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10/04/2023, 19:11 Folha de S.

Paulo - Luiz Felipe Pondé: Zoopolítica - 10/10/1999

São Paulo, Domingo, 10 de Outubro de 1999

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Peter Sloterdijk defende um código de planejamento


biogenético do homem
Zoopolítica
LUIZ FELIPE PONDÉ
especial para a Folha

Numa época como a que estamos vivendo -em que as


incertezas com relação a crenças ideológicas, associadas a
importantes fatos pontuais, como a recente vitória da direita
na Áustria, afligem o mundo-, idéias pronunciadas em
alemão sobre a inevitabilidade da seleção experimental
genética podem seguramente fazer reviver as sombras do
nazismo.
É o que está ocorrendo na Alemanha, França e outros países
europeus, depois que o filósofo Peter Sloterdijk, considerado
da "nova geração" de intelectuais alemães, apresentou sua
conferência "Regras para um Parque Humano - Uma
Resposta à Carta de Heidegger sobre o Humanismo", em fins
de julho. Nela, Sloterdijk abordava a crise do humanismo
ocidental e a delicada questão da programação (ou seleção)
genética de seres humanos.
As idéias de Sloterdijk, divulgadas em um seminário
consagrado a Heidegger, provocaram uma violenta
controvérsia ao serem difundidas pela mídia. O filósofo foi
duramente criticado por seu suposto nazismo e elitismo.
"Visão de horror fascista", "renascimento do Ocidente via
espírito de laboratório", "intelectual desesperado em delírio"
-essas foram algumas das expressões utilizadas pela revista
alemã "Der Spiegel", que dedicou a sua capa de 27/9/99 ao
assunto. O "Die Zeit" não foi menos veemente: "(Sloterdijk)
enterra a época moderna em fantasias de um realismo de
terror".
Em termos filosóficos, a discussão se abriu em duas amplas
frentes. A primeira se refere à seleção genética, e a outra, ao
"esgotamento" da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt e sua
incapacidade de oferecer uma práxis filosófica engajada em
temas atuais da sociedade, na opinião de Sloterdijk. O seu
"ataque" à Escola de Frankfurt completou-se com a carta
aberta "A Teoria Crítica Está Morta".
Para Sloterdijk -que utiliza a palavra "parque" aludindo à
idéia de "zoológico", como ele próprio reconhece-, nossa
tentativa de programar a história por meio de uma
engenharia social qualquer faliu. No entanto, o programa de
controle e aperfeiçoamento da natureza (humana) continua -e
muito bem, segundo ele.
A partir de Platão (a referência inicial de Sloterdijk é o
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1010199905.htm 1/4
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diálogo "O Político", do filósofo grego, leia trecho da


palestra à pág. 5-6), o alemão defende que a filosofia
humanista ocidental visou ao longo da sua história criar um
"parque" (uma sociedade) onde, de um lado, haveria os seres
humanos a serem "cultivados/selecionados", por não serem
os sábios, e de um outro, os próprios sábios, que estariam
habilitados pela arte da leitura e da reflexão (a própria
filosofia) a dirigirem a vida dos primeiros.
O "parque humano" é um "parque temático": seu tópico
essencial conteria o projeto (de formação, educação ou
"pastoreio") humanista republicano platônico.
Platão teria estabelecido as bases da necessidade de uma
espécie de "antropotécnica", por meio da qual as "pulsões
animais" do homem seriam metodicamente postas sob jugo
das "pulsões domesticantes" (aqui, Sloterdijk refere-se a
Freud), a fim de se atingir um "Estado perfeito".
A habilidade dos sábios apontada por Platão teria, no
entanto, ao longo da história do humanismo, passado da
leitura ("lesen", em alemão) à seleção ("auslesen"). Isso,
porque a arte mesma do "cultivo" humanista teria passado de
uma necessidade de discernimento "intelectual formativo"
para a de discernimento "material/experimental formativo".
Ou seja, teria se estendido das categorias estritamente
filosóficas para as práticas políticas e científicas.
Segundo Heidegger, o destino do homem ocidental é a
técnica, ainda que isso seja uma espécie de desgraça. Para
Sloterdijk, da leitura ("lesen") à seleção ("auslesen"), o
humanista ocidental característico de uma época tecnicista
como esta acaba por se revelar como alguém que busca estar
constantemente do lado dos "selecionadores/formadores".
A fala de Sloterdijk deságua, portanto, na tentativa de se
pensar a consequência do desenvolvimento da técnica e de se
discutir um código antropotécnico (de seleção). A engenharia
genética não seria senão o humanismo revelado em sua face
mais ativa e poderosa: a técnica de aperfeiçoamento
biológico (pensado em um horizonte puramente materialista)
do homem.
Para Sloterdijk, a reação "horrorizada" da "boa consciência"
humanista contra a engenharia genética não passaria de uma
tentativa de silenciar sobre a técnica seletiva, a fim de poder
realizá-la exatamente em silêncio: o horror na verdade é
cinismo, diz ele, evocando seu livro "Crítica da Razão
Cínica" (1983).
Sloterdijk entende sua obra filosófica como um ato terrorista
(ou um "ato de intoxicação voluntária", tema de um de seus
últimos livros). Para ele, o pensamento deve produzir mal-
estar, de maneira que, assim, o conceito tenha corpo (afeto),
pois o homem é um ser do conflito essencial (pulsões
animais x pulsões domesticantes). Assim, por meio da
"corporificação" do desconforto, tal conflito ganha voz na
reflexão.

A posição de Habermas
A postura filosófica de Sloterdijk a partir da conferência se
revelou de imediato como um distanciamento (assumido)
com relação à Escola de Frankfurt, tradição filosófica
dominante no pós-guerra alemão e representada atualmente
pelo pensador Jürgen Habermas.
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Aqueles que se alinham à Escola de Frankfurt apontam em


Sloterdijk justamente a falta de uma reflexão crítica a
respeito de suas próprias idéias sobre engenharia genética.
Refletir de forma crítica aqui seria ter consciência de que
todo conhecimento é social e molda, por sua vez, o social.
Pensar é estabelecer estruturas abertas de reflexão, porque se
referem a formas atuantes no mundo, e que se constituem na
sociedade -que por sua vez condiciona a própria consciência
social e psicológica.
Em depoimento ao "Die Zeit", Habermas afirmou que é
exatamente devido ao fato de Sloterdijk ter nascido no pós-
guerra que ele deve nos preocupar: suas idéias poderão se
constituir -por meio de um discurso desejado pela nova
geração de alemães que anseiam pelo "esquecimento
voluntário" do passado nazista- em um novo modelo para a
intelectualidade alemã.
Para o frankfurtiano, não se pode falar na Alemanha em
técnicas de manipulação experimental de seres humanos sem
levar em conta a história do país e seu "trauma" histórico.
Habermas afirmou que Sloterdijk "estaria jogando areia nos
olhos das pessoas" ao tentar se fazer passar por um
inofensivo "biomoralista", quando na realidade, socialmente
e no que se refere à construção das consciências, não existem
"idéias inofensivas", sobretudo as que trafegam pelo
doloroso passado alemão. É importante frisar que o perigo
apontado por Habermas é real em todo o Ocidente, onde se
propaga o desejo de "deshistoricizar" o mundo e de
transformar o passado em "antiguidade de consumo".
Sloterdijk, no entanto, respondeu a Habermas afirmando que
a posição dele refletia a "paranóia" típica de uma geração
que "um dia foi (ela mesma) nazista" e se aterroriza com o
próprio passado.
Para Habermas, o "parque" de Sloterdijk prestaria no limite
um desserviço à consciência alemã, por tratar de um tema
como a programação genética de modo pretensamente
"desencarnado", tentando criar a ilusão de que se pode
teorizar sobre engenharia genética depois do nazismo sem se
implicar social e politicamente com o horror nazista.
Na sua opinião, é como se Sloterdijk "esquecesse" que
vivemos em sociedade e que o homem é um ser político. Em
carta enviada ao "Die Zeit" e divulgada na rede de TV alemã
ARD, Habermas escreveu: "Creio que Sloterdijk, com sua
palestra genuinamente fascista, transpôs uma barreira
considerada tabu entre intelectuais no pleno gozo de suas
faculdades mentais".
Na entrevista abaixo, feita por telefone, Sloterdijk fala sobre
seu rompimento com Habermas e expõe suas idéias sobre a
inevitabilidade do planejamento genético do homem.
Convidado pela Folha a comentar a conferência de
Sloterdijk, o filósofo Jürgen Habermas afirmou que preferia
não discuti-la.

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