais aumentava a ameaça por parte de seus pró prios
companheiros. Muitos deles, vendo seu charuto chegar ao im,
simplesmente arrancavam desesperados o charuto da boca de quem
estivesse ao lado. Assim, seu nú mero ia diminuindo, devagar mas
constantemente.
Aqueles que ainda levavam uma pequena reserva na pasta
precisavam tomar cuidado para que os outros nã o o percebessem, pois
os que nã o tinham mais nenhum charuto avançavam nos mais ricos,
tentando tomar-lhes o tesouro. Aconteciam brigas ferozes. Montes
deles lançavam-se uns sobre os outros para se apoderarem de suas
provisõ es. Os charutos acabavam rolando pela rua, provocando
tumulto. O medo de sumir do mundo izera os homens cinzentos
perderem a cabeça.
Havia outro problema, que aumentava à medida que avançavam. Em
alguns lugares da cidade, a multidã o era tã o compacta que os homens
cinzentos tinham di iculdade para passar entre as pessoas, que se
comprimiam como á rvores numa loresta densa. Para Momo, que era
baixinha e magra era muito mais fá cil. Mas até as peninhas pairando no
ar estavam tã o solidamente imobilizadas que os homens cinzentos
quase quebravam a cabeça quando, por distraçã o, esbarravam nelas.
Era um trajeto longo, e Momo nã o tinha ideia de quanto ainda faltava
para chegarem. Olhava preocupada para sua lor-das-horas. Mas só
agora ela desabrochara plenamente, portanto ainda nã o havia motivo
para se preocupar. Aconteceu entã o uma coisa que fez Momo, por um
instante, esquecer todo o resto.
Numa ruazinha transversal, ela avistou Beppo Varredor.
- Beppo! - ela gritou, exultante de alegria e correndo para ele. -
Beppo, procurei você por todo lado! Onde esteve esse tempo todo? Por
que nunca mais apareceu? Ah, Beppo, querido Beppo!
A menina quis pular no pescoço de Beppo, mas ricocheteou, como se
ele fosse de gelo. Momo se machucou e as lá grimas subiram a seus
olhos. Ficou olhando para ele, soluçando
Seu corpo baixinho estava mais encurvado do que antes. Seu rosto
bondoso estava magro e pá lido. Em torno do queixo, crescera-lhe uma
barba branca e rala, pois nem tinha mais tempo para se barbear.
Segurava nas mã os uma vassoura velha, já muito gasta de tanto varrer.
Beppo estava ali, imó vel, como todas as outras pessoas, olhando para a
frente, para a sujeira da rua, atravé s dos seus pequenos ó culos.
Finalmente Momo o encontrara, agora que nã o adiantava mais, pois
ele nã o podia mais notá -la. E talvez estivessem se encontrando pela
ú ltima vez. Ningué m poderia saber o que iria acontecer dali para a
frente. Se as coisas nã o dessem certo, o velho Beppo icaria ali, parado
daquele jeito, por toda a eternidade.
A tartaruga começou a arranhar o braço de Momo.
"ADIANTE!", apareceu na sua carapaça.
Momo voltou depressa para a rua principal e levou um susto. Nã o
havia mais nenhum ladrã o de tempo à vista! Correu na direçã o em que
os homens cinzentos estavam fugindo, mas foi em vã o. Tinha perdido
sua pista!
Ficou parada no lugar, desesperada. O que fazer agora? Olhou
interrogativamente para Cassiopé ia.
"CONTINUE, VOCE VAI ACHA-LOS!", respondeu a tartaruga.
Ora, se Cassiopé ia sabia com antecedê ncia que ela encontraria os
ladrõ es de tempo, nã o importava que rumo tomasse, pois qualquer
caminho daria certo.
Entã o Momo saiu andando por onde lhe dava na cabeça, ora
entrando à direita, ora à esquerda, ora seguindo reto.
Acabou chegando à parte norte da grande cidade, os bairros recé m-
construı́dos, com as casas todas iguais e as ruas compridas e retas, que
se perdiam no horizonte.
Momo continuou andando, andando, mas como todas as casas e ruas
se pareciam, logo teve a impressã o de que nã o estava saindo do lugar.
Era um verdadeiro labirinto, mas um labirinto de regularidade e
igualdade.
A menina já estava perdendo a coragem, quando avistou de repente
um homem cinzento virando uma esquina. Ele mancava, estava com a
calça rasgada, perdera o chapé u e a pasta. Só na sua boca de lá bios
apertados ainda queimava o toco de um charutinho cinzento.
Momo seguiu-o até um lugar em que, numa ileira interminá vel de
casas, de repente faltava uma. Em vez dela, havia ali uma cerca alta de
tá buas, que rodeava um amplo espaço quadrado. Na cerca havia um
portã o, que estava entreaberto, e foi por ele que entrou o ú ltimo
retardatá rio dos homens cinzentos.
Sobre o portã o havia um aviso, e Momo parou para soletrá -lo.
PERIGO DE VIDA
EXPRESSAMENTE PROIBIDA
A ENTRADA DE ESTRANHOS
Capítulo Vinte e Um
O FIM, QUANDO COMEÇA ALGO NOVO

Momo demorou um pouco para ler o aviso. Quando entrou pelo portã o,
o ú ltimo homem cinzento també m havia sumido
Diante dela, havia uma vala enorme, com vinte ou trinta metros de
profundidade.
Em torno da vala havia escavadeiras e outras má quinas de
construçã o. Sobre uma rampa que levava ao fundo, estavam parados
alguns vagõ es de carga. Aqui e ali havia vá rios operá rios, imobilizados
em diferentes posturas. Para onde ir agora?
Momo nã o conseguia descobrir nenhuma entrada que o homem
cinzento pudesse ter utilizado. Olhou para Cassiopé ia, que també m
parecia nã o saber de nada. Nenhuma palavra apareceu em sua
carapaça.
Momo desceu ao fundo da vala e olhou à sua volta. De repente, viu
mais um rosto conhecido. Era Nicola, o pedreiro que certa vez pintara
um bonito quadro de lores na parede de seu quarto. Evidentemente,
ele també m estava imó vel, como todos os outros, mas numa posiçã o
muito curiosa. Tinha a mã o em concha ao redor da boca, como se
estivesse gritando alguma coisa para um companheiro, e com a outra
mã o apontava para a abertura de um cano enorme, a seu lado, no fundo
da vala. Parecia estar olhando para Momo.
A menina nã o pensou muito. Entendeu aquilo como um sinal e
entrou pela abertura.
Imediatamente começou a escorregar, pois o cano descia em declive
ı́ngreme, fazendo curvas fechadas. Momo, como num imenso
escorregador, era jogada de um lado para outro. Praticamente perdeu a
audiçã o e a visã o, naquela corrida louca, que a levava cada vez mais
para o fundo. As vezes dava uma cambalhota e continuava
escorregando de cabeça para baixo. Mas nã o largava a tartaruga nem a
lor. Quanto mais se aprofundava, mais sentia frio.
Houve um momento em que chegou a se perguntar se sairia daquele
tú nel. No entanto, assim que lhe ocorreu essa ideia, o cano terminou de
repente, num corredor subterrâ neo.
Ali já nã o era tã o escuro. Havia uma luminosidade cinzenta, que
parecia emanar das pró prias paredes.
Momo pô s-se de pé e continuou andando. Como estava descalça, seus
passos nã o faziam barulho, mas os dos homens cinzentos voltaram a
ressoar à sua frente. Ela foi seguindo o ruı́do.
O corredor rami icava-se numa in inidade de outras passagens. Era
uma rede de arté rias subterrâ neas que parecia estender-se por baixo
de todo o bairro novo.
A certa altura, a menina escutou um burburinho de vozes. Adiantou-
se e icou à espreita num canto, cautelosamente.
Viu à sua frente uma sala gigantesca, em cujo centro havia uma mesa
de reuniõ es extraordinariamente comprida. Sentados à mesa, em duas
ileiras, estavam os homens cinzentos, ou melhor, os pouquı́ssimos que
restavam! Que aparê ncia miserá vel tinham aqueles ú ltimos ladrõ es de
tempo! Seus ternos estavam em farrapos, tinham cortes e galos nas
carecas cinzentas e seus rostos estavam contorcidos de pavor.
Seus charutos, no entanto, continuavam acesos.
Momo observou que atrá s, no fundo da sala, havia uma enorme porta
de cofre, que estava entreaberta. A sala exalava um frio gé lido. Embora
soubesse que nã o adiantava nada, Momo se encolheu toda e escondeu
os pé s debaixo da saia.
- Precisamos economizar nossas reservas - disse um dos homens
cinzentos, que estava sentado bem na frente da porta blindada. - Nã o
sabemos quanto tempo teremos que resistir. Precisamos nos restringir.
- Agora somos muito poucos! - gritou um outro. - Nossas reservas
darã o para anos!
- Quanto antes começarmos a poupar - retomou o orador -, mais
iremos durar. E os senhores bem sabem o que quero dizer com poupar.
Será su iciente que alguns de nó s sobrevivam a essa catá strofe.
Precisamos examinar os fatos objetivamente!
Assim, nó s que aqui estamos, senhores, já somos demais! Precisamos
reduzir consideravelmente nosso nú mero. E uma questã o de
racionalidade. Permitam que lhes peça, senhores, para fazermos uma
contagem.
Os homens cinzentos izeram a contagem, sendo atribuı́do um
nú mero a cada um.
Depois, o presidente da sessã o tirou uma moeda do bolso e explicou:
- Vamos tirar a sorte. Coroa signi ica que os senhores com nú meros
pares icam, cara signi ica que permanecem os de nú meros ı́mpares.
Jogou a moeda para o alto e voltou a pegá -la.
- Coroa! - ele gritou. - Os que tê m nú meros pares icam, os que tê m
nú meros ı́mpares sã o solicitados a se dissolver!
Um lamento inexpressivo percorreu a ileira dos perdedores, mas
nenhum deles protestou.
Os ladrõ es de tempo com nú meros pares tiraram os charutos dos
outros, e os condenados dissolveram-se em nada.
- Agora - disse o presidente da sessã o, quebrando o silê ncio -, vamos
fazer o mesmo mais uma vez, por favor.
O mesmo procedimento cruel foi repetido, depois mais uma vez e
mais outra, quatro vezes ao todo. Finalmente, só tinham sobrado seis
homens cinzentos.
Estavam sentados trê s de cada lado, numa das extremidades da
mesa, e olhavam-se gelidamente.
Momo observou tudo horrorizada. Notou que, cada vez que diminuı́a
o nú mero de homens cinzentos, o frio també m diminuı́a
consideravelmente. Agora já estava quase suportá vel
- Seis - disse um dos homens cinzentos - é um nú mero feio.
- Agora chega! - protestou um dos que estavam do outro lado da
mesa. - Nã o há razã o para diminuirmos mais ainda nosso nú mero. Se
nó s seis nã o conseguirmos sobreviver à catá strofe, trê s també m nã o
conseguirã o.
- Nã o necessariamente - retrucou um outro. - No entanto, se for o
caso, sempre poderemos voltar a conversar sobre isso mais tarde.
Fizeram silê ncio por um momento, até que um deles comentou:
- E uma sorte a porta do depó sito estar aberta quando a catá strofe
começou. Se naquele momento a porta estivesse fechada, agora nã o
haveria força no mundo capaz de abri-la. Estarı́amos perdidos.
- Infelizmente nã o é bem assim, meu caro - respondeu um outro. - A
porta estando aberta, o frio dos congeladores irá diminuir. Aos poucos,
as lores-das-horas irã o degelar. E, como os senhores sabem, nã o
poderemos impedir que elas voltem a seus antigos donos.
- O senhor acha - perguntou um terceiro - que nosso frio já nã o é
su iciente para manter as reservas congeladas?
- Infelizmente somos apenas seis - replicou o segundo - e o senhor
pode avaliar por si mesmo a quantidade de frio que somos capazes de
produzir. Estou achando que fomos precipitados reduzindo nosso
nú mero tã o drasticamente. Nã o ganharemos nada com isso.
- Tı́nhamos de escolher entre duas possibilidades - respondeu o
primeiro homem cinzento - e nos decidimos por essa.
Mais uma vez icaram em silê ncio.
- Quer dizer que talvez tenhamos que icar aqui durante anos, só
olhando uns para os outros? - perguntou um deles. - Confesso que a
perspectiva nã o me parece animadora.
Momo começou a re letir. Certamente nã o tinha sentido icar ali, só
esperando.
Quando nã o houvesse mais homens cinzentos, as lores-das-horas
degelariam por si. Só que por enquanto eles ainda existiam. E
continuariam existindo sempre, se ela nã o izesse alguma coisa. Mas
fazer o que, já que a porta do depó sito estava aberta e os ladrõ es de
tempo poderiam se abastecer a qualquer momento?
Cassiopé ia esperneou e Momo olhou para ela.
"FECHE A PORTA", estava escrito na sua carapaça.
- Nã o dá - sussurrou a menina. - Ela está imó vel.
"TOQUE COM A FLOR", foi a resposta.
- Se eu tocar a porta com a lor-das-horas, ela se fechará ? - sussurrou
Momo.
"ISSO MESMO", apareceu nas costas da tartaruga.
Se Cassiopé ia estava dizendo, era porque ia acontecer. Momo pô s a
tartaruga no chã o, com todo o cuidado. Depois pegou a lor, que já
estava começando a murchar e tinha perdido algumas pé talas, e a
escondeu debaixo do casaco.
Sem que os homens cinzentos a vissem, ela se esgueirou para baixo
da mesa. Foi engatinhando até a outra ponta. Viu-se, entã o, entre os pé s
cios ladrõ es cie tempo, com o coraçã o aos saltos.
Devagarinho, tirou a lor-das-horas de baixo do casaco, colocou-a
entre os dentes e foi se rastejando entre as cadeiras, sempre sem que os
homens cinzentos a notassem.
Momo alcançou a porta entreaberta, tocou-a com a lor e, ao mesmo
tempo, empurrou-a com a mã o.
A porta girou silenciosamente nas dobradiças e se fechou com um
estrondo. O som se repercutiu pela sala em mú ltiplos ecos, que foram se
espalhando pelos milhares de corredores.
Momo deu um salto. Os homens cinzentos, que nem de longe
imaginavam que algum outro ser alé m deles pudesse ter escapado
à quela completa imobilidade, continuaram sentados, paralisados de
susto, olhando para a menina.
Sem perder tempo, Momo passou por eles, correndo para a saı́da da
sala. Logo os homens cinzentos se recuperaram e saı́ram correndo atrá s
dela.
- E aquela menina horrorosa! - ela ouviu um deles gritar.
- E Momo!
- Nã o é possı́vel! - gritou um outro. - Como é que ela consegue se
mover?
- Ela tem uma lor-das-horas - urrou um terceiro.
- Foi com isso que ela conseguiu mover a porta? - perguntou o
quarto.
O quinto bateu com força na testa: - Entã o també m poderı́amos ter
conseguido. Nó s temos um monte delas.
- Tı́nhamos, tı́nhamos! - berrou o sexto. - Mas agora a porta está
fechada! Só temos uma saı́da: precisamos tomar a lor-das-horas da
menina, senã o estará tudo acabado!
Enquanto isso, Momo já tinha desaparecido pelos corredores, que se
rami icavam in initamente. Mas os homens cinzentos conheciam tudo
aquilo bem melhor. Momo ia para um lado, ia para o outro, à s vezes
quase caı́a nos braços de algum de seus perseguidores, mas sempre
conseguia escapar.
Cassiopé ia també m, a seu modo, participava da batalha Só conseguia
rastejar muito devagar, mas, como sabia de antemã o por onde os
perseguidores iriam passar, chegava ao lugar na hora certa, colocava-se
no meio do caminho, de tal modo que os cinzentos tropeçavam nela e se
estatelavam no chã o. Os que vinham atrá s iam caindo um por cima do
outro. Desse modo, a tartaruga salvou Momo vá rias vezes de ser
apanhada. E claro que muitas vezes ela mesma acabava sendo chutada
contra a parede. Isso, no entanto, nã o a impedia de continuar fazendo o
que sabia de antemã o que iria fazer.
Nessa correria, alguns homens cinzentos, atordoados pelo anseio de
se apossar da lor-das-horas, perderam seus charutos e se dissolveram
em nada. Finalmente, só restaram dois.
Momo voltou para a sala de reuniõ es. Os dois ladrõ es de tempo
correram atrá s dela em volta da mesa, mas nã o conseguiram pegá -la. A
uma certa altura, separaram-se, cada um correndo num sentido.
Momo nã o tinha mais saı́da. Ficou encurralada num canto da sala,
olhando amedrontada para os dois perseguidores. Continuava
segurando a lor apertada contra o corpo. Só lhe restavam mais trê s
pé talas.
O primeiro perseguidor esticou a mã o para pegar a lor quando o
segundo o empurrou para trá s.
- Nã o! - ele gritou - A lor é minha! E minha!
Os dois começaram a brigar. O primeiro arrancou o charuto da boca
do outro, que se virou e, com um gemido fantasmagó rico, foi icando
transparente, até sumir.
O ú ltimo homem cinzento avançou para Momo. No canto de sua boca
ainda queimava um minú sculo toco de charuto.
- Dê -me a lor! - disse ele, ofegante. Com isso, o toco de charuto caiu-
lhe cia boca e rolou pelo chã o. O homem cinzento se jogou no chã o e,
esticando o braço, tentou pegá -lo, mas nã o conseguiu mais.
Voltou seu rosto cinzento, com muito esforço soergueu o corpo e
estendeu a mã o trê mula.
- Por favor - ele murmurou -, por favor, menina boazinha, dê -me a
lor!
Momo continuava encolhida no canto da sala, com a lor apertada
contra o peito.
Já sem conseguir articular uma palavra, recusou, balançando a
cabeça.
O ú ltimo homem cinzento meneou a cabeça devagar.
- Está bem - murmurou. - Está bem. Agora... tudo .. se acabou...
E també m ele desapareceu.
Momo itava com olhos arregalados o lugar em que ele estivera
deitado. Mas lá estava Cassiopé ia, em cuja carapaça apareceu: "ABRA A
PORTA".
Momo foi até a porta, voltou a tocá -la com a lor, que agora só tinha
mais uma pé tala, e a escancarou.
Com o desaparecimento do ú ltimo ladrã o de tempo, també m o frio se
fora, Momo entrou no imenso depó sito, com os olhos arregalados. As
lores-das-horas, em nú mero incalculá vel, en ileiravam-se em longas
prateleiras, como cá lices de vidro. Cada uma era mais linda do que as
outras, e nã o havia duas que fossem iguais. Eram centenas de milhares,
milhõ es de horas de vida. O ar foi icando quente, como dentro de uma
estufa.
Quando a ú ltima pé tala da lor-das-horas de Momo estava caindo,
começou de repente uma espé cie de tempestade. Nuvens de lores-das-
horas rodopiavam em torno dela e iam passando. Era como uma
tempestade quente de primavera, mas uma tempestade de tempo
liberto.
Como num sonho, Momo olhou à sua volta e viu Cassiopé ia no chã o à
sua frente. Na sua carapaça apareceram, luminosas, estas palavras:
"VOE PARA CASA, MOMO, VOE PARA CASA!"
Foi a ú ltima vez que Momo viu Cassiopé ia. A tempestade das lores
intensi icou-se de uma maneira indescritı́vel e tornou-se tã o forte que
ergueu
Momo, como se ela també m fosse uma das lores. Momo foi
carregada para fora dos corredores escuros, para cima da Terra e da
grande cidade. A menina sobrevoou telhados e torres numa imensa
nuvem de lores, que se tornava cada vez maior.
Era como se fosse uma dança alegre acompanhando uma mú sica
maravilhosa, em que ela lutuava para cima, para baixo e girando em
torno de si mesma.
Depois a nuvem de lores foi mergulhando suavemente, e as lores
foram caindo como locos de neve sobre o mundo imó vel. E, como
locos de neve, elas se dissolviam e voltavam a se tornar invisı́veis, para
voltarem ao lugar a que pertenciam: o coraçã o das pessoas.
No mesmo instante, o tempo recomeçou. Tudo voltou a se mover e a
se deslocar. Os carros avançavam, os guardas de trâ nsito apitavam, os
pombos voavam e o cachorrinho fez sua pocinha ao pé do poste.
As pessoas nem perceberam que durante uma hora o mundo havia
parado. Pois, na verdade, nã o se passara nenhum tempo entre a
interrupçã o e o recomeço. Para elas, fora o tempo de um piscar de
olhos.
No entanto, alguma coisa havia mudado. De repente, todas as
pessoas tinham muito tempo. E claro que todas estavam muito
contentes com isso, mas ningué m sabia que, na verdade, era seu
pró prio tempo economizado que estava voltando de um modo
maravilhoso.
Quando Momo recuperou totalmente a consciê ncia, estava
novamente numa rua. Era a rua transversal onde antes encontrara
Beppo. E, de fato, lá estava ele! Estava de costas para ela, apoiado na sua
vassoura, olhando pensativo à sua frente, exatamente como antes. Nã o
tinha mais pressa e nã o conseguia entender por que, de repente, sentia-
se tã o confortado e tã o cheio de esperança.
"Talvez agora eu já tenha poupado as cem mil horas para resgatar
Momo", pensou entã o.
No mesmo instante, algué m o puxou pela manga. Voltou-se e viu
Momo a seu lado.
Nã o há palavras para descrever a alegria daquele reencontro. Os dois
riam e choravam, falavam ao mesmo tempo e, naturalmente, muita
tolice, como sempre acontece quando estamos embriagados de
felicidade. Nã o paravam de se abraçar, e as pessoas que passavam
icavam olhando, alegrando-se, rindo e chorando com eles, pois agora
todas tinham tempo para isso.
A inal, Beppo pô s a vassoura no ombro, pois, como é de se
compreender, por aquele dia o trabalho estava encerrado. Os dois
saı́ram andando pela grande cidade, de braços dados, a caminho de
casa, o velho an iteatro. Tinham muita coisa para contar um ao outro.
Havia muito tempo també m nã o se via a grande cidade como naquele
dia. Crianças brincavam no meio da rua, e os motoristas que eram
obrigados a esperar as observavam sorridentes. Muitos até desciam do
carro para brincar junto. Por todo lado viam-se pessoas conversando
amigavelmente e trocando notı́cias detalhadas sobre suas vidas. Quem
ia para o trabalho, tinha tempo para admirar as lores de uma janela ou
alimentar um passarinho. Os mé dicos tinham tempo para se dedicar a
seus doentes. Os trabalhadores podiam realizar seu ofı́cio com
tranquilidade e amor, pois já nã o havia a preocupaçã o de fazer o mais
possı́vel no menor tempo.
Muitos, poré m, nunca souberam a quem deveriam agradecer tudo
aquilo e o que de fato acontecera naquele instante, que para eles havia
durado um piscar de olhos.
A maioria das pessoas nã o teria acreditado. As ú nicas que
acreditavam e sabiam eram os amigos de Momo.
Assim, naquele dia, quando Beppo e a menina chegaram ao
an iteatro, já estavam todos à sua espera: Gigi Guia, Paulo, Má ssimo,
Franco, Maria com sua irmã zinha Dedé , Clá udio e as outras crianças,
Nino e Liliana, os donos do bar, com seu bebê , Nicola, o pedreiro, e as
demais pessoas da vizinhança, que sempre iam até lá e que Momo
gostava de ouvir.
Entã o houve uma festa, tã o animada como só os amigos de Momo
sabiam fazer, que durou até as velhas estrelas ocuparem o cé u.
Depois que a alegria, os abraços, os apertos de mã o, os risos e os
gritos se acalmaram, sentaram-se todos nos degraus cobertos de capim.
Fez-se silê ncio.
Momo foi para o centro da grande arena. Lembrou-se das vozes das
estrelas e das lores-das-horas. E, com voz clara, começou a cantar.
Na Casa de Lugar Nenhum, Mestre Hora, que o tempo, ao voltar,
acordara de seu primeiro e ú nico sono, estava sentado sorridente em
sua poltrona junto à mesinha, observando Momo e seus amigos atravé s
dos ó culos de visã o global. Ainda estava muito pá lido e parecia
convalescer de uma doença grave. Mas seus olhos brilhavam
- Cassiopé ia - disse ele, carinhosamente, coçando-lhe o pescoço -,
você s duas se saı́ram muito bem! Vai ler de me contar tudo, pois desta
vez nã o pude observá -las.
"MAIS TARDE", apareceu nas costas da tartaruga e ela deu um
espirro.
- Será que você se resfriou? - perguntou Mestre Hora, preocupado.
"E COMO!", respondeu Cassiopé ia.
- Deve ter sido por causa do frio dos homens cinzentos disse Mestre
Hora. - Imagino que você deve estar exausta e querendo, antes de mais
nada, dar uma boa descansada. Portanto, pode se recolher.
"OBRIGADA!", apareceu na carapaça
Cassiopé ia saiu rastejando, procurando um canto escuro e
sossegado. Recolheu a cabeça e as quatro patas e, nas suas costas,
visı́veis apenas para quem leu esta histó ria, foram aparecendo
devagarinho as letras:
FIM
BREVE POSFÁCIO DO AUTOR

Talvez alguns de meus leitores tenham muitas perguntas em seu


coraçã o. Mas temo que nã o poderei ajudá -los. Devo confessar que
escrevi esta histó ria unicamente de memó ria, tal como me foi contada.
Nã o conheci Momo nem seus amigos pessoalmente. Nã o sei o que lhes
aconteceu depois e como estã o hoje. Quanto à grande cidade, só posso
fazer suposiçõ es.
A ú nica coisa que posso acrescentar é o seguinte: Eu estava fazendo
uma longa viagem (aliá s, ainda estou), quando certa noite compartilhei
a cabine de um trem com um passageiro muito estranho. Estranho no
sentido de que eu nã o conseguia avaliar sua idade. No inı́cio, achei que
estava sentado diante de um velho. Logo vi, no entanto, que havia me
enganado, pois meu companheiro de viagem pareceu-me, de repente,
muito jovem. També m essa impressã o revelou-se falsa.
Seja como for, ele me contou toda esta histó ria durante a longa
viagem.
Quando terminou, nó s dois icamos em silê ncio por alguns
momentos. Entã o o passageiro enigmá tico acrescentou mais uma frase,
que nã o posso deixar de transmitir aos leitores.
"Contei-lhe esta histó ria", disse ele, "como se já tivesse acontecido.
Mas també m poderia ter contado como se fosse acontecer no futuro.
Para mim, nã o há muita diferença."
Ele deve ter descido na estaçã o seguinte, pois depois de alguns
momentos percebi que estava sozinho na cabine. Infelizmente, nunca
mais o encontrei.
Mas, se algum dia voltasse a encontrá -lo, gostaria de lhe fazer muitas
perguntas.

im do livro

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