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eo
Senhor do Tempo
Michael Ende
Contra capas
Uma fábula? Pode-se dizer que sim, uma vez que essa designação
seja entendida no sentido romântico, pois realidade e sonho se
interpenetram de maneira poética.
PRIMEIRA PARTE
MOMO E SEUS AMIGOS
Capítulo Um
- Muito bem - disse um dos homens -, então você gosta deste lugar?
- Gostaria, sim.
- Não.
- É.
- Eu mesma.
- Você mesma?...
-É
- Você não tem um tio, uma tia, uma avó ou algum parente com
quem possa morar?
A partir de então, tudo passou a correr bem para Momo, pelo menos na
opinião dela. Sempre tinha alguma coisa para comer, às vezes mais,
outras vezes menos, dependendo do que o pessoal conseguisse
poupar. Tinha um teto, uma cama, e, quando fazia frio, podia acender
um fogo. O mais importante, no entanto, era que tinha muitos bons
amigos.
Mas por quê? Será que Momo era tão sensata que sempre tinha um
bom conselho para dar? Será que encontrava sempre as palavras
certas para dizer a quem precisasse de consolo? Ou sempre proferia
frases sábias e justas?
Nada disso.
O que Momo sabia fazer melhor do que ninguém era ouvir. Muitos
leitores devem estar achando que isso não é nada de mais, que
qualquer um sabe ouvir. Mas é engano. Muito pouca gente sabe ouvir
de verdade. E o jeito de Momo ouvir e entender era muito especial.
- Vou-me embora. Vindo aqui mostrei boa vontade, mas como você
pode ver, Momo, esse sujeito é teimoso. Não adianta esperar mais.
- Adeus, e vá pela sombra.. - gritou Nino. - Aliás, você nem devia ter
vindo. Eu não ia mesmo apertar a mão de um trapaceiro.
- Mas o jarro era meu, não era? - disse Nino. - Você não tinha o direito
de fazer uma coisa dessas.
- Sabe o que ele falou de mim? - gritou para Momo. Disse que eu
nunca consegui erguer uma parede reta porque estou bêbado vinte e
quatro horas por dia, e que meu tataravô era igualzinho a mim, e que
foi ele quem construiu a torre inclinada de Pisa!
"Quem só sabe fracassar vira dono de bar." Nino, por sua vez, não
tinha achado graça nenhuma.
- Tudo bem - disse Nicola -, eu não devia ter escrito aquilo na sua
porta, Nino. Mas eu não teria feito isso se você não se tivesse recusado
a me servir. Isso é contra a lei, sabe, porque eu sempre paguei direito e
você não tinha motivo para me tratar daquele jeito.
- Dei, é? - gritou Nicola, furioso outra vez. - Quem deu foi você, mas
não conseguiu me tapear.
- Veja só... Então foi você quem quis me dar um golpe, recebendo
meu rádio em troca de um pedaço de papel que não valia nada.
- E valia muito?
Em outra ocasião, um menino levou para Momo seu canário que não
queria cantar.
Foi uma tarefa difícil. Momo teve de ouvir o canário uma semana
inteira, até ele voltar a chilrear e cantar.
Momo ouvia todos com atenção: gatos, cachorros, grilos e sapos, até
a chuva e o vento nas árvores E cada um falava com ela à sua maneira.
Algumas noites, depois que todos os seus amigos já tinham ido para
casa, ela ficava sentada, sozinha, no grande anfiteatro de pedra,
debaixo do céu estrelado, simplesmente ouvindo o grande silêncio.
E, quem ainda acha que ouvir não é nada de mais, experimente fazê-
lo para ver se consegue.
Capítulo Três
Certa vez, num dia quente e abafado, dez ou onze crianças estavam
sentadas nas pedras, esperando por Momo, que tinha ido dar uma
voltinha para explorar a região, como às vezes fazia. No céu as nuvens
eram escuras e baixas, parecia que dali a pouco ia desabar um
temporal.
- Acho que vou para casa - disse uma menina, que estava com a
irmãzinha. - Tenho medo de relâmpago e trovão.
- É. Também tenho...
A menina fez que sim com a cabeça, mas dali a pouco disse:
A pequena ilha era toda redonda e devia ter uns vinte metros de
diâmetro. Era mais elevada no centro, formando urna espécie de
cúpula. Quando o professor atingiu o ponto mais alto, olhou para baixo
e pôde ver distintamente uma luzinha que pulsava, bem no núcleo da
ilha
Comunicou o que tinha visto aos outros, que esperavam ansiosos na
balaustrada.
- Foi minha culpa. Nunca deveria ter mandado vocês lá para baixo.
Perdoem-me por tê-las exposto a esse perigo.
- Não há o que perdoar, professor. Afinal, foi para isso mesmo que
nós viemos.
E a outra acrescentou:
Em meni allubeni
Muita gente achava que Beppo não era muito bom da cabeça,
porque, quando lhe faziam alguma pergunta, ele apenas sorria, sem
dizer nada. Refletia e, quando achava que a questão não merecia
resposta, ficava calado. No entanto, quando achava a pergunta
importante, continuava refletindo sobre ela. Às vezes demorava duas
horas, ou até dois dias, para responder. Enquanto isso, é claro, a
pessoa que havia feito a pergunta a esquecia, e o que Beppo dizia
acabava parecendo fora de propósito.
Enquanto se deslocava assim, uma rua suja na frente, uma rua limpa
atrás, com frequência lhe vinham à cabeça grandes ideias. Mas eram
ideias sem palavras, pensamentos tão difíceis de expressar quanto a
lembrança de um perfume ou de uma cor vista em sonho. Depois do
trabalho, quando sentava perto de Momo, costumava contar-lhe
suas ideias brilhantes. E, enquanto a menina ouvia daquela sua
maneira especial, a língua dele se soltava e surgiam as palavras
adequadas.
- Veja só, Momo - certa vez ele disse, por exemplo -, é assim. Às vezes
temos à nossa frente uma rua muito comprida. Achamos que ela é
terrivelmente comprida e que nunca seremos capazes de chegar até o
fim.
- Eu nos reconheci.
Sua única credencial para essa função era um quepe. Assim que
apareciam alguns turistas perdidos pelas redondezas, ele colocava o
quepe na cabeça e, com ar muito sério, ia falar com eles, propondo
mostrar-lhes as ruínas e explicar tudo.
Não tinha a menor ideia de como iria conseguir, pois trabalho sério e
perseverança não eram seu forte.
Nenhum dos três suspeitava que, em breve, uma sombra cairia sobre
sua amizade, e não só sobre sua amizade, mas sobre todo aquele
lugar. Era uma sombra que vinha crescendo cada vez mais e já se
estendia, escura e fria, por sobre a grande cidade.
Até o velho Beppo, que reparava em muita coisa que escapava aos
outros, não notou a presença dos homens cinzentos, que vinham
ocupando a cidade em número sempre crescente, incansáveis em sua
atividade Entretanto, não eram invisíveis.
Enrolou-se mais no seu casaco, mas não adiantou, pois não era um
frio comum.
"Certa ocasião, após ter subjugado mais uma vez esses povos, estava
tão irritada com os eternos problemas que era obrigada a enfrentar,
que ameaçou exterminá-los se o seu rei, Xaxotraxolus, não lhe
entregasse como indenização o seu peixe dourado.
Como não era pobre, a imperatriz Strapazia dava ao peixe tudo o que
ele conseguisse comer. O filhote foi se tornando grande e balofo. Logo
a terrina de sopa ficou muito pequena para ele.
"A imperatriz então passava dia e noite sentada ali, naquele lugar,
vigiando o peixe imenso, para verificar se já estava se transformando
em ouro. Não confiava em ninguém, nem nos escravos nem nos
parentes, pois tinha medo de que lhe roubassem o precioso peixe.
Então ficava ali sentada, emagrecendo a cada dia, de tanto medo e
aflição. Nunca fechava os olhos, estava sempre com eles cravados no
peixe, que se esbaldava alegremente na água, sem a menor intenção
de algum dia virar ouro.
Infelizmente o resto da frase não chegou até nós. O fato é que ela se
atirou dentro deste aquário e afogou-se ao lado cio peixe, neste túmulo
de todas as suas esperanças. Para comemorar a vitória, o rei
Xaxotraxolus mandou matar a baleia, e durante uma semana inteira o
povo todo comeu filé de baleia."
- Quando se supõe que tudo isso tenha acontecido? Gigi, que tinha
respostas sempre prontas, não vacilou:
- Como o senhor sabe, a imperatriz Strapazia foi contemporânea do
famoso filósofo Noiosius, o Velho.
Pelo contrário, muitas vezes até tentava conter sua imaginação, para
não ir longe demais, como naquela ocasião em que duas senhoras
americanas tinham aceitado seus serviços. Ele as deixara apavoradas
com a seguinte história:
"Um belo dia, no entanto, o espelho mágico lhe trouxe uma imagem
que teve para ela uma importância maior do que todas as outras. Era a
imagem de espelho de um jovem príncipe. Assim que se deparou com
seu reflexo, sentiu tanta vontade de ver o príncipe, que desejou ir a seu
encontro imediatamente. Mas por onde começar? Não sabia onde ele
morava, quem ele era, não sabia nem mesmo seu nome.
"O príncipe Girolamo não tinha nada contra, e assim as moças mais
bonitas da Terra do Amanhã foram levadas ao palácio, para que ele
escolhesse uma.
"- Com muito gosto - disse a fada má -, mas sob uma condição.
"- Ótimo - disse ela, com um sorriso tão gracioso, que o pobre
príncipe ficou atordoado. - Durante um ano você não poderá erguer os
olhos para o espelho de prata que paira no céu. Se o fizer, na mesma
hora você esquecerá tudo o que é seu. Esquecerá quem você é de
verdade. Irá para a Terra do Hoje, onde ninguém o conhece, e lá viverá
como um pobre coitado desconhecido. Você concorda?
"- Não - disse o príncipe -, não pode ser, pois não há nuvens no céu.
"E o príncipe olhou para cima, direto para o espelho mágico grande
e prateado, que pairava lá no alto. Então ele viu a imagem da princesa
Momo. Percebeu que ela estava chorando e que uma lágrima tinha
caído em sua mão. No mesmo instante compreendeu que a fada má o
tinha enganado, que ela não era bonita de verdade e que só tinha
sangue verde e frio correndo pelas veias. A princesa Momo era quem
ele amava de verdade.
"- Você quebrou sua promessa - disse a fada verde, e seu rosto se
contorceu como se fosse o de uma serpente. - Agora vai ter que pagar.
"- Não consigo entender nada do que você está dizendo, pois há um
nó no meu coração que faz com que não me lembre de nada.
Segunda Parte
OS HOMENS CINZENTOS
Capítulo Seis
Tinham seus próprios planos para o tempo das pessoas. Eram planos
a longo prazo, cuidadosamente preparados.
Era o caso, por exemplo, do barbeiro, o sr. Fusi. Não era nenhum
grande artista no seu ofício, mas era muito respeitado na sua rua. Não
era rico nem pobre. Sua barbearia, que ficava no centro da cidade, era
pequena e só tinha como empregado um jovem aprendiz.
Só que o sr. Fusi não sabia muito bem em que consistia essa "vida de
verdade".
Mas na mesma hora censurou-se por sua falta de tato, pois o homem
tinha uma careca reluzente.
- Para mim isso é novidade - declarou o sr. Fusi. - Para ser franco, eu
nem sabia da existência dessa tal caixa.
- Quarenta e dois anos e oito horas por dia vêm a ser quatrocentos e
quarenta e um milhões quinhentos e quatro mil segundos, e essa
quantidade de tempo deve, sem dúvida alguma, ser considerada
perdida. Agora, quantas horas por dia o senhor dedica ao trabalho?
- Não sei bem - disse o sr. Fusi, muito nervoso. - Creio que umas duas
horas.
O sr. Fusi estava com tanto frio, que seus dentes começaram a bater.
Sentindo-se fraco, apenas murmurou:
Sono
Trabalho
Refeições
Mãe
Periquito
Compras etc.
Segredo
Janela
TOTAL
1.324.512.000 segundos
- 1.324.512.000 segundos
0.000.000.000 segundo
Feito isso, guardou seu lápis e fez uma pausa, esperando até os
zeros fazerem efeito sobre o sr. Fusi.
"Então é esse o balanço da minha vida até hoje", pensou o sr. Fusi,
arrasado.
Estava tão impressionado com a conta, feita com tanta precisão, que
a aceitou sem contestar. E a conta dava mesmo muito certo. Era um
dos truques que os homens cinzentos utilizavam para enganar as
pessoas sempre que podiam.
- O senhor não acha que não pode continuar assim, sr. Fusi? -
recomeçou o agente XYQ/384/b, com voz suave. - Não gostaria de
começar a poupar um pouco do seu tempo, sr. Fusi?
O sr. Fusi fez sinal que sim, sem dizer nada e com os lábios roxos de
frio.
- O senhor pode verificar que isso vem a ser dez vezes mais todo o
tempo de sua vida inteira. E pode ser conseguido simplesmente pela
economia de duas horas diárias. Diga-me se não acha que é uma
oferta interessante.
- Está certo - disse o sr. Fusi -, posso até fazer tudo isso, mas, e o
tempo que eu economizo? O que faço com ele? Tenho de entregar para
guardar? A quem? Ou eu mesmo guardo em algum lugar? Como é que
funciona a coisa?
- Não se preocupe com nada disso. Deixe tudo por nossa conta. Fique
descansado, pode ter certeza de que não deixaremos se perder um só
momento do seu tempo poupado.
- Um minuto! - gritou o sr. Fusi. - Não precisamos fazer algum tipo cie
contrato? Eu não deveria assinar alguma coisa? Não recebo
documento nenhum?
O sr. Fusi escreveu uma carta curta e seca para a srta. Daria, dizendo
que, infelizmente, não tinha mais tempo para visitá-la. Vendeu o
periquito para uma loja de animais. Colocou a mãe num asilo de
velhos bom e barato, onde passou a visitá-la uma vez por mês. Nas
outras coisas também seguiu todos os conselhos do homem cinzento,
convencido de que eram suas próprias ideias.
Ele foi ficando cada vez mais nervoso e preocupado, pois achava
estranho, apesar de todo o tempo que economizava, nunca lhe sobrar
tempo. O tempo desaparecia misteriosamente e nunca mais voltava.
Os dias foram ficando cada vez mais curtos, a princípio sem ele se dar
conta, depois ostensivamente. Sem o sr. Fusi perceber, mais uma
semana se passava, depois um mês, um ano, outro ano e mais outro.
Avisos semelhantes foram afixados nas paredes atrás das mesas dos
chefes, das cadeiras dos diretores, nos consultórios médicos, nas lojas,
nos restaurantes, até nas escolas e jardins de infância. Ninguém
escapou.
Por fim, a aparência da própria grande cidade foi mudando cada vez
mais. Os bairros antigos foram demolidos e construíram-se novas
casas, deixando-se cie lado tudo o que fosse considerado supérfluo. Já
não havia a preocupação cie que as casas fossem adequadas às
pessoas que morassem nelas, pois isso tornaria necessário
construir muitas casas diferentes umas das outras. Era muito mais
barato e, sobretudo, mais rápido construir todas as casas iguais.
- Não sei - disse Momo certo dia -, mas tenho a impressão de que
nossos velhos amigos têm vindo me visitar muito menos do que antes.
Há alguns que não vejo há um tempão.
- Nada de bom.
Havia mais uma coisa que Momo não conseguia entender. Já era
assim desde o início, e agora acontecia cada vez com maior
frequência. As crianças traziam todo tipo de brinquedos, com os quais
não dava para brincar de verdade. Era o caso, por exemplo, de um
tanque com controle remoto, que andava sozinho, mas não fazia mais
nada além disso. Ou de um foguete espacial, que voava em círculos
em torno de um suporte, mas não servia para nada mais. Ou de um
robô de olhos iluminados, que andava se balançando e girando a
cabeça, mas que fora isso era inútil.
- Nem você nem ninguém manda em mim. Vou deixar meu rádio no
volume que eu quiser.
- Ele tem razão - disse o velho Beppo - Não podemos proibi-lo de
nada. No máximo podemos pedir.
- Então ele devia ir para algum outro lugar. A tarde inteira ele
atrapalhou tudo.
- Ele deve ter suas razões - disse Beppo, olhando para o garoto com
simpatia e compreensão, através de seus pequenos óculos. - Com
certeza tem.
- Conte uma história, Gigi - pediu uma das crianças novas no grupo.
Mas Gigi não queria. Era a primeira vez na sua vida que isso
acontecia.
- Nós agora temos um carro muito bonito - disse, por fim, uma delas.
- Aos sábados, quando papai e mamãe têm tempo, eles lavam o carro
Quando me comporto bem, tenho autorização para ajudar. Quando
crescer vou ter um igual.
- Acho ótimo meus pais não terem mais tempo para mim- disse
Franco, embora não parecesse nada contente. - Senão eles começam a
brigar e eu acabo apanhando.
- Claro - atalhou Franco. - Eles fazem isso para ficarem livres de nós.
Eles não gostam mais de nós, mas também não gostam mais deles
mesmos, Não gostam mais de nada. É isso que eu acho.
- É mentira! - gritou zangado o garoto do rádio. - Meus pais gostam
muito de mim. Eles não têm culpa de não terem tempo. As coisas são
assim. Em compensação me deram este rádio, que custa muito caro.
Isso é uma prova, não é?
- É - falou o velho Beppo, após uma longa pausa -, está ficando frio.
- Acho que daqui a pouco não vou mais poder vir aqui disse Paulo, o
menino de óculos.
- Vocês também acham isso de nós? Então por que continuam vindo
aqui, apesar de tudo?
- Eu não ligo. De qualquer jeito, meu pai sempre diz que quando eu
crescer vou ser ladrão. Estou do lado de vocês.
Ouvindo isso, o velho varredor cie ruas ergueu-se ao máximo cie sua
altura, que não era muita, levantou solenemente a mão e declarou:
Fazia algum tempo que eu não o via, e quase não o reconheci, pois
estava muito mudado: nervoso, irritado, infeliz. Antigamente ele era
um sujeito simpático, que cantava muito bem e, sobretudo, tinha
opiniões muito interessantes Agora, de repente, não tem mais tempo
para nada. Deixou de ser o sr. Fusi, barbeiro, e virou um fantasma de si
mesmo, vocês me entendem? Se ele fosse o único, eu diria que ficou
meio louco, mas para onde olhamos damos com pessoas assim. E cada
dia aparecem mais e mais. Agora até alguns dos nossos velhos amigos
estão começando a ficar desse jeito! Às vezes me pergunto se existem
loucuras que são contagiosas.
Primeiro foi procurar Nicola, o pedreiro. Ela conhecia a casa onde ele
morava, num quartinho do sótão. Mas Nicola não estava. Os outros
moradores da casa só sabiam que ele estava trabalhando no novo
bairro residencial, do outro lado da cidade, e que estava ganhando
muito dinheiro. Voltava para casa muito raramente e, quando voltava,
era sempre muito tarde. Também estava sempre meio bêbado, e era
difícil conviver com ele.
- Ora, você tem cada uma! - disse Nicola, balançando a cabeça, com
um sorriso. -
Imagine só, vir aqui no meio da noite para visitar seu velho amigo
Nicola! Sabe que há muito tempo estou querendo visitá-la, mas hoje
em dia não tenho mais tempo para assuntos... particulares.
- Você nem imagina o que virou minha vida, menina! As coisas não
são mais como antes. Os tempos mudaram. Lá onde estou trabalhando
agora, o ritmo é outro. É um inferno. Cada dia construímos um andar
inteiro, e é um atrás cio outro. É muito diferente de antigamente. Eles
já têm tudo planejado, cada gesto, entende? Tudo está previsto até nos
menores detalhes...
Ele continuou falando, e Momo ouvia com atenção. À medida que ela
ia ouvindo, a voz de Nicola ia perdendo o entusiasmo. De repente ele
parou e passou a mão cheia de calos pela testa.
- Ah, Momo, é você? - disse Nino, com um breve sorriso. - Que prazer
vê-la de novo.
- Então o que você quer? - indagou Nino, irritado. - Agora não temos
tempo para atendê-la.
- Só vim perguntar por que faz tanto tempo que vocês não vão me
visitar - disse ela, baixinho.
- Não foi bem assim - protestou Nino. - Só pedi, com toda a gentileza,
que eles procurassem outro bar. Como dono, tenho o direito de fazer
isso.
- Ora, direito, direito! - exclamou Liliana, exasperada. Uma coisa
dessas simplesmente não se faz. É desumano e injusto. Você sabe
muito bem que eles não vão encontrar outro bar. E aqui não
incomodavam ninguém.
- Até agora, sim! - continuou Nino, com veemência. - Mas você sabe
perfeitamente que não vai continuar sendo sempre assim. O aluguel
aumentou. Tenho que pagar um terço a mais do que antes. Os preços
de tudo estão subindo. Onde é que eu vou arranjar dinheiro, se
transformar meu bar num asilo de velhos miseráveis? Por que é que eu
sou obrigado a cuidar dos outros? De mim ninguém cuida!
A gorda Liliana bateu uma frigideira no fogão com tanta força que
ela até rachou.
- Vou lhe dizer uma coisa - ela gritou, com as mãos na cintura -, entre
esses velhos miseráveis, como você diz, está meu tio Ettore, e não vou
admitir que você ofenda minha família. Meu tio é um homem bom e
honesto, mesmo não tendo tanto dinheiro quanto esses seus fregueses
pagantes!
Eu já disse que ele pode vir se quiser, mas ele não quer
- Claro que não quer, sem seus velhos amigos! O que você está
pensando? Acha que ele vai ficar ali sozinho, encolhido no canto?
- Então não posso fazer mais nada! - berrou Nino. - O fato é que não
quero passar o resto da minha vida como dono de uma espelunca, só
para satisfazer ao seu tio Ettore. Também quero melhorar de vida! Por
acaso isso é crime? Quero arrumar este estabelecimento, quero que
seja um lugar concorrido. E não é só por mim, também é por você e
por nossa filha. Será que você não entende, Liliana?
- Não, não entendo - retrucou Liliana, com firmeza. - Se for para não
ter coração, se já está começando assim, então não conte comigo. Um
belo dia eu me canso e vou embora. Você é quem sabe!
Ela foi até Momo, pegou a criança, que tinha voltado a chorar, e
correu para fora da cozinha.
- É - disse Nino, finalmente - Sei que eles eram bons sujeitos. Até
gostava deles. Sabe, Momo, eu sinto muito, mesmo .. mas o que
posso? Os tempos mudaram.
- Imagine só, Momo - disse Liliana, radiante -, Nino foi procurar tio
Ettore e os outros velhos, um por um. Desculpou-se e pediu que
voltassem.
Assim, Momo foi procurar todos os seus velhos amigos, um por um.
Procurou o carpinteiro que tinha feito a mesinha e as cadeiras para ela.
Procurou as mulheres que lhe deram a cama. Enfim, procurou todos
aqueles a quem tinha ouvido e que, graças a ela, tinham se tornado
mais sensatos, mais confiantes ou mais felizes. Todos eles prometeram
voltar de novo. Alguns não cumpriram a promessa, ou não puderam
cumprir porque não tinham tempo. Entretanto, muitos voltaram, e
tudo ficou sendo quase como era antes.
- Acho que você não é minha, não - retrucou Momo. Acho que
alguém esqueceu você aqui.
Momo tentou outra brincadeira. Vendo que também não dava certo,
experimentou outra e mais outra e mais outra. Mas nada dava certo.
Se pelo menos a boneca não falasse nada, Momo poderia responder
por ela, e a conversa seria ótima. Porém, pelo próprio fato de falar,
Bibigirl impedia qualquer conversa.
Dali a pouco Momo começou a ter uma sensação que nunca tivera
antes. Como era novidade, levou algum tempo para ela perceber que
se tratava de tédio.
- Que linda boneca você tem! - disse ele, com uma voz estranha e
sem entonação.
Momo não disse nada, enrolou-se mais em seu paletó imenso, pois o
frio aumentava.
Ele fez uma pausa e lançou um olhar inquisidor para Momo, que
estava sentada no chão, no meio cie todos aqueles objetos, como que
paralisada.
- Agora você não precisa mais dos seus amigos, entende? Já que
todas essas coisas lindas são suas, e você ainda vai ganhar mais, vai
ter muito com o que se divertir, não é? E é isso que você quer, não é?
Você quer mesmo essa boneca maravilhosa, não é verdade?
Momo sentia vagamente que tinha uma luta pela frente, ou melhor,
que já estava em pleno campo de batalha. Mas não sabia por que e
contra quem se travava essa batalha. Quanto mais ouvia o visitante,
mais ia tendo a mesma sensação que tivera antes, com a boneca:
ouvia uma voz, ouvia as palavras, mas não ouvia a pessoa que estava
falando. Sacudiu a cabeça, recusando.
- Menina - disse ele, com voz mansa -, acho que precisamos ter uma
conversa séria, para você aprender como são as coisas.
- Vamos lá, ouça com atenção - começou ele, finalmente. Era isso
que Momo estava tentando fazer, o tempo todo.
Mas aquele homem era muito mais difícil de ouvir do que as pessoas
que ela ouvira até então. Em geral, ela tinha a impressão de conseguir
penetrar e compreender o que as pessoas pensavam e como
realmente eram. Mas com aquele visitante simplesmente não clava.
Sempre que tentava, Momo tinha a impressão de entrar no escuro e no
vazio, como se dentro dele não houvesse ninguém. Aquilo nunca
acontecera com ela.
O homem observava Momo com o rabo dos olhos. Não lhe passou
despercebida a mudança de expressão da menina. Sorriu
ironicamente, acendendo um novo charuto no toco do outro.
Vocês não sabem o que é seu tempo! Mas nós sabemos e sugamos
vocês até os ossos... e precisamos de mais... cada vez mais... porque
somos cada vez mais numerosos... cada vez mais... e mais...
O homem cinzento soltou essas últimas palavras quase como um
estertor. Mas depois segurou a própria boca com as duas mãos. Seus
olhos saltavam das órbitas, fixos em Momo.
- Pois é - retrucou Gigi -, por enquanto é claro que também não sei
exatamente.
Vamos ter que refletir. Mas uma coisa é evidente: agora que sabemos
que eles existem e como agem, precisamos combatê-los. A não ser que
você tenha medo!
- Acho que eles não são pessoas como as outras. O homem que
esteve comigo parecia meio diferente. E o frio é terrível. Se eles são
muitos, devem ser mesmo perigosos. Tenho medo, sim.
- Mas então - disse Momo - pode ser que a gente não consiga
encontrá-los. Talvez se escondam de nós.
- Pode ser, mesmo, que isso aconteça - concordou Gigi. - Nesse caso,
vamos ter que os atrair para fora do seu esconderijo.
- Por quê?
- Eu acredito em Momo.
- Acho que você não está acreditando que é verdade o que Momo
contou - retrucou Beppo, muito sério.
Quando ficou claro que não chegaria mais ninguém, Gigi Guia
levantou-se e, com gestos largos, pediu silêncio. As vozes e gritos
cessaram, e no anfiteatro de pedra fez-se um silêncio cheio de
expectativa
- Por que Beppo não queria que Momo contasse o que aconteceu
com ela? - perguntou Franco.
- Como é que eles fazem? Quer dizer, como é que dá para roubar o
tempo? Como é possível?
- Mas temos cie fazer alguma coisa! - disse Paulo, afinal -. E tem que
ser o mais depressa possível, antes que os ladrões, fiquem sabendo
dos nossos planos.
Naquele dia e nos dias que se seguiram, uma atividade secreta, mas
febril, tomou conta das ruínas. Surgiram potes de tinta, pincéis, papel,
papelão, cola e todos os outros materiais necessários. (É melhor não
perguntar como e de onde surgiu tudo aquilo.)
POR QUÊ?
A canção tinha muito mais estrofes, vinte e oito ao todo, mas não é
preciso apresentar todas aqui.
- Não adianta esperar mais, Momo. Não vem ninguém mesmo! Boa
noite.
- Não podemos fazer nada! Já deu para ver que não se pode contar
com os adultos.
Aliás, eu já não confiava muito neles, e agora, então, não quero mais
saber de gente grande.
- Mas à noite?
- Que pena! - suspirou Momo. - Gostaria que você ficasse aqui hoje!
- Não fique triste porque nosso plano não deu certo continuou Gigi. -
Eu também imaginava um resultado muito diferente! Mas não
importa, mesmo assim foi divertido! Foi fantástico!
Momo continuava em silêncio. Gigi acariciou-lhe os cabelos,
tentando consolá-la:
- Não leve tão a sério, Momo! Amanhã tudo vai parecer diferente!
Vamos pensar em alguma outra coisa... numa nova história, está bem?
- Mas não era uma história - respondeu Momo, baixinho. Gigi pôs-se
de pé:
- Está tudo bem - disse Beppo. - Podem ir! Só vou descansar aqui
mais um instante.
De repente foi acordado por uma rajada de vento frio. Não sabia
quanto tempo tinha dormido. Olhou à sua volta e imediatamente
sentiu-se totalmente desperto.
- Exatamente.
- Há onze anos, três meses, seis dias, oito horas, trinta e dois minutos
e, neste exato momento, dezoito segundos.
- Sim.
- E por que razão o senhor transgrediu uma das nossas normas mais
rigorosas? - indagou o juiz
- Momo.
- Menino ou menina?
- Menina.
- Residência?
- Oi, quem é você? - ela perguntou, baixinho. - Seja quem for, estou
contente que pelo menos você tenha vindo me visitar, tartaruga! O
que quer de mim?
"É para mim, mesmo!", pensou Momo. Então ela se levantou e foi
atrás do misterioso animal.
Momo, que nunca tinha visto aquilo, caminhava como num sonho,
de olhos arregalados, sempre atrás da tartaruga. Atravessaram praças
imensas, ruas muito iluminadas. Carros vinham por trás delas e as
ultrapassavam, transeuntes as rodeavam, mas ninguém prestava
atenção à menina e à tartaruga.
Nenhuma resposta.
- Também ainda não sei - arquejou Beppo. - Mas foi alguma coisa
ruim!
- Sabe, Beppo - disse depois de uma pausa -, pode ser que Momo
tenha saído só para ciar uma volta. Às vezes ela faz isso. Já chegou a
ficar três dias e três noites passeando pelos campos. Quero dizer que
talvez não haja motivo para nos preocuparmos assim!
- Não faça essa loucura! - gritou Gigi, horrorizado. - Isso não, de jeito
nenhum. Imagine se a polícia sai procurando e encontra nossa querida
Momo. Sabe o que vão fazer com ela? Você sabe, Beppo? Sabe para
onde eles levam órfãos perdidos? Para um asilo com grades nas
janelas. Você quer que isso aconteça com Momo?
- Francamente, não sei o que será melhor fazer... não sei! - suspirou
ele.
Mas ela dizia aquilo mais para si mesma, para se encorajar, pois na
verdade estava meio assustada. O caminho pelo qual a tartaruga a
conduzia tornava-se cada vez mais estranho e tortuoso. Já haviam
atravessado parques, pontes, túneis, portões, grandes vestíbulos, e por
vezes até passagens subterrâneas.
Momo não entendeu por que, mas obedeceu à ordem. Três vultos
escuros passaram bem perto delas.
- Como é possível?
A tartaruga virou mais uma esquina. Momo foi atrás dela e parou,
deslumbrada!
"Será que consigo abrir esta porta?", pensou Momo, duvidando. Mas,
no mesmo instante, as duas imensas folhas se abriram.
Momo deteve-se ainda por um momento, pois notou uma placa com
uma inscrição logo acima da entrada. A placa, sustentada por um
unicórnio branco, trazia a inscrição:
Devemos nos manter atentos. Não poderemos nos dar por satisfeitos
enquanto não tivermos essa menina inteiramente em nosso poder. É o
único meio de termos certeza de que ela não nos prejudicará mais. Se
ela foi capaz de transpor a esfera do tempo, também poderá voltar a
qualquer momento. E voltará.
- Mas então ela não nos ajudará! - gritou um outro. - Essa ideia é
simplesmente absurda!
- Seja como for - disse o sexto orador, finalmente -, não daria certo!
- Então primeiro teremos que lhe tirar esse tempo - concluiu o nono
orador.
- Essa criança é muito dedicada aos amigos. Ela adora dar seu tempo
aos outros.
Momo estava agora numa sala enorme, a maior que já tinha visto na
vida. Era maior do que a mais imensa das igrejas ou a mais ampla das
estações de trem.
Momo notou que não havia ponteiros nem números, apenas duas
espirais muito finas, colocadas uma sobre a outra, em sentidos
opostos, que se moviam muito devagar. No lugar em que as linhas se
cruzavam, apareciam de quando em quando minúsculos pontos
luminosos.
- Ah! Acho que estou meio atrasado quanto à moda! Que descuido, o
meu! Vou já corrigir isso!
- Não, claro que não! Onde estou com a cabeça? Estalou de novo os
dedos e surgiu com uma roupa que nem Momo nem ninguém jamais
poderia ter visto, pois só estaria em moda cem anos depois.
- Também não? - disse ele, consultando Momo. - Ora, por Órion, está
difícil acertar! Espere, vou tentar de novo.
- Têm medo de você - explicou Mestre Hora -, pois você lhes causou o
que há de pior para eles.
- Fez, sim! Você levou um deles a se trair. Depois contou tudo a seus
amigos Vocês até quiseram dizer a todo o inundo a verdade sobre os
homens cinzentos.
- Foi uma pena! Acho que ninguém mais leu - disse a menina.
- Como é que você sabe de tudo isso - ela voltou a perguntar -, quer
dizer, sobre os nossos cartazes e os homens cinzentos?
- Estou sempre de olho neles e em tudo o que tem relação com eles -
declarou Mestre Hora. - Por isso também andei vigiando você e seus
amigos.
Olhando mais para longe, viu outros grupos nas ruas da cidade,
gesticulando e falando agitadamente uns com os outros, como se
estivessem trocando informações.
- Estão falando de você - explicou Mestre Hora. - Não conseguem
entender como conseguiu escapar deles.
- Espero que não - disse Mestre Hora. - Venha, Momo, quero lhe
mostrar minha coleção.
- Sei - disse ele, sorrindo. - Mas é muito difícil. Pouca gente consegue
decifrá-lo.
- Estou curioso para ver se você vai ser capaz de decifrá-lo - disse
mestre Hora. - Então preste atenção.
O que mais ela sabia? Cassiopéia sempre sabia o que iria acontecer.
Ela sabia...
- Mas o que quer dizer o que vem a seguir? "E ele existe porque o
primeiro vira o segundo." Ah, já sei, significa que o presente só existe
porque o futuro vira passado.
Momo olhou toda a sala imensa à sua volta. Seu olhar percorreu os
milhares e milhares de relógios e, de repente, sua expressão se
iluminou.
- Ele existe - murmurou ela, absorta -, isso é certo. Mas não se pode
pegar o tempo. Segurá-lo também não. Será como uma espécie de
perfume? Mas é uma coisa que está sempre passando, deve vir de
algum lugar. Será que é como o vento? Não! Já sei! Talvez seja uma
espécie de música, que a gente não ouve porque ela está sempre ali.
Mas acho que eu já a ouvi, muito baixinho.
- Eu sei - confirmou Mestre Hora -, e foi por isso que consegui chamar
você.
- Quer dizer, talvez seja como as ondas que aparecem na água por
causa do vento.
- Será que então não seria fácil você dar um jeito para que os ladrões
de tempo não pudessem mais roubar tempo das pessoas? - perguntou
Momo.
- Por isso você tem tantos relógios? Um para cada pessoa, é? - Não,
Momo - respondeu Mestre Hora. - Esses relógios são meus objetos de
estimação. São apenas uma imitação muito imperfeita de algo que
cada ser humano tem no peito.
Pois, assim como vocês têm olhos para enxergar a luz, ouvidos para
ouvir sons, também têm um coração para perceber o tempo. Todo o
tempo que não é percebido pelo coração é tão desperdiçado quanto
seriam as cores do arco-íris para um cego ou o canto de um pássaro
para um surdo. Infelizmente, porém, existem alguns corações cegos e
surdos, que nada percebem, apesar de baterem.
- Você acha? - indagou Mestre Hora - Digo isso a elas a cada hora que
lhes entrego. Mas parece que não querem nem ouvir. Preferem
acreditar em quem lhes dá medo. Isso também é um enigma
- Pois vou levá-la até lá - disse Mestre Hora. - Mas naquele lugar é
preciso ficar em silêncio. Você não vai poder perguntar nem dizer
nada. Promete?
O percurso foi longo, até que por fim Mestre Hora pôs a menina no
chão. Seu rosto estava bem junto ao dela, olhava-a com os olhos bem
abertos e estava com um dedo sobre os lábios. Depois endireitou-se e
deu um passo atrás. Um crepúsculo dourado envolveu a menina. .
Aos poucos, Momo viu que estava sob uma cúpula imensa, que lhe
parecia do tamanho da abóbada celeste. E aquela cúpula gigantesca
era toda de puro ouro.
No alto, bem no centro, havia uma abertura redonda. Por ela entrava
uma verdadeira coluna de luz, que caía verticalmente sobre um lago,
igualmente redondo, cuja água preta, lisa e imóvel, formava como que
um espelho escuro.
Era a flor mais maravilhosa que Momo jamais tinha visto. Parecia ser
feita apenas de cores luminosas. Momo nem mesmo imaginara que
aquelas cores pudessem existir.
Momo achou aquela flor a mais bela de todas. Era a flor de todas as
flores, uma maravilha única!
Momo teve vontade de chorar alto quando viu que também aquela
beleza perfeita começou a se desmanchar e a mergulhar nas
profundezas escuras. Mas lembrou-se da promessa que fizera a Mestre
Hora e ficou em silêncio.
Aos poucos, Momo foi compreendendo que cada nova flor era bem
diferente da anterior e que sempre aquela que acabava de
desabrochar parecia ser a mais bonita de todas.
Sempre caminhando em torno do lago, ia vendo surgir e desaparecer
uma flor após a outra. Tinha a impressão de que nunca se cansaria de
assistir àquele espetáculo.
A coluna de luz que descia do alto da cúpula até embaixo não era
apenas de se ver. Momo também começou a ouvi-la.
Momo foi percebendo cada vez mais nitidamente que aquele barulho
era constituído por inúmeros sons, que iam se combinando de
maneiras diferentes, se transformando e compondo harmonias sempre
novas. Era música e, ao mesmo tempo, uma coisa completamente
diferente.
Nesse instante, viu Mestre Hora, que acenava para ela em silêncio.
Momo correu para ele. Mestre Hora tomou-a nos braços e ela escondeu
o rosto no seu peito.
Mais uma vez ele cobriu os olhos da menina com as mãos, com a
leveza da neve.
- O que você viu e ouviu, Momo, não foi o tempo de todos os homens,
foi apenas o seu tempo - replicou Mestre Hora. - Em todas as pessoas
existe um lugar como esse em que você esteve há pouco. Mas só pode
chegar a ele quem se deixa levar por mim. E também não se pode vê-
lo com olhos comuns.
- Mestre Hora - disse ela, baixinho -, posso trazer meus amigos até
você?
- Mas eu queria contar para todos eles! Queria ser capaz de repetir
para eles o que as vozes cantavam. Acho que então tudo ficaria bem
de novo
Terceira Parte
AS FLORES-DAS-HORAS
Capítulo Treze
Momo acordou e abriu os olhos. Levou algum tempo para saber onde
estava. Ficou muito admirada ao perceber que voltara aos degraus
cobertos de capim do velho anfiteatro. Será, então, que não tinha
estado na Casa de Lugar Nenhum com Mestre Hora? Como era possível
ter voltado tão depressa?
Havia mais, e cada vez mais. Como de uma fonte mágica, brotavam
milhares de imagens de flores-das-horas. E a cada flor soavam novas
palavras. Era só Momo ouvir com atenção dentro de si para ser capaz
de repeti-las e até de cantar com elas. Falavam de coisas misteriosas e
lindas. À medida que pronunciava as palavras, Momo ia entendendo
seu significado.
Então era isso que Mestre Hora queria dizer, ao adverti-la de que
antes era preciso que as palavras crescessem dentro dela. Ou teria
sido tudo apenas um sonho? Será que tudo aquilo, na verdade, não
tinha acontecido?
- Foi você que me levou esta noite até o Mestre Hora? perguntou
Momo.
Não podia saber que, por muito tempo, não teria outros ouvintes.
Não podia saber que era inútil esperar por seus amigos, que estivera
ausente durante muito tempo e que, enquanto isso, o mundo havia
mudado muito.
Não morava mais perto do anfiteatro. Tinha ido para um outro bairro,
completamente diferente, onde só morava gente rica e famosa.
Alugara uma casa grande e moderna, que ficava no meio de um
parque muito bem cuidado. Já não se chamava Gigi, mas Girolamo.
Do antigo Gigi restava muito pouco. Um dia, porém, ele juntou esse
pouco e resolveu refletir sobre si mesmo. Tornara-se um homem cujas
palavras eram levadas em conta e ouvidas por milhões de pessoas.
Quem seria mais indicado para lhes dizer a verdade? Queria lhes
contar tudo a respeito dos homens cinzentos! Diria que não se tratava
de mais uma história inventada por ele e pediria a todos os ouvintes
que o ajudassem a encontrar Momo.
Tomou essa resolução uma noite em que sentiu saudade dos velhos
amigos. Quando o dia amanheceu, sentou-se em sua grande
escrivaninha, para esboçar seu plano.
Ainda nem tinha escrito uma palavra, quando o telefone tocou. Gigi
atendeu e ficou duro de pavor
- Não - ele disse -, não vou desistir de coisa nenhuma. Não sou mais o
insignificante e desconhecido Gigi Guia. Agora sou um grande homem.
Veremos se vocês podem me impedir de fazer o que quer que seja A
voz deu uma risada sem expressão e, subitamente, Gigi começou a
bater os dentes
- Ora, não ocupe essa sua cabeça virada com isso. A ela você não
poderá mais ajudar se contar tudo a nosso respeito. A única coisa que
irá conseguir será fazer sua fama desaparecer tão depressa quanto
surgiu. Evidentemente, a decisão é sua! Se fizer questão, não
poderemos impedi-lo de bancar o herói e se arruinar. No entanto, não
poderá esperar que continuemos a lhe dar nossa proteção, caso você
se mostre tão ingrato. Não é mais agradável ser rico e famoso?
- Mas como posso fazer isso - perguntou Gigi, com esforço -, agora
que estou sabendo de tudo?
- Vou lhe dar um conselho: não se leve tão a sério, rapaz! Realmente,
você não pode fazer nada. Pensando assim, poderá continuar agindo
como fez até hoje.
Para os homens cinzentos, foi bem mais difícil lidar com Beppo
Varredor.
Pode até ser que eu consiga dar um jeito de ela não ser internada.
Mas primeiro precisamos encontrá-la."
- É uma criança?
- É. Uma menina.
- É sua filha?
- Não - replicou Beppo, confuso -, ou melhor, sim. Mas não sou seu
pai.
- Com ela mesma, quer dizer, no velho anfiteatro. Mas não mora
mais. Ela sumiu.
- Só Momo.
- Assim não dá, meu caro. Estou querendo ajudar, mas não posso
redigir um relatório desse jeito. Então me diga primeiro o nome do
senhor.
- Beppo.
- Beppo de quê?
- Beppo Varredor.
- Chega! - gritou ele, com a cara roxa. - Saia já daqui, antes que
mande prendê-lo por desacato à autoridade.
Nos dias seguintes procurou várias outras delegacias, mas a cena era
sempre a mesma. Ou o colocavam na rua, ou o mandavam embora
gentilmente, ou o faziam esperar para depois se livrarem dele.
Assim, Beppo foi obrigado a esperar meio dia na cadeia, até ser
levado para um carro por dois policiais. Atravessaram a cidade, até um
grande edifício branco com grades nas janelas. Não era uma prisão,
como Beppo pensou de início, mas um hospital para doentes mentais.
Ali ele passou por um exame completo. Os médicos especialistas e
as enfermeiras foram gentis com Beppo, não zombaram dele e não o
xingaram, pareciam até muito interessados na sua história, pois teve
de repeti-la várias vezes. Embora não o contestassem, Beppo também
não teve a impressão de que estivessem acreditando nele. Não
conseguiam entendê-lo bem, mas também não o deixavam ir embora.
Uma noite ele acordou e, sob a fraca luz noturna, percebeu alguém
de pé a seu lado. Primeiro distinguiu apenas a ponta de um charuto
aceso; depois reconheceu o chapéu-coco e a pasta cinza-chumbo que
o vulto trazia. Quando compreendeu que se tratava de um dos homens
cinzentos, sentiu um frio que o penetrou até a medula e já ia gritar por
socorro.
- Concordo!
Mas ele não foi para casa. Dirigiu-se para o grande edifício onde, com
seus companheiros, costumava apanhar a vassoura e o carrinho de
mão. Pegou a vassoura, foi para a grande cidade e começou a varrer.
A tarefa mais difícil para os homens cinzentos era ajustar aos seus
planos as crianças que tinham sido amigas de Momo. Mesmo depois do
desaparecimento da menina, elas continuavam a se reunir no
anfiteatro, sempre que podiam, e inventavam novas brincadeiras.
Algumas caixas e caixotes vazios eram o bastante para
embarcarem em longas e arriscadas viagens ao redor do mundo ou
construírem castelos e altas montanhas. Além disso, faziam planos
para o futuro, contando histórias umas às outras. Enfim, faziam tudo
como se Momo ainda estivesse ali. E, de fato, parecia mesmo que a
menina continuava entre elas.
- Está tudo errado! - diziam ainda outras. - Crianças que não são
vigiadas acabam se corrompendo moralmente e tornam-se criminosas.
O Estado deve tomar providências para que essas crianças sejam
recolhidas. É preciso criar estabelecimentos onde sejam educadas para
se tornarem membros úteis e produtivos da sociedade.
A única coisa que lhes restava era fazer barulho. Não era um barulho
alegre, é claro, mas frenético e agressivo.
- Não - ela disse, baixinho -, não pode ser verdade. Você deve estar
enganada, Cassiopéia. Ainda ontem estavam todos aqui, naquela
manifestação que deu era7nada.
Sobre a mesa feita de caixotes, havia uma carta, apoiada numa lata,
tudo coberto, também, de teias de aranha.
Gigi"
Momo demorou para soletrar a carta, embora Gigi tivesse se
esforçado para fazer uma letra bonita e clara. Quando ela finalmente
terminou, o último clarão do dia acabava de se apagar.
Momo, que ao ler a carta vira a imagem nítida de Gigi, não se dava
conta de que aquela carta estava ali havia quase um ano.
- Você vai ver, Cassiopéia - dizia ela -, como agora tudo vai se
esclarecer Nino sabe onde estão Gigi e Beppo. Então vamos chamar as
crianças e estaremos todos juntos de novo Pode ser que Nino e sua
mulher também venham se reunir aos outros. Tenho certeza de que
você vai gostar dos meus amigos. Podemos até fazer uma festinha hoje
à noite. Vou contar a eles das flores, da música, de Mestre Hora, de
tudo. Como estou contente em rever todos eles! Mas agora vou ficar
mais contente ainda com um bom almoço. Estou com muita fome,
sabia?
Momo foi observando tudo aos poucos, pois o lugar estava lotado de
gente, e ela tinha a impressão de estar sempre atrapalhando o
caminho. Para onde quer que fosse, era sempre empurrada para o lado
ou para a frente. A maioria das pessoas carregava bandejas com pratos
e garrafas, procurando um lugar nas mesinhas.
Momo estava perplexa Cada um podia pegar o que quisesse! Não via
ninguém que impedisse as pessoas de pegar as coisas ou que lhes
pedisse para pagar. Talvez fosse tudo de graça! Isso explicaria aquela
multidão!
- Gigi vai pagar tudo para você! - Nino sussurrou para ela, apressado.
- Pode pegar o que quiser. Mas vá para o fim da fila, como os outros.
Você mesma está ouvindo!
- Ah, sabe como é - disse Nino, já meio nervoso -, ele não tem mais
tempo. Tem coisas mais importantes para fazer. E, de qualquer modo,
no velho anfiteatro já não acontece mais nada.
Momo queria ficar mais, pois ainda tinha muitas perguntas, mas foi
simplesmente empurrada para frente. Foi com sua bandeja para uma
das mesinhas de cogumelo e, de fato, depois de esperar um pouco,
conseguiu um lugar. Só que a mesa era muito alta e o tampo lhe
chegava à altura do nariz.
E o outro resmungou:
Mas pararam por aí e não deram mais atenção à menina. Para ela,
comer já foi uma tarefa bastante difícil, pois não conseguia enxergar o
prato. No entanto, como estava esfomeada, comeu tudo, até a última
migalha.
Já estava satisfeita, porém queria se informar, de qualquer jeito,
sobre o que tinha acontecido com Beppo. Assim, voltou para a fila.
Temia que as pessoas voltassem a se zangar com ela se ficasse apenas
ali no meio. Por isso, ao passar, voltou a pegar algumas coisas das
vitrines.
- Mas por que elas não aparecem mais? - Momo insistiu na pergunta.
- Todas as crianças que não têm ninguém para cuidar delas são
levadas para depósitos de crianças. Não podem mais ficar sozinhas,
pois..., bem, em resumo, porque agora têm quem cuide delas.
Mais uma vez, Momo não disse nada, só ficou olhando para Nino. A
multidão que vinha atrás dela a empurrou. Automaticamente, a
menina foi para uma mesinha e engoliu sua terceira refeição, apesar
de ser difícil fazer descer aquela comida com gosto de papelão e
serragem. Depois, ficou com enjoo.
Mas já havia outras pessoas passando e ele voltou a bater nas teclas
da caixa, pegar o dinheiro e devolver o troco. O sorriso de seu rosto já
se desfizera havia muito tempo.
- Só queria saber como vou descobrir onde mora o Gigi disse Momo à
tartaruga.
- Ei, vagabunda! - disse de repente uma voz atrás dela. O que está
procurando por aqui?
- Casa de quem?
- Fique onde está! - ele disse. - Quem você pensa que é, sua
vagabunda?
- Claro que está! - disse Momo. - Ele é meu amigo e paga tudo o que
eu como no restaurante do Nino.
- Esses artistas! - disse ele, amargo. - Eles têm cada mania! Enfim, se
você acha mesmo que ele está aguardando sua visita, a casa é a
última, bem no fim da rua.
E o portão se trancou.
A última casa da rua era cercada por um muro muito alto. O portão
de entrada era de chapa de ferro, como o do homem de colete, para
ninguém poder enxergar lá dentro. Não havia campainha nem placa
com o nome do proprietário.
- Por que está tudo trancado desse jeito? - indagou a menina. - Desse
jeito não vou poder entrar!
- Está bem - suspirou Momo. - Mas acho que vou ter que esperar
muito. Como é que o Gigi vai saber que estou aqui fora... se é que ele
está aí dentro?
- Mas a menina vai gostar de sair nos jornais, não é mesmo? - disse a
primeira para Momo, com um sorriso.
- Meu Deus! - exclamou Gigi, nervoso. - Será que nem posso ter
sossego para trocar algumas palavras com Momo, depois de uma
separação tão longa? Está vendo só, Momo, essas feitoras de escravos
não me largam! Não me deixam em paz por um segundo!
- Não me levem a mal, não quis ofendê-las, mas meus nervos estão
esgotados.
Mas o senhor é quem sabe. Talvez possamos fazer isso mais tarde,
quando...
- Não - gritou Gigi, desesperado -, não posso me dar a esse luxo. Mas
Momo vai ficar fora disso! Agora, eu lhe imploro, deixe-nos em paz por
cinco minutos!
Mas ser pobre e sem sonhos... não, Momo, seria o inferno. É melhor
ficar onde estou. Também é um inferno, mas pelo menos é confortável.
Mas por que estou falando tudo isso? É claro que você não pode
compreender.
Momo apenas olhava para Gigi. Compreendia antes de tudo que ele
estava doente, terrivelmente doente. Suspeitava que os homens
cinzentos tivessem alguma coisa a ver com aquilo tudo. Não sabia
como poderia ajudá-lo, uma vez que ele não queria nada.
- Escute, Momo - disse ele, tão baixinho que ninguém ouviu -, fique
comigo! Levarei você nesta viagem e em todas as outras. Você ficará
morando na minha bela casa e se vestirá de veludo e de seda, como
uma princesinha de verdade. Bastará ficar perto de mim e me ouvir.
Talvez então eu volte a inventar histórias bonitas, como aquelas de
antes, lembra? É só você dizer sim, Momo, e tudo dará certo outra vez!
Ajude-me, por favor!
Durante todo o seu encontro com Gigi, Momo não conseguira dizer
uma só palavra.
A MISÉRIA NA FARTURA
A menina ficou olhando, confusa, à sua frente. O que iria dizer? Para
onde, na verdade, queria ir? Precisava procurar Cassiopéia. Mas onde?
Quando e em que lugar a perdera? Tinha certeza de que ela já não
estava a seu lado durante o percurso de automóvel com Gigi.
- Para a casa de Gigi, por favor - pediu Momo. O motorista olhou para
ela, meio surpreso.
- Pensei que devia levar você para casa. Ou será que vai ficar
morando conosco?
Como seria bom se Cassiopéia estivesse com ela, para poder lhe
dizer "ESPERE" ou "PROSSIGA". Sozinha, porém, Momo nunca sabia o
que fazer. Tinha medo de se desencontrar de Beppo se esperasse e
tinha medo de se desencontrar dele se continuasse caminhando.
Mas nunca viu nenhuma delas. Aliás, não via mais crianças nas ruas
de jeito nenhum, e lembrou-se de que Nino dissera que agora havia
quem cuidasse delas.
Certo dia Momo encontrou-se na cidade com três crianças que antes
costumavam ir encontrá-la no anfiteatro. Eram Paulo, Franco e Maria, a
menina que estava sempre com a irmãzinha Dedé. Os três tinham
mudado muito. Vestiam uma espécie de uniforme cinzento e seus
rostos tinham uma expressão estranhamente vazia e sem vida. Mesmo
quando Momo os cumprimentou efusivamente, eles mal sorriram.
- Pois é, era bom - disse Maria -, mas isso não vem ao caso.
- Não é isso que importa - disse Maria, meio nervosa. Não se deve
falar assim.
Em torno deles havia outras crianças, que iam entrando pelo portão.
Todas elas se pareciam com os três amigos de Momo.
Ficaram todos calados, com o olhar vago. Por fim, Momo criou
coragem e pediu:
Então aconteceu uma coisa muito estranha. Antes que alguma das
crianças pudesse responder, foram todas tragadas para dentro da
casa, como que atraídas pela força de um ímã gigantesco. E o portão
se fechou atrás delas, com um estrondo.
Não, não queria mais vê-lo, nem ali nem em qualquer outro lugar.
Fosse qual fosse sua proposta, estava claro que, na verdade, não traria
nada de bom para ela nem para seus amigos.
Foi assaltada, porém, por sonhos aflitivos. Viu o velho Beppo, usando
sua vassoura como uma longa vara de equilibrista, oscilando numa
corda sobre um precipício. "Onde está a outra ponta? Não consigo
encontrar a outra ponta!", gritava ele.
Momo queria ajudar Beppo, mas ele não a ouvia, pois estava muito
longe e muito lá no alto.
Depois, viu Gigi, tirando da boca uma tira de papel interminável. Por
mais que ele puxasse, a tira não tinha fim e também não se rasgava.
Gigi já estava em cima de uma montanha de papel. Olhava para Momo
com ar de súplica, como se fosse parar de respirar se a menina não o
ajudasse.
Ela quis chegar até ele, mas ficou com os pés enredados nas tiras de
papel e, quanto mais tentava se soltar, mais se emaranhava.
Momo queria gritar, "Parem, chega!", mas o ruído abafava sua voz
fraca. E o barulho foi se tornando cada vez mais forte, até acordá-la.
Num primeiro momento, Momo não sabia onde estava, pois à sua
volta só havia escuridão. Depois lembrou-se de que tinha subido na
caminhonete, que agora estava em movimento. O barulho do sonho
era do motor. Momo enxugou as faces, que ameia estavam molhadas
de lágrimas. Que lugar seria aquele?
Foi mais fácil dizer do que fazer. A menina não sabia onde estava e
não tinha a menor ideia da direção em que deveria caminhar. Apesar
disso, saiu andando ao acaso.
- Estou aqui! - ela gritou, o mais alto que pôde, para dentro da
escuridão. Mas não tinha qualquer esperança de que o homem
cinzento pudesse ouvi-la. No entanto, estava enganada.
Afinal, um deles voltou a falar. A voz vinha de outra direção, mas era
igualmente cinzenta.
- Você tem amor a seus amigos, não tem? Momo balançou a cabeça
afirmativamente.
Mas não sabemos onde ele mora. Só queremos que você nos leve até
ele. É só isso.
Ouça bem, Momo, para que saiba que queremos ser francos e agir
corretamente: em troca, você terá seus amigos de volta, para que
vocês possam voltar à sua antiga vida de alegria. É uma proposta que
vale a pena!
Pela primeira vez, Momo abriu a boca. Tinha que fazer muito esforço
para falar, pois seus lábios estavam duros de frio.
Queremos todo o tempo dos seres humanos de uma vez. É isso que
Mestre Hora vai ter que nos entregar.
- Pessoas! - gritou a voz esganiçada. - Faz muito tempo que elas são
supérfluas.
Elas próprias levaram o mundo a tal ponto que logo não haverá mais
lugar para seus semelhantes. Nós governaremos o mundo!
O frio era agora tão terrível que Momo movia os lábios com muita
dificuldade, sem conseguir pronunciar uma só palavra.
- O que você quer dizer com "mesmo que eu pudesse"? Você pode!
Você esteve com Mestre Hora, portanto sabe o caminho!
- Quem é Cassiopéia?
Precisa! Precisa!
Nesse instante, sentiu alguma coisa tocar seus pés descalços Momo
levou um susto e foi se agachando devagarinho.
"CLARO!"
- Tudo bem - disse Momo -, vou com você. Será que posso carregá-la,
para chegarmos mais depressa?
- Por que é que você sempre tem que rastejar sozinha? perguntou a
menina.
Momo deu um grito, mas não conseguiu ouvir sua própria voz
Andando de costas, entrou no Beco do Nunca enquanto fitava, de olhos
arregalados, o batalhão dos homens cinzentos.
- A menina não teve culpa - ela ouviu a voz dizer -, mas você,
Cassiopéia, por que fez isso?
Momo sentou-se.
- Ora, não se incomode com isso - replicou Mestre Hora. - Está tudo
bem. Não precisa explicar nada. Cassiopéia já me contou tudo o que
eu não pude ver com meus óculos de visão global.
Nunca o tempo sai dela. Pode-se dizer que a pessoa fica mais jovem
quando o percorre. Não muito mais jovem, é claro, apenas o tempo
que levou para percorrê-lo.
- Você me deu uma ideia - disse ele -, mas não depende só de mim
colocá-la em prática.
Desde sua primeira visita, Momo pensava muitas vezes com saudade
naquelas coisas deliciosas, e imediatamente começou a comer, com
muito apetite. Parecia que estava tudo mais gostoso ainda do que da
outra vez. Além disso, também Mestre Hora lançou-se à refeição com
muito apetite.
- Não, minha menina - respondeu Mestre Hora. - Isso não vou fazer,
nunca! O tempo começou em determinado momento e vai acabar em
determinado momento, mas só quando as pessoas não precisarem
mais dele. De mim os homens cinzentos não vão conseguir um só
instante de tempo.
- Só que eles dizem que poderão obrigar você a isso - insistiu Momo.
Verificou depois que a névoa nada tinha a ver com as lentes dos
óculos ou com os seus olhos. Levantava-se das ruas onde eles se
encontravam. Em alguns lugares, já era densa e opaca, em outros
estava apenas começando a se formar.
- Você precisa saber, Momo, que o mal também tem seu segredo.
Não sei onde os homens cinzentos guardam as flores-das-horas
roubadas. Só sei que as congelam através de sua própria frieza,
tornando-as sólidas como pequenas taças de cristal, impedindo assim
que elas voltem. Em algum ponto, profundamente escondidos sob a
terra, deve haver gigantescos depósitos, onde fica todo o tempo
congelado. Mesmo lá, as flores-das-horas não morrem.
Levantou-se e continuou:
Talvez ainda possam existir por alguns momentos, pois têm grandes
reservas. Mas, quando seus suprimentos se esgotarem, eles se
dissolverão em nada.
- Muita coisa será mais fácil do que parece agora. Você ouviu a
música das estrelas. Não precisa ter medo.
- Adeus, Momo - disse ele. - Para mim foi uma grande alegria você
me ouvir também.
- Mais tarde, vou falar de você para todo o mundo - respondeu Momo.
OS PERSEGUIDORES PERSEGUIDOS
A primeira coisa que Momo fez -foi abrir a portinha interna com o
nome de Mestre Hora. Em seguida, correu pelo corredor com as
grandes estátuas de pedra e abriu a enorme porta de metal verde.
Teve que usar toda a sua força, pois as folhas da porta eram muito
pesadas.
Feito isso, voltou para a grande sala dos relógios e, com Cassiopéia
debaixo do braço, ficou à espera do que aconteceria.
Então aconteceu!
Momo viu então que tinha na mão uma imensa e maravilhosa flor-
das-horas A menina não percebera como aquela flor tinha chegado à
sua mão. Apareceu de repente, como se sempre tivesse estado ali.
- Foi a menina Momo que abriu a porta - disse uma outra voz
cinzenta. - Eu vi muito bem. Criança inteligente! É admirável como ela
conseguiu dar um jeito no velho.
Tudo parou. O mundo está parado. Não é mais possível tirar a menor
parcela de tempo de qualquer ser humano. Nosso sistema de
abastecimento sucumbiu. Não há mais tempo. Hora desligou o tempo!
- Então me dê alguns!
- Está louco?
A uma certa distância, atrás dos últimos da fila, seguia Momo. Assim
iniciou-se uma caçada invertida através da grande cidade. Era uma
caçada em que um imenso bando de homens cinzentos fugia,
perseguido por uma menininha com uma flor na mão e uma tartaruga
debaixo do braço.
Mas não eram apenas os fatores externos que dificultavam sua fuga.
Cada vez mais aumentava a ameaça por parte de seus próprios
companheiros. Muitos deles, vendo seu charuto chegar ao fim,
simplesmente arrancavam desesperados o charuto da boca de quem
estivesse ao lado. Assim, seu número ia diminuindo, devagar mas
constantemente.
Seu corpo baixinho estava mais encurvado do que antes. Seu rosto
bondoso estava magro e pálido. Em torno do queixo, crescera-lhe uma
barba branca e rala, pois nem tinha mais tempo para se barbear.
Segurava nas mãos uma vassoura velha, já muito gasta de tanto varrer.
Beppo estava ali, imóvel, como todas as outras pessoas, olhando para
a frente, para a sujeira da rua, através dos seus pequenos óculos.
Finalmente Momo o encontrara, agora que não adiantava mais, pois
ele não podia mais notá-la. E talvez estivessem se encontrando pela
última vez. Ninguém poderia saber o que iria acontecer dali para a
frente. Se as coisas não dessem certo, o velho Beppo ficaria ali, parado
daquele jeito, por toda a eternidade.
Então Momo saiu andando por onde lhe dava na cabeça, ora
entrando à direita, ora à esquerda, ora seguindo reto.
PERIGO DE VIDA
EXPRESSAMENTE PROIBIDA
A ENTRADA DE ESTRANHOS
Capítulo Vinte e Um
O FIM, QUANDO COMEÇA ALGO NOVO
Momo demorou um pouco para ler o aviso. Quando entrou pelo portão,
o último homem cinzento também havia sumido
Diante dela, havia uma vala enorme, com vinte ou trinta metros de
profundidade.
Ali já não era tão escuro. Havia uma luminosidade cinzenta, que
parecia emanar das próprias paredes.
Viu à sua frente uma sala gigantesca, em cujo centro havia uma
mesa de reuniões extraordinariamente comprida. Sentados à mesa,
em duas fileiras, estavam os homens cinzentos, ou melhor, os
pouquíssimos que restavam! Que aparência miserável tinham aqueles
últimos ladrões de tempo! Seus ternos estavam em farrapos, tinham
cortes e galos nas carecas cinzentas e seus rostos estavam contorcidos
de pavor.
Momo observou que atrás, no fundo da sala, havia uma enorme porta
de cofre, que estava entreaberta. A sala exalava um frio gélido.
Embora soubesse que não adiantava nada, Momo se encolheu toda e
escondeu os pés debaixo da saia.
- Coroa! - ele gritou. - Os que têm números pares ficam, os que têm
números ímpares são solicitados a se dissolver!
Momo observou tudo horrorizada. Notou que, cada vez que diminuía
o número de homens cinzentos, o frio também diminuía
consideravelmente. Agora já estava quase suportável
- Quer dizer que talvez tenhamos que ficar aqui durante anos, só
olhando uns para os outros? - perguntou um deles. - Confesso que a
perspectiva não me parece animadora.
Sem perder tempo, Momo passou por eles, correndo para a saída da
sala. Logo os homens cinzentos se recuperaram e saíram correndo
atrás dela.
- É aquela menina horrorosa! - ela ouviu um deles gritar.
- É Momo!
- Dê-me a flor! - disse ele, ofegante. Com isso, o toco de charuto caiu-
lhe cia boca e rolou pelo chão. O homem cinzento se jogou no chão e,
esticando o braço, tentou pegá-lo, mas não conseguiu mais.
Como num sonho, Momo olhou à sua volta e viu Cassiopéia no chão à
sua frente. Na sua carapaça apareceram, luminosas, estas palavras:
Foi a última vez que Momo viu Cassiopéia. A tempestade das flores
intensificou-se de uma maneira indescritível e tornou-se tão forte que
ergueu
Momo, como se ela também fosse uma das flores. Momo foi
carregada para fora dos corredores escuros, para cima da Terra e da
grande cidade. A menina sobrevoou telhados e torres numa imensa
nuvem de flores, que se tornava cada vez maior.
Momo foi para o centro da grande arena. Lembrou-se das vozes das
estrelas e das flores-das-horas. E, com voz clara, começou a cantar.
- Deve ter sido por causa do frio dos homens cinzentos disse Mestre
Hora. - Imagino que você deve estar exausta e querendo, antes de
mais nada, dar uma boa descansada. Portanto, pode se recolher.
FIM
BREVE POSFÁCIO DO AUTOR
Seja como for, ele me contou toda esta história durante a longa
viagem.
fim do livro
Table of Contents
PRIMEIRA PARTE
MOMO E SEUS AMIGOS
Capítulo Um
UMA CIDADE GRANDE E UMA
MENINA PEQUENA
Capítulo Dois
UM DOM RARO E UMA BRIGA
COMUM
Capítulo Três
UMA TEMPESTADE IMAGINÁRIA
E UM TEMPORAL DE VERDADE
Capítulo Quatro
UM VELHO CALADO E UM
JOVEM TAGARELA
Capítulo Cinco
HISTÓRIAS PARA MUITOS E
HISTÓRIAS PARA UMA
Segunda Parte
OS HOMENS CINZENTOS
Capítulo Seis
A CONTA ESTÁ ERRADA, MAS
DÁ CERTO
Capítulo Sete
MOMO PROCURA SEUS
AMIGOS E É ENCONTRADA POR
UM INIMIGO
Capítulo Oito
MUITOS SONHOS E ALGUMAS
IDEIAS
Capítulo Nove
UMA REUNIÃO BOA QUE NÃO
SE REALIZA, UMA REUNIÃO MÁ
QUE SE REALIZA
Capítulo Dez
PERSEGUIÇÃO FEROZ E FUGA
TRANQUILA
Capítulo Onze
QUANDO OS MAUS TIRAM O
MELHOR PARTIDO DO QUE É
RUIM
Capítulo Doze
MOMO CHEGA AO LUGAR DE
ONDE VEM O TEMPO
Terceira Parte
AS FLORES-DAS-HORAS
Capítulo Treze
UM DIA LÁ, UM ANO AQUI
Capítulo Quatorze
MUITA COMIDA, POUCAS
RESPOSTAS
Capitulo Quinze
ACHADO E PERDIDO
Capítulo Dezesseis
A MISÉRIA NA FARTURA
Capítulo Dezessete
GRANDE MEDO E MAIOR
CORAGEM
Capítulo Dezoito
OLHANDO O FUTURO SEM
OLHAR PARA TRÁS
Capítulo Dezenove
OS SITIADOS PRECISAM
TOMAR UMA DECISÃO
Capítulo Vinte
OS PERSEGUIDORES
PERSEGUIDOS
Capítulo Vinte e Um
O FIM, QUANDO COMEÇA
ALGO NOVO
BREVE POSFÁCIO DO AUTOR