Você está na página 1de 237

MOMO

eo
Senhor do Tempo
 

Michael Ende
Contra capas

“Contei-lhe esta história", diz o passageiro misterioso ao autor, “como


se já tivesse acontecido. Mas também poderia ter contado como se
fosse acontecer no futuro. Para mim, não há muita diferença.”

O tempo é um enigma que intriga crianças e adultos que ainda não


desaprenderam de se maravilhar com aquilo que parece evidente. A
história de Momo se passa num reino de fantasia situado no nada e em
lugar nenhum, ou numa região sem tempo. Não é uma história de
príncipes, princesas e fadas. Seu contexto se inspira totalmente
na  vida atual, seu cenário é uma grande cidade de algum lugar da
Europa do sul. E ela mostra que o mundo moderno não é mais pobre
em maravilhas e mistérios do que o passado, quando o vemos através
dos olhos de MOMO e de seus amigos.

Sob a influência dos "homens cinzentos", uma organização


fantasmagórica, um número cada vez maior de seres humanos é
levado a economizar tempo. Mas, na verdade, 0 que significa esse
tempo poupado? Ora, tempo é vida, e a vida mora nos corações.
Quanto mais as pessoas poupam tempo, mais pobre, superficial e fria
se torna uma existência e mais alheias elas se tornam a si mesmas.
Quem mais sente essa ausência de amor e vida são as crianças. Seu
protesto, no entanto, não passa despercebido.

Quando o perigo se agrava e o mundo parece já estar nas mãos dos


homens cinzentos, Mestre Hora, o misterioso "distribuidor e tempo",
resolve agir drasticamente. Para isso, precisa da ajuda de uma criança
humana. O mundo pára, e MOMO, a pequena heroína desgrenhada
desta história, luta sozinha contra todo um batalhão de homens
cinzentos. Leva como armas apenas uma flor na mão e uma tartaruga
debaixo do braço, e acaba triunfando maravilhosamente. Todo o tempo
de vida até então roubado dos seres humanos volta a seus verdadeiros
donos e a esperança volta a um mundo desenganado.

Uma fábula? Pode-se dizer que sim, uma vez que essa designação
seja entendida no sentido romântico, pois realidade e sonho se
interpenetram de maneira poética.

Ao mesmo tempo, nos múltiplos personagens e destinos refletem-se


perguntas a respeito de nossa verdade presente e futura. Talvez, então,
um romance?

Diríamos: um romance fabuloso.


Tua luz brilha na escuridão,

não sei de onde ela vem.

Brilha tão perto e tão distante.

Como te chamas não sei.

Também não sei o que desejas.

Brilha, brilha, estrelinha!

(De uma velha canção infantil irlandesa)


 
 
 

PRIMEIRA PARTE
MOMO E SEUS AMIGOS
Capítulo Um

UMA CIDADE GRANDE E UMA MENINA PEQUENA


 

Há muito, muito tempo, quando os homens ainda falavam línguas


muito diferentes das nossas, nos países quentes já existiam cidades
grandes e magníficas. Nelas erguiam-se palácios de reis e
imperadores, havia largas avenidas, ruelas e becos estreitos, templos
suntuosos com estátuas de ouro e mármore, feiras nas quais se
encontravam à venda mercadorias de todos os reinos, praças bonitas e
espaçosas onde o povo se reunia para discutir as últimas notícias, ouvir
ou fazer discursos. E nessas cidades havia, sobretudo, grandes teatros.

Pareciam os circos de hoje, só que eram feitos de blocos de pedra. As


fileiras de assentos para o público eram construídas uma acima da
outra, como degraus de uma escada, formando uma espécie de
imenso funil Vistas de cima, algumas dessas construções eram
circulares, outras eram mais ovais e outras, ainda, tinham a forma
de um amplo semicírculo. Eram chamadas de anfiteatros.

Alguns eram grandes como estádios de futebol, outros eram


menores, só podendo conter algumas centenas de espectadores.
Alguns eram luxuosos, ornamentados com estátuas e colunatas, outros
eram simples e modernos.

Esses anfiteatros não tinham teto, e tudo se passava ao ar livre. Por


isso, nos de luxo eram estendidas tapeçarias bordadas em ouro, de
modo a proteger o público contra o calor do sol ou as repentinas
tempestades. Nos modestos, esteiras de palha ou vime tinham a
mesma serventia. Em suína, cada um correspondia às
possibilidades  dos habitantes do lugar. Mas todos queriam ter um
teatro, pois eram ouvintes e espectadores apaixonados.

Acompanhando os acontecimentos emocionantes ou cômicos


representados no palco, as pessoas tinham a impressão de que,
misteriosamente, aquela vida fictícia era mais real do que sua própria
vida cotidiana e adoravam mergulhar nessa outra realidade.
Passaram-se milhares de anos. As grandes cidades daquele tempo
desmoronaram, os templos e palácios ruíram, o vento e a chuva, o
calor e o frio desgastaram as  pedras, e dos grandes anfiteatros só
restaram ruínas. Agora, entre as pedras caídas, as cigarras cantam sua
canção monótona, que soa como o respirar da terra adormecida.

Algumas dessas grandes cidades antigas, entretanto, continuam


sendo grandes cidades nos dias de hoje. A vida nelas mudou, é claro!
As pessoas andam de ônibus ou de automóvel, têm telefone e luz
elétrica. Mas aqui e ali, entre as casas modernas, há algumas colunas,
uma arcada, um pedaço de muro ou mesmo um anfiteatro daquele
tempo antigo.

E foi numa dessas cidades que aconteceu a história de Momo.

Além do limite sul da grande cidade, lá onde as casas vão ficando


menores, mais pobres, e começam os campos, escondidas num
bosque de pinheiros estão as ruínas de um pequeno anfiteatro. Mesmo
nos tempos antigos, não era dos mais importantes; era, digamos, um
teatro para as pessoas mais pobres. Em nossa época, isto é, na época
em que começa a história de Momo, as ruínas estavam quase
inteiramente esquecidas. Só alguns professores de arqueologia as
conheciam, mas não manifestavam maior interesse por elas, porque
nada mais havia por descobrir. Também não era uma atração
comparável a outras da cidade, de modo que só alguns raros turistas
apareciam de vez em quando, subiam pelas pedras meio recobertas
pelo capim, agitavam-se, tiravam algumas fotos e iam embora.

Então a paz voltava ao semicírculo de pedra e as cigarras retomavam


sua canção interminável, igualzinha à de antigamente.

Na verdade, só as pessoas das vizinhanças conheciam aquela curiosa


construção.

Lá deixavam pastar suas cabras, as crianças aproveitavam o espaço


plano do centro para jogar bola e, às vezes, namorados se
encontravam à noite por ali.

Mas um dia começaram a dizer que havia alguém morando nas


ruínas. Era uma criança, provavelmente uma menina, porém era difícil
saber com certeza, pois sua maneira de se vestir era meio esquisita.
Seu nome era Momo, ou coisa parecida.
De fato, a aparência de Momo era meio estranha e poderia
escandalizar alguém que fizesse muita questão de ordem e limpeza.
Ela era baixinha e magrinha, de modo que era impossível dizer ao
certo se tinha apenas oito anos ou já estava com doze. Seu cabelo
preto, de cachos desgrenhados, parecia nunca ter visto tesoura ou
pente. Tinha olhos grandes e muito bonitos, pretos como piche, e seus
pés eram quase da mesma cor, pois ela andava descalça. Às vezes, no
inverno, calçava sapatos, mas eram grandes demais e um pé diferente
do outro. Isso acontecia porque nada do que Momo tinha era comprado
ou feito especialmente para ela; eram coisas usadas que achava ou
que alguém lhe dava. Sua saia, comprida até o tornozelo, era uma
mistura de retalhos de várias cores, costurados uns aos outros. Por
cima de tudo, ela usava um paletó de homem, grande demais, com as
mangas enroladas. Momo não quis cortá-las porque pensou, com
muita razão, que ainda estava crescendo, e talvez não voltasse a
encontrar outro paletó bonito e prático como aquele, com tantos
bolsos. Por baixo da arena invadida pelo capim, no centro do anfiteatro
em ruínas, restavam corredores e galerias às quais se podia chegar por
um buraco aberto no muro. Era ali que Momo se havia instalado.

Certa manhã, chegaram alguns homens e mulheres da vizinhança,


para tentar descobrir alguma coisa a respeito da menina. Momo ficou
parada diante deles, olhando para todos com muito medo, receando
que quisessem expulsá-la, mas logo percebeu que eram simpáticos.
Também eram pobres e conheciam a vida.

- Muito bem - disse um dos homens -, então você gosta deste lugar?

- Gosto - respondeu Momo.

- E gostaria de ficar aqui?

- Gostaria, sim.

- Mas ninguém está esperando por você em algum outro lugar?

- Não.

- Quer dizer, você não precisa voltar para casa?

- Minha casa é aqui - respondeu ela, prontamente.

- Mas de onde é que você veio, menina?


Momo fez um gesto vago na direção do horizonte.

- Então, quem são seus pais? - insistiu o homem.

A menina olhou para cada um deles, com ar perplexo, e encolheu os


ombros.

Todos se entreolharam, suspirando.

- Não precisa ter medo - continuou o homem. - Não vamos mandá-la


embora. Queremos ajudá-la.

Momo meneou a cabeça, calada, sem muita convicção.

- Você disse que seu nome é Momo, não é?

- É.

- É um nome bonito, mas que eu nunca tinha ouvido antes. Quem


lhe deu esse nome?

- Eu mesma.

- Você mesma?...

- Quando você nasceu?

Momo pensou um pouco e, finalmente, disse:

- Tanto que eu me lembre, sempre existi.

- Você não tem um tio, uma tia, uma avó ou algum parente com
quem possa morar?

Momo tornou a olhar para o homem, refletindo em silêncio.


Finalmente, respondeu baixinho:

- Minha casa é aqui.

- Certo - retrucou o homem -, mas você ainda é criança. Quantos


anos você tem?

Momo hesitou, mas acabou respondendo:


- Cem.

Todos riram, achando que ela estava brincando.

- Falando sério, que idade você tem? 

Ainda hesitante, Momo respondeu:

- Cento e dois anos.

Demorou um pouco para as pessoas perceberem que ela repetia, ao


acaso, números de que tinha ouvido falar, sem saber o que
significavam, pois ninguém lhe havia ensinado a contar.

- Escute - disse o homem, depois de consultar um outro -, você se


incomodaria se avisássemos à polícia que você está aqui? Poderiam
colocá-la num orfanato, onde você teria boa comida, aprenderia a ler,
escrever, fazer contas, e uma porção de outras coisas. Que tal a ideia?

Momo murmurou, apavorada:

- Não. Eu não quero. Já estive no orfanato. Havia outras crianças


também. Tinha grade nas janelas. Todos os dias uma de nós levava
uma surra, sem razão nenhuma. Então, uma noite, eu pulei o muro e
fugi. Não quero voltar para lá...

- Compreendo - disse um velho, balançando a cabeça. 

E todos os outros compreenderam.

- Muito bem - disse uma mulher -, mas você ainda é pequena.


Alguém precisa cuidar de você.

- É. Eu vou cuidar de mim - respondeu Momo, aliviada.

- Mas você é capaz? - perguntou a mulher.

Momo ficou quieta, pensando, depois disse com voz suave:

- Eu não preciso de muita coisa...

As pessoas voltaram a suspirar e a se consultar com os olhos,


gesticulando.
- Sabe, Momo - recomeçou o homem que tinha falado primeiro -,
achamos que podíamos dar um jeito de você morar na casa de um de
nós. É verdade que ninguém tem muito espaço e quase todos têm
muitos filhos para alimentar. Mas, afinal..., um a mais ou a menos não
faz grande diferença. O que você acha?

- Muito obrigada - respondeu Momo, sorrindo pela primeira vez. -


Muitíssimo obrigada. Mas vocês não podiam me deixar ficar morando
aqui?

As pessoas cochicharam, discutiram e por fim concordaram. Afinal


de contas, a  menina estaria tão bem ali quanto na casa de algum
deles. E lá todos poderiam cuidar de Momo. Seria mais fácil do que se
um só ficasse incumbido disso.

Começaram imediatamente a fazer uma boa limpeza na galeria em


ruínas onde Momo morava e a arrumar tudo da melhor maneira
possível. Um homem, que era pedreiro, fez um fogãozinho de pedra
para ela, e com um velho cano enferrujado fizeram uma chaminé.
Aproveitando uns caixotes,  um velho carpinteiro fez uma mesinha e
duas cadeiras. Por fim, as mulheres trouxeram uma cama enferrujada,
um colchão meio rasgado e dois cobertores. A galeria de pedra debaixo
do anfiteatro se transformou numa moradia bem jeitosa.

O pedreiro, que era dado a artista, pintou na parede um bonito


quadro de flores.

Pintou até a moldura em volta e o prego no qual o quadro deveria


estar pendurado.

Depois chegaram os filhos daquelas pessoas, cada um trazendo o


que tinha poupado da sua comida: um trouxe um pedacinho de queijo,
outro um pãozinho, outro uma fruta e assim por diante. Como todos
tinham muitos filhos, naquela noite se juntaram tantas crianças que
acabaram armando uma festa no anfiteatro, para comemorar a
chegada de Momo. Foi uma festa alegre, daquelas que só as pessoas
simples são capazes de apreciar.

Assim começou a amizade entre Momo e seus vizinhos.


Capítulo Dois

UM DOM RARO E UMA BRIGA COMUM


 

A partir de então, tudo passou a correr bem para Momo, pelo menos na
opinião dela. Sempre tinha alguma coisa para comer, às vezes mais,
outras vezes menos, dependendo do que o pessoal conseguisse
poupar. Tinha um teto, uma cama, e, quando fazia frio, podia acender
um fogo. O mais importante, no entanto, era que tinha muitos bons
amigos.

Era de se pensar que a sorte estava com Momo, que tinha


encontrado gente tão amiga, e ela mesma achava isso. Entretanto, os
outros logo perceberam que a sorte estava com eles também.
Precisavam de Momo e ficavam se perguntando como tinham
conseguido viver sem ela até então. À medida que o tempo passava, a
menina se tornava mais necessária, tão necessária que seus amigos
tinham medo de que, um belo dia, pudessem acordar e não a
encontrar mais.

Por isso Momo passou a receber visitas constantemente. Havia


sempre alguém sentado perto dela, conversando com ar muito
interessado. Quem precisasse dela, mas não pudesse ir até lá,
mandava buscá-la. E, se alguém ainda não tivesse percebido que
precisava dela, ouvia logo o conselho:

- Ora, vá falar com Momo!

Essa expressão tornou-se quase uma frase feita entre as pessoas da


vizinhança.

Assim como dizemos "Boa sorte!", "Bom apetite!" ou "Só Deus


sabe!", lá se dizia, sempre que havia oportunidade, "Ora, vá falar com
Momo!"

Mas por quê? Será que Momo era tão sensata que sempre tinha um
bom conselho para dar? Será que encontrava sempre as palavras
certas para dizer a quem precisasse de consolo? Ou sempre proferia
frases sábias e justas?

Não. Quanto a isso, Momo era igual a qualquer outra criança.


Então será que Momo sabia fazer alguma coisa para deixar as
pessoas sempre de bom humor? Será que ela sabia, por exemplo,
cantar bem? Ou tocar algum instrumento? Ou então - já que ela
morava numa espécie de circo - sabia dançar ou fazer acrobacias?

Não, também não era isso.

Será que ela sabia fazer mágicas? Ou conhecia alguma fórmula


secreta para fazer as pessoas se esquecerem de suas preocupações?
Ou sabia ler as mãos ou prever o futuro de alguma outra maneira?

Nada disso.

O que Momo sabia fazer melhor do que ninguém era ouvir. Muitos
leitores devem estar achando que isso não é nada de mais, que
qualquer um sabe ouvir. Mas é engano. Muito pouca gente sabe ouvir
de verdade. E o jeito de Momo ouvir e entender era muito especial.

Momo ouvia de tal modo que as ideias acertadas acabavam surgindo


na cabeça de alguém que estivesse meio desorientado. Não é que ela
dissesse ou perguntasse alguma coisa que levasse a pessoa a pensar
de determinada maneira. A menina só ficava ali sentada, ouvindo com
atenção e simpatia. Ao mesmo tempo fitava a outra pessoa com seus
grandes olhos negros, e nela surgiam pensamentos que nunca tivera
antes, como se lhe tivessem sido encravados por aquele olhar.

Momo ouvia de um jeito que fazia os desesperados ou hesitantes de


repente saberem o que queriam; ou os tímidos sentirem-se à vontade
e confiantes; os infelizes e oprimidos sentirem-se felizes e cheios de
esperança. Quando alguém achava que sua vida não tinha sentido,
acreditando-se um fracassado, apenas um ser entre milhões, sem
qualquer importância e tão fácil de ser substituído como um prato
quebrado, ia procurar a menina. Então, à medida que contava suas
desventuras, a pessoa ia percebendo que, fosse ela o que fosse, era
uma pessoa única no mundo inteiro, e por isso mesmo era importante
para o mundo, por ser de seu próprio jeito.

Era assim que Momo ouvia.

Um dia, dois homens foram ao anfiteatro procurar Momo. Eram


inimigos jurados e, embora fossem vizinhos, recusavam-se a falar um
com o outro. Outras pessoas tinham aconselhado que procurassem
Momo, pois não era possível continuarem vivendo daquele jeito.
Embora a princípio os dois recusassem, acabaram consentindo, a
contragosto.

Ficaram ali sentados, em lados opostos do anfiteatro, emburrados,


calados, hostis. Um deles era o pedreiro que havia construído o fogão
para Momo e pintado o quadro de flores na parede da "sala" Chamava-
se Nicola, era corpulento e tinha um bigode preto revirado nas pontas.
O outro chamava-se Nino. Era magro e parecia sempre meio cansado.
Era dono de um pequeno bar, onde os principais  fregueses eram
alguns velhinhos que pediam um copo de vinho e ficavam horas
inteiras recordando os tempos antigos. Nino e sua mulher também
eram amigos de Momo e costumavam levar coisas gostosas para ela
comer Quando Momo percebeu que os dois homens estavam brigados,
ficou um momento sem saber com qual deles falava primeiro. Afinal,
para não ofender nenhum, sentou-se numa pedra a igual distância de
ambos, olhando para um e para outro, aguardando os acontecimentos.
Muitas coisas precisam de tempo, e tempo era justamente a única
riqueza de Momo. De repente Nicola levantou-se e disse:

- Vou-me embora. Vindo aqui mostrei boa vontade, mas como você
pode ver, Momo, esse sujeito é teimoso. Não adianta esperar mais.

E, de fato, virou-se para ir embora.

- Adeus, e vá pela sombra.. - gritou Nino. - Aliás, você nem devia ter
vindo. Eu não ia mesmo apertar a mão de um trapaceiro.

Nicola fez meia-volta, roxo de raiva.

- Quem é trapaceiro? - perguntou, avançando para Nino.  - Repita o


que disse...

- Quantas vezes você quiser - berrou Nino. - Você pensa que, só


porque é forte, ninguém tem coragem de dizer a verdade na sua cara.
Pois eu tenho, e digo para você e para quem quiser ouvir. Vamos,
avance e venha me matar, como já tentou uma vez.

- Gostaria de ter conseguido - rosnou Nicola, cerrando os punhos. -


Está vendo, Momo, está vendo como ele mente e calunia a gente... O
que eu fiz foi agarrá-lo pelo colarinho e jogá-lo no tanque de água suja
que tem atrás daquela espelunca dele. Não dava nem para afogar um
rato.
E, virando-se para Nino, gritou:

- Infelizmente você continua vivo...

As mais incríveis acusações continuaram a ser lançadas de um lado


para outro, e Momo não conseguia entender do que se tratava e por
que os dois estavam tão furiosos um com o outro. Aos poucos,
entretanto, foi ficando claro que Nicola havia cometido aquele ato
terrível porque Nino lhe tinha dado uns bofetões diante dos fregueses,
no bar. E isso porque Nicola havia tentado quebrar toda a louça de
Nino.

- Pura mentira! - exclamou Nicola, zangado. - Atirei na parede só um


jarro, e que já estava rachado.

- Mas o jarro era meu, não era? - disse Nino. - Você não tinha o direito
de fazer uma coisa dessas.

Nicola, porém, estava convencido de que tinha razão, porque antes


Nino havia colocado em dúvida sua competência profissional de
pedreiro-construtor.

- Sabe o que ele falou de mim? - gritou para Momo. Disse que eu
nunca consegui erguer uma parede reta porque estou bêbado vinte e
quatro horas por dia, e que meu tataravô era igualzinho a mim, e que
foi ele quem construiu a torre inclinada de Pisa!

- Ora, Nicola, era só brincadeira - atalhou Nino.

- Que brincadeira! - rosnou Nicola. - Não acho graça em brincadeiras


desse tipo...

Descobriu-se, então, que a "brincadeira" de Nino era para se vingar


de Nicola.

De fato, certa manhã aparecera escrito com letras vermelhas, na


porta do bar:

"Quem só sabe fracassar vira dono de bar." Nino, por sua vez, não
tinha achado graça nenhuma.

Começaram então a discutir qual das duas "brincadeiras" era a mais


engraçada, e eles se enfureciam cada vez mais.
Bruscamente os dois pararam. Momo observava-os, de olhos
arregalados, mas nenhum dos dois entendia bem o significado
daquele olhar. Será que a menina estava rindo deles? Ou estava triste?
Não dava para saber. De repente, no entanto, os dois homens tiveram a
sensação de estarem se olhando no espelho e começaram a ficar
envergonhados.

- Tudo bem - disse Nicola -, eu não devia ter escrito aquilo na sua
porta, Nino. Mas eu não teria feito isso se você não se tivesse recusado
a me servir. Isso é contra a lei, sabe, porque eu sempre paguei direito e
você não tinha motivo para me tratar daquele jeito.

- Não tinha, é? - retrucou Nino. - Você não se lembra do caso do


Santo Antônio? Ah, está ficando encabulado... Você me deu um golpe,
e eu não podia deixar de graça.

- Dei, é? - gritou Nicola, furioso outra vez. - Quem deu foi você, mas
não conseguiu me tapear.

O fato é que na parede do barzinho do Nino havia uma imagem de


Santo Antônio, que ele tinha recortado de uma revista e emoldurado.
Um dia Nicola quis comprar a gravura, dizendo que a achava linda.
Nino foi negociando até conseguir que Nicola desse em troca o seu
rádio, e ficou rindo por dentro, convencido de que tinha levado a
melhor.

Fechado o negócio, aconteceu que, entre a imagem e o papelão de


trás do quadro, apareceu uma nota de dinheiro, de alto valor, que Nino
nunca tinha visto. Então ele percebeu que, afinal de contas, tinha
levado prejuízo, e ficou muito aborrecido. Quis exigir de Nicola a
devolução da nota, porque não fazia parte do objeto vendido. Nicola
recusou, e dali em diante Nino não quis mais servi-lo.

Depois de chegarem à causa inicial da briga, os dois homens ficaram


em silêncio, até que Nino falou:

- Diga com franqueza, Nicola: antes de nós fazermos o negócio você


já sabia daquele dinheiro, não sabia?

- Claro que sabia. Caso contrário não teria feito o negócio,

- Então você confessa que me tapeou.


- Como? Você não sabia mesmo que o dinheiro eslava ali?

- Não. Juro que não.

- Veja só... Então foi você quem quis me dar um golpe, recebendo
meu rádio em troca de um pedaço de papel que não valia nada.

- Mas como é que você ficou sabendo da nota?

- Eu tinha visto um freguês enfiar ali, como oferenda para Santo


Antônio.

Nino mordeu o beiço.

- E valia muito?

- Exatamente o valor do meu rádio - respondeu Nicola.

- Então - disse Nino, pensativo -, nossa briga na verdade é por causa


do Santo Antônio que eu recortei da revista.

Nicola coçou a cabeça.

- É mesmo - ele resmungou. - E, se você quiser, pode ficar com ele,


Nino.

- De jeito nenhum! - Nino exclamou. - Trocou, está trocado! Um


aperto de mão para selar a nossa dignidade!

Então os dois começaram a rir. Desceram os degraus de pedra,


encontraram-se no meio do anfiteatro, apertaram-se as mãos e
trocaram tapinhas nas costas. Depois, eles abraçaram Momo, dizendo:

- Muito, muito obrigado.

Quando afinal foram embora, Momo ficou acenando até eles


desaparecerem, muito contente porque seus dois amigos tinham feito
as pazes.

Em outra ocasião, um menino levou para Momo seu canário que não
queria cantar.

Foi uma tarefa difícil. Momo teve de ouvir o canário uma semana
inteira, até ele voltar a chilrear e cantar.
Momo ouvia todos com atenção: gatos, cachorros, grilos e sapos, até
a chuva e o vento nas árvores E cada um falava com ela à sua maneira.

Algumas noites, depois que todos os seus amigos já tinham ido para
casa, ela ficava sentada, sozinha, no grande anfiteatro de pedra,
debaixo do céu estrelado, simplesmente ouvindo o grande silêncio.

Sentia-se como se estivesse no meio de um imenso caramujo que


escutasse o mundo das estrelas. Era como se ouvisse uma música
suave, mas poderosa, que ia direto ao seu coração.

Em noites assim, ela sempre tinha sonhos lindos.

E, quem ainda acha que ouvir não é nada de mais, experimente fazê-
lo para ver se consegue.
Capítulo Três

UMA TEMPESTADE IMAGINÁRIA E UM TEMPORAL DE VERDADE


 

Não é preciso dizer que Momo ouvia crianças e adultos da mesma


maneira.

Mas havia outra razão para as crianças gostarem de ir ao anfiteatro.


Desde que Momo chegara, elas brincavam como nunca tinham feito
antes. Não havia um só instante de tédio. Não é que Momo tivesse
sugestões maravilhosas. Não, Momo só estava ali e brincava junto. E
isso era suficiente, não se sabe por que razão, para que as próprias
crianças acabassem tendo as melhores ideias. Todos os dias
inventavam brincadeiras novas, uma mais divertida do que a outra.

Certa vez, num dia quente e abafado, dez ou onze crianças estavam
sentadas nas pedras, esperando por Momo, que tinha ido dar uma
voltinha para explorar a região, como às vezes fazia. No céu as nuvens
eram escuras e baixas, parecia que dali a pouco ia desabar um
temporal.

- Acho que vou para casa - disse uma menina, que estava com a
irmãzinha. - Tenho medo de relâmpago e trovão.

- E em casa? - perguntou um garoto de óculos. - Em casa você não


tem medo?

- É. Também tenho...

- Então fique aqui, pois dá na mesma - disse o menino.

A menina fez que sim com a cabeça, mas dali a pouco disse:

- Pode ser que Momo nem volte mais.

- E daí? - falou outro garoto, de aspecto meio relaxado. Podemos


brincar de alguma coisa, mesmo sem Momo.

- Está certo. Mas vamos brincar do quê?

- Ah, não sei. De qualquer coisa...


- Qualquer coisa não quer dizer nada. Quem tem alguma ideia?

- Eu tenho - disse um menino gordo, de voz fina. - Vamos fazer de


conta que esta ruína é um navio de verdade, que nós estamos
navegando por mares desconhecidos, vivendo aventuras... Eu sou o
capitão, você é o piloto e você um naturalista, um professor, porque vai
ser uma expedição de pesquisas, entenderam? E os outros são  os
marinheiros.

- E nós, as meninas? O que nós vamos ser?

- Marinheiras. Vai ser um navio do futuro.

A ideia era excelente. Começaram a brincar, mas não paravam de


discutir, e a brincadeira não ia adiante. Dali a pouco estavam todos
novamente sentados nas pedras, esperando.

Por fim Momo chegou.

Ouvia-se o marulho da água batendo na proa. O navio de pesquisas,


"Argo", balançava suavemente avançando pelas ondas, a todo o vapor,
em direção ao mar de Coral. Desde tempos imemoriais, navio algum se
atrevera a atravessar aquelas águas perigosas, que escondiam
inúmeros bancos de areia, recifes de coral e estranhos monstros
marinhos. Pior do que tudo era o chamado Tufão Perpétuo, um furacão
que não tinha descanso. Percorria constantemente aqueles mares
procurando uma presa, como se fosse um ser vivo, e até mesmo
inteligente. Seu caminho era imprevisível. Tudo o que caía nas garras
daquele furacão não se soltava mais, até se destroçar em lascas do
tamanho de palitos de fósforo.

O navio de pesquisa "Argo" fora especialmente equipado para um


encontro com aquele Tufão Errante. Era todo construído de aço azul,
flexível e elástico feito uma lâmina de espada. Por um processo
especial, fora fundido em uma só peça, sem emendas nem soldaduras.

Assim mesmo, dificilmente outro capitão e outra tripulação teriam a


coragem de enfrentar perigos tão incríveis. O capitão Gordon tinha
essa coragem. Do alto da ponte de comando, olhava com orgulho seus
marinheiros e marinheiras, todos especialistas experimentados em
suas áreas.
Ao lado do capitão estava o primeiro-oficial, Dom Melu, típico lobo-
do-mar, que já sobrevivera a cento e vinte e sete furacões.

Atrás deles, no convés, estava o professor Eisenstein, chefe científico


da expedição, com suas duas assistentes, Maurin e Sara, cujas
memórias prodigiosas valiam por uma biblioteca inteira. Os três
estavam debruçados sobre os instrumentos de precisão, trocando
ideias naquela sua complicada linguagem científica.

Um pouco à parte estava a bela nativa Momosan, sentada com as


pernas cruzadas.

De vez em quando, o professor fazia-lhe perguntas sobre várias


características daquelas águas, e ela respondia no melodioso dialeto
hula, que só o professor entendia.

O objetivo da expedição era descobrir a causa do Tufão Errante e, se


possível, destruí-lo, de modo que aquelas águas voltassem a ser
navegáveis. Mas até então tudo estava tranquilo e não havia prenúncio
de tempestade.

De repente, um grito do vigia interrompeu as reflexões do


comandante.

- Capitão! - gritou ele, com as mãos em concha em torno da boca. -


Ou estou maluco ou estou vendo, mesmo, uma ilha de vidro na nossa
frente!

Imediatamente o capitão e Dom Melu olharam pelo telescópio. O


professor e suas duas assistentes também se interessaram. Só a bela
nativa continuou calmamente sentada, pois as curiosas tradições de
seu povo proibiam demonstrar curiosidade.

Chegaram logo à ilha de vidro. O professor desceu pela escada de


corda amarrada no costado do navio e pisou no chão de vidro. Era
horrivelmente escorregadio, e ele teve imensa dificuldade em se
manter de pé.

A pequena ilha era toda redonda e devia ter uns vinte metros de
diâmetro. Era mais elevada no centro, formando urna espécie de
cúpula. Quando o professor atingiu o ponto mais alto, olhou para baixo
e pôde ver distintamente uma luzinha que pulsava, bem no núcleo da
ilha
Comunicou o que tinha visto aos outros, que esperavam ansiosos na
balaustrada.

- Pelos dados obtidos - disse Maurin, uma das assistentes do


professor -, eu diria que se trata de um Oggclmump bistrozinalis.

- É possível - comentou Sara, a outra assistente -, mas também pode


ser uma Shluckula tapetozifera

O professor Eisenstein se empertigou, ajustou os óculos e disse:

- Na minha opinião temos aqui uma variedade do Strumpus


quietshinensus comum, porém só poderemos ter certeza depois de
examinarmos essa criatura por baixo.

Imediatamente, três marinheiras, todas elas nadadoras e


mergulhadoras mundialmente famosas, vestiram suas roupas de
mergulho, desceram pelo flanco do navio e desapareceram nas
profundezas do mar azul.

Durante algum tempo só se viam algumas bolhas na superfície da


água, mas de repente surgiu Sandra, uma das moças, e disse com voz
ofegante:

- É uma medusa gigante! Minhas duas companheiras estão presas


nos seus tentáculos e não conseguem se soltar. Temos que as socorrer
antes que seja tarde.

Dizendo isso, tornou a mergulhar.

Imediatamente mergulharam cem homens-rãs, sob o comando de


seu experiente chefe, comandante Franco, chamado de "Golfinho".
Uma tremenda batalha se desenrolou lá embaixo, fazendo a superfície
cobrir-se de espuma. Porém, era tal a força da medusa gigante, que
nem os cem homens-rãs conseguiram libertar as mergulhadoras.

O professor franziu a testa e disse às suas assistentes:

- Há alguma coisa nestas águas que parece provocar um crescimento


desmesurado. É extremamente interessante.

Enquanto isso, o capitão Gordon e o primeiro-oficial Dom Melu


examinaram a situação e chegaram a uma conclusão.
- Voltem! - gritou Dom Melu. - Voltem todos imediatamente para o
navio. Vamos ter que cortar o monstro em dois. Não há outro jeito de
salvar as moças.

O Golfinho e seus homens-rãs voltaram para bordo. O "Argo" recuou


um pouco e depois avançou, a toda velocidade, na direção da medusa.
A proa do navio de aço era cortante como uma navalha. Sem barulho e
sem qualquer impacto, dividiu em dois a gigantesca criatura. A
manobra era perigosa para as duas moças, ainda enrascadas nos
tentáculos, porém Dom Melu tinha traçado seu rumo com a máxima
precisão e dirigiu o "Argo" exatamente pelo estreito espaço entre as
duas. No mesmo instante, os enormes tentáculos de cada uma das
metades da medusa tombaram, moles e sem força, e as prisioneiras
conseguiram se desvencilhar.

Foram alegremente recebidas a bordo. O professor Eisenstein disse-


lhes:

- Foi minha culpa. Nunca deveria ter mandado vocês lá para baixo.
Perdoem-me por tê-las exposto a esse perigo.

Com uma risada alegre, uma delas respondeu:

- Não há o que perdoar, professor. Afinal, foi para isso mesmo que
nós viemos.

E a outra acrescentou:

- O perigo faz parte da nossa função!

Não havia tempo para mais conversa. Ocupados com o trabalho de


resgate, o capitão e a tripulação haviam se esquecido de se manter
vigilantes. Assim, só no último momento perceberam que o Tufão
Errante tinha surgido no horizonte e estava agora avançando a toda a
velocidade sobre o "Argo".

Um primeiro vagalhão atingiu o navio de aço, atirou-o para o ar,


derrubou-o para o lado e lançou-o no abismo formado pelas ondas, de
cerca de cinquenta metros de profundidade. Já nesse primeiro ataque,
se os marinheiros do "Argo" não fossem tão corajosos e experientes,
metade deles teria caído pelas bordas da embarcação e outra metade
teria desmaiado de pavor. Mas o capitão Gordon continuava se
equilibrando na ponte de comando, como se nada tivesse acontecido,
e seus homens também se mantinham firmes. Só Momosan, a bela
nativa, não estando acostumada a viagens tão tempestuosas, tinha
subido num bote salva-vidas.

Em questão de segundos, o céu tornou-se escuro como breu.


Rugindo e uivando, o furacão envolveu o navio, lançando-o ora para as
alturas, ora para o fundo do abismo. A cada minuto que passava sua
fúria parecia crescer, enquanto golpeava inutilmente a nave de aço.

Calmamente o capitão dava suas ordens ao primeiro-oficial, que as


gritava para a tripulação. Cada um ocupava seu posto. O professor
Eisenstein e suas assistentes não haviam abandonado seus
instrumentos científicos e calculavam onde seria o núcleo do furacão,
pois era para esse centro que o navio devia ser dirigido. Em seu íntimo,
o capitão admirava o sangue-frio daqueles cientistas, que não estavam
habituados ao mar como ele e sua tripulação.

Um raio cortou o céu em ziguezague e veio cair sobre o "Argo",


eletrizando da proa à popa o navio de aço. Tudo o que se tocasse
lançava centelhas, mas o pessoal já vinha sendo treinado havia meses
para enfrentar uma emergência daquele tipo e ninguém pareceu se
abalar.

No entanto, as partes mais frágeis do navio, cabos de aço e barras de


ferro, tornaram-se incandescentes como filamentos de lâmpadas
elétricas. Isso naturalmente dificultava o trabalho, mas todos se
protegeram calçando luvas de amianto.

Felizmente a incandescência logo se apagou, pois começou a cair


uma chuvarada como nunca nenhum dos membros da tripulação tinha
enfrentado, com exceção de Dom Melu. Era uma chuva tão densa que
mal havia espaço para o ar que se respirava. A tripulação, então, foi
obrigada a usar capacetes de mergulho e balões de oxigênio.

Um raio atrás do outro, um trovão atrás do outro! A tempestade


rugia! Ondas da altura de casas formavam uma densa espuma branca!

Com as máquinas a todo o vapor, o "Argo" abria seu caminho em


meio à violência primitiva do furacão. Na casa de máquinas,
mecânicos e foguistas faziam esforços sobre-humanos. Tinham se
amarrado com cordas fortes, para evitar que os violentos solavancos do
navio os lançassem dentro das fornalhas.
Finalmente chegaram ao ponto central do furacão, e aí se depararam
com um espetáculo magnífico!

Na superfície da água, que ali era lisa como um espelho porque a


força da tempestade aplainara as ondas, pairava um objeto
gigantesco. Apoiava-se numa perna só e seu contorno alargava-se da
base para o topo. Era como se fosse um pião imenso, do tamanho de
uma montanha. Mas ele rodopiava a uma tal velocidade que não era
possível ver detalhe algum.

- É um Shum-shum gummilastikum! - gritou o professor, encantado,


segurando os óculos, que a chuva teimava em arrancar do seu nariz.

- Poderia nos explicar o que isso significa? - resmungou Dom Melu. -


Nós somos simples marinheiros e...

- Não atrapalhe o professor agora - interrompeu Sara, uma das


assistentes. -

Esta é uma oportunidade única numa vida inteira. Essa criatura


rodopiante data, provavelmente, dos primórdios do desenvolvimento
da Terra. Deve ter mais de um bilhão de anos. A única variedade que
conhecemos só pode ser vista ao microscópio, e só se encontra,
ocasionalmente, no molho de tomate ou, ainda mais raramente, na
tinta verde. Talvez este seja o único espécime desse tamanho que
ainda sobrevive.

- Mas nossa missão é descobrir a origem do Tufão Perpétuo - disse o


capitão, gritando para se fazer ouvir em meio à tempestade -, de modo
que é melhor o professor nos dizer como fazer essa coisa infernal parar
de rodopiar!

- Isso eu sei tanto quanto vocês - disse o professor. - Até agora, a


ciência não teve oportunidade de estudar o assunto.

- Muito bem - resolveu o capitão. - Vamos começar por atirar nele e


depois veremos o que acontece.

- Que pena... - lastimou o professor. - Imagine só, atirar contra o


único espécime vivo do Shum-shum gummilastikuml

Mas o canhão Kontrafiktion já estava apontado para o imenso pião.


- Fogo! - ordenou o capitão.

Uma língua de chama azul de um quilômetro de comprimento foi


expelida através do cano duplo, sem barulho algum, é claro, pois,
como todo o mundo sabe, os canhões Kontrafiktion são movidos a
proteínas.

O míssil brilhante partiu a toda a velocidade na direção do Shum-


shum, porém o enorme pião o agarrou e o desviou. Depois de rodopiar
várias vezes em torno do Shum-shum, cada vez mais depressa, o míssil
acabou sendo lançado para cima e desapareceu atrás das nuvens
negras.

- Assim não adianta! - gritou o capitão Gordon. - Temos que chegar


mais perto dessa coisa.

- Não podemos chegar mais perto - retrucou, também gritando, Dom


Melu. - As máquinas já estão trabalhando a todo o vapor, o que é
apenas o suficiente para impedir que a tempestade nos arraste para
trás.

- Alguma sugestão, professor? - perguntou o capitão.

Mas o professor Eisenstein não fez mais do que encolher os ombros.


Nem ele nem suas assistentes tinham qualquer resposta. Parecia que a
expedição teria de ser abandonada, tendo fracassado em sua missão.

Nesse momento o professor sentiu um puxão na manga. Era a bela


nativa.

- Malumba! - disse ela, com um gesto gracioso. - Malumba oisitu


sono. Erwini samba insaltu lobindra. Kramuna beu beni sadogau.

- Babalu? - indagou o professor, admirado. - Didi maha feinosi intu se


goinen malutnba?

A bela jovem acenou alegremente com a cabeça e respondeu:

- Dodo um aufu shulamat wawada.

- Oi, oi - disse o professor, coçando o queixo com ar pensativo.

- O ela quer? - indagou o primeiro-oficial.


- Ela está dizendo que existe uma canção muito antiga de seu povo
que é capaz de embalar o Tufão Errante até fazê-lo adormecer, se
alguém tiver a coragem de cantar para ele.

- Não me faça rir... - resmungou Dom Melu. - Uma cantiga de ninar


para um furacão?

- O que acha, professor? - perguntou a assistente Sara - Será possível


uma coisa dessas?

- Não devemos ter preconceitos - retrucou o professor. Nessas


tradições nativas existe, às vezes, uma semente de verdade. Pode ser
que haja certas harmonias que produzem efeito sobre o Shum-shum
gummilastikum. Na verdade ainda sabemos muito pouco a respeito do
modo de vida desses seres.

- Mal não pode fazer - declarou o capitão, em tom resoluto. - Vamos


pelo menos tentar. Diga a ela que cante.

O professor Eisenstein virou-se para a bela nativa e disse:

- Malumba didi oisafal huna-huna wawadu?

Momosan balançou a cabeça afirmativamente e logo começou a


cantar a mais extraordinária canção, formada apenas por algumas
notas e o constante estribilho:

Em meni allubeni

Wanna tai susura teni

Ela acompanhava o ritmo da canção batendo palmas e dançando.

A melodia simples e as palavras eram fáceis de decorar. Os outros


foram aderindo, e pouco depois toda a tripulação estava cantando,
dançando e batendo palmas. Era um espetáculo sensacional ver o
velho lobo-do-mar Dom Melu e até o professor cantando e batendo
palmas como crianças no recreio.

E então... aconteceu aquilo que nenhum deles acreditara que


pudesse acontecer! O  pião gigante começou a rodar cada vez mais
devagar, até que parou de uma vez e começou a afundar.
Com o estrondo de um trovão, as águas se fecharam sobre ele. A
tempestade se abrandou de repente, a chuva parou, o céu ficou limpo
e azul, as ondas se acalmaram. O "Argo" estava imóvel no mar
transparente, como se a paz e a alegria nunca tivessem deixado de
reinar.

- Pessoal - disse o capitão Gordon, olhando agradecido para cada um


dos membros da tripulação -, nós conseguimos!

Todos sabiam que ele era homem de poucas palavras, portanto


sentiram-se ainda mais gratificados quando ele acrescentou.

- Estou orgulhoso de vocês.

- Acho que choveu de verdade - disse a menina que estava


acompanhada da irmãzinha. - Eu, pelo menos, estou ensopada.

De fato, o temporal tinha passado. E, mais do que todas as crianças,


a menina que estava com a irmãzinha admirou-se ao perceber que,
durante a viagem no barco de aço, tinha esquecido completamente o
medo de trovões e de relâmpagos.

Durante algum tempo ainda ficaram comentando suas aventuras,


um contando ao outro sua experiência pessoal. Depois despediram-se
e foram para casa, trocar aquelas roupas molhadas

Só uma das crianças não estava plenamente satisfeita com o


desenrolar da brincadeira. Era o menino de óculos. Despedindo-se de
Momo, ele disse:

- Foi uma pena a gente afundar o Shum-shum gummilastikum.


Afinal, ele era o único sobrevivente de sua espécie. Eu gostaria muito
de descobrir mais coisas sobre ele.

Numa coisa, entretanto, todos concordavam: as melhores


brincadeiras do mundo eram as que eles faziam com Momo.
Capítulo Quatro

UM VELHO CALADO E UM JOVEM TAGARELA


 

Mesmo quando temos muitos amigos, sempre há um ou outro com


quem temos mais intimidade e de quem gostamos mais. Isso também
acontecia com Momo Ela tinha dois amigos muito especiais, que
costumavam visitá-la todos os dias e repartiam com ela tudo o que
tinham. Um era jovem, o outro era velho, e Momo não sabia dizer de
qual deles gostava mais.

O velho chamava-se Beppo Varredor. Na verdade, seu sobrenome era


outro, mas, como ele era varredor de profissão e todos o chamavam
assim, acabou adotando esse nome

Beppo Varredor morava perto do anfiteatro, numa cabana que ele


mesmo havia construído com tijolos, pedaços de chapa e papelão
alcatroado Era um homem muito baixinho e andava sempre meio
encurvado, de modo que parecia só um pouco mais alto do que Momo.

Muita gente achava que Beppo não era muito bom da cabeça,
porque, quando lhe faziam alguma pergunta, ele apenas sorria, sem
dizer nada. Refletia e, quando achava que a questão não merecia
resposta, ficava calado. No entanto, quando achava a pergunta
importante, continuava refletindo sobre ela. Às vezes demorava duas
horas, ou até dois dias, para responder. Enquanto isso, é claro, a
pessoa que havia feito a pergunta a esquecia, e o que Beppo dizia
acabava parecendo fora de propósito.

Somente Momo se dispunha a esperar horas ou dias por uma


resposta e depois entendia o que Beppo dizia. Sabia que ele demorava
tanto porque fazia questão de nunca dizer alguma coisa que não fosse
verdade. Na opinião dele, a infelicidade do mundo era causada pelas
mentiras, intencionais ou não, que as pessoas diziam por serem
desatentas ou apressadas.

Todas as manhãs, horas antes de o sol nascer, Beppo pegava sua


velha bicicleta e ia até um prédio muito grande na cidade. Ali
esperava, no pátio, com os companheiros de trabalho, até lhe darem
uma vassoura, um carrinho de mão, e indicarem as ruas que deveria
varrer.

Beppo adorava aquelas horas matutinas, quando a cidade ainda


estava adormecida, e fazia sua tarefa com boa vontade e empenho,
pois sabia que era um trabalho muito importante.

Varria as ruas devagar, mas com muita regularidade: a cada passo


uma respirada, a cada respirada uma varrida. Passo respirada - varrida.
Passo - respirada -  varrida. De vez em quando parava um pouco e
ficava olhando para longe, com ar pensativo. Depois recomeçava,
passo - respirada - varrida...

Enquanto se deslocava assim, uma rua suja na frente, uma rua limpa
atrás, com frequência lhe vinham à cabeça grandes ideias. Mas eram
ideias sem palavras, pensamentos tão difíceis de expressar quanto a
lembrança de um perfume ou de uma cor vista em sonho. Depois do
trabalho, quando sentava perto de Momo, costumava contar-lhe
suas  ideias brilhantes. E, enquanto a menina ouvia daquela sua
maneira especial, a língua dele se soltava e surgiam as palavras
adequadas.

- Veja só, Momo - certa vez ele disse, por exemplo -, é assim. Às vezes
temos à nossa frente uma rua muito comprida. Achamos que ela é
terrivelmente comprida e que nunca seremos capazes de chegar até o
fim.

Ficou algum tempo olhando para longe, com ar distraído, depois


continuou:

- Então começamos a nos apressar. E nos apressamos cada vez mais.


Cada vez que levantamos os olhos temos a impressão de que o
trabalho que temos pela frente não diminuiu em nada. Nosso esforço
aumenta, começamos a sentir medo, acabamos ficando sem fôlego e
completamente esgotados. E a rua continua inteirinha na nossa frente,
tão comprida quanto antes. Não é assim que se deve fazer.

Pensou um pouco e continuou:

- Nunca elevemos pensar na rua inteira de uma vez, está


entendendo? Devemos pensar apenas no passo seguinte, na
respiração seguinte, na varrida seguinte, e continuar sempre pensando
só naquilo que vem a seguir.
Ele fez outra pausa e refletiu, antes de prosseguir:

- Fazendo assim, temos prazer. Isso é importante, e o trabalho sai


bem-feito.

Assim é que deve ser.

Depois de mais uma longa pausa, concluiu:

- De repente, verificamos que, passo a passo, chegamos ao fim da


rua comprida, sem perceber e sem perder o fôlego.

Meneou a cabeça e concluiu, devagar:

- Isso é muito importante.

Outra vez Beppo chegou, sentou-se perto de Moino, e a menina


percebeu que ele estava refletindo e tinha alguma coisa especial a
dizer. De repente, Beppo olhou-a bem nos olhos e disse:

- Eu nos reconheci.

Passou-se algum tempo e ele continuou, baixinho:

- Acontece às vezes, ao meio-dia, quando tudo está adormecido ao


calor do sol...

O mundo fica transparente. Como um rio, entende? Dá até para


enxergar o fundo.

Em silêncio, ele balançou a cabeça e depois continuou, na mesma


voz suave:

- Existem outras épocas lá embaixo, no fundo. Calou-se novamente,


refletindo, procurando as palavras certas. Mas parecia não as ter
encontrado e acabou explicando, de repente, em tom muito natural:

- Hoje estive varrendo lá pelos lados da antiga muralha da cidade. Na


muralha há cinco pedras de cor diferente, colocadas assim, está
vendo? - e com o dedo ele riscou na areia um T grande.

Com a cabeça de lado, olhou um momento e sussurrou:

- Eu reconheci essas pedras.


Após uma pausa ainda mais longa, prosseguiu em tom hesitante:

- Elas pertencem a outras épocas, ao tempo em que a muralha foi


erguida. Muita gente trabalhou nisso. Porém houve duas pessoas que
colocaram aquelas pedras na muralha. Era um sinal, sabe? Eu o
reconheci.

Beppo esfregou os olhos. O que tinha a dizer parecia exigir um


grande esforço, pois as palavras saíam com dificuldade:

- Essas duas pessoas, naquele tempo, tinham uma aparência


diferente, muito diferente.

Afinal, num tom decidido e quase provocante, falou entre os dentes:

- Mesmo assim eu nos reconheci, você e eu. Eu nos reconheci.

Não podemos levar a mal as pessoas que sorriam quando ouviam


Beppo Varredor dizer coisas desse tipo. Ou que, quando ele virava as
costas, faziam o gesto significativo de bater com o dedo na testa. Mas
Momo gostava dele e dava grande valor às suas palavras.

O outro grande amigo de Momo era jovem e exatamente o oposto de


Beppo Varredor.

Era um rapaz bonito, de olhos sonhadores e muito falador. Era


sempre espirituoso e alegre e ria com tanto gosto, que os outros não
podiam deixar de rir junto, quisessem ou não. Seu nome era Girolamo,
mas todos o chamavam apenas de Gigi.

Já que demos ao velho Beppo o nome de sua profissão, vamos fazer a


mesma coisa com Gigi, embora, na verdade, ele não tivesse nenhuma
profissão fixa. Varnos chamá-lo cie Gigi Guia. Mas guia turístico era
apenas uma das suas muitas ocupações, quando surgia a
oportunidade, e mesmo assim ele não era guia oficialmente.

Sua única credencial para essa função era um quepe. Assim que
apareciam alguns turistas perdidos pelas redondezas, ele colocava o
quepe na cabeça e, com ar muito sério, ia falar com eles, propondo
mostrar-lhes as ruínas e explicar tudo.

Quando os estrangeiros aceitavam, ele começava imediatamente a


discursar,  contando as  histórias mais fantásticas, inventando nomes,
datas e acontecimentos, deixando todos atordoados. Alguns visitantes
não se deixavam enganar por ele e viravam as costas com ar zangado.
Mas a maioria acreditava em tudo e dava um bom dinheiro quando, ao
final, Gigi estendia o quepe.

As pessoas das vizinhanças achavam graça nos arroubos da fantasia


de Gigi, embora muitas vezes dissessem, com ar de preocupação, que
não era muito correto ele ganhar tanto dinheiro para contar mentiras.

- Todos os poetas inventam coisas - dizia então Gigi. - E, seja como


for, as pessoas recebem alguma coisa em troca do seu dinheiro, não é?
Vou dizer mais: elas recebem exatamente o que desejam! E que
diferença faz que as coisas estejam ou não escritas em algum livro?
Quem disse que as histórias dos livros também não são pura invenção,
só que ninguém sabe?

Outras vezes, ele dizia:

- Quem sabe o que é verdade e o que não é? Quem sabe o que


aconteceu aqui há mil ou dois mil anos? Vocês por acaso sabem?

- Não - confessavam os outros.

- Então! - exclamava Gigi Guia. - Como é que vocês podem saber se


minhas histórias são verdade ou mentira? As coisas podem muito bem
ter acontecido exatamente do jeito como eu conto. Nesse caso, o que
eu conto é verdade.

Era difícil contestá-lo. Na verdade, era sempre difícil vencer a


argumentação de Gigi.

Infelizmente, no entanto, era muito raro aparecerem turistas


interessados em ver o anfiteatro, de modo que Gigi era obrigado a
arranjar outras ocupações Conforme a ocasião, era guardador de
carros, testemunha de casamento, babá de cachorros, portador de
cartas de amor, acompanhante de enterro, vendedor de souvernirs,
fornecedor de ração para gatos e muitas coisas mais.

O sonho de Gigi era se tornar rico e famoso. Ambicionava morar num


palácio maravilhoso, no meio de um imenso parque, comer em baixela
de ouro e dormir em travesseiros de seda. Imaginava-se no futuro
como um sol resplandecente, cujos raios já agora o aqueciam, de
longe, em sua pobreza.
- Hei de conseguir - retrucava ele, quando os outros caçoavam de
seus sonhos. - E aí vocês haverão de se lembrar do que eu dizia...

Não tinha a menor ideia de como iria conseguir, pois trabalho sério e
perseverança não eram seu forte.

- Isso não é nenhuma obra de arte - costumava dizer para Momo. -


Quem quiser que enriqueça desse jeito. Mas olhe só para as pessoas
que venderam a alma por um punhado de dinheiro, veja só no que elas
se tornaram! Nessa eu não caio. Mesmo que às vezes eu nem tenha
dinheiro para comprar um café, Gigi será sempre Gigi.

Na verdade, é de se pensar que seria impossível existir amizade


entre duas pessoas tão diferentes, com pontos de vista tão divergentes
sobre a vida e o mundo em geral, como Gigi Guia e Beppo Varredor. No
entanto, Gigi e Beppo eram amigos. Por estranho que pareça, o velho
Beppo era a única pessoa que nunca criticava Gigi por sua leviandade,
e também o tagarela Gigi, estranhamente, era a única pessoa que
jamais caçoava do velho Beppo.

Isso talvez acontecesse por causa da maneira como Momo ouvia os


dois.

Nenhum dos três suspeitava que, em breve, uma sombra cairia sobre
sua amizade, e não só sobre sua amizade, mas sobre todo aquele
lugar. Era uma sombra que vinha crescendo cada vez mais e já se
estendia, escura e fria, por sobre a grande cidade.

Era uma espécie de invasão silenciosa e imperceptível, que avançava


a cada dia e à qual ninguém se opunha porque ninguém tinha
consciência dela. Mas quem eram os invasores?

Até o velho Beppo, que reparava em muita coisa que escapava aos
outros, não notou a presença dos homens cinzentos, que vinham
ocupando a cidade em número sempre crescente, incansáveis em sua
atividade Entretanto, não eram invisíveis.

As pessoas os viam, mas não os enxergavam. Eles tinham o dom


misterioso de passar despercebidos, de modo que ou o olhar das
pessoas passava direto por eles, ou elas os esqueciam imediatamente.
Assim, esses invasores conseguiam trabalhar em segredo, exatamente
porque não precisavam se esconder. Além disso, naturalmente, já que
ninguém reparava neles, também ninguém se perguntava de onde
vinham, e eles continuavam chegando, eram cada dia mais
numerosos.

Circulavam pelas ruas em elegantes automóveis cinzentos, entravam


em todas as casas, encontravam-se em todos os restaurantes De vez
em quando anotavam alguma coisa em seus caderninhos.

Os homens vestiam-se de cinza-teia de aranha. Até seus rostos eram


cinzentos.

Usavam chapéu-coco cinzento, fumavam pequenos charutos


cinzentos e cada um carregava uma pasta cinza-chumbo.

Nem Gigi Guia tinha reparado que alguns daqueles homens


andavam rondando pelas vizinhanças do anfiteatro, escrevendo
febrilmente em seus caderninhos.

Somente Momo os havia visto, quando, certa noite, suas silhuetas


escuras destacaram-se nos limites das ruínas. Gesticulavam uns com
os outros, depois suas cabeças se juntaram, como se estivessem
conferenciando. Não se podia ouvir uma palavra. Porém, Momo sentiu
um frio na espinha como nunca sentira igual.

Enrolou-se mais no seu casaco, mas não adiantou, pois não era um
frio comum.

Depois os homens cinzentos se foram e não apareceram mais.

Naquela noite, Momo não conseguiu ouvir a música suave e distante


que sempre chegava aos seus ouvidos. Mas no dia seguinte a vida
continuou como sempre, e Momo não pensou mais nos estranhos
visitantes. Também ela os esqueceu.
Capítulo Cinco

HISTÓRIAS PARA MUITOS E HISTÓRIAS PARA UMA


 

Aos poucos, Momo foi se tornando absolutamente indispensável para


Gigi Guia. Se é que se pode dizer isso, em se tratando de um rapaz tão
superficial e inconstante, Gigi tinha desenvolvido um amor profundo
por aquela menina esfarrapada, e sua vontade, na verdade, era levá-la
sempre junto com ele, onde quer que fosse.

Como já dissemos, sua grande paixão era inventar histórias


Exatamente nesse aspecto Gigi tinha passado por uma mudança, que
ele mesmo sentia nitidamente Antes, suas histórias às vezes
chegavam a um impasse Ficava sem ideias e, então, ou repetia sempre
a mesma coisa ou buscava inspiração em algum filme ou notícia de
jornal. Suas histórias, por assim dizer, se arrastavam. Mas, desde que
ele conhecera Momo, era como se, de repente, elas tivessem criado
asas Principalmente quando Momo estava ouvindo, sua fantasia
brotava como relva de primavera. Crianças e adultos aglomeravam-se
em torno dele. Agora era capaz de contar histórias que se
prolongavam por dias e semanas, e suas ideias eram inesgotáveis. Ele
mesmo, aliás, se ouvia com a maior admiração, pois às vezes não tinha
ideia do rumo em que sua fantasia o levaria.

Quando, certo dia, voltaram a aparecer turistas interessados em


conhecer o anfiteatro (Momo estava sentada nos degraus de pedra, um
pouco mais longe), Gigi começou a contar:

- Prezadas senhoras, prezados senhores! Como todos devem saber, a


imperatriz Strapazia Augustina viu-se forçada a empreender inúmeras
guerras a fim de defender seu reino contra os constantes ataques dos
Tremores e dos Medos.

"Certa ocasião, após ter subjugado mais uma vez esses povos, estava
tão irritada com os eternos problemas que era obrigada a enfrentar,
que ameaçou exterminá-los se o seu rei, Xaxotraxolus, não lhe
entregasse como indenização o seu peixe dourado.

"Naquela época, senhoras e senhores, o peixe dourado era


desconhecido neste país. Porém a imperatriz Strapazia ficara sabendo
através de um viajante que o rei Xaxotraxolus tinha um peixinho que
iria se transformar em ouro puro quando crescesse. A imperatriz
resolveu então se apossar daquela raridade a qualquer custo.

"Ao saber da exigência, o rei Xaxotraxolus deu muita risada.


Escondeu o verdadeiro peixinho dourado debaixo da cama, e, em vez
dele, mandou para a imperatriz um filhote de baleia, dentro de uma
terrina de sopa encravada de pedras preciosas.

"Devo dizer que a imperatriz ficou meio espantada com o tamanho


do peixe, pois tinha imaginado o peixinho dourado muito menor. Mas
ela pensou: 'Quanto maior, melhor, pois maior será a quantidade cie
ouro em que ele irá se transformar.' De fato, o peixe não apresentava
qualquer brilho dourado, o que a preocupou um pouco, mas o enviado
do rei Xaxotraxolus explicou que o peixe só ia ficar dourado quando
atingisse o máximo de seu crescimento. Por isso era essencial que seu
desenvolvimento não fosse prejudicado em nada A imperatriz
Strapazia deu-se por satisfeita.

"O peixinho ia crescendo dia a dia, consumindo enormes


quantidades de alimento.

Como não era pobre, a imperatriz Strapazia dava ao peixe tudo o que
ele conseguisse comer. O filhote foi se tornando grande e balofo. Logo
a terrina de sopa ficou muito pequena para ele.

"- Quanto maior, melhor - dizia a imperatriz, e instalou-o na sua


banheira. Mas em pouco tempo o peixe já estava grande demais para a
banheira. Foi preciso colocá-lo na piscina da imperatriz, o que foi uma
dificuldade, pois ele agora pesava tanto quanto um boi. Um dos
escravos que estava ajudando a carregá-lo escorregou, e
imediatamente a soberana ordenou que o infeliz fosse atirado aos
leões, pois agora só estava interessada no peixe.

"Todos os dias ela ficava durante horas sentada à beira da piscina,


vendo o peixe crescer, só pensando no ouro que ia render, pois, como
vocês certamente sabem, ela levava uma vida altamente luxuosa e
nunca tinha ouro suficiente

"- Quanto maior, melhor - estava sempre murmurando consigo


mesma. Essas palavras foram declaradas lema nacional e a imperatriz
mandou inscrevê-las em letras de bronze na fachada de todos os
edifícios públicos.
"Afinal, até a piscina imperial acabou se tornando muito pequena
para o peixe.

Então a imperatriz Strapazia mandou seu povo construir o edifício


cujas ruínas estamos vendo aqui, senhoras e senhores. Era um
gigantesco aquário redondo, cheio de água até a borda, e dentro dele,
finalmente, o peixe podia se esticar à vontade.

"A imperatriz então passava dia e noite sentada ali, naquele lugar,
vigiando o peixe imenso, para verificar se já estava se transformando
em ouro. Não confiava em ninguém, nem nos escravos nem nos
parentes, pois tinha medo de que lhe roubassem o precioso peixe.
Então ficava ali sentada, emagrecendo a cada dia, de tanto medo  e
aflição. Nunca fechava os olhos, estava sempre com eles cravados no
peixe, que se esbaldava alegremente na água, sem a menor intenção
de algum dia virar ouro.

A imperatriz foi abandonando cada vez mais suas funções de


governante.

"Era exatamente isso que os Tremores e os Medos estavam


esperando. Sob o comando do rei Xaxotraxolus, lançaram um ataque, e
dessa vez conquistaram o país inteiro num instante. Não encontraram
um só soldado pela frente, e para o povo não importava quem
estivesse governando.

"Quando, finalmente, a imperatriz Strapazia soube o que tinha


acontecido, proferiu aquele lamento tão conhecido: 'Ai de mim! Ah, se
eu tivesse...'

Infelizmente o resto da frase não chegou até nós. O fato é que ela se
atirou dentro deste aquário e afogou-se ao lado cio peixe, neste túmulo
de todas as suas esperanças. Para comemorar a vitória, o rei
Xaxotraxolus mandou matar a baleia, e durante uma semana inteira o
povo todo comeu filé de baleia."

Com essas palavras Gigi encerrou suas explicações, deixando o


público, visivelmente impressionado, contemplar respeitosamente as
ruínas. Só um homem, meio cético, indagou:

- Quando se supõe que tudo isso tenha acontecido? Gigi, que tinha
respostas sempre prontas, não vacilou:
- Como o senhor sabe, a imperatriz Strapazia foi contemporânea do
famoso filósofo Noiosius, o Velho.

O homem que tinha perguntado não podia, é claro, confessar que


não fazia a menor ideia de quando tinha vivido o famoso filósofo
Noiosius, portanto só respondeu:

- Ah... Muito obrigado.

Os turistas ficaram encantados. Todos diziam que a visita ao


anfiteatro valera realmente a pena e que jamais ninguém lhes tinha
falado dos tempos antigos de maneira tão viva e interessante.

Modestamente, Gigi estendeu o quepe, e os turistas mostraram-se


mais do que generosos. Até mesmo o cético contribuiu com alguns
níqueis. O fato é que, desde a chegada de Momo, Gigi nunca mais
havia contado duas vezes a mesma história.

Quando Momo estava entre os ouvintes, era como se dentro dele se


abrisse uma comporta, deixando fluir torrentes de ideias novas e
invenções, sem que ele precisasse fazer esforço para pensar.

Pelo contrário, muitas vezes até tentava conter sua imaginação, para
não ir longe demais, como naquela ocasião em que duas senhoras
americanas tinham aceitado seus serviços. Ele as deixara apavoradas
com a seguinte história:

- Até na sua bela e livre América, minhas senhoras, naturalmente


todos sabem que o notoriamente cruel tirano Marxentius Communis,
cognominado 'O Vermelho', concebeu o plano de alterar o mundo
inteiro conforme sua vontade. Entretanto, apesar de todos os seus
esforços, os homens continuaram sempre os mesmos e não se
deixaram modificar.

Ora, na velhice, Marxentius ficou louco. Naquele tempo, como as


senhoras sabem, não existiam psiquiatras para ajudar a curar essa
doença. Então não havia o que fazer a não ser deixá-lo entregue a seu
delírio. Foi no auge da loucura que ele teve a ideia cie abandonar o
mundo tal como era e criar um outro mundo, totalmente novo.

"Para isso, mandou construir um globo exatamente do tamanho cio


antigo, contendo uma cópia exata de tudo o que existia nele: casas,
árvores, montanhas, oceanos.
A humanidade toda foi forçada, sob pena de morte, a trabalhar nessa
empresa gigantesca.

"Começaram por construir a base sobre a qual iria ser colocado o


novo globo. E os restos dessa base são o que as senhoras estão vendo
aqui.

"Depois começaram a construir o próprio globo, uma esfera imensa,


do tamanho da Terra. Quando, afinal, ficou pronta essa esfera, foi
copiado tudo o que havia no velho mundo, com imensa dificuldade.

"Naturalmente, era preciso obter grande quantidade de material, e o


único lugar onde se podia consegui-lo era na própria Terra. Então a
Terra foi ficando cada vez menor, enquanto crescia o novo globo.
Afinal, para completar o novo mundo, tiveram de usar até o último
restinho do velho mundo. Naturalmente, também toda a
humanidade  teve de se mudar para o mundo novo, já que o velho
tinha sido todo usado. Quando Marxentius Communis compreendeu
que, apesar de tudo, as coisas eram as mesmas que sempre tinham
sido, enrolou-se em seu manto e saiu em majestosa atitude.

Ninguém sabe para onde ele foi.

"Então, senhoras, esta depressão em forma de funil, hoje em ruínas,


outrora formava a base do globo de Marxentius Communis, que
repousava sobre o mundo anterior. Portanto, as senhoras devem tentar
imaginar tudo ao contrário."

As duas finas senhoras americanas empalideceram, e uma delas


perguntou:

- E que aconteceu com o mundo de Marxentius Comunis?

- A senhora está em cima dele - respondeu Gigi. - Este mundo é o


novo globo.

As duas velhas senhoras deram um grito assustado e saíram


correndo. Daquela vez não adiantou Gigi estender o quepe.

Gigi gostava acima de tudo de contar histórias só para a pequenina


Momo, quando ninguém mais estava ouvindo. Geralmente eram
contos de fadas, pois era deles que Momo mais gostava, e quase
sempre os personagens eram Gigi e Momo. Inventados especialmente
para eles, eram completamente diferentes das outras histórias que
Gigi costumava contar.

Num fim de tarde quente e agradável, os dois estavam sentados em


silêncio, lado a lado, na fileira mais alta de degraus de pedra. No céu
cintilavam as primeiras estrelas e a lua grande e prateada começava a
se elevar acima do contorno escuro dos pinheiros.

- Você me conta uma história maravilhosa? - pediu Momo, baixinho.

- Tudo bem - disse Gigi. - Quem você quer que sejam os


personagens?

- De preferência Momo e Girolamo - respondeu Momo. Gigi pensou


um pouco e perguntou: - E qual vai ser o nome da história?

- Que tal... "A história do espelho mágico"? Gigi meneou a cabeça,


pensativo.

- Soa bem. Vamos ver no que vai dar.

Ele passou um braço em torno dos ombros de Momo e começou.

- Era uma vez uma linda princesa chamada Momo. Vestia-se de


veludos e sedas e morava no alto do mundo, no cume de uma
montanha coberta de neve, num palácio de vidro colorido.

"Ela tinha tudo o que se poderia desejar, só comia as iguarias mais


saborosas e bebia os vinhos mais deliciosos. Dormia em travesseiros de
seda e sentava-se em cadeiras de marfim. Tinha tudo, mas era
completamente só.

"Tudo o que a cercava, seus criados, suas camareiras, seus cães,


gatos, passarinhos e até suas flores, tudo eram apenas imagens
refletidas em espelhos.

"Ora, a princesa Momo tinha um espelho mágico, grande e redondo,


que era feito da mais fina prata. Todos os dias e todas as noites, ela o
mandava para o mundo. O grande espelho sobrevoava terras e, mares,
cidades e campos. As pessoas que o viam não se espantavam nem um
pouco. Simplesmente diziam: - É a Lua.

"E, ao voltar, o espelho sempre se sacudia e despejava aos pés da


princesa todas as imagens que recolhera durante sua viagem. Eram
imagens bonitas e feias, interessantes e desinteressantes, conforme o
que tivesse acontecido. A princesa escolhia algumas e, as outras, ela
simplesmente jogava num riacho. Mais depressa do que se pode
imaginar, as imagens de espelho libertadas corriam pelas águas da
Terra ao encontro de seus donos. Por isso, sempre que nos debruçamos
sobre um poço ou uma poça d'água, encontramos imediatamente
nossa imagem refletida.

"Mas eu ia me esquecendo de dizer que a princesa Momo era


imortal, pois ela mesma nunca se vira no espelho mágico. Ora, quem
visse a própria imagem refletida nele se tornaria mortal. A princesa
Momo sabia disso, por isso nunca o fazia.

"Assim vivia a princesa com todas as suas imagens de espelho,


brincava com elas e sentia-se muito feliz.

"Um belo dia, no entanto, o espelho mágico lhe trouxe uma imagem
que teve para ela uma importância maior do que todas as outras. Era a
imagem de espelho de um jovem príncipe. Assim que se deparou com
seu reflexo, sentiu tanta vontade de ver o príncipe, que desejou ir a seu
encontro imediatamente. Mas por onde começar? Não sabia onde ele
morava, quem ele era, não sabia nem mesmo seu nome.

"Não conseguindo ter outra ideia, resolveu olhar-se no espelho


mágico. A princesa Momo pensou: 'Talvez ele possa levar minha
imagem até o príncipe.

Talvez o príncipe olhe para cima justo quando o espelho mágico


estiver passando e então veja minha imagem. Talvez ele siga o espelho
mágico e acabe me encontrando aqui.'

"Assim ela se olhou demoradamente no espelho mágico e mandou-o


levar sua imagem pelo mundo. Só que, com isso, naturalmente ela se
tornou mortal.

"Daqui a pouco você vai saber como continua a história da princesa.


Antes quero lhe falar sobre o príncipe.

"O tal príncipe se chamava Girolamo e reinava sobre um grande


território que ele mesmo conquistara. Onde ficava esse reino? Não
ficava no ontem; nem no hoje, mas sempre em algum dia do futuro.
Por isso se chamava Terra do Amanhã. Todos os seus habitantes
gostavam do príncipe e o admiravam. Certo dia, os ministros disseram
ao príncipe da Terra do Amanhã: - Vossa Majestade precisa se casar!

"O príncipe Girolamo não tinha nada contra, e assim as moças mais
bonitas da Terra do Amanhã foram levadas ao palácio, para que ele
escolhesse uma.

Naturalmente, todas o queriam e por isso se enfeitaram o mais que


puderam. Entre as moças, no entanto, introduziu-se no palácio uma
fada má, em cujas veias não corria sangue vermelho e quente, mas
sangue verde e frio. Isso não se notava por sua aparência, pois ela
havia se maquiado com muita arte.

"Quando o príncipe da Terra do Amanhã entrou no salão dourado do


trono para fazer sua escolha, a fada pronunciou depressa uma fórmula
mágica, de modo que o pobre Girolamo não conseguia ver ninguém
além dela. E ele a enxergava tão linda, que ali mesmo lhe perguntou
se queria ser sua mulher.

"- Com muito gosto - disse a fada má -, mas sob uma condição.

"- Eu a aceitarei - afirmou o príncipe, sem refletir.

"- Ótimo - disse ela, com um sorriso tão gracioso, que o pobre
príncipe ficou atordoado. - Durante um ano você não poderá erguer os
olhos para o espelho de prata que paira no céu. Se o fizer, na mesma
hora você esquecerá tudo o que é seu. Esquecerá quem você é de
verdade. Irá para a Terra do Hoje, onde ninguém o conhece, e lá viverá
como um pobre coitado desconhecido. Você concorda?

- Se for só isso - exclamou Girolamo -, a condição será fácil de


cumprir.

"Enquanto isso, o que aconteceu com a princesa Momo? Ela esperou,


esperou, mas o príncipe não veio. Então a princesa resolveu sair
pessoalmente pelo mundo, para procurá-lo. Libertou todas as imagens
de espelho que estavam com ela. Calçando seus chinelinhos, saiu
sozinha do seu palácio de vidro colorido, atravessou as montanhas
cobertas de neve e foi descendo para o mundo. Atravessou todos os
países, até chegar à Terra do Hoje. Àquela altura seus chinelinhos já
estavam gastos, e ela foi obrigada a continuar a pé. Mas o espelho
mágico com sua imagem continuava sobrevoando o mundo.
"Uma noite, o príncipe Girolamo estava sentado no telhado do seu
palácio dourado, jogando damas com sua fada de sangue verde e frio
De repente, uma gotinha minúscula caiu na mão do príncipe.

"- Está começando a chover - disse a fada de sangue verde.

"- Não - disse o príncipe -, não pode ser, pois não há nuvens no céu.

"E o príncipe olhou para cima, direto para o espelho mágico grande
e prateado, que pairava lá no alto. Então ele viu a imagem da princesa
Momo. Percebeu que ela estava chorando e que uma lágrima tinha
caído em sua mão. No mesmo instante compreendeu que a fada má o
tinha enganado, que ela não era bonita de verdade e que só tinha
sangue verde e frio correndo pelas veias. A princesa Momo era quem
ele amava de verdade.

"- Você quebrou sua promessa - disse a fada verde, e seu rosto se
contorceu como se fosse o de uma serpente. - Agora vai ter que pagar.

"Com seus longos dedos verdes, ela agarrou o peito do príncipe


Girolamo, que continuava sentado, imóvel, e deu um nó no coração
dele. Na mesma hora ele se esqueceu de que era o príncipe da Terra do
Amanhã. Deixou seu palácio e seu reino na calada da noite, como se
fosse um ladrão. Percorreu um longo caminho, através do mundo, até
chegar à Terra do Hoje, onde passou a viver como um pobre e infeliz
desconhecido, tendo por nome apenas Gigi. A única coisa que ainda
conservava era a imagem do espelho mágico, que a partir de então
ficou vazio.

"Nesse meio tempo, as roupas de seda e veludo da princesa Momo


também se rasgaram. Ela passou a usar um paletó de homem grande
demais e uma saia toda remendada. E ela morava numa velha ruína.
Foi lá que, um belo dia, os dois se encontraram. Mas a princesa não
reconheceu o príncipe da Terra do Amanhã, pois ele se transformara
num pobre diabo. Gigi também não reconheceu a princesa, pois na
verdade sua aparência não era mais cie princesa. Mas, em sua
infelicidade comum, os dois tornaram-se amigos e consolaram-se um
ao outro.

"Uma noite, quando o espelho mágico, agora vazio, voltou a passar


por aquele céu, Gigi pegou a imagem que guardara e a mostrou para
Momo. Já estava muito amarrotada e manchada, mas a princesa
reconheceu imediatamente que se tratava da sua própria imagem, que
em outros tempos ela havia enviado pelo mundo afora.

Também reconheceu, por baixo da máscara do pobre coitado Gigi, o


príncipe Girolamo, que ela sempre procurara e por quem se tornara
mortal. Então lhe contou tudo.

"Mas Gigi balançou a cabeça tristemente e disse:

"- Não consigo entender nada do que você está dizendo, pois há um
nó no meu coração que faz com que não me lembre de nada.

"A princesa Momo agarrou-lhe o peito e, com a maior facilidade,


desfez o nó de seu coração. Na mesma hora o príncipe Girolamo voltou
a saber quem era e de onde vinha. Pegou a princesa pela mão e foi
com ela para longe, para muito longe, lá onde ficava a Terra do
Amanhã.

Quando Gigi terminou, os dois ficaram em silêncio por algum tempo


Depois Momo perguntou

- Mais tarde eles se tornaram mando e mulher?

- Acho que sim - disse Gigi - Mais tarde - Eles já morreram'

- Não - disse Gigi, resoluto -, disso eu tenho certeza O espelho


mágico só torna uma pessoa mortal quando ela se olha sozinha Mas,
quando duas pessoas se olham juntas, voltam a se tornar imortais E foi
isso que os dois fizeram.

Grande e prateada, a Lua se elevava acima dos pinheiros escuros e


fazia as velhas pedras da ruína brilharem misteriosamente Momo e
Gigi ficaram sentados em silêncio, um ao lado do outro, observando-a
por um longo tempo Sentiam nitidamente que naquele momento
eram imortais.
 
 

Segunda Parte
OS HOMENS CINZENTOS
 

Capítulo Seis

A CONTA ESTÁ ERRADA, MAS DÁ CERTO


 

Existe um mistério muito grande que, no entanto, faz parte do dia-a-


dia. Todos os seres humanos participam dele, embora muito poucos
reflitam sobre ele. A maioria simplesmente o aceita, sem mais
indagações. Esse mistério é o tempo.

Existem calendários e relógios que o medem, mas significam pouco,


ou mesmo nada, porque todos nós sabemos que uma hora às vezes
parece uma eternidade e, outras  vezes, passa como um relâmpago,
dependendo do que acontece nessa hora.

Tempo é vida. E a vida mora no coração.

Ninguém sabia disso melhor que os homens cinzentos. Ninguém


sabia como eles o valor de uma hora, um minuto ou até um segundo.
Claro que tinham sua maneira própria de entender o tempo, assim
como a sanguessuga tem sua maneira própria de entender o sangue. E
eles agiam de acordo com essa maneira de entender.

Tinham seus próprios planos para o tempo das pessoas. Eram planos
a longo prazo, cuidadosamente preparados.

O principal era que ninguém percebesse suas atividades.

Dissimuladamente, tinham conseguido se estabelecer na vida da


grande cidade e na de seus habitantes. Aos poucos, sem ninguém
notar, avançavam dia a dia e se apossavam das pessoas.

Conheciam cada indivíduo que lhes pudesse interessar, muito antes


que o atingido o percebesse. Só esperavam o momento certo para
apanhá-lo. E faziam tudo para esse momento chegar.

Era o caso, por exemplo, do barbeiro, o sr. Fusi. Não era nenhum
grande artista no seu ofício, mas era muito respeitado na sua rua. Não
era rico nem pobre. Sua barbearia, que ficava no centro da cidade, era
pequena e só tinha como empregado um jovem aprendiz.

Um dia, o sr. Fusi estava na porta da loja, esperando a clientela. Era


folga do aprendiz e o sr. Fusi estava sozinho, olhando a chuva cair na
calçada. Era um dia cinzento, e na alma do barbeiro o tempo também
estava encoberto.

"Minha vida vai passando", ele pensava, "em meio ao barulho da


tesoura, conversinhas e espuma de sabão. Na verdade, o que minha
existência me oferece?

Quando eu morrer, será como se nunca tivesse existido."

Na verdade, o sr. Fusi não tinha nada contra conversinhas. Até


gostava de trocar ideias com os clientes e ouvir o que tinham a dizer.
Também nada tinha contra barulho de tesoura ou espuma de sabão.
Gostava muito do seu trabalho e sabia que o executava bem.
Especialmente ao barbear debaixo do queixo, ninguém manejava a
navalha com tanta habilidade. Mas havia momentos em que nada
disso parecia valer a pena. Todo mundo tem momentos assim.

"Minha vida é um fracasso", pensava o sr. Fusi. "Afinal de contas,


quem sou eu?

Só consegui ser um pequeno barbeiro. Se pelo menos pudesse levar


uma vida de verdade, eu seria uma pessoa muito diferente!"

Só que o sr. Fusi não sabia muito bem em que consistia essa "vida de
verdade".

Imaginava algo de importante e luxuoso, como ele via nas revistas.

Aborrecido, continuou suas reflexões: "A questão é que meu trabalho


não me deixa tempo para essas coisas. Para viver uma vida de
verdade, é preciso ter tempo. É  preciso ser livre Mas eu vou passar a
vida inteira preso ao barulho da tesoura, às conversinhas e à espuma
de sabão."

Naquele momento, um elegante carro cinzento parou na porta da


barbearia. Um homem cinzento desceu do carro e entrou na loja.
Colocando sua pasta cinza-chumbo sobre a mesa na frente do espelho,
pendurou no cabide seu chapéu-coco cinza, sentou-se na cadeira de
barbear, tirou do bolso um caderninho e começou a folheá-lo, sempre
tirando baforadas de um pequeno charuto cinzento O sr. Fusi fechou a
porta da barbearia porque, de repente, começou a fazer um frio
esquisito.

- O que o senhor deseja? - perguntou, meio confuso. Vai barba ou


cabelo?

Mas na mesma hora censurou-se por sua falta de tato, pois o homem
tinha uma careca reluzente.

- Nem um nem outro - retrucou o homem cinzento, sem um sorriso,


com uma voz inexpressiva, cinzenta, por assim dizer. - Venho da parte
da Caixa Econômica de Tempo. Sou o agente XYQ/384/b. Soubemos
que o senhor deseja abrir uma conta de poupança no nosso
estabelecimento

- Para mim isso é novidade - declarou o sr. Fusi. - Para ser franco, eu
nem sabia da existência dessa tal caixa.

- Mas agora já sabe - retrucou secamente o outro. Consultou seu


caderninho e continuou: - É o sr. Fusi, barbeiro, não é?

- Certo. Sou eu mesmo

- Então estou no lugar certo - e fechou abruptamente o caderninho. -


Está na nossa lista de pretendentes.

- Como assim? - indagou o sr. Fusi, sem compreender.

- Ora, vejamos, meu caro senhor. O seu tempo está sendo


desperdiçado entre barulho de tesouras, conversinhas e espuma de
sabão. Quando morrer, será como se nunca tivesse existido. Se
dispusesse de tempo para levar uma vida de verdade, seria uma
pessoa muito diferente. Mas o que lhe falta é tempo. Estou certo?

- É exatamente nisso que eu estava pensando agora mesmo -


murmurou o sr. Fusi, tremendo porque1, apesar de a porta estar
fechada, o frio aumentava na barbearia.

- Está vendo? - disse o homem cinzento, com ar muito seguro,


tragando satisfeito o seu charuto. - Mas onde vai arranjar tempo? Só
poupando! Veja, sr. Fusi, tem desperdiçado seu tempo com a maior
imprudência, conforme vou lhe provar apenas fazendo uma conta. Um
minuto tem sessenta segundos. Uma hora tem sessenta minutos. Até
aqui está entendendo?

- Claro que estou.

O agente XYQ/384/b começou a escrever números no espelho com


um lápis cinza.

- Sessenta vezes sessenta são três mil e seiscentos segundos. Então,


uma hora tem três mil e seiscentos segundos. Um dia tem vinte e
quatro horas. Portanto, três mil e seiscentas vezes vinte e quatro são
oitenta e seis mil quatrocentos e sessenta e cinco dias (excluindo o
ano bissexto), o que dá trinta e um milhões quinhentos e trinta e seis
mil segundos por ano. Ou trezentos e quinze milhões trezentos e
sessenta segundos em dez anos. Quanto tempo acha que vai durar sua
vida, sr. Fusi?

- Bem... - gaguejou o barbeiro, perplexo. - Espero viver até os setenta


ou oitenta anos, se Deus quiser.

- Muito bem - prosseguiu o homem cinzento. - Vamos supor, por


precaução, que sejam setenta anos. Teríamos trezentos e quinze
milhões trezentos e sessenta mil vezes sete. Dá dois bilhões duzentos
e sete milhões quinhentos e vinte mil segundos.

E escreveu no espelho em algarismos bem grandes: 2.207.520.000

Sublinhou várias vezes o número e explicou: - Veja, sr. Fusi, esta é a


fortuna à sua disposição.

O sr. Fusi engoliu em seco e enxugou a testa. A soma era de atordoar.


Nunca pensou que fosse tão rico.

- Pois é - continuou o agente, tirando outra baforada do charuto


cinzento -, é um número impressionante, não é? Mas vamos em frente.
Qual é sua idade?

- Quarenta e dois - gaguejou novamente o barbeiro, de repente


sentindo-se culpado, como se tivesse cometido alguma fraude.

- Quantas horas, em média, dorme por noite?

- Cerca de oito - confessou o sr. Fusi.


O agente calculava com a velocidade de um relâmpago. O lápis
rangia no espelho, arrepiando o sr. Fusi.

- Quarenta e dois anos e oito horas por dia vêm a ser quatrocentos e
quarenta e um milhões quinhentos e quatro mil segundos, e essa
quantidade de tempo deve, sem dúvida alguma, ser considerada
perdida. Agora, quantas horas por dia o senhor dedica ao trabalho?

- Também umas oito horas - respondeu o sr. Fusi, já meio


desanimado.

- Então temos que repetir a mesma quantidade na coluna do débito -


continuou o agente, implacável. - E, naturalmente, temos também que
deduzir outro período de tempo, pois o senhor precisa comer. Quanto
tempo por dia o senhor gasta comendo, incluindo todas as refeições?

- Não sei bem - disse o sr. Fusi, muito nervoso. - Creio que umas duas
horas.

- Acho muito pouco - contestou o agente -, mas suponhamos que


seja isso, o que dá, em quarenta e dois anos, cento e dez milhões
trezentos e setenta L- seis mil segundos. Vamos continuar. Sabemos
que o senhor mora com sua velha mãe e todos os dias passa uma hora
inteira com ela, isto é, senta-se a seu lado e fala, embora ela seja
muda e quase surda. Isso também conta como tempo
desperdiçado,  portanto, cinquenta e cinco milhões cento e oitenta e
oito mil segundos. Outra coisa: o senhor tem um periquito,
inteiramente desnecessário, cujo trato exige diariamente um quarto de
hora do seu tempo, o que soma treze milhões setecentos e noventa e
sete mil segundos.

- Mas... - tentou argumentar o sr. Fusi-

- Não interrompa! - gritou o agente, fazendo os cálculos cada vez


mais depressa.

- Como sua mãe é aleijada, o senhor mesmo faz uma parte do


serviço da casa. Tem de fazer compras, limpar os sapatos e executar
várias outras tarefas. Quanto tempo isso lhe custa por dia?

- Talvez uma hora, mas...


- Resultado, cinquenta e cinco milhões cento e oitenta e oito mil
segundos desperdiçados. Além disso, sabemos que vai ao cinema uma
vez por semana, passa uma noite por semana com o grupo de canto
coral, vai ao bar duas noites por semana e, as outras noites, passa com
amigos ou lê um livro. Em suma, desperdiça com ocupações inúteis
cerca de três horas diariamente, o que dá cento e sessenta e cinco
milhões quinhentos e sessenta e quatro mil segundos. Está se sentindo
mal, sr. Fusi?

- Não, não estou - respondeu o sr. Fusi. - Desculpe...

- Estamos quase acabando - prosseguiu o homem cinzento -, mas


existe em sua vida um capítulo especial a ser considerado. É aquele
seu segredinho, o senhor sabe.

O sr. Fusi estava com tanto frio, que seus dentes começaram a bater.
Sentindo-se fraco, apenas murmurou:

- Sabe disso também? Pensei que fosse um segredo entre mim e a


srta. Daria, e...

- No mundo de hoje nada é segredo - interrompeu o agente


XYQ/384/b. - Considere o caso com bom senso e realismo, sr. Fusi.
Responda à minha pergunta: o senhor pretende se casar com a srta.
Daria?

- Não, não dá... - disse o sr. Fusi.

- Isso mesmo - continuou o homem cinza -, pois a srta. Daria vai


passar a vida toda numa cadeira de rodas, porque tem as pernas
paralíticas. Entretanto, o senhor vai visitá-la todos os dias durante
meia hora e leva flores... Por quê?

- Ela fica tão feliz... - respondeu o sr. Fusi, quase chorando.

- Mas, encarando as coisas racionalmente, para o senhor é tempo


perdido, somando vinte e sete milhões quinhentos e noventa e quatro
segundos. E, se considerarmos que costuma passar todas as noites um
quarto de hora sentado perto da janela, refletindo sobre o que
aconteceu durante o dia, temos que debitar mais treze
milhões  setecentos e noventa e sete mil segundos. Agora vamos ver
quanto tempo lhe resta, sr. Fusi.
A conta escrita no espelho era esta:

Sono

Trabalho

Refeições

Mãe

Periquito

Compras etc.

Amigos, coral etc.

Segredo

Janela

TOTAL

- Esta soma - declarou o homem cinzento, batendo o lápis contra o


espelho com tanta força que parecia estar dando tiros de revólver -,
esta soma representa o tempo que o senhor desperdiçou até agora. O
que tem a dizer?

O sr. Fusi não tinha absolutamente nada a dizer. Sentou-se numa


cadeira, a um canto, e enxugou o suor que lhe escorria pela testa,
apesar do frio. O homem cinzento balançou a cabeça com ar
pensativo:

- Pois é isso mesmo. O total é mais da metade da sua riqueza inicial.


Mas agora precisamos ver o que de fato ganhou dos seus quarenta e
dois anos. Como já sabe, um ano tem trinta e um milhões quinhentos e
trinta e seis mil segundos, e isso multiplicado por quarenta e dois vem
a ser um bilhão trezentos e vinte e quatro milhões quinhentos e doze
mil segundos.

Abaixo da soma do tempo perdido, escreveu:

1.324.512.000 segundos

- 1.324.512.000 segundos
0.000.000.000 segundo

Feito isso, guardou seu lápis e fez uma pausa, esperando até os
zeros fazerem efeito sobre o sr. Fusi.

E, de fato, eles produziram o resultado que ele queria.

"Então é esse o balanço da minha vida até hoje", pensou o sr. Fusi,
arrasado.

Estava tão impressionado com a conta, feita com tanta precisão, que
a aceitou sem contestar. E a conta dava mesmo muito certo. Era um
dos truques que os homens cinzentos utilizavam para enganar as
pessoas sempre que podiam.

- O senhor não acha que não pode continuar assim, sr. Fusi? -
recomeçou o agente  XYQ/384/b, com voz suave. - Não gostaria de
começar a poupar um pouco do seu tempo, sr. Fusi?

O sr. Fusi fez sinal que sim, sem dizer nada e com os lábios roxos de
frio.

- Por exemplo - continuou a voz cinzenta do agente -, se o senhor


tivesse começado, há vinte anos, a poupar uma hora por dia, agora
teria um capital de vinte e seis milhões duzentos e oitenta mil
segundos. Se tivesse poupado duas horas diárias teria, é claro, o dobro
dessa soma, ou seja, cinquenta e dois milhões quinhentos e sessenta
mil segundos. Eu lhe pergunto, sr. Fusi, o que são suas míseras
horinhas comparadas a esse total?

- Nada! - gritou o sr. Fusi. - Uma coisa à toa!

- Fico satisfeito em ver que o senhor o admite - continuou o agente. -


E se agora calcularmos quanto o senhor teria economizado em mais
vinte anos assim, chegaremos à simpática soma de cento e cinco
milhões cento e vinte mil segundos.

Todo esse capital estaria à sua disposição quando chegasse aos


sessenta e dois anos.

- Formidável! - gaguejou o sr. Fusi, com os olhos quase saindo das


órbitas.
- Espere um instante, ainda tem mais: a Caixa Econômica de Tempo
não somente cuida do tempo que o senhor poupou, mas ainda lhe
paga os juros sobre isso.  Quer dizer que, de fato, teria muito mais
ainda.

- Quanto mais? - indagou sr. Fusi, ofegante.

- Isso dependeria do senhor - explicou o agente -, de quanto tempo


tivesse poupado e de quanto tivesse deixado depositado.

- Depositado? Como assim? - quis saber o sr. Fusi.

- Muito simples - explicou o homem cinzento. - Se durante cinco anos


o senhor não retirar seu tempo poupado, acrescentaremos a ele mais
uma vez a mesma quantia. Em outras palavras, sua fortuna dobrará a
cada cinco anos. Em dez anos, já valerá quatro vezes a quantia
original, em quinze anos, oito vezes, e assim por diante. Se há vinte
anos o senhor tivesse começado a poupar apenas duas horas por dia,
no aniversário dos seus sessenta e dois anos teria à sua disposição
duzentas e cinquenta e seis vezes a soma que teria poupado até
hoje.  Chegaria a vinte e seis bilhões novecentos e dez milhões
setecentos e vinte mil segundos.

Voltou a pegar o lápis cinzento e escreveu o número no espelho:


26.910.720.000 segundos

Pela primeira vez um ligeiro sorriso entreabriu os lábios do homem


cinzento.

- O senhor pode verificar que isso vem a ser dez vezes mais todo o
tempo de sua vida inteira. E pode ser conseguido simplesmente pela
economia de duas horas diárias. Diga-me se não acha que é uma
oferta interessante.

- Claro que é! - respondeu o barbeiro, esgotado. - Claro que é. Sou


um tolo por não ter começado a poupar tempo há muitos anos. Só
agora estou percebendo isso e confesso que fico desesperado.

- Não há motivo para isso - retrucou suavemente o homem cinzento.


- Nunca é tarde demais. Se quiser, poderemos começar hoje mesmo.
Vai ver como vale a pena.

- Claro que quero! - exclamou o sr. Fusi. - O que preciso fazer?


- Meu caro senhor - e o agente ergueu as sobrancelhas -, estou certo
de que sabe como poupar tempo! É só trabalhar mais depressa e
deixar de lado tudo o que não é essencial. Em vez de dedicar meia
hora a cada cliente, dedique apenas um quarto de hora. Poupe o
tempo que tem desperdiçado em conversas. Reduza para a metade a
hora que passa com sua mãe. Melhor ainda, mande-a para um asilo de
velhos, barato, onde tomarão conta dela, e estará poupando uma hora
inteira por dia. Largue esse periquito, que não serve para nada. Visite a
srta. Daria só a cada quinze dias, se fizer questão. Acabe com o quarto
de hora que passa rememorando os acontecimentos do dia. Acima de
tudo, desperdice menos tempo com o coral, a leitura de livros e os
seus supostos amigos. A propósito, aconselho que coloque na
barbearia um bom relógio, bem grande, para poder controlar o
trabalho do seu aprendiz.

- Está certo - disse o sr. Fusi -, posso até fazer tudo isso, mas, e o
tempo que eu economizo? O que faço com ele? Tenho de entregar para
guardar? A quem? Ou eu mesmo guardo em algum lugar? Como é que
funciona a coisa?

O agente tornou a mostrar aquele ligeiro sorriso.

- Não se preocupe com nada disso. Deixe tudo por nossa conta. Fique
descansado, pode ter certeza de que não deixaremos se perder um só
momento do seu tempo poupado.

- Ah, então está bem - respondeu o barbeiro, boquiaberto. - Confiarei


em vocês.

- Pode ter absoluta confiança, meu caro senhor - disse o agente,


levantando-se da cadeira. - Então agora posso cumprimentá-lo como
novo membro da Associação dos Poupadores de Tempo. Sr. Fusi, o
senhor agora é de fato um homem moderno e progressista. Meus
parabéns!

Dizendo isso, apanhou o chapéu e a pasta.

- Um minuto! - gritou o sr. Fusi. - Não precisamos fazer algum tipo cie
contrato? Eu não deveria assinar alguma coisa? Não recebo
documento nenhum?

O agente XYQ/384/b, já na porta, virou-se, lançando para o sr. Fusi


um olhar ligeiramente contrariado.
- Para quê? A poupança de tempo é diferente de qualquer outro tipo
de poupança.  É uma questão apenas de confiança, de ambas as
partes. Para nós, basta sua palavra. O senhor não pode voltar atrás, e
nós nos comprometemos a zelar pelas suas economias. O quanto o
senhor poupa é problema apenas seu. Nós não lhe impomos nenhuma
obrigação. Passe bem, sr. Fusi.

Com isso, o agente entrou no seu elegante carro cinzento e partiu


ruidosamente.

O sr. Fusi acompanhou-o com o olhar e enxugou a testa. Pouco a


pouco o frio foi passando, mas ele se sentia fraco e indisposto. A
fumaça cinza-azulada do charuto do agente ainda flutuava na sala, em
nuvens pesadas, e demorava para se dissipar.

O sr. Fusi só se sentiu uni pouco melhor quando a fumaça


desapareceu. Ao mesmo tempo foram também desbotando os
números no espelho. Depois que sumiram completamente, o visitante
cinzento também se apagou da lembrança do sr. Fusi - o visitante, mas
não o resultado da visita, que ele agora atribuía a si mesmo. A decisão
de, a partir de então, poupar tempo, para em algum momento do
futuro poder começar uma vida nova, encravou-se em sua alma como
um anzol.

Nisso chegou o primeiro cliente do dia. O sr. Fusi recebeu-o


secamente, fez o estritamente necessário e não conversou nada, de
modo que terminou em vinte minutos, em vez de levar a habitual meia
hora.

A partir de então, passou a tratar assim todos os clientes. Dessa


maneira, seu trabalho já não lhe dava qualquer prazer, mas isso
também tinha perdido a importância. Além do aprendiz, contratou
mais dois ajudantes e ficou de olho neles, fiscalizando para que não
perdessem um minuto. Cada movimento da mão era estabelecido
segundo um horário rigoroso, calculado até a fração de segundo. Na
barbearia do sr. Fusi foi pendurada uma placa com o recado: TEMPO
POUPADO É TEMPO DOBRADO

O sr. Fusi escreveu uma carta curta e seca para a srta. Daria, dizendo
que, infelizmente, não tinha mais tempo para visitá-la. Vendeu o
periquito para uma loja de animais. Colocou a mãe num asilo de
velhos bom e barato, onde passou a visitá-la uma vez por mês. Nas
outras coisas também seguiu todos os conselhos do homem cinzento,
convencido de que eram suas próprias ideias.

Ele foi ficando cada vez mais nervoso e preocupado, pois achava
estranho, apesar de todo o tempo que economizava, nunca lhe sobrar
tempo. O tempo desaparecia misteriosamente e nunca mais voltava.
Os dias foram ficando cada vez mais curtos, a princípio sem ele se dar
conta, depois ostensivamente. Sem o sr. Fusi perceber, mais uma
semana se passava, depois um mês, um ano, outro ano e mais outro.

Como não se lembrava da visita do homem cinzento, devia ter se


perguntado seriamente para onde estava indo todo o seu tempo.
Porém, essa pergunta lhe ocorreu tão poucas vezes quanto para todos
os outros poupadores de tempo. Era como se estivesse tomado por
uma obsessão cega. E, quando às vezes percebia que seus dias
estavam passando cada vez mais depressa, só fazia redobrar seus
esforços desesperados para poupar o tempo.

O que estava acontecendo com o sr. Fusi já acontecia também com


muita outra gente cia grande cidade. Cada dia era maior o número de
pessoas que estavam começando a fazer o que chamavam de "poupar
tempo". E quanto mais aumentava seu número, maior era também o
número das pessoas que as seguiam; mesmo aquelas que não
queriam acabavam sendo levadas a imitar as outras.

Todos os dias a televisão, o rádio, a imprensa anunciavam e


elogiavam os méritos  de novos expedientes para poupar tempo,
deixando as pessoas livres para viver uma "vida de verdade". As
fachadas e muros cobriam-se de cartazes que mostravam todas as
imagens possíveis da felicidade. Embaixo, em letras luminosas, lia-se:
OS POUPADORES DE TEMPO VIVEM CADA VEZ MELHOR!  O FUTURO
PERTENCE A QUEM POUPA TEMPO! ou APROVEITE MELHOR A VIDA -
POUPE TEMPO!

A realidade, entretanto, era muito diferente. De fato, os poupadores


de tempo vestiam-se melhor do que as pessoas que moravam por
perto do velho anfiteatro.

Ganhavam mais dinheiro e, assim, podiam gastar mais. Mas tinham


a fisionomia mal-humorada, cansada ou amargurada e o olhar hostil.
Naturalmente, não conheciam a expressão: "Ora, vá falar com Momo!"
Não tinham ninguém que os ouvisse de modo a torná-los lúcidos,
conciliadores ou até felizes. Mas, ainda que tivessem acesso a uma
pessoa assim, era pouco provável que a procurassem, a não ser que o
assunto pudesse ser resolvido em menos de cinco minutos - senão
achariam que era perda de tempo. Do ponto de vista dos poupadores,
mesmo suas horas de folga precisavam ser aproveitadas ao máximo,
fornecendo-lhes o mais depressa possível o máximo de diversão e
prazer.

Assim, já não podiam comemorar direito os feriados, nem os alegres


nem os sérios. Sonhar era quase um crime. Mas o que menos
toleravam era o silêncio.

Quando estava tudo quieto, ficavam apavorados, pois percebiam, na


verdade, o que estava acontecendo com suas vidas. Por isso, sempre
que sentiam a ameaça do silêncio, faziam barulho. Não era um barulho
alegre, como se ouve num recreio de crianças; era um barulho irritado,
agressivo, que se tornava cada dia mais alto na grande cidade.

Já não tinha importância alguém gostar de seu trabalho ou fazê-lo


com prazer.

Pelo contrário, isso acarretava, perda de tempo. A única coisa


importante era que cada um trabalhasse, o mais possível no menor
tempo possível.

Por isso, foram colocados letreiros nas fábricas e nos escritórios,


dizendo: O TEMPO E PRECIOSO - NÃO O PERCA! ou TEMPO É DINHEIRO
- ECONOMIZE!

Avisos semelhantes foram afixados nas paredes atrás das mesas dos
chefes, das cadeiras dos diretores, nos consultórios médicos, nas lojas,
nos restaurantes, até nas escolas e jardins de infância. Ninguém
escapou.

Por fim, a aparência da própria grande cidade foi mudando cada vez
mais. Os bairros antigos foram demolidos e construíram-se novas
casas, deixando-se cie lado tudo o que fosse considerado supérfluo. Já
não havia a preocupação cie que as casas fossem adequadas às
pessoas que morassem nelas, pois isso tornaria necessário
construir  muitas casas diferentes umas das outras. Era muito mais
barato e, sobretudo, mais rápido construir todas as casas iguais.

No lado norte da grande cidade já se espalhavam imensos bairros


residenciais novos. Prédios de apartamentos para alugar dispunham-se
em fileiras intermináveis, tão iguais quanto um ovo é igual ao outro. E,
como todas as casas se pareciam, também as ruas acabavam se
parecendo. Essas ruas todas iguais cresciam cada vez mais,
estendendo-se em linhas retas até o horizonte: um deserto ordenado!
A vida das pessoas que moravam lá transcorria exatamente da mesma
maneira, em linha reta até o horizonte. Tudo era calculado e planejado,
cada centímetro e cada instante.

Ninguém parecia notar que, ao poupar tempo, na verdade estava se


poupando de outra coisa. Ninguém queria admitir que sua vida estava
se tornando cada vez mais pobre, mais monótona, mais fria. Quem
mais sentia isso eram as crianças, pois ninguém mais tinha tempo
para elas.

Mas tempo é vida. E a vida reside no coração.

E quanto mais as pessoas poupavam tempo menos tempo elas


tinham.
Capítulo Sete
MOMO PROCURA SEUS AMIGOS E É ENCONTRADA POR UM
INIMIGO
 

- Não sei - disse Momo certo dia -, mas tenho a impressão de que
nossos velhos amigos têm vindo me visitar muito menos do que antes.
Há alguns que não vejo há um tempão.

Gigi Guia e Beppo Varredor estavam sentados perto dela nos


degraus de pedra cobertos de capim, olhando o pôr-do-sol.

- É - confirmou Gigi -, também tenho essa impressão. Cada vez


menos gente quer ouvir minhas histórias. Não é mais como antes.
Alguma coisa está acontecendo.

- Mas o quê? - indagou Momo.

Gigi sacudiu os ombros e apagou com cuspe algumas letras que


tinha escrito numa velha lousa Algumas semanas antes, Beppo
Varredor havia trazido para Momo aquela lousa, que encontrara no lixo.
Não era nova, é claro, e tinha uma rachadura bem no meio, mas ainda
dava muito bem para usá-la. Desde então, todos os dias Gigi ensinava
algumas letras para Momo. Como a menina tinha muito boa memória,
já conseguia ler direitinho. Mas escrever ela ainda não sabia muito
bem.

Beppo Varredor, que ficara pensando na pergunta de Momo,


balançou a cabeça e respondeu:

- É verdade. Está chegando mais perto. Na cidade já está por toda


parte. Já faz algum tempo que reparei.

- O quê? - perguntou Momo.

Beppo pensou um pouco antes de responder:

- Nada de bom.

Fez nova pausa antes de prosseguir:


- Está esfriando.

- Imagine! - exclamou Gigi, passando o braço em torno dos ombros


cie Momo, num gesto de consolo. - Seja como for, aqui vêm cada vez
mais crianças.

- É por isso - disse Beppo -, é justamente por isso.

- O que você está querendo dizer? - indagou Momo. Beppo demorou


muito para responder:

- Elas não vêm por nossa causa. Vêm apenas à procura de um


refúgio.

Os três olharam para o centro da arena, onde algumas crianças


estavam se divertindo com um novo jogo de bola que tinham
inventado aquela tarde.

Entre elas estavam alguns velhos amigos de Momo: Paulo, o menino


de óculos; Maria, com a irmãzinha Dedé; o garoto gordo de voz
estridente, chamado Mássimo; e o outro menino, Franco, sempre com
jeito desleixado. Mas, além dessas, havia várias crianças que só tinham
começado a aparecer nos últimos dias, entre as quais um menino
pequeno, que viera aquela tarde pela primeira vez. Parecia que Gigi
tinha razão: a cada dia vinham mais crianças.

Momo, na verdade, ficava muito feliz com a presença delas, mas a


maioria das crianças novas não sabia brincar. Elas ficavam ali
sentadas, amuadas e aborrecidas, vendo Momo e seus amigos. De vez
em quando interrompiam de propósito a brincadeira dos outros e
estragavam tudo. Era mais frequente saírem brigas e discussões. Mas
não duravam muito, pois a presença de Momo também influenciava as
crianças novas, que logo começavam a ter boas ideias e juntavam-se
às outras com entusiasmo. No entanto, quase todos os dias chegavam
mais crianças, algumas vindas de longe, até do outro lado da grande
cidade.

Então, estava sempre começando tudo de novo, pois, como se sabe,


basta um estraga-prazeres para pôr tudo a perder.

Havia mais uma coisa que Momo não conseguia entender. Já era
assim desde o início, e agora acontecia cada vez com maior
frequência. As crianças traziam todo tipo de brinquedos, com os quais
não dava para brincar de verdade. Era o caso, por exemplo, de um
tanque com controle remoto, que andava sozinho, mas não fazia mais
nada além disso. Ou de um foguete espacial, que voava em círculos
em torno de um suporte, mas não servia para nada mais. Ou de um
robô de olhos iluminados, que andava se balançando e girando a
cabeça, mas que fora isso era inútil.

Eram brinquedos muito caros, naturalmente. Os amigos de Momo


nunca haviam possuído iguais, e muito menos ela. Acima de tudo,
aqueles brinquedos eram perfeitos nos mínimos detalhes, de modo
que não sobrava nada para se imaginar.

Muitas vezes as crianças ficavam horas olhando para uma coisa


daquelas, que rodopiava, balançava ou andava em círculos. Elas
ficavam fascinadas, mas ao mesmo tempo entediadas, pois não
sabiam o que fazer com aquilo. Acabavam voltando às brincadeiras
antigas, para as quais bastavam algumas caixas vazias, uma velha
toalha de mesa, um montinho feito por alguma toupeira ou um
punhado de pedrinhas. Era o suficiente para imaginar o que quer que
fosse.

Naquela tarde, parecia que alguma coisa estava atrapalhando o jogo.


Uma a uma, as crianças foram desistindo, até que afinal todas estavam
sentadas em torno de Momo, Beppó e Gigi. Queriam ouvir uma história
de Gigi, mas não era possível, porque o garotinho que estava ali pela
primeira vez tinha levado um rádio.

Sentado meio afastado dos outros, ele ouvia propagandas, com o


rádio a todo volume.

- Não dá para abaixar um pouco o volume dessa coisa boba? -


perguntou Franco, o menino de aspecto relaxado, em tom agressivo.

- Não estou ouvindo - respondeu o garoto, com um sorriso. - Meu


rádio está muito alto. .

- Abaixe isso já! - gritou Franco, levantando-se.

O garoto empalideceu ligeiramente, mas respondeu, teimando:

- Nem você nem ninguém manda em mim. Vou deixar meu rádio no
volume que eu quiser.
- Ele tem razão - disse o velho Beppo - Não podemos proibi-lo de
nada. No máximo podemos pedir.

Franco tornou a sentar, mal-humorado:

- Então ele devia ir para algum outro lugar. A tarde inteira ele
atrapalhou tudo.

- Ele deve ter suas razões - disse Beppo, olhando para o garoto com
simpatia e compreensão, através de seus pequenos óculos. - Com
certeza tem.

O garoto não disse nada, mas dali a pouco abaixou o volume do


rádio, olhando para o outro lado.

Momo foi sentar-se ao lado dele. O garoto desligou o rádio e, durante


alguns momentos, ficou em silêncio.

- Conte uma história, Gigi - pediu uma das crianças novas no grupo.

- É, conte, por favor! - gritaram as outras - Conte uma história


engraçada!

Não, de terror! Não, um conto de fadas! Não, uma história de


aventuras!

Mas Gigi não queria. Era a primeira vez na sua vida que isso
acontecia.

- Prefiro que vocês me contem alguma coisa - disse ele, finalmente. -


Alguma coisa sobre vocês e suas casas, o que vocês fazem o dia todo e
por que estão aqui.

As crianças ficaram quietas De repente suas fisionomias se


entristeceram e se fecharam.

- Nós agora temos um carro muito bonito - disse, por fim, uma delas.
- Aos sábados, quando papai e mamãe têm tempo, eles lavam o carro
Quando me comporto bem, tenho autorização para ajudar. Quando
crescer vou ter um igual.

- Agora eu posso ir ao cinema quando me dá vontade disse uma


menininha. - Assim eu fico num lugar seguro, porque eles infelizmente
não têm tempo para mim.
Ela fez uma pausa e acrescentou- - Mas eu não gosto de ficar num
lugar seguro, então venho aqui, escondida, e economizo o dinheiro do
cinema. Quando eu tiver juntado bastante dinheiro, vou comprar uma
passagem para ir ver os sete anões.

- Não seja boba! - gritou outra criança. - Isso não existe!

- Existe, sim - insistiu a menina - Eu até vi um deles num folheto de


viagens.

- Eu já tenho onze discos de contos de fadas - disse um menininho. -


E posso tocar toda hora. Antes, meu pai sempre me contava histórias
quando voltava do trabalho, e era muito bom. Mas agora ele nunca
está em casa, ou então está muito cansado e não tem vontade de
contar histórias.

- E sua mãe? - perguntou Momo.

- Agora ela também está fora de casa o dia inteiro.

- É - disse Maria -, na minha casa é a mesma coisa, mas por sorte eu


tenho a Dedé.

Beijou a irmãzinha, que estava sentada no seu colo, e continuou:

- Quando chego da escola, esquento a comida, depois faço minha


lição e depois... - ela sacudiu os ombros – depois nós ficamos andando
por aí, até escurecer. Agora a gente quase sempre vem para cá.

As crianças balançavam a cabeça, confirmando, pois com todas


acontecia mais ou menos a mesma coisa.

- Acho ótimo meus pais não terem mais tempo para mim- disse
Franco, embora não parecesse nada contente. - Senão eles começam a
brigar e eu acabo apanhando.

De repente o menino do rádio virou-se para eles e disse:

- Agora estou ganhando uma mesada muito maior do que antes.

- Claro - atalhou Franco. - Eles fazem isso para ficarem livres de nós.
Eles não gostam mais de nós, mas também não gostam mais deles
mesmos, Não gostam mais de nada. É isso que eu acho.
- É mentira! - gritou zangado o garoto do rádio. - Meus pais gostam
muito de mim. Eles não têm culpa de não terem tempo. As coisas são
assim. Em compensação me deram este rádio, que custa muito caro.
Isso é uma prova, não é?

Ninguém respondeu. De repente, o menino que tinha passado a


tarde toda estragando tudo começou a chorar. Tentou segurar o choro,
esfregou os olhos com suas mãos sujas, porém as lágrimas escorriam,
deixando riscos mais claros nas bochechas encardidas.

As outras crianças olhavam com simpatia ou abaixavam os olhos.


Agora estavam entendendo o garoto. Na verdade, todas sentiam o
mesmo. Todas sentiam que haviam sido abandonadas.

- É - falou o velho Beppo, após uma longa pausa -, está ficando frio.

- Acho que daqui a pouco não vou mais poder vir aqui disse Paulo, o
menino de óculos.

- Por que não? - indagou Momo, surpresa.

- Meus pais disseram que vocês todos são vagabundos e


imprestáveis - explicou Paulo. - Disseram que vocês estão roubando o
tempo que é de Deus, e é por isso que vocês têm tanto tempo. Que
existe muita gente como vocês e, por isso, os outros têm cada vez
menos tempo. Eles não querem mais que eu venha aqui, para não ficar
igualzinho a vocês.

Algumas crianças mais uma vez balançaram a cabeça, confirmando


que já tinham ouvido a mesma coisa. Gigi encarou-as, uma a uma.

- Vocês também acham isso de nós? Então por que continuam vindo
aqui, apesar de tudo?

Depois de um breve silêncio, Franco disse:

- Eu não ligo. De qualquer jeito, meu pai sempre diz que quando eu
crescer vou ser ladrão. Estou do lado de vocês.

- Ah, é? - perguntou Gigi, erguendo as sobrancelhas. - E você


também acha que somos ladrões?

As crianças olhavam para o chão, encabuladas. Por fim, Paulo


encarou o velho Beppo.
- Meus pais não mentem - disse ele, baixinho. E, mais baixinho ainda,
perguntou:

- Então vocês não são?

Ouvindo isso, o velho varredor cie ruas ergueu-se ao máximo cie sua
altura, que não era muita, levantou solenemente a mão e declarou:

- Nunca na minha vida, nunca mesmo, nunca roubei o menor


tiquinho de tempo nem de Deus nem dos homens. Isso eu juro, e Deus
é testemunha!

- Eu também não - disse Momo.

- Eu também não - repetiu Gigi, muito sério.

As crianças se calaram, impressionadas. Nenhuma delas duvidava da


palavra dos três amigos.

- E, já que estamos falando no assunto, quero dizer mais uma coisa -


continuou Gigi. - As pessoas costumavam vir procurar Momo para que
ela as ouvisse. Assim, encontravam a si mesmas, se é que vocês me
entendem. Mas agora já não querem saber disso. As pessoas também
gostavam de vir escutar minhas histórias, que as faziam se esquecer
de si mesmas. Também não me procuram mais. Todos dizem que não
têm mais tempo para isso. E também não têm mais tempo para vocês.
Dá para perceber? É impressionante notar para que eles não têm mais
tempo.

Gigi apertou os olhos e fez um gesto com a mão.

- Um dia destes encontrei na cidade um velho amigo, um barbeiro


chamado Fusi.

Fazia algum tempo que eu não o via, e quase não o reconheci, pois
estava muito mudado: nervoso, irritado, infeliz. Antigamente ele era
um sujeito simpático, que cantava muito bem e, sobretudo, tinha
opiniões muito interessantes Agora, de repente, não tem mais tempo
para nada. Deixou de ser o sr. Fusi, barbeiro, e virou um fantasma de si
mesmo, vocês me entendem? Se ele fosse o único, eu diria que ficou
meio louco, mas para onde olhamos damos com pessoas assim. E cada
dia aparecem mais e mais. Agora até alguns dos nossos velhos amigos
estão começando a ficar desse jeito! Às vezes me pergunto se existem
loucuras que são contagiosas.

O velho Beppo concordou:

- Tem razão, eleve ser algum tipo de contágio

- Se é assim, precisamos socorrer nossos amigos! - disse Momo,


apavorada.

Naquela noite ainda passaram muito tempo juntos, conversando


sobre o que poderiam fazer. Mas não sabiam da existência dos homens
cinzentos e de sua atividade inesgotável.

No decorrer dos dias seguintes, Momo foi procurar os velhos amigos,


para perguntar o que tinha acontecido e por que não iam mais visitá-
la.

Primeiro foi procurar Nicola, o pedreiro. Ela conhecia a casa onde ele
morava, num quartinho do sótão. Mas Nicola não estava. Os outros
moradores da casa só sabiam que ele estava trabalhando no novo
bairro residencial, do outro lado da cidade, e que estava ganhando
muito dinheiro. Voltava para casa muito raramente e, quando voltava,
era sempre muito tarde. Também estava sempre meio bêbado, e era
difícil conviver com ele.

Momo resolveu esperar por Nicola e sentou-se na escada, diante da


porta do quarto dele. Aos poucos foi escurecendo e ela adormeceu.
Devia ser tarde da noite quando a menina acordou com o barulho de
passos cambaleantes e uma voz rouca que cantava. Era Nicola, que
vinha tropeçando pela escada . Ao ver a menina, parou, espantado.

- Oi, Momo! - resmungou, evidentemente embaraçado por ser visto


pela menina naquele estado. - Então você ainda existe? O que está
procurando aqui?

- Você - respondeu Momo, timidamente.

- Ora, você tem cada uma! - disse Nicola, balançando a cabeça, com
um sorriso. -

Imagine só, vir aqui no meio da noite para visitar seu velho amigo
Nicola! Sabe que há muito tempo estou querendo visitá-la, mas hoje
em dia não tenho mais tempo para assuntos... particulares.

Fez um gesto vago e sentou-se pesadamente na escada, ao lado de


Momo.

- Você nem imagina o que virou minha vida, menina! As coisas não
são mais como antes. Os tempos mudaram. Lá onde estou trabalhando
agora, o ritmo é outro. É um inferno. Cada dia construímos um andar
inteiro, e é um atrás cio outro. É muito diferente de antigamente. Eles
já têm tudo planejado, cada gesto, entende? Tudo está previsto até nos
menores detalhes...

Ele continuou falando, e Momo ouvia com atenção. À medida que ela
ia ouvindo, a voz de Nicola ia perdendo o entusiasmo. De repente ele
parou e passou a mão cheia de calos pela testa.

- Tudo isso é um monte de bobagem - disse ele, com tristeza. - Sabe,


Momo, mais uma vez, eu bebi um pouco demais. Reconheço.
Ultimamente, muitas vezes passo da conta. É o único jeito de aguentar
o que estamos fazendo lá. Quero dizer, vai contra a consciência de um
pedreiro honesto. Por exemplo, muita areia no cimento, entende? Vai
durar uns quatro ou cinco anos e, então, bastará alguém dar uma
tossida para tudo desmoronar. Serviço ordinário, enganação! E isso
ainda não é o pior. Pior é o tipo de casa que estamos construindo. Não
são casas, são... são depósitos de almas! É de virar o estômago! Mas,
afinal, o que eu tenho a ver com isso? Estou ganhando meu dinheiro, e
pronto! Pois é, os tempos mudaram. Antigamente era diferente, eu
tinha orgulho do meu trabalho, quando construíamos coisas decentes.
Mas agora... Algum dia, depois que eu tiver ganho o suficiente, vou
largar essa profissão e fazer alguma outra coisa.

Ele deixou a cabeça pender para o lado e ficou olhando o vazio.


Momo não dizia nada, apenas o ouvia.

Dali a pouco Nicola continuou, baixinho:

- Talvez eu devesse, mesmo, voltar a visitá-la e lhe contar tudo. Que


tal amanhã? Ou então depois de amanhã? Preciso ver quando é que
vai dar. Mas vou sem falta. Então, está combinado?

- Combinado - respondeu Momo, alegre.


E os dois se despediram, pois estavam muito cansados. Porém Nicola
não apareceu no dia seguinte, nem no outro dia. Não apareceu mais.
Talvez estivesse, mesmo, sem tempo.

Depois Momo foi procurar Nino, o dono do bar, e sua mulher


gorducha. A casinha velha, com as paredes manchadas pela chuva e
uma videira na porta, ficava nos limites da cidade. Como fazia
antigamente, Momo deu a volta para entrar pela porta da cozinha. A
porta estava aberta e muito antes de chegar Momo já ouviu que Nino e
Liliana estavam tendo um violento bate-boca. Liliana batia as panelas
no fogão, seu rosto gorducho reluzia de suor. Nino gritava com ela e
gesticulava. Sentado no berço, a um canto, o bebê berrava.

Momo esgueirou-se silenciosamente até o bebê, pegou-o no colo e o


acalentou, até ele parar de gritar. Marido e mulher interromperam o
bate-boca e olharam para o filho.

- Ah, Momo, é você? - disse Nino, com um breve sorriso. - Que prazer
vê-la de novo.

- Quer comer alguma coisa? - perguntou Liliana, meio brusca.

Momo balançou negativamente a cabeça.

- Então o que você quer? - indagou Nino, irritado. - Agora não temos
tempo para atendê-la.

- Só vim perguntar por que faz tanto tempo que vocês não vão me
visitar - disse ela, baixinho.

- Ora, eu também não sei - respondeu Nino, ainda mais irritado. -


Agora temos outras coisas para nos preocupar, sabe?

- É isso - gritou Liliana, sempre batendo as panelas -, ele tem mesmo


outras coisas para se preocupar... como por exemplo despachar os
antigos fregueses, tão queridos... agora ele só pensa nisso! Lembra-se,
Momo, daqueles velhos que costumavam se sentar à mesa do canto?
Pois Nino mandou-os embora, expulsou-os!

- Não foi bem assim - protestou Nino. - Só pedi, com toda a gentileza,
que eles procurassem outro bar. Como dono, tenho o direito de fazer
isso.
- Ora, direito, direito! - exclamou Liliana, exasperada. Uma coisa
dessas simplesmente não se faz. É desumano e injusto. Você sabe
muito bem que eles não vão encontrar outro bar. E aqui não
incomodavam ninguém.

- Claro que não incomodavam ninguém! - gritou Nino. Porque os


fregueses decentes, pagantes, nunca vinham aqui quando aqueles
velhos barbudos estavam amontoados lá no canto. Você acha que as
pessoas gostam disso? E eles só podiam consumir um copo de vinho
barato por noite, o que não dava lucro nenhum. Desse jeito nunca
íamos conseguir nada.

- Até agora nós nos arranjamos muito bem - retrucou Liliana.

- Até agora, sim! - continuou Nino, com veemência. - Mas você sabe
perfeitamente que não vai continuar sendo sempre assim. O aluguel
aumentou. Tenho que pagar um terço a mais do que antes. Os preços
de tudo estão subindo. Onde é que eu vou arranjar dinheiro, se
transformar meu bar num asilo de velhos miseráveis? Por que é que eu
sou obrigado a cuidar dos outros? De mim ninguém cuida!

A gorda Liliana bateu uma frigideira no fogão com tanta força que
ela até rachou.

- Vou lhe dizer uma coisa - ela gritou, com as mãos na cintura -, entre
esses velhos miseráveis, como você diz, está meu tio Ettore, e não vou
admitir que você ofenda minha família. Meu tio é um homem bom e
honesto, mesmo não tendo tanto dinheiro quanto esses seus fregueses
pagantes!

- Mas o Ettore pode continuar vindo - respondeu Nino, com um gesto


magnânimo -

Eu já disse que ele pode vir se quiser, mas ele não quer

- Claro que não quer, sem seus velhos amigos! O que você está
pensando? Acha que ele vai ficar ali sozinho, encolhido no canto?

- Então não posso fazer mais nada! - berrou Nino. - O fato é que não
quero passar o resto da minha vida como dono de uma espelunca, só
para satisfazer ao seu tio Ettore. Também quero melhorar de vida! Por
acaso isso é crime? Quero arrumar este estabelecimento, quero que
seja um lugar concorrido. E não é só por mim, também é por você e
por nossa filha. Será que você não entende, Liliana?

- Não, não entendo - retrucou Liliana, com firmeza. - Se for para não
ter coração, se já está começando assim, então não conte comigo. Um
belo dia eu me canso e vou embora. Você é quem sabe!

Ela foi até Momo, pegou a criança, que tinha voltado a chorar, e
correu para fora da cozinha.

Durante algum tempo Nino não disse nada. Acendeu um cigarro e


começou a enrolá-lo nos dedos.

Momo olhava para ele.

- É - disse Nino, finalmente - Sei que eles eram bons sujeitos. Até
gostava deles. Sabe, Momo, eu sinto muito, mesmo .. mas o que
posso? Os tempos mudaram.

Após outro silêncio, ele tornou a falar:

- Afinal, talvez Liliana tenha razão. Desde que aqueles velhos


deixaram de aparecer, o bar me parece estranho, meio frio, entende?
Eu mesmo já não me sinto bem. Sinceramente, não sei o que fazer.
Mas hoje em dia todos agem assim. Por que eu haveria de ser o único a
agir diferente? Ou você acha que eu deveria?

Com um movimento quase imperceptível, Momo balançou a cabeça


afirmativamente.

Nino olhou para ela e também meneou a cabeça. Depois, os dois


sorriram.

- Foi bom você ter vindo - disse Nino. - Eu tinha esquecido


completamente que antes, numa ocasião como esta, nós
costumávamos dizer: "Ora, vá falar com Momo!" Mas agora vou voltar
a visitar você e vou levar Liliana. Depois de amanhã é nosso dia de
folga e vamos até lá Combinado?

- Combinado - respondeu Momo.

Então Nino deu-lhe um saco cheio de laranjas e maçãs, e Momo


voltou para casa.
No dia combinado Nino e sua mulher foram, de fato, visitar Momo,
levando o bebê e uma cesta cheia de coisas gostosas.

- Imagine só, Momo - disse Liliana, radiante -, Nino foi procurar tio
Ettore e os outros velhos, um por um. Desculpou-se e pediu que
voltassem.

- É - continuou Nino, com um sorriso, cocando a orelha. - Todos


voltaram. Com isso, as mudanças no meu bar não vão dar em nada.
Mas estou gostando dele de novo.

Ele riu, e sua mulher disse:

- Vamos conseguir tocar nossa vida, Nino.

Foi uma tarde maravilhosa. Finalmente, eles foram embora,


prometendo voltar em breve.

Assim, Momo foi procurar todos os seus velhos amigos, um por um.
Procurou o carpinteiro que tinha feito a mesinha e as cadeiras para ela.
Procurou as  mulheres que lhe deram a cama. Enfim, procurou todos
aqueles a quem tinha ouvido e que, graças a ela, tinham se tornado
mais sensatos, mais confiantes ou mais felizes. Todos eles prometeram
voltar de novo. Alguns não cumpriram a promessa, ou não puderam
cumprir porque não tinham tempo. Entretanto, muitos voltaram, e
tudo ficou sendo quase como era antes.

Sem querer, Momo tinha atrapalhado os planos dos homens


cinzentos, e isso eles não podiam tolerar.

Pouco tempo depois, numa manhã muito quente, Momo encontrou


uma boneca nos degraus de pedra do antigo anfiteatro.

Muitas vezes já tinha acontecido as crianças esquecerem ou


simplesmente largarem ali um daqueles brinquedos caros com os
quais não dava para brincar direito. Mas Momo não se lembrava de ter
visto alguma criança com aquela boneca; e certamente teria reparado,
pois era uma boneca meio fora do comum. Era quase do tamanho da
própria Momo e tão bem-feita que quase poderia ser confundida com
um pequeno ser humano. Mas não parecia uma criança ou um bebê,
era como uma moça elegante ou um manequim de vitrine. Usava um
vestido curto, vermelho, e sapatos de salto alto.
Momo ficou olhando para ela, fascinada. Depois estendeu a mão e
pegou a boneca, que, imediatamente, piscou os olhos, moveu os lábios
e disse com uma voz meio fanhosa, como voz de telefone:

- Bom dia. Eu sou Bibigirl, a boneca perfeita.

Momo recuou, assustada, porém respondeu automaticamente:

- Bom dia. Meu nome é Momo.

A boneca moveu novamente os lábios, dizendo:

- Eu sou sua. Todo o mundo tem inveja de mim e de você.

- Acho que você não é minha, não - retrucou Momo. Acho que
alguém esqueceu você aqui.

A menina levantou a boneca, que voltou a mover os lábios e disse:

- Eu gostaria de ter mais coisas.

- Ah, é? - respondeu Momo, e refletiu um momento. Não sei se tenho


alguma coisa que sirva para você. Mas espere um instante. Vou lhe
mostrar minhas coisas e você poderá dizer se gosta de alguma delas.

Carregando a boneca, passou pelo buraco no muro que dava para o


seu quarto. De baixo da cama, puxou uma caixa cheia cie tesouros e
abriu-a diante da Bibigirl.

- Aqui está, isso é tudo o que eu tenho. Se você gostar de alguma


coisa, é só dizer.

E ela mostrou para a boneca uma pena de pássaro multicolorida,


uma pedrinha com bonitos veios, um botão dourado, um pedacinho de
vidro colorido. Como a boneca não respondeu, Momo a cutucou.

- Bom dia - grasnou a boneca. - Eu sou Bibigirl, a boneca perfeita.

- Já sei - respondeu Momo. - Mas, Bibigirl, você disse que queria


escolher uma coisa. Olhe, eu tenho uma linda concha cor-de-rosa. Você
gosta?

- Eu sou sua. Todo o mundo tem inveja de mim e de você.


- Eu sei, você já disse - falou Momo. - Se você não gosta de nenhuma
das minhas coisas, nós podemos brincar. Vamos?

- Eu gostaria de ter mais coisas - repetiu a boneca.

- Não tenho nada mais - respondeu Momo.

A menina carregou novamente a boneca e escalou a abertura no


muro. Lá fora, colocou Bibigirl no chão e sentou-se na frente dela.

- Vamos brincar. Faz de conta que você veio me visitar - sugeriu


Momo.

- Bom dia. Eu sou Bibigirl, a boneca perfeita.

- Que prazer em receber sua visita. De onde a senhora veio,


madame? - falou Momo.

- Eu sou sua. Todo o mundo tem inveja de mim e de você.

- Tudo bem, mas escute: se você continuar repetindo as mesmas


coisas, não vamos poder brincar.

- Eu gostaria de ter mais coisas - continuou a boneca, piscando os


olhos.

Momo tentou outra brincadeira. Vendo que também não dava certo,
experimentou outra e mais outra e mais outra. Mas nada dava certo.
Se pelo menos a boneca não falasse nada, Momo poderia responder
por ela, e a conversa seria ótima. Porém, pelo próprio fato de falar,
Bibigirl impedia qualquer conversa.

Dali a pouco Momo começou a ter uma sensação que nunca tivera
antes. Como era novidade, levou algum tempo para ela perceber que
se tratava de tédio.

Momo estava se sentindo perdida. Tinha vontade de simplesmente


deixar a boneca perfeita de lado e ir brincar com outra coisa. Mas, por
alguma razão, não conseguia se afastar dela.

Então Momo ficou ali sentada, fitando a boneca, que a olhava


fixamente com seus olhos de vidro azul. Era como se uma tivesse
hipnotizado a outra.
Por fim, Momo conseguiu desviar seu olhar da boneca e ficou meio
assustada. Bem perto dali, estava um elegante automóvel cinzento,
que chegara sem ela perceber.

Dentro do carro estava sentado um homem, de terno cinza-teia de


aranha e chapéu-coco cinzento. Estava fumando um pequeno charuto
cinzento. Seu rosto também parecia cinza cinzenta.

O homem já devia estar observando Momo havia algum tempo, pois


cumprimentou-a  inclinando a cabeça, sorridente. E, embora o dia
estivesse tão quente que o ar parecia tremular, de repente Momo
começou a tremer de frio.

O homem abriu a porta do carro, desceu e foi ao encontro da


menina, carregando uma pasta cinza-chumbo.

- Que linda boneca você tem! - disse ele, com uma voz estranha e
sem entonação.

- Com certeza todos os seus companheiros têm inveja de você.

Momo sacudiu os ombros sem responder.

- Deve ter custado caro, não é? - continuou o homem cinzento.

- Não sei - murmurou Momo, meio sem jeito. - Eu a achei aqui.

- Não me diga! - exclamou o homem. - Então parece que você foi


mesmo favorecida pela sorte!

Momo não disse nada, enrolou-se mais em seu paletó imenso, pois o
frio aumentava.

Com um sorriso apertado, o homem continuou:

- Mas você não me dá a impressão de estar muito feliz, menina.

Momo sacudiu a cabeça. De repente era como se toda a felicidade


tivesse desaparecido do mundo para sempre, ou melhor, como se
nunca tivesse existido. E  como se tudo aquilo que ela julgava ser
felicidade fosse apenas fruto da imaginação. Ao mesmo tempo, sentia
como que um sinal de alerta.
- Eu a estive observando durante algum tempo - continuou o homem
cinzento -, e parece-me que você não faz ideia de como brincar com
uma boneca tão maravilhosa. Quer que eu lhe mostre como se faz?

Momo olhou para o homem, espantada, e balançou a cabeça


afirmativamente.

- Eu gostaria de ter mais coisas - grasnou a boneca, de repente.

- Está ouvindo, menina? - prosseguiu o homem. - Ela mesma até lhe


ensina. É  claro que não se pode brincar com uma boneca tão
maravilhosa do mesmo jeito que se brinca com qualquer outra. Ela não
foi feita para isso. É preciso lhe oferecer sempre alguma coisa, para
brincar sem se aborrecer. Veja só, menina.

Ele abriu o porta-malas do carro:

- Primeiro, ela precisa de muitos vestidos. Aqui está, por exemplo,


um lindo vestido de noite.

O homem pegou o vestido e o jogou para Momo.

- E aqui um casaco de pele de marta autêntica. E aqui uma camisola


de seda. E aqui uma roupa de tênis. E um conjunto para esquiar. E um
maiô de banho. E uma roupa de montaria. E um pijama. E um penhoar.
E outro vestido. E outro. E outro. E mais outro... 

Ia jogando uma coisa atrás da outra, formando uma pilha cada


vez mais alta entre Momo e a boneca.

- Então - e ele tornou a esboçar aquele sorriso superficial -, com tudo


isso vai dar para você brincar durante algum tempo, não é? Mas,
depois de alguns dias, vai acabar ficando sem graça, você não acha?
Muito bem, nesse caso o que você tem a fazer é arranjar mais coisas
para a sua boneca.

Tornou a se debruçar sobre o porta-malas do carro e recomeçou a


jogar coisas para Momo.

- Aqui, por exemplo, está uma bolsinha de couro de cobra autêntico,


e dentro um batonzinho de verdade e um estojinho de pó-de-arroz.
Aqui uma maquininha fotográfica. Aqui uma raquete de tênis. Aqui
uma televisãozinha cie boneca que funciona de verdade. Aqui uma
pulseira, um colar, brincos, um revólver de boneca, meias de seda, um
chapeuzinho de plumas, um chapéu de palha, um conjunto para jogar
golfe, um talãozinho de cheques, um vidrinho de perfume, sais de
banho, loções para o corpo...

Ele fez uma pausa e lançou um olhar inquisidor para Momo, que
estava sentada no chão, no meio cie todos aqueles objetos, como que
paralisada.

- Está vendo? É muito simples. É só você ir arranjando sempre mais


coisas, e assim nunca ficará entediada. Mas talvez você pense que um
dia Bibigirl, a boneca perfeita, terá tudo, e então virá o tédio. Não,
menina, não se preocupe.  Veja só, temos um companheiro perfeito
para Bibigirl.

Dizendo isso, ele tirou um boneco do porta-malas. Era do mesmo


tamanho cie Bibigirl, perfeito como ela, e tinha a aparência de um
rapaz. O homem cinzento colocou-o ao lado de Bibigirl, a boneca
perfeita, e explicou:

- Este é Bubiboy. Também para ele existe uma quantidade enorme


cie coisas. E, quando tudo isso também ficar sem graça, temos uma
amiga para Bibigirl, com roupas que só servem para ela. E Bubiboy
também tem um amigo, e esse amigo tem outros amigos. Como você
vê, não haverá mais lugar para tédio, pois isso tudo poderá
continuar  indefinidamente e sempre restará alguma coisa para ser
desejada.

Enquanto falava, ele ia tirando uma boneca atrás da outra do porta-


malas, parecia inesgotável, colocando-as em torno de Momo. A menina
continuava sentada, sem se mexer, olhando para ele com uma
expressão quase de pavor.

- Então? - indagou o homem, soltando baforadas do charuto. -


Entendeu agora como é que se brinca com essas bonecas?

- Entendi - retrucou Momo, que estava tremendo de frio.

O homem cinzento acenou, satisfeito, e soltou outra baforada.

- Naturalmente, você gostaria de ficar com todas essas coisas lindas,


não é?
Pois bem, vou lhe dar isso tudo de presente! Não tudo de uma vez, é
claro, mas aos poucos... e vou lhe dar muito, muito mais ainda. Você
não precisa fazer nada em troca. A única coisa é brincar do jeito que
eu ensinei. Que tal?

O homem cinzento sorria para Momo, esperando a resposta. A


menina continuava em silêncio, encarando-o muito séria. Então ele
acrescentou, depressa:

- Agora você não precisa mais dos seus amigos, entende? Já que
todas essas coisas lindas são suas, e você ainda vai ganhar mais, vai
ter muito com o que se divertir, não é? E é isso que você quer, não é?
Você quer mesmo essa boneca maravilhosa, não é verdade?

Momo sentia vagamente que tinha uma luta pela frente, ou melhor,
que já estava em pleno campo de batalha. Mas não sabia por que e
contra quem se travava essa batalha. Quanto mais ouvia o visitante,
mais ia tendo a mesma sensação que tivera antes, com a boneca:
ouvia uma voz, ouvia as palavras, mas não ouvia a pessoa que estava
falando. Sacudiu a cabeça, recusando.

- O quê? - disse o homem cinzento, erguendo as sobrancelhas. -


Ainda não está satisfeita? Vocês, crianças de hoje. são mesmo
difíceis... Quer fazer o favor de me dizer o que ainda está faltando
nesta boneca perfeita?

Momo olhou para o chão, refletindo. Depois disse baixinho:

- Acho que não dá para ter amor por ela.

O homem ficou algum tempo sem responder. Fitava o espaço como


se seus olhos fossem de vidro, como os da boneca. Por fim, ele se
recompôs.

- Isso não tem importância - disse, num tom gelado.

Momo encarou-o de frente. O homem a assustava, principalmente


por causa do frio que brotava de seus olhos. Entretanto, também
sentia pena dele, embora não soubesse explicar por que.

- Mas eu tenho amor pelos meus amigos - ela retrucou.


O homem cinzento contraiu o rosto, como se tivesse um acesso de
dor de dente.

Mas logo se controlou e deu um sorriso mordaz.

- Menina - disse ele, com voz mansa -, acho que precisamos ter uma
conversa séria, para você aprender como são as coisas.

Tirou do bolso um caderninho cinzento e foi virando as páginas, até


encontrar o que procurava.

- Seu nome é Momo, não é?

Momo confirmou, balançando a cabeça.

O homem fechou o caderninho com um estalo, voltou a guardá-lo e


foi se abaixando, com certa dificuldade, até se .sentar no chão, ao lado
cie Momo.

Ficou algum tempo sem dizer nada, só soltando baforadas do


charuto, com ar pensativo.

- Vamos lá, ouça com atenção - começou ele, finalmente. Era isso
que Momo estava tentando fazer, o tempo todo.

Mas aquele homem era muito mais difícil de ouvir do que as pessoas
que ela ouvira até então. Em geral, ela tinha a impressão de conseguir
penetrar e compreender o que as pessoas pensavam e como
realmente eram. Mas com aquele visitante simplesmente não clava.
Sempre que tentava, Momo tinha a impressão de entrar no escuro e no
vazio, como se dentro dele não houvesse ninguém. Aquilo nunca
acontecera com ela.

- A única coisa que importa na vida é o sucesso - continuou o homem


-, é ser alguém, é ter posses. Para quem tem sucesso, para quem
consegue ser e ter mais do que os outros, o resto vem
automaticamente: amizade, amor, honra e assim por diante. Ora, você
me diz que tem amor pelos seus amigos. Vamos examinar as coisas
objetivamente.

O homem cinzento soprou no ar algumas argolas de fumaça. Momo


enfiou os pés por baixo da saia, agasalhando-se o melhor possível
dentro do paletó.
- A primeira questão que surge - ele continuou - é a seguinte: o que
seus amigos ganham, na verdade, pelo fato de você gostar deles? Você
é útil a eles? Não.

Você os ajuda a ter sucesso, a ganhar mais dinheiro ou a subir na


vida? Claro que não. Você os auxilia em seus esforços para poupar
tempo? Pelo contrário.

Você os prejudica em tudo, você é como uma pedra amarrada nos


pés deles, você impede sua prosperidade! Talvez até agora não tenha
percebido isso, Momo, mas você prejudica seus amigos pelo simples
fato de existir. Na verdade, sem querer é inimiga deles. É isso que você
chama ter amor por alguém?

Momo não sabia o que responder. Nunca tinha enxergado as coisas


sob aquele aspecto. Teve até um momento de incerteza: talvez o
homem cinzento tivesse razão.

- Por isso - continuou o homem cinzento - precisamos proteger seus


amigos contra você. E, se gostar realmente deles, você vai nos ajudar.
Queremos que eles tenham sucesso. Somos os verdadeiros amigos
deles. Não podemos ficar quietos, olhando, enquanto você os afasta de
tudo aquilo que importa. Queremos cuidar para que você os deixe
sossegados. Por isso estamos lhe dando de presente todas essas coisas
lindas.

- Quem é nós? - perguntou Momo, com os lábios trêmulos.

- Nós, da Caixa Econômica de Tempo. Sou o agente BLW/553/c.


Pessoalmente, só quero o seu bem, pois a Caixa Econômica de Tempo
não brinca em serviço.

Nesse momento, Momo lembrou-se do que Beppo e Gigi tinham dito


sobre economia de tempo e contágio. De repente percebeu,
apavorada, que aquele homem cinzento tinha alguma coisa a ver com
isso. Desejou ardentemente que seus dois amigos estivessem ali, a seu
lado. Nunca se sentira tão sozinha. Apesar disso, resolveu não se
deixar amedrontar. Juntou toda a sua força e a sua coragem e
mergulhou de cabeça na escuridão e no vazio por trás dos quais o
homem cinzento se escondia.

O homem observava Momo com o rabo dos olhos. Não lhe passou
despercebida a mudança de expressão da menina. Sorriu
ironicamente, acendendo um novo charuto no toco do outro.

- Não se dê ao trabalho - disse ele -, você não vai conseguir resistir


contra nós.

Momo não recuou.

- Então ninguém gosta de você? - ela sussurrou.

O homem cinzento se encolheu e, de repente, pareceu retrair-se em


si mesmo. Com uma voz cinzenta, ele respondeu:

- Devo dizer que nunca encontrei ninguém como você, nunca


mesmo. E olhe que eu conheço muita gente. Se houvesse mais
pessoas da sua espécie, logo seríamos obrigados a fechar a Caixa
Econômica de Tempo e a nos dissolver no vazio, pois do que iríamos
viver?

O agente se interrompeu. Fitava Momo e parecia estar lutando


contra alguma coisa que não podia entender e com a qual não sabia
lidar. Seu rosto tornou-se ainda mais cinzento.

Quando recomeçou a falar, foi como se o fizesse contra a sua


vontade, como se as palavras saíssem sozinhas, sem que ele tivesse
força para impedir. Seu rosto se contorcia, cada vez mais, de horror por
aquilo que lhe estava acontecendo.

Então, finalmente, Momo pôde ouvir sua voz verdadeira.

- Precisamos continuar incógnitos - ela ouviu, como se a voz viesse


de muito longe. - Ninguém pode saber que existimos, ninguém pode
descobrir o que estamos fazendo... Tomamos o cuidado de fazer com
que ninguém nunca se lembre de nós... pois só poderemos prosseguir
nosso negócio enquanto permanecermos desconhecidos.

É um negócio difícil esse de extrair horas, minutos e segundos do


tempo da vida das pessoas... pois todo o tempo que poupam está
perdido para elas. Nós usurpamos esse tempo... o armazenamos...
precisamos dele... temos fome dele.

Vocês não sabem o que é seu tempo! Mas nós sabemos e sugamos
vocês até os ossos... e precisamos de mais... cada vez mais... porque
somos cada vez mais numerosos... cada vez mais... e mais...
O homem cinzento soltou essas últimas palavras quase como um
estertor. Mas depois segurou a própria boca com as duas mãos. Seus
olhos saltavam das órbitas, fixos em Momo.

Após um momento, pareceu emergir de uma espécie de transe.

- O que... aconteceu? - ele gaguejou. - Você ficou me escutando!


Estou doente! Você me fez ficar doente! Você!

Depois mudou para um tom suplicante:

- Eu disse uma porção de tolices, minha menina. Esqueça! Você


precisa se esquecer de mim, assim como todos os outros se esquecem
de nós. Precisa! Precisa!

Ele agarrou Momo e começou a sacudi-la. A menina movia os lábios


mas não conseguia dizer nada.

De repente, o homem cinzento se levantou de um salto, olhou para


trás como se estivesse sendo perseguido, pegou sua pasta cinza-
chumbo e correu para o carro.

Aconteceu então algo muito estranho. Como uma explosão ao


contrário, todas as bonecas e seus pertences, que estavam espalhados
por ali, voaram para dentro do porta-malas, que se fechou com um
estrondo. O carro partiu à toda, espirrando pedreguIhos para os lados.

Momo continuou sentada no mesmo lugar durante muito tempo,


tentando compreender o que acabara de ouvir. Pouco a pouco, foi
passando aquele frio horrível nas juntas e tudo foi se tornando mais
claro. Ela não se esqueceu de nada, porque ouvira a voz de verdade de
um homem cinzento.

Uma leve espiral de fumaça subia da grama ressecada, a seus pés. O


toco do charuto do visitante, que ficara caído ali, foi se apagando e
virando cinza.
Capítulo Oito
MUITOS SONHOS E ALGUMAS IDEIAS
 

No o fim da tarde, chegaram Gigi e Beppo. Encontraram Momo


sentada à sombra do muro, ainda meio pálida e aflita. Sentaram-se
então junto dela e, preocupados, perguntaram o que ela tinha.

Momo, hesitante, começou a contar o que havia acontecido. Acabou


repetindo palavra por palavra toda a conversa com o homem cinzento.

Enquanto ouvia, o velho Beppo observava Momo, com ar muito sério


e perscrutador.

As rugas na sua testa se aprofundaram. Ficou calado, mesmo depois


que Momo terminou seu relato.

Gigi, ao contrário, ia se agitando à medida que escutava. Seus olhos


começaram a brilhar, como acontecia quando se entusiasmava com
uma de suas histórias.

- Agora, Momo - disse ele, pondo a mão no ombro da menina -,


chegou a nossa hora! Você descobriu uma coisa que ninguém sabia
direito o que era. Vamos poder salvar não só os nossos velhos amigos,
mas a cidade inteira! Só nós três, eu, Beppo, e você.

Dizendo isso, ele se ergueu de um pulo e estendeu os braços. Estava


imaginando uma imensa multidão à sua frente, aclamando-o como
libertador.

- Ótimo - respondeu Momo, meio desnorteada -, mas como vamos


fazer isso?

- Como assim? - perguntou Gigi, meio irritado.

- Quero saber como vamos fazer para derrotar os homens cinzentos -


esclareceu Momo.

- Pois é - retrucou Gigi -, por enquanto é claro que também não sei
exatamente.
Vamos ter que refletir. Mas uma coisa é evidente: agora que sabemos
que eles existem e como agem, precisamos combatê-los. A não ser que
você tenha medo!

Momo balançou a cabeça, timidamente:

- Acho que eles não são pessoas como as outras. O homem que
esteve comigo parecia meio diferente. E o frio é terrível. Se eles são
muitos, devem ser mesmo perigosos. Tenho medo, sim.

- Ora, bobagem! - gritou Gigi, entusiasmado. - A coisa é muito


simples. Esses homens cinzentos só poderão levar adiante seus
negócios sinistros enquanto permanecerem incógnitos. Foi seu
visitante mesmo quem admitiu isso. Então! É só fazermos com que
eles sejam reconhecidos. Quem os ficar conhecendo irá guardá-los na
lembrança, e quem se lembrar deles irá reconhecê-los imediatamente.
Assim não poderão nos fazer mal algum. Seremos inatingíveis.

- Você acha? - perguntou Momo, meio desconfiada.

- Sem a menor dúvida! - prosseguiu Gigi, com os olhos brilhando. -


Se não fosse assim, seu visitante não teria dado o fora tão depressa.
Eles tremem só de pensar em nós.

- Mas então - disse Momo - pode ser que a gente não consiga
encontrá-los. Talvez se escondam de nós.

- Pode ser, mesmo, que isso aconteça - concordou Gigi. - Nesse caso,
vamos ter que os atrair para fora do seu esconderijo.

- De que jeito? - perguntou Momo. - Acho que são muito espertos...

- Nada mais simples! - exclamou Gigi, dando risada. - Vamos pegá-


los com sua própria isca. Camundongo se apanha com toucinho, ladrão
de tempo se apanha com tempo. E isso nós temos de sobra. Por
exemplo, você poderia ficar sentada aqui, como isca para atraí-los, e
então Beppo e eu saltaríamos de nosso esconderijo e agarraríamos os
tais homens.

- Mas eles já me conhecem - contestou Momo. - Acho que não vão


cair nessa.
- Certo - continuou Gigi, com as ideias se atropelando em sua
cabeça. - Então vamos fazer outra coisa. O homem cinzento falou
numa Caixa Econômica de Tempo.

Deve ser um prédio e, decerto, fica na cidade. É só a gente encontrá-


lo. E não vai ser difícil, pois com certeza deve ser um prédio bem
característico: cinzento, frio, sem janelas, um imenso cofre de
concreto! Já estou até imaginando. Quando o encontrarmos, vamos
entrar, cada um com dois revólveres nas mãos. E eu digo: "Entreguem
imediatamente todo o tempo roubado!"

- Mas nós não temos revólveres... - interrompeu Momo, aflita.

- Então vamos sem revólveres - respondeu Gigi, entusiasmado. - Eles


vão ficar ainda mais assustados. Nossa aparição já vai ser suficiente
para deixá-los em pânico...

- Talvez fosse bom se fôssemos em maior número - disse Momo -, e


não só nós três. Acho que encontraríamos mais depressa a Caixa
Econômica de Tempo se mais gente ajudasse a procurar.

- Ótima ideia! - respondeu Gigi. - Vamos mobilizar todos os nossos


velhos amigos. E também as crianças que costumam vir aqui. Acho
que nós três devemos partir imediatamente, cada um informando o
maior número possível de pessoas. E  todas essas pessoas deverão
passar a notícia adiante. Vamos todos nos encontrar aqui amanhã, às
seis horas da tarde, em assembléia geral.

Partiram imediatamente. Momo numa direção, Beppo e Gigi em


outra.

Depois que os dois homens caminharam um pouco, Beppo, que até


então tinha ficado calado, parou de repente.

- Escute, Gigi - disse ele. - Estou preocupado.

- Por quê?

Beppo fitou o amigo por alguns momentos e disse:

- Eu acredito em Momo.

- E daí? - indagou Gigi, surpreso.


- Quer dizer - continuou Beppo -, acredito que é verdade o que Momo
nos contou.

- Certo, e dal? - voltou a perguntar Gigi, sem entender o que Beppo


estava querendo.

- Sabe - explicou Beppo -, se o que Momo contou é verdade mesmo,


precisamos pensar muito bem no que vamos fazer. Se estamos
realmente lidando com um bando de criminosos, não podemos
enfrentá-los assim, sem mais nem menos. Se simplesmente os
desafiarmos, Momo poderá ficar numa situação difícil. Não estou
preocupado com você, nem comigo, mas, se envolvermos crianças no
caso, elas estarão correndo perigo. Precisamos refletir muito bem
antes de agir.

- Ora, que bobagem! - exclamou Gigi, rindo. - Você está sempre


preocupado com alguma coisa. É claro que, quanto mais gente
tivermos conosco, melhor.

- Acho que você não está acreditando que é verdade o que Momo
contou - retrucou Beppo, muito sério.

- Depende do que você entende por verdade - respondeu Gigi. - Você


não tem imaginação, Beppo. O mundo todo é apenas uma grande
história, e todos nós participamos dela. Seja como for, acredito em
tudo o que Momo nos contou, tanto quanto você.

Beppo não tinha o que responder, mas as palavras de Gigi não


afastaram seus receios. Os dois se separaram, saindo um para cada
lado para avisar todos os amigos e todas as crianças sobre a reunião do
dia seguinte. Gigi ia, de coração leve, Beppo de coração pesado.

Naquela noite, Gigi sonhou com sua futura fama de libertador da


cidade. Viu a si mesmo de fraque, Beppo de casaca e Momo com um
vestido de seda branca. Os três receberam medalhas de ouro e coroas
de louro de uma comissão de cidadãos. Soou uma música triunfal e a
cidade organizou, em homenagem aos seus salvadores, um longo
cortejo à luz de tochas, mais magnífico do que jamais se tinha visto.

Enquanto isso, o velho Beppo estava deitado na cama sem conseguir


dormir. Quanto mais refletia sobre o assunto, mais claro lhe parecia o
perigo. Naturalmente não  podia deixar Momo e Gigi se arriscarem
sozinhos. Estaria junto com eles para o que desse e viesse. Mas
precisava pelo menos tentar detê-los.

No dia seguinte, às seis horas da tarde, nas ruínas do antigo


anfiteatro ressoavam gritos entusiasmados e o burburinho de muitas
vozes. Infelizmente, os amigos adultos de Momo não tinham
comparecido (com exceção de Gigi e Beppo, é claro), mas ali estavam
cinquenta ou sessenta crianças, vindas de perto e de longe, ricas e
pobres, bem-comportadas e travessas, grandes e pequenas. Algumas,
como Maria, traziam pela mão, ou no colo, um irmão ou uma
irmãzinha, que de olhos arregalados e dedo na boca observava aquela
reunião extraordinária.

Naturalmente Franco, Paulo e Mássimo estavam lá, e as outras


crianças eram quase todas as que tinham começado a frequentar o
anfiteatro nos últimos tempos.

Estavam especialmente interessadas no assunto em discussão. O


menino do rádio também apareceu, mas desta vez sem o rádio.
Sentou-se ao lado de Momo e logo foi dizendo que se chamava Cláudio
e que estava muito feliz por participar da reunião.

Quando ficou claro que não chegaria mais ninguém, Gigi Guia
levantou-se e, com gestos largos, pediu silêncio. As vozes e gritos
cessaram, e no anfiteatro de pedra fez-se um silêncio cheio de
expectativa

- Amigos - começou Gigi, em voz alta -, vocês todos sabem mais ou


menos do que se trata. Já foram informados ao serem convidados para
a nossa assembléia secreta. O que acontece é que cada vez mais
pessoas têm tido menos tempo, apesar de tentarem economizar
tempo de todas as maneiras possíveis Mas, vejam, justamente esse
tempo poupado acaba, sendo perdido. Por quê' Pois foi isso que Momo
descobriu Esse tempo tem sido literalmente roubado por um bando de
ladrões de tempo. Precisamos da ajuda de vocês para acabar com essa
organização gélida de criminosos. Se todos estiverem dispostos a
colaborar, poderemos acabar de uma vez com esse fantasma que se
abateu sobre todo o mundo. Vocês não acham que vale a pena lutar
por essa causa?

Ele fez uma pausa e as crianças bateram palmas.


- Mais adiante - continuou Gigi -, discutiremos o que pretendemos
fazer.

Primeiro, porém, Momo vai contar o encontro que teve com um


desses bandidos e como ele próprio se desmascarou.

- Um momento - disse o velho Beppo, levantando-se. Ouçam,


crianças! Sou contra Momo falar. Não vai dar. Se ela falar, estará
correndo um grande perigo, assim como todas vocês...

- Nada disso! - gritaram as crianças. - Momo deve falar!

Outras vozes se ergueram e, por fim, todos bradavam em coro:

- Momo! Momo! Momo!

O velho Beppo sentou-se, tirou os óculos e esfregou os olhos.

Momo levantou-se, atordoada. Não sabia muito bem se atendia ao


desejo de Beppo ou ao das crianças. Finalmente, começou seu relato.
As crianças ouviam, encantadas. Quando terminou, seguiu-se um
longo silêncio.

Enquanto Momo falava, muitas começaram a sentir um estranho


mal-estar. Não imaginavam que aqueles ladrões de tempo fossem tão
maus. Um dos irmãozinhos começou a chorar alto e logo foi consolado.

- Bem - disse Gigi, rompendo o silêncio -, quem se arrisca a se unir a


nós na luta contra os homens cinzentos?

- Por que Beppo não queria que Momo contasse o que aconteceu
com ela? - perguntou Franco.

Gigi sorriu, respondendo com segurança:

- Beppo acha que os homens cinzentos considerarão seus inimigos


todos aqueles que descobrirem seu segredo e passarão a persegui-los.
Mas estou convencido do contrário. Acho que quem conhece seu
segredo está imunizado e não poderá mais ser dominado por eles. Não
é óbvio? Ora, Beppo, admita!

Mas Beppo só balançou a cabeça, muito devagar. As crianças ficaram


em silêncio.
Gigi tomou de novo a palavra:

- De qualquer modo, o certo é que temos de permanecer unidos,


aconteça o que acontecer. Temos que ter cuidado, mas não podemos
nos deixar amedrontar. Então, volto a perguntar: quem de vocês quer
se juntar a nós?

- Eu! - disse Cláudio, levantando-se, um pouco pálido. Outros


seguiram seu exemplo, meio hesitantes a princípio, depois com
entusiasmo cada vez maior.

Afinal, todos os presentes aderiram.

- Então, Beppo - perguntou Gigi, apontando para as crianças -, o que


você tem a dizer?

- Tudo bem - respondeu Beppo, balançando tristemente a cabeça. - É


claro que estarei junto com vocês!

- Certo! - e Gigi voltou-se de novo para as crianças. - Então agora


vamos discutir nosso plano de ação. Quem tem alguma sugestão?

Todos puseram-se a refletir, e finalmente Paulo, o menino de óculos,


falou:

- Como é que eles fazem? Quer dizer, como é que dá para roubar o
tempo? Como é possível?

- É isso aí! - gritou Cláudio. - Afinal, o que é o tempo? Ninguém


soube responder.

Do outro lado do anfiteatro, Maria se levantou, carregando a


irmãzinha no colo, e disse:

- Será que o tempo é alguma coisa como os átomos? Eles podem


registrar até as ideias, que só estão na cabeça das pessoas. Vi isso na
televisão. Hoje existem especialistas em tudo.

- Tenho uma ideia - gritou Mássimo, o menino gordo de voz


estridente. - Quando se faz uma filmagem, tudo fica registrado no
filme. E quando se faz uma gravação de som, tudo fica registrado na
fita. Talvez exista um aparelho para registrar o tempo. Se descobrirmos
onde ele está, é só fazermos a fita voltar para trás e teremos o tempo
de volta!
- De qualquer modo - disse Paulo, ajeitando os óculos em cima do
nariz -, antes de mais nada temos que procurar um cientista para nos
ajudar,, Caso contrário não vamos conseguir nada.

- Você e seus cientistas! - exclamou Franco. - Não daria para confiar!

Suponhamos que a gente ache um cientista que conheça tudo sobre


o assunto. Como vamos saber se ele não está a serviço dos ladrões de
tempo? Aí sim ficaríamos numa enrascada!

A objeção pareceu válida,

Nisso uma menina, visivelmente bem-educada, levantou-se e falou:

- Acho que o melhor é ir à polícia e contar tudo!

- Só faltava essa! O que a polícia vai poder fazer? - protestou Franco.


- Não se trata de ladrões comuns. Ou a polícia já os conhece há muito
tempo e não consegue fazer nada, ou ela não sabe de nada, e portanto
é incompetente. É isso que eu acho!

Seguiu-se um silêncio de impotência.

- Mas temos cie fazer alguma coisa! - disse Paulo, afinal -. E tem que
ser o mais depressa possível, antes que os ladrões, fiquem sabendo
dos nossos planos.

Novamente, Gigi levantou-se e começou a falar:

- Meus queridos amigos, já examinei a questão a fundo. Já formulei


centenas de planos e deixei todos de lado, até encontrar um capaz de
atingir o nosso alvo.

Se todos ajudarem, é claro! Eu só quis saber se algum de vocês teria


alguma ideia melhor. Pois bem, agora vou dizer o que vamos fazer.

Ele se calou por um momento e seu olhar percorreu demoradamente


toda a volta do anfiteatro. Mais de cinquenta rostos de criança o
fitavam. Havia muito tempo não contava com uma assistência tão
numerosa.

- Como vocês sabem - continuou -, a força dos homens cinzentos


está no fato cie poderem agir em segredo, sem serem reconhecidos.
Portanto, o meio mais simples e eficaz para torná-los inofensivos é
cada um conhecer a verdade a respeito deles.

Como conseguir isso? Faremos uma imensa manifestação pública de


crianças. Vamos pintar faixas e cartazes e desfilar pelas ruas. Vamos
chamar a atenção da opinião pública. Então convidaremos toda a
cidade para vir a este anfiteatro para explicarmos tudo. Isso provocará
uma grande agitação. Milhares de pessoas virão até aqui e, quando a
imensa multidão estiver reunida, revelaremos o terrível segredo.
Então, no mesmo instante, o mundo se transformará! Não será mais
possível roubar o tempo de ninguém. Cada um terá o tempo que
quiser, pois novamente haverá tempo suficiente para todos. Seremos
capazes disso, meus amigos, se trabalharmos unidos. Basta querer!
Será que nós queremos?

A resposta foi uma enorme aclamação de júbilo.

- Concluindo - terminou Gigi -, declaro que resolvemos por


unanimidade convidar a cidade inteira para vir ao velho anfiteatro no
próximo domingo à tarde. Até lá, temos de conservar o mais absoluto
segredo quanto ao nosso plano. Entendido?

Agora, meus amigos, mãos à obra!

Naquele dia e nos dias que se seguiram, uma atividade secreta, mas
febril, tomou conta das ruínas. Surgiram potes de tinta, pincéis, papel,
papelão, cola e todos os outros materiais necessários. (É melhor não
perguntar como e de onde surgiu tudo aquilo.)

Enquanto algumas crianças montavam cartazes e faixas, outras, que


tinham boa letra, imaginavam e escreviam frases que chamassem a
atenção, como por exemplo:

POR QUÊ?

VOCÊS NÃO TÊM MAIS TEMPO?

NÓS, AS CRIANCAS, LHES DIREMOS!

Todos os cartazes anunciavam a hora e o lugar do encontro.

Finalmente, quando tudo ficou pronto, as crianças se colocaram a


postos no anfiteatro, tendo à frente Gigi, Beppo e Momo. Então, numa
longa fila, dirigiram-se para a cidade, empunhando os cartazes e as
faixas. Ao mesmo tempo, iam fazendo um barulhão com apitos e
tampas de panelas, gritavam as frases e entoavam uma canção
especialmente composta por Gigi para a oportunidade:

"Ouçam todos com atenção, 

está na hora de acordar.

Por aí tem muito ladrão

que seu tempo quer roubar.

Ouçam todos com atenção,

domingo às seis da tarde compareçam à nossa reunião 

pois vamos contar a verdade."

A canção tinha muito mais estrofes, vinte e oito ao todo, mas não é
preciso apresentar todas aqui.

A polícia interferiu algumas vezes, para dispersar os manifestantes


quando a passeata interrompia o trânsito. Mas as crianças não se
deixavam desanimar.

Voltavam a se reunir em outro lugar e começavam tudo de novo.


Fora isso, nada aconteceu com elas e, apesar de se manterem
vigilantes, não conseguiram descobrir nenhum homem cinzento.

Outras crianças, que até então não sabiam de nada, foram se


juntando à manifestação, e no fim elas já eram muitas centenas ou até
milhares. Por todos os lados da cidade havia crianças desfilando pelas
ruas, em longas procissões,  convidando os adultos para a importante
assembléia que iria mudar o mundo.
Capítulo Nove

UMA REUNIÃO BOA QUE NÃO SE REALIZA, UMA REUNIÃO MÁ


QUE SE REALIZA
 

A grande hora passou.

Passou e nenhum convidado apareceu. Justo os adultos, os maiores


interessados no assunto, nem tinham notado a passeata as crianças.

Portanto, tudo tinha sido em vão.

O sol, vermelho e resplandecente, num mar de nuvens arroxeadas, já


estava se pondo. Seus raios, agora, apenas roçavam os últimos
degraus do anfiteatro, nos quais, durante horas, centenas cie crianças
estiveram sentadas, esperando. Não se ouvia mais nenhum ruído cie
vozes, nenhum burburinho alegre. Todos estavam tristes e silenciosos.

As sombras alongavam-se rapidamente, logo escureceria. As


crianças começavam a tiritar, pois o tempo esfriara. O relógio cie uma
igreja distante bateu oito vezes.

Não havia mais nenhuma dúvida de que tudo fracassara.

As primeiras crianças começaram a se levantar e ir embora em


silêncio, e logo foram seguidas por outras. Ninguém dizia uma palavra.
A decepção era grande demais.

Afinal, Paulo chegou perto de Momo e disse:

- Não adianta esperar mais, Momo. Não vem ninguém mesmo! Boa
noite.

E ele foi embora.

Depois Franco se aproximou e disse:

- Não podemos fazer nada! Já deu para ver que não se pode contar
com os adultos.
Aliás, eu já não confiava muito neles, e agora, então, não quero mais
saber de gente grande.

Também ele foi embora, e outros o seguiram. Por fim, quando


escureceu totalmente, as últimas crianças perderam as esperanças e
se foram.

Momo ficou só com Beppo e Gigi. Após alguns instantes, o velho


varredor de rua levantou-se.

- Você também já vai? - perguntou Momo.

- Preciso ir - respondeu Beppo -, tenho que fazer hora extra.

- Mas à noite?

- É! Puseram a gente para descarregar lixo no depósito. Preciso ir


para lá.

- Mas hoje é domingo! E você nunca teve de fazer isso antes.

- Pois é, mas disseram que é só excepcionalmente, pois senão não


iam conseguir terminar o serviço. Falta de pessoal, essas coisas.

- Que pena! - suspirou Momo. - Gostaria que você ficasse aqui hoje!

- Também não estou gostando de ter que ir embora - disse Beppo. -


Então, boa noite e até amanhã!

Ele montou na sua velha bicicleta e sumiu na escuridão.

Gigi assobiava para si mesmo uma música melancólica. Sabia


assobiar muito bem e Momo o ouvia. De repente, ele interrompeu a
melodia.

- Também vou embora - ele disse. - Hoje é domingo e preciso bancar


o guarda-noturno. Até me esqueci de contar que essa é minha nova
função.

Momo olhou para ele, espantada, e não disse nada.

- Não fique triste porque nosso plano não deu certo continuou Gigi. -
Eu também imaginava um resultado muito diferente! Mas não
importa, mesmo assim foi divertido! Foi fantástico!
Momo continuava em silêncio. Gigi acariciou-lhe os cabelos,
tentando consolá-la:

- Não leve tão a sério, Momo! Amanhã tudo vai parecer diferente!
Vamos pensar em alguma outra coisa... numa nova história, está bem?

- Mas não era uma história - respondeu Momo, baixinho. Gigi pôs-se
de pé:

- Claro, eu sei, mas falaremos disso amanhã, está bem? Agora


preciso ir embora, já estou atrasado. E você precisa ir dormir.

E ele se foi, assobiando sua melodia melancólica.

Momo ficou sozinha, sentada no grande anfiteatro de pedra. A noite


não tinha estrelas e o céu estava carregado de nuvens. Começou um
vento estranho. Não era forte, mas soprava constantemente, trazendo
um frio estranho. Era, por assim dizer, um vento cinzento.

Fora da grande cidade, bem longe, erguiam-se imensos montões de


lixo. Eram verdadeiras montanhas de cinzas, cacos de vidro, latas,
colchões velhos, restos de plástico, caixas de papelão e outros tipos de
entulho, que todos os dias se jogavam fora na grande cidade e lá
ficavam esperando para serem queimados em imensos incineradores.

Até tarde da noite, o velho Beppo, junto com seus colegas de


trabalho, ajudou a tirar o lixo dos caminhões, que esperavam em fila,
com os faróis acesos, para serem descarregados. À medida que iam
sendo, esvaziados, mais caminhões iam se colocando no fim da fila.

- Depressa, pessoal! - era o grito que se ouvia sem cessar.

- Vamos, vamos, senão nunca vamos acabar com isso!

Beppo não largou a pá um só instante, até ficar com a camisa


grudada no corpo.

Finalmente, lá pela meia-noite, o serviço terminou.

Além de velho, Beppo não era de constituição muito forte. Exausto,


sentou-se num balde de plástico virado, procurando recuperar o
fôlego.
- Ei, Beppo! - gritou um colega seu. - Vamos para casa! Você não
vem?

- Daqui a pouco - respondeu Beppo, pondo a mão no coração, que


estava doendo.

- Está se sentindo mal, velho? - perguntou um outro.

- Está tudo bem - disse Beppo. - Podem ir! Só vou descansar aqui
mais um instante.

- Então boa noite! - gritaram os homens, e foram embora. Estava


tudo quieto. Só os ratos remexiam o lixo, guinchando de vez em
quando. Com a cabeça apoiada nos braços, Beppo adormeceu.

De repente foi acordado por uma rajada de vento frio. Não sabia
quanto tempo tinha dormido. Olhou à sua volta e imediatamente
sentiu-se totalmente desperto.

Sobre toda a montanha de lixo, havia homens cinzentos, com ternos


elegantes, chapéus-coco na cabeça, pastas cinza-chumbo nas mãos e
pequenos charutos cinzentos entre os lábios. Estavam todos calados,
com o olhar fixo no cume do monte, onde havia uma espécie de mesa
de tribunal, à qual estavam sentados três homens, aliás, exatamente
iguais a todos os outros.

No primeiro momento, Beppo teve medo. Temia ser descoberto e


sabia, sem sombra de dúvida, que não devia estar ali. Logo, porém,
observou que os homens estavam com os olhos como que amarrados à
mesa do tribunal. Talvez nem estivessem vendo Beppo, ou poderiam
até estar pensando que ele fosse algum objeto jogado no lixo.

Resolveu ficar ali mesmo, absolutamente quieto.

A voz do homem que estava sentado no meio, lá no alto, quebrou o


silêncio:

- Que o agente BLW/553/c se apresente diante da Suprema Corte.

A ordem foi sendo passada para baixo, repetidamente, ressoando


como um eco prolongado. Então, abriu-se caminho na multidão e um
homem foi subindo lentamente o montão de lixo. A única coisa que o
diferenciava dos outros era o fato de que o cinzento de seu rosto era
quase branco.

Finalmente ele se postou diante do tribunal.

- O senhor é o agente BLW/553/c? - perguntou o homem do centro.

- Exatamente.

- Desde quando está trabalhando para a Caixa Econômica de Tempo?

- Desde a minha origem.

- Isso é óbvio. Poupe-se dessas observações desnecessárias. Quando


o senhor se originou?

- Há onze anos, três meses, seis dias, oito horas, trinta e dois minutos
e, neste exato momento, dezoito segundos.

Embora esse diálogo se realizasse em voz muito baixa e bem longe


cie onde ele estava, o velho Beppo não perdia uma palavra.

O homem do meio continuou o interrogatório:

- O senhor está ciente de que crianças desta cidade, em número


considerável, desfilaram carregando faixas e cartazes por toda parte, e
até mesmo conceberam o monstruoso plano de convidar a cidade
inteira para uma assembléia na qual pretendiam fazer revelações a
nosso respeito?

- Estou ciente disso - respondeu o agente.

- Como explica que essas crianças saibam da nossa existência e das


nossas atividades? - prosseguiu o juiz, implacável.

- Não consigo encontrar uma explicação - respondeu o agente - Mas,


se me for permitida uma observação, gostaria de sugerir a esta
Suprema Corte que não dê ao episódio importância maior do que ele
teve. Uma infantilidade sem consequências, nada mais do que isso!
Além disso, peço à Corte que lembre o quanto foi fácil fazermos a
assembléia planejada fracassar, simplesmente não dando tempo às
pessoas para comparecerem. Mesmo que a reunião tivesse se
realizado, estou certo de que as crianças nada teriam a revelar além
de uma historinha infantil sobre assaltantes. Na minha opinião,
deveríamos ter deixado a assembléia se realizar, para que...

- Que o réu se cale! - interrompeu severamente o homem do


tribunal. - O senhor sabe onde se encontra?

O agente se encolheu um pouco e limitou-se a responder:

- Sim.

- O senhor não está diante de uma corte humana - prosseguiu o juiz


-, mas perante seus semelhantes. Sabe perfeitamente que é impossível
nos enganar. Por que tenta fazê-lo?

- É... é um vício profissional - gaguejou o acusado

- Quanto à maior ou menor importância que se deve atribuir ao


plano das crianças

- continuou o juiz -, a decisão cabe à chefia. O réu sabe muito bem


que nada nem ninguém representa maior perigo para a nossa obra do
que a infância.

- Sim, eu sei - confessou humildemente o réu.

- As crianças são nossas inimigas naturais - declarou o juiz. - Se não


fossem elas, há muito tempo toda a humanidade estaria em nosso
poder. É muito mais difícil persuadir crianças do que adultos a
pouparem tempo. Por isso temos uma norma rigorosa: só se envolvem
crianças em último caso. Essa norma era do conhecimento do réu?

- Sim, sem dúvida, senhor - murmurou o acusado, ofegante.

- Não obstante, temos prova irrefutável de que um de nós... repito,


um de nós... não só falou com uma criança como nos traiu, contando a
verdade a nosso respeito - afirmou o juiz. - O réu por acaso sabe quem
de nós fez isso?

- Fui eu - replicou o agente BLW/553/c, arrasado.

- E por que razão o senhor transgrediu uma das nossas normas mais
rigorosas? - indagou o juiz

O réu tentou se defender


- Por sua grande influência sobre as outras pessoas, a criança em
questão dificultava nosso trabalho. Assim, agi com a intenção de servir
aos interesses da Caixa Econômica de Tempo.

- Suas intenções não nos interessam - retrucou o juiz, friamente. - Só


levamos em conta as consequências. E, no seu caso, agente
BLW/553/c, elas foram desastrosas: além de não ganharmos tempo
algum, ainda fomos traídos! Alguns de nossos segredos vitais foram
revelados a uma criança. O réu admite?

- Admito - disse o agente, baixando a cabeça.

- Então se confessa culpado?

- Sim, mas peço à Suprema Corte que leve em consideração as


circunstâncias atenuantes. Fiquei, na verdade, como que enfeitiçado.
Aquela criança me ouviu de uma tal maneira que conseguiu arrancar
tudo de mim. Não consigo explicar como aconteceu, mas juro que foi
assim.

- Suas desculpas não nos interessam. Para nós, circunstâncias


atenuantes não têm valor algum. Nossas normas são invioláveis e não
fazemos exceção. Contudo, passaremos a dar um pouco de atenção a
essa criança notável. Como é seu nome?

- Momo.

- Menino ou menina?

- Menina.

- Residência?

- As ruínas de um velho anfiteatro.

- Bem - disse o juiz, escrevendo tudo no seu caderninho de


anotações. - O réu pode ter certeza de uma coisa: essa criança não nos
prejudicará mais.

Utilizaremos todos os recursos. Que isso lhe traga algum consolo,


quando proferirmos a sentença que o espera.

O acusado começou a tremer.


- Qual é a sentença? - murmurou ele.

Os três homens do tribunal inclinaram-se um para o outro,


cochicharam alguma coisa, balançaram a cabeça afirmativamente. O
do meio voltou a se dirigir ao acusado, declarando:

- O veredito unânime que recai sobre o agente BLW/553/c é o


seguinte: o réu é considerado culpado por crime de alta traição. Ele
próprio admitiu sua culpa. A sentença determinada por nossa lei é que
lhe seja imediatamente retirado todo o tempo.

- Piedade! Piedade! - clamou o réu.

Mas dois homens cinzentos que estavam de pé a seu lado já lhe


arrancavam a pasta cinza-chumbo das mãos e o charuto da boca.

Então aconteceu algo extraordinário. Assim que lhe tiraram o


charuto, o acusado começou a se tornar cada vez mais transparente.
Também seus gritos foram se enfraquecendo.

Ele ficou ali, cobrindo o rosto com as mãos, literalmente se


dissolvendo em nada. Acabou se transformando num punhado de
cinzas redemoinhando ao vento.

Finalmente, também estas sumiram.

Todos os homens cinzentos, juizes e assistentes, foram se afastando


em silêncio.

A escuridão os engoliu e só restou o vento cinzento gemendo sobre o


lúgubre montão de lixo.

Beppo Varredor permaneceu sentado, imóvel, fitando o ponto em


que o agente BLW/553/c havia desaparecido. Tinha a sensação de que
havia se congelado e agora estava degelando aos poucos. Vira com os
próprios olhos que os homens cinzentos de fato existiam.

Quase na mesma hora, o relógio da igreja distante bateu meia-noite.


A pequena Momo achava-se ainda nos degraus de pedra do anfiteatro.
Estava esperando, mas ela mesma não sabia o que. Só tinha a
sensação de que devia esperar. Por isso ainda não conseguira se
resolver a ir para a cama.
De repente, sentiu alguma coisa roçar levemente seus pés descalços.
Estava muito escuro. A menina inclinou-se para a frente e viu uma
grande tartaruga com a cabeça erguida, olhando para ela, com a boca
entreaberta num sorriso. Seus olhinhos pretos e vivos brilhavam
amavelmente, como se estivesse querendo conversar.

Momo se inclinou mais e afagou-a sob o queixo.

- Oi, quem é você? - ela perguntou, baixinho. - Seja quem for, estou
contente que pelo menos você tenha vindo me visitar, tartaruga! O
que quer de mim?

Momo não sabia se não havia notado antes ou se só naquele instante


tinham se  tornado visíveis as letras que apareciam nas costas da
tartaruga, ligeiramente luminosas, como se fossem formadas pelo
desenho de sua carapaça.

"VENHA COMIGO", soletrou Momo, devagar.

Espantada, a menina perguntou:

- Isso é para mim?

Mas a tartaruga já saíra caminhando. Parou um pouco adiante, virou


a cabeça e voltou a olhar para a menina.

"É para mim, mesmo!", pensou Momo. Então ela se levantou e foi
atrás do misterioso animal.

- Pode ir andando que eu a acompanho! - disse baixinho.

Passo a passo, a menina seguiu a tartaruga, que lentamente, muito


lentamente, conduziu-a para fora do anfiteatro de pedra e, depois,
tomou o rumo da grande cidade.
Capítulo Dez
PERSEGUIÇÃO FEROZ E FUGA TRANQUILA
 

Beppo montou na velha bicicleta e saiu noite afora. Pedalava o mais


depressa que podia. As palavras do juiz cinzento ainda ressoavam em
seus ouvidos: "Passaremos a dar um pouco de atenção a essa criança
notável... o réu pode ter certeza de uma coisa, essa criança não nos
prejudicará mais... utilizaremos todos os recursos..."

Não havia dúvida, Momo corria grande perigo. Precisava encontrá-la


imediatamente e preveni-la contra os homens cinzentos, protegê-la,
embora não soubesse como.

Contudo, haveria de encontrar um jeito. Beppo pôs mais força no


pedal. Seu cabelo branco esvoaçava ao vento. O anfiteatro ainda
estava longe.

As ruínas brilhavam à luz dos faróis de uma frota de elegantes carros


cinzentos que as cercavam por todos os lados. Dezenas de homens
cinzentos percorriam de cima a baixo os degraus cobertos de capim,
procurando a criança por todos os cantos. Finalmente, alguns
descobriram no muro o buraco que levava aos aposentos de Momo.
Entraram por ele e olharam embaixo da cama e até dentro do pequeno
fogão de pedra. Depois saíram, sacudindo a poeira dos elegantes
ternos cinzentos.

- O pássaro bateu asas! - disse um deles.

- É um absurdo - disse um outro - crianças saírem perambulando por


aí, à noite, em vez de ficarem quietinhas na carnal

- Não estou gostando nada dessa história - declarou um terceiro. -


Até parece que ela foi avisada a tempo por alguém!

- Impossível! - disse o primeiro. - Para que alguém tivesse dado o


aviso, seria preciso saber das nossas intenções antes mesmo de nós.

Os homens cinzentos se entreolharam alarmados.


- Se alguém de fato a preveniu, não deve nem mais estar por perto -
observou, preocupado, o terceiro. - Então, continuar procurando aqui
seria perda de tempo.

- Tem alguma sugestão melhor?

- Acho que devemos informar imediatamente a Central para que ela


nos dê instruções para ampliar as buscas.

- Mas a primeira coisa que a Central vai perguntar é se já


vasculhamos as redondezas. Aliás, seria uma pergunta razoável.

- Muito bem! - declarou o primeiro homem cinzento. Pois vamos,


antes de mais nada, vasculhar as redondezas. Entretanto, se a menina
recebeu ajuda de alguém, estaremos cometendo um grave erro.

- Bobagem! - retrucou outro, zangado. - Nada impede que nesse caso


o alto comando ordene uma operação ampla, com a participação de
todos os agentes disponíveis. A menina não terá a mínima chance de
nos escapar. Agora, mãos à obra, cavalheiros. Todos sabem o que está
em jogo!

Naquela noite, muitos moradores da vizinhança não entenderam por


que não cessava o barulho de carros passando. Mesmo as ruelas mais
estreitas e as ruas mais esburacadas foram tomadas, até a madrugada
cinzenta, por uma movimentação que geralmente só ocorria nas vias
principais Ninguém conseguiu pregar o olho!

Enquanto isso acontecia, a pequena Momo, guiada pela tartaruga,


atravessava a grande cidade, que já não dormia mesmo nas horas
mais tardias.

As pessoas se deslocavam incansavelmente, em grandes multidões,


acotovelando-se com impaciência, empurrando umas às outras ou
caminhando em fileiras cerradas e intermináveis. Os carros se
amontoavam nas pistas e entre eles rugiam os ônibus, invariavelmente
lotados. Anúncios luminosos brilhavam nas fachadas, projetando sobre
a massa suas luzes coloridas que acendiam e apagavam.

Momo, que nunca tinha visto aquilo, caminhava como num sonho,
de olhos arregalados, sempre atrás da tartaruga. Atravessaram praças
imensas, ruas muito iluminadas. Carros vinham por trás delas e as
ultrapassavam, transeuntes as rodeavam, mas ninguém prestava
atenção à menina e à tartaruga.

Nem uma vez precisaram se desviar de algum pedestre, não levaram


encontrões, nenhum carro teve de frear por causa delas. Era como se a
tartaruga soubesse de antemão e com certeza o momento exato em
que não passaria nenhum pedestre ou nenhum carro para abalroá-las.
Assim, nunca precisaram correr nem esperar para prosseguirem seu
caminho. Momo estava admirada de como era possível caminharem
tão devagar e avançarem tão depressa.

Quando Beppo Varredor finalmente chegou ao anfiteatro, antes


mesmo de descer da bicicleta já viu, à luz fraca do farol de sua
bicicleta, as marcas de pneu em volta das ruínas. Alarmado, correu
para o buraco no muro.

- Momo! - chamou ele, primeiro em voz baixa e depois mais alta -


Momo! Momo!

Nenhuma resposta.

Beppo engoliu em seco, engasgado. Entrou no quarto de Momo,


escuro como breu, tropeçou e torceu o tornozelo. Com a mão trêmula,
conseguiu riscar um fósforo e olhar à sua volta.

A mesinha e as duas cadeiras feitas de caixotes estavam de pernas


para o ar, o colchão e as cobertas tinham sido revirados. E Momo não
estava lá!

Beppo mordeu os lábios, sufocando um soluço, que por um


momento pareceu que ia lhe arrebentar o peito.

- Meu Deus - murmurou -, meus Deus! Levaram a menina! Já levaram


minha menininha! O que vou fazer agora?

Nesse momento o fósforo começou a queimar seus dedos e ele o


jogou fora, ficando em completa escuridão.

Voltou a sair pelo buraco do muro, o mais rápido possível, e foi


pulando com um pé só, por causa do tornozelo machucado, até a
bicicleta. Então saiu pedalando.
- Gigi tem que entrar nessa! - foi repetindo para si mesmo. - Gigi tem
que entrar nessa! Tomara que eu consiga encontrar a cabana onde ele
costuma dormir.

Beppo sabia que Gigi ultimamente estava ganhando um dinheiro


extra, passando as noites de domingo numa pequena oficina de
conserto de automóveis, que era também depósito de carros velhos.
Sua tarefa era vigiar para que carros ainda em condições de
funcionamento não desaparecessem inesperadamente, como já
acontecera mais de uma vez.

Quando Beppo chegou e bateu na porta com o punho, Gigi manteve-


se primeiro em completo silêncio, imaginando que poderia ser um
ladrão em busca de algum carro ainda prestável. Mas, depois, ele
reconheceu a voz de Beppo e abriu

- O que foi que aconteceu? - reclamou, assustado. - Detesto que me


acordem assim de repente!

- É Momo! - explicou Beppo, ofegante. - Aconteceu uma coisa terrível


com a menina!

- O que é que você está dizendo? - perguntou Gigi, sentando na


cama, atordoado.

- O que houve com Momo?

- Também ainda não sei - arquejou Beppo. - Mas foi alguma coisa
ruim!

Então contou ao amigo o que sabia- o julgamento no alto do montão


de lixo, as marcas dos pneus em volta do anfiteatro e o
desaparecimento de Momo. Levou algum tempo para contar tudo,
pois, apesar da preocupação pela menina, não sabia explicar as coisas
rapidamente

- Percebi isso desde o começo - concluiu ele. - Eu sabia que não ia


dar certo.  Agora eles estão se vingando. Raptaram Momo! Oh! Gigi,
precisamos ajudar a menina! Mas como? Como?

À medida que Beppo falava, Gigi ia perdendo a cor. Era como se


tivesse sumido o chão debaixo dos seus pés. Até então, tinha levado o
caso na brincadeira, como as histórias que inventava, sem pensar em
suas consequências. Agora, pela primeira vez na vida, uma história
prosseguia sem ele, tornava-se independente, e não
haveria  imaginação no mundo que a fizesse voltar atrás. Sentia-se
paralisado.

- Sabe, Beppo - disse depois de uma pausa -, pode ser que Momo
tenha saído só para ciar uma volta. Às vezes ela faz isso. Já chegou a
ficar três dias e três noites passeando pelos campos. Quero dizer que
talvez não haja motivo para nos preocuparmos assim!

- E as marcas dos pneus? - perguntou Beppo, irritado. - E o colchão


revirado?

- Bem... - respondeu Gigi, evasivamente -, vamos supor que alguém


tenha realmente estado lá. Isso não prova que tenham encontrado
Momo! Talvez ela já tivesse saído antes. Caso contrário não teriam
remexido tudo.

- Mas e se eles a encontraram? - gritou Beppo, agarrando o amigo


pela gola do paletó e sacudindo-o. - Gigi, não seja idiota, os homens
cinzentos são uma realidade! Temos de agir imediatamente!

- Calma, Beppo! - murmurou Gigi, meio desanimado. Claro que


vamos agir... mas primeiro é preciso pensar cuidadosamente no que
vamos fazer. Afinal, nem sabemos por onde começar a procurar Momo!

Beppo largou o paletó de Gigi.

- Vou à polícia! - declarou ele

- Não faça essa loucura! - gritou Gigi, horrorizado. - Isso não, de jeito
nenhum. Imagine se a polícia sai procurando e encontra nossa querida
Momo. Sabe o que vão fazer com ela? Você sabe, Beppo? Sabe para
onde eles levam órfãos perdidos? Para um asilo com grades nas
janelas. Você quer que isso aconteça com Momo?

- Não - sussurrou Beppo, desalentado, com o olhar perdido no vazio. -


Não, não quero! Mas e se ela estiver correndo perigo?

- Bem - continuou Gigi -, e se não tiver acontecido nada, se ela só


estiver dando uma volta por aí, e você alertar a polícia? Nesse caso, eu
não queria estar na sua pele quando ela olhar para a sua cara.
Beppo deixou-se cair numa cadeira junto à mesa, com a cabeça
entre as mãos.

- Francamente, não sei o que será melhor fazer... não sei! - suspirou
ele.

- De qualquer forma - respondeu Gigi -, acho que devemos esperar


até amanhã ou mesmo até depois de amanhã, antes de tomar alguma
providência. Se até lá Momo não tiver aparecido, iremos à polícia. Mas
provavelmente tudo estará resolvido da melhor maneira e estaremos
rindo de toda essa confusão!

- Você acha mesmo? - murmurou Beppo, subitamente tomado por


extremo cansaço.

Para o velho homem, o dia tinha sido muito puxado.

- Decerto - afirmou Gigi.

Ele tirou os sapatos de Beppo, ajudou-o a atravessar a oficina, levou-


o para sua cama, enrolando-lhe o tornozelo num pano molhado, e
repetiu baixinho:

- Vai dar tudo certo! Tudo vai acabar bem!

Quando viu Beppo adormecido, Gigi suspirou fundo e deitou-se no


chão, usando o paletó dobrado como travesseiro. Mas não conseguiu
dormir. Durante toda a noite ficou pensando nos homens cinzentos-
pela primeira vez em sua vida, sempre tão despreocupada, sentiu
medo.

A Central da Caixa Econômica de Tempo organizou uma operação


em larga escala.

Vários agentes da grande cidade receberam ordens de interromper o


que estivessem fazendo para se dedicar inteiramente à procura de
Momo.

Todas as ruas se encheram de vultos cinzentos. Alguns se instalaram


nos telhados, outros rastejavam pelos encanamentos de esgoto,
outros, ainda, vigiavam discretamente as estações ferroviárias e os
aeroportos, os ônibus e os bondes; em suma, estavam por toda parte

Mas não encontraram Momo.


- Escute, tartaruga, afinal para onde você está me levando? -
perguntou Momo a certa altura.

Naquele momento, as duas atravessavam um escuro pátio interno.

"NÃO TENHA MEDO", foi a resposta que apareceu na carapaça da


tartaruga.

- Não estou com medo - disse Momo, depois de soletrar aquelas


palavras.

Mas ela dizia aquilo mais para si mesma, para se encorajar, pois na
verdade estava meio assustada. O caminho pelo qual a tartaruga a
conduzia tornava-se cada vez mais estranho e tortuoso. Já haviam
atravessado parques, pontes, túneis, portões, grandes vestíbulos, e por
vezes até passagens subterrâneas.

Se Momo soubesse que um verdadeiro exército de homens cinzentos


estava no seu encalço, certamente ainda ficaria muito mais
atemorizada. Mas disso ela não sabia, portanto acompanhava
pacientemente a tartaruga, passo a passo, por aquele seu trajeto que
parecia tão disparatado.

Tal como antes abrira caminho através do tráfego, também agora a


tartaruga parecia saber exatamente o momento em que iam surgir os
inimigos. Às vezes, os homens cinzentos chegavam a algum lugar
apenas um instante depois de elas terem passado. Assim, nunca as
encontravam.

- É uma sorte eu já saber ler tão bem, não é? - perguntou a menina,


inocentemente.

Nas costas da tartaruga, brilhou como um alerta luminoso a palavra:


"SILÊNCIO".

Momo não entendeu por que, mas obedeceu à ordem. Três vultos
escuros passaram bem perto delas.

Na região da cidade que estavam percorrendo, as casas tornavam-se


cada vez mais cinzentas e pobres. Altos prédios de apartamentos, com
o reboco das paredes caindo, ladeavam as ruas esburacadas, cheias de
poças d'água. Tudo era sombrio e deserto.
A Central da Caixa Econômica de Tempo recebera o comunicado de
que Momo tinha sido vista.

- Ótimo! - foi a resposta. - E vocês a capturaram?

- Não. De repente foi como se o chão a tivesse engolido. Assim,


voltamos a perder sua pista.

- Como é possível?

- É o que nós também nos perguntamos. Alguma coisa está errada!

- Onde ela estava a última vez que a viram?

- Pois é essa a questão. Estava numa região da cidade inteiramente


desconhecida para nós.

- Impossível, isso não existe - afirmou a Central.

- Ao que tudo indica, existe, sim. Como se poderia descrevê-la?... É


como se fosse uma região situada no limite do tempo e a menina
caminhasse ao longo desse limite.

- O quê? - gritou a Central. - Retomem a perseguição. A menina deve


ser capturada a qualquer custo. Entenderam?

- Entendemos - foi a resposta cinzenta à ordem ameaçadora.

A princípio, Momo pensou que fosse o amanhecer. Mas aquela luz


fora do comum apareceu de repente, no momento exato em que virou
a esquina daquela rua. Ali já não era noite e também ainda não era
dia. Aquela luz não era de aurora nem de crepúsculo. Era uma luz que
tornava os contornos extraordinariamente nítidos e claros; no entanto,
não parecia vir de lugar algum, ou melhor, parecia vir de todos os
lugares ao mesmo tempo. As sombras longas e escuras projetadas na
rua, até pelas menores pedrinhas, tomavam todas as direções: uma
árvore era iluminada pela esquerda, uma casa pela direita e um
monumento pela frente.

Aliás, o próprio monumento tinha um aspecto muito singular. Sobre


um enorme pedestal cúbico, de pedra preta, destacava-se um
gigantesco ovo branco. Era só isso.
Também as casas eram diferentes de todas as que Momo já vira.
Eram quase ofuscantes de tão brancas. Por trás das janelas havia
apenas uma sombra escura, de modo que era impossível perceber se
havia gente lá dentro. De certo modo, no  entanto, Momo tinha a
impressão de que aquelas casas não tinham sido construídas para
serem habitadas, mas para alguma outra finalidade misteriosa.

Aquelas ruas estavam totalmente vazias, não só de gente, mas


também de cães, pássaros e carros. Nada se movia, como se tudo
estivesse fechado dentro de vidro. Não soprava nem uma brisa.

Momo estava admirada por terem chegado até lá tão depressa,


embora a tartaruga agora caminhasse mais devagar ainda do que
antes.

Longe daquela região estranha da cidade, lá onde era noite, três


automóveis elegantes, com os faróis acesos, percorriam a toda a
velocidade uma rua esburacada. Em cada automóvel iam vários
homens cinzentos. Um deles, que estava no primeiro carro, havia
avistado Momo justamente quando ela virava para entrar na rua das
casas brancas, onde começava aquela claridade fora do comum.

Quando ela dobrou a esquina, aconteceu uma coisa incrível: os


carros pararam de repente. Os motoristas pisavam no acelerador, as
rodas giravam, mas os automóveis não saíam do lugar. Era como se
estivessem numa esteira rolante que se deslocasse, com a mesma
velocidade que eles, em sentido contrário. Quanto mais
aceleravam,  menos avançavam. Ao perceberem isso, os homens
cinzentos pularam de seus carros, praguejando, e tentaram ir a pé no
encalço de Momo, que ainda entreviam ao longe. De cara amarrada,
saíram correndo atrás da menina; quando, porém, tiveram de parar
para tomar fôlego, viram que mal tinham avançado dez metros. Momo
desaparecera na distância, entre as casas brancas como neve.

- Pronto! Acabou-se! - disse um dos homens. - Não vamos mais


conseguir alcançá-la.

- Não compreendo por que não conseguimos sair do lugar! - disse


outro.

- Nem eu! - replicou o primeiro. - O mais importante, porém, é saber


se isso contará como circunstância atenuante quando tivermos de
confessar nosso fracasso.
- Acha que seremos julgados?

- Em todo caso, elogios nós não vamos receber.

Todos os homens que tinham participado da ação estavam


cabisbaixos e sentaram-se nos radiadores e pára-choques dos carros,
pois já não tinham por que se apressar.

Longe, bem longe, em algum lugar em meio ao labirinto das ruas e


praças brancas como neve, Momo continuava seguindo a tartaruga. E,
justamente por andarem tão devagar, as ruas iam ficando para trás
como se deslizassem sob seus pés e as casas pareciam passar voando.

A tartaruga virou mais uma esquina. Momo foi atrás dela e parou,
deslumbrada!

Aquela rua oferecia uma visão totalmente diferente de todas as


outras.

Na verdade, era uma ruela estreita. As casas, que se apertavam


umas contra as outras dos dois lados, pareciam palácios de vidro,
cheios de torrinhas, balcões e terraços, que, depois de permanecerem
imersos no mar durante longo tempo, tivessem acabado de emergir,
cobertos de algas, conchas e corais. O conjunto todo resplandecia em
cores múltiplas, como madrepérola.

A ruela ia dar numa casa isolada, perpendicular às outras, que a


fechava. Em seu centro havia uma grande porta verde, toda
ornamentada cie esculturas.

Momo levantou os olhos para uma placa de mármore branco que


havia no muro e leu: BECO DO NUNCA

A menina levara apenas um instante para decifrar as letras, mas a


tartaruga já estava longe, quase no fim da rua, na frente da última
casa.

- Espere por mim, tartaruga! - gritou Momo. Mas, estranhamente,


não conseguia ouvir sua própria voz.

A tartaruga, no entanto, parecia tê-la ouvido, pois parou e virou-se


para ela.
Momo tentou segui-la, mas quando começou a caminhar pelo Beco
do Nunca teve a sensação de estar lutando contra uma correnteza
poderosa ou uma ventania forte, embora imperceptível, que a
empurrava para trás. Pôs-se de lado para resistir à misteriosa pressão,
tentou avançar agarrando-se às saliências do muro e chegou até a ficar
de quatro. Foi inútil!

- Não consigo caminhar! - gritou Momo para a tartaruga, que já


estava no fim da ruela. - Por favor, me ajude!

A tartaruga foi voltando devagarinho. Quando finalmente chegou


perto de Momo, na sua carapaça apareceu a recomendação: "ANDE DE
COSTAS!"

Momo experimentou. Virou-se e começou a andar de costas. Então,


conseguiu avançar sem dificuldade. No entanto, aconteceu uma coisa
notável com ela. Ao mesmo tempo que caminhava de costas, passou a
pensar ao contrário, a respirar ao contrário, a sentir ao contrário... ou
seja, estava vivendo ao contrário!

Acabou batendo as costas numa coisa sólida, Virou-se e viu que


estava diante da casa que fechava o beco. Assustou-se um pouco, pois,
vista de perto, a porta de metal verde coberta de esculturas parecia
gigantesca.

"Será que consigo abrir esta porta?", pensou Momo, duvidando. Mas,
no mesmo instante, as duas imensas folhas se abriram.

Momo deteve-se ainda por um momento, pois notou uma placa com
uma inscrição logo acima da entrada. A placa, sustentada por um
unicórnio branco, trazia a inscrição:

CASA DE LUGAR NENHUM

Como a menina não sabia ler muito depressa, quando terminou as


duas folhas já iam se fechando devagar. Momo se apressou e ainda
conseguiu entrar antes que a porta imensa se fechasse atrás dela, com
um leve ruído.

Encontrava-se agora num corredor alto, muito longo. À esquerda e à


direita, em intervalos regulares, estátuas nuas de homens e mulheres
pareciam sustentar o teto. Não havia mais vestígio daquela misteriosa
corrente contrária.
Momo seguia a tartaruga, que rastejava pelo corredor comprido. No
final dele, a tartaruga parou diante de uma portinha, tão pequena que
mal dava para a menina entrar.

Na carapaça da tartaruga apareceu mais um aviso: "CHEGAMOS!"

Momo ajoelhou-se e viu em cima da portinha, na frente de seu nariz,


uma plaquinha com a inscrição:

MESTRE SECUNDUS MINUTIUS HORA

Respirou fundo e baixou resolutamente o trinco. Quando a portinha


se abriu, fizeram-se ouvir vindos lá de dentro, numa melodia a muitas
vozes, tique-taques, roncos, campainhas e rangidos. A menina seguiu
a tartaruga e a portinha se trancou atrás delas.
Capítulo Onze
QUANDO OS MAUS TIRAM O MELHOR PARTIDO DO QUE É RUIM
 

Na luz cinzenta de infindáveis corredores e gaIerias, agentes da Caixa


Econômica de Tempo agitavam-se e faziam correr as últimas notícias:
todos os membros da diretoria haviam sido convocados para uma
assembléia extraordinária!

Segundo alguns, só podia ser sinal de que havia surgido algum


grande perigo.

Segundo outros, era sinal de que haviam surgido novas


oportunidades de se ganhar tempo.

No enorme salão de reuniões, encontravam-se os homens cinzentos


da diretoria.

Sentavam-se um ao lado do outro, numa mesa interminavelmente


longa. Cada um deles, como sempre, levava uma pasta cinza-chumbo
e fumava seu pequeno charuto cinzento. Só não estavam com os
chapéus costumeiros, revelando que todos tinham carecas reluzentes
como espelhos.

A atmosfera, se é que se podia falar em atmosfera em se tratando


dos homens cinzentos, era pesada.

O presidente, à cabeceira da longa mesa, levantou-se. Cessaram os


murmúrios e duas fileiras intermináveis de rostos cinzentos voltaram-
se para ele.

- Senhores - ele disse -, nossa situação é muito séria. Sinto-me no


dever de pô-los imediatamente a par de fatos desagradáveis mas
inegáveis.

"Quase todos os nossos agentes disponíveis foram empregados na


procura da menina Momo. Essa busca durou seis horas, treze minutos
e oito segundos. Os agentes nela empenhados foram forçados a
negligenciar o objetivo de suas próprias existências, ou seja, obter
tempo. A esse déficit, devemos acrescentar o tempo que nossos
homens gastaram nas buscas. Esses dois itens representam uma perda
de tempo que, de acordo com os cálculos mais exatos, soma um
prejuízo de três bilhões setecentos e trinta e oito milhões duzentos e
cinquenta e nove mil cento e catorze segundos.

"Ora, senhores, é mais do que a vida inteira de um ser humano! Não


preciso dizer o que isso significa para nós."

O presidente parou, apontando com um gesto largo para uma


imensa porta de aço cheia de números e fechaduras de segurança, na
parede de um dos lados da sala.

- Nossos estoques de tempo, meus senhores - gritou ele, levantando


a voz -, não são inesgotáveis. Se pelo menos as buscas tivessem tido
êxito! Mas o tempo gasto com elas foi totalmente perdido. A menina
escapuliu de nossas mãos.

"Fato semelhante simplesmente não pode se repetir, senhores. No


futuro, hei de me opor categoricamente a qualquer empreendimento
que implique gastos tão elevados. Precisamos poupar, meus senhores,
e não desperdiçar! Peço-lhes pois que, ao elaborar quaisquer outros
planos, tenham sempre isso em mente. É só o que tenho a
dizer. Obrigado!"

Sentou-se e lançou grossas baforadas de fumaça. Os outros


começaram a sussurrar, inquietos.

Nisso levantou-se um outro orador, que se encontrava do outro lado


da longa mesa, e todos os rostos voltaram-se para ele.

- Senhores - começou ele -, o desejo de que a Caixa Econômica de


Tempo tenha sucesso está no coração de todos nós. Parece-me, no
entanto, inteiramente desnecessário nos deixarmos perturbar por esse
caso ou transformá-lo quase numa catástrofe. Nada está mais longe da
realidade. Sabemos que nosso estoque de tempo já atinge tais
quantias que, mesmo submetidos a muitos outros prejuízos como este
não estaríamos correndo perigo sério. Afinal, o que é para nós a vida
de um ser humano? Na verdade, uma ninharia!

"Contudo, estou de acordo com nosso respeitável presidente quando


diz que um tal fato não deve se repetir. No entanto, o caso da menina
Momo é único. Jamais até hoje ocorreu algo semelhante, e é
absolutamente improvável que volte a ocorrer no futuro.
"Finalmente, nosso presidente censurou-nos, com razão, por termos
deixado a menina Momo escapar. Mas nosso intuito, afinal, não era
tornar a menina inofensiva? Ora, esse objetivo foi plenamente
atingido! Momo desapareceu, fugiu para além da esfera do tempo.
Estamos livres dela. Acho, pois, que podemos nos dar por
satisfeitos com esse resultado."

O orador sentou-se com um sorriso de satisfação. Ouviram-se alguns


aplausos isolados.

Levantou-se um terceiro orador, que estava sentado ao centro da


longa mesa.

- Serei breve - disse ele, com a cara fechada. - Considero


inteiramente irresponsáveis as palavras de tranquilização que
acabamos de ouvir. A menina em questão não é uma criança comum.
Sabemos que ela possui certos dons que podem  ser extremamente
perigosos para nós e nossos negócios. O fato de um incidente como
esse nunca ter ocorrido até hoje não quer dizer que não possa se
repetir.

Devemos nos manter atentos. Não poderemos nos dar por satisfeitos
enquanto não tivermos essa menina inteiramente em nosso poder. É o
único meio de termos certeza de que ela não nos prejudicará mais. Se
ela foi capaz de transpor a esfera do tempo, também poderá voltar a
qualquer momento. E voltará.

O orador se sentou. Os demais membros da diretoria baixaram a


cabeça, humilhados.

Um quarto orador, sentado na frente do terceiro, tomou a palavra.

- Meus senhores, perdoem-me, mas preciso falar com franqueza. Até


agora ficamos apenas rodeando o assunto. Temos de encarar o fato de
que há um estranho poder envolvido nesse caso. Examinei todos os
aspectos, nos menores detalhes. A probabilidade de que uma criança
humana viva seja capaz de transpor por vontade própria a esfera o
tempo é de um para quarenta e dois milhões. Em outras palavras, é
praticamente impossível.

Um murmúrio de agitação fez-se ouvir entre os membros da


diretoria.
- Tudo indica que Momo recebeu ajuda de alguém para escapar à
nossa perseguição.

Os senhores sabem a quem me refiro. Trata-se do assim chamado


Mestre Hora.

Ao ouvirem esse nome, alguns dos homens cinzentos se encolheram,


como se tivessem levado uma pancada, enquanto outros puseram-se
de pé, gritando e gesticulando.

- Senhores, por favor! - prosseguiu o orador, estendendo os braços. -


Peço-lhes que se controlem! Sei tão bem quanto os senhores que
pronunciar esse nome não é, digamos, de bom-tom, e eu mesmo só o
faço com grande relutância. Mas queremos e precisamos ser claros! Se
o tal fulano ajudou Momo, teve razões para isso. E  essas  razões, é
claro, são dirigidas contra nós. Em resumo, senhores, devemos levar
em consideração que o tal fulano não só mandará a criança de volta
como também lhe dará instruções para nos combater. A menina será
então, para nós, um perigo mortal! Assim, além de estarmos
preparados para sacrificar mais uma vez o tempo de uma vida
humana, ou de muitas, teremos de empregar todos, repito, todos os
nossos recursos, senhores! Caso contrário, nossa economia poderá nos
custar terrivelmente caro. Creio que todos me entenderam.

O nervosismo cresceu entre os homens cinzentos, e começaram a


falar todos ao mesmo tempo. Um quinto orador pulou da cadeira e
agitou violentamente os braços:

- Calma! Calma! - gritou ele. - O nosso colega, infelizmente, ateve-se


a sugerir todos os tipos de catástrofe possíveis. No entanto, ele mesmo
não sabe o que devemos fazer contra elas. Diz que devemos estar
preparados para tudo... muito bem! Que não devemos poupar nossos
recursos... muito bem! Mas tudo isso são palavras vazias. Ele que nos
diga o que podemos realmente fazer. Ninguém de nós sabe, na
verdade, com que armas a tal menina Momo irá nos enfrentar!
Estamos diante de um perigo inteiramente desconhecido. Esse é, de
fato, o nosso problema.

O barulho da sala transformou-se em tumulto. Cada um berrava


mais do que os outros, alguns esmurravam a mesa, outros cobriam o
rosto com as mãos, estavam todos tomados pelo pânico.

Com muita dificuldade, um sexto orador se fez ouvir.


- Senhores, por favor! - repelia ele, tentando acalmá-los, até
conseguir silêncio. - Peço que se mantenham tranquilos e razoáveis.
No momento é isso o mais importante. Suponhamos que a menina
Momo volte do tal lugar, até mesmo armada. Ainda assim, não teremos
necessidade de nos lançar pessoalmente no combate. Não somos
especialmente aptos a tais confrontos, como ficou demonstrado pelo
caso infeliz do nosso agente BLW/553/c, há pouco liquidado. Nem isso
será necessário. Afinal, temos um número suficiente de cúmplices
entre os seres humanos. Se soubermos utilizá-los com inteligência e
discrição, meus senhores, poderemos fazer sumir do mundo a menina
Momo e todo o perigo que ela representa, sem nunca aparecermos
abertamente. Essa tática será econômica, sem riscos e altamente
eficaz.

Houve um suspiro de alívio na assembléia. A proposta agradou a


todos. Sem dúvida teria sido aceita imediatamente, se na outra ponta
da mesa um sétimo orador não tivesse tomado a palavra.

- Senhores, estamos apenas pensando em uma maneira de nos livrar


da menina Momo.

Devemos reconhecer que estamos sendo levados a isso pelo medo.


Mas o medo, meus senhores, é mau conselheiro. Parece-me que
estamos perdendo uma oportunidade realmente única. Diz um ditado:
"Se não puder vencê-los, alie-se a eles." Por que não procuramos trazer
a menina para o nosso lado?

- Vá em frente! Continue! Ouçam todos! - gritaram várias vozes ao


mesmo tempo.

- É óbvio - prosseguiu o orador - que essa criança encontrou o


caminho para chegar ao tal fulano, caminho esse que desde o início
temos procurado em vão.

Ora, a menina voltará a encontrá-lo e poderá nos levar até lá.


Negociaremos então com o tal fulano segundo nossos próprios
métodos. Estou certo de que o conseguiremos num instante. E, assim
que ocuparmos o lugar dele, não seremos mais obrigados a nos
esforçar tanto para obter horas, minutos ou segundos. De um só golpe,
seremos os donos do tempo de todas as pessoas do mundo. Quem
possui todo o tempo dos seres humanos tem poder ilimitado!
Imaginem, senhores, se alcançarmos nosso alvo! Para isso, Momo, de
quem estão querendo se livrar, poderá nos ser útil!
Um silêncio de morte tomou conta da sala.

- Mas todos sabem - gritou um dos presentes - que é impossível


mentir para essa menina! Lembrem-se do agente BLW/553/c; qualquer
um de nós teria o mesmo destino.

- Ora, quem falou em mentir? - perguntou o orador. Nós lhe


contaremos nossos planos com toda a franqueza.

- Mas então ela não nos ajudará! - gritou um outro. - Essa ideia é
simplesmente absurda!

- Não tenho tanta certeza disso - interferiu um nono participante. - É


claro que teríamos que lhe oferecer alguma coisa atraente. Estou
pensando que lhe  poderíamos prometer, por exemplo, todo o tempo
que ela quiser...

- Promessa que jamais cumpriríamos - interferiu outro participante


da assembléia.

- Claro que teríamos que cumprir - replicou ainda outro, com um


sorriso gélido.

- Se tivéssemos a intenção de não agir corretamente, ela sentiria


imediatamente.

- Não, não! - declarou o presidente, batendo com o punho fechado na


mesa. - Não posso de modo algum consentir em tal coisa! Se formos
obrigados a lhe ceder todo o tempo que ela quiser, isso nos custará
uma fortuna!

- Nem tanto! - retrucou o orador, acalmando-o. - Quanto tempo uma


criança é capaz de gastar realmente? Decerto seria uma pequena
despesa permanente, mas pensem no que ganharíamos em troca! O
tempo de todos os seres humanos! O pouco que Momo gastaria seria
lançado como despesa. Pensem nas imensas vantagens que teríamos,
senhores!

O orador sentou-se e todos puseram-se a pensar nas vantagens!

- Seja como for - disse o sexto orador, finalmente -, não daria certo!

- Por que não?


- Pela simples razão de que essa criança infelizmente dispõe de todo
o tempo de que necessita. Não adianta procurar suborná-la com uma
coisa que ela já tem de sobra!

- Então primeiro teremos que lhe tirar esse tempo - concluiu o nono
orador.

- Meus senhores - disse o presidente, cansado. - Estamos


caminhando em círculo.

O fato é que não conseguimos apanhar a menina.

Das longas fileiras dos membros da diretoria, levantou-se um suspiro


de desânimo.

- Tenho uma sugestão - anunciou um décimo orador. Com licença?

- A palavra é sua! - respondeu o presidente.

Após inclinar-se diante do presidente, o homem começou a falar:

- Essa criança é muito dedicada aos amigos. Ela adora dar seu tempo
aos outros.

Vamos imaginar, então, o que aconteceria se não restasse ninguém


para partilhar o tempo com ela! Se a menina não quiser cooperar
conosco voluntariamente, bastará nos apoderarmos de seus amigos.

Tirou da pasta um fichário e abriu-o:

- Os principais atingidos deverão ser um tal Beppo Varredor e um tal


Gigi Guia.

Também tenho uma longa lista de crianças que costumam visitá-la


frequentemente.

Como vêem, senhores, o caso não é difícil.

"Simplesmente afastaremos todas essas pessoas de Momo, de modo


que ela não consiga mais encontrá-las. Então a pobre menina acabará
ficando completamente só. Que valor o tempo terá para ela? Acabará
se transformando num peso, até numa maldição. Mais cedo ou mais
tarde, ela não conseguirá mais suportá-lo.
"Então, meus senhores, será o momento de impormos nossas
condições. Aposto mil anos contra um décimo de segundo que ela nos
mostrará o caminho desejado para, em troca, ter seus amigos de volta.

Os homens cinzentos, que momentos antes estavam tão abatidos,


levantaram a cabeça. Traziam nos lábios um sorriso mordaz e
triunfante. Bateram palmas, e seus aplausos ressoaram pelos
corredores e galerias intermináveis como o barulho de uma avalanche
de pedras.
Capítulo Doze

MOMO CHEGA AO LUGAR DE ONDE VEM O TEMPO


 

Momo estava agora numa sala enorme, a maior que já tinha visto na
vida. Era maior do que a mais imensa das igrejas ou a mais ampla das
estações de trem.

Grossas colunas sustentavam o teto, que lá no alto, no meio da


escuridão, mais se adivinhava do que se via. Não havia janelas. A
claridade dourada e tênue que cintilava na sala imensa provinha de
inúmeras velas, dispostas por todos os lados, cujas chamas eram tão
estáticas que pareciam ter sido pintadas em cores luminosas e não
precisar de cera para luzir.

Os milhares de sons de roncos, tique-taques, campainhas e rangidos


que Momo ouvira ao entrar provinham cie inúmeros relógios cie todos
os tamanhos e feitios. Uns estavam em pé ou deitados em longas
mesas, dentro de vitrines de vidro, em mísulas douradas ou sobre
prateleiras intermináveis.

Havia minúsculos relógios de bolso ornados com pedras preciosas,


despertadores comuns de metal, ampulhetas, relógios com caixinhas
cie música e bonequinhas que dançavam, relógios de sol, relógios de
madeira e relógios de pedra, relógios de vidro e outros movidos a
água. Pendurados nas paredes havia relógios-cuco de vários tipos,
relógios de pesos, relógios de pêndulos grandes que oscilavam
devagar e solenemente, outros de pêndulos pequenos que se moviam
muito depressa de um lado para outro. À altura de um primeiro andar,
havia uma galeria que rodeava toda a sala, e a ela se chegava por uma
escada em espiral. Mais acima, havia uma segunda galeria, e depois
outra e mais outra. Por todo lado viam-se relógios em pé, deitados ou
pendurados. Havia também relógios em forma de esfera, que
marcavam as horas de todas as regiões do mundo, e planetários
grandes e pequenos, com Sol, Lua e estrelas. No centro da sala, erguia-
se como que uma floresta de relógios de pé, desde os relógios de
salão, de tamanho comum, até verdadeiros relógios de torres de igreja.

Não havia um só momento em que não se ouvisse algum relógio


batendo ou tilintando, pois cada um deles marcava uma hora
diferente.

No entanto, não era um barulho desagradável. Era um murmúrio


constante, que lembrava o ruído de uma floresta no verão.

Momo passeava pela sala, observando com olhos arregalados


aquelas raridades.

Parou diante de um relógio musical, ricamente trabalhado, no qual


havia duas delicadas figurinhas de mãos dadas, uma mulherzinha e
um homenzinho, como se fossem dançar A menina estava até
pensando em lhes dar um empurrãozinho para ver se começavam a
dançar, quando ouviu uma voz amável dizer:

- Ah! Então você está de volta, Cassiopéia! E trouxe a pequena


Momo?

A menina se virou e viu, num dos corredores entre os relógios de pé,


um elegante senhor de cabelos prateados, agachado para olhar para a
tartaruga, que estava no chão a seus pés. O homem usava um casaco
comprido bordado de dourado, calções de seda azul, meias brancas e
sapatos com grandes fivelas douradas. Pela gola e pelos punhos do
casaco apareciam rendas, e os cabelos prateados eram presos na nuca,
formando um rabicho. Momo nunca tinha visto trajes como aqueles,
mas alguém menos ignorante do que ela reconheceria imediatamente
a moda de duzentos anos atrás.

- O que você disse? - perguntou o velho senhor, sempre agachado


perto da tartaruga. - Ela veio? E onde ela está?

Ele colocou uns óculos pequeninos, parecidos com os do velho


Beppo, só que eram de ouro, e começou a procurar à sua volta.

- Estou aqui! - gritou Momo.

Com um sorriso alegre e as mãos estendidas, o velho senhor foi ao


encontro dela.

Momo teve a impressão de que, a cada passo que dava, ele se


tornava mais jovem.

Quando afinal se encontraram e ele apertou-lhe as duas mãos


cordialmente, parecia não ser mais velho do que a própria menina.
- Bem-vinda! - exclamou alegremente. - Afetuosas boas vindas à
Casa de Lugar Nenhum. Peço licença, querida Momo, para me
apresentar: sou Mestre Hora, Secundus Minutius Hora.

- Estava mesmo me esperando? - perguntou Momo, admirada.

- Decerto, pois até mandei minha tartaruga Cassiopéia


especialmente para buscar você!

Tirou do bolsinho do colete um pequeno relógio cravejado de


brilhantes e fez saltar sua tampinha.

- Você até chegou com extraordinária pontualidade - disse ele,


sorrindo e mostrando o relógio à menina.

Momo notou que não havia ponteiros nem números, apenas duas
espirais muito finas, colocadas uma sobre a outra, em sentidos
opostos, que se moviam muito devagar. No lugar em que as linhas se
cruzavam, apareciam de quando em quando minúsculos pontos
luminosos.

- Este é um relógio estelar. Ele marca fielmente as raras horas


estelares, e exatamente agora começou uma delas.

- O que é uma hora estelar? - perguntou Momo.

- Bem - explicou Mestre Hora -, no correr do mundo há momentos


especiais em que todos os seres e coisas, até a estrela mais distante,
conjugam-se de um modo singular, podendo então ocorrer alguma
coisa que, antes ou depois, seria impossível. Infelizmente, em geral as
pessoas não sabem aproveitá-las, e as horas estelares acabam
passando despercebidas. Mas, quando alguém as reconhece, grandes
coisas acontecem então no mundo.

- Talvez seja preciso ter um relógio como o seu para reconhecê-las -


observou Momo.

Mestre Hora sacudiu a cabeça negativamente e sorriu:

- O relógio por si só não adiantaria a ninguém. É preciso saber lê-lo.

Com um rápido estalo fechou de novo o reloginho e colocou-o no


bolso do colete.
Depois, notando o olhar de espanto de Momo diante de sua
aparência, olhou para baixo examinando a si mesmo, franziu a testa e
disse:

- Ah! Acho que estou meio atrasado quanto à moda! Que descuido, o
meu! Vou já corrigir isso!

Estalou os dedos e imediatamente apareceu de sobrecasaca e


colarinho duro.

- Estou melhor assim? - perguntou, na dúvida. Vendo, porém, a


expressão perplexa da menina, acrescentou rapidamente:

- Não, claro que não! Onde estou com a cabeça? Estalou de novo os
dedos e surgiu com uma roupa que nem Momo nem ninguém jamais
poderia ter visto, pois só estaria em moda cem anos depois.

- Também não? - disse ele, consultando Momo. - Ora, por Órion, está
difícil acertar! Espere, vou tentar de novo.

Estalou os dedos pela terceira vez e, finalmente, apareceu diante da


menina com um traje de passeio como os que se usavam comumente.

- Assim está bem, não é? - perguntou ele, dando uma piscadela. -


Espero não ter assustado você, Momo. Foi só uma brincadeira. Agora,
querida menina, está na hora de convidá-la para vir até a mesa. O café
da manhã está pronto. Você fez uma longa viagem e espero que
aprecie a refeição.

Tomou-a pela mão e a conduziu através da floresta de relógios. A


tartaruga ia um pouco atrás deles. O caminho que seguiam fazia voltas
e mais voltas, como um labirinto de jardim, desembocando finalmente
numa salinha cujas paredes eram formadas pela parte de trás de
algumas das imensas caixas dos relógios. A um canto, viam-se uma
mesinha de pernas recurvadas e um elegante sofá com poltronas
combinando. Também ali tudo era iluminado pelas velas com as
chamas estáticas.

Sobre a mesinha havia um bule dourado bojudo, duas xicrinhas com


os respectivos pires, colherinhas e facas, tudo de ouro maciço. Numa
cestinha havia pãezinhos dourados e crocantes; numa vasilhinha,
manteiga amarelo-ouro; em outra, mel que parecia ouro líquido.
Mestre Hora pegou o bule bojudo e verteu chocolate quente nas duas
xícaras, oferecendo com um gesto amável:

- Por favor, minha querida hóspede, sirva-se à vontade! Momo não


esperou novo convite. Até então, nem sabia que existia chocolate de
beber. Pãezinhos com manteiga e mel eram uma raridade em sua vida.
E aqueles estavam especialmente deliciosos!

Assim, no começo ficou inteiramente entretida com a maravilhosa


refeição, saboreando-a de boca cheia, sem pensar em mais nada.
Surpreendentemente, enquanto ela comia, todo o seu cansaço ia
desaparecendo, sentia-se disposta e revigorada, embora não tivesse
dormido um só instante durante toda a noite.

Quanto mais comia, mais achava tudo saboroso! Tinha a impressão


de que seria capaz de passar o dia inteiro comendo.

Mestre Hora olhava-a amavelmente, tendo a delicadeza de, no início,


não a importunar com conversa. Compreendia que sua pequena
hóspede tinha de saciar a fome de muitos anos. Talvez por essa razão,
à medida que a observava ele ia envelhecendo novamente, até se
tornar outra vez um homem de cabelos brancos. Ao perceber que
Momo não sabia manejar bem a faca, foi passando manteiga e mel nos
pãezinhos e colocando-os diante da menina Ele mesmo comia muito
pouco, só para lhe fazer companhia.

Finalmente, Momo ficou satisfeita. Bebendo o chocolate, lançou, por


cima da xícara dourada, um olhar curioso para seu anfitrião, tentando
adivinhar quem era ele. Percebia, é claro, que não se tratava de uma
pessoa comum, mas até agora nada sabia a seu respeito, a não ser seu
nome.

- Por que você mandou a tartaruga me buscar? - perguntou ela,


pousando a xícara.

- Para protegê-la dos homens cinzentos - respondeu Mestre Hora,


com toda a seriedade. - Estão todos à sua procura, por toda parte, e o
único lugar onde você está segura é aqui comigo

- Eles querem me fazer algum mal? - perguntou a menina,


assustada.

- Querem, sim, minha menina! - suspirou Mestre Hora. Com certeza!


- Por quê?

- Têm medo de você - explicou Mestre Hora -, pois você lhes causou o
que há de pior para eles.

- Mas eu não fiz nada contra eles! - retrucou Momo.

- Fez, sim! Você levou um deles a se trair. Depois contou tudo a seus
amigos Vocês até quiseram dizer a todo o inundo a verdade sobre os
homens cinzentos.

Não acha que é o suficiente para torná-los seus inimigos mortais?

- Mas a tartaruga e eu atravessamos todo o centro da minha cidade -


respondeu Momo. - Se estão me procurando por toda parte, teria sido
fácil me pegarem. Além do mais, andamos sempre muito devagar.

Mestre Hora pegou a tartaruga, que se acomodara a seus pés,


colocou-a no colo e lhe fez cócegas no pescoço.

- O que você acha, Cassiopéia? - ele perguntou, sorrindo. - Eles


poderiam ter pego vocês?

Na carapaça da tartaruga apareceu a palavra "NUNCA", e as letras


cintilavam tão alegremente que até se tinha a impressão de ouvir um
risinho.

- Cassiopéia consegue enxergar um pouco o futuro - explicou Mestre


Hora. - Não muito, mas ainda assim com uma antecedência de mais ou
menos meia hora "EXATAMENTE", viu-se escrito nas suas costas.

- Desculpe - corrigiu-se Mestre Hora -, exatamente meia hora. Ela


sabe com certeza o que vai acontecer na próxima meia hora. Sabia,
portanto, se ia encontrar os homens cinzentos ou não.

- Puxa - exclamou Momo, maravilhada -, mas isso é muito prático! Se


ela sabia de antemão onde iria encontrar os homens cinzentos, então
era só tomar outro caminho?

- Não - respondeu Mestre Hora -, infelizmente não é tão simples


assim. O fato de saber as coisas com antecedência não quer dizer que
possa mudá-las. Ela só fica sabendo o que vai realmente acontecer.
Assim, ao saber que encontraria os homens cinzentos aqui ou ali, não
poderia deixar de encontrá-los. Não poderia fazer nada para evitar.
- Não estou entendendo - disse Momo, desapontada. Então não
adianta nada saber as coisas com antecedência.

- Às vezes adianta - replicou Mestre Hora. - No seu caso, por exemplo,


a tartaruga sabia que passaria por este e aquele caminho e que não
encontraria os homens cinzentos. Já é alguma coisa, você não acha?

Momo ficou calada. Seus pensamentos se emaranhavam como num


novelo.

- Mas, voltando a você e seus amigos - prosseguiu Mestre Hora -,


quero felicitá-la. Seus cartazes e faixas me impressionaram muito
bem.

- Você os leu? - perguntou Momo, contente.

- Todos, palavra por palavra! - respondeu Mestre Hora.

- Foi uma pena! Acho que ninguém mais leu - disse a menina.

Mestre Hora acenou afirmativamente com a cabeça:

- É, foi uma pena! E os responsáveis por isso foram os homens


cinzentos.

- Você os conhece bem? - indagou Momo.

Mestre Hora voltou a balançar a cabeça, confirmando, e suspirou:

- Sim, eu os conheço e eles me conhecem.

- Já esteve muitas vezes com eles?

- Não, nunca. Nunca saio da Casa de Lugar Nenhum.

- Mas então os homens cinzentos às vezes vêm até aqui?

Mestre Hora sorriu:

- Não se preocupe, minha querida Momo! Eles não poderiam entrar


aqui, mesmo que conhecessem o caminho até o Beco do Nunca. E, de
qualquer modo, não conhecem.
Momo ficou um momento pensativa. Ficara mais tranquila com a
explicação de Mestre Hora, mas tinha vontade de saber mais a respeito
dele.

- Como é que você sabe de tudo isso - ela voltou a perguntar -, quer
dizer, sobre os nossos cartazes e os homens cinzentos?

- Estou sempre de olho neles e em tudo o que tem relação com eles -
declarou Mestre Hora. - Por isso também andei vigiando você e seus
amigos.

- Mas você nunca sai desta casa!

- Nem é preciso! - disse Mestre Hora, tornando-se de novo


visivelmente mais jovem. - Afinal de contas, tenho os meus óculos de
visão global.

Então ele tirou seus pequenos óculos de ouro e estendeu-os para


Momo.

- Quer dar uma olhada?

A menina pôs os óculos, piscou, forçou os olhos e disse:

- Não estou enxergando absolutamente nada!

De fato, ela só via uma mistura de cores, luzes e sombras


indefinidas. Chegou até a ficar meio tonta,

- No começo é assim mesmo - a menina ouviu Mestre Hora explicar. -


Não é muito fácil enxergar com os óculos de visão global. Mas logo
você vai se acostumar!

Ele se levantou, postou-se atrás da cadeira de Momo e segurou de


leve no aro dos óculos. Imediatamente a imagem se fez clara Momo
viu primeiro o grupo de homens cinzentos nos três carros, no limite da
região da cidade que tinha aquela luminosidade estranha. Estavam
justamente tentando fazer os carros voltarem.

Olhando mais para longe, viu outros grupos nas ruas da cidade,
gesticulando e falando agitadamente uns com os outros, como se
estivessem trocando informações.
- Estão falando de você - explicou Mestre Hora. - Não conseguem
entender como conseguiu escapar deles.

- Por que eles têm o rosto tão cinzento? - perguntou Momo,


continuando a observá-los.

- Porque nutrem sua existência de algo morto - respondeu Mestre


Hora. - Como  você sabe, o que mantém sua existência é o tempo de
vida dos seres humanos. Mas esse tempo morre, literalmente, quando
é arrancado de seu verdadeiro dono. Pois cada pessoa tem seu tempo.
E esse tempo só permanece vivo enquanto é, de fato, dela.

- Então os homens cinzentos não são seres humanos?

- Não, só adquiriram a forma humana.

- O que eles são, então?

- Na verdade não são nada.

- De onde eles vêm?

- Eles surgem porque as pessoas lhes dão oportunidade para surgir.


Basta isso para acontecer. E agora as pessoas estão dando
oportunidade para que eles as dominem. Também isso basta para que
possa acontecer.

- E se eles não conseguissem mais roubar tempo nenhum?

- Seriam obrigados a voltar ao nada de onde vieram. Mestre Hora


tirou os óculos de Momo e guardou-os.

- Infelizmente - continuou depois de uma pausa -, agora eles já têm


muitos cúmplices entre os seres humanos. O ruim é isso.

- Pois eu não vou deixar ninguém roubar o meu tempo! afirmou


Momo, decidida.

- Espero que não - disse Mestre Hora. - Venha, Momo, quero lhe
mostrar minha coleção.

Agora estava de novo com aparência de velho.


Tomou Momo pela mão e levou-a de volta à enorme sala. Lá ele lhe
mostrou este e aquele relógio, pôs caixinhas de música para funcionar,
mostrou-lhe os relógios que marcavam o tempo do mundo e também
os planetários. Diante da alegria que sua pequena hóspede mostrava
ao ver todas aquelas maravilhas, ele foi se tornando, novamente, cada
vez mais jovem.

- Você gosta de enigmas? - ele perguntou de passagem, enquanto


continuavam perambulando.

- Gosto muito! - respondeu Momo. - Você sabe algum?

- Sei - disse ele, sorrindo. - Mas é muito difícil. Pouca gente consegue
decifrá-lo.

- Ótimo! - disse Momo. - Então quero aprendê-lo para depois ensiná-


lo para meus amigos.

- Estou curioso para ver se você vai ser capaz de decifrá-lo - disse
mestre Hora. - Então preste atenção.

"Moram numa casa três parentes, ou melhor, três irmãos diferentes.

Mas cada um se parece com os outros dois.

O primeiro não está, só vai chegar depois.

O segundo não está, já foi embora.

Só o terceiro está em casa agora.

Sem ele não haveria os outros no mundo.

E ele existe porque o primeiro vira o segundo.

Se você olhar bem não vai ver o terceiro,

só vai enxergar o segundo ou o primeiro.

Então me diga: serão os três apenas um?

Ou serão dois, ou até nenhum?

Esses senhores são os três governantes


de um mesmo reino, dos mais importantes,

e que é eles mesmos além do mais.

Dentro desse reino eles são iguais."

Mestre Hora olhou para Momo, balançando a cabeça para animá-la.


Ela ouvira atentamente, e, como tinha excelente memória, repetiu o
enigma lentamente, palavra por palavra.

- Ufa! - suspirou ela. - É difícil mesmo! Não tenho a menor ideia da


resposta e nem sei por onde começar.

- Experimente! - disse Mestre Hora, estimulando-a. Momo repetiu de


novo o enigma inteiro. Depois balançou a cabeça.

- Não sei mesmo! - disse, desistindo.

Cassiopéia tinha se aproximado. Estava aos pés de Mestre Hora e


observava Momo atentamente.

- Então, Cassiopéia, já que você sabe tudo com meia hora de


antecedência, diga lá: Momo vai resolver o enigma ou não vai? -
perguntou Mestre Hora.

A resposta apareceu nas costas da tartaruga: "VAI RESOLVER".

- Está vendo? - disse ele à menina. - Você vai acertar, Cassiopéia


nunca se engana!

Momo franziu a testa, esforçando-se para adivinhar. Quem eram


aqueles três irmãos que moravam na mesma casa? Claro que não se
tratava de seres humanos. Em enigmas, irmãos eram em geral
sementes de maçã, os dentes, ou coisas desse tipo.

No caso, porém, eram três irmãos que de certo modo se


transformavam um no outro.

Que coisas existiam que se transformavam uma na outra? Momo


olhou em volta.

Havia, por exemplo, aquelas velas com as chamas estáticas. A cera,


através da chama, se transformava em luz. Sim, eram três irmãos. Mas
não dava certo, pois os três estavam ali, e no enigma dois irmãos não
estavam em casa. Talvez fosse alguma coisa como flor, fruto, e
semente. É, podia ser, mesmo. A semente, era o menor dos três
irmãos. E quando ela estava os outros dois não estavam. Mas não era
isso! Olhando-se para a semente dava para vê-la muito bem. E o
enigma dizia que, quando se olhava o terceiro irmão, só se enxergava
o segundo ou o primeiro.

Os pensamentos da menina vagueavam por todos os lados. Não


conseguia encontrar nenhuma pista que a levasse adiante. Mas
Cassiopéia tinha dito que ela conseguiria encontrar a resposta. Momo
então começou tudo de novo e, mais uma vez, foi repetindo
devagarinho as palavras do enigma. Quando pronunciou as palavras:
"O primeiro não está, mas chega logo depois", viu a tartaruga
piscando para ela. Nas suas costas apareceram as palavras "AQUILO
QUE EU SEI", que se apagaram logo depois.

- Quieta, Cassiopéia - disse Mestre Hora, sorrindo, sem ter olhado


para a tartaruga. - Não diga nada. Momo vai conseguir responder
sozinha.

Naturalmente, a menina leu o que tinha aparecido nas costas da


tartaruga e começou a imaginar o que significaria aquilo. O que
Cassiopéia sabia? Ela sabia que Momo ia decifrar o enigma. Mas isso
não fazia sentido.

O que mais ela sabia? Cassiopéia sempre sabia o que iria acontecer.
Ela sabia...

- O futuro! - exclamou Momo. - O primeiro não está, só vai chegar


depois... é o futuro!

Mestre Hora balançou a cabeça, confirmando.

- E o segundo - continuou Momo - não está, já foi embora... então é o


passado!

Mestre Hora confirmou mais uma vez, sorrindo satisfeito.

- Mas agora - continuou a menina, pensativa -, agora está mais difícil.


Quem será o terceiro? É o menor dos três, sem ele os dois outros não
existiriam... e é o único que está em casa.

Refletiu um pouco e gritou de repente:


- É agora! É este momento! O passado são os momentos que já se
foram e o futuro são os que ainda estão para vir. E os dois não
existiriam se não houvesse o presente. É isso!

As bochechas de Momo estavam coradas de entusiasmo:

- Mas o que quer dizer o que vem a seguir? "E ele existe porque o
primeiro vira o segundo." Ah, já sei, significa que o presente só existe
porque o futuro vira passado.

Olhou para Mestre Hora, admirada.

- É verdade, e eu nunca tinha pensado nisso antes. Mas então o


momento presente na verdade não existe, só existem o passado e o
futuro? Por exemplo, este momento... falei nele e já se tornou passado.
Agora também entendo o que quer dizer: "Se você olhar bem não vai
ver o terceiro, só vai enxergar o segundo ou o primeiro." Também estou
entendendo o resto, pois podemos pensar que existe apenas um dos
três irmãos, isto é, o presente, ou só passado e futuro. Ou nenhum,
pois um só existe se existirem os outros dois! Nossa, tudo isso é de
virar a cabeça!

- Mas o enigma ainda não acabou - disse Mestre Hora. Qual é o


grande reino que os três governam juntos, e o que é eles mesmos?

Momo voltou-se para ele, atordoada. O que seria? O que seria o


passado, o presente e o futuro, tudo junto?

Momo olhou toda a sala imensa à sua volta. Seu olhar percorreu os
milhares e milhares de relógios e, de repente, sua expressão se
iluminou.

- O tempo! - ela gritou, batendo palmas. - É o tempo! Isso mesmo, o


tempo!

E Momo pulava de alegria.

- E agora me diga que casa é essa em que moram os três irmãos? -


indagou Mestre Hora.

- É o mundo - respondeu a menina.

- Muito bem - exclamou Mestre Hora, batendo palmas também. -


Parabéns, Momo!
Você é ótima em enigmas! Gostei de ver!

- Eu também! - disse a criança, que no fundo perguntava a si mesma


por que Mestre Hora teria ficado tão contente por ela ter conseguido
resolver o enigma.

Continuaram passeando pela sala cheia de relógios. Mestre Hora lhe


mostrava muitas outras coisas interessantes, mas Momo ainda estava
com o pensamento voltado para o enigma.

- Diga-me uma coisa - perguntou ela, finalmente -, na verdade, o que


é o tempo?

- Você mesma acabou de descobrir isso! - respondeu Mestre Hora.

- Não - explicou Momo -, o tempo em si. Deve ser alguma coisa!


Afinal, ele existe. O que é realmente o tempo?

- Seria bom se você também conseguisse responder a isso sozinha -


disse Mestre Hora.

Momo ficou muito tempo pensativa.

- Ele existe - murmurou ela, absorta -, isso é certo. Mas não se pode
pegar o tempo. Segurá-lo também não. Será como uma espécie de
perfume? Mas é uma coisa que está sempre passando, deve vir de
algum lugar. Será que é como o vento? Não!  Já sei! Talvez seja uma
espécie de música, que a gente não ouve porque ela está sempre ali.
Mas acho que eu já a ouvi, muito baixinho.

- Eu sei - confirmou Mestre Hora -, e foi por isso que consegui chamar
você.

- Mas deve haver mais alguma coisa - continuou Momo, sempre


refletindo. - A música veio de muito longe e, no entanto, ressoou bem
lá no fundo, dentro de mim. Talvez com o tempo aconteça a mesma
coisa.

A menina se calou, confusa, e acrescentou, meio perdida.

- Quer dizer, talvez seja como as ondas que aparecem na água por
causa do vento.

Ah, vai ver que só estou falando bobagem!


- Pois eu acho que você disse muito bem! - exclamou Mestre Hora. - E
por isso vou contar um segredo: daqui, da Casa de Lugar Nenhum, no
fim do Beco do Nunca, é que sai todo o tempo dos seres humanos.

Momo olhou-o, toda admirada.

- É você mesmo quem faz o tempo? - ela perguntou baixinho.

Mestre Hora sorriu novamente:

- Não, minha menina, eu sou apenas o distribuidor. Minha tarefa é


dar a cada ser humano o tempo que lhe cabe.

- Será que então não seria fácil você dar um jeito para que os ladrões
de tempo não pudessem mais roubar tempo das pessoas? - perguntou
Momo.

- Não - respondeu Mestre Hora -, pois são as próprias pessoas que


devem decidir o que fazer com seu tempo. Também são elas que
devem defendê-lo. Eu só o distribuo.

Momo lançou um olhar à sua volta e perguntou:

- Por isso você tem tantos relógios? Um para cada pessoa, é? - Não,
Momo -  respondeu Mestre Hora. - Esses relógios são meus objetos de
estimação. São apenas uma imitação muito imperfeita de algo que
cada ser humano tem no peito.

Pois, assim como vocês têm olhos para enxergar a luz, ouvidos para
ouvir sons, também têm um coração para perceber o tempo. Todo o
tempo que não é percebido pelo coração é tão desperdiçado quanto
seriam as cores do arco-íris para um cego ou o canto de um pássaro
para um surdo. Infelizmente, porém, existem alguns corações cegos e
surdos, que nada percebem, apesar de baterem.

- E quando meu coração parar de bater? - perguntou Momo.

- Então - respondeu Mestre Hora -, o tempo terminará para você,


minha menina.

Podemos dizer também que é você quem volta através do tempo,


através de todos os seus dias e noites, meses e anos. Você caminha de
volta através de sua vida, até chegar ao grande portão redondo de
prata, pelo qual certo dia você entrou. Então você volta a sair.
- E o que há do outro lado?

- Você estará no lugar de onde vem a música que já ouviu algumas


vezes, bem baixinho. Mas então você fará parte dela, será um som
dela.

Mestre Hora olhou a criança, perscrutando-a.

- Acho que você ainda não é capaz de entender isso.

- Acho que sou, sim - murmurou Momo.

Lembrou-se de sua caminhada pelo Beco do Nunca, quando vivera


tudo de trás para frente, e perguntou: - Você é a morte?

Mestre Hora sorriu e ficou em silêncio por alguns momentos, antes


de responder

- Se as pessoas soubessem o que é a morte, não teriam medo dela. E


se não tivessem medo da morte, ninguém mais poderia roubar seu
tempo de vida.

- Então precisamos dizer isso a elas - sugeriu Momo.

- Você acha? - indagou Mestre Hora - Digo isso a elas a cada hora que
lhes entrego. Mas parece que não querem nem ouvir. Preferem
acreditar em quem lhes dá medo. Isso também é um enigma

- Eu não tenho medo - afirmou Momo.

Mestre Hora meneou a cabeça devagar. Olhou demoradamente para


a menina e, finalmente, perguntou.

- Você quer ver de onde vem o tempo?

- Quero - sussurrou ela.

- Pois vou levá-la até lá - disse Mestre Hora. - Mas naquele lugar é
preciso ficar em silêncio. Você não vai poder perguntar nem dizer
nada. Promete?

Momo balançou a cabeça afirmativamente.


Mestre Hora se abaixou e ergueu a menina, segurando-a firmemente
nos braços. De repente ele lhe pareceu muito alto e incrivelmente
velho, não um homem velho como os outros, mas como se fosse uma
árvore secular ou uma montanha de tempos remotos. Mestre Hora
cobriu os olhos da menina com as mãos, e ela teve a sensação de que
uma neve leve e fresca lhe caía sobre o rosto.

Momo tinha a impressão de que ele a levava por um corredor longo e


escuro. Mas sentia-se protegida e não tinha medo. No começo, pensou
estar ouvindo as batidas de seu próprio coração, mas logo lhe pareceu,
cada vez mais, que era o eco dos passos de Mestre Hora.

O percurso foi longo, até que por fim Mestre Hora pôs a menina no
chão. Seu rosto estava bem junto ao dela, olhava-a com os olhos bem
abertos e estava com um dedo sobre os lábios. Depois endireitou-se e
deu um passo atrás. Um crepúsculo dourado envolveu a menina. .

Aos poucos, Momo viu que estava sob uma cúpula imensa, que lhe
parecia do tamanho da abóbada celeste. E aquela cúpula gigantesca
era toda de puro ouro.

No alto, bem no centro, havia uma abertura redonda. Por ela entrava
uma verdadeira coluna de luz, que caía verticalmente sobre um lago,
igualmente redondo, cuja água preta, lisa e imóvel, formava como que
um espelho escuro.

Pouco acima da água, alguma coisa cintilava à luz da coluna, como


uma estrela brilhante. Movia-se com majestosa lentidão, e Momo
reconheceu um pêndulo enorme, que oscilava de um lado para outro
sobre o espelho preto do lago. Não estava preso a nada e pairava no ar
como se não tivesse peso.

Quando o pêndulo estelar foi se aproximando lentamente da


margem do lago, um grande botão de flor surgiu da água escura.
Quanto mais perto chegava o pêndulo, mais o botão se abria, até
desabrochar plenamente sobre o espelho de água.

Era a flor mais maravilhosa que Momo jamais tinha visto. Parecia ser
feita apenas de cores luminosas. Momo nem mesmo imaginara que
aquelas cores pudessem existir.

O pêndulo estelar se deteve um instante sobre a flor e Momo


absorveu-se completamente naquela visão, esquecendo-se de tudo o
mais à sua volta. O perfume da flor parecia-lhe uma coisa que sempre
havia desejado, sem saber o que era.

Aos poucos, porém, devagar, muito devagar, o pêndulo foi recuando.


Momo observou com espanto que, à medida que ele se distanciava, a
flor maravilhosa ia murchando. As pétalas iam caindo, uma após outra,
nas escuras profundezas.

Quando o pêndulo chegou ao meio do lago, a linda flor tinha se


desmanchado inteira. Ao mesmo tempo,  no entanto, do lado oposto,
um outro botão começou a surgir da água. E, à medida que o pêndulo
se aproximava dele, Momo viu desabrochar uma outra flor, ainda mais
bonita. A menina deu a volta ao lago, para apreciá-la mais de perto.

Era completamente diferente da flor anterior. Cores iguais às suas


Momo também nunca tinha visto, e pareciam até mais raras e
preciosas do que as da primeira flor. Seu perfume também era outro,
mais delicioso ainda. Quanto mais Momo contemplava a flor, mais
lindos detalhes ela descobria.

Também desta vez, no entanto, o pêndulo estelar afastou-se e toda


aquela maravilha se desfez e desapareceu, caindo, pétala por pétala,
na insondável profundeza do lago.

Devagar, muito devagar, o pêndulo se deslocou para a outra


margem, mas não exatamente para o mesmo ponto de antes. Lá, a um
passo do lugar da primeira flor, um novo botão começou a surgir e foi
desabrochando aos poucos.

Momo achou aquela flor a mais bela de todas. Era a flor de todas as
flores, uma maravilha única!

Momo teve vontade de chorar alto quando viu que também aquela
beleza perfeita começou a se desmanchar e a mergulhar nas
profundezas escuras. Mas lembrou-se da promessa que fizera a Mestre
Hora e ficou em silêncio.

Na outra margem, o pêndulo também chegou a um passo do lugar


anterior, e uma nova flor surgiu da água escura.

Aos poucos, Momo foi compreendendo que cada nova flor era bem
diferente da anterior e que sempre aquela que acabava de
desabrochar parecia ser a mais bonita de todas.
Sempre caminhando em torno do lago, ia vendo surgir e desaparecer
uma flor após a outra. Tinha a impressão de que nunca se cansaria de
assistir àquele espetáculo.

Pouco a pouco, no entanto, a menina percebeu que estava


constantemente acontecendo uma outra coisa, que ela ainda não
havia notado.

A coluna de luz que descia do alto da cúpula até embaixo não era
apenas de se ver. Momo também começou a ouvi-la.

No princípio era apenas um sussurro, como o som do vento soprando


na copa das árvores. Depois o ruído tornou-se mais intenso, como o de
uma cachoeira ou do estrondo das ondas do mar se quebrando contra
os rochedos.

Momo foi percebendo cada vez mais nitidamente que aquele barulho
era constituído por inúmeros sons, que iam se combinando de
maneiras diferentes, se transformando e compondo harmonias sempre
novas. Era música e, ao mesmo tempo, uma coisa completamente
diferente.

De repente, Momo reconheceu: era a música que ela às vezes ouvia


muito ao longe e baixinho, quando se punha a escutar o silêncio sob o
céu estrelado.

Os sons se tornaram mais nítidos e esplendorosos. A menina


começou a perceber que era aquela luz sonora que fazia surgir as
flores das profundezas do lago, uma a partir da outra, cada uma delas
com uma forma única e preciosa.

Quanto mais ouvia, mais claramente conseguia distinguir cada uma


das vozes. Mas não eram vozes humanas. Soavam como se fossem o
cantar do ouro, da prata e de todos os outros metais. Além disso, no
fundo, emergiam vozes de um tipo bem diferente, de uma distância
incalculável e de uma potência indescritível.

Tornavam-se cada vez mais claras e Momo passou a ouvir palavras.


Eram palavras numa língua que a menina jamais ouvira e que, no
entanto, ela compreendia. O

Sol, a Lua, os planetas e todas as estrelas lhe revelavam seus nomes


verdadeiros. E os nomes continham o que faziam e como atuavam
juntos para que cada uma daquelas flores-das-horas pudessem surgir e
desaparecer.

Subitamente Momo compreendeu que aquelas palavras se dirigiam


a ela! O mundo todo, desde a mais longínqua estrela, voltava-se para
ela como um único grande rosto, inimaginável, olhando-a e falando
com ela.

E foi tomada por algo maior do que o medo.

Nesse instante, viu Mestre Hora, que acenava para ela em silêncio.
Momo correu para ele. Mestre Hora tomou-a nos braços e ela escondeu
o rosto no seu peito.

Mais uma vez ele cobriu os olhos da menina com as mãos, com a
leveza da neve.

Tudo se tornou escuro e silencioso, e Momo sentiu-se protegida. Ele a


carregou de volta pelo longo corredor.

Quando chegaram novamente à salinha entre os relógios, ele deitou


a menina no sofá.

- Mestre Hora - murmurou Momo -, nunca pensei que o tempo dos


homens fosse tão... - procurava a palavra certa mas não conseguia
encontrar. - Tão grande - ela disse, finalmente.

- O que você viu e ouviu, Momo, não foi o tempo de todos os homens,
foi apenas o seu tempo - replicou Mestre Hora. - Em todas as pessoas
existe um lugar como esse em que você esteve há pouco. Mas só pode
chegar a ele quem se deixa levar por mim. E também não se pode vê-
lo com olhos comuns.

- Mas onde é que eu estive?

- No seu próprio coração - respondeu Mestre Hora, acariciando seus


cabelos emaranhados.

- Mestre Hora - disse ela, baixinho -, posso trazer meus amigos até
você?

- Não - respondeu ele. - Por enquanto não é possível.

- E quanto tempo posso ficar com você?


- Até você mesma sentir que deve voltar para seus amigos, minha
menina.

- Posso contar a eles o que as estrelas disseram? - Pode, mas você


não será capaz.

- Por que não?

- Primeiro as palavras para isso precisam crescer dentro de você

- Mas eu queria contar para todos eles! Queria ser capaz de repetir
para eles o que as vozes cantavam. Acho que então tudo ficaria bem
de novo

- Se você quer isso de verdade, Momo, precisa saber esperar.

- Não me importo de esperar.

- Esperar, minha menina, como uma semente que fica adormecida


na terra durante as quatro estações de um ciclo solar, antes de poder
brotar. É o tempo que vai levar para as palavras crescerem em você.
Você quer?

- Quero! - murmurou Momo.

- Então durma - disse Mestre Hora, acariciando-lhe os olhos. - Durma!

Momo respirou fundo e adormeceu, feliz.


 
 
 

Terceira Parte
AS FLORES-DAS-HORAS
 

Capítulo Treze

UM DIA LÁ, UM ANO AQUI


 

Momo acordou e abriu os olhos. Levou algum tempo para saber onde
estava. Ficou muito admirada ao perceber que voltara aos degraus
cobertos de capim do velho anfiteatro. Será, então, que não tinha
estado na Casa de Lugar Nenhum com Mestre Hora? Como era possível
ter voltado tão depressa?

Estava escuro e frio. No horizonte, a leste, surgiam os primeiros


clarões cinzentos do amanhecer. Momo estremeceu e se aconchegou
mais no casaco enorme.

Lembrava-se nitidamente de tudo o que tinha vivido: da caminhada


noturna com a tartaruga através da grande cidade, daquela região de
estranha luminosidade e casas de um branco ofuscante, do Beco do
Nunca, cia sala cheia de relógios, do chocolate, dos pãezinhos com
mel, de cada palavra da conversa com Mestre Hora e do enigma que
ele propusera. Acima de tudo, porém, lembrava-se de tudo o que
vivera debaixo da cúpula de ouro. Bastava-lhe fechar os olhos para
rever o inimaginável esplendor colorido das flores. As vozes do Sol, cia
Lua e das estrelas ainda ressoavam em seus ouvidos, com tanta nitidez
que ela até conseguia repetir suas melodias.

Ao fazê-lo, dentro dela se formavam palavras, as quais realmente


exprimiam o perfume das flores e suas cores nunca vistas. As vozes, na
memória de Momo, é que diziam as palavras. E, com essa própria
lembrança, aconteceu algo maravilhoso! Momo encontrava dentro de
si não só o que tinha visto e ouvido.

Havia mais, e cada vez mais. Como de uma fonte mágica, brotavam
milhares de imagens de flores-das-horas. E a cada flor soavam novas
palavras. Era só Momo ouvir com atenção dentro de si para ser capaz
de repeti-las e até de cantar com elas. Falavam de coisas misteriosas e
lindas. À medida que pronunciava as palavras, Momo ia entendendo
seu significado.

Então era isso que Mestre Hora queria dizer, ao adverti-la de que
antes era preciso que as palavras crescessem dentro dela. Ou teria
sido tudo apenas um sonho? Será que tudo aquilo, na verdade, não
tinha acontecido?

Enquanto ainda refletia, Momo viu alguma coisa rastejando lá


embaixo, no meio da arena. Era uma tartaruga à procura de plantas
comestíveis.

A menina desceu correndo ao seu encontro e se agachou ao lado


dela. A tartaruga levantou a cabeça, deu uma rápida olhada para a
menina, com seus velhíssimos olhos pretos, e voltou a comer
tranquilamente.

- Bom dia, tartaruga! - disse Momo. Nenhuma resposta apareceu na


carapaça.

- Foi você que me levou esta noite até o Mestre Hora? perguntou
Momo.

Mais uma vez, não houve resposta. Momo suspirou, desapontada

- Que pena - ela murmurou. - Então você é uma tartaruga comum e


não... ah, esqueci o nome. Era bonito, mas era comprido e raro. Eu
nunca tinha ouvido aquele nome antes.

"CASSIOPEIA" apareceu de repente, em letras levemente luminosas,


nas costas da tartaruga.

- Isso! - exclamou a menina, batendo palmas. - Era esse o nome!


Então é você!

Você é a tartaruga de Mestre Hora, não é?

"QUEM MAIS PODERIA SER?"

- Por que não me respondeu de início?

"ESTOU TOMANDO CAFÉ DA MANHÃ", apareceu na carapaça.


- Desculpe - disse Momo. - Não queria atrapalhar. Só queria saber
como vim parar de volta aqui.

"SEU DESEJO", foi a resposta.

- Engraçado - observou Momo -, não consigo me lembrar de nada. E


você, Cassiopéia, por que não ficou com Mestre Hora em vez de voltar
para perto de mim?

"MEU DESEJO", apareceu na carapaça.

- Muito obrigada! É muita gentileza sua! - disse Momo.

"DE NADA!", foi a resposta Com isso a tartaruga considerou a


conversa encerrada e, rastejando, voltou ao café da manhã que tinha
sido interrompido.

Momo sentou-se nos degraus de pedra, pensando com alegria em


Beppo, em Gigi e nas crianças. Escutava de novo a música que
continuava sempre ressoando dentro dela. Embora estivesse
completamente sozinha e ninguém a ouvisse, foi cantando cada vez
mais alto e com maior ímpeto as melodias e as palavras, dirigindo-se
ao sol nascente. Parecia-lhe agora que os pássaros, os grilos, as árvores
e até as velhas pedras estavam ouvindo.

Não podia saber que, por muito tempo, não teria outros ouvintes.
Não podia saber que era inútil esperar por seus amigos, que estivera
ausente durante muito tempo e que, enquanto isso, o mundo havia
mudado muito.

Com Gigi Guia, os homens cinzentos não tiveram muito trabalho.

Tudo começara um ano atrás, um pouco depois do dia em que Momo


havia desaparecido de repente, sem deixar vestígios. O jornal publicou
um longo artigo sobre Gigi, com o título "O último verdadeiro contador
de histórias".

Indicava-se quando e onde ele poderia ser encontrado, e dizia-se que


era uma atração que ninguém podia perder.

A notícia atraiu ao velho anfiteatro um grande número de pessoas,


que queriam ver e ouvir Gigi. É claro que Gigi não tinha nada contra.
Contava, como sempre, as histórias que lhe vinham à cabeça e, no fim,
passava o seu quepe, que se enchia cada vez mais de moedas e notas
de dinheiro. Logo ele foi contratado por uma agência de turismo, que
ainda lhe pagava uma quantia fixa para apresentá-lo como atração. Os
turistas chegavam em grandes ônibus, e em pouco tempo Gigi viu-se
obrigado a estabelecer horários regulares para que todos aqueles que
pagassem tivessem, de fato, oportunidade de ouvi-lo.

Naquela época Gigi sentia falta de Momo, pois suas histórias


estavam perdendo as asas. No entanto, continuava se recusando a
contar duas vezes a mesma história, mesmo que lhe oferecessem o
dobro do dinheiro.

Depois de alguns meses, já não precisava ir ao velho anfiteatro e


passar o quepe no final. Tinha sido descoberto pelo rádio e logo em
seguida pela televisão.

Contava suas histórias três vezes por semana, para milhares de


ouvintes, e ganhava muito dinheiro.

Não morava mais perto do anfiteatro. Tinha ido para um outro bairro,
completamente diferente, onde só morava gente rica e famosa.
Alugara uma casa grande e moderna, que ficava no meio de um
parque muito bem cuidado. Já não se chamava Gigi, mas Girolamo.

Naturalmente, acabou deixando de inventar sempre novas histórias,


como fazia antes. Não tinha mais tempo para isso. Começou a poupar
suas ideias. Às vezes, fazia uma só ideia render cinco histórias
diferentes. E, quando até isso deixou de ser suficiente para atender às
solicitações cada vez, maiores, certo dia ele fez uma coisa que não
devia ter feito: contou uma das histórias que pertenciam só a Momo.

As pessoas engoliram a história rapidamente, como sempre


acontecia, e logo a esqueceram. Mas continuavam a exigir dele cada
vez mais histórias. Gigi estava tão atrapalhado com aquele ritmo que,
sem perceber, foi entregando, uma atrás da outra, todas as histórias
que pertenciam apenas a Momo. No entanto, depois de contar a
última, sentiu-se completamente vazio, esgotado, sem capacidade
para inventar mais nada.

Com medo de que seu sucesso pudesse acabar, começou então a


repetir todas as suas histórias anteriores, com outros nomes e com
ligeiras modificações. O mais espantoso é que ninguém parecia
perceber. Pelo menos, ele não deixou de ser procurado.
Gigi agarrou-se a isso como um afogado a uma tábua de salvação.
Estava rico e famoso e, afinal, aquele sempre tinha sido seu sonho.

Mas às vezes, à noite, deitado em sua cama, debaixo do acolchoado


de seda, tinha saudades dos velhos tempos, quando vivia perto de
Momo, do velho Beppo, das crianças, e era realmente capaz de contar
histórias.

Porém não havia como voltar atrás, mesmo porque Momo


desaparecera para sempre. A princípio, Gigi ainda tinha tentado
seriamente encontrá-la; agora já não lhe sobrava tempo para isso.
Tinha três eficientes secretárias que firmavam seus contratos, para
quem ele ditava suas histórias, que se encarregavam de sua
divulgação e organizavam sua agenda de compromissos. E nessa
agenda nunca havia lugar para encaixar as buscas a Momo.

Do antigo Gigi restava muito pouco. Um dia, porém, ele juntou esse
pouco e resolveu refletir sobre si mesmo. Tornara-se um homem cujas
palavras eram levadas em conta e ouvidas por milhões de pessoas.

Quem seria mais indicado para lhes dizer a verdade? Queria lhes
contar tudo a respeito dos homens cinzentos! Diria que não se tratava
de mais uma história inventada por ele e pediria a todos os ouvintes
que o ajudassem a encontrar Momo.

Tomou essa resolução uma noite em que sentiu saudade dos velhos
amigos. Quando o dia amanheceu, sentou-se em sua grande
escrivaninha, para esboçar seu plano.

Ainda nem tinha escrito uma palavra, quando o telefone tocou. Gigi
atendeu e ficou duro de pavor

Uma voz estranha, inexpressiva, cinzenta, começou a lhe falar.


Enquanto ouvia, sentiu um frio subir por ele, como se viesse da medula
de seus ossos.

- Desista disso - dizia a voz -, para seu próprio bem.

- Quem está falando? - perguntou Gigi.

- Você sabe perfeitamente quem é - respondeu a voz. Não


precisamos nos apresentar. Até agora você ainda não teve o prazer de
nos encontrar, mas há muito tempo já nos pertence de corpo e alma. E
não vá dizer que não sabia!

- O que vocês querem de mim?

- Seus planos não nos agradam. Seja bonzinho e desista, certo?

Gigi apelou para toda a sua coragem.

- Não - ele disse -, não vou desistir de coisa nenhuma. Não sou mais o
insignificante e desconhecido Gigi Guia. Agora sou um grande homem.
Veremos se vocês podem me impedir de fazer o que quer que seja A
voz deu uma risada sem expressão e, subitamente, Gigi começou a
bater os dentes

- Você não é ninguém - continuou a voz - Nós o fizemos. Você é um


boneco de borracha. Nós o enchemos de ar. Mas, se nos contrariar,
iremos esvaziá-lo. Ou será que você pensa que deve tudo o que é hoje
ao seu talento medíocre?

- E! E isso mesmo que eu penso - respondeu Gigi, rouco.

- Coitadinho do Gigi! - disse a voz. - Você é e sempre foi um


romântico sonhador. Antes era o príncipe Girolamo fantasiado de Gigi,
o pobre diabo; hoje é o pobre diabo Gigi fantasiado de príncipe
Girolamo. Contudo, você deveria ser grato a nós, que fizemos seu
sonho se realizar

- Não... não é verdade! - gaguejou Gigi. - É mentira!

- Meu Tempo! - exclamou a voz, com outro riso inexpressivo. - Justo


você vem nos falar em verdade? Antes você sempre dizia tantas frases
bonitas a respeito do que era ou não era verdade! Ah, não, pobre Gigi,
nem fica bem você querer invocar a verdade. Você ficou famoso
porque nós o ajudamos com suas mentiras.

Certamente não é a pessoa indicada para discorrer sobre a verdade.


Por isso, desista!

- O que vocês fizeram com Momo? - perguntou Gigi, num sussurro.

- Ora, não ocupe essa sua cabeça virada com isso. A ela você não
poderá mais ajudar se contar tudo a nosso respeito. A única coisa que
irá conseguir será fazer sua fama desaparecer tão depressa quanto
surgiu. Evidentemente, a decisão é sua! Se fizer questão, não
poderemos impedi-lo de bancar o herói e se arruinar. No entanto, não
poderá esperar que continuemos a lhe dar nossa proteção, caso você
se mostre tão ingrato. Não é mais agradável ser rico e famoso?

- Claro - respondeu Gigi, quase sufocando.

- Está vendo? Então deixe-nos fora desse jogo, ouviu? É melhor


continuar contando às pessoas o que elas querem ouvir.

- Mas como posso fazer isso - perguntou Gigi, com esforço -, agora
que estou sabendo de tudo?

- Vou lhe dar um conselho: não se leve tão a sério, rapaz! Realmente,
você não pode fazer nada. Pensando assim, poderá continuar agindo
como fez até hoje.

- É - murmurou Gigi, os olhos fitos no espaço -, pensando assim...

Ouviu-se um estalido e Gigi também colocou o fone no gancho.


Debruçou-se sobre o tampo da escrivaninha imensa, escondeu o rosto
entre os braços e foi sacudido por soluços silenciosos.

Desse dia em diante, Gigi perdeu toda a dignidade. Abandonou seus


planos e continuou como até então, mas sentia-se um traidor. Em
outros tempos, a imaginação o conduzia por caminhos acidentados e
ele a seguia despreocupado.

Agora, no entanto, ele mentia!

Tornara-se um fantoche, um palhaço para divertir o público. Sabia


disso e começou a odiar sua profissão. Suas histórias iam ficando cada
vez mais bobas ou sentimentalóides.

No entanto, isso não prejudicava seu sucesso. Pelo contrário, diziam


que era seu novo estilo, e muitos tentavam imitá-lo. Ele se tornou
moda. Gigi, porém, não estava feliz. Sabia agora a quem devia tudo
aquilo. Não ganhara nada. Perdera tudo.

Mas continuava correndo no seu carro de um compromisso para


outro, voava nos aviões mais velozes e, onde quer que estivesse, não
parava de ditar para suas secretárias as mesmas velhas histórias, com
alguma roupagem diferente. Todos os jornais comentavam sua
extraordinária "fecundidade literária".

Assim o sonhador Gigi transformou-se no mentiroso Girolamo.

Para os homens cinzentos, foi bem mais difícil lidar com Beppo
Varredor.

Depois da noite em que Momo tinha desaparecido, sempre que o


trabalho permitia ele se sentava no anfiteatro e ficava à espera da
menina. Sua preocupação e seus cuidados aumentavam de dia para
dia. Finalmente, não suportando mais o peso daquela ansiedade,
apesar de todas as justas objeções de Gigi, resolveu ir à polícia.

"Afinal", pensava ele, "é preferível Momo ser levada para um


orfanato, mesmo com grades nas janelas, a ficar prisioneira dos
homens cinzentos... caso ainda esteja viva. Se ela já fugiu uma vez do
asilo, talvez possa escapar de novo.

Pode até ser que eu consiga dar um jeito de ela não ser internada.
Mas primeiro precisamos encontrá-la."

Dirigiu-se então à delegacia de polícia mais próxima, que ficava nos


limites da cidade. Ficou por algum tempo parado diante da porta,
girando o boné entre as mãos, até que criou coragem e entrou.

- O que deseja? - perguntou o policial, ocupado em preencher um


longo e complicado formulário.

Beppo demorou um pouco até conseguir pronunciar estas palavras:

- Deve ter acontecido uma coisa terrível.

- Ah, é? - disse o policial, sempre escrevendo. - Do que se trata?

- De nossa pequena Momo - respondeu Beppo.

- É uma criança?

- É. Uma menina.

- É sua filha?
- Não - replicou Beppo, confuso -, ou melhor, sim. Mas não sou seu
pai.

- Não, ou melhor, sim - disse o policial, mal-humorado. Afinal, ela é


filha de quem? Quem são seus pais?

- Ninguém sabe - murmurou o varredor.

- Onde ela foi registrada?

- Registrada? Bem, todos nós conhecemos a menina.

- Então não foi registrada! - disse o policial, suspirando. O senhor


sabe que isso é proibido? Onde estamos, afinal? Com quem mora essa
criança?

- Com ela mesma, quer dizer, no velho anfiteatro. Mas não mora
mais. Ela sumiu.

- Um momento - pediu o policial -, se entendi bem, naquelas ruínas


morava uma menina vadia chamada... como é mesmo?

- Momo - respondeu Beppo.

O policial começou a escrever tudo.

- ... chamada Momo. Momo de quê? O nome completo, por favor!

- Só Momo.

O policial cocou o queixo e olhou para Beppo, contrariado.

- Assim não dá, meu caro. Estou querendo ajudar, mas não posso
redigir um relatório desse jeito. Então me diga primeiro o nome do
senhor.

- Beppo.

- Beppo de quê?

- Beppo Varredor.

- Quero saber o nome, não a profissão.


- Mas é as duas coisas - respondeu Beppo, humildemente. O policial
largou a caneta e escondeu o rosto entre as mãos.

- Meu Deus do céu! - murmurou ele, desesperado. - Por que justo eu


estou de serviço?

Depois ele se endireitou, sorriu animadoramente para o velho e


falou, com a mansidão de um enfermeiro:

- Vamos deixar os dados pessoais para depois. Agora conte tudo


direitinho, do começo ao fim.

- Tudo? - indagou Beppo, na dúvida.

- Tudo o que vem ao caso - respondeu o policial. - Estou sem tempo,


preciso preencher esta montanha de formulários até meio-dia. Estou
no fim das minhas forças e dos meus nervos. Mas não se afobe, conte-
me tudo o que lhe vai no coração.

Recostou-se e fechou os olhos, com cara de um mártir que está


sendo tostado na fogueira. E o velho Beppo começou, com aquele seu
modo minucioso, a narrar o caso todo, desde o imprevisto
aparecimento de Momo e seu extraordinário dom de saber ouvir até a
cena dos homens cinzentos, reunidos no depósito de lixo, que ele tinha
presenciado.

- Naquela mesma noite a menina desapareceu - Beppo concluiu.

O policial lançou-lhe um olhar demorado e desgostoso.

- Em outras palavras - disse ele, finalmente -, era uma vez uma


menina altamente inverossímil, de cuja existência não temos provas,
que foi raptada por uma espécie de fantasma, que todo o mundo sabe
que não existe, e levada sabe-se lá para onde. Mas também isso não é
certo. Ora, e é com isso que a polícia tem que se ocupar?

- É, por favor! - disse Beppo.

A essa altura, o policial debruçou-se por cima da mesa e gritou,


furioso:

- Deixe-me cheirar o seu bafo.


Beppo não compreendeu a razão da ordem, mas encolheu os ombros
e soprou documente no rosto do policial, que sacudiu a cabeça
negativamente, dizendo:

- Não, parece que bêbado o senhor não está.

- Não - disse Beppo, vermelho de indignação -, nunca fiquei bêbado.

- Então por que está me contando todas essas tolices? - perguntou o


policial. - Acha que a polícia é tão idiota que vai acreditar nessas
histórias absurdas?

- Acho, sim! - respondeu Beppo inocentemente.

Diante disso, o policial perdeu a paciência. Pulou da cadeira e deu


um murro no formulário longo e complicado.

- Chega! - gritou ele, com a cara roxa. - Saia já daqui, antes que
mande prendê-lo por desacato à autoridade.

- Desculpe - murmurou Beppo -, não tive essa intenção. Eu queria


dizer...

- Fora! - rugiu o policial. Beppo fez meia-volta e saiu.

Nos dias seguintes procurou várias outras delegacias, mas a cena era
sempre a mesma. Ou o colocavam na rua, ou o mandavam embora
gentilmente, ou o faziam esperar para depois se livrarem dele.

Certa vez, no entanto, Beppo acabou encontrando um policial mais


graduado, que tinha menos senso de humor que seus colegas. Ouviu-o
com a fisionomia impassível e declarou friamente:

- Esse velho é maluco. Precisamos saber se ele oferece perigo para o


público.

Prendam-no numa cela.

Assim, Beppo foi obrigado a esperar meio dia na cadeia, até ser
levado para um carro por dois policiais. Atravessaram a cidade, até um
grande edifício branco com grades nas janelas. Não era uma prisão,
como Beppo pensou de início, mas um hospital para doentes mentais.
Ali ele passou por um exame completo. Os médicos especialistas e
as enfermeiras foram gentis com Beppo, não zombaram dele e não o
xingaram, pareciam até muito interessados na sua história, pois teve
de repeti-la várias vezes. Embora não o contestassem, Beppo também
não teve a impressão de que estivessem acreditando nele. Não
conseguiam entendê-lo bem, mas também não o deixavam ir embora.

Cada vez que ele perguntava quando poderia sair, diziam:

- Logo, mas ainda estamos precisando do senhor. Tente entender,


ainda não chegamos a um resultado, mas estamos investigando.

Beppo, imaginando que se tratava de investigações sobre o


desaparecimento de Momo, enchia-se de paciência.

Deram-lhe uma cama num grande dormitório, onde havia muitos


outros pacientes.

Uma noite ele acordou e, sob a fraca luz noturna, percebeu alguém
de pé a seu lado. Primeiro distinguiu apenas a ponta de um charuto
aceso; depois reconheceu o chapéu-coco e a pasta cinza-chumbo que
o vulto trazia. Quando compreendeu que se tratava de um dos homens
cinzentos, sentiu um frio que o penetrou até a medula e já ia gritar por
socorro.

- Quieto! - ordenou uma voz cinzenta, saída da escuridão. - Fui


encarregado de lhe fazer uma proposta. Escute e só responda quando
eu mandar! O senhor já teve ocasião de verificar o alcance cio nosso
poder. Se quiser, poderá saber mais, dependerá só do senhor. As
histórias que anda contando a nosso respeito absolutamente não nos
prejudicam, mas não nos agradam. Por outro lado, tem toda a razão ao
supor que sua amiguinha Momo está em nosso poder. No entanto,
pode perder a esperança de encontrá-la. Isso jamais acontecerá. Seus
esforços para libertar a menina não a ajudam em nada. Pelo contrário,
ela é castigada a cada tentativa sua. Daqui por diante, portanto, pense
muito bem antes de fazer ou dizer qualquer coisa.

O homem cinzento soprou uma série de anéis de fumaça e observou,


satisfeito, o efeito de seu discurso sobre o velho Beppo, que acreditou
em tudo.

- Serei o mais breve possível, porque meu tempo também é valioso -


continuou ele. - A proposta que lhe fazemos é a seguinte: Momo
voltará, desde que o senhor nunca mais deixe escapar uma só palavra
sobre nós e nossas atividades. Além disso, a título de perdas e danos,
terá de nos dar cem mil horas de tempo poupado. Não se preocupe
com o modo pelo qual entraremos de posse desse tempo, isso é
problema nosso. Ao senhor caberá poupar esse tempo. Como o fará, é
problema seu. Se estiver de acordo, faremos com que dentro de
poucos dias seja mandado para casa; caso contrário, ficará aqui para
sempre e Momo continuará conosco. Pense bem! Só faremos esta
proposta generosa uma vez! E então?

Beppo engoliu em seco algumas vezes e, por fim, resmungou:

- Concordo!

- Muito sensato! - disse o homem cinzento, satisfeito. Mas não


esqueça silêncio absoluto e cem mil horas! Logo que as tivermos,
soltaremos Momo.

Portanto, comece seu trabalho o quanto antes.

Com isso, o homem cinzento saiu, deixando atrás de si o toco do


charuto, que ficou luzindo fracamente no escuro, como um fogo-fátuo.

A partir daquela noite, Beppo nunca mais contou sua história.


Quando lhe perguntavam por que tinha inventado tudo aquilo,
encolhia tristemente os ombros, em silêncio. Alguns dias depois,
mandaram-no para casa.

Mas ele não foi para casa. Dirigiu-se para o grande edifício onde, com
seus companheiros, costumava apanhar a vassoura e o carrinho de
mão. Pegou a vassoura, foi para a grande cidade e começou a varrer.

Mas já não varria no ritmo de antes, a cada passo uma respirada, a


cada respirada uma varrida. Fazia tudo depressa e sem amor pelo
trabalho, com a única preocupação de poupar as horas. Sabia com
dolorosa clareza que estava agindo contra suas mais profundas
convicções, traindo os hábitos adquiridos durante toda a sua vida.
Sentia-se desgostoso e, se fosse apenas por ele, teria preferido morrer
de fome a ser infiel a si mesmo. Mas era por Momo, precisava resgatá-
la, e aquele era o único jeito que conhecia de poupar tempo.

Varria dia e noite, sem voltar para casa. Quando o cansaço o


aniquilava, sentava-se num banco de praça ou mesmo no meio-fio e
tirava um cochilo. Depois de um tempinho, levantava-se e continuava
a varrer. De vez em quando, sempre com a mesma pressa, comia
qualquer coisa. Nunca mais voltou à sua cabana, perto do anfiteatro.
Varreu semanas e semanas, meses e meses. Chegou o outono, depois
o inverno. Beppo varria.

Depois chegou a primavera e de novo o verão. Beppo quase não


percebeu. Varria, varria e varria, para juntar as cem mil horas exigidas.

As pessoas da grande cidade não tinham tempo para reparar no


velho varredor. As poucas que o notavam batiam na testa
significativamente, às suas costas, ao vê-lo sem fôlego, empurrando a
vassoura, como se daquilo dependesse sua vida.

Para Beppo não era novidade que o considerassem maluco e não se


importava com isso.

Só quando alguém lhe perguntava o motivo de tanta pressa,


interrompia o trabalho por um instante, olhava assustado e ansioso
para o interlocutor e punha o dedo nos lábios.

A tarefa mais difícil para os homens cinzentos era ajustar aos seus
planos as crianças que tinham sido amigas de Momo. Mesmo depois do
desaparecimento da menina, elas continuavam a se reunir no
anfiteatro, sempre que podiam, e inventavam novas brincadeiras.
Algumas caixas e caixotes vazios eram o bastante para
embarcarem  em longas e arriscadas viagens ao redor do mundo ou
construírem castelos e altas montanhas. Além disso, faziam planos
para o futuro, contando histórias umas às outras. Enfim, faziam tudo
como se Momo ainda estivesse ali. E, de fato, parecia mesmo que a
menina continuava entre elas.

Aliás, aquelas crianças nunca duvidaram de que algum dia Momo


voltaria. Nunca falavam nisso, mas nem era preciso. A certeza
silenciosa as unia. Momo lhes pertencia e era seu eixo secreto, estando
presente ou não.

Os homens cinzentos nada puderam fazer contra isso.

Como não conseguiam influenciar diretamente as crianças para fazê-


las esquecer Momo, tiveram que utilizar meios indiretos. Esses meios
indiretos eram os adultos, em cujas mãos estavam as decisões a
respeito das crianças. Não todos os> adultos, é claro, mas aqueles que
se prestavam ao papel de cúmplices... que, infelizmente, não eram
poucos. As armas utilizadas foram aquelas das próprias crianças.

De repente, algumas pessoas lembraram-se daquela passeata das


crianças, com cartazes e faixas.

- Temos que tomar alguma providência - diziam algumas -, não dá


para continuar assim. Há cada vez mais crianças que ficam sozinhas,
entregues a si mesmas. Não se pode culpar os pais, pois o ritmo da
vida moderna não lhes deixa tempo para se ocuparem dos filhos. O
Estado é que deve fazer alguma coisa!

- Desse jeito não pode continuar - diziam outras. - O trânsito não


pode ser prejudicado por crianças que ficam perambulando pelas ruas.
O aumento do número de acidentes causado por crianças está
custando caro, e esse dinheiro poderia ser aplicado de maneira mais
útil.

- Está tudo errado! - diziam ainda outras. - Crianças que não são
vigiadas acabam se corrompendo moralmente e tornam-se criminosas.
O Estado deve tomar providências para que essas crianças sejam
recolhidas. É preciso criar estabelecimentos onde sejam educadas para
se tornarem membros úteis e produtivos da sociedade.

E havia outras que alegavam. - As crianças são o material humano


do futuro. O  futuro será a era da propulsão a jato e dos cérebros
eletrônicos. Para operar essas máquinas, será necessário um
contingente de especialistas e operários de alto nível. Mas, em vez de
prepararmos nossas crianças para o mundo de amanhã, deixamos que
desperdicem anos de seu precioso tempo com brincadeiras tolas.
É uma desgraça para a civilização e um crime contra a humanidade do
futuro!

Tudo isso expressava as ideias dos poupadores de tempo, e, como


eram numerosos na grande cidade, conseguiram relativamente
depressa convencer as autoridades a tomar as devidas providências.

Instalaram-se então os chamados "depósitos de crianças" em todos


os bairros.

Eram grandes casas, onde os pais deixavam as crianças, quando não


tinham condições de cuidar delas, e iam buscá-las quando fosse
possível. As crianças foram terminantemente proibidas de brincar na
rua, nos parques ou em qualquer outra parte. Quando alguma criança
era vista brincando em lugar público, era levada imediatamente ao
depósito mais próximo e os pais pagavam uma multa.

Os amigos de Momo não escaparam desse novo regulamento. Foram


separados uns dos outros, segundo o distrito a que pertenciam, e
colocados em diversos depósitos.

Naturalmente, não lhes era permitido inventar brincadeiras a seu


gosto. Um supervisor determinava seus brinquedos, com os quais as
crianças deveriam sempre aprender algo de útil. Ao mesmo tempo,
com certeza, desaprendiam a capacidade de serem felizes, de se
empolgarem e de sonhar.

Pouco a pouco, as crianças foram adquirindo a fisionomia cios


poupadores de tempo Mal-humoradas, aborrecidas, hostis, faziam o
que se exigia delas. E, quando por acaso eram deixadas sozinhas, já
não conseguiam imaginar nada que pudessem fazer.

A única coisa que lhes restava era fazer barulho. Não era um barulho
alegre, é claro, mas frenético e agressivo.

Os homens cinzentos, porém, nunca se aproximaram das crianças. A


rede que haviam tecido sobre a grande cidade era espessa e,
aparentemente, indestrutível. Nem a criança mais esperta conseguiria
passar entre suas malhas. O plano dos homens cinzentos teve sucesso
absoluto. Tudo estava preparado para a volta de Momo.

O velho anfiteatro fora inteiramente esquecido e abandonado.

Momo continuava sentada nos degraus de pedra, esperando por seus


amigos. Desde sua volta, esperou o dia todo. Mas não apareceu
ninguém. Ninguém!

O sol já estava se pondo. As sombras alongavam-se e o frio vinha


chegando.

Finalmente, Momo levantou-se. Estava com fome, pois ninguém


tinha pensado em lhe trazer alguma coisa para comer. Nunca tinha
acontecido isso antes. Até Gigi e Beppo pareciam ter-se esquecido
dela. Mas a menina achou que, com certeza, tinha sido apenas algum
contratempo, que se esclareceria no dia seguinte.
Desceu para junto da tartaruga, que já se tinha recolhido para dentro
da carapaça para dormir. Momo aproximou-se e bateu timidamente
nas suas costas; a tartaruga pôs a cabeça para fora e olhou para a
menina.

- Desculpe - disse Momo -, sinto muito tê-la acordado, mas queria


saber por que nenhum dos seus amigos veio me ver hoje.

Na carapaça da tartaruga apareceu a resposta: "NÃO SOBROU


NENHUM."

Momo leu as palavras sem compreender seu sentido.

- Bem - ela disse, então, cheia de confiança -, amanhã ficarei


sabendo. Amanhã com certeza meus amigos virão.

"NUNCA MAIS", foi a resposta de Cassiopéia A menina ficou olhando


por algum tempo as palavras fracamente iluminadas.

- O que você está querendo dizer? - perguntou ela finalmente,


amedrontada. - O que aconteceu com meus amigos?

"FORAM TODOS EMBORA", Momo leu. A menina sacudiu a cabeça.

- Não - ela disse, baixinho -, não pode ser verdade. Você deve estar
enganada, Cassiopéia. Ainda ontem estavam todos aqui, naquela
manifestação que deu era7nada.

"VOCÊ DORMIU MUITO TEMPO", luziu a resposta de Cassiopéia.

Momo lembrou-se então do que lhe dissera Mestre Hora: teria de


dormir durante todo um ciclo solar, como a semente dorme na terra.
Ao concordar, ela nem pensara no tempo que aquilo representaria Só
agora começava a entender.

- Quanto tempo eu dormi? "UM ANO E UM DIA."

Momo demorou um pouco para compreender a resposta.

- Mas... Beppo e Gigi - ela gaguejou, finalmente -, os dois com


certeza ainda estão me esperando.

"NÃO SOBROU NINGUÉM", apareceu na carapaça da tartaruga.


- Como é possível? - Momo sussurrou, com os lábios trêmulos. - Não é
possível que tudo tenha sumido... tudo aquilo que...

E, lentamente, nas costas de Cassiopéia surgiu uma palavra.


"PASSADO".

Pela primeira vez na vida, a menina sentiu plenamente o significado


daquela palavra. Seu coração pesava mais do que nunca.

- Mas eu... - murmurou, desamparada - eu ainda estou aqui...

Teve vontade de chorar, mas não conseguia. Após alguns instantes,


sentiu que a tartaruga roçava seus pés descalços. "EU ESTOU COM
VOCÊ!", apareceu em sua carapaça

- Sim - respondeu a menina, com um sorrisinho apertado -, você está


comigo, Cassiopéia, e fico feliz com isso. Agora, vamos dormir.

Momo pegou a tartaruga e, passando com ela pelo buraco do muro,


carregou-a para seu quarto. À luz do crepúsculo, verificou que tudo
estava conforme ela tinha deixado. (Beppo, na ocasião, arrumara a
desordem feita pelos homens cinzentos.) Só que estava tudo coberto
de pó e havia teias de aranha por toda parte.

Sobre a mesa feita de caixotes, havia uma carta, apoiada numa lata,
tudo coberto, também, de teias de aranha.

"Para Momo", estava escrito.

O coração da menina começou a bater mais depressa. Nunca tinha


recebido uma carta antes. Pegou-a e a revirou de todos os lados.
Depois, rasgou o envelope e tirou um papel de dentro dele.

"Querida Momo!", ela leu "Eu me mudei. Se você voltar, procure-me


logo. Estou muito preocupado com você. Sinto muito sua falta. Tomara
que não tenha acontecido nada com você. Se tiver fome, vá até o Nino.
Depois ele me manda a conta e eu pago tudo. Portanto, coma à
vontade, está ouvindo? O Nino vai lhe contar tudo.  Continue  sempre
me querendo bem! Também a quero muito bem!

Seu amigo de sempre

Gigi"
Momo demorou para soletrar a carta, embora Gigi tivesse se
esforçado para fazer uma letra bonita e clara. Quando ela finalmente
terminou, o último clarão do dia acabava de se apagar.

Momo sentia-se confortada.

Ergueu a tartaruga e colocou-a na cama, a seu lado. Enrolando-se no


cobertor empoeirado, murmurou baixinho:

- Está vendo, Cassiopéia? Afinal eu não estou sozinha.

Mas a tartaruga parecia já ter adormecido.

Momo, que ao ler a carta vira a imagem nítida de Gigi, não se dava
conta de que aquela carta estava ali havia quase um ano.

Deitou o rosto sobre a folha de papel. O frio tinha passado.


Capítulo Quatorze
MUITA COMIDA, POUCAS RESPOSTAS
 

No dia seguinte, Momo pôs a tartaruga debaixo do braço e saiu rumo


ao bar de Nino.

- Você vai ver, Cassiopéia - dizia ela -, como agora tudo vai se
esclarecer Nino sabe onde estão Gigi e Beppo. Então vamos chamar as
crianças e estaremos todos juntos de novo Pode ser que Nino e sua
mulher também venham se reunir aos outros. Tenho certeza de que
você vai gostar dos meus amigos. Podemos até fazer uma festinha hoje
à noite. Vou contar a eles das flores, da música, de Mestre Hora, de
tudo. Como estou contente em rever todos eles! Mas agora vou ficar
mais contente ainda com um bom almoço. Estou com muita fome,
sabia?

A menina continuou tagarelando, feliz. Volta e meia apalpava a carta


de Gigi, que ela levava no bolso do casaco. A tartaruga só a olhava
com seus velhos e sábios olhos, sem dizer nada.

Momo começou a cantarolar enquanto caminhava e depois pôs-se a


cantar Mais uma vez, eram a melodia e as palavras das vozes que
ecoavam em sua memória tão claramente quanto no dia anterior.
Agora ela sabia que nunca mais as esqueceria.

Mas, de repente, Momo parou. Estava na frente do bar de Nino. Num


primeiro momento, pensou que tivesse errado o caminho. No lugar da
casa velha, com as paredes manchadas pela chuva e a videira na
porta, via um caixote de concreto, meio alongado, com enormes
janelas de vidro ocupando toda a fachada. A rua fora asfaltada e tinha
um trânsito bastante intenso. Do outro lado, havia um posto de
gasolina e, ao lado dele, um imenso edifício de escritórios. Na frente do
novo bar havia muitos automóveis estacionados e, sobre sua porta, via-
se uma placa: RESTAURANTE EXPRESSO DO NINO

Momo entrou e, de início, ficou meio desorientada. Ao longo da


janela havia uma fileira de mesas com tampos minúsculos e pernas
altas, parecendo cogumelos. Eram tão altas que um adulto podia
comer em pé. Não havia mais cadeiras.
Do outro lado, havia uma extensa grade de barras de metal
brilhantes, uma espécie de cerca. Atrás dela, a pequenos intervalos,
dispunham-se compridas caixas de vidro, dentro das quais havia
sanduíches de queijo e presunto, salsichas, pratos com saladas,
pudins, bolos e muitas outras coisas que Momo nem conhecia.

Momo foi observando tudo aos poucos, pois o lugar estava lotado de
gente, e ela tinha a impressão de estar sempre atrapalhando o
caminho. Para onde quer que fosse, era sempre empurrada para o lado
ou para a frente. A maioria das pessoas carregava bandejas com pratos
e garrafas, procurando um lugar nas mesinhas.

Atrás das que já tinham se instalado e comiam apressadas, muitas


outras já esperavam para ocupar seus lugares De vez em quando, as
pessoas que esperavam trocavam palavras ásperas com as que
estavam comendo. Na verdade, todo o mundo tinha cara de
insatisfação.

Entre a cerca e as vitrines de comida, uma imensa fila de gente se


arrastava lentamente. Cada um pegava da vitrine, aqui ou ali, um
prato, uma garrafa, um copo de papel.

Momo estava perplexa Cada um podia pegar o que quisesse! Não via
ninguém que impedisse as pessoas de pegar as coisas ou que lhes
pedisse para pagar. Talvez fosse tudo de graça! Isso explicaria aquela
multidão!

Afinal, depois de algum tempo, conseguiu enxergar Nino! Escondido


por trás daquela gente toda, bem no fim da fila de vitrines, ele estava
sentado diante de uma caixa, o tempo todo dedilhando, pegando
dinheiro e devolvendo troco. Então era para ele que as pessoas
pagavam! E, ao longo da cerca de metal, as pessoas eram conduzidas
de modo que não pudessem chegar às mesinhas sem passar por Nino.

- Nino! - gritou Momo, tentando atravessar a multidão. Ela acenava


com a carta de Gigi, mas Nino não conseguia ouvi-la. A caixa fazia
muito barulho e absorvia toda a sua atenção.

Momo tomou coragem, passou por cima da cerca e conseguiu furar a


fila, aproximando-se de Nino. Ele levantou os olhos, porque algumas
pessoas estavam começando a achar ruim.
Quando viu Momo, a expressão mal-humorada sumiu imediatamente
de seu rosto.

- Momo! - exclamou ele, radiante, como antigamente -  Você voltou!


Que surpresa!

- Vamos em frente! - gritaram as pessoas da fila. - Essa menina que


vá para o fim da fila, como nós. Onde já se viu furar a fila desse jeito?
Que desaforo!

- Um momento! - gritou Nino, levantando as mãos num gesto de


apaziguamento. - Só um pouco de paciência, por favor!

- Assim, qualquer um vai achar que pode fazer a mesma coisa! -


reclamou um dos que esperavam na fila. - Vamos, vamos! Essa menina
tem mais tempo do que nós.

- Gigi vai pagar tudo para você! - Nino sussurrou para ela, apressado.
- Pode pegar o que quiser. Mas vá para o fim da fila, como os outros.
Você mesma está ouvindo!

Antes que Momo pudesse fazer qualquer pergunta, as pessoas a


afastaram aos empurrões. Assim, só lhe restou fazer como os outros.
Colocou-se no fim da fila.

Numa prateleira pegou uma bandeja e, numa caixa, pegou garfo e


faca. Lentamente, passo a passo, foi sendo empurrada para a frente.

Como precisava das duas mãos para segurar a bandeja,


simplesmente colocou

Cassiopéia em cima dela. Foi passando pelas vitrines e, aqui e ali, ia


pegando algumas coisas, que ela arrumava em volta da tartaruga.

Momo estava meio confusa, por isso acabou fazendo uma


combinação meio estranha de comidas. Um pedaço de peixe assado,
um pão com geléia, uma salsicha, um pastel e um copo de limonada.
Cassiopéia, no meio daquilo tudo, achou melhor se recolher para
dentro da carapaça e não dar sua opinião.

Quando finalmente chegou de novo perto de Nino, Momo perguntou,


depressa:

- Você sabe onde está Gigi?


- Sei - disse Nino. - Nosso Gigi ficou famoso. Temos muito orgulho
dele, pois, afinal, é um dos nossos. Sempre aparece na televisão e
também fala no rádio. Os jornais sempre trazem alguma coisa sobre
ele. Há pouco tempo até fui procurado por dois repórteres, que me
pediram para falar sobre o passado. Então contei aquela história  do
Gigi, que certa vez...

- Vamos avançar aí na frente! - gritaram algumas vozes da fila.

- Mas por que ele não aparece mais? - perguntou Momo.

- Ah, sabe como é - disse Nino, já meio nervoso -, ele não tem mais
tempo. Tem coisas mais importantes para fazer. E, de qualquer modo,
no velho anfiteatro já não acontece mais nada.

- O que deu em vocês? - gritaram outras vozes zangadas, lá de trás. -


Estão pensando que é bom ficar aqui de pé a vida toda?

- Onde ele está morando agora? - perguntou Momo, insistente.

- Em algum lugar lá pelos lados do Monte Verde - respondeu Nino. -


Dizem que tem uma linda mansão, no meio de um parque. Agora vá
andando, por favor.

Momo queria ficar mais, pois ainda tinha muitas perguntas, mas foi
simplesmente empurrada para frente. Foi com sua bandeja para uma
das mesinhas de cogumelo e, de fato, depois de esperar um pouco,
conseguiu um lugar. Só que a mesa era muito alta e o tampo lhe
chegava à altura do nariz.

Quando conseguiu apoiar sua bandeja, as pessoas que estavam em


volta olharam enojadas para a tartaruga.

- Onde já se viu? - disse um homem para seu vizinho. Hoje em dia


somos obrigados a aguentar cada coisa!

E o outro resmungou: 

- O que o senhor queria? Essa juventude de hoje...

Mas pararam por aí e não deram mais atenção à menina. Para ela,
comer já foi uma tarefa bastante difícil, pois não conseguia enxergar o
prato. No entanto, como estava esfomeada, comeu tudo, até a última
migalha.
Já estava satisfeita, porém queria se informar, de qualquer jeito,
sobre o que tinha acontecido com Beppo. Assim, voltou para a fila.
Temia que as pessoas voltassem a se zangar com ela se ficasse apenas
ali no meio. Por isso, ao passar, voltou a pegar algumas coisas das
vitrines.

Quando finalmente chegou perto de Nino outra vez, perguntou:

- E onde está Beppo Varredor?

- Ele esperou por você durante muito tempo - explicou Nino,


apressado, pois tinha medo de que seus clientes voltassem a se irritar.
- Pensou que tivesse acontecido alguma coisa terrível com você. Estava
sempre contando alguma coisa sobre uns tais homens cinzentos, nem
sei mais o que era. Você o conhece, ele sempre foi meio esquisito.

- Ei, vocês dois aí na frente - gritou alguém da fila. - Estão dormindo?

- Já, já, meu senhor - gritou Nino.

- E depois? - perguntou Momo.

- Depois foi alvoroçar a polícia - continuou Nino, nervoso, passando a


mão pelo rosto. - Queria que procurassem você de qualquer jeito.
Fiquei sabendo que acabaram levando Beppo para uma espécie de
sanatório. Depois não soube mais nada.

- Outra vez? - gritou uma voz furiosa lá de trás. - Afinal, isto é


restaurante expresso ou sala de espera? Vocês, aí na frente, estão
fazendo reunião de família, é?

- Mais ou menos - disse Nino, suplicante.

- Ele ainda está lá? - perguntou Momo.

- Acho que não - respondeu Nino. - Quer dizer, parece que o


deixaram ir embora porque não era perigoso.

- Então onde é que ele está agora?

- Não tenho ideia, Momo, realmente. Por favor, agora vá andando.

Mais uma vez, Momo foi simplesmente empurrada pelas pessoas.


Voltou para uma mesinha de cogumelo, esperou até conseguir um
lugar e engoliu a refeição que estava na bandeja. Dessa vez já não
achou tudo tão gostoso. Mas não lhe passava pela cabeça deixar a
comida no prato. Agora ainda faltava saber o que tinha acontecido
com as crianças, que antes sempre iam visitá-la. O único jeito era
voltar para a fila, esperar, passar pelas vitrines e encher a bandeja de
comida, para que as pessoas não se zangassem com ela. Finalmente,
chegou de novo até Nino.

- E as crianças? - perguntou. - O que aconteceu com elas?

- Está tudo diferente - explicou Nino, que tinha começado a suar ao


ver Momo de novo. - Agora não posso explicar, pois você mesma está
vendo como são as coisas por aqui.

- Mas por que elas não aparecem mais? - Momo insistiu na pergunta.

- Todas as crianças que não têm ninguém para cuidar delas são
levadas para depósitos de crianças. Não podem mais ficar sozinhas,
pois..., bem, em resumo, porque agora têm quem cuide delas.

- Vamos logo, seus molengas aí na frente! - voltaram a gritar


algumas vozes na fila. - Afinal, queremos ver se também conseguimos
comer!

- Meus amigos? - perguntou a menina, surpresa. - Mas foram eles


que quiseram isso?

- Ninguém lhes perguntou - respondeu Nino, batendo, nervoso, os


dedos no teclado da caixa. - Afinal de contas, crianças não podem
decidir essas coisas. Agora tem quem se preocupe em tirá-las da rua.
Isso é o mais importante, não é mesmo?

Momo não respondeu nada, só ficou observando Nino, atentamente.


Isso o deixou totalmente confuso.

- Não é possível, outra vez? - voltou a gritar uma voz zangada, lá de


trás. - É incrível o que está acontecendo aqui hoje! Será que vocês não
podem deixar essa conversinha para depois?

- E agora? - perguntou Momo, baixinho. - O que vou fazer sem meus


amigos?

Nino encolheu os ombros e estalou os dedos.


- Momo - disse ele, respirando fundo, como se estivesse tentando se
controlar -, por favor, seja razoável, volte outra hora. Agora não tenho
tempo, mesmo, para lhe dar qualquer conselho. Você já sabe que pode
comer sempre aqui. Mas, se eu fosse você, também procuraria um
depósito de crianças. Lá você receberia todos os cuidados e, além do
mais, aprenderia alguma coisa. De qualquer modo, vai acabar sendo
levada para lá, se continuar andando sozinha pelo mundo.

Mais uma vez, Momo não disse nada, só ficou olhando para Nino. A
multidão que vinha atrás dela a empurrou. Automaticamente, a
menina foi para uma mesinha e engoliu sua terceira refeição, apesar
de ser difícil fazer descer aquela comida com gosto de papelão e
serragem. Depois, ficou com enjoo.

Pôs Cassiopéia embaixo do braço e foi saindo em silêncio, sem olhar


para trás.

- Ei, Momo! - chamou Nino atrás dela, ao vê-la sair. - Espere um


pouco! Você não me contou onde esteve escondida todo esse tempo!

Mas já havia outras pessoas passando e ele voltou a bater nas teclas
da caixa, pegar o dinheiro e devolver o troco. O sorriso de seu rosto já
se desfizera havia muito tempo.

- Comi demais - disse Momo para Cassiopéia, ao chegarem de volta


ao velho anfiteatro. - Comi demais e mesmo assim tenho a sensação
de que não estou satisfeita.

Depois de algum tempo, continuou, pensativa:

- Não deu para contar ao Nino sobre as flores e a música. E, depois


de mais alguns instantes, ela disse:

- Amanhã vamos procurar Gigi. Tenho certeza de que vai gostar


muito dele, Cassiopéia. Você vai ver.

Nas costas da tartaruga apareceu apenas um grande ponto de


interrogação.
 
Capitulo Quinze
ACHADO E PERDIDO
 

No dia seguinte, Momo levantou cedo e saiu com a tartaruga debaixo


do braço para procurar a casa de Gigi.

Sabia onde era o Monte Verde. Era um bairro de mansões, bem


distante do velho anfiteatro. Ficava perto dos bairros novos, de prédios
todos iguais, portanto, do outro lado da grande cidade.

Era uma caminhada longa. Apesar de estar acostumada a andar


descalça, Momo chegou ao Monte Verde com os pés doendo. Sentou-se
no meio-fio para descansar um pouco.

De fato, era um bairro elegante: ruas largas, muito limpas, quase


vazias. Nos jardins, por trás de grades ou muros muito altos, as copas
de velhas árvores erguiam-se na direção do céu. No meio dos parques,
as casas eram, em sua maioria, construções baixas e esparramadas, de
concreto e vidro, com telhados planos. Os gramados regularmente
aparados tinham um verde intenso e eram um convite formal para
virar cambalhotas, mas não se via ninguém passeando ou brincando
na relva. Provavelmente os proprietários não tinham tempo para isso.

- Só queria saber como vou descobrir onde mora o Gigi disse Momo à
tartaruga.

"VOCÊ JÁ VAI SABER", foi a resposta que apareceu nas costas de


Cassiopéia.

- Você acha? - perguntou a menina, esperançosa.

- Ei, vagabunda! - disse de repente uma voz atrás dela. O que está
procurando por aqui?

Momo virou-se e viu um homem com um colete listrado muito


estranho. Não sabia que empregados de gente rica usavam roupa
daquele tipo.

Momo levantou-se e disse:


- Bom dia! Estou procurando a casa do Gigi. Nino me disse que ele
mora por aqui.

- Casa de quem?

- Do Gigi Guia. Ele é meu amigo.

O homem de colete listrado olhou desconfiado para a menina. Por


trás dele, o portão ficara entreaberto e Momo deu uma espiada lá para
dentro. Viu um gramado amplo, onde brincavam alguns cachorros
galgos e no meio do qual jorrava um chafariz. Pousado numa árvore
em flor, havia um casal de pavões.

- Oh, que lindos pássaros! - exclamou Momo, maravilhada. Quis


entrar para vê-los mais de perto, mas o homem de colete a deteve,
agarrando-a pela gola do casaco.

- Fique onde está! - ele disse. - Quem você pensa que é, sua
vagabunda?

Largando Momo, apressou-se em limpar as mãos no lenço, como se


tivesse tocado em algo repugnante.

- Tudo isso é seu? - perguntou, ainda, Momo, apontando para o


parque atrás das grades.

- Não - respondeu o sujeito de colete, mais áspero ainda. - Agora


desapareça! Você não tem nada que fazer aqui!

- Tenho, sim! - disse a menina, num tom seguro. - Estou à procura do


Gigi Guia, ele está à minha espera. Você não o conhece?

- Aqui não tem guia nenhum - replicou o homem cie colete,


voltando-lhe as costas.

Ele entrou no jardim e já ia fechando o portão quando, de repente,


pareceu lembrar-se de alguma coisa.

- Será que você está falando do Girolamo, o famoso contador de


histórias?

- É ele mesmo, Gigi Guia - respondeu Momo, radiante. O nome dele é


esse. Você sabe onde é a casa do Gigi?
- Mas ele está mesmo à sua espera? - indagou o homem.

- Claro que está! - disse Momo. - Ele é meu amigo e paga tudo o que
eu como no restaurante do Nino.

O homem de colete ergueu as sobrancelhas e balançou a cabeça.

- Esses artistas! - disse ele, amargo. - Eles têm cada mania! Enfim, se
você acha mesmo que ele está aguardando sua visita, a casa é a
última, bem no fim da rua.

E o portão se trancou.

"BOBÃO", apareceu na carapaça de Cassiopéia, mas as letras se


apagaram bem depressa.

A última casa da rua era cercada por um muro muito alto. O portão
de entrada era de chapa de ferro, como o do homem de colete, para
ninguém poder enxergar lá dentro. Não havia campainha nem placa
com o nome do proprietário.

- Será que esta é mesmo a casa nova do Gigi? - perguntou Momo. -


Não se parece nem um pouco com ele.

"MAS É", apareceu nas costas da tartaruga.

- Por que está tudo trancado desse jeito? - indagou a menina. - Desse
jeito não vou poder entrar!

"ESPERE!", foi a resposta.

- Está bem - suspirou Momo. - Mas acho que vou ter que esperar
muito. Como é que o Gigi vai saber que estou aqui fora... se é que ele
está aí dentro?

"ELE JÁ VEM", apareceu na carapaça.

A menina sentou-se diante do portão e pôs-se a esperar,


pacientemente. Durante muito tempo não aconteceu nada, e Momo
começou a imaginar se Cassiopéia, daquela vez, não estaria enganada.

- Você tem certeza, mesmo? - ela perguntou.


Mas em lugar da esperada resposta, a palavra que surgiu na
carapaça foi:

"ADEUS". Momo levou um susto.

- Cassiopéia, o que quer dizer isso? Vai me abandonar? O que você


vai fazer?

"VOU PROCURAR VOCÊ!", foi a resposta de Cassiopéia, mais


enigmática ainda.

Exatamente nesse momento, o portão se escancarou e um


automóvel comprido e elegante saiu a toda a velocidade. Momo só
teve tempo de pular para trás e cair de costas.

O automóvel passou voando e, logo adiante, parou com uma freada,


fazendo cantar os pneus. Uma porta se abriu e Gigi saltou para fora.

- Momo! - ele gritou, abrindo os braços. - É mesmo a minha querida


Momo, em carne e osso!

Momo também saiu correndo ao encontro dele. Gigi pegou-a nos


braços e levantou-a no ar, beijou-a centenas de vezes nas duas
bochechas e saiu dançando com ela pela rua.

- Você se machucou? - perguntou ele, quase sem fôlego. Mas, sem


esperar resposta, continuou falando, agitado. - Desculpe ter assustado
você, mas é que estou com uma pressa danada, sabe? Estou atrasado
de novo! Onde é que você se escondeu esse tempo todo? Precisa me
contar tudo direitinho. Achei que você não fosse mais voltar. Recebeu
minha carta? Recebeu? Ainda estava lá? Ótimo! E tem ido comer no
Nino? Ah, Momo, temos tanto que conversar! Tanta coisa aconteceu
durante esse tempo. Como você está? Fale! E o nosso velho Beppo,
onde anda? Não o vejo hái séculos. E as crianças? Ah, Momo! Penso
tanto naquela época em que ainda estávamos todos juntos e eu
costumava contar histórias. Que bons tempos!

Agora está tudo diferente, completamente diferente.

Momo tentara várias vezes responder às perguntas de Gigi. Mas,


como ele não parava de falar, ela simplesmente esperava, olhando
para ele. Gigi tinha mudado  muito, estava bem-vestido e perfumado.
Mas, de certo modo, sentia-o como um estranho.
Enquanto isso, quatro pessoas desceram do carro e juntaram-se a
eles: um homem com uniforme de motorista e três moças de
fisionomias duras e maquiagem carregada.

- A menina se machucou? - perguntou uma delas, em tom mais de


censura do que de preocupação.

- Não, não foi nada! - afirmou Gigi. - Foi só o susto.

- Também, o que ela estava fazendo grudada no portão? - disse a


segunda.

- Mas é Momo! - explicou Gigi, rindo. - É minha querida amiguinha


Momo!

- Ah! Então essa garota existe mesmo? - indagou a terceira moça,


surpresa. - Sempre pensei que fosse invenção sua. Temos de divulgar
logo a notícia para a imprensa e para a televisão: "Reencontro com a
princesa encantada", ou qualquer coisa assim. O público vai vibrar!
Vou já cuidar disso. Vai ser um furo!

- Não - declarou Gigi -, não quero que façam isso.

- Mas a menina vai gostar de sair nos jornais, não é mesmo? - disse a
primeira para Momo, com um sorriso.

- Deixem a menina em paz! - interveio Gigi, zangado.

A segunda moça deu uma olhada no seu relógio de pulso.

- Se não nos apressarmos, vamos perder o avião. E o senhor sabe o


que isso significaria! - disse ela.

- Meu Deus! - exclamou Gigi, nervoso. - Será que nem posso ter
sossego para trocar algumas palavras com Momo, depois de uma
separação tão longa? Está vendo só, Momo, essas feitoras de escravos
não me largam! Não me deixam em paz por um segundo!

- Ora - disse a segunda moça, mordaz. - Para nós tanto faz. Só


estamos cumprindo nossa função. O senhor nos paga para
organizarmos sua agenda, prezado patrão.

- Claro, claro, eu sei. - concordou Gigi. - Então vamos embora! Sabe


de uma coisa, Momo? Você vai junto até o aeroporto. Assim podemos ir
conversando no caminho e depois meu motorista a levará de volta
para casa, está bem?

Sem esperar pela resposta de Momo, pegou-a pela mão e puxou-a


até o carro. As três moças sentaram-se no banco de trás; Gigi ia na
frente, ao lado do motorista, levando a menina no colo.

- Bem, Momo, agora, conte! - disse Gigi. - Mas desde o começo.


Como foi que você desapareceu tão de repente?

Momo ia começar a falar de Mestre Hora e das flores maravilhosas,


quando uma das moças debruçou-se para a frente:

- Com licença, tenho uma ideia maravilhosa. Poderíamos levar Momo


imediatamente até a Companhia Pública de Cinema. Ela é a estrela
infantil ideal para a história sobre vagabundos de rua que eles estão
para filmar. Imagine que sensação! Momo representando Momo!

- Não ouviu o que eu disse? - respondeu Gigi, zangado. Não quero


esta criança metida nisso!

- Não consigo entender o que o senhor está querendo respondeu a


moça, amuada. -

Qualquer um ficaria lambendo os beiços diante dessa oportunidade.

- Eu não sou qualquer um! - gritou Gigi, furioso. E, voltando-se para


Momo, ele disse: - Desculpe, Momo, talvez você não compreenda, mas
não posso permitir que esse bando também ponha as mãos em você.

As três moças ficaram ofendidas.

Gigi pôs a mão na cabeça, gemendo, pegou uma caixinha de prata


do bolso do colete, tirou dela um comprimido e o engoliu.

Durante alguns momentos, ninguém disse nada.

Depois, Gigi voltou-se para o banco de trás:

- Não me levem a mal, não quis ofendê-las, mas meus nervos estão
esgotados.

- Não se preocupe, já estamos acostumadas com suas explosões -


respondeu uma das moças.
- Agora - disse Gigi, voltando-se para Momo e sorrindo meio de lado
-, vamos falar de nós.

- Só mais uma pergunta, antes que seja tarde - interrompeu a


segunda moça. - Já estamos chegando. O senhor não permitiria que eu
fizesse, pelo menos, uma rápida entrevista com a menina?

- Chega! - berrou Gigi, fora de si. - Agora eu vou conversar com


Momo, e em particular! É importante para mim! Quantas vezes vou ter
que explicar?

- Ora - replicou a moça, também furiosa -, mas é o senhor quem vive


dizendo que eu deveria fazer mais publicidade em torno do seu nome.

- Está certo - explodiu Gigi. - Mas não agora. Não agora!

- É pena! - disse a moça. - Uma história dessas levaria as pessoas às


lágrimas.

Mas o senhor é quem sabe. Talvez possamos fazer isso mais tarde,
quando...

- Não! - interrompeu Gigi. - Nem agora nem mais tarde, de jeito


nenhum. E agora cale essa boca, enquanto eu converso com Momo.

- Desculpe - insistiu a moça. - Afinal de contas, trata-se da sua


publicidade, não da minha! Pense bem se o senhor pode se dar ao luxo
de perder uma oportunidade como essa.

- Não - gritou Gigi, desesperado -, não posso me dar a esse luxo. Mas
Momo vai ficar fora disso! Agora, eu lhe imploro, deixe-nos em paz por
cinco minutos!

As moças se calaram. Gigi esfregou os olhos, exausto.

- Veja, Momo, a que ponto cheguei! - disse ele, com um risinho


amargo. - Mesmo que eu queira, não posso mais voltar atrás. Estou
acabado! "Gigi será sempre Gigi"... você lembra? Pois bem, Gigi deixou
de ser Gigi. Vou lhe dizer uma coisa, Momo: a coisa mais perigosa na
vida são os sonhos realizados. Pelo menos quando acontece como
aconteceu comigo. Não tenho mais com o que sonhar. Também não
conseguiria aprender de novo com você. Estou tão farto de tudo!

Olhou melancolicamente pela janela do carro.


- A única coisa que eu ainda poderia fazer seria calar a boca, não
contar mais nada, emudecer, talvez até o fim da minha vida. Ou pelo
menos até que todos tivessem se esquecido de mim e eu voltasse a ser
um pobre diabo desconhecido.

Mas ser pobre e sem sonhos... não, Momo, seria o inferno. É melhor
ficar onde estou. Também é um inferno, mas pelo menos é confortável.
Mas por que estou falando tudo isso? É claro que você não pode
compreender.

Momo apenas olhava para Gigi. Compreendia antes de tudo que ele
estava doente, terrivelmente doente. Suspeitava que os homens
cinzentos tivessem alguma coisa a ver com aquilo tudo. Não sabia
como poderia ajudá-lo, uma vez que ele não queria nada.

- Mas continuo falando só de mim - disse Gigi. - Agora, afinal, fale de


você, do que viveu esse tempo todo, Momo.

Nesse instante, o carro parou no aeroporto. Todos desceram e


entraram correndo no saguão. Gigi já estava sendo esperado por
recepcionistas uniformizadas.

Alguns repórteres o fotografaram e lhe fizeram perguntas. Mas as


recepcionistas o apressavam, pois o avião iria decolar em alguns
minutos.

Gigi curvou-se para Momo, contemplou-a longamente. De repente,


seus olhos encheram-se de lágrimas.

- Escute, Momo - disse ele, tão baixinho que ninguém ouviu -, fique
comigo!  Levarei você nesta viagem e em todas as outras. Você ficará
morando na minha bela casa e se vestirá de veludo e de seda, como
uma princesinha de verdade.  Bastará ficar perto de mim e me ouvir.
Talvez então eu volte a inventar histórias bonitas, como aquelas de
antes, lembra? É só você dizer sim, Momo, e tudo dará certo outra vez!
Ajude-me, por favor!

A menina gostaria muito de ajudar Gigi. Estava com o coração


apertado. Mas sentiu que daquele jeito não ia dar certo. Ele precisava
voltar a ser Gigi, e em nada o ajudaria se deixasse de ser Momo. Seus
olhos também se encheram de lágrimas. Ela recusou, balançando a
cabeça. Gigi a compreendeu. Concordou, tristemente, e foi arrastado
pelas moças, que ele pagava para isso. Acenou mais uma vez, de
longe. Momo acenou também e ele desapareceu.

Durante todo o seu encontro com Gigi, Momo não conseguira dizer
uma só palavra.

No entanto, tinha tanta coisa para lhe contar! Tinha a impressão de


que, justamente ao encontrá-lo, ela o perdera.

Lentamente, Momo virou as costas e foi saindo do saguão do


aeroporto. De repente, teve um sobressalto: também perdera
Cassiopéia.
Capítulo Dezesseis

A MISÉRIA NA FARTURA
 

- Para onde? - perguntou o motorista, quando Momo se sentou ao seu


lado, no elegante carro de Gigi.

A menina ficou olhando, confusa, à sua frente. O que iria dizer? Para
onde, na verdade, queria ir? Precisava procurar Cassiopéia. Mas onde?
Quando e em que lugar a perdera? Tinha certeza de que ela já não
estava a seu lado durante o percurso de automóvel com Gigi.

Talvez na frente da casa de Gigi. Lembrou-se também de que havia


lido nas costas dela as palavras "ADEUS" e "VOU PROCURAR VOCÊ". É
claro que Cassiopéia sabia com antecedência que ficaria perdida e por
isso sairia à procura de Momo. Mas onde Momo deveria procurar
Cassiopéia?

- Vai demorar muito? - disse o motorista, tamborilando no volante. -


Tenho mais o que fazer do que levar você para passear.

- Para a casa de Gigi, por favor - pediu Momo. O motorista olhou para
ela, meio surpreso.

- Pensei que devia levar você para casa. Ou será que vai ficar
morando conosco?

- Não - respondeu a menina -, mas perdi uma coisa na rua e preciso


encontrá-la.

Para o motorista estava ótimo, pois de qualquer modo teria que


voltar para lá.

Quando chegaram, Momo saltou logo do carro e começou sua busca


por toda parte.

- Cassiopéia! - ela chamava, baixinho. - Cassiopéia!

- Afinal, o que é que você está procurando? - perguntou o motorista,


pela janela do carro.
- É a tartaruga de Mestre Hora - respondeu Momo. - Ela se chama
Cassiopéia e sempre sabe o que vai acontecer, com meia hora de
antecedência. Ela escreve letras na sua carapaça. Preciso encontrá-la
de qualquer jeito. Quer me ajudar, por favor?

- Não tenho tempo para brincadeiras bobas! - resmungou o


motorista, entrando pelo portão, que se fechou atrás do carro.

Momo continuou a procurar sozinha. Procurou pela rua inteira, mas


não viu nem sinal de Cassiopéia.

"Talvez ela esteja indo para o anfiteatro", pensou a menina.

Momo foi voltando devagarinho pelo mesmo caminho que tomara na


vinda. Olhava por todos os cantos e todas as esquinas. Chamava sem
cessar pela tartaruga, mas tudo em vão.

Quando a menina chegou ao anfiteatro, já era tarde da noite. Lá


também procurou por todos os cantos, tanto quanto lhe permitia a
escuridão. Tinha a esperança de que, por algum passe de mágica, a
tartaruga tivesse chegado antes que ela. No entanto, é claro que seria
impossível, pois Cassiopéia andava muito devagar.

Momo deitou-se na cama. Pela primeira vez, estava completamente


sozinha.

A menina passou as semanas seguintes perambulando pela grande


cidade, esperando encontrar Beppo Varredor. Já que ninguém sabia
indicar seu paradeiro, só lhe restava a esperança de que em algum
momento seus caminhos se cruzassem. Porém, numa cidade tão
imensa, a probabilidade cie duas pessoas se encontrarem por acaso
era tão pequena quanto a de que uma mensagem dentro de uma
garrafa, jogada no oceano por um náufrago, fosse resgatada por um
barco de pescadores numa costa distante.

No entanto, Momo às vezes imaginava que eles poderiam estar


muito perto um do outro. Quem poderia saber quantas vezes ela não
passara por algum lugar em que Beppo estivera uma hora, um minuto,
um segundo antes. Ou, ao contrário, quem poderia dizer se, cedo ou
tarde, Beppo não passaria depois dela por alguma praça ou rua. Por
isso, muitas vezes Momo ficava durante horas esperando num mesmo
lugar. No entanto, em algum momento ela era obrigada a continuar
andando, e então, mais uma vez, podia ser que os dois se
desencontrassem por pouco.

Como seria bom se Cassiopéia estivesse com ela, para poder lhe
dizer "ESPERE" ou "PROSSIGA". Sozinha, porém, Momo nunca sabia o
que fazer. Tinha medo de se desencontrar de Beppo se esperasse e
tinha medo de se desencontrar dele se continuasse caminhando.

A menina também tentava localizar as crianças que antes sempre


iam visitá-la.

Mas nunca viu nenhuma delas. Aliás, não via mais crianças nas ruas
de jeito nenhum, e lembrou-se de que Nino dissera que agora havia
quem cuidasse delas.

O fato de a própria Momo nunca ter sido apanhada por um policial


ou qualquer outro adulto e levada para um depósito de crianças devia-
se à constante vigilância dos homens cinzentos. Não fazia parte dos
planos deles. Mas isso Momo não sabia.

Uma vez por dia, ela ia comer no restaurante do Nino. No entanto,


nunca conseguia conversar com ele mais do que naquele primeiro
encontro. Nino estava sempre com a mesma pressa e nunca tinha
tempo.

As semanas transformaram-se em meses, e Momo continuava


sozinha. Uma única vez, quando estava sentada na amurada de uma
ponte, na hora do pôr-do-sol, Momo viu ao longe, numa outra ponte,
uma figurinha encurvada, que varria apressadamente, como se daquilo
dependesse sua vida. Acreditando ter reconhecido Beppo, ela gritou e
acenou, mas a tal figura não interrompeu seu trabalho nem por um
instante. Momo saiu correndo, mas quando chegou à outra ponte não
viu mais ninguém.

"Não deve ter sido Beppo", a menina disse a si mesma, para se


consolar. "Não podia ser ele. Ele não varre daquele jeito."

Às vezes ficava em casa, sem sair do anfiteatro, porque de repente


lhe vinha a esperança de que Beppo pudesse passar por lá para saber
se ela tinha voltado. Se não a encontrasse, naturalmente pensaria que
ela não tinha voltado. Mais uma vez, imaginava se isso já não teria
acontecido, uma semana ou um dia antes.
Então esperava, mas sempre em vão. Acabou escrevendo em letras
grandes, na parede do quarto: ESTOU DE VOLTA. Só que, além dela,
ninguém leu o recado.

Uma coisa, no entanto, nunca abandonou Momo durante todo esse


tempo: a lembrança viva do que tinha vivido com Mestre Hora, a
lembrança sempre presente das flores, da música. Era só fechar os
olhos e escutar dentro de si mesma que ela revia as cores brilhantes e
magníficas das flores e ouvia a música das vozes.

Tal como no primeiro dia, conseguia repetir as palavras e cantar as


melodias, embora elas sempre se transformassem e nunca fossem as
mesmas.

Momo passava dias a fio sentada nos degraus de pedra, falando e


cantando para si mesma. Ninguém a ouvia, a não ser as árvores, os
pássaros e as velhas pedras.

Há muitas formas de solidão. A de Momo era um tipo de solidão que


poucas pessoas conhecem, menos ainda com tanta intensidade.
Sentia-se como que aprisionada numa gruta cheia de tesouros de
inestimável valor, que cresciam continuamente, ameaçando sufocá-la.
E não havia saída. Ninguém conseguia chegar até ela e, por outro lado,
ela não conseguia se fazer notar por ninguém, profundamente
enterrada sob uma montanha de tempo.

Havia momentos em que desejava nunca ter ouvido aquela música e


visto aquelas cores. No entanto, se lhe oferecessem a escolha, não
trocaria aquelas lembranças por nada no mundo. Nem que morresse
por isso. Momo descobrira que há tesouros que nos arruínam quando
não podemos compartilhá-los com os outros.

De vez em quando, ia até a casa de Gigi e esperava longamente


diante do portão.

Tinha esperança de vê-lo de novo. Resolvera concordar com tudo.


Queria morar com ele, ouvi-lo e conversar com ele, exatamente como
antes. Mas o portão nunca se abria.

Apenas alguns meses se passaram assim, mas era o tempo mais


longo que Momo já vivera. Pois o tempo verdadeiro não é o que se
mede por relógios ou calendários.
É indescritível a solidão que ela vivia. Pode-se acrescentar apenas
que, se Momo conseguisse encontrar o caminho para chegar a Mestre
Hora, e isso ela tinha tentado muitas vezes, pediria que ele não lhe
desse mais tempo, ou então que a deixasse ficar morando para sempre
com ele, na Casa de Lugar Nenhum.

Mas sem Cassiopéia não conseguia mais achar o caminho. E


Cassiopéia tinha mesmo sumido. Talvez tivesse voltado para junto de
Mestre Hora ou estivesse perdida em algum lugar do mundo. De
qualquer modo, nunca mais voltara.

No entanto, aconteceu algo inesperado.

Certo dia Momo encontrou-se na cidade com três crianças que antes
costumavam ir encontrá-la no anfiteatro. Eram Paulo, Franco e Maria, a
menina que estava  sempre com a irmãzinha Dedé. Os três tinham
mudado muito. Vestiam uma espécie de uniforme cinzento e seus
rostos tinham uma expressão estranhamente vazia e sem vida. Mesmo
quando Momo os cumprimentou efusivamente, eles mal sorriram.

- Tenho procurado tanto por vocês! - exclamou a menina, quase sem


fôlego. - Vamos agora até minha casa?

Os três se entreolharam e balançaram a cabeça negativamente.

- Bem, então vocês irão amanhã? Ou depois de amanhã? - insistiu


Momo.

Mais uma vez, os três balançaram a cabeça.

- Ora, vocês precisam voltar! - suplicou a menina. - Antigamente


vocês sempre iam me ver!

- Antigamente! - respondeu Paulo -, mas agora tudo mudou. Não


podemos mais gastar nosso tempo com coisas inúteis.

- Mas isso nós nunca fizemos! - disse Momo.

- Pois é, era bom - disse Maria -, mas isso não vem ao caso.

As três crianças saíram andando apressadas, e Momo as


acompanhou.

- Para onde vocês estão indo?


- Para a aula de brincar - respondeu Franco. - Lá nós aprendemos a
brincar.

- Brincar do quê? - perguntou Momo.

- Hoje vamos brincar de fichas perfuradas - disse Paulo. É muito útil,


mas exige muita concentração.

- Como funciona essa brincadeira?

- Cada um de nós é uma ficha, com vários dados diferentes como


peso, altura, idade e assim por diante. Mas nunca são nossos dados de
verdade, senão seria muito fácil. Às vezes também somos apenas um
longo número, como por exemplo MUX/763/y. Então somos
embaralhados e colocados num arquivo. Daí um de nós precisa
descobrir uma determinada ficha vai fazendo perguntas até eliminar
todas as outras e deixar sobrar apenas a ficha certa. Ganha quem
conseguir descobrir mais depressa.

- E isso é divertido? - perguntou Momo, duvidando.

- Não é isso que importa - disse Maria, meio nervosa. Não se deve
falar assim.

- Então o que é que importa'

- O importante é que seja útil para o nosso futuro - explicou Paulo.

Nesse meio-tempo, chegaram ao portão de uma grande casa


cinzenta, onde estava escrito: "Depósito de Crianças".

- Tenho tanta coisa para contar a vocês - disse Momo.

- Talvez qualquer dia a gente volte a se encontrar - respondeu Maria,


com tristeza.

Em torno deles havia outras crianças, que iam entrando pelo portão.
Todas elas se pareciam com os três amigos de Momo.

- Com você era muito melhor - disse Franco, de repente. - Nós


mesmos sempre tínhamos um monte de ideias. Mas eles dizem que a
gente não aprende nada com isso.

- Vocês não podem fugir? - perguntou Momo.


Os três sacudiram a cabeça, olhando em torno para ver se ninguém
tinha escutado.

- No começo, tentei algumas vezes - murmurou Franco. Mas não


adianta. Sempre trazem a gente de volta.

- Não diga isso - aconselhou Maria -, afinal agora estão cuidando de


nós.

Ficaram todos calados, com o olhar vago. Por fim, Momo criou
coragem e pediu:

- Vocês não podem me levar junto? Estou sempre tão sozinha!

Então aconteceu uma coisa muito estranha. Antes que alguma das
crianças pudesse responder, foram todas tragadas para dentro da
casa, como que atraídas pela força de um ímã gigantesco. E o portão
se fechou atrás delas, com um estrondo.

Momo assustou-se ao ver aquilo. Mesmo assim, depois de um


momento, aproximou-se do portão para tocar a campainha ou bater.
Queria pedir, mais uma vez, para brincar com as crianças, de qualquer
coisa que fosse. Mal deu um passo, porém, ficou gelada de medo.
Entre ela e o portão, estava postado um dos homens cinzentos.

- É inútil - disse ele, com o charuto no canto da boca. Nem adianta


tentar. Não é do nosso interesse que você entre neste lugar.

- Por quê? - perguntou a menina, sentindo aquele frio gélido subir


por ela

- Porque temos outros planos para você - explicou o homem


cinzento, soltando uma baforada de fumaça, que se enrolou no
pescoço cie Momo como um laço e só aos poucos foi se diluindo.

Muita gente passava, mas sempre com muita pressa. A menina


apontou para o homem cinzento e tentou gritar por socorro, mas não
conseguiu emitir um som.

- Desista! - disse o homem cinzento, dando uma risada gélida e


cinzenta. - Você ainda não nos conhece? Ainda não sabe o quanto
somos poderosos? Tiramos de você todos os seus amigos. Ninguém
mais pode ajudá-la. Podemos fazer com você o que quisermos. Mas,
como você vê, nós a poupamos.

- Por quê? - a menina conseguiu dizer, com dificuldade.

- Porque queremos que preste um servicinho - respondeu o homem. -


Se tiver juízo, poderá obter muitas vantagens, para você e também
para seus amigos. Você quer?

- Quero - sussurrou Momo.

O homem cinzento deu um sorrisinho apertado.

- Então vamos nos encontrar à meia-noite, para combinar tudo.

Momo meneou a cabeça, calada.

O homem cinzento já tinha sumido. Só a fumaça do seu charuto


ainda pairava no ar.

Ele não dissera onde deveriam se encontrar.


 
Capítulo Dezessete
GRANDE MEDO E MAIOR CORAGEM
 

Momo estava com medo de voltar ao velho anfiteatro. Com certeza o


homem cinzento, que queria encontrá-la à meia-noite, iria até lá.

Só de pensar em ficar ali sozinha com ele, a menina se enchia de


pavor.

Não, não queria mais vê-lo, nem ali nem em qualquer outro lugar.
Fosse qual fosse sua proposta, estava claro que, na verdade, não traria
nada de bom para ela nem para seus amigos.

Onde poderia se esconder dele?

O lugar mais seguro, provavelmente, era no meio da multidão. Momo


tinha percebido que ninguém reparara nela e no homem cinzento.
Mas, se ele fosse lhe fazer algum mal, ela gritaria por socorro e,
certamente, as pessoas iriam ajudá-la Além do mais, no meio de um
monte de gente seria mais difícil encontrá-la.

Durante o resto do dia e até bem tarde da noite, Momo ficou


andando em meio à multidão, pelas ruas e praças mais movimentadas,
até fechar um círculo enorme, voltando ao lugar por onde começara
sua caminhada. Percorreu o mesmo trajeto pela segunda e pela
terceira vez. Simplesmente deixava-se arrastar pela corrente da massa
humana sempre apressada.

Já tinha andado o dia inteiro, e seus pés estavam doendo de cansaço.


O tempo passava, e a menina, meio dormindo, continuava andando,
andando, andando...

"Só vou descansar um momento," pensou ela, afinal, "um


momentinho só, e já vou ficar mais disposta!"

Estacionado no meio-fio havia um pequeno veículo de carga,


daqueles de três rodas, com o bagageiro cheio de sacos e caixas.
Momo subiu nele e encostou-se num saco bem macio. Encolheu os pés
cansados, escondendo-os debaixo da saia.
Como era bom! Suspirou aliviada, acomodou-se melhor junto do
saco e, sem perceber, adormeceu exausta.

Foi assaltada, porém, por sonhos aflitivos. Viu o velho Beppo, usando
sua vassoura como uma longa vara de equilibrista, oscilando numa
corda sobre um precipício. "Onde está a outra ponta? Não consigo
encontrar a outra ponta!", gritava ele.

E a corda parecia, mesmo, interminável. Suas duas extremidades


perdiam-se no meio da escuridão.

Momo queria ajudar Beppo, mas ele não a ouvia, pois estava muito
longe e muito lá no alto.

Depois, viu Gigi, tirando da boca uma tira de papel interminável. Por
mais que ele puxasse, a tira não tinha fim e também não se rasgava.
Gigi já estava em cima de uma montanha de papel. Olhava para Momo
com ar de súplica, como se fosse parar de respirar se a menina não o
ajudasse.

Ela quis chegar até ele, mas ficou com os pés enredados nas tiras de
papel e, quanto mais tentava se soltar, mais se emaranhava.

Depois viu as crianças. Estavam achatadas como cartas de baralho e


cada carta apresentava um padrão de pequenas perfurações. As cartas
eram embaralhadas e precisavam voltar a se ordenar sozinhas, e novas
perfurações iam surgindo nelas.

As cartas-crianças choravam silenciosamente e sempre voltavam a


ser embaralhadas, caindo umas sobre as outras, batendo e estalando.

Momo queria gritar, "Parem, chega!", mas o ruído abafava sua voz
fraca. E o barulho foi se tornando cada vez mais forte, até acordá-la.

Num primeiro momento, Momo não sabia onde estava, pois à sua
volta só havia escuridão. Depois lembrou-se de que tinha subido na
caminhonete, que agora estava em movimento. O barulho do sonho
era do motor. Momo enxugou as faces, que ameia estavam molhadas
de lágrimas. Que lugar seria aquele?

A caminhonete certamente já havia rodado muito sem que ela


tivesse percebido, pois estavam atravessando uma região da cidade
em que, àquela hora da noite, não se via uma viva alma. As ruas
estavam vazias e os prédios às escuras.

Não rodavam em grande velocidade e, sem pensar muito no que


estava fazendo, Momo saltou para o chão. Queria voltar para as ruas
movimentadas, onde se sentia mais protegida contra os homens
cinzentos. Mas lembrou-se do que havia sonhado, e ficou parada.

O barulho do motor foi se afastando pelas ruas escuras, até tudo


ficar em completo silêncio.

Momo não queria mais fugir. Até então, tentara escapar na


esperança de se salvar. O tempo todo só pensara em si, em seu
abandono, em seu próprio medo! Na verdade, quem precisava de
ajuda eram seus amigos. Se é que alguém ainda os podia socorrer,
esse alguém era ela. Por menor que fosse a possibilidade de conseguir
que os homens cinzentos os libertassem, precisava pelo menos tentar.

Ao chegar a essa conclusão, Momo de repente sentiu que alguma


coisa nela havia mudado. O sentimento de medo e desamparo era tão
grande que de repente se transformou no contrário. Tinha sido
superado. Sentia-se corajosa e confiante, como se nenhum poder do
mundo fosse capaz de lhe fazer mal. Mais ainda, não se preocupava
mais com o que lhe pudesse acontecer.

Agora Momo queria encontrar os homens cinzentos, a qualquer


custo.

"Preciso voltar imediatamente ao velho anfiteatro", pensou ela.


"Talvez não seja tarde demais, pode ser que ele tenha esperado por
mim."

Foi mais fácil dizer do que fazer. A menina não sabia onde estava e
não tinha a menor ideia da direção em que deveria caminhar. Apesar
disso, saiu andando ao acaso.

Foi andando, andando, pelas ruas escuras e mortalmente silenciosas.


Como estava descalça, não ouvia sequer o barulho de seus passos.
Cada vez que virava uma esquina, tinha esperança de descobrir
alguma coisa que a orientasse, algum sinal que ela reconhecesse Mas
não achava nada. Também não podia perguntar nada a ninguém, pois
o único ser vivo que encontrou foi um cachorro magro e imundo, que
remexia um monte de lixo à procura de alimento e fugiu assustado
quando ela se aproximou.

Finalmente, Momo chegou a uma praça enorme e deserta. Não era


uma daquelas praças bonitas, com árvores e fontes, mas apenas um
espaço imenso e vazio. À sua volta, viam-se os contornos escuros das
casas, que se destacavam contra o céu noturno.

Quando Momo alcançou o centro da praça, o relógio da torre de


alguma igreja das redondezas começou a bater. Foram muitas batidas,
talvez fosse meia-noite. Se o homem cinzento já estivesse esperando
no anfiteatro, seria impossível chegar a tempo. Ele iria embora e Momo
teria perdido para sempre a oportunidade de ajudar seus amigos.

A menina mordeu os pulsos. O que poderia fazer? Não tinha ideia.

- Estou aqui! - ela gritou, o mais alto que pôde, para dentro da
escuridão. Mas não tinha qualquer esperança de que o homem
cinzento pudesse ouvi-la. No entanto, estava enganada.

Mal se ouviu a última batida do relógio, quando de todas as ruas que


desembocavam na praça enorme surgiram, simultaneamente, luzinhas
muito fracas, que rapidamente foram se tornando mais intensas.
Momo percebeu que eram os faróis de muitos automóveis, que
chegavam lentamente por todos os lados, aproximando-se do centro
da praça, onde ela se encontrava. Para qualquer lado que se voltasse,
uma luz ofuscante a atingia, de tal modo que foi obrigada a proteger
os olhos com as mãos. Eles tinham vindo!

A menina não contava com um contingente tão grande. Por um


instante, toda a sua coragem desapareceu. Estava completamente
cercada, não tinha como fugir, e encolheu-se o mais que pôde dentro
de seu velho casaco.

Lembrou-se então das flores e das vozes na melodia grandiosa e


voltou a se sentir segura e fortalecida.

Diminuindo a velocidade, os carros foram se aproximando cada vez


mais. Por fim, com os pára-choques encostados um no outro, formaram
um círculo, em cujo centro estava Momo.

Então, os homens desceram. Momo não conseguia ver quantos eram,


pois ficaram no escuro, por trás dos faróis. Mas sentia muitos olhares
voltados para ela, e eram olhares nada amigáveis. Momo sentiu frio.

Durante algum tempo, ninguém disse nada.

- Aí está - disse, finalmente, uma voz cinzenta-, essa é a menina


Momo, que achou que poderia nos desafiar! Vejam como está agora
esse montinho de desgraça!

Um barulho metálico seguiu-se a essas palavras. À distância, soava


como o riso de muitas vozes.

- Cuidado! - disse uma outra voz cinzenta. - Todos sabem o quanto


essa menina pode se tomar perigosa. Não vale a pena tentar enganá-
la.

Momo ouvia com atenção.

- Pois bem - disse a primeira voz, saindo da escuridão. - Vamos tentar


com a verdade.

Novamente, houve um longo silêncio. Momo percebeu que os


homens cinzentos temiam dizer a verdade. Aquilo parecia custar-lhes
imenso esforço. Ela ouviu um ruído de inúmeras gargantas se
limpando.

Afinal, um deles voltou a falar. A voz vinha de outra direção, mas era
igualmente cinzenta.

- Vamos falar francamente. Você está sozinha, pobre criança. Seus


amigos estão longe. Não há ninguém mais com quem você possa
partilhar seu tempo. Esse foi exatamente o nosso plano. Veja como
somos poderosos. Não adianta querer se opor à nossa força. O que
significam agora para você suas muitas horas solitárias?

Uma desgraça que a oprime, um peso que a esmaga, um oceano que


a submerge, uma tortura que a aflige. Você está isolada de todo o resto
da humanidade.

Momo ouvia, sempre em silêncio.

- Mais cedo ou mais tarde - prosseguiu a voz -, chegará um momento


em que você não poderá mais suportar isso, talvez amanhã, daqui a
uma semana ou um ano. Para nós tanto faz, vamos simplesmente
esperar. Sabemos que, em algum momento, você virá de joelhos nos
dizer: "Farei qualquer coisa, livrem-me desse peso!" Ou será que você
já chegou a esse ponto? É só dizer.

Momo balançou a cabeça, negando.

- Não quer nossa ajuda? - perguntou a voz, num tom gélido.

Uma onda de frio, vinda de todos os lados, envolveu a menina. No


entanto, ela cerrou os dentes e voltou a balançar a cabeça.

- Ela sabe o que é o tempo - sibilou outra voz.

- Isso prova que esteve de fato com o tal fulano - respondeu a


primeira voz. E, mais alto, dirigindo-se a Momo: - Você conhece Mestre
Hora?

A menina balançou a cabeça afirmativamente.

- Esteve mesmo com ele?

De novo, Momo fez sinal de que sim.

- Então conhece as flores-das-horas?

Pela terceira vez, ela balançou a cabeça confirmando. Ah, e como as


conhecia bem!

Seguiu-se novamente um longo silêncio. A voz que recomeçou a


falar vinha de outra direção:

- Você tem amor a seus amigos, não tem? Momo balançou a cabeça
afirmativamente.

- Gostaria de libertá-los do nosso poder, não é mesmo? Momo


confirmou novamente.

- Pois você pode fazer isso. Basta querer.

Tremendo dos pés à cabeça, a menina aconchegou-se mais ainda no


seu casaco.

- Na verdade, custaria muito pouco você libertar seus amigos. Nós a


ajudamos e você nos ajuda. É mais do que justo e muito barato.
Momo ficou olhando, atenta, para a direção de onde vinha a voz.

- Também gostaríamos de conhecer pessoalmente esse tal Mestre


Hora, compreende?

Mas não sabemos onde ele mora. Só queremos que você nos leve até
ele. É só isso.

Ouça bem, Momo, para que saiba que queremos ser francos e agir
corretamente: em troca, você terá seus amigos de volta, para que
vocês possam voltar à sua antiga vida de alegria. É uma proposta que
vale a pena!

Pela primeira vez, Momo abriu a boca. Tinha que fazer muito esforço
para falar, pois seus lábios estavam duros de frio.

- O que vocês querem com Mestre Hora? - ela perguntou,


lentamente.

- Queremos conhecê-lo - respondeu asperamente a voz. E o frio


voltou. - Isso deve bastar para você.

Momo ficou muda, à espera. Houve uma certa agitação entre os


homens cinzentos, eles pareciam meio inquietos.

- Não consigo compreendê-la! - disse a voz. - Pense em você mesma


e em seus amigos! Não se preocupe com Mestre Hora. Ele tem idade
para cuidar de si mesmo.

Aliás, se for razoável e cooperar conosco amigavelmente, não


tocaremos num fio de cabelo dele. Caso contrário, teremos meios de
forçá-lo.

- Forçá-lo a quê? - indagou a menina, com os lábios roxos.


Subitamente a voz soou estridente e cansada, ao dizer:

- Estamos fartos de ficar juntando horas, minutos e segundos das


pessoas.

Queremos todo o tempo dos seres humanos de uma vez. É isso que
Mestre Hora vai ter que nos entregar.

Indignada, Momo fitou a escuridão, na direção de onde vinha a voz.


- E as pessoas? - perguntou. - O que vai ser delas?

- Pessoas! - gritou a voz esganiçada. - Faz muito tempo que elas são
supérfluas.

Elas próprias levaram o mundo a tal ponto que logo não haverá mais
lugar para seus semelhantes. Nós governaremos o mundo!

O frio era agora tão terrível que Momo movia os lábios com muita
dificuldade, sem conseguir pronunciar uma só palavra.

- Mas não se preocupe, Momo - continuou a voz, repentinamente


mansa e quase agradável -, você e seus amigos serão exceção. Serão
os últimos seres humanos a brincar e contar histórias. Não se metam
mais em nossos assuntos e nós os deixaremos em paz.

A voz se calou, mas quase imediatamente voltou a falar, vinda de


outra direção:

- Você sabe que dissemos a verdade. Cumpriremos nossa palavra.


Agora leve-nos até Mestre Hora.

Momo tentou falar. O frio quase lhe fazia perder a consciência. A


muito custo, conseguiu pronunciar estas palavras:

- Mesmo que eu pudesse, não faria isso!

De algum lugar, a voz perguntou, ameaçadora:

- O que você quer dizer com "mesmo que eu pudesse"? Você pode!
Você esteve com Mestre Hora, portanto sabe o caminho!

- Não consigo mais achá-lo - murmurou Momo. - Já tentei... só


Cassiopéia é que sabe!

- Quem é Cassiopéia?

- É a tartaruga de Mestre Hora.

- Onde está ela?

Quase inconsciente, Momo gaguejou:

- Ela... voltou comigo... mas... mas depois eu a perdi!


A menina ouviu uma confusão de vozes agitadas, como se viessem
de muito longe.

- Alerta imediato! - ela ouviu gritar. - Precisamos achar a tartaruga.


Todas as tartarugas devem ser identificadas! Essa tal Cassiopéia
precisa ser encontrada!

Precisa! Precisa!

As vozes cessaram. Tudo ficou em silêncio. Aos poucos, Momo foi


voltando à consciência. Estava sozinha na praça enorme, sobre a qual
soprou uma rajada de vento frio, que parecia vir de um imenso vazio.
Era um vento cinzento.
Capítulo Dezoito
OLHANDO O FUTURO SEM OLHAR PARA TRÁS
 

Momo não sabia quanto tempo havia se passado. O relógio da igreja


batia de vez em quando, mas ela mal o ouvia. Só muito devagar o
calor voltou a seus membros gelados. Sentia-se paralisada e incapaz
de tomar qualquer decisão.

Deveria voltar ao velho anfiteatro e deitar-se para dormir? Toda a


esperança, para ela e seus amigos, estava perdida para sempre. Agora
sabia de fato que nunca mais as coisas ficariam bem, nunca mais...

Também temia por Cassiopéia. O que aconteceria se os homens


cinzentos a encontrassem? A menina começou a censurar-se
amargamente por ter mencionado a tartaruga. Mas tinha ficado tão
atordoada que nem sabia direito o que estava fazendo.

"E talvez", pensou Momo para se consolar, "Cassiopéia já esteja há


muito tempo junto de Mestre Hora! Tomara que não esteja mais me
procurando. Seria melhor para ela... e para mim se..."

Nesse instante, sentiu alguma coisa tocar seus pés descalços Momo
levou um susto e foi se agachando devagarinho.

Lá estava a tartaruga! E, em meio à escuridão, lentamente se


acenderam as letras: "AQUI ESTOU DE NOVO".

Sem refletir, Momo pegou-a e enfiou-a debaixo do casaco. Depois,


endireitou-se e ficou à escuta, perscrutando a escuridão, com medo de
que os homens cinzentos ainda estivessem por perto.

Mas tudo permaneceu em silêncio.

Cassiopéia debatia-se furiosamente dentro do casaco, tentando


libertar-se. Momo manteve-a firmemente apertada contra o corpo,
espiou para dentro do casaco e sussurrou:

- Fique quieta, por favor.

"POR QUE A AFLIÇÃO?", apareceu na carapaça.


- Você não pode ser vista - murmurou a menina.

Então, nas costas da tartaruga, acenderam-se as palavras: "VOCÊ


NÃO ESTÁ CONTENTE?"

- Claro que estou! - murmurou Momo, quase soluçando. Claro,


Cassiopéia, e como!

E a menina beijou-lhe o focinho várias vezes. As palavras na


carapaça da tartaruga enrubesceram visivelmente quando ela
respondeu: "ORA, POR FAVOR!" Momo sorriu.

- Você esteve realmente à minha procura durante todo esse tempo?

"CLARO!"

- E como me encontrou exatamente neste lugar e neste momento?

"SABIA COM ANTECEDÊNCIA."

Será que a tartaruga tinha realmente procurado Momo todo o tempo,


sabendo que não a encontraria? Ou, na verdade, nem tinha sido
preciso procurar? Era mais um dos enigmas de Cassiopéia, que
imobilizava o raciocínio de quem tentasse pensar no assunto. Porém
não era hora de tentar resolver o problema.

Momo contou-lhe baixinho tudo o que acontecera.

- O que devemos fazer agora? - perguntou ela, finalmente.


Cassiopéia escutara com atenção e nas suas costas veio a resposta:

"VAMOS FALAR COM HORA".

- Agora? - exclamou Momo, apavorada. - Mas os homens cinzentos


estão procurando você por toda parte! Este é o único lugar onde
não/há nenhum deles. Não seria mais razoável ficarmos aqui?

Nas costas da tartaruga apareceu simplesmente: "EU SEI, " VAMOS."

- Então, no caminho, vamos cair nos braços deles! - declarou Momo.

"NÃO ENCONTRAREMOS NENHUM", foi a resposta de Cassiopéia.


Bem, se ela tinha tanta certeza, podia-se confiar. Momo pôs
Cassiopeia no chão.

No entanto, ao pensar no caminho longo e cansativo que já


percorrera uma vez, sentiu que não tinha mais forças para isso.

- Vá sozinha, Cassiopéia - disse ela, baixinho -, eu não aguento mais.


Vá sozinha e leve minhas lembranças a Mestre Hora.

"ESTAMOS PERTO!", apareceu nas costas de Cassiopéia.

Momo leu e olhou à sua volta, espantada. Pouco a pouco, no entanto,


percebeu que estavam naquela parte deserta e pobre da cidade por
onde, da outra vez, tinham passado antes de entrar na região de casas
brancas e luminosidade estranha.

Sendo assim, talvez ela ainda conseguisse chegar ao Beco do Nunca


e à Casa de Lugar Nenhum.

- Tudo bem - disse Momo -, vou com você. Será que posso carregá-la,
para chegarmos mais depressa?

"INFELIZMENTE NÃO", Momo leu nas costas de Cassiopéia.

- Por que é que você sempre tem que rastejar sozinha? perguntou a
menina.

Então apareceu a resposta enigmática: "O CAMINHO ESTÁ DENTRO


DE MIM."

Com isso, a tartaruga começou a andar e Momo foi atrás, passo a


passo, lentamente.

Mal a tartaruga e a menina tinham desaparecido por uma das ruelas,


algo se movimentou em torno da praça, nas sombras das casas. Um
ruído crepitou pelo imenso espaço vazio, como um risinho gélido de
zombaria. Eram os homens cinzentos, que tinham assistido a toda a
cena. Alguns tinham ficado para trás, para vigiar a menina, em
segredo. Esperaram muito, mas nem eles imaginaram que seria uma
espera tão bem-sucedida.

- Lá vão elas! - sussurrou uma voz cinzenta. - Vamos agarrá-las?

- Claro que não! - murmurou outra voz. - Vamos deixá-las andar.


- Como assim? - perguntou a primeira voz. - Pois não recebemos
ordens para pegar a tartaruga a qualquer custo?

- Certo. Mas para que precisamos dela?

- Para que nos leve à morada de Mestre Hora.

- Exatamente. É o que ela está fazendo agora. E nem estamos


precisando forçá-la.

Está caminhando por livre e espontânea vontade, embora não com


essa intenção.

Mais uma vez, um risinho gélido de zombaria atravessou as sombras


escuras em torno da praça

- Avisem imediatamente a todos os agentes da cidade que a busca


está suspensa.

Todos devem se juntar a nós. Mas tenham muito cuidado, senhores!


Nenhum de nós deve se colocar em seu caminho. Devemos lhes dar
passagem livre. Elas não podem nos encontrar. Agora, senhores, vamos
seguir tranquilamente nossos dois guias involuntários!

Assim, Momo e Cassiopéia não encontraram, de fato, nenhum de


seus perseguidores.

Para onde quer que fossem, eles se desviavam e sumiam a tempo,


para em seguida juntarem-se a seus companheiros, atrás dá tartaruga
e da menina. Uma procissão cada vez maior de homens cinzentos,
sempre se dissimulando atrás dos muros e das esquinas, seguia
silenciosamente a caminhada das duas fugitivas.

Nunca na vida Momo tinha sentido tanto cansaço. Às vezes achava


que no momento seguinte ia cair e adormecer. Mas então fazia um
esforço para dar mais um passo, e mais outro. Depois, por mais alguns
instantes, as coisas melhoravam um pouco

Se pelo menos a tartaruga não rastejasse tão terrivelmente devagar!


Quanto a isso, no entanto, não havia o que fazer. Momo já não olhava
nem para a direita nem para a esquerda, mas só para seus próprios
pés e para Cassiopéia.
Depois de algum tempo, que lhe pareceu uma eternidade, percebeu
que o chão sob seus pés estava mais claro. Suas pálpebras pesavam
como chumbo, mas Momo fez força para mantê-las abertas e olhou à
sua volta.

Sim, finalmente tinham chegado àquela região da cidade em que a


luminosidade não era nem da aurora nem do crepúsculo e em que as
sombras se projetavam em todas as direções. Lá estavam as casas
misteriosas, de um branco ofuscante, com suas janelas escuras. E lá
estava também o curioso monumento, que nada mais era do que
um imenso ovo sobre um pedestal de pedra preto.

Momo recuperou sua coragem, pois certamente não demoraria


muito para estarem junto de Mestre Hora.

- Por favor, não podemos andar um pouco mais depressa? -


perguntou a Cassiopéia.

"QUANTO MAIS DEVAGAR, MAIS DEPRESSA", foi a resposta da


tartaruga.

Ela continuou rastejando, mais devagar ainda do que antes. E de


fato, como da outra vez, Momo percebeu que, andando devagar,
avançavam mais depressa. Era como se a rua deslizasse sob seus pés,
tanto mais depressa quanto mais devagar elas caminhavam.

Esse era o mistério daquela região branca da cidade: quanto mais


devagar se caminhava, mais depressa se saía do lugar. E, quanto mais
se tinha pressa, mais devagar se avançava. Da outra vez, os homens
cinzentos não sabiam disso, quando tentaram perseguir Momo com
seus três automóveis. Por isso ela conseguira escapar.

Isso, no entanto, tinha sido da outra vez!

Agora era diferente. Eles não queriam pegar a menina e a tartaruga.


Estavam seguindo as duas, caminhando tão lentamente quanto elas.
Assim também descobriram o segredo. Lentamente, as ruas brancas
atrás das duas foram se enchendo com o batalhão de homens
cinzentos. Como agora eles sabiam como se movimentar naquele
lugar, caminhavam até um pouco mais devagar do que a tartaruga,
chegando cada vez mais perto dela. Era como uma corrida ao
contrário, uma corrida de lentidão.
O caminho através daquelas ruas de sonho dava voltas e mais voltas,
aprofundando-se cada vez mais na região branca. Finalmente chegou
a esquina do Beco do Nunca.

Cassiopéia já entrara no beco e caminhava para a Casa de Lugar


Nenhum. Momo lembrou-se de que, naquela rua, só conseguira
avançar depois de se virar e começar a andar de costas. Por isso, fez o
mesmo.

Então, seu coração quase parou de susto.

Como um muro cinzento móvel, os ladrões de tempo vinham


chegando, dispostos em fileiras que ocupavam toda a largura da rua e
se sucediam uma atrás da outra, a perder de vista.

Momo deu um grito, mas não conseguiu ouvir sua própria voz
Andando de costas, entrou no Beco do Nunca enquanto fitava, de olhos
arregalados, o batalhão dos homens cinzentos.

Naquele momento, aconteceu algo incrível: quando os primeiros


perseguidores tentaram enveredar pelo Beco do Nunca, literalmente
dissolveram-se em nada diante dos olhos de Momo. Primeiro sumiram
suas mãos, depois as pernas, o tronco e, finalmente, também seus
rostos, que mostravam uma expressão de espanto e pavor.

Só que Momo não fora a única a presenciar o que tinha ocorrido.


Naturalmente, os homens cinzentos que vinham atrás também viram
tudo Os primeiros estacaram, detendo a massa dos que vinham atrás,
e no início houve como que uma briga corporal entre eles. Momo via
seus rostos furiosos e seus punhos que brandiam ameaçadores.
Nenhum deles, porém, ousou continuar a perseguição.

Afinal, a menina chegou à Casa de Lugar Nenhum. A grande e


pesada porta de metal verde se abriu. Momo entrou correndo e passou
por todo o corredor com as esculturas de pedra. Abriu a portinha que
havia na outra extremidade e se esgueirou por ela, percorreu a sala
com os inúmeros relógios até a salinha formada pelas caixas dos
relógios de pé. Lá, jogou-se no sofá macio e escondeu o rosto debaixo
de uma almofada, para não ver nem ouvir mais nada
Capítulo Dezenove
OS SITIADOS PRECISAM TOMAR UMA DECISÃO
 

Uma voz sussurrava.

Devagarinho, Momo emergiu das profundezas de seu sono sem


sonhos. Sentia-se maravilhosamente revigorada e descansada

- A menina não teve culpa - ela ouviu a voz dizer -, mas você,
Cassiopéia, por que fez isso?

Momo abriu os olhos Mestre Hora estava sentado à mesinha na


frente do sofá.

Olhava com expressão fechada para o chão, onde estava a tartaruga.

- Você não supôs que os homens cinzentos poderiam segui-las?

"APENAS SEI COM ANTECEDÊNCIA", apareceu nas costas de


Cassiopéia. "NÃO SUPONHO!"

Mestre Hora sacudiu a cabeça e suspirou:

- Ah, Cassiopéia, Cassiopéia. Às vezes você também é um enigma


para mim!

Momo sentou-se.

- Ah, nossa querida Momo acordou - disse Mestre Hora, amável. -


Espero que você esteja se sentindo bem de novo!

- Muito bem, obrigada - respondeu a menina - Desculpe eu ter caído


direto no sono!

- Ora, não se incomode com isso - replicou Mestre Hora. - Está tudo
bem. Não precisa explicar nada. Cassiopéia já me contou tudo o que
eu não pude ver com meus óculos de visão global.

- E o que aconteceu com os homens cinzentos? - perguntou Momo.

Mestre Hora tirou do bolso um grande lenço azul.


- Eles nos cercaram. Cercaram a Casa de Lugar Nenhum por todos os
lados. Ou melhor, chegaram o mais perto que conseguiram.

- Mas eles não podem entrar aqui, não é? - perguntou Momo.

- Não. Você mesma viu que, ao chegarem ao Beco do Nunca, eles se


dissolvem em nada.

- Como é que isso acontece? - perguntou ela.

- É a contracorrente do tempo - explicou Mestre Hora. Você sabe que


lá é preciso fazer tudo ao contrário, não é? Em torno da Casa de Lugar
Nenhum o tempo corre ao contrário. Normalmente, o que acontece é
que o tempo entra na pessoa. Assim, a pessoa fica cada vez mais
velha, pois há cada vez mais tempo nela. Mas no Beco do

Nunca o tempo sai dela. Pode-se dizer que a pessoa fica mais jovem
quando o percorre. Não muito mais jovem, é claro, apenas o tempo
que levou para percorrê-lo.

- Não reparei nisso - disse Momo, surpresa.

- Bem - explicou Mestre Hora -, para um ser humano isso não


significa muito, pois ele é muito mais do que o tempo que contém.
Mas para os homens cinzentos é diferente. Eles se constituem apenas
de tempo roubado. E esse tempo sai deles quando entram na
contracorrente do tempo, tal como o ar sai de um balão que estoura.
Só que do balão resta pelo menos o invólucro, ao passo que deles não
sobra nada.

Momo pôs-se a refletir intensamente.

- Não seria possível fazer todo o tempo correr ao contrário? -


perguntou ela, depois de alguns momentos. - Quer dizer, só por alguns
instantes? Todas as pessoas ficariam um pouco mais jovens, o que não
teria importância. E os ladrões de tempo se dissolveriam em nada.

Mestre Hora sorriu.

- De fato, seria bom. Mas infelizmente não é possível. As duas


correntes estão em equilíbrio. Se uma fosse eliminada, a outra
também desapareceria. Então não haveria mais tempo...
Mestre Hora se calou e empurrou os óculos de visão global para a
testa.

- Isto é... - murmurou ele, levantando-se e andando de um lado para


outro, mergulhado em seus pensamentos.

Momo observava-o admirada, e Cassiopéia também o acompanhava


com o olhar.

Afinal, ele voltou a sentar e lançou para Momo um olhar


perscrutador.

- Você me deu uma ideia - disse ele -, mas não depende só de mim
colocá-la em prática.

Dirigiu-se então à tartaruga, que estava a seus pés.

- Cassiopéia, minha cara! Na sua opinião, qual é a melhor coisa que


se tem a fazer durante um cerco?

"TOMAR CAFÉ DA MANHÃ", foi a resposta que apareceu na carapaça


da tartaruga.

- É - concordou Mestre Hora -, também é uma boa ideia. No mesmo


instante, a mesinha apareceu arrumada para a refeição. Ou será que já
tinha sido preparada antes, sem que Momo o tivesse notado? De
qualquer modo, lá estavam novamente as xicrinhas de ouro e todo o
resto do café da manhã, com seu brilho dourado: o bule com o
chocolate fumegante, o mel, a manteiga e os pãezinhos crocantes.

Desde sua primeira visita, Momo pensava muitas vezes com saudade
naquelas coisas deliciosas, e imediatamente começou a comer, com
muito apetite. Parecia que estava tudo mais gostoso ainda do que da
outra vez. Além disso, também Mestre Hora lançou-se à refeição com
muito apetite.

- Eles querem que você lhes dê todo o tempo de todas as pessoas -


disse Momo, depois de alguns instantes, mastigando e com as
bochechas cheias. - Mas isso você não vai fazer não é mesmo?

- Não, minha menina - respondeu Mestre Hora. - Isso não vou fazer,
nunca! O tempo começou em determinado momento e vai acabar em
determinado momento, mas só quando as pessoas não precisarem
mais dele. De mim os homens cinzentos não vão conseguir um só
instante de tempo.

- Só que eles dizem que poderão obrigar você a isso - insistiu Momo.

- Antes de continuarmos a conversa - disse ele, muito sério - quero


que você mesma os observe.

Tirando seus pequenos óculos dourados, Mestre Hora os entregou a


Momo, que os colocou.

No começo ela só viu uma confusão de cores e formas, que a


deixaram tonta, como da primeira vez. Mas dessa vez passou depressa
e seus olhos logo se adaptaram à visão global.

Então ela viu o exército dos sitiantes.

Ombro a ombro, lá estavam os homens cinzentos, em intermináveis


fileiras  cerradas. Não se alinhavam apenas à entrada do Beco do
Nunca, mas estendiam-se mais além, formando um grande círculo,
que abrangia toda aquela região da cidade com as casas brancas como
neve, cujo centro era a Casa de Lugar Nenhum. Não havia uma só
brecha no cerco.

Momo, no entanto, notou uma outra coisa, algo muito estranho.


Primeiro pensou que as lentes dos óculos de visão global estivessem
embaçadas ou que ainda não estivesse enxergando com nitidez, pois
uma estranha névoa tornava indistintos os contornos dos homens
cinzentos.

Verificou depois que a névoa nada tinha a ver com as lentes dos
óculos ou com os seus olhos. Levantava-se das ruas onde eles se
encontravam. Em alguns lugares, já era densa e opaca, em outros
estava apenas começando a se formar.

Os homens cinzentos permaneciam imóveis. Cada um tinha o


chapéu-coco na cabeça, a pasta cinza-chumbo na mão e o charuto
aceso na boca. Mas a fumaça não se dispersava, como acontecia
normalmente. Ali, onde não havia sequer uma brisa, naquele ar vítreo,
formava véus resistentes como teias de aranha, cobrindo as ruas e
subindo pelas fachadas das casas brancas como neve, estendendo-se
em longas flâmulas. Depois concentrava-se em nuvens verde-azuladas
viscosas, que iam se acumulando devagar mas persistentemente,
envolvendo a Casa de Lugar Nenhum por todos os lados, como um
muro que fosse crescendo cada vez mais.

Momo também observou que de tempos em tempos chegavam mais


homens cinzentos, para ocupar o lugar daqueles que iam se
dissolvendo. Por que estaria acontecendo tudo aquilo? Qual seria o
plano dos ladrões de tempo? A menina tirou os óculos e olhou para
Mestre Hora, com ar de interrogação.

- Já viu o suficiente? - perguntou ele. - Então me dê os óculos, por


favor.

Enquanto os colocava, continuou:

- Você perguntou se eles poderiam me obrigar a alguma coisa. A


mim mesmo, como você sabe, não serão capazes de atingir. No
entanto, poderiam fazer cair sobre as pessoas uma desgraça pior do
que qualquer outra coisa que tenham feito até agora. E estão tentando
me pressionar com essa ameaça.

- Coisa pior? - disse Momo, assustada. Mestre Hora confirmou,


meneando a cabeça.

- Eu distribuo para cada pessoa o tempo que lhe cabe. Isso os


homens cinzentos não podem impedir. Também não podem se
apropriar do tempo concedido por mim. Mas podem envenená-lo.

- Envenenar o tempo? - perguntou ela, perplexa

- Com a fumaça de seus charutos - explicou Mestre Hora.

- Você já viu algum deles sem aquele pequeno charuto cinzento na


boca?

Certamente, pois sem o charuto deixariam de existir.

- Do que são feitos esses charutos? - indagou Momo.

- Certamente você se lembra das flores-das-horas - disse Mestre


Hora. - Naquela ocasião eu lhe disse que cada ser humano tem dentro
de si um templo dourado do tempo, pois cada um tem coração.
Quando as pessoas deixam os homens cinzentos  entrarem nesse
templo, eles vão tirando pedaços da flor. Mas as flores-das-horas que
são arrancadas dessa maneira do coração das pessoas não podem
morrer, pois na verdade elas não murcharam. Também não podem
viver, já que foram separadas de seus verdadeiros donos. Elas se
empenham com todas as fibras do seu ser para voltar às pessoas a
quem pertencem.

Momo ouvia, com a respiração suspensa.

- Você precisa saber, Momo, que o mal também tem seu segredo.
Não sei onde os homens cinzentos guardam as flores-das-horas
roubadas. Só sei que as congelam através de sua própria frieza,
tornando-as sólidas como pequenas taças de cristal, impedindo assim
que elas voltem. Em algum ponto, profundamente escondidos sob a
terra, deve haver gigantescos depósitos, onde fica todo o tempo
congelado. Mesmo lá, as flores-das-horas não morrem.

As faces de Momo ardiam de indignação.

- Os homens cinzentos vão continuamente se abastecer nesses


depósitos. Arrancam as pétalas das flores, deixam-nas murchar até
ficarem completamente secas e cinzentas, e com elas enrolam seus
charutinhos. Mas sempre ainda há um resto de vida nas pétalas. Os
homens cinzentos não conseguem obter tempo vivo, por isso acendem
esses charutos e os fumam. Só nessa fumaça é que o tempo está
totalmente morto. E desse tempo morto dos seres humanos os homens
cinzentos extraem sua existência.

Momo tinha se levantado

- Ah! - disse ela. - Quanto tempo morto...

- Pois é. Aquele muro de fumaça que eles levantaram lá fora, em


torno da Casa de Lugar Nenhum, é todo feito de tempo morto. Ainda
há céu limpo suficiente, ainda posso mandar para as pessoas seu
tempo integral. No entanto, quando essa abóbada escura se fechar
sobre nós, a cada hora enviada por mim irá se misturar um pouco do
tempo morto e fantasmagórico dos homens cinzentos. E, quando as
pessoas acolherem essas horas, ficarão doentes, até mesmo
mortalmente doentes.

Momo fitava Mestre Hora sem compreender.

- Que espécie de doença é essa? - perguntou baixinho.


- No começo, mal dá para perceber. Um belo dia, a pessoa não tem
mais vontade de fazer nada. Nada lhe interessa, tudo a aborrece Mas
essa falta de vontade não desaparece, pelo contrário, aumenta cada
vez mais. Piora de dia para dia, de semana para semana. A pessoa se
sente cada vez mais desanimada, mais vazia, cada vez mais
insatisfeita consigo mesma e com o mundo. Até que esse próprio
sentimento desaparece, a pessoa não sente mais nada. Torna-se
inteiramente indiferente e cinzenta. Distancia-se do mundo e desliga-
se dele. Não sente mais raiva nem satisfação, não sente alegria nem
tristeza, não sabe mais rir nem chorar. Torna-se fria, não consegue
mais gostar de nada nem de ninguém. Quando chega a esse ponto, a
doença é incurável. Não há mais volta. A pessoa corre de um lado para
outro, com uma fisionomia vazia e cinzenta. Torna-se igual aos homens
cinzentos, ou seja, é um deles O nome dessa doença é tédio mortal.

Momo teve um calafrio.

- Se você se recusar a lhes entregar o tempo de todos os seres


humanos, os homens cinzentos transformarão todas as pessoas em
seres iguais a eles? - perguntou ela.

- Sim - respondeu Mestre Hora -, e com isso querem me pressionar.

Levantou-se e continuou:

- Até agora, eu tinha esperança de que as pessoas se libertassem


sozinhas desses espíritos malignos. Isso seria possível, pois foram elas
mesmas que contribuíram para que eles passassem a existir. Mas não
posso esperar mais. Preciso fazer alguma coisa. Só que não posso agir
sozinho.

Ele olhou para Momo.

- Você quer me ajudar?

- Quero - sussurrou a menina.

- Terei de expô-la a perigos incalculáveis - disse Mestre Hora. - Ou o


mundo irá parar para sempre ou começará de novo a viver. E isso
dependerá só de você, Momo. Quer mesmo se arriscar?

- Quero! - repetiu Momo, e dessa vez em tom decidido.


- Muito bem! - declarou Mestre Hora. - Então preste muita atenção no
que vou dizer, pois você estará totalmente entregue a si mesma e não
poderei mais ajudá-la. Nem eu, nem ninguém!

Momo meneou a cabeça e fitou Mestre Hora atentamente.

- Em primeiro lugar - disse ele -, saiba que eu nunca durmo. Se eu


adormecer, no mesmo instante todo o tempo cessará. O mundo ficará
parado. No entanto, não havendo mais tempo, os homens cinzentos
também não poderão roubar ninguém.

Talvez ainda possam existir por alguns momentos, pois têm grandes
reservas. Mas, quando seus suprimentos se esgotarem, eles se
dissolverão em nada.

- Então é fácil - declarou a menina.

- Infelizmente, não é tão fácil assim. Se fosse, eu não precisaria da


sua ajuda.

Não havendo mais tempo, eu também não poderia mais acordar. O


mundo ficaria parado por toda a eternidade. No entanto, está em meu
poder, Momo, dar só a você uma flor-das-horas. Mas apenas uma, pois
só uma floresce de cada vez. Assim, quando o tempo do mundo parar,
você ainda terá uma hora.

- E poderei acordar você! - disse Momo.

- Só com isso não conseguiremos nada - continuou ele -, pois as


reservas dos homens cinzentos são muito, muito maiores. Em apenas
uma hora eles teriam gasto uma parte mínima delas. Portanto,
continuariam existindo. Sua tarefa será muito mais difícil! Os homens
cinzentos logo perceberão que o tempo parou, pois não poderão mais
se abastecer de charutos. Assim que isso acontecer, suspenderão
o  cerco e correrão para seus depósitos. Então você deverá segui-los,
Momo. Se você descobrir seu esconderijo, poderá impedir que eles
tenham acesso a suas reservas de tempo. Quando terminarem seus
charutos, também os homens cinzentos terão chegado ao fim. Mas
ainda restará uma coisa a fazer, e talvez essa seja a parte mais difícil.
Depois que o último ladrão de tempo desaparecer, você deverá libertar
todo o tempo roubado. Só quando esse tempo voltar aos seres
humanos é que o mundo deixará de ficar parado e que eu poderei
acordar de novo. Para tudo isso, você terá apenas uma hora.
Momo olhou para Mestre Hora desarvorada. Não contava com aquele
monte de dificuldades e perigos.

- Quer tentar assim mesmo? - perguntou Mestre Hora. - É a única e


última possibilidade.

Momo ficou calada. Achava-se incapaz de fazer tudo aquilo. "VOU


COM VOCÊ", a menina leu, de repente, nas costas de Cassiopéia.

Como a tartaruga poderia ajudá-la? No entanto, era pelo menos um


minúsculo raio de esperança para Momo. A perspectiva de não estar
completamente sozinha lhe deu coragem. Embora fosse uma coragem
sem nenhum fundamento real, era suficiente para ela tomar uma
decisão.

- Vou tentar - disse ela, resoluta.

Mestre Hora olhou-a demoradamente e sorriu.

- Muita coisa será mais fácil do que parece agora. Você ouviu a
música das estrelas. Não precisa ter medo.

Voltando-se para a tartaruga, perguntou:

- Então, Cassiopéia, você quer ir também'

"É CLARO", apareceu na sua carapaça. Essas letras se apagaram e


apareceram as palavras. "ALGUÉM PRECISA CUIDAR DELA"

Mestre Hora e Momo sorriram um para o outro.

- Ela também vai receber uma flor-das-horas? - perguntou Momo.

- Cassiopéia não precisa - explicou ele, coçando carinhosamente o


pescoço da tartaruga. - É um ser fora do tempo. Ela carrega em si o
seu próprio tempinho.

Poderia continuar rastejando pelo mundo inteiro, mesmo que tudo


parasse para sempre.

- Bem - disse Momo, tomada por um súbito desejo de ação -, então o


que vamos fazer agora?
- Agora vamos nos despedir! - respondeu Mestre Hora. Momo engoliu
em seco e perguntou, baixinho:

- Será que nunca mais nos veremos?

- Voltaremos a nos ver, sim, Momo - respondeu Mestre Hora. - E, até


então, cada hora de sua vida lhe trará uma lembrança de mim. Pois
vamos continuar amigos, não é mesmo?

- Claro! - afirmou Momo.

- Agora vou embora - continuou Mestre Hora. - Você não deve me


seguir nem me perguntar para onde vou. Meu sono não é um sono
comum, e é melhor que você não esteja perto Só mais uma coisa:
assim que eu sair, abra imediatamente as duas portas, a pequenina
com meu nome e a grande, de metal verde, que dá para o Beco do
Nunca. Pois, assim que o tempo parar, tudo ficará imóvel. E não haverá
poder no mundo que faça essas duas portas se moverem. Entendeu e
guardou tudo direitinho, minha menina?

- Entendi - respondeu Momo -, mas como vou reconhecer o momento


em que o tempo parar?

- Não se preocupe, você vai perceber.

Mestre Hora levantou-se e Momo também. Ele acariciou levemente


seus cabelos desgrenhados.

- Adeus, Momo - disse ele. - Para mim foi uma grande alegria você
me ouvir também.

- Mais tarde, vou falar de você para todo o mundo - respondeu Momo.

De repente, Mestre Hora voltou a parecer incrivelmente velho, como


daquela vez em que a levara ao templo dourado, velho como uma
montanha de tempos remotos ou uma árvore secular

Ele se virou e saiu depressa da salinha formada pelas caixas dos


relógios. Momo ouvia seus passos se afastarem cada vez mais, até se
confundirem com os tique-taques dos relógios. Talvez tivesse entrado
naqueles tique-taques.

Momo pegou Cassiopéia no colo e estreitou-a contra si. Sua maior


aventura tinha começado, irrevogavelmente
 
Capítulo Vinte

OS PERSEGUIDORES PERSEGUIDOS
 

A primeira coisa que Momo fez -foi abrir a portinha interna com o
nome de Mestre Hora. Em seguida, correu pelo corredor com as
grandes estátuas de pedra e abriu a enorme porta de metal verde.
Teve que usar toda a sua força, pois as folhas da porta eram muito
pesadas.

Feito isso, voltou para a grande sala dos relógios e, com Cassiopéia
debaixo do braço, ficou à espera do que aconteceria.

Então aconteceu!

Subitamente houve uma espécie de tremor, que não fez a sala


tremer, mas o tempo.

Foi, por assim dizer, um tremor de tempo. Não há palavras capazes


de descrever o que aconteceu. O fenômeno foi acompanhado por um
som que nenhum ser humano jamais ouvira. Era como um gemido
provindo das profundezas dos séculos.

Depois tudo passou.

No mesmo instante, as muitas vozes dos tique-taques, roncos,


campainhas, rangidos e batidas dos inúmeros relógios cessaram
repentinamente. Os pêndulos interromperam suas oscilações no ponto
em que se encontravam. Nada, nada mais se movia. Imediatamente
fez-se um silêncio tão absoluto como jamais ocorrera em parte alguma
do mundo. O tempo havia parado.

Momo viu então que tinha na mão uma imensa e maravilhosa flor-
das-horas A menina não percebera como aquela flor tinha chegado à
sua mão. Apareceu de repente, como se sempre tivesse estado ali.

Cautelosamente, Momo deu um passo. De fato, conseguia


movimentar-se com a mesma facilidade de sempre. Os restos do café
da manhã ainda estavam sobre a mesinha.
Momo sentou-se numa das poltronas, porém as almofadas estavam
duras como mármore e muito desconfortáveis. Na sua xícara restava
ainda um gole de chocolate, só que não dava mais para levantá-la do
pires. Momo quis mergulhar o dedo no líquido, que no entanto estava
duro como vidro. Também não conseguiu apanhar as migalhas de pão
que tinham ficado no prato. Como não havia mais tempo, nada mais se
alterava nem se movia.

Cassiopéia começou a se agitar e Momo olhou para ela

"ESTÁ PERDENDO TEMPO!", apareceu na carapaça.

Meu Deus, de fato! Momo se apressou. Atravessou a sala, esgueirou-


se pela portinha e continuou correndo pelo longo corredor. Quando
chegou à porta verde, deu uma espiada para a esquina e recuou na
mesma hora. Seu coração começou a bater aos saltos. Os ladrões de
tempo não estavam indo embora. Pelo contrário, vinham andando pelo
Beco do Nunca, onde também cessara a contracorrente do tempo, na
direção da Casa de Lugar Nenhum. Aquilo não estava previsto no
plano.

Momo voltou em disparada para a sala e escondeu-se atrás de um


grande relógio de pé, sempre com Cassiopéia debaixo do braço.

- Começou bem - murmurou ela.

Ouviu os passos dos homens cinzentos no corredor. Passaram um de


cada vez pela portinha, até se formar um batalhão deles na sala. Todos
olhavam à sua volta.

- Impressionante! - disse um deles. - Então é esta nossa nova


morada!

- Foi a menina Momo que abriu a porta - disse uma outra voz
cinzenta. - Eu vi muito bem. Criança inteligente! É admirável como ela
conseguiu dar um jeito no velho.

Uma terceira voz, idêntica, respondeu:

- Na minha opinião, o tal fulano deu seu consentimento. Pois, se a


contracorrente no Beco do Nunca cessou, só pode ser porque ele a
desligou. Deve ter compreendido que precisa se submeter a nós. Agora
vamos acabar logo com ele.
Onde será que se escondeu?

Os homens cinzentos puseram-se a olhar em volta, quando um deles


exclamou, com uma voz mais cinzenta ainda:

- Alguma coisa está errada, senhores! Os relógios! Vejam, os relógios


estão todos parados. Todos! Até este relógio de areia!

- Ele mesmo os parou - disse outro, sem muita segurança.

- Não dá para parar um relógio de areia - gritou o primeiro. -


Reparem, a areia parou no meio da queda! Também não dá para mover
o relógio! O que significa isso?

Ele ainda estava falando, quando se ouviram passos apressados no


corredor. Um outro homem cinzento entrou, gesticulando agitado, e
gritou:

- Acabamos de receber notícias de nossos agentes da cidade. Seus


carros pararam.

Tudo parou. O mundo está parado. Não é mais possível tirar a menor
parcela de tempo de qualquer ser humano. Nosso sistema de
abastecimento sucumbiu. Não há mais tempo. Hora desligou o tempo!

Por um momento, houve um silêncio mortal. Depois, um deles


perguntou:

- O que está dizendo? Nosso sistema de abastecimento sucumbiu? O


que vai ser de nós, então, quando os charutos que estão conosco
tiverem acabado?

- Todos sabem perfeitamente o que vai ser de nós! - gritou um outro.


- É uma catástrofe terrível, senhores!

Começaram a gritar todos ao mesmo tempo:

- Hora pretende nos destruir!

- Temos de levantar o cerco imediatamente!

- Precisamos chegar ao nosso depósito de tempo!


- Sem carros? Não vai dar! Meus charutos só vão durar mais vinte e
sete minutos.

- Os meus, quarenta e oito.

- Então me dê alguns!

- Está louco?

- Salve-se quem puder!

Os homens cinzentos se precipitaram para a portinha, tentando sair


todos ao mesmo tempo. De seu esconderijo, Momo observava como
lutavam, em pânico, empurrando, puxando uns aos outros, numa
confusão cada vez mais violenta Cada um queria passar à frente do
outro, lutando por sua vida cinzenta. Os chapéus voavam de suas
cabeças, saíam brigas e um tentava arrancar o charuto da boca
do outro. Cada um que ficava sem charuto parecia perder as forças de
repente.

Ficava ali, com as mãos estendidas, com uma expressão de


desespero e medo no rosto, tornando-se cada vez mais transparente,
até sumir. Nada sobrava dele, nem mesmo o chapéu.

No final, só restaram na sala três homens cinzentos, que


conseguiram sair pela portinha estreita e foram embora.

Momo, sempre com a tartaruga debaixo do braço e a flor-das-horas


na outra mão, correu atrás deles. Agora tudo dependia de ela não
perder de vista os homens cinzentos.

Ao passar pelo portão, viu que os ladrões de tempo já tinham


chegado ao fim do Beco do Nunca. Lá, no meio das nuvens de fumaça,
havia outros grupos de homens cinzentos, que gesticulavam agitados
e falavam todos ao mesmo tempo. Quando viram chegar correndo os
que saíam da Casa de Lugar Nenhum, começaram a correr também,
outros juntaram-se aos fugitivos. Em pouco tempo, todo o exército
batia em retirada. Uma interminável caravana de homens cinzentos
corria na direção da cidade pela estranha região dos sonhos, com as
casas brancas como neve e as sombras que se projetavam em todas as
direções. Com o fim do tempo, também ali cessara a misteriosa
inversão entre devagar e depressa.
A coluna de homens cinzentos passou pelo imenso monumento-ovo
e continuou até onde surgiam as primeiras casas comuns, aqueles
quartéis de aluguel cinzentos e esquálidos em que as pessoas
moravam no limite do tempo. Também ali estava tudo imóvel.

A uma certa distância, atrás dos últimos da fila, seguia Momo. Assim
iniciou-se uma caçada invertida através da grande cidade. Era uma
caçada em que um imenso bando de homens cinzentos fugia,
perseguido por uma menininha com uma flor na mão e uma tartaruga
debaixo do braço.

Como era estranho o aspecto da grande cidade! Nas ruas e avenidas,


viam-se filas e filas de carros parados, com os motoristas imóveis atrás
do volante, a mão no câmbio ou na buzina (um deles estava com a
mão na testa, olhando furioso para o que estava a seu lado). Alguns
ciclistas mantinham o braço estendido, indicando que  iam virar a
esquina. Nas calçadas, todos os pedestres, homens, mulheres e
crianças, cães e gatos estavam parados e duros. Até a fumaça dos
canos de escapamento estava imóvel.

No cruzamento das ruas, guardas de trânsito com o apito na boca


tinham se paralisado no meio de seus gestos. Na praça, um bando de
pombos pairava imóvel no ar. Acima, um avião parecia pintado no céu.
A água da fonte tinha aspecto de gelo. Algumas folhas, ao cair das
árvores, tinham ficado suspensas no ar. Um cachorrinho, que acabara
de levantar a pata traseira ao lado de um poste, parecia empalhado.

Através daquela cidade imóvel como uma fotografia, os homens


cinzentos corriam em disparada. Momo ia atrás deles, sempre com
cuidado para não ser percebida pelos ladrões de tempo. De qualquer
modo, eles já não prestavam atenção em nada, pois sua fuga tornava-
se cada vez mais difícil e cansativa.

Não estavam acostumados a percorrer distâncias tão grandes a pé.


Estavam ofegantes e sem fôlego. Além disso, ainda precisavam cuidar
para manter o charuto na boca. Às vezes, algum deles o deixava cair e,
antes que conseguisse pegá-lo no chão, dissolvia-se em nada.

Mas não eram apenas os fatores externos que dificultavam sua fuga.
Cada vez mais aumentava a ameaça por parte de seus próprios
companheiros. Muitos deles, vendo seu charuto chegar ao fim,
simplesmente arrancavam desesperados o charuto da boca de quem
estivesse ao lado. Assim, seu número ia diminuindo, devagar mas
constantemente.

Aqueles que ainda levavam uma pequena reserva na pasta


precisavam tomar cuidado para que os outros não o percebessem, pois
os que não tinham mais nenhum charuto avançavam nos mais ricos,
tentando tomar-lhes o tesouro. Aconteciam brigas ferozes. Montes
deles lançavam-se uns sobre os outros para se apoderarem de suas
provisões. Os charutos acabavam rolando pela rua, provocando
tumulto. O medo de sumir do mundo fizera os homens cinzentos
perderem a cabeça.

Havia outro problema, que aumentava à medida que avançavam. Em


alguns lugares da cidade, a multidão era tão compacta que os homens
cinzentos tinham dificuldade para passar entre as pessoas, que se
comprimiam como árvores numa floresta densa. Para Momo, que era
baixinha e magra era muito mais fácil. Mas até as peninhas pairando
no ar estavam tão solidamente imobilizadas que os homens cinzentos
quase quebravam a cabeça quando, por distração, esbarravam nelas.

Era um trajeto longo, e Momo não tinha ideia de quanto ainda


faltava para chegarem. Olhava preocupada para sua flor-das-horas.
Mas só agora ela desabrochara plenamente, portanto ainda não havia
motivo para se preocupar. Aconteceu então uma coisa que fez Momo,
por um instante, esquecer todo o resto.

Numa ruazinha transversal, ela avistou Beppo Varredor.

- Beppo! - ela gritou, exultante de alegria e correndo para ele. -


Beppo, procurei você por todo lado! Onde esteve esse tempo todo? Por
que nunca mais apareceu? Ah, Beppo, querido Beppo!

A menina quis pular no pescoço de Beppo, mas ricocheteou, como se


ele fosse de gelo. Momo se machucou e as lágrimas subiram a seus
olhos. Ficou olhando para ele, soluçando

Seu corpo baixinho estava mais encurvado do que antes. Seu rosto
bondoso estava magro e pálido. Em torno do queixo, crescera-lhe uma
barba branca e rala, pois nem tinha mais tempo para se barbear.
Segurava nas mãos uma vassoura velha, já muito gasta de tanto varrer.
Beppo estava ali, imóvel, como todas as outras pessoas, olhando para
a frente, para a sujeira da rua, através dos seus pequenos óculos.
Finalmente Momo o encontrara, agora que não adiantava mais, pois
ele não podia mais notá-la. E talvez estivessem se encontrando pela
última vez. Ninguém poderia saber o que iria acontecer dali para a
frente. Se as coisas não dessem certo, o velho Beppo ficaria ali, parado
daquele jeito, por toda a eternidade.

A tartaruga começou a arranhar o braço de Momo.

"ADIANTE!", apareceu na sua carapaça.

Momo voltou depressa para a rua principal e levou um susto. Não


havia mais nenhum ladrão de tempo à vista! Correu na direção em que
os homens cinzentos estavam fugindo, mas foi em vão. Tinha perdido
sua pista!

Ficou parada no lugar, desesperada. O que fazer agora? Olhou


interrogativamente para Cassiopéia.

"CONTINUE, VOCÊ VAI ACHÁ-LOS!", respondeu a tartaruga.

Ora, se Cassiopéia sabia com antecedência que ela encontraria os


ladrões de tempo, não importava que rumo tomasse, pois qualquer
caminho daria certo.

Então Momo saiu andando por onde lhe dava na cabeça, ora
entrando à direita, ora à esquerda, ora seguindo reto.

Acabou chegando à parte norte da grande cidade, os bairros recém-


construídos, com as casas todas iguais e as ruas compridas e retas,
que se perdiam no horizonte.

Momo continuou andando, andando, mas como todas as casas e ruas


se pareciam, logo teve a impressão de que não estava saindo do lugar.
Era um verdadeiro labirinto, mas um labirinto de regularidade e
igualdade.

A menina já estava perdendo a coragem, quando avistou de repente


um homem cinzento virando uma esquina. Ele mancava, estava com a
calça rasgada, perdera o chapéu e a pasta. Só na sua boca de lábios
apertados ainda queimava o toco de um charutinho cinzento.

Momo seguiu-o até um lugar em que, numa fileira interminável de


casas, de repente faltava uma. Em vez dela, havia ali uma cerca alta
de tábuas, que rodeava um amplo espaço quadrado. Na cerca havia
um portão, que estava entreaberto, e foi por ele que entrou o último
retardatário dos homens cinzentos.

Sobre o portão havia um aviso, e Momo parou para soletrá-lo.

PERIGO DE VIDA

EXPRESSAMENTE PROIBIDA

A ENTRADA DE ESTRANHOS
Capítulo Vinte e Um
O FIM, QUANDO COMEÇA ALGO NOVO
 

Momo demorou um pouco para ler o aviso. Quando entrou pelo portão,
o último homem cinzento também havia sumido

Diante dela, havia uma vala enorme, com vinte ou trinta metros de
profundidade.

Em torno da vala havia escavadeiras e outras máquinas de


construção. Sobre uma rampa que levava ao fundo, estavam parados
alguns vagões de carga. Aqui e ali havia vários operários, imobilizados
em diferentes posturas. Para onde ir agora?

Momo não conseguia descobrir nenhuma entrada que o homem


cinzento pudesse ter  utilizado. Olhou para Cassiopéia, que também
parecia não saber de nada. Nenhuma palavra apareceu em sua
carapaça.

Momo desceu ao fundo da vala e olhou à sua volta. De repente, viu


mais um rosto conhecido. Era Nicola, o pedreiro que certa vez pintara
um bonito quadro de flores na parede de seu quarto. Evidentemente,
ele também estava imóvel, como todos os outros, mas numa posição
muito curiosa. Tinha a mão em concha ao redor da boca, como se
estivesse gritando alguma coisa para um companheiro, e com a outra
mão apontava para a abertura de um cano enorme, a seu lado, no
fundo da vala. Parecia estar olhando para Momo.

A menina não pensou muito. Entendeu aquilo como um sinal e


entrou pela abertura.

Imediatamente começou a escorregar, pois o cano descia em declive


íngreme, fazendo curvas fechadas. Momo, como num imenso
escorregador, era jogada de um lado para outro. Praticamente perdeu
a audição e a visão, naquela corrida louca, que a levava cada vez mais
para o fundo. Às vezes dava uma cambalhota e continuava
escorregando de cabeça para baixo. Mas não largava a tartaruga nem a
flor. Quanto mais se aprofundava, mais sentia frio.
Houve um momento em que chegou a se perguntar se sairia daquele
túnel. No entanto, assim que lhe ocorreu essa ideia, o cano terminou
de repente, num corredor subterrâneo.

Ali já não era tão escuro. Havia uma luminosidade cinzenta, que
parecia emanar das próprias paredes.

Momo pôs-se de pé e continuou andando. Como estava descalça,


seus passos não faziam barulho, mas os dos homens cinzentos
voltaram a ressoar à sua frente. Ela foi seguindo o ruído.

O corredor ramificava-se numa infinidade de outras passagens. Era


uma rede de artérias subterrâneas que parecia estender-se por baixo
de todo o bairro novo.

A certa altura, a menina escutou um burburinho de vozes. Adiantou-


se e ficou à espreita num canto, cautelosamente.

Viu à sua frente uma sala gigantesca, em cujo centro havia uma
mesa de reuniões extraordinariamente comprida. Sentados à mesa,
em duas fileiras, estavam os homens cinzentos, ou melhor, os
pouquíssimos que restavam! Que aparência miserável tinham aqueles
últimos ladrões de tempo! Seus ternos estavam em farrapos, tinham
cortes e galos nas carecas cinzentas e seus rostos estavam contorcidos
de pavor.

Seus charutos, no entanto, continuavam acesos.

Momo observou que atrás, no fundo da sala, havia uma enorme porta
de cofre, que estava entreaberta. A sala exalava um frio gélido.
Embora soubesse que não adiantava nada, Momo se encolheu toda e
escondeu os pés debaixo da saia.

- Precisamos economizar nossas reservas - disse um dos homens


cinzentos, que estava sentado bem na frente da porta blindada. - Não
sabemos quanto tempo teremos que resistir. Precisamos nos restringir.

- Agora somos muito poucos! - gritou um outro. - Nossas reservas


darão para anos!

- Quanto antes começarmos a poupar - retomou o orador -, mais


iremos durar. E os senhores bem sabem o que quero dizer com poupar.
Será suficiente que alguns de nós sobrevivam a essa catástrofe.
Precisamos examinar os fatos objetivamente!

Assim, nós que aqui estamos, senhores, já somos demais!


Precisamos reduzir consideravelmente nosso número. É uma questão
de racionalidade. Permitam que lhes peça, senhores, para fazermos
uma contagem.

Os homens cinzentos fizeram a contagem, sendo atribuído um


número a cada um.

Depois, o presidente da sessão tirou uma moeda do bolso e explicou:

- Vamos tirar a sorte. Coroa significa que os senhores com números


pares ficam, cara significa que permanecem os de números ímpares.

Jogou a moeda para o alto e voltou a pegá-la.

- Coroa! - ele gritou. - Os que têm números pares ficam, os que têm
números ímpares são solicitados a se dissolver!

Um lamento inexpressivo percorreu a fileira dos perdedores, mas


nenhum deles protestou.

Os ladrões de tempo com números pares tiraram os charutos dos


outros, e os condenados dissolveram-se em nada.

- Agora - disse o presidente da sessão, quebrando o silêncio -, vamos


fazer o mesmo mais uma vez, por favor.

O mesmo procedimento cruel foi repetido, depois mais uma vez e


mais outra, quatro vezes ao todo. Finalmente, só tinham sobrado seis
homens cinzentos.

Estavam sentados três de cada lado, numa das extremidades da


mesa, e olhavam-se gelidamente.

Momo observou tudo horrorizada. Notou que, cada vez que diminuía
o número de homens cinzentos, o frio também diminuía
consideravelmente. Agora já estava quase suportável

- Seis - disse um dos homens cinzentos - é um número feio.


- Agora chega! - protestou um dos que estavam do outro lado da
mesa. - Não há razão para diminuirmos mais ainda nosso número. Se
nós seis não conseguirmos sobreviver à catástrofe, três também não
conseguirão.

- Não necessariamente - retrucou um outro. - No entanto, se for o


caso, sempre poderemos voltar a conversar sobre isso mais tarde.

Fizeram silêncio por um momento, até que um deles comentou:

- É uma sorte a porta do depósito estar aberta quando a catástrofe


começou. Se naquele momento a porta estivesse fechada, agora não
haveria força no mundo capaz de abri-la. Estaríamos perdidos.

- Infelizmente não é bem assim, meu caro - respondeu um outro. - A


porta estando aberta, o frio dos congeladores irá diminuir. Aos poucos,
as flores-das-horas irão degelar. E, como os senhores sabem, não
poderemos impedir que elas voltem a seus antigos donos.

- O senhor acha - perguntou um terceiro - que nosso frio já não é


suficiente para manter as reservas congeladas?

- Infelizmente somos apenas seis - replicou o segundo - e o senhor


pode avaliar por si mesmo a quantidade de frio que somos capazes de
produzir. Estou achando que fomos precipitados reduzindo nosso
número tão drasticamente. Não ganharemos nada com isso.

- Tínhamos de escolher entre duas possibilidades - respondeu o


primeiro homem cinzento - e nos decidimos por essa.

Mais uma vez ficaram em silêncio.

- Quer dizer que talvez tenhamos que ficar aqui durante anos, só
olhando uns para os outros? - perguntou um deles. - Confesso que a
perspectiva não me parece animadora.

Momo começou a refletir. Certamente não tinha sentido ficar ali, só


esperando.

Quando não houvesse mais homens cinzentos, as flores-das-horas


degelariam por si. Só que por enquanto eles ainda existiam. E
continuariam existindo sempre, se ela não fizesse alguma coisa. Mas
fazer o que, já que a porta do depósito estava aberta e os ladrões de
tempo poderiam se abastecer a qualquer momento?

Cassiopéia esperneou e Momo olhou para ela.

"FECHE A PORTA", estava escrito na sua carapaça.

- Não dá - sussurrou a menina. - Ela está imóvel.

"TOQUE COM A FLOR", foi a resposta.

- Se eu tocar a porta com a flor-das-horas, ela se fechará? - sussurrou


Momo.

"ISSO MESMO", apareceu nas costas da tartaruga.

Se Cassiopéia estava dizendo, era porque ia acontecer. Momo pôs a


tartaruga no chão, com todo o cuidado. Depois pegou a flor, que já
estava começando a murchar e tinha perdido algumas pétalas, e a
escondeu debaixo do casaco.

Sem que os homens cinzentos a vissem, ela se esgueirou para baixo


da mesa. Foi engatinhando até a outra ponta. Viu-se, então, entre os
pés cios ladrões cie tempo, com o coração aos saltos.

Devagarinho, tirou a flor-das-horas de baixo do casaco, colocou-a


entre os dentes e foi se rastejando entre as cadeiras, sempre sem que
os homens cinzentos a notassem.

Momo alcançou a porta entreaberta, tocou-a com a flor e, ao mesmo


tempo, empurrou-a com a mão.

A porta girou silenciosamente nas dobradiças e se fechou com um


estrondo. O som se repercutiu pela sala em múltiplos ecos, que foram
se espalhando pelos milhares de corredores.

Momo deu um salto. Os homens cinzentos, que nem de longe


imaginavam que algum outro ser além deles pudesse ter escapado
àquela completa imobilidade, continuaram sentados, paralisados de
susto, olhando para a menina.

Sem perder tempo, Momo passou por eles, correndo para a saída da
sala. Logo os homens cinzentos se recuperaram e saíram correndo
atrás dela.
- É aquela menina horrorosa! - ela ouviu um deles gritar.

- É Momo!

- Não é possível! - gritou um outro. - Como é que ela consegue se


mover?

- Ela tem uma flor-das-horas - urrou um terceiro.

- Foi com isso que ela conseguiu mover a porta? - perguntou o


quarto.

O quinto bateu com força na testa: - Então também poderíamos ter


conseguido. Nós temos um monte delas.

- Tínhamos, tínhamos! - berrou o sexto. - Mas agora a porta está


fechada! Só temos uma saída: precisamos tomar a flor-das-horas da
menina, senão estará tudo acabado!

Enquanto isso, Momo já tinha desaparecido pelos corredores, que se


ramificavam infinitamente. Mas os homens cinzentos conheciam tudo
aquilo bem melhor. Momo ia para um lado, ia para o outro, às vezes
quase caía nos braços de algum de seus perseguidores, mas sempre
conseguia escapar.

Cassiopéia também, a seu modo, participava da batalha Só


conseguia rastejar muito devagar, mas, como sabia de antemão por
onde os perseguidores iriam passar, chegava ao lugar na hora certa,
colocava-se no meio do caminho, de tal modo que os cinzentos
tropeçavam nela e se estatelavam no chão. Os que vinham atrás iam
caindo um por cima do outro. Desse modo, a tartaruga salvou Momo
várias vezes de ser apanhada. É claro que muitas vezes ela mesma
acabava sendo chutada contra a parede. Isso, no entanto, não a
impedia de continuar fazendo o que sabia de antemão que iria fazer.

Nessa correria, alguns homens cinzentos, atordoados pelo anseio de


se apossar da flor-das-horas, perderam seus charutos e se dissolveram
em nada. Finalmente, só restaram dois.

Momo voltou para a sala de reuniões. Os dois ladrões de tempo


correram atrás dela em volta da mesa, mas não conseguiram pegá-la.
A uma certa altura, separaram-se, cada um correndo num sentido.
Momo não tinha mais saída. Ficou encurralada num canto da sala,
olhando amedrontada para os dois perseguidores. Continuava
segurando a flor apertada contra o corpo. Só lhe restavam mais três
pétalas.

O primeiro perseguidor esticou a mão para pegar a flor quando o


segundo o empurrou para trás.

- Não! - ele gritou - A flor é minha! É minha!

Os dois começaram a brigar. O primeiro arrancou o charuto da boca


do outro, que se virou e, com um gemido fantasmagórico, foi ficando
transparente, até sumir.

O último homem cinzento avançou para Momo. No canto de sua


boca ainda queimava um minúsculo toco de charuto.

- Dê-me a flor! - disse ele, ofegante. Com isso, o toco de charuto caiu-
lhe cia boca e rolou pelo chão. O homem cinzento se jogou no chão e,
esticando o braço, tentou pegá-lo, mas não conseguiu mais.

Voltou seu rosto cinzento, com muito esforço soergueu o corpo e


estendeu a mão trêmula.

- Por favor - ele murmurou -, por favor, menina boazinha, dê-me a


flor!

Momo continuava encolhida no canto da sala, com a flor apertada


contra o peito.

Já sem conseguir articular uma palavra, recusou, balançando a


cabeça.

O último homem cinzento meneou a cabeça devagar.

- Está bem - murmurou. - Está bem. Agora... tudo .. se acabou...

E também ele desapareceu.

Momo fitava com olhos arregalados o lugar em que ele estivera


deitado. Mas lá estava Cassiopéia, em cuja carapaça apareceu: "ABRA
A PORTA".
Momo foi até a porta, voltou a tocá-la com a flor, que agora só tinha
mais uma pétala, e a escancarou.

Com o desaparecimento do último ladrão de tempo, também o frio


se fora, Momo entrou no imenso depósito, com os olhos arregalados.
As flores-das-horas, em número incalculável, enfileiravam-se em
longas prateleiras, como cálices de vidro. Cada uma era mais linda do
que as outras, e não havia duas que fossem iguais. Eram centenas de
milhares, milhões de horas de vida. O ar foi ficando quente, como
dentro de uma estufa.

Quando a última pétala da flor-das-horas de Momo estava caindo,


começou de repente uma espécie de tempestade. Nuvens de flores-
das-horas rodopiavam em torno dela e iam passando. Era como uma
tempestade quente de primavera, mas uma tempestade de tempo
liberto.

Como num sonho, Momo olhou à sua volta e viu Cassiopéia no chão à
sua frente. Na sua carapaça apareceram, luminosas, estas palavras:

"VOE PARA CASA, MOMO, VOE PARA CASA!"

Foi a última vez que Momo viu Cassiopéia. A tempestade das flores
intensificou-se de uma maneira indescritível e tornou-se tão forte que
ergueu

Momo, como se ela também fosse uma das flores. Momo foi
carregada para fora dos corredores escuros, para cima da Terra e da
grande cidade. A menina sobrevoou telhados e torres numa imensa
nuvem de flores, que se tornava cada vez maior.

Era como se fosse uma dança alegre acompanhando uma música


maravilhosa, em que ela flutuava para cima, para baixo e girando em
torno de si mesma.

Depois a nuvem de flores foi mergulhando suavemente, e as flores


foram caindo como flocos de neve sobre o mundo imóvel. E, como
flocos de neve, elas se dissolviam e voltavam a se tornar invisíveis,
para voltarem ao lugar a que pertenciam: o coração das pessoas.

No mesmo instante, o tempo recomeçou. Tudo voltou a se mover e a


se deslocar. Os carros avançavam, os guardas de trânsito apitavam, os
pombos voavam e o cachorrinho fez sua pocinha ao pé do poste.
As pessoas nem perceberam que durante uma hora o mundo havia
parado. Pois, na verdade, não se passara nenhum tempo entre a
interrupção e o recomeço. Para elas, fora o tempo de um piscar de
olhos.

No entanto, alguma coisa havia mudado. De repente, todas as


pessoas tinham muito tempo. É claro que todas estavam muito
contentes com isso, mas ninguém sabia que, na verdade, era seu
próprio tempo economizado que estava voltando de um modo
maravilhoso.

Quando Momo recuperou totalmente a consciência, estava


novamente numa rua. Era a rua transversal onde antes encontrara
Beppo. E, de fato, lá estava ele! Estava de costas para ela, apoiado na
sua vassoura, olhando pensativo à sua frente, exatamente como antes.
Não tinha mais pressa e não conseguia entender por que, de repente,
sentia-se tão confortado e tão cheio de esperança.

"Talvez agora eu já tenha poupado as cem mil horas para resgatar


Momo", pensou então.

No mesmo instante, alguém o puxou pela manga. Voltou-se e viu


Momo a seu lado.

Não há palavras para descrever a alegria daquele reencontro. Os dois


riam e choravam, falavam ao mesmo tempo e, naturalmente, muita
tolice, como sempre acontece quando estamos embriagados de
felicidade. Não paravam de se abraçar, e as pessoas que passavam
ficavam olhando, alegrando-se, rindo e chorando com eles, pois agora
todas tinham tempo para isso.

Afinal, Beppo pôs a vassoura no ombro, pois, como é de se


compreender, por aquele dia o trabalho estava encerrado. Os dois
saíram andando pela grande cidade, de braços dados, a caminho de
casa, o velho anfiteatro. Tinham muita coisa para contar um ao outro.

Havia muito tempo também não se via a grande cidade como


naquele dia. Crianças brincavam no meio da rua, e os motoristas que
eram obrigados a esperar as observavam sorridentes. Muitos até
desciam do carro para brincar junto. Por todo lado viam-se pessoas
conversando amigavelmente e trocando notícias detalhadas sobre
suas vidas. Quem ia para o trabalho, tinha tempo para admirar as
flores de uma janela ou alimentar um passarinho. Os médicos tinham
tempo para se dedicar a seus doentes. Os trabalhadores podiam
realizar seu ofício com tranquilidade e amor, pois já não havia a
preocupação de fazer o mais possível no menor tempo.

Muitos, porém, nunca souberam a quem deveriam agradecer tudo


aquilo e o que de fato acontecera naquele instante, que para eles
havia durado um piscar de olhos.

A maioria das pessoas não teria acreditado. As únicas que


acreditavam e sabiam eram os amigos de Momo.

Assim, naquele dia, quando Beppo e a menina chegaram ao


anfiteatro, já estavam todos à sua espera: Gigi Guia, Paulo, Mássimo,
Franco, Maria com sua irmãzinha Dedé, Cláudio e as outras crianças,
Nino e Liliana, os donos do bar, com seu bebê, Nicola, o pedreiro, e as
demais pessoas da vizinhança, que sempre iam até lá e que Momo
gostava de ouvir.

Então houve uma festa, tão animada como só os amigos de Momo


sabiam fazer, que durou até as velhas estrelas ocuparem o céu.

Depois que a alegria, os abraços, os apertos de mão, os risos e os


gritos se acalmaram, sentaram-se todos nos degraus cobertos de
capim. Fez-se silêncio.

Momo foi para o centro da grande arena. Lembrou-se das vozes das
estrelas e das flores-das-horas. E, com voz clara, começou a cantar.

Na Casa de Lugar Nenhum, Mestre Hora, que o tempo, ao voltar,


acordara de seu primeiro e único sono, estava sentado sorridente em
sua poltrona junto à mesinha, observando Momo e seus amigos através
dos óculos de visão global. Ainda estava muito pálido e parecia
convalescer de uma doença grave. Mas seus olhos brilhavam

- Cassiopéia - disse ele, carinhosamente, coçando-lhe o pescoço -,


vocês duas se saíram muito bem! Vai ler de me contar tudo, pois desta
vez não pude observá-las.

"MAIS TARDE", apareceu nas costas da tartaruga e ela deu um


espirro.

- Será que você se resfriou? - perguntou Mestre Hora, preocupado.


"E COMO!", respondeu Cassiopéia.

- Deve ter sido por causa do frio dos homens cinzentos disse Mestre
Hora. -  Imagino que você deve estar exausta e querendo, antes de
mais nada, dar uma boa descansada. Portanto, pode se recolher.

"OBRIGADA!", apareceu na carapaça

Cassiopéia saiu rastejando, procurando um canto escuro e


sossegado. Recolheu a cabeça e as quatro patas e, nas suas costas,
visíveis apenas para quem leu esta história, foram aparecendo
devagarinho as letras: 

FIM
BREVE POSFÁCIO DO AUTOR
 

Talvez alguns de meus leitores tenham muitas perguntas em seu


coração. Mas temo  que não poderei ajudá-los. Devo confessar que
escrevi esta história unicamente de memória, tal como me foi contada.
Não conheci Momo nem seus amigos pessoalmente. Não sei o que lhes
aconteceu depois e como estão hoje. Quanto à grande cidade, só posso
fazer suposições.

A única coisa que posso acrescentar é o seguinte: Eu estava fazendo


uma longa viagem (aliás, ainda estou), quando certa noite
compartilhei a cabine de um trem com um passageiro muito estranho.
Estranho no sentido de que eu não conseguia avaliar sua idade. No
início, achei que estava sentado diante de um velho. Logo vi, no
entanto, que havia me enganado, pois meu companheiro  de viagem
pareceu-me, de repente, muito jovem. Também essa impressão
revelou-se falsa.

Seja como for, ele me contou toda esta história durante a longa
viagem.

Quando terminou, nós dois ficamos em silêncio por alguns


momentos. Então o passageiro enigmático acrescentou mais uma
frase, que não posso deixar de transmitir aos leitores.

"Contei-lhe esta história", disse ele, "como se já tivesse acontecido.


Mas também poderia ter contado como se fosse acontecer no futuro.
Para mim, não há muita diferença."

Ele deve ter descido na estação seguinte, pois depois de alguns


momentos percebi que estava sozinho na cabine. Infelizmente, nunca
mais o encontrei.

Mas, se algum dia voltasse a encontrá-lo, gostaria de lhe fazer


muitas perguntas.
 

fim do livro
 
Table of Contents
PRIMEIRA PARTE
MOMO E SEUS AMIGOS
Capítulo Um
UMA CIDADE GRANDE E UMA
MENINA PEQUENA
Capítulo Dois
UM DOM RARO E UMA BRIGA
COMUM
Capítulo Três
UMA TEMPESTADE IMAGINÁRIA
E UM TEMPORAL DE VERDADE
Capítulo Quatro
UM VELHO CALADO E UM
JOVEM TAGARELA
Capítulo Cinco
HISTÓRIAS PARA MUITOS E
HISTÓRIAS PARA UMA
Segunda Parte
OS HOMENS CINZENTOS
Capítulo Seis
A CONTA ESTÁ ERRADA, MAS
DÁ CERTO
Capítulo Sete
MOMO PROCURA SEUS
AMIGOS E É ENCONTRADA POR
UM INIMIGO
Capítulo Oito
MUITOS SONHOS E ALGUMAS
IDEIAS
Capítulo Nove
UMA REUNIÃO BOA QUE NÃO
SE REALIZA, UMA REUNIÃO MÁ
QUE SE REALIZA
Capítulo Dez
PERSEGUIÇÃO FEROZ E FUGA
TRANQUILA
Capítulo Onze
QUANDO OS MAUS TIRAM O
MELHOR PARTIDO DO QUE É
RUIM
Capítulo Doze
MOMO CHEGA AO LUGAR DE
ONDE VEM O TEMPO
Terceira Parte
AS FLORES-DAS-HORAS
Capítulo Treze
UM DIA LÁ, UM ANO AQUI
Capítulo Quatorze
MUITA COMIDA, POUCAS
RESPOSTAS
Capitulo Quinze
ACHADO E PERDIDO
Capítulo Dezesseis
A MISÉRIA NA FARTURA
Capítulo Dezessete
GRANDE MEDO E MAIOR
CORAGEM
Capítulo Dezoito
OLHANDO O FUTURO SEM
OLHAR PARA TRÁS
Capítulo Dezenove
OS SITIADOS PRECISAM
TOMAR UMA DECISÃO
Capítulo Vinte
OS PERSEGUIDORES
PERSEGUIDOS
Capítulo Vinte e Um
O FIM, QUANDO COMEÇA
ALGO NOVO
BREVE POSFÁCIO DO AUTOR

Você também pode gostar