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Horizontes - Geni - Transexualidade e Adoção
Horizontes - Geni - Transexualidade e Adoção
61 | 2021
Governança reprodutiva
Edição electrónica
URL: https://journals.openedition.org/horizontes/5872
ISSN: 1806-9983
Editora
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Edição impressa
Data de publição: 30 novembro 2021
Paginação: 351-377
ISSN: 0104-7183
Refêrencia eletrónica
Alessandra de Andrade Rinaldi, Ricardo Andrade Coitinho Filho, Juliana Borges de Souza e Camila
Cristina Dias de Souza, «Experiências maternais de Geni: a trajetória de uma mulher transexual e sua
relação com a Justiça da Infância e Juventude», Horizontes Antropológicos [Online], 61 | 2021, posto
online no dia 06 dezembro 2021, consultado o 13 dezembro 2021. URL: http://
journals.openedition.org/horizontes/5872
© PPGAS
Artigos Articles
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832021000300012
I
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – Seropédica, RJ, Brasil
II
Universidade Federal Fluminense – Niterói, RJ, Brasil
Doutorando em Antropologia
III
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – Seropédica, RJ, Brasil
Doutoranda em Ciências Sociais
IV
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – Seropédica, RJ, Brasil
Graduanda em Ciências Sociais (bolsista CNPq)
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Resumo
O objetivo deste artigo é analisar como sujeitos produzem agenciamentos sociais na
interface entre identidades, sexualidades, direitos e família. Para tanto, partimos de
diferentes trajetórias de Geni, uma mulher transexual, mãe por adoção, portadora de
registro de nascimento, sem modificação de gênero, que vive em união estável com
Jonas, com quem adotou cinco filhos, nos últimos 30 anos. Os dois primeiros estive-
ram sob seus cuidados, sem o aval do Poder Judiciário. Os três últimos foram tornados
filhos de Geni, com a chancela da Vara da Infância e Juventude, ao ajuizar com Jonas
uma ação de adoção na qualidade de “família homoafetiva”. Geni age dentro de um
campo de possibilidades que a vida ordinária lhe possibilita. Sua atuação não se mani-
festa de uma forma heroica, parafraseando Veena Das (2007), mas por meio da mobili-
zação estratégica que sua identidade de gênero lhe configura nos cenários pelos quais
transita, segundo suas diferentes experiências maternas.
Palavras-chave: adoção; transexualidade; maternidade; moralidades.
Abstract
The objective of this article is to analyze how subjects produce social agency at the
interface between identities, sexualities, rights and family. Our argument revolves
around Geni’s different trajectories as a transsexual woman and mother by adoption
whose birth certificate does not include any gender modification. Geni lives in a long-
term relationship with Jonas with whom she has adopted five children in the last 30
years. She took the first two into her care informally, having had no contact with the
courts. The last three became Geni’s children with the full approval of the Juvenile
Court, when she and Jonas filed an adoption action as a “same-sex couple”. Geni acts
within a field of possibilities produced by ordinary life. Her action is not manifested
in a heroic way, paraphrasing Veena Das (2007), but through the strategic mobiliza-
tion of her gender identity as configured in the various scenarios through which she
transits, and according to her different maternal experiences.
Keywords: adoption; transsexuality; motherhood; moralities.
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Introdução1
1 Este artigo contou com a colaboração das pesquisadoras Doutora Lívia de Barros Salgado e dou-
toranda Thainá Rosalino de Freitas.
2 Usamos nomes fictícios ao longo do texto.
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Laços de solidariedade
7 Ver trabalhos de Fonseca (1993, 2013) sobre circulação de crianças em famílias de camadas popu-
lares no Rio Grande do Sul. A partir de uma perspectiva comparativa com outras regiões do país,
a antropóloga nos convoca a pensar esses arranjos não como “colapso dos valores tradicionais”,
mas como “uma estrutura básica de organização de parentesco […] vinculada a uma cultura
popular urbana” (Fonseca, 1993, p. 116).
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[…] acho que eu sofri preconceito. Eles dificultaram muito as coisas pra mim,
muito, muito, muito. As pessoas que me atenderam disseram que eu não podia,
que eu não deveria. Uma assistente social me chamou num cantinho e me falou
meia dúzia de coisas fora da consulta, que eu não iria conseguir. Depois que eu
passei por todo o processo, passei pela assistente social, ela me deu os papéis,
me deu tudo na sala, mas quando eu saí, ela me chamou, separado. Ela disse, em
outras palavras, que o processo ia ficar engavetado e eu não ia conseguir nada,
nem pela Justiça, se eu quisesse adotar uma criança assim que fosse de creche,
de orfanato e nem o meu próprio filho, ia rolar durante anos e eu não ia conseguir.
8 A “adoção à brasileira” consiste no registro do nome da criança como se ela fosse seu filho bioló-
gico, com a ciência de que não é (Finamori; Silva, 2019).
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[…] apareceu um tal do irmão mais velho dele, que eu também ajudei a criar. Aí
enfiou o garoto em baile funk, ensinou o garoto a fumar, beber, aí já não era mais
uma criança, o garoto saiu totalmente do meu controle, saiu da nossa vida. Ele
só queria vir pra “panhar”: “Eu queria dinheiro pra comprar uma calça, eu queria
dinheiro pra tênis”, então eu me decepcionei com isso. Fiquei sofrendo assim
uns cinco anos, chorava, queria me matar, foi tudo pra mim, foi o fim da minha
vida. Esse garoto quando foi embora, quando ele foi, eu queria a morte, prefe-
ria morrer. Tudo o que ele queria eu dava, dava dinheiro, dava roupa, dava tudo
escondido dele [Jonas]. Eu queria morrer, mas queria que o menino voltasse.
Essa experiência produziu marcas em sua história. Sentiu-se “traída” pelo filho,
que demonstrava “interesse” por seu dinheiro e não por seu afeto maternal.
Uma vez que nesse contexto social dinheiro e afeto são compreendidos como
excludentes (cf. Zelier, 1994 apud Fonseca, 2013), o domínio da família, visto
como o campo dos afetos, ao ser invadido pela lógica do dinheiro, é tornado
poluído. Para Geni, o fato de o filho ter priorizado seus bens ao seu amor a fez
cair em depressão e desejar a morte, sentimento atenuado ao longo dos anos.
Passado algum tempo, o segundo menino chegou em sua vida em razão de
uma gramática moral de cunho caritativo. Geni nutria o hábito de cuidar de
crianças em situação de vulnerabilidade social. Deprimida com sua experiên-
cia adotiva anterior, encontra, no caminho de seu trabalho, um adolescente de
16 anos dormindo na rua. Resolve ajudá-la, acolhendo-a daquela situação em
que se encontrava. Informando-se sobre a sua mãe de nascimento, ao saber que
ela não possuía condições de ficar com ele, acabou por filiá-lo.
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Segundo Geni, “parecia que tinham sido feitos um para o outro”. Ao longo do
tempo essa experiência de cuidado foi sendo transformada em parentalidade.
Tal mudança aconteceu sem que a Justiça da Infância e Juventude fosse acio-
nada para legalizar a relação fática. Segundo nos conta sobre esse filho:
Esse não botei no papel, nem nada. Continua com o nome da mãe, do pai, me dou
muito com a mãe dele, me dou muito com o pai dele. Fiz ele retornar com a mãe
dele, a amizade. Ele hoje tá com 27 anos, entende mais a mãe dele, que a mãe dele
tem problema de nervo muito sério. Ele já casou, já separou, nos deu um netinho,
o netinho já tá com 6 anos.
Acreditamos que a escolha de “não botar no papel” possa ter relação com o “pre-
conceito” que Geni tinha sofrido quando tentou regularizar o primeiro filho.
Além disso, supomos que, por estar inserida em um modelo de parentesco orga-
nizado de forma distinta daquele pautado na exclusividade de filiação (Ouel-
lette, 2000),9 escolheu que seu filho mantivesse relações legais e afetivas com
sua mãe de nascimento.
Geni faz parte de um contexto em que o exercício parental, as formas de
constituir família e os sentidos do que seja uma adoção não são pautados
exclusivamente pelos limites traçados pelas leis e pelas práticas jurídicas.
Sendo assim, ter um filho pela via adotiva pode ser uma experiência construída
independentemente do Poder Judiciário. Além disso, pode ser algo constituído
de forma aditiva, contemplando arranjos múltiplos de filiação e parentalidade
(Yngvesson, 2007), sem com isso apagar informações (Strathern, 2015) ou rela-
ções de parentesco daqueles que porventura vierem a ocupar o lugar de filho.
9 De acordo com a antropóloga Françoise Ouellette (2000, p. 51, tradução nossa), “o modelo gene-
alógico de reprodução estabelece que um indivíduo não possa ser filho de mais de um pai e de
uma mãe”.
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O momento de passagem
Era o início dos anos 2000 e a vida do casal estava tranquila. Nesse período
Jonas propôs à Geni que se cadastrassem junto à Vara da Infância e Juventude
para ingressarem no Programa Família Acolhedora,10 e Geni concordou. Reali-
zaram o cadastro e tomaram parte no programa. Segundo contou, tal atitude
serviu para formalizar o que já era de seu “costume”: cuidar de crianças e ado-
lescentes vulneráveis.
A participação nesse programa pode ser entendida como alteração da tra-
jetória maternal de Geni. Em um primeiro ciclo de sua vida, torna-se mãe em
razão de laços de solidariedade e de relações de cuidado nas quais está inserida.
No segundo, a maternidade é produto de um projeto parental formulado entre
ela e Jonas. De acordo com Geni, “a vontade de adotar sempre fez parte da vida
do casal”. Segundo ela, o “destino” foi conduzindo-a aos seus filhos.
Para tanto, ao mesmo tempo que atuam como família acolhedora, após
2011, com base na informação sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal,
buscam a Vara da Infância e Juventude para a realização do procedimento de
habilitação em adoção11 como “família homoafetiva”. Em face disso, participam
de Grupos de Apoio à Adoção (GAAs), pois, de acordo com as legislações que
10 De acordo com Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, aprovado pelo Con-
selho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e o Conselho Nacional
de Assistência Social (CNAS) em dezembro de 2006, esse programa visa o acolhimento de
jovens e infantes afastados de suas famílias de origem, em razão de medida protetiva, em
residências e não em instituições de acolhimento. Pauta-se na “proteção integral às crian-
ças e aos adolescentes até que seja possível a reintegração familiar” (Conselho Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente, 2006, p. 42), garantindo a estes a inserção na vida
comunitária.
11 De acordo com a Lei nº 13.509/2017 (Brasil, 2017), que dispõe sobre adoção e altera a Lei
nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) (Brasil, 1990), a habilitação é um pro-
cedimento administrativo que, após a promulgação da Lei nº 12.010/2009 (Brasil, 2009),
conhecida como a Nova Lei da Adoção, foi transformada em etapa obrigatória para uma ado-
ção, sendo essa obrigatoriedade a mesma nos dias atuais. Esse é um procedimento iniciado
com uma petição, entregue em cartório da Vara de Infância e Juventude, pelo interessado,
junto com certidões negativas de feitos cíveis e criminais e atestado de sanidade física e
mental. Depois de depositada, essa petição será remetida à equipe técnica (psicólogos e
assistentes sociais das varas) que, de acordo com as determinações administrativas locais,
conduzirá a participação dos requerentes em programas de capacitação à parentalidade
adotiva.
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12 Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), art. 50, Lei nº 8.069/1990 (Brasil, 1990), alterada
em 2009 pela Lei nº 12.010/2009 (Brasil, 2009) e, novamente, modificada em 2017 por meio da
promulgação da Lei nº 13.509/2017 (Brasil, 2017).
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Há muitos anos isso, mais de 30 anos, que estamos juntos. Aí, quase 30 anos!
Desde então, que a gente se conheceu, tinham nossos projetos de vida, mas… a
adoção, no caso, ter um filho, sempre foi um projeto nosso. Desde que a gente se
assumiu realmente como casal e tal. Então, isso sempre estava nos nossos pla-
nos […] Essa questão [participação no Programa Família Acolhedora] fez a gente
repensar a coisa da adoção: “Poxa, por que não adotar agora também? A gente
já tá cuidando e tal dessas crianças” e também teve essa abertura da lei [decisão
do STF] que já facilitou bastante. E a gente aproveitou! Então foi uma coisa jun-
tando com a outra, e a gente aproveitou e estamos aí, com três adotados aí. Um
já tá no nosso nome. (Grifo nosso).
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Geni conheceu o terceiro filho através do Grupo de Apoio à Adoção que frequen-
tava. De acordo com o casal, o perfil desejado era de crianças entre 0 a 5 anos,
não importando sexo e nem raça. Nos GAAs, os coordenadores trabalham essa
escolha para que os pretendentes sejam mais receptivos às outras crianças fora
16 Para adensar essa discussão, nos pautamos em Érica Souza (2013). A autora apresenta impor-
tantes questões a partir da problematização em torno das categorias êmicas “parentalidade
transgênero”, no Canadá, e “homoparentalidade”, no Brasil. Seus interlocutores transgêneros,
participantes de movimentos sociais LGBTs, nos dois cenários pesquisados, manifestavam o
sentimento de deslocamento quanto ao pertencimento à sigla LGBT, conforme as diversas con-
figurações entre gênero e sexualidade que podem ser associadas na constituição das suas iden-
tidades. No Brasil, o neologismo utilizado, designado indiscriminadamente para gays, lésbicas,
travestis e transexuais, desconsiderava as especificidades em torno das identidades desses sujei-
tos, tratados como “iguais” em suas diferenças, o que invisibilizava discursivamente a existência
em torno das suas parentalidades e as negociações que envolvem essas experiências. Em ambos
os contextos, as demandas de travestis e transexuais na esfera do ativismo era tratada de forma
marginalizada, relegando a parentalidade transgênero como algo de menor importância ainda.
17 No âmbito das relações sociais de travestis (Cardozo, 2007; Silva, 1993) há uma ambiguidade que
permeia a associação entre suas corporalidades e sociabilidades. Cardozo (2007, p. 241) identi-
ficou haver uma “duplicidade de gênero” nas relações familiares, que resultam em nomeações
terminológicas masculinas (tio, primo, etc.), ou passíveis de negociação (irmão), destinadas às
travestis, embora suas participações sejam vivenciadas no âmbito doméstico, em espaços vistos
como femininos.
18 Decidimos pelo nome Eugênio para tentar explicar a forte ligação afetiva entre Geni e seu filho,
que originalmente possuem nomes parecidos.
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19 Serviço ligado ao Conselho Nacional de Justiça, responsável pela produção de dados sobre ado-
ção em contexto nacional.
20 O termo “devolução” significa que há meninos e meninas que foram conduzidos por meio das
Varas da Infância e Juventude à casa de pessoas e casais “pretendentes à adoção” que, ao con-
viverem com eles, foram tomados de arrependimento, “devolvendo-os” às instâncias jurídicas
responsáveis.
21 Nem todas as crianças acolhidas estão disponíveis à adoção. Essas podem estar afastadas tem-
porariamente de suas famílias de origem sem que tal ato determine a destituição de poder
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Aí quando ela abriu a sala eu vi, tinha um monte de menino, uma televisão só
e um sofá, foi quando eu vi aquele garoto gordinho jogado no cantinho assim,
sentado, ele tava de castigo. Quando abriu a porta que entrou o grupo todo, tinha
uma meia dúzia de casais, a assistente social, eu tava do lado dela porque eu fui
a última, e ele [Jonas] foi logo na frente, que ele tava ansioso pra ver a criança, aí
eu fui a última, eu tava muito nervosa, “deixa eu ficar por último”, tava tremendo,
tava uma tremedeira só, um estado de nervos, aí quando todo mundo entrou,
todo mundo passou assim direto, foram lá ver as criancinhas e o garotinho tava
lá sentado, aí eu segurei assim a assistente social que abriu a porta pra mim e
falei: “Meu Deus do céu, quem é esse garotinho? Ele tá ali tão triste”, eu vi que os
olhinhos dele tava assim choroso. Meu Deus, eu me apaixonei por ele.
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Após seis meses da chegada de Eugênio na família, Geni e Jonas acolheram João
através do Programa Família Acolhedora do qual faziam parte. Conforme visto
antes, essa é uma iniciativa aprovada pelos Conselhos Nacionais dos Direitos
da Criança e do Adolescente (Conanda) e de Conselho Nacional de Assistência
Social (CNAS), pautada no acolhimento de jovens e infantes afastados de suas
famílias de origem, em razão de medida protetiva. Nesses casos, os acolhidos
são direcionados temporariamente às residências de famílias cadastradas e
não para instituições de acolhimento. Até que suas situações familiares sejam
decididas pela Justiça da Infância e Juventude, esses meninos e meninas per-
manecem nas famílias, podendo ter como destino o retorno ao núcleo de nasci-
mento ou o encaminhamento à adoção.
De acordo com a reformulação do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) por meio da Lei nº 12.010/2009 (Brasil, 2009) foi determinado que aque-
les que compõem esse programa não podem estar habilitados à adoção. Esse
dispositivo visa impedir que a adesão ao programa seja um caminho para bur-
lar os trâmites necessários a um procedimento adotivo.
Vale lembrar que os pretendentes à adoção devem habilitar-se nas Varas
da Infância e Juventude. A depender da pretensão dos cadastrados, o encontro
com o filho pode demorar anos. Em face disso, há pessoas que agem às margens
dos poderes de Estado, misturando práticas legais e ilegais para encontrarem
seus filhos. Um dos caminhos instituídos para encurtar o processo de adoção
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pode ser a participação em programas sociais dessa ordem. A ideia é que por
meio de vínculos afetivos criados com as crianças e adolescentes, as famílias
acolhedoras poderiam posteriormente pleitear a adoção. Os dispositivos que
versam sobre o tema levam em conta a possibilidade de criação desses arranjos
artificiais e produzem mecanismos para limitá-los. Um desses é a vedação da
adoção aos que fazem parte do Programa Família Acolhedora.
Como veremos, apesar dessas restrições, as práticas da Justiça são organi-
zadas por “avaliações caso a caso”. Há situações que, segundo a ótica da Justiça
da Infância e Juventude, se a decisão for para garantir o “melhor interesse da
criança e do adolescente” (Coitinho Filho, 2017), pode acontecer um alarga-
mento decisório frente aos dispositivos legais. Tal abrandamento aconteceu
nas duas últimas adoções, a de João e de Marcelo, propostas por Geni e Jonas.
João chegou na família, segundo Geni “já com uma idade”,22 cheio de feridas
na cabeça e muito magro, precisando de atenção e cuidado. Assim que chegou,
sem entender a natureza de sua estada naquela casa, João passou a nomear
Jonas de pai. De acordo com o relato do casal, o menino também viveu experi-
ência adotiva anterior sem sucesso, tendo sido “devolvido” à Justiça da Infância
e Juventude.
João entrou para a família no dia do aniversário de Geni e a conexão entre
ele e Jonas foi quase instantânea. Segundo nossa interlocutora, “o menino o
escolheu como pai, por nunca ter tido uma figura paterna presente em sua
vida”. Jonas sentia também forte ligação por ele. Dessa relação nasceu o inte-
resse em adotá-lo. Para tanto, buscaram informações sobre o seu processo e
comunicaram às instâncias jurídicas o pleito.
Apesar de cientes de que a eles esse requerimento estaria vedado, Geni
busca a Vara da Infância e Juventude para discutir o processo de João com
o psicólogo que o acompanhava. Houve um percurso de negociação, traçado
nas malhas do Poder Judiciário, até que a posição fosse favorável. Pesou o
fato de não haver nenhum pretendente que pleiteasse aquela adoção. Impor-
tante lembrar que João não se enquadrava no perfil comumente desejado
pela maioria dos adotantes. Ele era negro, tinha 7 anos, era tido como “agitado”
22 A expressão “já com uma idade” nos leva a entender que não se tratava mais de uma criança na
primeira infância, mas sim um menino caminhando para a adolescência.
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Olha o perfil dele, a idade, tudo, ele não tem pretendente pra adoção, então não
tem por que a gente não poder adotar, então, por isso, eles facilitaram a questão
do João para gente poder adotar. Eu falei para o pessoal da equipe do Família
Acolhedora da prefeitura que eu não queria me sentir punido por ser um ado-
tante, pra tá sendo excluído do projeto, que eu queria continuar acolhendo, como
acolhi até hoje, então eles acabaram entendendo e tal e abriram, vamos dizer
assim, uma exceção porque, realmente, o João não tinha o perfil pra ser adotado,
não tinha pretendente pra ele.
Partimos agora para a última experiência adotiva do casal. Geni foi contactada
por uma técnica do fórum, lhe informando que havia encontrado um menino
que era “a sua cara”. Segundo lhe disse, “o menino parece que é seu filho!”.
Essas foram as palavras que a levaram ao desejo de conhecê-lo. Assim que viu
a foto do menino, “soube que precisava encontrá-lo”. O perfil de Marcelo tam-
bém era um complicador para a adoção. Ele tinha 6 anos e estava tendo pro-
blemas com a família acolhedora. A assistente social chegou a mencionar que
ele, dificilmente, seria adotado e que não tinha mais o que fazer a esse respeito.
Foi então que Geni replica, lhe dizendo: “Tem sim! O filho é meu e eu vou aí
buscar ele agora.”
O casal passou a ter contato com Marcelo aos finais de semana. No início,
a intenção era apadrinhá-lo,23 mas isso durou apenas um mês. O casal se afei-
çoou a Marcelo e decidiram que ajuizariam uma ação para adotá-lo. O processo
de guarda foi requerido e, em seguida, pleitearam a adoção, que ainda corria
quando foi realizada nossa entrevista.
23 O apadrinhamento afetivo refere-se a uma estratégia dos Tribunais de Justiça para garantir
direitos previstos às crianças e adolescentes que se encontram sob a tutela do Estado, tais
como a convivência familiar e comunitária, o provimento material de necessidades básicas
e educacionais ou a prestação de serviços especializados (médicos, odontológicos, etc.). Infor-
mações institucionais podem ser encontradas em Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro (2020).
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Aí com essa guarda eu já fui lá, já dei entrada no papel todo e entrou em processo
e o menino tá aí, até hoje. Eu dei graças a Deus. E o menino tá bem, chegou com
muita dificuldade, muita dificuldade, na escola, em tudo. Aí arrumei logo uma
escola pra ele, matriculei, ensinei tudo. O menino tava com 6 anos, o garoto não
sabia contar de um a cinco, não sabia nada. Tava muito debilitado em termos
assim de saúde, essas coisas todas. Dei uma melhorada no garoto. Como todas
as crianças que vêm, levei no médico, dei injeção, vacina, levei em tudo, fiz um
check-up total no moleque. O moleque ficou ótimo, tá aí, começou a me chamar
de mãe, realmente o moleque é minha cara, hoje tá com 11 anos e é meu filho que
eu amo mesmo e acho que só quero ficar com esses três, acho que vou ficar só
com esses três, e a vida vai rolando.
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Considerações finais
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É nesse sentido que se faz necessário romper com práticas que legitimam o
modus operandi de “enquadrar” sujeitos a convenções e moralidades de gênero,
sexualidade, identidades, performances e construções corporais como forma
de reconhecimento social e político. O fato de Geni ser uma mulher transexual
que não redesignou seu corpo nem retificou seus documentos contribuiu para
que ela se transformasse, nas malhas da Justiça da Infância e Juventude, numa
mãe cujo registro civil era masculino. Essa mulher borra e coloca em suspenso
a preexistência normativa, para que, ao “raiar [um novo] dia”, ela não continue
a ser apenas a “maldita Geni”.
Referências
BRASIL. Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as Leis nos
8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de
dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002
– Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-
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ção das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de
1943, e a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Brasília: Presidência
da República, 2017. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
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