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Guia de Episódios

De Onde Veio Essa Ideia? ................................................. 4


Como Tudo Começou ....................................................... 6
That 70’s Show ........................................................................................ 6
Já são 9h.................................................................................................. 8
Família Ê, Família A, Família .................................................................. 10
Resumo da Ópera .................................................................................. 11
Influenciado Por.............................................................. 12
Era Uma Vez Um Leão... ........................................................................ 13
Não Tão Animados Assim ...................................................................... 15
Feito para Crianças? .............................................................................. 17
Sobrevivi ......................................................................... 19
Biscoito ou Bolacha? ............................................................................. 20
Como na Ficção ..................................................................................... 20
Domingo Sangrento .............................................................................. 23
De Manga em Manga4 ........................................................................... 24
Quebrando o Rádio ............................................................................... 25
Ferve Ele no Óleo .................................................................................. 29
Eu Tenho Sonhos ............................................................ 31
Amuado, acuado e aguado .................................................................... 31
Frango Robô .......................................................................................... 33
Deu ruim no desafio .............................................................................. 34
Admirável Mundo Novo .................................................. 36
Organofobia ou o quê?.......................................................................... 36
Música Para Meus Olhos ....................................................................... 37
Bolado na Balada................................................................................... 38
Anjo Bom .............................................................................................. 39
Dorme, Dorme, Dormideira... ................................................................ 41
...Para Acordar Segunda-Feira ............................................................... 42
Parques e Recreação ............................................................................. 43
Lar Doce Lar .................................................................... 45
Jardim... Que Jardim? ............................................................................ 45
Zelando Pelo Templo ............................................................................. 46
Estado de Sítio....................................................................................... 48
Alagados, Trenchtown........................................................................... 49
Entre Canas-de-Açúcar e Petróleo ......................................................... 52
Atari, Máquina de Escrever e Pizza ........................................................ 57
Turma do Fundão .................................................................................. 61
Pérolas de Grande Preço ................................................ 63
Pinguim Cheiroso .................................................................................. 63
Momento Esportivo .............................................................................. 65
Subsídios para Sobrevivência .......................................... 69
Atividades e Atitudes ............................................................................ 69
Formalmente formalizado ..................................................................... 71
Segunda Chance .................................................................................... 73
Caixinha de Surpresas ........................................................................... 74
Dá Para Acreditar? .......................................................... 75
Cruz Credo............................................................................................. 75
No Tempo de Escola .............................................................................. 77
Futuro do Presente ......................................................... 80
Pretérito Mais Que Perfeito .................................................................. 80
De Onde Veio Essa Ideia?

Minhas primeiras memórias de longo prazo, que ainda tenho vívidas


na mente, remontam à época em que sequer havia completado o primeiro
ano de vida. Por algum motivo específico, ainda que desconhecido, tenho
registros minuciosos de muitos eventos marcantes de fases bem iniciais da
minha vida e que estão gravados na minha mente, junto com outros
registros posteriores a estes. Vez ou outra, estas lembranças são revividas,
quer sejam por sonhos noturnos ou pura nostalgia.
Já conversei com algumas pessoas questionando sobre esses tipos
de memórias e, para minha surpresa, na maioria das vezes, o que
respondiam, sobre eventos da primeira infância principalmente, eram
apenas de flashes ou vagas lembranças. Alguns sequer conseguem
detalhar vivências anteriores à experiência pré-escolar, a não ser pelo fato
de que alguém tenha contado a eles. Eu precisaria de mais pesquisas e
estudos sobre o assunto para explicar tais diferenças entre pessoas
comuns e a minha percepção de história e a forma com que isto fica
gravado na minha cabeça; porém, mesmo sem ter me aprofundado tanto,
chego à conclusão de que sou no mínimo, um outlier – um pontinho fora
da curva.
Em uma rápida pesquisa na internet, dá para se concluir que,
mesmo quando ocorrem casos em que pessoas consigam reter detalhes
de períodos incomuns, como na infância, estes casos isolados são
suscetíveis a distorções chamadas de “falsas memórias”. Estudos sérios
sobre o assunto abordam formas de se evitar que registros equivocados
façam parte das recordações de pessoas depois de adultas e que eles
consigam distinguir entre fantasias e as memórias de eventos reais.1
Então, a ideia de se registrar todas as lembranças guardadas e confrontá-
las com demais envolvidos, para assim poder gravar definitivamente na
memória, não serve apenas para evitar o Alzheimer, mas para eternizar
momentos nas quais nossa passagem pelo mundo afetou e influenciou as
pessoas ao nosso redor.
Crianças são muito criativas; vivem imaginando e transformando o
mundo real em um palco onde atuam quase que o tempo todo. Conforme
as informações vão chegando e sendo gravadas, elas passam a ter

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dificuldades em organizar tanta coisa e, até o lóbulo frontal ganhar
maturidade, a fantasia e a realidade se confundem. Com isso, muitas
coisas que acontecem na infância passam a ter sentido apenas na fase
adulta. Daí minha noção de muitas coisas que ocorreram durante a minha
vida começam a fazer sentido e a lógica dá lugar ao sentimentalismo e à
forma abstrata de se reviver momentos do início da vida.
Até o momento de escrever estes relatos eu particularmente não
tenho noção do quanto posso ter sido importante para alguém ou se, ao
contrário das expectativas, posso dar ênfase em algo que para mim parece
ser imprescindível, mas que para os envolvidos talvez nem esteja na
lembrança. No entanto, tenho a plena convicção de que, mesmo não
fazendo parte ativa e física da minha história, com certeza você irá se
familiarizar com muitas das situações relatadas aqui nestas páginas.
Sobre as histórias que serão contadas daqui em diante não serão
relatadas em ordem cronológica; separei as mesmas por tópicos, tipos de
ocorrência. Assim fica mais organizado e não atropelam situações atípicas
com rotinas ou coisas do tipo. Outro fator para ter escolhido este tipo de
secção é o fato de que nem todas as histórias possuírem datas exatas, por
motivos óbvios; porém, em todas elas, tenho tomado o cuidado de relatar
o maior número de detalhes possíveis que, em edições posteriores,
poderão ser acrescidas de informações novas após leitura de pessoas
envolvidas ou eventuais erratas que possam surgir em dado momento.
Em algum ponto posso ter sido superficial propositadamente para
que entre em maiores detalhes em um tópico posterior, visto que posso
estar falando de uma situação que, por exemplo, me levou a algum tipo
de trauma, porém, que as consequências levem a ocorrências futuras.
Nestes casos é para justamente não misturar os tópicos ou assuntos em
um mesmo capítulo, certo!?
Por fim, agradeço a você que esteja lendo estes registros pois, de
uma forma ou de outra, está ajudando a eternizar minha passagem por
esse mundo e, como diz uma máxima antiga, “recordar é viver”.

Sugrue, K., & Hayne, H. (2006). False memories produced by children and adults in the
DRM Paradigm. Applied Cognitive Psychology, 20, 625-631.

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Como Tudo Começou

Há muito tempo eu tenho planejado fazer um registro da minha


vida. De alguma forma eu precisava registrar pois desde sempre eu ouço a
frase de que minha história de vida daria um livro. Em algum momento,
inevitavelmente, isso aconteceria de alguma forma, então temos que
começar de algum lugar. Nada melhor do que fazer isso em algum
momento da minha existência, pois deixar para que terceiros contem
sobre mim, depois que me despedir das obras debaixo do sol, muitos
detalhes de quem eu sou e o que fiz durante a vida ficariam perdidos para
sempre. Para evitar este sacrilégio decidi eu mesmo começar a fazer isso
da maneira que fosse possível; e me veio na cabeça a ideia de pôr as mãos
na massa e começar a escrever logo.
Na medida do possível estou uniformizando o jeito de apresentar os
registros recordatórios da minha memória e em todas as fases cujo
cérebro me permitir trazer à tona. Cada seção que este livro carrega
contém uma fração da minha própria personalidade, cujos anos foram
moldando e preparando para ser quem eu sou hoje enquanto digito estas
palavras. Dentro de cada tópico, aí sim, tento organizar de forma
cronológica, não apenas para padronizar uma forma de exposição da
minha vida, mas também para criar a ideia de sequência ou continuação,
tal como vemos em séries, filmes e demais mídias contemporâneas
Este capítulo aqui especificamente conta as origens, todos os
elementos relevantes que fizeram parte do ambiente na qual eu fui
concebido e vivi meus primeiros momentos da minha existência neste
mundo. É um pouco mais genérico do que os demais, porém contextualiza
quem não me conhece tão bem e prepara o terreno para o que vem em
seguida.

That 70’s Show

Meus pais casaram-se no final do ano de 1978. O país vivia um


período de declínio do regime político, porém algumas das bandeiras
sustentadas pelos líderes militares eram bem enraizadas. No entanto, o
idealismo da família ideal, perfeita, sonhada pela maioria das pessoas, não

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foi tanto a minha realidade. Afinal, apesar do vestido branco e da
cerimônia religiosa em uma igreja, já havia uma gestação na barriga da
noiva, apenas uma adolescente que acabara de completar 16 anos. Além
disso, o noivo, recém-chegado a maioridade, não era um exemplo de
seriedade e maturidade. Aliás, alguns já estavam suspeitando de que ele
havia tido uma filha, até hoje não assumida, poucos meses antes daquela
cerimônia de casamento. Inclusive, poucos meses após o matrimônio,
minha mãe já teve que perdoar uma escapada do marido – pelo menos a
que foi descoberta. Enfim, um casal de família convencional para os
padrões, tanto da época
quanto se comparados
com os dos dias atuais.
Ambas as famílias
que estavam se unindo
junto àquele casal eram
numerosas e pobres. De
um lado, descendentes
do “...drama barroco dos
Figura 1. Família Ramos (dez. 1978) exilados do nordeste...”2
e do outro uma mistura
de imigrantes que não tiveram sucesso com sertanejos do interior
mineiro. Minha família materna já era desestruturada, com o patriarca
possuindo (no mínimo) duas famílias simultâneas – uma história que daria
uma fonte interessante para um trabalho de teledramaturgia de época – e
que, apesar de tudo, rendeu
mais contatos e vínculos do
que brigas ou coisas do tipo.
Em contrapartida, minha
família paterna parecia ser
mais tradicional, do ponto de
vista conservador, bem
estruturada, inclusive com
meus avós atuantes na igreja
(cristã, evangélica e
tradicional) e com todos os 6
Figura 2. Família Almeida (dez. 1978)
filhos casados.

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Tal união era apenas mais uma fadada ao fracasso, como a maiorias
das bodas que se precederam e sucederam em ambos os flancos da minha
árvore genealógica. No entanto, cada uma dessas uniões era celebrada à
sua maneira e as comemorações se davam de forma tradicional, sem
muita pompa e circunstância, porém com seriedade. E esta
especificamente não fugiria muito à esta regra.
Devida a idade de ambos também não é esperada uma fartura de
condições favoráveis à uma união matrimonial, quando pessoas hoje em
dia passam anos se preparando para uma cerimônia dessas. Eu mesmo
passei longos 4 anos, 3 meses e 17 dias desde o primeiro beijo até o sim
diante do altar com o meu próprio casamento e ainda assim não me
considerava plenamente preparado para assumir esse compromisso tão
sério – não que não quisesse, mas por não ter sequer “onde cair morto”,
se é que me entendem.
Quem casa quer casa é uma máxima do século 19 que, até então,
era realidade no desejo dos casais; porém, devido à iminência da minha
chegada e a urgência nos preparativos, tal sonho foi concretizado com a
adaptação da casa dos meus avós paternos. Era muito mais comum que
filhos aproveitassem os grandes terrenos que circundavam as casas dos
pais para construir seus primeiros lares do que fazer como eu que, por não
ter condições de comprar ou sequer financiar uma casa, precisei alugar
um local nos primeiros anos de casado. Então nada de aluguel para eles.
Então foi assim, num “puxadinho” dividindo o quintal dos meus avós, que
minha existência se daria nos meus primeiros anos.

Já são 9h

O registro do dia e do local do meu nascimento também é


acompanhado desta informação mais granulada possível: a hora. No dia
do meu aniversário de 6 anos, comemorado na casa de um tio, tenho uma
das lembranças mais nítidas, pois me recordo bem de ter pegado em
mãos a minha certidão de nascimento; esta, por sua vez, encontra-se
atualmente arquivada em um cartório do bairro da Penha, zona norte do
Rio de Janeiro. Eu já tinha visto este documento nas mãos da minha mãe e
da minha avó paterna em alguns outros momentos antes deste, mas

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naquele dia foi a primeira vez que li seu conteúdo. Lá estava registrado o
nome “Casa de Saúde e Maternidade Nossa Senhora de Fátima” e quando
eu li achei engraçado o hospital ter o mesmo nome da minha mãe. Sim,
para surpresa de muitos, a minha mãe não se chama Vanda.
Os detalhes dos acontecimentos deste dia especificamente só foram
contados para mim muito recentemente, apesar de fatos e eventos
esporádicos terem sido mencionados diversas vezes ao longo dos anos,
mas com detalhes e explicações apenas vieram à luz agora.
Eu era grande. Um bebê de mais de 4kg na barriga de uma
adolescente, mesmo com a estrutura de hoje, todos concordam que o
trabalho de parto não seria fácil. Associe isto a um sistema de saúde com
uma cultura muito distinta da atual, cujos cuidados às mães hoje
englobam dezenas de precauções que há 4 décadas não eram
dispensadas. Uma delas, além da precariedade de exames e
equipamentos, era a quase totalidade dos partos serem o que chamamos
de normal. Não vou entrar em detalhes sobre os procedimentos adotados,
a inibição de locomoção, restrição de alimentação, intervenções
medicamentosas e até uso de força bruta para que eu pudesse sair. Só
posso dizer que tive sorte de ter sobrevivido e minha mãe por não ter
sequelas por conta das tantas horas que se passaram desde as primeiras
contrações até saberem que era um menino.
Escapei por pouco de ser chamado Junior. O nome Fábio veio por
conta de um artista que estava estourando na época, tanto sendo ator
quanto cantor; e isso me incomodou um pouco por diversos anos pois, em
todo o lugar que estudei ou trabalhei, precisei ser chamado por apelidos
ou sobrenome. O motivo? É que milhares de outras mães na mesma
época tiveram a mesma ideia da minha, e a grande maioria pela mesma
razão. Certa vez cheguei a passar um ano letivo dividindo a classe com
outros 3 “Fábios” na mesma sala; anos depois foi a vez de fazer parte de
uma equipe de trabalho com nada menos do que outros 6 homônimos!
Mas, de certa forma, eu gosto do meu nome e não trocaria por nenhum
outro nome que conheço. A não ser por Min-Hoo, mas esta é uma outra
história.

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Família Ê, Família A, Família

Falando em nomes e outras histórias, este livro também relata


muitas coisas que aconteceram com outras pessoas ao meu redor,
principalmente com meus pais e irmãos; de forma indireta não há como
contar minha história sem mencioná-los de vez em quando. E, falando em
nomes, meus irmãos também passaram pela influência de terceiros na
escolha de seus nomes. Meu irmão do meio se chama Eliton (assim
mesmo, do jeito que se lê) que foi uma “homenagem” à família Almeida
cujos membros tinham em quase sua totalidade nomes iniciados
foneticamente com a letra “E” (Edith, Eden, Edna, Eunice, Hélio e Edson –
meu pai). Aliás, carrego em meu sobrenome o legado da minha família
nordestina, os Ramos, enquanto meus irmãos receberam o sobrenome da
parte da família mineira. Já a Bianca deveria ter se chamado Fabiana
(tanto é que foi assim que ela estava sendo chamada nos primeiros meses
de vida) mas por uma traquinagem do meu pai foi registrada com esse
nome. E a história por detrás desta escolha eu deixo para ela relatar no
livro dela.
Além deste casal, filhos de meus pais, ainda possuo outro casal de
irmãos apenas por parte de pai. São eles o Edson Junior (que acabou
levando o nome que quase foi o meu) e a Brenda Maiyuri (que por um
erro de grafia, ou por convenção ortográfica ou até descuido do escrivão
foi registrada como Malhure) que completam a geração. Quis o destino
que ambos fossem mais apartados da minha história de vida, quer seja
por distância física ou por diferença etária, mas eles surgem quando eu já
estava saindo da adolescência e entrando na fase adulta. Então, eles
voltam aos holofotes mais lá para frente, está bem!?
Além dos nomes já citados podem surgir outros no decorrer da
minha dissertação pois, como pode se notar, as famílias eram bem
numerosas. Eu particularmente tive muito mais contato diário com meus
parentes por parte de pai devido justamente a proximidade física e por
praticamente todos frequentarem a mesma igreja em alguns momentos
da história. Logo, é muito mais fácil lembrar de cada primo e de cada
pessoa presente em algumas das situações quando membros da família
Almeida estão presentes do que os eventos envolvendo o lado dos Ramos.
Aliás, os Ramos já eram o dobro de tios e o triplo de primos, além das

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distâncias geográficas atrapalharem ainda mais as reuniões em datas
festivas. Então me deem um refresco se não me recordar com tanta
clareza comemorações familiares com a parentela materna.

Resumo da Ópera

Afivelem os cintos e ajeitem suas


posturas pois a viagem vai começar de
verdade. Estamos embarcando rumo ao
(des)conhecido mundo ao meu redor e,
só de ter lido até aqui, já considero que
o primeiro passo para seguirmos juntos
pela jornada da minha vida já foi dado;
agora não tem mais volta, pois você
passou também a fazer parte dela!
Pela lógica cronológica você está
olhando para este bebê aqui que não

tem a mínima noção do que o aguarda. Figura 3. Fábio (jul. 1979)

Sua missão é adentrar na consciência


dele e enxergar o seu mundo com a visão de alguém ansioso por
descobrir, aprender e fazer a diferença na vida de todos ao redor. Muitas
decisões certas ou erradas, atitudes impecáveis ou incorretas, situações
inusitadas e tudo o que uma história real pode te proporcionar. Está
preparado?

1. Cortez, Lucili Grangeiro. O drama do barroco dos exilados do Nordeste (2003)


Fortaleza, CE 430p. CDD: 341.545609813

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Influenciado Por

Quando falamos de
influências lembramos o quanto
cada ser humano é único. Um par
de gêmeos podem ter os mesmos
pais (óbvio), estudar nas mesmas
escolas, ter a mesma educação e
até se vestirem iguais, mas serão
duas pessoas completamente
distintas e, se duvidar, até
opostas! Gestações sesquizigóticas
podem ser raras, mas provam que
até gêmeos univitelinos podem ter
sexo diferente. Então, o que dizer
de filhos com anos de diferença
entre eles?
Sou o mais velho de três Figura 4. Fábio e Eliton (dez. 1981)

irmãos, contando apenas a fase


com os mesmos pais. Muito se diz a respeito da forma com que os pais
tratam a cada um, mas tentam em vão justificar as preferências alegando
que o amor é o mesmo. Não, não há como amar a todos igualmente. Sim,
pode amar a todos, sim; porém, de formas diferentes. Logo, cada um será
tratado e receberá insumos durante sua formação de forma distinta dos
demais. Então, com certeza, tudo o que for dito aqui sobre a formação da
minha cultura não se aplica integralmente aos meus irmãos.
Este capítulo relata tudo quanto é tipo de material que ajudou na
minha formação. Tudo o que consumi da cultura pop, sacra, secular,
oriental etc.; todas as referências que influenciaram a forma que penso,
ajo e falo tem seu lugar nesta parte da história. Não tenho desejo nenhum
em mascarar ou ocultar coisas ruins ou desagradáveis, até porque minha
formação foi longe de ser perfeita; logo, vão estar aqui um pouco de tudo
que aprendi a gostar e consumir desde os primeiros passos da minha vida.

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Era Uma Vez Um Leão...

Façam as contas: eu tinha 5 pares de tios por parte de pai e uma


outra dezena do lado materno. Meus pais não eram os mais velhos dentre
os irmãos; logo, ambos os lados da família aumentavam em número
conforme os anos iam passando. E uma das coisas mais comuns de
reuniões familiares eram as festas infantis.
Ah, as festas dos anos 80... tinham sempre os mesmos elementos
básicos independente do poder aquisitivo dos anfitriões – curiosamente
todos com a letra “B”: bolo, balões, bebidas e brincadeiras. Já no
repertório do som ambiente, as vitrolas rodavam os LPs do vasto catálogo
de opções de músicas infantis que existiam na época. Balão, Trem, Patota,
Bozo, Xuxa, Patinhos, Sítio e Disquinhos, entre tantos outros, animavam as
comemorações. Mesmo quem não tinha os álbuns em casa, acabava
decorando as músicas de tanto que se ouviam as mesmas canções – todos
os meses havia pelo menos um final de semana com uma festa para a
gente ir.
Foi nessa época em especial que uma série de discos coloridos e
cheios de cantigas de rodas e estorinhas infantis me chamaram muito a
atenção, como devem ter chamado de muitas outras crianças na época.
Sempre que possível, meus pais conseguiam adquirir um ou outro desses
álbuns e meu fascínio pelo mundo que eu criava na imaginação, ao ouvir
os relatos dos narradores dessas obras, me faziam viajar. Eram
principalmente as “Seleções Carroussel”, onde uma das poucas empresas
de selo fonográfico que ainda existe até hoje, a CID, publicava à exaustão!
Seu carro chefe eram os hinos pátrios e de times de futebol, além de se
destacarem por trazer trilhas sonoras de filmes e produções de televisão,
mas também possuíam diversos artistas exclusivos e regravações de
sucessos internacionais, mas para mim o que ficaram foram as historinhas
de contos de fadas do acervo deles.
Um LP em especial continha uma estória que contava a sobre um
ratinho que escapava de ser devorado e que recompensava o predador
salvando-o de uma situação mais para frente. E todas as rimas do
conteúdo desta fábula foram recentemente repassadas ao meu filho, que
decorou cada frase com apenas 3 anos. Quando algo é interessante e
divertido com certeza a criança aprende e não esquece; e eu 4 décadas

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depois ainda não me esqueci de cada palavra desta história que rodava
em um LP avermelhado naquela vitrola da Grundig.
Muitos desses álbuns podem ter passado por anos sem serem
executados e eu sequer tenha lembrado do conteúdo das canções e das
estórias contadas neles, porém quando minhas sinapses são acionadas é
como se cada uma dessas faixas tivesse sido tocadas minutos atrás e
oralmente consigo reproduzir várias dessas obras. Bom para meu filho
novamente, pois quando pede historinhas para dormir, quase sempre
tenho uma velha nova para contar a ele. Assim, o que parece muitas vezes
serem obras fruto da minha criatividade, na verdade são apenas
reproduções daquilo que ouvi na minha infância – a famosa passagem
oral.
Outra fonte inesgotável de conteúdo infantil dentro desses
produtos fonográficos coloridos eram as cantigas de roda. Hoje em dia
muitas crianças não possuem a liberdade que tínhamos décadas atrás de
permanecer fora dos muros de suas casas em segurança, e talvez as novas
gerações brinquem de roda apenas nos curtos espaços de tempo de
intervalo entre as aulas na escola. Mesmo assim, o recreio é um momento
atualmente dividido entre lanche e conversas sobre o último vídeo do
Youtuber preferido deles e sobra pouco tempo para brincar nos diversos
apetrechos mecânicos como balanços, gangorras e escorregos – ainda
mais para juntar meia dúzia de coleguinhas e cantarem músicas folclóricas
enquanto se dando as mãos e se tocando. Olhando assim parece até
ilegal.
Mas, até hoje, vez ou outra me pego cantarolando musiquinhas
como “Capelinha de Melão”, “Sereno da Meia-Noite” ou “Samba Lelê”
entre outras. Graças à galinácea anil alguns dos clássicos foram
repaginados e vez ou outra tocam nas festas infantis atuais, porém o
repertório das comemorações hoje em dia se restringe mais a funk e
pagode (as que se ‘salvam’ tem Bob Zoom, Bita e alguma coisa de Xuxa
para Baixinhos e olhe lá). A inocência de não saber conteúdos ocultos nas
letras dessas canções, algumas com duplo sentido ou outras cuja
interpretação errada ou equivocada muda a forma de interpretá-las,
também ajudam a manter a tradição e continuar a querer eternizar essas
melodias.

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Não Tão Animados Assim

Por mais que a categoria, dessa vez, se caracterize pelo movimento


de imagens, nem todos os exemplares consumidos por mim durante a
minha formação faziam jus ao nome. Esse tipo de mídia hoje em dia preza
pela quantidade através da contagem de quadros por segundo ou de
equilíbrio entre contraste e nitidez, entre outros critérios, mas na minha
infância não era exatamente o que tínhamos à disposição.
Na era de ouro da TV
a programação de quase
todas as emissoras era
preenchida por diversos
programas infantis; e, o
principal tipo de quadro
dentro deles, eram os
cartuns - ou, como são
conhecidos popularmente
os desenhos animados.
Eram exibidos à exaustão,
hora em programas com
horários fixos, hora para
tapar buracos na grade.
Minhas primeiras
Figura 5. Grade da TV em 1981
memórias sobre o que
passava na TV quando criança, sem dúvidas a maioria delas são compostas
por personagens animados, principalmente pelos clássicos da tríade
Hanna Barbera, Looney Tunes e Disney. Se você tiver curiosidade de
procurar pela internet sobre o que passava na TV na virada da década de
70 para 80, sem exagero, metade de tudo que estava sendo transmitido
eram programas infanto-juvenis. Já os desenhos animados em si estavam
presentes desde a manhã, no início das transmissões (sim, TV tinha hora
para começar e hora para terminar, todos os dias) até à noite.
Minhas preferências iniciais eram personagens que, talvez, muitos
nunca ouviram falar, como o Vira Lata, o Gato Felix e o Super Mouse.
Engraçado notar, depois de escrever isso, perceber que estes desenhos se
tinham a ver com um cão, um gato e um rato respectivamente.

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Protagonistas antropomórficos é quase uma regra irrestrita de todo
e qualquer conto de fadas que se tem notícia. E nos programas
televisionados, mesmo quando o mocinho era um ser humano, era quase
impossível não notar um companheiro ou parceiro de origem animal,
digamos assim. Mencionar todos os que eu assistia nesse período da vida
daria um trabalho digno de TCC, mas há um em especial que me marcou
demais, talvez pelo fato de que foi o primeiro na qual decorei a letra da
música de abertura. Era um anime japonês (pleonasmo detectado)
chamado Wanwan Sanjushi que ganhou o nome de “Dartacão”, um spin-
off de Dartagnan do escritor Alexandre Dumas. Foi exibido na Rede
Manchete nos primeiros anos da emissora, inaugurada em 1983, e era
justamente o horário do Clube da Criança (17h) que eu aguardava
ansiosamente assistir a Xuxa anunciando a atração.
Dois anos mais tarde, outro anime (agora sem pleonasmo) que
assistia à exaustão era o Hakushon Daimao. Na minha época chamavam
ele de Gênio Maluco e passava em diversos horários da TVS/SBT, mas teve
outros nomes em outras emissoras antes de depois de 1985 como Gênio
Atchim e Bob o Gênio. Os nomes dos personagens me acompanharam por
décadas na minha memória até reencontrá-los numa nova versão
moderna de 2020 – e aí descobrir que o Zeca era Kan, o Bob era
Hakushon, a filha dele se chama Akubi e o amor da vida do Zeca, a Júlia,
na verdade se chama Yuriko. Até o cachorro buldogue que perseguia o
Zec... digo, o Kan, se chamava Baru.
Para fechar essa fase de lembranças de desenhos animados da
primeira infância, não tinha como deixar de lado a Turma da Mônica.
Normalmente apareciam em especiais de final de ano, mas se tem algo
que me marcou demais quando sequer tinha completado meus 5 anos, foi
ter ido ao cinema para assistir “A princesa e o Robô”. Lembro da roupa
que usei, dos dois ônibus que pegamos até chegar de Nova Iguaçu até
Madureira e até da sensação de frio e do banco duro de madeira do local.
Uma das consequências desse dia eu conto mais para frente de forma
mais detalhada, quando o assunto for os sonhos, mas daquele dia em
diante eu aprendi sobre valorizar as produções nacionais. Mesmo
pequeno eu entendia que aquilo que eu estava assistindo era feito no
Brasil e que os outros desenhos vinham “de fora”. Eu tenho esta certeza
também pelo fato de que meu filho desde os seus 3 anos também ter a

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mesma noção de dimensão e divisão do nosso planeta, além da
diversidade de língua e cultura.

Feito para Crianças?

Quando pensamos no cenário cultural do início dos anos 80 nos


deparamos com uma variedade fenomenal de opções, estilos e modelos
de entretenimento infantil. Na área política a censura perdia força e os
artistas, que percebiam essa tendência, se aproveitavam para testar e ver
até onde podiam ir. Com o tempo esta linha limítrofe foi ficando cada vez
mais distante; e para nós, que podemos olhar para trás, constatamos que
só quem tem limite é município.
Bem no início da minha vida de telespectador as coisas que
passavam na TV para o público infantil tinham um certo padrão.
Bambalalão, Turma do Lambe-Lambe, Vila Sésamo e Globinho tinham
aquele ar de programa educativo e informativo, mas sem muita “bagunça
e brincadeira”. Depois começou a surgir um novo formato, onde as
crianças tomavam parte ativa e no palco os anfitriões interagiam mais
com o público do que com roteiros e scripts. Foi aí que, para atrair não só
as crianças, mas também os pais (e consumidores) os principais programas
que eu assistia quando era bem pequeno surgiram no circuito. A Turma do
Balão Mágico, o Bozo, o Fofão e o Clube da Criança apareceram quase que
no mesmo tempo, cada um na sua emissora, mas com muitos pontos em
comum.
Nunca fui fã do tipo fanático desses personagens e programas;
tanto que nunca fui a nenhum show, apresentação ou qualquer evento ao
vivo com apresentadores ou artistas. Mesmo depois de grande não me
interessei em colecionar coisas da época, comprar itens nostálgicos ou
sequer seguir gente famosa em rede social. Mas com certeza boa parte do
que aprendia e me distraía recreativamente durante as horas passadas em
frente à TV eram em um desses programas infantis. Nem mesmo a circo
fui alguma vez na vida e, a única vez em que visitei um foi em 2022;
mesmo assim, foi para assistir a um show de músicas infantis evangélicas
chamado 3 Palavrinhas.

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Hoje, quando vamos na internet e podemos assistir trechos desses
programas, podemos notar que muitos dos ingredientes que compunham
a salada de atrações eram um tanto, absurdos se comparados com os
nossos padrões atuais. Minha percepção é de que à medida em que os
anos passam ficamos mais caretas, mas se mostrarmos aos adolescentes e
jovens de hoje o conteúdo das atrações que estou mencionando, como as
letras das músicas, o figurino das apresentadoras, os tipos de brincadeiras,
a violência gratuita dos desenhos animados que passavam e as
propagandas intuitivas, entre outras coisas, talvez nenhum desses
exemplos que citei passariam pelo crivo da censura da nossa era dos
cancelamentos.
Mesmo com tanto conteúdo de gosto duvidoso, muitas dessas
coisas sequer foram absorvidas pelas crianças da época e passaram
batidas sem traumas. Creio que ser exposto a certos tipos de opções e
tendências não definem quem nos tornamos; e a diversidade faz com que
profissionais dos ramos do entretenimento consigam alcançar um leque
maior de público-alvo, agradando a muitos em vez de apenas nichos
específicos. A máxima paulina de “...examinai tudo e retende o bem...”3 é
sempre bem-vinda.
Hoje percebo que, pelo menos para mim, isso tudo não influenciou
em nada meu comportamento ou minha personalidade. O que muitos pais
sofrem por tentar privar as crianças de certos tipos de conteúdo e se
frustram cada vez que descobrem o que seus filhos andam ouvindo ou
assistindo, a meu ver não há impacto algum no caráter da criança, a não
ser pelo fato de preferências. Para uma criança mais vulnerável, suscetível
a se deixar levar pelo que é exposta, pode ser um grande problemão; mas,
como eu disse lá na introdução do livro, pode ser que eu seja uma
exceção. Então, jamais releve este parágrafo como regra; isso tudo, até o
ponto em que eu sei, valeu apenas para mim.

2. BÍBLIA, N.T. 2 Tess. Português. In: Bíblia Sagrada. Versão Almeida Corrigida Fiel. ap.
5, Ver. 21.

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Sobrevivi

Nascido na Casa de Saúde Nossa Senhora de Fátima em Nova Iguaçu


eu passaria a maior parte da minha infância e adolescência dentro deste
município da Baixada Fluminense.
Este capítulo relata situações em que minha vida pode ter sido
ameaçada de algum jeito ou de outro. Parece meio sensacionalista, mas
basicamente as crianças passam o tempo todo sendo monitoradas para
que não se matem de alguma forma; e na adolescência passam a desafiar
os limites e flertam com o perigo constantemente. Além disso, nossos
corpos vão se adaptando até a fase adulta e invariavelmente enfrentamos
doenças e acidentes durante esse percurso.
Conforme relatos de minha mãe, o parto não correu tudo bem. Por
muito pouco não fomos ambos, mãe e filho, da enfermaria para o
necrotério. Hoje em dia é muito comum o uso da prática cesariana, mas
no final dos anos 70 o parto normal era mais do que aconselhado; é mais
provável que fosse uma regra quase imutável. A demora na conclusão do
nascimento por vezes pode acarretar sequelas psicológicas na mãe e
físicas nos bebês; além disso, na época não havia a Lei Federal
11.108/2005 ou a RDC 36/2008 da ANVISA, por exemplo, que protegem
adolescentes nestas situações. Graças à Deus meu pai na época tinha
carteira assinada que dava direito, entre outras coisas, à assistência saúde.
Assim, o recém-criado INAMPS (antes chamado INPS) me acompanharia
ainda por mais alguns anos em diversas situações.
Se eu estou descrevendo todos esses detalhes, quer dizer que
escapei de virar estatística e que, no final, tudo deu certo. Correto? Bem,
pelo menos foi como terminou o prólogo da minha trajetória.
Conforme os registros e relatos meu primeiro mês de vida foi bem
mais tranquilo do que meu primeiro dia. Eu era bem saudável e “durinho”
– dá para se notar pela sessão de fotos que ganhei quando fiz 30 dias.
Conforme os anos vão passando e as crianças vão chegando é comum que
algumas regalias de primogênito sejam exclusividades, pois fica cada vez
mais difícil para os pais manterem o custo de coisas supérfluas como
fotografias em álbuns de sessões específicas.

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Biscoito ou Bolacha?

Uma das lembranças mais antigas sobre doenças ou acidentes,


dentre todas, ocorreu no início de 1983. Minha mãe deixou que eu
passasse margarina no biscoito e me entregou, nas mãos de uma criança
de 3 anos, uma faca de cozinha. Como é de se esperar, em determinado
momento o talher escorregou das minhas mãozinhas e caiu; mas, em vez
de um barulho do utensílio batendo no piso avermelhado da cozinha eu
ouvi um som mais seco e abafado: era a ponta da faca cortando
perfurando minha pele do pé direito e ferindo um dos meus dedos.
O pensamento que tive no momento, não me pergunte o porquê,
era de que eu morreria ali, achando que ficaria sem sangue e secaria. Não
me lembrava de ter passado por isso antes, mas o sangue escorrendo e
fazendo meus dedos ficarem grudentos no chão fizeram com que eu
tivesse um sentimento horrível. Provavelmente posso ter visto algo do
tipo na televisão, mas na vida real era a primeira vez que eu via aquilo
acontecer – e isso foi traumatizante.
Por fim, um algodão e um band-aid resolveram rapidamente o
pequeno ferimento e lembro de ter terminado de comer os biscoitos de
maisena da Piraquê, com a mesma embalagem vermelha de sempre, logo
em seguida no colo da minha mãe. A cadeira era fria e já era noite; eu
devo ter pedido e, do jeito que eu era manhoso, provavelmente a
convenci de não me deixar sozinho.

Como na Ficção

Certa vez ocorreu algo que me fez faltar um culto de Sábado, algo
inimaginável na minha cabeça de criança até então. Eu tinha acabado de
completar 4 anos e já tinha um irmãozinho de 1 ano e meio e uma
irmãzinha recém-nascida em casa para ajudar a cuidar; por esse motivo
minha mãe nem sempre podia fazer rotinas de ir à rua a qualquer tempo.
Então, meu pai quase sempre iria fazer compras ou coisas do tipo.
Desde bem pequeno eu já havia me ambientado ao ponto de saber
direções, ruas, localizações e demais orientações espaciais; logo, conhecia

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muito bem onde ficavam os principais pontos de interesse, como se
houvesse um Google Maps na minha cabeça e um pontinho vermelho
dizendo “você está aqui” que foi expandindo e que se expande até hoje.
Foi quando em uma dessas necessidades de se comprar algo, numa
sexta-feira à tarde, que meu pai pegou a bicicleta e saiu para a rua; e eu,
que gostava muito de andar em qualquer veículo que seja (carro, ônibus,
carrinho de mão...) devo ter pedido para ir junto. O problema é que eu já
devia ser muito grande para ir sentado na cadeirinha da frente, que
caberia apenas meu irmão, talvez, então eu fui sentado no banco de trás.
E a tal bicicleta não podemos afirmar que não tinha defeitos, deveria ter
um tempo de uso considerável, além disso a qualidade das ruas nos
bairros ao redor não era das melhores.
A partir desse ponto, mesmo que não conheça esta história, já deve
estar imaginando o que pode ter acontecido. Afinal, este capítulo conta
histórias de doenças e acidentes; e, uma criança de 4 anos no banco de
trás de uma bicicleta já não me é uma ideia boa. Vamos voltar para o
relato da situação que ocorreu.
Apesar de existirem algumas opções de mercearias e mercadinhos
bem próximos à nossa casa, desta vez meu pai resolveu ir ao Monte
Líbano. Descendo a rua, tudo tranquilo, virando à esquerda na rua
principal e depois da Rua Jaguari virando à direita na Rua Maria
Leopoldina já era quase a metade do caminho. Eu estava aproveitando a
velocidade pois, diferente das ruas anteriores, esta era asfaltada; na rua
de casa não dava para correr muito devido às condições pois era
esburacada e cheia de pedras. Eu estava segurando firme no selim pois
não havia encosto no banco onde eu estava; foi quando meu pai resolveu
pedalar mais forte e por um momento deve ter esquecido que eu estava
me segurando ali atrás. Eu digo isso, pois ele já deveria saber que o selim
não estava fixado na bicicleta. Antes de começar a viagem eu já havia
percebido que o banco do selim balançava, além de ser bem pequeno
para ser usado como apoio para as minhas mãozinhas, mas eu achei que
ia me garantir ali atrás – o que não ocorreu.
Para minha sorte, aquele trecho específico da rua, pouco antes do
encontro da Rua das Limas com a Bento Lima, não havia movimento tão
grande de carros na época como é hoje em dia, pois quando meu pai fez
esse movimento de pedalar mais forte ele se levantou. Quando ele fez isso

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o banco se soltou completamente e veio parar nas minhas mãos. Eu fiquei
sem ponto de apoio e não demorou nem um segundo para que eu fosse
arremessado no chão. Aliás, outra sorte foi a velocidade, pois se estivesse
mais lento talvez eu caísse de cabeça e o estrago seria bem pior.
A forma que aconteceu, na minha lembrança, foi um pouco
engraçada. Parecia uma cena da ficção, principalmente de desenho
animado, quando personagens caem durante uma corrida, em que vão
quicando no chão antes de pararem de vez, sabe? Foi como pedras
arredondadas arremessadas em um lago e vão fazendo algumas
encostadas na superfície da água antes de afundarem mais à frente; só
que, neste caso, a pedra eram minhas nádegas e costas, o lago era a rua e
em vez de água era asfalto.
Acho que Deus naquele momento desativou o modo sensibilidade
do meu corpo. Eu chorava, mas era de nervoso, de assustado, de medo do
que poderia acontecer. Simplesmente a dor estava ausente, mesmo
enxergando meu corpo todo ralado, algumas partes em carne vivas e com
relevo ao toque. Eu lembro que quando cheguei em casa e minha mãe e
avó, enquanto faziam os curativos, eu estava mais preocupado em saber
se meu pai havia comprado o biscoito que tinha prometido trazer para
mim do que com as feridas e machucados. Aliás, fiquei mais preocupado
ainda no dia seguinte, achando que estava sendo desrespeitoso com Deus
por não ter ido na igreja no culto divino, um ritual semanal que ocorria no
sábado pela manhã e que, pela minha memória, eu nunca havia faltado
desde que me entendo por gente.
Dormi de bruços aquele dia, pois a sensação de queimação, essa sim
era constante. E os esparadrapos, que fixavam as gazes na minha pele,
eram outra sensação que até hoje me faz ter arrepios, pois eu poderia não
ter voltado para casa. Só me lembro de ter ficado naquele sábado pela
manhã, ouvindo discos do Arautos do Rei, principalmente a Cantata do
Filho Pródigo. Mal sabia eu que anos mais tarde conheceria pessoalmente
o autor dessa obra e até ensaiaria músicas com alguns dos componentes
daquela formação.
Diferentemente do estrago da minha próxima história, onde a
cicatriz carrego desde então, este evento não produziu marcas
permanentes, assim como outro que eu achava ter marcado, mas que

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pouco tempo depois já havia desaparecido, cujos detalhes conto mais
para frente.

Domingo Sangrento

No início de 1984 passei por um outro trauma e por pouco por um


traumatismo. Era um domingo à noite e estávamos em família no culto
evangelístico da igreja – a mesma onde 5 anos antes meus pais haviam se
casado. Minha irmã, 3 anos e 6 meses mais nova do que eu, saiu andando
despreocupadamente pela calçada enlameada em direção à rua. Como
irmão mais velho, mesmo tendo apenas 4 anos e meio, fui atrás como um
responsável a fim de trazer ela de volta em segurança. Por alguns
segundos minha mãe desviou o olhar de sua cria e não percebeu quando
pisei em uma das pedras em falso, que impediam que carros
estacionassem em cima da calçada. A pedra balançou e quando me
desequilibrei caí de testa em outra, um pouco mais pontuda, logo a frente.
A princípio me levantei e vi minha irmã no portão da casa que fica do lado
esquerdo à entrada da igreja e apenas suspirei aliviado de ver ela segura;
porém, senti algo escorrendo pelo meu rosto e quando passei a mão e vi
aquele “caldo avermelhado” sujando tudo me desesperei.
O meu choro foi inevitável e os gritos chamaram a atenção da
minha mãe; e ela, por sua vez, não se deu conta do que estava realmente
acontecendo. Em um primeiro momento ela apenas andou na nossa
direção e foi pegar minha irmã no colo; mas, quando viu a situação real ao
olhar para meu rosto quase desmaiou com a cena! Fico tentando imaginar
o que deve ter passado pela cabeça dela naquele momento em que viu o
filho naquele estado digno de cena de filme de terror.
O que ocorreu nos minutos seguintes são apenas flashes de algumas
situações. Fui carregado para o pátio nos fundos da igreja e algumas
pessoas entraram no circuito. Primeiro me lembro da Leny, uma “menina”
(entre aspas mesmo) que pegou uma fralda de pano para secar meu rosto
enquanto meu tio Hélio foi arrumar gelo – provavelmente para estancar o
sangramento. Lembro da sensação e sinto aquele pano úmido e gelado
encostando na minha testa como se fosse ontem. Deve ter sido minha
mãe ou minha avó Ruth, que lavaram e secaram aquela fralda grossa umas

23
duas ou três vezes antes de carregarem de volta para a rua. Meu pai me
pegou no colo e correu para ver quem tinha um carro disponível e que
poderia me levar ao Hospital Geral da cidade (vulgo Hospital da Posse). Há
quem diga que fomos com o João Gracindo, mas pela minha memória
quem nos levou foi o Jairo, esposo da tia Sônia (minha professora do
Jardim da Infância).
No caminho fui sentado no colo do meu pai e mesmo antes de
chegar no pronto-socorro eu já estava bem mais tranquilo – ou quase
desmaiando pelo sangue perdido! Porém, lembro com detalhes o que
senti a cada interação com a equipe do hospital. A gaze, os antissépticos,
as minhas costas naquela maca gelada... lembro que tremia, mas fiquei
praticamente imóvel olhando aquela luz grande e redonda no teto
enquanto sentia umas 2 ou 3 agulhadas antes do fio puxar minha pele de
volta e me dar essa cicatriz na minha fronte. Esta marca que ficou é uma
lembrança do que me faz ser alvo de chacotas até hoje por ter tomado
injeção na testa – mesmo que provavelmente tenha sido apenas um
simples anestésico local.

De Manga em Manga4

Esta fruta aqui no Brasil possui centenas de variedades e os tipos


mais comuns no Brasil chegam na casa das dezenas de diferentes
espécies. Algumas delas são ótimas para receitas culinárias enquanto
outras como bebidas ou sobremesas, mas a maioria delas são consumidas
in natura mesmo.
As mangas deste capítulo em especial não são os maravilhosos
exemplares de manga espada da mangueira do Sr. Godofredo, nem as
mangas carlotinhas bem docinhas das mangueiras da Dona Cacilda, avó do
Alexandre “Tandinho” e nem das gigantescas e suculentas mangas rosa ou
as coração de boi das mangueiras do sítio do Sr. Zé Batista em Paracambi.
Estou falando da manga “cavalo”, uma versão gigantesca da variante kent,
que tem uma forma mais arredondada e tem um caroço pequeno se
comparado aos demais tipos. Estas existiam no terreno ao lado da Igreja
Adventista de Jardim da Prata e isto foi na primavera de 1985 quando eu
tinha acabado de completar 6 anos.

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Diferentemente do padrão que tenho observado nas crianças hoje
em dia, eu sempre fui fã de frutas. Muito da minha resistência a doenças
posso creditar a isso, mas nesta situação atípica o resultado foi meio que
adverso ao esperado. Talvez se deva ao fato de que em apenas um dia não
comi uma ou duas frutas desse porte, mas sim meia dúzia. Foram tantas
mangas que comi que as consequências indigestas foram inevitáveis!
Seis mangas, até mesmo para um adulto, é algo até perigoso do
ponto de vista nutricional. E eu lembro bem quando comecei a me sentir
mal, ainda no final do mesmo dia; mas foi apenas na manhã seguinte,
quando eu não conseguia sequer ficar de pé, que entendi que algo de
muito errado estava acontecendo comigo. Não sei como me recuperei ou
quais os remédios que minha mãe ministrou; só sei que aquela sensação
de ver tudo girando, mesmo sem sequer ter feito esforço algum, foi algo
desesperador. Eu só pensava que nunca mais ia conseguir me levantar e
que ficaria um bom tempo sem provar nenhuma outra manga caso
melhorasse.
Eu estou melhor e sem sequelas daquele fatídico final de semana;
porém, minha promessa de abstinência frugal da mangifera não deve ter
durado muito, já que até hoje ainda é uma das minhas frutas favoritas!

Quebrando o Rádio

Aprendi a andar de bicicleta bem novo; eu tinha apenas 5 anos


quando não precisava mais de rodinhas na minha Caloi. Lembro que na
época cheguei a ir e voltar de bicicleta da escola para casa algumas vezes
quando morava a apenas 2 quarteirões de distância. Não me lembro de
nenhuma intercorrência nos primeiros anos de uso desse meio de
transporte, a não ser quando travei meu pé no pneu dianteiro tentando
frear ou quando eventualmente enrosquei meu dedo na corrente.
A história de agora, no entanto, ocorre 5 anos depois, e envolve
escola também. Eu estava na 4ª série (atual 5º ano) e estudava na mesma
escola que meu irmão do meio. Por algum motivo trivial eu tinha saído
mais cedo que ele e aguardava junto com meu primo do lado de fora. O
André é um pouco mais velho e fazia a escolta dos primos, até então com
10 e 8 anos respectivamente, até o ponto do ônibus e depois

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acompanhava a gente até em casa em segurança. Como ele conseguia
colocar a gente no ônibus e estar no ponto de chegada mesmo não
estando junto conosco? É que ele ia de bicicleta e, não tão incrivelmente
assim, era mais rápido do que o próprio ônibus. A distância física não era
um critério exato, já que a linha dava algumas voltas e parava em tantos
pontos antes de chegar no destino; quase sempre o André já estava lá
quando soltávamos.
Como eu disse, saí um pouquinho mais cedo e aproveitei para pegar
a tal bicicleta para dar umas voltas. Conhecia bem as ruas ao redor da
escola e a rua de trás ficava um pouco mais alta do que as demais ruas.
Como a bicicleta estava com um probleminha nos freios eu não abusava
muito. Foi então que tive a brilhante ideia de subir a tal rua pela ladeirinha
do outro lado e descer pela rua principal que era bem menos íngreme. No
entanto, eu meio que me superestimei, pois acreditava que conseguiria
pedalar ladeira acima até o final. Então, na metade do caminho, a bicicleta
foi perdendo velocidade até parar. Dali em diante o percurso que ela
passou a percorrer era em marcha ré.
Eu não tinha muita altura naquela Monark azul clara. Ambos os
meus pés não alcançavam o chão ao mesmo tempo, então tentei parar ou
descer da bicicleta sem sucesso. Quando ela começou a andar para trás eu
saí do meio da rua e fui mais para o canto; em menos de 3 segundos ou 3
pisadas intercaladas no chão, eu caí de lado em um meio-fio (ou berma,
ou lancil, ou guia dependendo de onde esteja lendo isso) por cima do meu
braço esquerdo.
Eu não senti dor, mas percebi que assim que houve o impacto eu
perdi os movimentos da extremidade do meu braço; do punho até as
pontas dos dedos eu não conseguia mover um músculo sequer. Minha
mão estava retraída, como se estivesse atrofiada e no mesmo instante
lembrei de um comercial da TV onde uma menina com mãos semelhantes
fazia uma dança tendo as mãos na mesma posição e achava que nunca
mais ia voltar ao normal. É claro que gritei e chorei bastante, ao ponto de
chamar a atenção do meu primo a quase 100m de distância, que veio
buscar a bicicleta e ver se estava inteira.
Os acontecimentos seguintes são apenas flashes: um moço do bar
em frente me trouxe água, uma mulher que pegou pedaços de papelão e
improvisou uma tipoia com laços em uma faixa de gaze e esparadrapos. O

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André levando o Eliton na bicicleta enquanto eu ia para o ônibus também
são apenas relances, além de chegar na casa da minha avó e ela em
seguida me levar até o Hospital da Posse.
Chegando ao hospital a fila de atendimento da ortopedia era um
show de horrores! Tinha de tudo um pouco, e cada caso mais assombroso
do que outro. Dentre os que mais me assustavam à vista era um
motociclista (carregava um capacete consigo) com algum tipo de ferro
atravessado na perna, um outro que fumava um cigarro atrás do outro
enquanto lia um livro de bolso com o braço com duas dobras em lugares
inusitados e uma criança que pelo jeito havia quebrado algo entre o
ombro e a orelha, mas que a roupa manchada de vermelho me dava mais
pânico do que o curativo que usava. Eu lembro que demorou bastante até
chegar a minha vez, mas meu atendimento foi rápido.
Fizeram exame de imagem e deve ter sido a primeira vez em que
usava uma máquina de raio-x. Lembro da sala gelada e da roupa que me
fizeram usar, pesadíssima para uma criança; alguém me disse que era de
chumbo – deve ter sido o auxiliar de enfermagem que me acompanhou.
Lembro que eu não conseguia colocar o braço em cima da mesa na
posição que eles queriam que eu ficasse; foi quando alguém me segurou
para que ficasse meio torto, mas com o braço reto o suficiente para a
radiografia.
Em seguida outro momento de agonia. Ouvi do médico a
necessidade de operar. Foram umas 3 ou 4 menções à esta palavra e que
me fez achar que ficaria internado ou que faria cirurgia (cortes, sangue
etc.) enquanto o resultado da imagem não chegava. Porém, quando
aquela cartela enorme de uma cartolina escura de pontas arredondadas
chegou no consultório eu já sabia do que se tratava, mesmo sem nunca
ter visto uma dessas anteriormente. O meu braço estava fraturado em
dois lugares, mas a boa notícia foi que não precisaria operar. No entanto,
antes de imobilizar o membro de forma correta (ataduras e gesso) era
necessário “botar os ossos no lugar”. Quando eu vi dois homens enormes
me imobilizando e um terceiro junto com o médico colocando um rolo de
gaze na minha boca e dizendo que eu podia gritar, boa coisa não era. E
sim, gritei! Deve ter sido uns 10, 15 segundos no máximo, mas parecia
uma eternidade. Quando o médico apalpou o meu braço no final ainda
senti muita dor na hora, mas também senti um alívio quando percebi que

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meus dedos voltaram a funcionar normalmente depois daquela sessão de
tortura dentro do consultório.
As semanas seguintes foram bem atípicas. Parece que os colegas da
turma passaram a me notar, pois todos queriam escrever alguma coisa no
meu gesso. É uma pena não ter facilidade de registros fotográficos na
época, pois isso seria uma lembrança até interessante de ser revisitada
depois de tantos anos.
Uma das maiores dificuldades foi ficar sem ir à praia ou piscina
justamente no início do verão carioca; teve uma vez que não aguentei e
enrolei um saco plástico no braço que, obviamente, não deu certo. Era na
Praia do Flamengo, no Aterro entre a Glória e Botafogo – ou seja, sem
ondas; mesmo assim acabei molhando o gesso com água salgada e no dia
seguinte tive que procurar o hospital para trocar tudo...
Falando em ir ao hospital, tive que voltar outras duas vezes para
renovar o gesso. O período era de muito calor e meu braço privado de
ventilação era uma sensação horrível. A pele é envolvida por uma camada
de algodão, depois revestida de gaze e por fim o gesso, igual a de uma
obra de alvenaria qualquer, é passada manualmente pelas mãos dos
enfermeiros. Quer dizer, pelo menos era assim que faziam na virada da
década de 80 para 90 em um hospital público do interior da baixada
fluminense. E na segunda vez, antes da retirada definitiva semanas depois,
tiveram que fazer um pequeno curativo, pois quando o meu braço coçava
(e coçava bastante) eu pegava uma das agulhas de tricô da minha avó e
enfiava de alguma forma pelas frestas de onde saíam meus dedos e acabei
me machucando. A pele estava muito sensível com tanto calor e umidade
e eu precisava aliviar de alguma forma essa agonia do prurido.
No dia em que retirei definitivamente o tal braço branco lembro
muito bem da sensação esquisita de ter o braço de volta. O tato da pele
naquela região estava totalmente deturpado e ao encostar em qualquer
superfície eu sentia coisas diferentes ou até formigamento. Parecia às
vezes que tinha perdido toda a sensibilidade ou que meu braço estivesse
completamente torto. Porém, não demorou muito para que voltasse à
normalidade e fosse voltar às atividades de férias: vender pão e jogar
fliperama.

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Ferve Ele no Óleo

Lembro de que muitas vezes as refeições na casa dos meus avós


paternos eram regadas a frituras. Hoje creio que a morte precoce de meu
avô tenha um pouco a ver com a forma como as misturas além do arroz
com feijão eram preparadas pela minha avó. E, sim, logo no primeiro
parágrafo já é possível se ter uma ideia do que vou contar, dado ao
histórico dos demais relatos deste capítulo.
O fato é de que, apesar do tamanho enorme da cozinha da minha
avó, se tem um cômodo em qualquer casa que não é lugar de criança,
principalmente quando há alguém preparando alguma refeição, é
justamente lá – ainda mais perto do fogão.
Falando em fogão, ele era enorme também. Um Continental 2001
Azul com 6 bocas e um forno que caberiam eu e meus outros dois irmãos
tranquilamente. Falando em azul, outro item na cozinha que sempre
esteve por ali, além do famoso pinguim no topo da geladeira, era o
detergente ODD que meu avô sempre comprava quando ia de bicicleta até
o Centro fazer compras. Aliás, algumas vezes, voltando da escola, quando
eu ia até o Centro para pegar o ônibus no ponto final para vir sentado, eu
via a bicicleta dele estacionada em frente a Sendas ou o Paes Mendonça.
O dia da ocorrência, no entanto, não era nenhum deles que estava
usando a cozinha, e sim meu primo/tio (o mesmo da história da bicicleta).
Ele fritava alguns pedaços de frango e usava uma frigideira velha, cheia de
“detalhes” em preto cuja definição de panela velha seria algo para
apresentar um produto usado, porém vintage. No corredor da casa da
minha avó uma criança andava apressada, correndo, sabe-se lá o porquê;
talvez brincando com algum primo ou indo jogar alguma coisa na rua. O
problema de não saber exatamente o que iria fazer se deve ao fato de que
o que aconteceu apagou completamente da memória quaisquer motivos
que expliquem a tal correria. Sim, a criança era eu.
O André terminou de fritar sua refeição e, ainda com a frigideira
cheia de óleo fervendo, retirou a mesma do fogão e levou para os fundos
da casa, provavelmente para eliminar aquela gordura em algum lugar; e
eu, aquela criança apressada, encontrei com ele no corredor no mesmo
instante. O resultado foi um círculo gigante, como de um boi recém

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marcado por um peão, em meu abdômen e bolhas espalhadas por todo
meu tórax. O tanto que eu gritei devem ter pensado que eu estava
morrendo. E eu estava.
As frases que ouvi de uma das minhas tias era “passa pasta de
dente”, a minha avó dizendo “não coloca a mão” e eu querendo que me
trouxessem gelo, quando alguém gritou “não faça isso”. Na verdade
encontraram uma tal de pasta d’água e, quando os locais onde a borda da
frigideira encostou no meu corpo, começaram a criar secreções e tratei
como feridas comuns. Graças à Deus não me ouviram e não puseram água
gelada e nem ventilador em cima de mim, senão eu teria marcas de
cicatrizes bem mais visíveis do que estas que carrego apenas na minha
mente. O que ficou foi apenas a sensação de como o apóstolo João deve
ter se sentido após escapar da morte ao ser jogado em um tacho de azeite
fervendo.

3. PRASHANTH, D.et al; a-Glucosidase inhibitory activity of Mangifera


indicabark.Fitoterapia, Milano, v. 72, p. 686 -88, 2001.

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Eu Tenho Sonhos

Uma das coisas que menos se tem apoio científico quanto a sua
origem são os sonhos. Mesmo assim, já foram divulgados vários registros
comprovados de reações do corpo no momento destas ocorrências, como
por exemplo, que sempre são em um dos períodos REM (um dos
elementos dos ciclos do sono), que a atividade cerebral intensa é bem
semelhante de quando estamos acordados e acontecem diversas
descargas hormonais a depender do tipo de sonho.
Existem alguns fatores que explicam o porquê de recordarmos com
detalhes de alguns desses sonhos, sendo que a grande maioria deles
vamos sequer ter lembranças. Um desses é o chamado sonho hipnagógico
que ocorre só depois de um grande período de sono, já quase na hora de
acordar. A noradrenalina foi comprovada como responsável por retermos
os registros, principalmente de pesadelos, pois nestes momentos o nosso
lóbulo frontal, que controla o nosso senso crítico, ainda está em repouso e
nos deixa aceitar qualquer coisa, mesmo as mais absurdas.
Durante a infância, entre 3 e 7 anos, os sonhos ruins são mais
frequentes; o tal terror noturno também ocorre em uma parcela
considerável das crianças. Mas, diferentes dos pesadelos, as crianças não
se lembram deles. Ou pelo menos não deveriam se lembrar... O que posso
afirmar é que vou relatar alguns desses incidentes, vários deles associados
a outro evento noturno chamada “paralisia do sono” que, em parte,
ajudam a reter na memória os eventos dos sonhos.
Neste capítulo eu relato detalhes de alguns desses sonhos (e
pesadelos) que, de tão marcantes (ou traumatizantes) ainda estão
guardados na minha memória e que, eventualmente, são relembrados e
revividos, quer seja acordado e lúcido, quer seja dormindo.

Amuado, acuado e aguado

Um dos piores sonhos que tive na vida, e que me dá calafrios até


hoje, é um meio que sem sentido para quem ouve o relato, mas que para
mim foi muito marcante.

31
A cena acontece em um tanque de lavar roupas. Na época, morava
em uma casa em um conjunto de casas construídas pelo meu pai e meus
tios cujo local chamávamos simplesmente de beco. O beco fica na Abdiel
Duarte 215 em Nova Iguaçu e após as 3 primeiras casas, abaixo da escada
do apartamento 201 (vai saber o porquê de terem batizado um
“puxadinho” na laje de apartamento...”) havia um espaço para guardar
tralhas e o tal tanque de concreto com uma torneira, que chamamos de
bica. Nessa época eu cabia ali dentro tranquilamente, e gostava de tomar
banho ali por volta dos meus 2 anos.
No sonho o tanque estava pela metade, dava para sentir a
temperatura refrescante da água e até o cheiro do sabão em barra azul,
provavelmente da UFE, que ficava do lado direito do objeto. Eu estava
sentado nas ranhuras onde se esfregavam as peças mais encardidas e, de
frente para o registro de água, percebi que não estava fechado direito. A
água pingava e o único som que eu ouvia era da gota de água caindo e
fazia um barulho chato que estava me incomodando. Eu não sabia como
desligar aquilo e mexi em vão na tal bica, mas de repente eu tive uma
ideia: colocar o meu dedinho na torneira e parar de vazar aquela goteira
insuportável. Aí, quando eu encostei meu polegar direito na saída de água
um jato de água muito forte me assustou e foi em direção ao meu rosto!
O que eu senti em seguida foi desesperador, pois eu percebi que
estava sozinho e sem alguém para me socorrer. O instinto me fez chorar,
mas da minha boca não saía som pois a água impedia de sequer respirar
direito. Acordei assustado tentando entender o que tinha acontecido.
Sabia que aquilo tinha sido um pesadelo pois já tinha tido outros, mas
esse era diferente pois eu descobri que a gente sonhando podia sentir as
coisas, como cheiro, textura e sofrer por algo que acontecia dentro do
sonho. Eu fiquei com medo de dormir de novo naquele dia, mas parece
que logo já tinha me esquecido desse sentimento ruim.
Talvez eu estivesse ouvindo uma goteira em um tanque da área de
serviço ou da pia do banheiro que ficava relativamente próximo ao quarto,
mas o que pode ter acontecido foi ter me virado de bruços e tampado
minhas vias aéreas com um travesseiro ou cobertor, devido ao fato de ter
perdido a respiração por alguns segundos durante o sonho; mas o que
importa é que isso me marcou e ficou inesquecível para mim até hoje,
assim como outros que vou contar a seguir.

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Frango Robô

Em uma fase da vida do ser humano onde muitas coisas ainda não
fazem sentido a nossa consciência tenta criar suas próprias conclusões. Eu
particularmente não gosto muito das teorias de Melanie Klein e suas
influências Freudianas, como por exemplo de que o caráter é inato
(biblicamente o caráter pode ser moldado) mas se tem algo que eu
vivenciei e garanto por experiência própria que faz sentido é a de que o
que a criança é exposta desde os primeiros minutos de vida vai influenciar,
e muito, as suas preferências pessoais.
Enquanto pensava em como escrever sobre este pesadelo
específico me veio à mente a abertura de um desenho animado adulto
que assisti muito cujo nome está no título dessa seção. Neste programa,
um cientista maluco aprisiona um frango à uma cadeira com apetrechos
“a la Stanley Kubrick” obrigando o animal a assistir os episódios sem
sequer poder piscar os olhos. Daí vem o que posso dizer como minha
sensação de ter ido ao cinema pela 1ª vez e o impacto que isso causou na
minha mente infantil.
Como mencionado anteriormente eu tinha apenas 4 anos quando
fui ver o tal filme e o conteúdo em si não é ruim, ou pelo menos não
deveria ser traumatizante para uma criança. No entanto, já na volta para
casa, toda a vez que eu fechava os olhos me vinha à mente a imagem
daquele robô dentuço com um coração desenhado no peito igual ao
Chapolin, mas com orelhas de coelho em vez de antenas. Fora o barulho
que ficou reverberando por horas daquele áudio cheio de eco que saía do
som da sala de cinema.
A noite o pior estava por vir. No sonho era eu quem estava no lugar
do Cebolinha em uma cena quando encostam em um monstro na floresta.
Eu me sentia arrepiado de frio quando o tal monstro se levanta e começa
a andar, e eu instintivamente segurando nos chifres dele tentando não
cair. Logo em seguida eu via um brilho igual ao da cena quando o tal robô
consegue o coração, só que em vez de ser algo bom estava muito ruim
pois eu simplesmente descubro que o monstro sumiu e eu começo a cair
de uma altura enorme. Vou caindo, caindo e...

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Acordo assustado. Eu olho e só percebo que estava em cima de uma
colcha de retalhos. Vários pedaços de pano estampados costurados uns
nos outros e a cama ao lado de um berço onde deveria estar a Bianca se
não me falha a memória. Só sei que a experiência foi traumática pois foi
muito rápida e curta, porém não esqueço até hoje, mesmo 4 décadas
depois.
Sonhos com voos e quedas sempre fizeram parte da minha história.
Tive muitos outros parecidos, em que voava com cuidado para não
encostar em fios de alta tensão, ou outros de quedas de lugares altos.
Acho que muitos têm sonhos semelhantes, mas esse até hoje me vem à
lembrança até quando assisto Monica Toy com o Nathan, por exemplo.

Deu ruim no desafio

Em um período em que eu já conhecia alguns filmes e entendia a


diferença entre a realidade e a ficção, um evento adverso me abalou
demais. Mesmo estando com apenas 6 anos eu assistia, muito
provavelmente no primeiro domingo de fevereiro de 1986, ao programa
Fantástico pouco antes de dormir. Foi quando ouvi Sergio Chapelin fazer
uma chamada sobre um acidente aeroespacial que me chamou muito a
atenção. Eu estava na sala da casa da minha avó materna, que morava no
bairro Rancho Novo em Nova Iguaçu/RJ. A TV ficava próxima à porta da
sala e havia uma outra porta de entrada pela área de serviço; neste dia
dormi no sofá da sala, ao lado da TV, e curiosamente estava dormindo de
bruços. Esta curiosidade se dá pelo fato de que, conforme pesquisas sobre
o assunto, a atonia, além de ocorrer mais em homens, quase sempre está
associada à posição, normalmente quando dormimos de barriga para
cima.
Durante esse pesadelo eu me via na Flórida presenciando a
decolagem do ônibus espacial. Sentia na pele a vibração dos motores da
aeronave e o som reverberava de forma intensa. Era incrível a sensação,
mas que no instante seguinte se tornou em algo sinistro. Tudo parecia ter
congelado ao meu redor enquanto eu olhava para cima vendo a nave
explodir logo acima da minha cabeça. O som cessou de uma forma que até
o vento que eu sentia bater já não ecoava um decibel sequer. Não ouvi

34
explosão nem nada; apenas os destroços que começavam a despencar e
eu não consegui achar abrigo algum. Instintivamente me posicionei
deitado no chão de bruços com as mãos sobre a cabeça, mas ainda assim
começava a sentir pedaços de fuselagem queimando minhas costas. Por
alguns segundos eu tive medo de morrer; acho que foi a minha primeira
vez em que experimentei algo assim, como dor ou coisa do tipo enquanto
ainda estava adormecido, ao ponto de temer pela minha vida.
Logo em seguida abri os olhos e percebi que tudo não passou de um
sonho. Ou, no caso, um pesadelo. Já tivera outros antes, mas tudo aquilo
que senti era diferente pois houve um novo agravante: eu percebi que
estava paralisado! Eu respirava, virava os olhos, enxergava o armário da
sala da minha avó, os livros na estante..., mas quem disse que eu
conseguia me mexer? Aquela sensação dos pedaços nas minhas costas
ainda continuava a latejar como se tivessem acontecido de verdade, mas
foram sumindo gradativamente.
Não me lembro como foi o restante daquela noite, mas o que vi e
senti, mesmo que apenas na minha imaginação inconsciente, nunca mais
me deixou. E sim, um pouco do que aconteceu naquele final de semana
era real e me fez nunca querer ser astronauta quando crescesse.

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Admirável Mundo Novo

Uma mistura de sonho e


realidade; um misto de coisas a serem
evitadas e como enfrentar outras. Nesta
fase de relatos está o meu “Fantástico
Mundo de Bobby”, onde situações do
dia a dia e rotinas comuns se
transformavam em coisas fantásticas,
onde a imaginação falava mais alto do
que a lógica ou a razão.
Neste capítulo conto situações
pela visão de uma pequena criança,
desde bebê até o final da infância, e que
muitas delas se tornaram em medos e
fobias que carrego na minha
personalidade até os dias atuais. Figura 6. A Galinha Magricela (1983)
Diferentemente do capítulo anterior,
onde quem comandava era o meu eu inconsciente, agora quem ditava as
regras era o eu real e consciente.

Organofobia ou o quê?

Uma das coisas mais estranhas ao observar o mundo na minha


primeira infância eram as coisas eletrônicas. Não era um medo em si, mas
uma fobia de quando elas não funcionavam como deveriam. Talvez
detalhando os casos isoladamente consigam entender o que eu quero
dizer.
Quando eu completei 2 anos havia uma TV grande em casa que
ficava em cima do guarda-roupas no quarto. Pelo que me lembro, até
então não tivemos uma TV na sala até eu completar 4 anos; já TV em
cores fui ter (pasmem) com 17 anos. E esta TV pegava apenas 2 canais
satisfatoriamente e o que eu mais assistia nesta época era a Globo. No
ano seguinte, quando com 3 anos a Manchete foi inaugurada, passou a ser
meu canal favorito. Mas o problema não era esse, mas sim o sinal. Alguém

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me disse na época a palavra “fantasma” para dizer que a sintonia não
estava boa e a imagem se mostrava borrada ou coisa do tipo. Pronto! Foi
criada ali uma fobia, cujo desespero da mente de uma criança entre 2~3
anos criava a ideia de que havia espíritos que influenciavam a
programação. Para piorar, o medo maior era ficar sozinho com aquele
tubo de madeira com aquela redoma de vidro que “prendia” os
fantasmas, mesmo quando desligada.
Passei anos, talvez quase 2 décadas, com meu corpo todo se
arrepiando de medo de ficar sozinho em um cômodo à noite com um
aparelho desses por perto. Inconscientemente essa sensação vem à tona
até hoje, mesmo depois de adulto, com um medo danado da TV ligar
sozinha. Aliás, já tive vários pesadelos com TVs que, mesmo tiradas da
tomada ainda permaneciam ligadas!
Um último problema imaginário que eu tinha era com TVs
defeituosas. Os televisores antigos eram chamados de “preto-e-branco”
quando na verdade eram seus raios azulados que exibiam as tonalidades
de 50 tons de cinza. Só que, por ser extremamente analógico, seu sistema
era propenso a problemas dos mais variados; o desgaste natural e a
fragilidade das placas e transístores faziam com que defeitos fossem
frequentes. Daí, bastava uma TV começar a escurecer a tela, perder o
brilho ou dar uma pinta de que a tela ia começar a fechar (o diâmetro de
visão ia diminuindo a depender do tipo de monitor) que eu entrava em
pânico. É algo que pode parecer uma bobeira sem sentido, mas que para
mim era terrível! Jamais que eu queria estar num lugar onde uma TV tinha
um defeito desses – me dá calafrios só de lembrar.

Música Para Meus Olhos

Eu apreciava demais ouvir música enquanto observava os discos


girarem ao mesmo tempo em que estava focado contemplando a agulha
deslizar pelos sulcos dos vinis. Algumas vezes retirava todo o volume para
ouvir apenas o som analógico que saída do atrito da agulha na mídia em
execução, ficando com os ouvidos bem pertinho do aparelho, mesmo com
as caixas de som desligadas.

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O ritual de se ouvir música analógica servia tanto para os LPs quanto
para as fitas K7. Em ambos os casos a música estava armazenada em
dispositivos que, para serem executadas, ficavam girando, girando... No
caso das fitas magnéticas, havia algumas que só de se olhar a quantidade
de fita em um dos lados já se saberia dizer em que faixa estaria. Se fosse
alguma fita que ouvia várias vezes isso acontecia com certeza.
No entanto, há alguns detalhes muito curiosos sobre mim quando
falamos de LPs e K7s. Um deles é o desespero absurdo que batia na minha
cabeça quando, por algum motivo, a rotação ou a velocidade da execução
não estivesse no padrão. Lembro que chorava demais quando, por erro,
colocava um 33rpm para rodar em 45. Não queira saber o que acontecia
quando uma fita embolava no leitor dos tocadores...
Outra fobia sem sentido era sobre pular faixas. Na minha cabeça as
músicas que não tocassem poderiam sumir ou, no caso de discos
arranhados, os artistas não conseguiriam cantar as próximas músicas.
Então, na minha mente, os álbuns tinham que tocar sempre primeiro o
lado A e depois o lado B para não afetar o equilíbrio ou coisa do tipo. Sim,
eu achava que isso também empenaria os discos.

Bolado na Balada

Eu gosto muito de doces. Gosto até hoje, inclusive – muito mais do


que frituras e salgados. E na minha época de criança eu lembro de ter tido
o privilégio de comer doces que não mais existem ou que mudaram as
receitas conforme o tempo foi passando. Chocolates, então...
Mas as histórias desse trecho têm a ver com um tipo específico de
guloseima doce: as balas. Estas, por sua vez, foram as responsáveis por
dois traumas específicos da minha vida.
A primeira delas é a chamada Bala Soft. Eu não sei o que passou na
cabeça dos meus pais de dar uma bala dessas para uma criança de 4 anos.
A essa altura eu acho que já adivinharam sobre o que vou contar, não é!?
O próprio nome da bala é um aviso de spoiler, pois a empresa que a
fabricava (a mesma que fazia o Ki-Suco) trocou o seu formato no final dos
anos 80 justamente para que não ocorressem casos semelhantes ao meu.

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Atualmente todas elas possuem um “furo” no meio da bala, justamente
para o fato de que, caso ocorra um engasgo, a pessoa consiga respirar até
ela dissolver por completo, ser cuspida para fora ou engolida de uma vez.
A segunda situação foi quando fui com minha mãe num lugar
chamado Casa Mattos. Era uma loja tipo Lojas Americanas com foco em
materiais escolares e de escritório. Mesmo não estudando ou indo a
creche alguma eu lembro da minha mãe ter feito várias atividades
manuais comigo entre 3 e 4 anos pois neste período eu já sabia ler. E lá,
além de vender artigos de papelaria, tinha também um setor só de balas.
Eram balas de todo o tipo, muito coloridas; e com certeza chamavam a
atenção de qualquer criança. Só que, de repente, entre uma prateleira e
outra, olhei para os lados e não conhecia ninguém. A loja era bem
movimentada, no centro da cidade, e percebi que minha mãe tinha
sumido. Ou será que fui eu quem saiu de perto dela? Enfim, eu estava
perdido. E agora?
Bem, eu fui encontrado, sabe-se lá quantos minutos se passaram,
mas tudo o que estava ao meu redor naquele momento ficou gravado na
minha memória: os rostos das pessoas, a atendente que pesava as balas,
as cores das embalagens, o visor da balança, a escada de 3 degraus que
levavam para a parte superior onde tinham cartolinas, o tamanho e os
espaços divididos por prateleiras de vidro com pontas esverdeadas que
separavam os tipos de doces, o cartaz de propaganda do caramelo de leite
Nestlé que estava na coluna branca do meio da saída lateral da loja...
posso dar detalhes de tudo que tinha ali – menos falar onde estava minha
mãe quando me perguntavam! Só sabia que ela estava com um casaco de
moletom liso, mas nem isso eu sabia falar. Mas, graças à Deus, a menina
do setor me manteve perto dela até minha mãe aparecer e o desespero
passar a ser alívio.

Anjo Bom
Eu já tinha 4 anos e queria parecer responsável e maduro. De
alguma forma convenci meus pais a me presentearem com um pet; um
pequeno filhotinho vira-latas a quem dei o nome de Coquinho. Este nome
veio do cachorrinho da Isabel, uma personagem da novela Chispita que
passava no SBT na época.

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Eu não tinha noção, por motivos óbvios,
dos cuidados que deveriam ser dados a um ser
vivo. Um bichinho que precisava de água, de
alimento de banho e exercícios não era lá uma
boa ideia depender de uma criança. As tampas
de latas de leite em pó eram preenchidas com
leite e pedaços de pão, os locais onde o chão
era molhado por ele eu tinha que
eventualmente passar um pano de chão e a
sensação daqueles dentinhos fininhos na
minha mão são alguns dos flashes anteriores
ao clímax desta história específica. Ah, o
cheirinho azedo do hálito daquele filhote é
outra lembrança que não esqueço nunca, Figura 7. Fábio no tal quintal (jan. 1980)
além da mistura de cores daquele vira-latas
minúsculo com tons de marrom e branco.
De alguma forma eu criei um vínculo com o bichinho. Assistia a
desenhos animados com ele no meu colo e ficava preocupado com ele
sozinho no quintal quando íamos para a igreja. O quintal era um espaço de
3m2 no meio do “S” do beco onde ele ficava boa parte do dia. A dois
metros de distância dali havia uma mangueira no quintal do vizinho e que,
eventualmente, enchia o quintal de folhas e flores pequenas,
principalmente no meio do ano. Este não é uma informação isolada pois é
um ponto importante.
Eu não sabia e nem me lembro de ter percebido que o Coquinho
estava ficando doente. Pelo tamanho da barriguinha dele talvez estivesse
com vermes ou coisa do tipo, pois provavelmente ele não foi vacinado –
afinal, estamos falando de um vira-latas num beco da baixada fluminense.
Pois em uma dessas ausências lembro de ter chegado e não ter ouvido as
unhas das patinhas dele arranhando a porta de madeira, que separava a
porta da pequena copa da casa para o minúsculo quintal. Isso sempre
acontecia quando a gente saía e voltávamos para casa quando ele ficava
sozinho. Minha mãe falou que ele estava dormindo, mas por algum
motivo não o vi naquele dia. Minha mãe deve lembrar o que aconteceu
naquele dia com mais detalhes; só sei que durante a noite ventou
bastante e deve até ter chovido.

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Na manhã seguinte uma das primeiras coisas que fiz foi procurar o
meu cãozinho. A cena foi de quebrar meu coração; eu o vi deitado de
lado, com a boca semiaberta e a língua de fora. Não se mexia, não fazia
nada; seus olhos estavam cheios de pedaços de flores de mangueira e o
corpo dele já estava meio inchado. Engraçado, pois eu não questionei o
porquê de ele ter morrido; sim, eu já sabia do que se tratava. Eu comecei
a brigar com a minha mãe por não ter colocado ele para dentro, de não
ter protegido ele da chuva ou das folhas da árvore. Eu chorei demais e
senti muito a falta dele pois já estava acostumado com a companhia de
um cachorrinho indo de um lado para o outro pela casa.
Não me lembro de como fizeram para desfazer do corpo do
cachorrinho, talvez enterrado no terreno baldio que havia no final da rua,
depois da rua do Ramalho, onde anos mais tarde se tornaria um campo de
futebol e mais recentemente um condomínio; só sei que eu teria outro
cachorrinho só 2 anos depois, já morando em outro lugar.

Dorme, Dorme, Dormideira...

Vou voltar um pouquinho no tempo pois depois vão entender o


porquê de não ter contado essa história antes do Coquinho. Na época em
que eu ainda era filho único uma das coisas que eu gostava muito era ir ao
supermercado. É loucura pensar nisso pois crianças não costumam
guardar esse tipo de lembrança na memória, e muito menos nesta idade.
Meu pai não tinha carro, mas sempre tinha quem o levasse para
supermercados como o Rainha, Disco ou o CB do centro de Nova Iguaçu.
Abrindo um parêntese aqui, olhando agora com cuidado, é engraçado
saber que redes de supermercados não duram muito tempo! Mas, enfim,
como eu era bem pequeno, ia dentro dos carrinhos e, conforme os
produtos eram jogados lá dentro eu ia “arrumando” as compras do meu
jeito.
Uma dessas noites, provavelmente em um Sábado minha mãe não
foi junto com meu pai, mas eu fui. E com a gente, dessa vez, foram
também o meu tio Ricardo e o irmão dele, o Marcão. Eles me colocaram
dentro de um carrinho das Sendas como sempre faziam e eu estava lá
bem tranquilo. Não tenho certeza se era em São João de Meriti pois talvez

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estivessem voltando de um ensaio ou coisa parecida em Anchieta, mas
talvez tenha sido na filial das Sendas ao lado do Center Iguaçu mesmo. O
fato é que começaram a encher o carrinho e alguns pacotes de arroz,
farinha e açúcar, e minhas perninhas ficaram apertadas, sem muito
espaço para me mover. Foi daí que, depois de alguns minutos, comecei a
“perder os movimentos”, sentindo uma coisa esquisita nas minhas pernas
que eu nunca havia tido antes: era uma parestesia ou hipoestesia, mais
conhecida como dormência.
Imagine a cena: uma criança de 2 anos, que já era meio chorona,
começar a sentir isso? Bateu o desespero e comecei a chorar
copiosamente! O evento ficou registrado na minha memória desta forma,
pois só fui entender realmente o que era isso apenas 4 anos mais tarde. Só
me lembro de ser pegado no colo e tentarem entender o que estava
acontecendo e eu não conseguia explicar o que era. Todo e qualquer
registro do que aconteceu naquele dia se apagou, mas mais tarde houve
uma nova situação semelhante.

...Para Acordar Segunda-Feira

Morávamos em Itaperuna na virada de 1985 para 1986 na cobertura


de um pequeno apartamento nas margens da BR-101, logo na entrada da
cidade. Das grades do quintal bem grande que havia ali, tínhamos a vista
do Rio Muriaé que, no período da tarde, era espetacular, principalmente
na hora do pôr-do-sol. E era uma sexta-feira com o sol avermelhando o
horizonte enquanto eu participava de algumas brincadeiras bem
agradáveis com minha mãe e meus irmãos, como contar os carros que
passavam e suas cores, por exemplo.
Eu estava sentado no muro, segurando nas barras das grades de
proteção, quando minhas pernas em um determinado momento
começaram a formigar até eu perder toda a sensibilidade. Lembro que
minha mãe teve que me pegar no colo e me levar até à sala, pois eu não
conseguia ficar de pé. Mal sabia que o pior ainda estava por vir.
Quando comecei a sentir a fase daquelas “picadas” minha mãe
explicou com toda a calma do mundo que aquilo era normal. Foi falando e

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pedindo para eu não me mexer senão seria pior ainda a sensação. Só
então eu entendi o que aconteceu e aprendi sobre o que era a dormência.
Não chegou a ser um trauma de infância, mas toda vez que eu vejo
um rio correndo num final de tarde eu tenho a sensação de que minhas
pernas estão formigando – talvez deva procurar atendimento médico
nesse caso.

Parques e Recreação

Como qualquer criança normal há um fascínio em volta dos parques


de diversão. Independentemente da idade das pessoas ou da localização
geográfica das mesas, as atrações desses lugares chamam a atenção de
qualquer um, quer sejam as mais jovens ou até as que já estão indo
“ladeira abaixo”, mas que ainda assim possuem um espírito infantil. E,
como era de se esperar, os brinquedos coloridos, os barulhos
característicos e os aromas das guloseimas exclusivas de locais desse tipo
são feitos com o objetivo de atiçar todos os sentidos. E para quem ainda
está na fase em que quase tudo envolve experimentação, é praticamente
impossível ver os brinquedos coloridos e não querer tocar neles ou de
sentir o cheiro das comidas de festa e não querer provar nem que seja
apenas uma delas.
Pensando nisso me veio à lembrança de um momento específico da
minha infância, quando com 2 anos fui levado a um desses parquinhos.
Este especificamente ficava bem perto de casa, a 2 quarteirões de
distância, num terreno enorme que fica justamente na esquina da Rua do
Ramalho com a Rua Dona Clara de Araújo. Da última vez em que passei
por ali havia uma oficina mecânica usando o espaço, que ainda é grande o
suficiente para abrigar outro parque do mesmo tamanho lá dentro, se
fosse o caso.
Lembro que lá havia brinquedos mais radicais, mas por motivos
óbvios eu não poderia usufruir nem se fosse acompanhado do meu pai,
muito menos sozinho. Já dentre os que eu pude ir lembro que havia pelo
menos dois que brinquei, que foram uma centopeia meio estranha e um
carrinho de “bate-bate” chamado de autopista. Já para poder ir sozinho
havia o carrossel, que tinham os bichinhos tradicionais que subiam e

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desciam além de uns carrinhos para crianças menores, com volante e
tudo!
O problema começa quando precisamos ir embora. Agora mais
velho entendo muito bem que dinheiro não é infinito e que as
brincadeiras nestes lugares não são gratuitas; a questão é tentar fazer
uma criança de 2 anos entender e convencer de que não dá mais para
continuar ali por mais que ela queira. E foi assim que eu me lembro de um
dos dias em que mais chorei na minha vida.
Eu não me lembro de ter sido pirracento ou de ter me jogado no
chão querendo algo antes daquele dia, mas do mesmo jeito que vejo meu
filho hoje eu também deveria estar desobedecendo ordens contrárias à
minha vontade por não entender o porquê de termos de fazer algo que
não queremos. No caso, o que de mais teria de ficar ali e fazer coisas boas
e legais um pouco mais em vez de apenas ir embora?
Não demorou muito para que meu pai fizesse valer a sua vontade e
me pusesse no colo mesmo me contrariando. Algumas das coisas que não
me saem da memória sobre este dia específico, além de estar usando uma
camiseta de palhaço bem colorida, foi enxergar o final da tarde, com o sol
se pondo atrás da serra de Madureira e o céu alaranjado, observar uma
luz que havia no ponto mais alto do parque que, da porta da casa dos
meus avós, ainda dava para enxergar acesa ao anoitecer e as músicas que
tocavam lá sumindo aos poucos enquanto os passos apressados do meu
pai me carregavam de volta para casa.

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Lar Doce Lar

Se há uma lista das coisas mais voláteis da minha vida, um desses


itens com certeza seria sobre onde morei. Toda vez que penso em infância
as lembranças estão quase sempre associadas a eventos ocorridos nas
casas dos meus avós. Mas, e o nosso lugar onde nós crescemos e nos
desenvolvemos? Bem, desde cedo eu aprendi a nunca me apegar e
mesmo depois de grande ainda não me sinto à vontade em dizer que
moro onde gostaria de morar.
Sabe aquele sentimento de conforto de estar em um lugar ou a
segurança de que ali vai continuar a existir até o final da minha vida? Pois
é; nunca tive.
Neste capítulo estão todos os locais onde foram minha casa – pelo
menos todos os que tenho lembrança, pois foram muitos! Diferentemente
do padrão, onde as pessoas crescem em determinado lugar, eu e todos os
meus irmãos sempre tivemos que nos acostumar a mudanças; talvez isso
explique o porquê de cada um de nós estarmos em pontos tão distintos
do planeta neste exato momento.

Jardim... Que Jardim?

Lembram lá no início quando contei como minha estrutura familiar


foi construída? Então, o fato de ter um casamento relativamente precoce
levou meu pai a morar em uma extensão da grande casa de meus avós. O
famoso “puxadinho” tinha um quarto, uma sala, uma cozinha e um mini
banheiro. Conforme os anos foram passando o casal se tornou um trio,
depois um quarteto e, quando o 5º membro surgiu foi necessária uma
intervenção na nossa zona de conforto e nos mudamos.
Uma casa pequena em um terreno da família; um local que anos
antes era apenas uma parte de um imóvel maior, com um quintal bem
grande e até um pequeno jardim. Conforme os filhos foram formando
famílias cada pedaço deste terreno foi subdividido e compartilhado entre
as novas construções. Daí surgiu o que é chamado até hoje como beco.

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As minhas primeiras
lembranças desta casa
especificamente falando,
se compõem apenas de
flashes; talvez por motivos
óbvios, visto que eu
comecei a registrar tudo
na memória apenas Figura 8. Primeiro Endereço (foto de jan. 2022)
quando comecei a andar,
entre 7 e 9 meses. Somente a partir dos 2 anos é que as memórias
começam a fazer parte de algum contexto, com situações e ocorrências
envolvendo a mim e as pessoas ao meu redor.
Logo de cara já digo sobre os tacos de madeira no quarto e na sala,
o piso vermelho de azulejos poligonais já mencionados anteriormente.
Lembro de uma banheira e a sensação de sentar-se nela, com água pela
metade e a lombada que tinha perto das minhas nádegas. As paredes da
sala branca e um armário pequeno, na verdade um rack vertical de
madeira onde ficava o aparelho de som.
Por ser uma das primeiras casas de um beco, cujas janelas do quarto
e a porta da sala davam diretamente para o corredor de entrada do
pequeno condomínio, não havia muita privacidade. Aliás, nos meus
primeiros 16 anos de vida não me lembro de ter isso, uma vida que não
fosse compartilhada com outras dúzias de pessoas – a grande maioria da
mesma família. Ali tudo o que acontecia era público.

Zelando Pelo Templo

O segundo local em que moramos era nos fundos da mesma igreja


onde meus pais se casaram. Meu pai era pedreiro e trabalhava em obras
por toda a zona sul da capital fluminense enquanto para minha mãe era,
além de mãe de 3 crianças pequenas, agora também zeladora do templo.
Os cultos regulares ocorriam 4 vezes por semana, isso sem contar os
inúmeros eventos que eventualmente eram ministrados ali, como
semanas inteiras de cultos, vigílias que atravessavam madrugadas ou série

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de conferências que perduravam por períodos maiores. Somado a isso, a
igreja vez ou outra passava por pequenas obras, além do fato de estar
localizada em uma rua onde não havia asfalto à época; ou seja, poeira em
tempo seco e lama em clima úmido. Para nossa alegria, este período
durou apenas um pouco mais de 1 ano e meio, pois antes de 1986 já
iríamos nos mudar para outra cidade no interior do estado.
A casa ficava no alto, bem nos
fundos do terreno da igreja. Não
tinha muito espaço, havia uma
entrada que servia de sala com uma
cozinha no final próximo à parede e à
esquerda a entrada para o quarto, do
mesmo tamanho da sala/cozinha,
mas com um banheiro como se fosse
uma suíte – apesar de ser o único
banheiro do local havia os banheiros
masculino e feminino no térreo Figura 9. Segundo Lar (foto de jan. 2010)

usados nos cultos regulares.


Deste período lembro de muitas coisas, de ter aprendido a andar de
bicicleta, de aprender a cantar dividindo vozes, a gravar em fitas cassetes
várias histórias e músicas e de ter um respeito enorme pelas coisas da
igreja. Ajudava de certa forma a minha mãe enquanto ela limpava o
templo, como tirar o pó dos móveis, lustrando os bancos e até encerando
o chão de toda a nave arrastando meus irmãos puxando eles com um
pano pelos corredores.
Na época havia um órgão, um instrumento musical de sopro tocado
como um piano, mas com pedais que ditavam o volume e intensidade dos
sons conforme a força e velocidade que fazíamos nos pés. Desse
instrumento musical me lembro que, vez ou outra, eu me encantava com
o som que algumas pessoas conseguiam tirar dele, como o Dr. Issias, por
exemplo, que tocavam ele de forma diferente do que a Irmã Zilma fazia
nos cultos. Aliás, essa irmã conseguiu fazer com que ambos os filhos se
tornassem pastores – um deles atualmente no exterior! Futuramente eu
iria tentar fazer faculdade de Teologia, isso fica para outro momento, mas
a questão musical me acompanharia por toda a minha vida dali em diante.

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Estado de Sítio

Meu terceiro lar foi um período muito mais curto, mas cheio de
situações e lembranças interessantes. Em Bacaxá, região do município de
Araruama/RJ, moramos por algumas semanas em um local de sítio, no
interior do estado. Estrada de chão, barro batido, casa simples e muitas
árvores. Foram dias de muito ar puro, de caminhadas e brincadeiras na
grama; bem diferente de tudo que eu já havia experimentado. Não que eu
não conhecesse ou não tivesse familiaridade com a natureza, pois já
acampava e subia serra desde sempre, mas estar ali era bem diferente,
ainda mais com outros 3 irmãos “postiços”. Mas, logo a gente mudaria
mais uma vez, mas dessa
vez para bem mais
longe.
Tenho algumas
lembranças desse
período e uma prévia
semelhante de como
seria 6 meses mais tarde Figura 10. Local aproximado em Bacaxá (foto set. 2011)

em outro. Algumas dessas lembranças são bem ruins, como a sensação de


ter fome sem ter o que comer. Eu lembro de não poder comer o quanto
queria nas refeições, principalmente no café, onde algumas vezes tive que
comer mingau de leite de soja e pão caseiro. Outra situação ruim era de
ser obrigado a dormir à tarde. Todas as crianças dormiam em lençóis pelo
chão e eu tinha que fingir que estava dormindo para não levar bronca.
Outra situação estranha era o transporte. Parece que não havia
muita opção de ônibus e os caminhos eram de barro e esburacados. Os
horários demorados e as distâncias também não eram bons para uma
criança tão pequena encarar. Calor, poeira, falta de luz, insetos; tinha de
tudo um pouco ali e não apreciei essa parte da estadia.
Nem tudo foi tão ruim assim nesse período. Tiveram momentos de
descontração, brincadeiras e entretenimento entre os adultos e as
crianças. Aprendi uma música muito doida que até hoje não tenho ideia
da origem (ou da letra real dela) que o pai das outras crianças ensinou.

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Aliás, música foi outra coisa legal, pois eles tinham alguns LPs que eu
nunca tinha ouvido, principalmente os de um grupo que eu já gostava e
passei a gostar ainda mais chamado Heritage Singers. E as crianças tinham
brinquedos diferentes também, como um bumerangue e um frisbee que,
infelizmente, foi parar no telhado da casa e não conseguimos pegar de
volta.

Alagados, Trenchtown

Minha quarta casa foi o


primeiro apartamento. Em
Itaperuna, quase divisa com o
Espírito Santo, foi um período
mais especial. Talvez tenha sido
a melhor fase de todas, mesmo
sendo outro período curto, para
a família como um todo. Lembro
de muitos, mas muitos detalhes,
de como era a cidade; tanto da
avenida principal, onde havia
uma praça dividindo as pistas,
quanto das ruas transversais.
Muitas das ruas eram sem Figura 11. Endereço em Itaperuna (foto nov. 2011)
asfaltamento ou com aqueles
paralelepípedos, mas muito limpas e bem cuidadas – mesmo com algumas
enchentes que aconteciam na época em que moramos lá (entre o Natal de
1985 e a Páscoa de 1986). E o apartamento era enorme, uma cobertura
em um prédio na entrada da cidade, oferecida pela família do prefeito à
época após uma gentileza feita à primeira-dama gestante. Uma história
que não me lembro os detalhes de como aconteceu, mas que resultou em
um dos períodos mais agradáveis da minha vida.
Sete coisas marcantes para mim neste período foram:
1. As idas e vindas para Itaperuna – Lembro de pelo menos 2x ter ido
do Rio de Janeiro para Itaperuna de ônibus e vice-versa. Em todas
elas tenho detalhes de onde nos sentamos, o que comemos no

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caminho, o que meu pai conversava com o motorista e até uma vez
em que havia uma TV dentro do ônibus passando filmes em VHS. Da
primeira vez eu levei meus discos preciosos em uma simples bolsa
de papelão de supermercado e minha mãe, a meu contragosto,
colocou no bagageiro acima das nossas poltronas do lado direito do
ônibus. As janelas estavam abertas e em um dado momento o
vento que entrava no ônibus derrubou a bolsa no chão e por sorte
meus LPs do Trem da Alegria e do Balão Mágico não se quebraram
com o impacto. Na segunda vez as cadeiras ficaram nas poltronas 3
e 4, bem do lado do motorista; e eu ficava muito empolgado
quando o hodômetro passava dos 80 – que coisa, não!? Já na
terceira viagem passaram um filme sobre o fim do mundo, com um
vulcão em erupção e gente desesperada atravessando pontes de
madeira, entre outras coisas. Fiquei com pavor e aquele filme me
traumatizou – afinal, eu tinha acabado de fazer 6 anos apenas.

2. O final da novela Roque Santeiro – Haviam televisores a cores


espalhados pelo Centro da cidade e ficavam ligados nas praças,
principalmente próximos à rodoviária e na avenida que ia até o
bairro Nova Cidade. No dia da exibição lembro que saímos da casa
do “Thuninho”, um amigo que fizemos na igreja de lá, onde
havíamos participado de um culto de pôr-do-sol e fomos andando
como sempre fazíamos. Fiquei curioso demais do porquê de tantas
pessoas na rua naquela noite e eu estava apertado para ir ao
banheiro! O percurso até em casa era longo e me lembro da
sensação de alívio quando finalmente cheguei no apartamento.

3. Uma casa de amigos perto do Rio Muriaé – Eu gostava muito


quando íamos nesta casa, pois lá tinha um pouquinho do que
vivemos em Bacaxá. Esta tal casa era bem arborizada, no quintal
tinham árvores frutíferas, ouvíamos o barulho do rio passando e
tinha até um papagaio que fazia as gracinhas dele. Tomei muitos
sucos lá, como de caju e carambola, ouvia muitas histórias e até a
briga da mãe com o tal Thuninho que conseguia tomar banho em
exatos 2 minutos. Foi lá que, em uma dessas visitas, o Eliton bateu a
cabeça em uma quina de um protetor de ar-condicionado e fez um
galo na cabeça que me apavorou. Infelizmente não seria a única vez

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em que me apavoraria de ver o Eliton machucado ou depois de
aprontar alguma.

4. Coisas que aconteceram em casa - Apesar de termos morado no


período de verão nós passamos um pouco de frio. A casa era
revestida de cerâmica e tinha uma reverberação acústica que
qualquer som refletia pelo apartamento todo. Eu gostava muito das
bananas com canela que minha mãe fritava (tinham muitas na
região) e de tomar banho no tanque externo no quintal. Uma vez a
Bianca, na semana em que fez 3 anos, bateu o queixo no murinho
da entrada de lá e os dentinhos perfuraram a boca dela (cacofonia
detectada); foi um desespero ver o quanto ela sangrou aquele dia.
Ah, tinham uns colegas que fizemos à distância, hehehe... Eles
brincavam nos fundos do prédio, onde havia um terreno plano,
próximo a um morrinho, e faziam bastante barulho – mas nunca
descemos para falar com eles de perto.

5. A igreja ficava distante de casa – Toda vez em que íamos para a


igreja fazíamos um percurso de pouco mais de 2km. Não parece
muito, mas com crianças pequenas eram cerca de 40min a pé, entre
a entrada da cidade onde morávamos até o local a 2 quarteirões da
rodoviária. Algumas vezes meu pai estava viajando e minha mãe
não ia sozinha com 3 crianças para a igreja e precisamos fazer cultos
familiares mesmo. Mas quando íamos eu me lembro de ter cantado
no momento da música especial de alguns cultos e de ter quase
decorado toda a coletânea Cantar é Viver.

6. Parque de diversões – As lembranças que tenho sobre brincar em


parques são quase todas de três lugares: o parque da praça Santos
Dumont em Nova Iguaçu, o antigo Luna Park na Prata ou até o
saudoso Tivoli na Lagoa. Porém, sobre comidas de parque, como
maçã do amor, pipoca, algodão doce e milho, são do parque em
Itaperuna. Aliás, tenho um trauma de infância neste em específico,
pois, devido a enxurrada de propagandas sobre o refrigerante Pop
Laranja no programa do Bozo, eu desejava muito experimentar! E
foi lá que tomei pela 1ª (e última) vez o tal refrigerante. Horrível,
como diria a Paola Carosela. Por isso que, quando a Ambev foi
criada a Brahma resolveu deixar a Sukita e aposentar o tal Pop.

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7. Rio Caudaloso – Devido à proximidade com as margens do Rio
Muriaé por vezes acabamos indo pessoalmente molhar os pés nas
águas daquele rio. Tinham vários pescadores que trabalhavam por
ali e do alto do prédio podíamos ver eles lançando redes tentando
capturar alguns peixes. Mas, uma das coisas que me apavoravam e
que me impediram de efetivamente tomar banho neste rio, não era
o fato de não ser um rio tão calmo assim ou de ter correntezas e
histórias de pessoas arrastadas por ele; o meu maior medo era de
piranhas! Sim, havia na cidade alguns locais onde exibiam carcaças
desses animais às margens do rio e eu ficava apavorado só de
pensar na possibilidade de algum bichinho daquele morder minhas
partes. Mas a minha maior surpresa não era nem saber que tinha
piranha naquele rio, e sim de que faziam um caldo de piranha (já
que não tinha muita carne nesses tipos de peixe) e que, entre
outras coisas, diziam ser afrodisíaco.

Entre Canas-de-Açúcar e Petróleo

A quinta casa veio no segundo trimestre de 1986. O nome do bairro,


Parque Pecuária, já é um spoiler de como era a região dele; porém, a
localização do meu novo lar era bem privilegiada, beirando a avenida
principal, que começa bem no centro da cidade e se torna a RJ158 mais
para frente, beirando o Rio Paraíba do Sul chegando até São Fidelis. Bem
próximo dali alguns anos depois, seria o palco de campais de retiro
espiritual da Igreja Adventista, as últimas antes da divisão da Associação
Rio de Janeiro em 3 subdivisões – e nunca mais se reuniriam para um
evento similar.
A casa era grande e o quintal era enorme. Alguns coqueiros na parte
da frente, mangueiras nas laterais e um pequeno pomar nos fundos. Eram
carambolas, pitangas, jacas, goiabas... Destaque para os pés de abiu, uma
frutinha docíssima, mas o que tinha de doce tinha de grudenta. Lembro de
várias receitas preparadas na copa da casa, como a mistura de frutas à
iogurte natural. Aliás, coisas naturais eram o que não faltavam, como
geleia real, própolis, mel em sachês, granolas e demais produtos do tipo.

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Creio que tinham a ver com o trabalho, tanto dos meus pais quanto de um
outro casal que dividia a casa com eles.
Pois é, apesar do tamanho, a casa era dividida com 2 famílias
numerosas, 2 casais com 3 filhos cada. Então era um pouco complicado
não ter conflitos e desavenças, ainda mais com 6 crianças pequenas – eu
era o mais velho e tinha apenas 6 anos! Fora os filhos de uma empregada,
também pequenos, que iam durante a semana para completar a patota.
Provavelmente as finanças eram compartilhadas de alguma forma e isso
foi o início do fim; havia outros agravantes que só fui saber décadas mais
tarde; mas, por enquanto, vou focar apenas nas percepções da minha
visão do que estava acontecendo com os olhos de uma criança que estava
no meio do fogo cruzado.
Eu gostava dali também; não tanto quanto Itaperuna, mas gostava.
Apesar de desde muito pequeno ter conhecido outras famílias e ter
entendido as diferenças entre a forma de criação de cada uma delas, até
então não havia convivido com outras crianças e seus pais por períodos
prolongados. Minha mãe fazia faxinas em casas de família desde sempre e
da mesma forma meu pai sempre esteve entrando nas casas dos outros
para realizar reparos e obras estruturais por ser pedreiro. E, por ter filhos
pequenos, ambos esporadicamente me levavam pra um lugar ou outro e
lembro de sempre notar as diferenças entre a minha casa e a casa dos
outros. Só que desta vez eu acompanhava não só a estrutura física ou
estética dos lares alheios, mas também a conduta dos patriarcas e a
condução na criação dos filhos. E para mim foi meio chocante –
lembrando novamente que eu tinha apenas 6 anos.
A maioria das crianças iam para creches. Nenhuma delas tinha mais
de 5 anos, então o único que estudava era eu. Fui matriculado na Escola
Adventista da cidade; e, curiosamente, a minha professora tinha o mesmo
nome e sobrenome da minha mãe! Entrei no ensino fundamental já quase
no meio do ano letivo e estava meio perdido. Até então tinha feito um
“prezinho” em uma escolinha de bairro e entrar em uma estrutura
daquele porte também foi um baque. Diferentemente do ano anterior,
cujo desespero me fez chorar quase que o dia inteiro, desta vez o choro
era apenas interno.
Eu não me adaptei muito bem. Eram muitas atividades, matérias
novas, livros complexos, dever de casa com trabalhos de corte, colagem,

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pintura, pesquisa... Gente, teve uma vez que nem minha mãe soube me
ajudar a responder - e eu sempre deixava para chorar em casa. Em uma
dessas eu devo ter feito uns garranchos no meu caderno de caligrafia e
não conseguia desenhar direito aquelas letras de jeito nenhum. Cara, eu
odeio letra cursiva; tanto que minha letra de mão é uma mistura de
Calibri, Arial e Times! Mas, modéstia à parte, minha letra depois dessa
passagem por Campos e até hoje é mais bonita do que quase todos que
conheço.
Sabe a questão que minha mãe não soube responder? Pois até hoje
não esqueci nem uma palavra da resposta, pois o meu primeiro trauma do
tipo foi ter sido o único na sala que não tinha respondido a questão “O
Que É Mantenedor?”. A resposta, cuja matéria era religião e falava de
Jesus, era exatamente assim: É Aquele que com seu amor nos ajuda a
fazer o que necessitamos ou precisamos.
Outros detalhes do período escolar na primeira série (no modelo
atual, o segundo ano) foram os lanches, na maioria das vezes sanduíches
de pão de forma, as matérias novas, como a de geografia, que insistiam
em focar na riqueza da cidade devido às plantações de cana-de-açúcar, a
extração de petróleo e as refinarias, e os percursos de casa à escola,
depois ao escritório e/ou visitas junto com meus pais e a volta para casa.
Às vezes eu ia para casa direto depois da escola, às vezes ficava esperando
minha mãe chegar – nem sempre vinham no horário – às vezes ia para o
Centro e passava na creche para buscar o meu irmão e outros 2 meninos
que moravam conosco... enfim, memórias de atravessar o Rio pela
passarela, os pontos dos ônibus da CTC (principalmente o 07 que pegava a
Presidente Vargas direto), os grampeadores e carimbos que eu fingia estar
trabalhando na parte da tarde entre outras coisas – inclusive de
reencontrar coleguinhas de classe em um dos sábados quando fomos na
igreja central.
Sobre o ônibus, com o tempo acabei me acostumando a pegar pela
manhã sempre no mesmo o horário o mesmo motorista e,
consequentemente, as mesmas pessoas dentro dele. Entre as vantagens
disso posso dizer que lembro de o ônibus chegar no ponto em frente à
casa e por não me ver aguardando ele terem buzinado e aguardado a
gente chegar alguns segundos depois. Só que essa vantagem específica
passou a ser uma desvantagem, pois passei a ser “visado” por uns

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engraçadinhos... foi quando em uma dessas vezes eu estava literalmente
descabelado e ouvi várias brincadeiras que nunca tinha passado por algo
parecido antes. Acho que foi a primeira vez em que tive vergonha em
público e me senti mal por isso.
Agora vou entrar em um assunto um pouco delicado. Não menciono
nomes para preservar a mim mesmo e os envolvidos, mas tem coisas que
preciso contar, pois acho muito importantes para serem ignoradas. Este
período morando em Campos dos Goitacazes pode ter sido curto, como
tantos outros da minha vida, mas talvez tenha definido toda a minha vida
e inclusive a forma de criar meu filho. As consequências de se tomar
certas decisões podem afetar tantas pessoas quanto as mencionadas na
teoria do efeito borboleta.
Meus pais possuem defeitos; muitos, vários. Não vejo problema
algum em dizer isto pois não existem pais perfeitos e provavelmente nem
eu serei o primeiro. Mas eu gostaria de focar em um dos acertos mais
importantes. Eles não criaram nenhum de nós com frescuras; não fomos
superprotegidos, não fomos privados de conhecer de tudo um pouco e
não nos impediram de ler, ouvir e assistir o que quiséssemos. Nosso
arsenal de materiais e mídias eram bem ecléticos; adquiriam tudo o que
nos interessávamos, dentro das possibilidades deles. Por serem cristãos
praticantes em teoria deveriam filtrar muita coisa do que chegava aos
filhos, e realmente filtravam o que realmente era importante filtrar –
tanto que eu jamais falei um palavrão sequer em toda a minha vida (a não
ser em outras línguas em forma de brincadeira, mas nunca ofendendo
alguém); mas nunca esconderam o mundo real de nós e isso foi muito
importante para mim.
Ao comparar minha família com algumas famílias da mesma religião
nessa época, comecei a notar que os outros coleguinhas eram um pouco
alheios ao meu gosto. Não sabiam do que eu estava falando, não tinham
brinquedos a respeito, não cantavam algumas músicas e para piorar
alguns diziam até que isso ou aquilo era “do diabo”. Aí, por estar
convivendo com uma dessas famílias sob o mesmo teto por um período
esta percepção ficou mais evidente e foi nessa época que eu descobri o
porquê de acontecer certas coisas no futuro. Como já falei anteriormente
eu não posso responder pelos meus irmãos em nenhum ponto
mencionado nesta publicação, mas para mim em particular, ter

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conhecimento e adquirir toda e qualquer informação,
independentemente de origem, só veio a agregar e evoluir a criança como
pessoa. É lógico que deve haver limites, justamente pela idade da criança,
e isso não depende de ser cristão, maçom ou qualquer ideologia; logo,
claro que para essas crianças não deve haver exposição a violência,
sensualidade ou coisas ilícitas, e isso não me lembro de ter sido exposto
até a adolescência; mas não há motivo para querer evitar que eu
conhecesse e me inteirasse com rotinas de crianças “normais” (leia-se
não-crentes).
Aí entra um mito que existe até hoje de que os adolescentes e
jovens questionam sua espiritualidade na fase adulta por conta do
conteúdo consumido na infância. Pode ser que haja uma prevalência
estatística com resultados negativos que apontem uma correlação entre
as duas coisas, mas elas não podem ser consideradas como regras. Aliás,
muitas das ocorrências de pessoas “desviadas” se devem justamente pelo
contrário: pessoas reprimidas que se soltam depois de grandes. Porém,
saindo da área religiosa, nenhuma dessas pessoas que conheço, que
receberam educação religiosa na infância, se tornou uma pessoa ruim
(marginal, fora-da-lei ou algum fardo gerando custo para o estado). Em
suma, equilíbrio em tudo é essencial: mostrar Deus e religião, sim, mas
mostrar a diversidade do mundo e a crença ou ausência dela que vai fazer
parte de todas as fases da vida de todo mundo.
Finalizando esta fase da vida, houve um desentendimento entre os
sócios da empresa. Além de trabalharem juntos também moravam juntos
e isso acabou com esta fase da nossa vida de forma abrupta. Lembro de
detalhes do dia da despedida, que começou no dia anterior. Eu nunca
havia presenciado bate-boca entre meus pais e na minha frente nunca
ouvi gritos ou brigas entre meus pais, mas eu tive que ouvir várias palavras
de uma outra pessoa que acusava minha mãe de várias coisas, inclusive de
gastar dinheiro do caixa para comprar biscoito para mim. Cara, quem era
ele para falar algo assim? Mas havia indícios de problemas muito piores e
que em poucos anos acabariam não apenas com a sociedade, mas com
ambos os casamentos.
Eu não me lembro quanto tempo exatamente durou este intervalo,
mas antes da próxima casa passamos um período dividindo espaço nas
casas das minhas avós, até encontrarmos nosso novo lar. Então, minha

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sexta casa, ou meu sexto lar, não foi algo bem fixo, ao ponto de não
separar uma seção apenas para ele neste capítulo, mas vou contabilizar
por ter algumas histórias já contadas neste livro sobre este período
específico.

Atari, Máquina de Escrever e Pizza

Minha sétima casa em 7 anos, durante os 2 anos seguintes ao


incidente em Campos, nós vivemos em um outro beco. No entanto, um
local bem melhor e mais espaçoso, arejado e dificilmente tínhamos
problemas com desastres naturais ou intempéries climáticas. Um período
até por volta dos meus 9 anos incompletos, que vivemos em relativa
calma e harmonia. Relativa pois na verdade muitas coisas aconteciam,
mas nós estávamos alheios aos problemas dos adultos.
O imóvel ficava na Rua Jaguari, a poucos quarteirões da casa de
minha avó materna. De certa forma lembrava um pouco o apartamento
de Itaperuna, apesar de térreo, pois tínhamos quartos separados e um
quintal relativamente grande nos fundos. Este foi o local onde muitas das
minhas descobertas do mundo foram aprendidas e lembranças
inesquecíveis estão eternizadas.
Em um primeiro momento frequentei uma escola particular, onde
cursei o final do segundo ano (antiga 1ª série) e o ano letivo seguinte em
1987. Mas as coisas não pareciam boas para todos e aconteceu de me
matricularem em uma escola pública a partir da 3ª série, a mesma em que
eu cursaria todo o restante do ensino fundamental. E, nesta escola, o
diretor era um senhor bem idoso, parecia o general Dureza, dos
quadrinhos do Recruta Zero; e ele deveria ser bem familiarizado com o
militarismo, pois lá entrávamos em fila, cantávamos o hino nacional,
hasteavam a bandeira e quem não se comportasse ficava de “corretivo”
depois da aula. Havia uma cantina onde as crianças com mais poder
aquisitivo compravam seus lanches e dividiam garrafas de 600ml de
refrigerante com os coleguinhas. Por várias vezes eu aguardava com
ansiedade o sinal sonoro da campainha, também muito similar às usadas
nos quartéis, tanto para a hora do início das aulas quanto no final delas.

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Eu ficava olhando para o relógio ansioso para que as aulas terminassem
logo; e não, eu não me lembro do nome de nenhuma professora, se era
mais de uma, se tinha professor homem no corpo docente nem quais as
matérias. Eu me lembro eram dos materiais, dos cadernos encapados com
plásticos vermelhos de bolinhas brancas, dos trabalhos de sala de aula que
fazíamos com cola e papel colorido além das brincadeiras no recreio que
incluíam passa anel, batatinha frita, piques e cantigas de roda. Às vezes
quem me levava ou buscava era a Suzana, uma moça que até hoje não sei
de onde saiu e nem para onde foi.
Vou explicar um ponto mais detalhadamente em um capítulo
específico sobre jogos eletrônicos, mas no Natal de 1986 chegou em
minhas mãos um aparelho fantástico e que mudaria muita coisa na minha
vida. Era um Atari 2600, um modelo de videogame ultrapassado para a
época (já tinha no mercado há 10 anos) mas que para uma criança era
mais do que o suficiente para apresentar o mundo da tecnologia a ela. O
uso era bem mais restrito do que seria hoje em dia, pois entre outras
coisas, a TV era um aparelho único para toda a casa e estar em casa com
os pais sem que eles controlem e monitorem era na maioria das vezes
apenas nos finais de semana e olhe lá. Mas nem só de videogame esse
período foi marcante.
No ano seguinte, no meu aniversário de 7 anos, ganhei da minha
avó uma Remington 25 marrom que me acompanharia por vários anos.
Era uma máquina de escrever, mas que eu usava para jogar e desenhar.
Sim, eu fazia desenhos, letreiros e tudo o que minha imaginação permitia.
Criava panfletos, montava jornais e inventava jogos de plataforma. Tudo
isso teclando e registrando em folhas de papel. Isso foi um problema mais
para frente, quando passei a fazer trabalhos escolares nela; mas aí é
assunto para outra hora.
Em 1987 também ganhamos uma vitrola portátil. Antes tínhamos
um equipamento da Grundig 343SL que, apesar do nome “compact
studio” não era lá muito funcional. E esta vitrola passou a fazer a trilha
sonora das nossas brincadeiras por toda a casa! E foi nesse período em
que a coleção de LPs e compactos foi aumentando cada vez mais, pois
quase todos os meses comprávamos algum álbum, tanto de histórias
quanto de músicas. E mais ainda, com as nossas idas à casa da avó Auta,
vez ou outra trazíamos os discos dos nossos primos e tios para enriquecer

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nosso acervo. Muito do ecleticismo, tanto meu quanto dos meus irmãos,
se deve ao fato de que não havia um padrão nesses discos que iam
chegando em nossas mãos. Acabávamos ouvindo de tudo, literalmente de
tudo, desde forró de Gonzaga, passando pelo carimbó do Pinduca, o funk
dos anos 70 com Superbacana, a MPB de Gal e fechando com trilhas de
filmes e novelas. Era um espetáculo! E, lembram que eu falei sobre uma
tal de Suzana (ou Zana, como chamávamos)? Ela levou uns discos da
Madonna e do Michael Jackson algumas vezes e daí passei a ouvir artistas
internacionais também.
Ainda sobre música, também nesse período que eu passei a
aprender violão de verdade. Até então, entre 3 e 6 anos, eu apenas
colocava o instrumento no meu colo e dedilhava as cordas como uma
viola havaiana, mas quando fiquei maior o meu braço já conseguia ter
tamanho suficiente para tocar de forma correta. Lembro que havia
dezenas de revistas da série “Violão e Guitarra”, e um em especial foi o
pontapé inicial da minha vida de instrumentista; era o método do Mario
Lucio de Freitas, um com uma capa onde um personagem gordinho
vestido com uma camisa branca e shorts verdes de suspensórios, segurava
um violão de cordas de nylon maior do que ele! Eu até hoje não entendo o
motivo pois apesar de meu pai saber tocar desde a adolescência ele nunca
me ensinou um acorde sequer! Em contrapartida o violão sempre esteve à
disposição, e ele nesse período trocou o que tinha por um outro com meu
tio cujo braço era bem menor e as cordas mais rentes. Isso foi
importantíssimo para o meu aprendizado pois a distância menor entre os
trastes me ajudava na hora de fazer acordes mais complexos.
Foi também durante este período que outra paixão surgiu na minha
vida: os Tokusatsus. Bem no comecinho de 1988 eu ainda assistia ao Clube
da Criança, mesmo com a Xuxa tendo ido para outra emissora e, se não
me engano, já era a Angélica quem apresentava o programa. E tinha outro
programa no mesmo horário, o ZYB Bom na Bandeirantes, que passavam
desenhos animados como Falcão Azul e Bionicão, Herculóides, Silverhawks
e meu preferido: PacMan. Só que, enquanto isso, na Rede manchete, duas
das novas atrações do programa, que eram séries derivadas do National
Kid e do Ultraman que já conhecíamos, chamados Jaspion e Changeman,
apareceram do nada. Pronto! A febre já estava instalada e todas as tardes,
ao chegar da escola, era lei ligar a TV na Manchete e assistir aos dois
episódios que eram exibidos todos os dias. Tanto é que, depois de

59
descobrir essas séries, nem me lembro mais quanto tempo demorou
aquele outro programa infantil do canal ao lado.
As noites de sábado também tinham alguns rituais. Um deles eram
as pizzas! Eu não me recordo de alguma vez ter comido isso antes dessa
época, mas quando morava na Jaguari quase sempre as noites de
Supercine ou de Atari eram acompanhados de pizza, com suco de caju ou
de laranja, tanto faz. Algumas dessas ocasiões parentes que moravam
próximo também se juntavam a nós e a disputa de Enduro, Sinuca e
Come-Come, no badalado videogame Atari, era mais animada ainda.
Um dos pontos altos daquela casa era o quintal de piso de azulejo
derrapante. Ah, nos dias mais quentes as tardes eram passadas com
banhos de balde e bacia, com direito a um pouquinho de sabão no chão e
crianças deslizando de um lado para o outro naquele piso escorregadio.
Alguns primos nos visitavam só para pegar impulso nas paredes e
atravessar todo aquele espaço de um lado a outro patinando e
amenizando o calor. Não me lembro de acidentes ou de coisas do tipo;
apenas a felicidade de sentir o vento cada vez que íamos mais rápido nas
brincadeiras. Toda vez que chovia não tínhamos a mínima vontade de
secar aquele quintal sem antes dar uma patinadas e deslizadas por toda a
área.
Falando em brincadeiras queria focar em dois pontos distintos. O
primeiro deles eram as brincadeiras dentro de casa, principalmente com
meus pais. Pode não parecer coisa tão importante assim, mas cada vez em
que meus pais pegavam a caixa de dominó, de baralho ou de algum
tabuleiro, principalmente quando se sentavam no chão conosco, era
muito boa a sensação. Mesmo a Bianca não entendendo muito bem as
regras ou o Eliton não aceitando perder, a brincadeira ainda assim valia a
pena. Toda sexta-feira a tarde, depois de engraxar os sapatos para usar no
culto de sábado, nos reuníamos no quintal dos fundos e chegamos até a
dormir lá de um dia para o outro em épocas mais quentes.
O segundo ponto a ser incluído eram as brincadeiras fora de casa.
Foi nessa época, pela primeira vez, que o ritual dos anos 80 de se brincar
na rua até a hora em que a mãe chama para jantar se concretizou. Até
então a gente brincava apenas entre si ou no máximo com amiguinhos no
recreio da escola, mas a partir dali passamos a nos divertir sem supervisão
e a sensação de liberdade era nítida, mesmo sem ter noção do que estava

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acontecendo. Foi quando conhecemos vizinhos e aprendemos a inventar e
descobrir jogos coletivos que passamos a aprender cada vez mais o senso
de comunidade e pertencimento a um grupo maior além da família.
Nomes que se eternizaram na minha mente, como a Fabiana, Hugo,
Vanessa, Hernani, Agatângela ainda me fazem recordar as feições e vultos
deles enquanto brincávamos, pois, até então, eu não tinha noção de que
eu não costumava olhar no rosto ou nos olhos das pessoas. Dividíamos
brinquedos, visitávamos as casas sem convite, trocávamos fitas de
videogame e íamos nas festas de aniversário uns dos outros. Foi uma
época interessante de se viver.

Turma do Fundão

Enfim, chegou o final do ano de 1988. Junto com essa nova fase veio
uma nova realidade na minha vida, aonde praticamente voltamos de onde
viemos, só que tudo piorado. O mesmo beco de anos antes e a mesma
vizinhança repleta de tios e primos, mas uma nova realidade. Apesar de a
partir de então morar numa mesma casa por 7 anos, os inquilinos foram
muitos, vários. Nos próximos anos as histórias se multiplicariam e as
situações inusitadas também se exponenciariam proporcionalmente.
A casa fica no fundo, lá no final de tudo, a última do beco e a mais
inacabada. Deixamos a casa da Rua Jaguari e voltamos para a Abdiel
Duarte com a sensação de que alguma coisa não estava certa. Algo
acontecia nos bastidores e que só após o sepultamento do meu avô
materno começou a ir à tona. Eu me lembro de como foi aquele final de
semana e nem sei como vou escrever isso aqui e nem quais detalhes vou
mencionar. Só sei que meus pais se separaram e eu e meus irmãos
passaríamos a viver de forma inusitada: às vezes morando com o pai, às
vezes morando com a mãe, às vezes separados, às vezes sozinhos, mas
com minha avó tomando conta à distância, às vezes com parentes, às
vezes sem ninguém. Do ponto de vista de quem olha de fora era algo
surreal, pois tínhamos 9, 7 e 5 anos respectivamente e assim seria por
quase uma década dali em diante. Isso tudo acarretaria consequências
que não estavam previstas por nenhuma das partes, mas a realidade era
que precisávamos encarar a vida a partir dali de outra forma.
A casa em si era muito quente. Não havia telhado ou construção
acima do teto, então o sol batia diretamente na laje que, mesmo a gente

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pintando tudo de branco para abater um pouco o calor, não resolvia muita
coisa. Não havia ventilação adequada, visto que era uma casa de fundos e
com outras casas ao redor, sem janelas com vista livre. Eram apenas 3
cômodos literalmente; o banheiro ficava do lado de fora da casa, bem no
quintal perto da entrada da casa. O quintal não tinha plantas, ou era
arborizado e nem tinha piso de cerâmica ou coisa do tipo; simplesmente
era acimentado, com concreto como um piso de calçada de rua. A altura
daquela casa era muito baixa, não exageradamente ao ponto de alguém
mais alto tocar no teto sem saltar, mas falando em salto era baixa o
suficiente para gente como criança pular da laje ao chão sem muita
dificuldade. Na época em que nos mudamos para lá ainda havia uma
piscina coletiva pequena que amenizava o calor nos dias quentes bem na
entrada da casa, mas que poucos anos depois seria demolida por um dos
tios que se incomodava com a bagunça que as crianças faziam ou talvez
com outras crianças das casas vizinhas que também acabavam
frequentando.
As casas do beco se interligavam pelas lajes. Tanto que era comum
nós quando pequenos atravessarmos de um a outro lugar por cima das
casas; e esta onde moramos, especificamente, tinham muitos perigos,
como vergalhões a mostra ou restos de materiais de construção, que hoje
me dá calafrios só de lembrar. Eu não teria coragem alguma de subir lá e
muito menos ver meu filho, por exemplo, sozinho ali por cima.
Devido ao quintal mais extenso, mesmo que apenas de concreto,
pudemos ter alguns animais de estimação. Gatos, peixes e cachorros
diversos passaram por ali e viveram alguns anos em nossa companhia.
Apesar dos pesares, aquele imóvel era a minha casa. E, entre 1989 e
1996 passei temporadas em vários lugares, mas minhas coisas e minha
cama nesse período sempre estiveram nesta casa, mesmo quando passei
semanas vivendo em Heliópolis, Rancho Novo ou Copacabana ou até
meses morando em Cabo Frio, Tijuca ou Andrade. Ali morei até meus 16
anos em 1996.

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Pérolas de Grande Preço

Nem sempre é possível mensurar ou catalogar alguns eventos


devido a peculiaridade de alguns deles pois não se encaixam em situações
recorrentes. Para estes casos eu separei um trecho especial nesta obra
para poder contar todas estas outras lembranças de coisas que
aconteceram em determinados períodos ou datas específicas, mas que
não estão associadas a nenhuma outra coisa parecida, nem antes e nem
depois delas.
Este capítulo relata situações em que o foco está na minha visão de
como algumas coisas aconteciam e que podem ter sido diferentes da
realidade em alguns aspectos; no entanto, creio que a forma de como
minha memória registrou revela muito sobre como as crianças enxergam
o que fazemos, a forma como agimos e o jeito que tendências e costumes
vão sendo incorporados à personalidade delas.

Pinguim Cheiroso

Um dos momentos mais marcantes da minha vida junto com meus


irmãos é algo muito simples e sem sentido, mas que ocorreu em uma
situação muito inusitada. Até chegar a este momento vou ter que explicar
um contexto por detrás de tudo até a situação em questão.
Meus pais nunca tinham muito para nos dar; por motivos óbvios um
casal tão jovem e sem formação alguma dificilmente poderia dar uma vida
confortável para os filhos. Quando a terceira criança nasceu a mãe tinha
apenas 20 anos e sequer completara o chamado ginasial (atual ensino
fundamental), mas tudo o que podia ter ensinado, inclusive por ter
habilidades manuais e caligrafia belíssima (até hoje), ela pôde repassar aos
filhos, principalmente para mim, o mais velho. Já o meu pai era registrado
formalmente como bombeiro hidráulico, mas na prática era apenas um
pedreiro, às vezes mestre de obras, às vezes atuando como engenheiro,
mas no geral ele mesmo se apresentava como “peão”. Esta é uma
atividade tida como um trabalho braçal, que parece na maior parte das
vezes exigir mais esforço físico do que mental, porém é imprescindível um
planejamento e organização impecáveis para um resultado perfeito.

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Mesmo sendo uma profissão importante, o retorno financeiro,
como muitos outros Brasil afora, para um servente da construção civil,
não é lá aquelas coisas. Por isso, havia a necessidade de se encontrar
algumas outras fontes de renda complementares, cuja venda de restos de
entulho e demais sobras de obras se somavam ao orçamento da família.
É neste contexto em que algumas das minhas memórias estão
ancoradas, pois um dos pontos de troca de resíduos recicláveis
(popularmente chamados de “ferro-velho”) ficava bem próximo à nossa
casa, a exatos 350m de distância, na Rua Jaguaré (não confundir com a
Rua Jaguari). O mais insano disso é saber que o local existe e faz o mesmo
comércio até hoje! E era para lá que, vez ou outra, eu ia sentado no
carrinho de mão do meu pai, levando algumas coisas para conseguir um
dinheiro extra. Aliás, era em um carrinho como esses que eu também ia
junto com ele até a feira de Areia Branca em Belford Roxo, uma
caminhada de meia-hora, para trocar aparelhos eletrônicos, peças e coisas
reutilizáveis que não haviam virado sucata.
Foi numa dessas idas a este
ferro-velho, junto com meus
irmãos, que fomos levar algumas
dessas quinquilharias para vender
lá, que este momento icônico
aconteceu. Uma das coisas que
me lembrei dessa vez
especificamente falando, é que
na volta tive a petulância de pedir
colo para o meu pai – que já Figura 12. Fábio, Edson e Eliton (jan. 1984)
estava com os meus outros dois
irmãos nos braços. Apesar da distância próxima aquele dia estava quente
e acho que eu também estava com sede. Talvez pelo fato de ter feito um
monte de perguntas para o cara de lá também, que colocava as coisas em
um tipo de balança arcaica, com pesos de metal que equilibrava em um
dos braços e que a quantidade que era colocada era somada com o
número escrito em cada um daqueles pesos, que tinham o formato do
“come-come” (Pac-Man como é conhecido hoje em dia). E, sim; ele me
pegou no colo, e fomos os 3 nos braços dele por alguns metros, pois acho
que ninguém aguentaria 3 crianças de uma vez só por muito tempo.

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E, sim; o momento marcante deste dia, para mim, foi o tal do colo
triplo na volta do ferro-velho. Mas, não; não é o motivo do nome do
subtítulo.
Ao chegar em casa, após alguns momentos, Eliton, meu irmão do
meio, percebeu que o cheiroso tinha sumido. Ele tinha alguns brinquedos
preferidos, como um elefante vermelho e uma ovelha de borracha que
fazia barulho por um apito em um dos orifícios; mas este boneco se
tratava de um pinguim que devia ter um cheiro gostoso quando novo, mas
que já estava velho e surrado. Mesmo assim, o nome continuava a ser o
mesmo do batismo: cheiroso. Ele havia saído de casa com ele em mãos,
mas não voltou com ele da rua! Muito provavelmente ele tinha deixado
cair ou esquecido em um dos dois locais que visitamos antes. Sim, havia
um outro terreno de materiais reciclados mais à frente e que tínhamos ido
lá também antes de passar neste mencionado.
Sinto muito dizer que não encontramos mais o tal pinguim cheiroso
e o que temos é apenas uma das fotos antigas em que ele aparece. Pode
até que tenha encontrado algum parecido ou bem similar depois, mas o
tal igualzinho nunca mais foi visto.

Momento Esportivo

Desde sempre fui apresentado ao futebol, mesmo meu pai não


sabendo fazer uma embaixadinha sequer. Eu também possuo a mesma
inaptidão e partilho da falta de interesse em acompanhar esse esporte. No
entanto, como brasileiro, acabo tendo que me inteirar sobre o assunto e
como ávido amante de dados e estatísticas acabo não sendo tão alheio às
notícias e tudo que envolve essa área.
Minhas primeiras lembranças de futebol são da Copa do Mundo na
Espanha em 1982. Com 3 anos eu me lembro de ouvir nomes dos
“craques” da época e de me simpatizar pelo Naranjito. Aliás, este por sua
vez estava estampado em vários muros do bairro e adjacências; inclusive,
ganhei na época um copinho em formato de laranja com canudo com essa
mascote do mundial. Dos tais craques que falei só me lembro do Sócrates
e do Zico além do italiano Paolo Rossi. E só.

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Durante a tal Copa alguém descolou uma TV em cores de 14” e
deixou lá em casa. Na hora dos jogos alguns dos meus tios se reuniram
para assistir às partidas e isso também se estendeu às corridas de Fórmula
1. A minha lembrança mais antiga de esporte nem era de futebol, mas dos
carros fazendo aqueles barulhos característicos nas manhãs de domingo.
Não que me lembre de tudo, mas o fato de ter uma TV em cores em casa,
mesmo que por alguns dias apenas, foi um fato inesquecível para mim em
1982.
Um fato triste desse dia foi ter prestado atenção ao que acontecia!
É sério, tem coisas que a gente acha que criança não vai prestar atenção
ou não vai entender, mas vai sim. Apesar da festa alegre pela vitória do
Nelson Piquet (isso eu tenho certeza de que aconteceu) eu sabia que um
dos acidentes que teve matou um dos pilotos. E na minha cabecinha fiquei
me perguntando do porquê de estarem comemorando se alguém havia
morrido no meio da corrida. E, sim; os dois eventos eram naquele mesmo
intervalo de tempo.
Mas, voltando ao esporte do título desta sessão, o que eu queria
contar aqui era sobre outra Copa, que ocorreria 4 anos mais tarde,
quando eu já tinha 6 anos de idade. México ’86 foi muito marcante para
mim, pois veio em um momento em que eu precisava recompor minha
vida depois de morar em 5 lugares diferentes em pouco mais de um ano e,
até então, eu estava morando “de favor” na casa da minha avó paterna
nos dias úteis e na minha avó materna nos finais de semana.
Pausa para reflexão: Por que uma criança de 6 anos precisava
recompor a vida?
Não me lembro de ter assistido a nenhum dos jogos da primeira
fase dessa copa, mas de tanto ouvir os jingles das emissoras de TV já sabia
as músicas de cor. Dois deles foram os mais emblemáticos e sei a letra
inteira até hoje: “Mexe Coração” e “70 Neles”. Este primeiro era da tal
Globo que comemorava a maioridade na época e o segundo era do canal
do esporte, a até então Bandeirantes. O primeiro tem em seu conteúdo a
frase cabalística “mensageiros da esperança” enquanto o segundo era
cantado pela saudosa Gal Costa, que tem um lugar cativo na minha
história e é importantíssima em algumas situações da minha vida –
inclusive bem recentemente. Mesmo assim, sabia dos resultados dos
jogos pelos noticiários e o mais emblemático foi quando o Cid Moreira no

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Jornal Nacional noticiou a goleada do Brasil sobre a Polônia pois achei
interessante os números mudando na tela acima do ombro direito dele e
ficar me perguntando como conseguiam fazer aquilo. Os gols? Não, como
faziam estes efeitos na tela da TV. Onde eu estava? Ah, na sala da
casa/apartamento do meu tio Eden, no tal 201 do beco, no momento
desse anúncio.
Sim. Eu me lembro de muitas coisas assim, não só o que acontecia,
mas onde estava e de detalhes sobre o que havia ao meu redor. Neste
caso específico só de pensar na situação me lembro da sensação da
textura do sofá onde estava sentado, a capa da almofada bordada que
tinha embaixo do meu braço esquerdo e da janela semiaberta ao olhar
para trás.
O trauma ficaria por conta do que aconteceria na semana seguinte.
Não, não foi pelo fato de o Brasil ter sido derrotado nos pênaltis, mas pela
constatação de que eu não sabia nada de futebol e que não tinha poder
nenhum de previsão ou coisa do tipo. Deixe me explicar com calma o que
aconteceu.
Na sexta-feira antes do jogo a professora da escola, lá no
Educandário monte Líbano, havia feito uma pergunta no final da aula para
todos os meninos e que eu respondi como sempre fiz a todas as vezes em
que me perguntavam sobre qualquer coisa na escola. O problema é que,
desta vez, a pergunta era “qual será o resultado da partida Brasil x
França”? Até então eu achava que antes eu nunca havia errado em
alguma resposta, e, na minha cabeça de criança, ia cravar novamente.
Vários coleguinhas respondendo “vai ser 5x2” ou “vai ser 3x0” quando
chegou na minha carteira a professora olhou para mim eu respondi
confiante: vai ser “2 a 1 pra França”. Hahahaha...
Nos anos seguintes o esporte se resumiu aos minutos de recreio da
escola e alguns eventos que aconteciam no bairro. Havia um clube
chamado Furacão da Colina, uma alusão ao time do Vasco da Gama, que
organizava jogos entre os bairros, com participação de gente com tudo
que é idade e eventualmente eu acabava assistindo algumas vezes, já que
os campos de futebol eram bem próximos. Alguns dos que lembro era no
Campo do Louzada, o da rua Ouvidor e o do Ramalho, além do principal
no Barrinho da Rua Flora de Araújo; tanto é que o único que existe até
hoje é esse, pois os demais viraram condomínios.

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No caso do Furacão por duas vezes eu entrei no time infantil. Eu não
me lembro como, mas só sei que joguei algumas partidas entre 7 e 9 anos.
No primeiro torneio não me lembro do resultado final, pois eu ficava
quase sempre no banco; só me lembro das garrafas de Baré Tutti-Fruti
geladinhas que tomávamos após os jogos com sanduíches de baguetes
com Doriana. Mas no segundo torneio fiquei menos no banco e entrei
inclusive na final. Eu era ponta direita e cheguei a sofrer uma falta perto
de uma lama que me sujou todo! No entanto, depois do torneio, os
adultos líderes lá do time foram na minha casa para pagar o “bicho”, mas
entregaram o dinheiro na mão do Eliton. Não era lá muita coisa, mas acho
que se confundiram de irmão e acabei ficando com a perna ralada, roupa
suja e sem o dinheiro da participação no jogo. Vai vendo...
A partir dos 8 anos até meus 13 cursei todas as séries do ensino
fundamental (do 4º ao 9º ano) no mesmo colégio. E lá havia uma
insistência chata entre dois esportes: handball e vôlei. Todas as aulas de
educação física eram passadas no pátio (não havia quadra) com esses
esportes coletivos, principalmente a contragosto dos meninos que sempre
jogavam futebol nos recreios ou aulas vagas. Sim, por ser um colégio
público, não importa a série, quase sempre havia aulas cujos professores
se ausentavam pelos mais diversos motivos – isso quando não faltava uma
matéria inteira. E, como era de se esperar, sempre que havia número
ímpar de participantes eu ficava de fora. Sempre era um dos últimos a ser
escolhido e toda vez que eu conseguia preferia fugir para a biblioteca e ler
alguma coisa.
Nesse meio-tempo as brincadeiras na rua também se revezavam
entre esportes e jogos com bola, mas o futebol em si nunca foi meu forte.
Se o jogo era com balizas ficava feliz de ser goleiro, até um dia em que um
garoto do bairro do Morro da Cocada me humilhar em um jogo e eu nunca
mais aceitar jogar futebol no campo depois dos 10 anos. Dali em diante o
máximo que fiz foi jogar golzinho com os coleguinhas da rua e olhe lá.
Quando havia minitorneios entre as ruas eu preferia brincar com as
meninas de elástico, amarelinha ou até de casinha, mas não participava
dessas coisas. Inclusive, nunca brinquei de pião, nunca pus uma única pipa
no ar, não faço mais de 3 embaixadinhas e jamais ganhei de ninguém em
bola de gude. Ponto para minha esquisitice mais uma vez.

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Subsídios para Sobrevivência

Por ter sido criado sem muitas ‘frescuras’ no que se refere às


contribuições domésticas me adaptei facilmente à independência desde
muito cedo. Apesar de muito novos para os padrões de hoje, tanto eu
quanto meus irmãos, precisamos nos virar de tal forma que todos, ao
completarmos 14 anos, tínhamos condições de morar sozinhos e nos
subsistirmos.
Este comportamento atípico se deu por vários fatores e,
contrariando a lacração e as críticas destrutivas, considero que todas essas
dificuldades podem até ter tirado um pouco da nossa infância, mas nos
preparou – e muito – para a vida futura. Ainda assim brincamos e nos
divertimos muito, tanto mutuamente como com todos os primos ao nosso
redor e os coleguinhas de bairro.
Como atividade remunerada todos nós fizemos de tudo um pouco
e, apesar de não poder falar por eles em particular, individualmente posso
listar algumas dessas minhas atividades ao longo dos anos.

Atividades e Atitudes

No final de 1996 eu já tinha finalizado meus estudos no ensino


médio e surgiu a possibilidade de se cursar uma graduação em uma
universidade particular. Para isso eu deveria trabalhar (óbvio) para custear
esses estudos. A intenção era me juntar à uma campanha de estudantes,
vindos de diversos estados e até países, que trabalhariam durante as
férias e fariam as aulas no restante do período.
Foi assim que na primeira semana de janeiro de 1997 fui parar em
Ribeirão Preto. Eu com 17 anos e meu irmão com 15, além de outros 3
amigos, saímos do Rio de Janeiro com a intenção de fazer nosso futuro
acontecer. Ficamos 60 dias vendendo literatura de porta em porta na
tentativa de acumular estipêndio para os estudos.
Para resumir a história, apenas 1 dos 5 atingiu a meta e começou a
cursar a faculdade, dois voltaram para o Rio de Janeiro após este período
enquanto eu e o mais velho de nós ainda insistimos por mais outro

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período equivalente em mais uma campanha, desta vez em Bauru. Sem
sucesso, voltei em maio e meu amigo ainda tentou uma 3ª vez e este, por
sua vez, também voltou para casa meses depois.
Ao voltar para o Rio de Janeiro passei um período de quase 1 ano
morando com meu pai e em um quartinho criado no espaço daquele “mini
quintal” onde perdi meu primeiro cachorrinho, lembram? Desta vez, meu
pai estava morando em um apartamento no bairro da Glória, uma
cobertura de centenas de metros quadrados, com uma pequena vista para
a Baía de Guanabara, que recentemente havia sido desocupada e que ele
estaria tomando conta até que um novo comprador surgisse. Logo, um
dos 8 quartos que havia por lá foi emprestado a mim e eu pude me
manter às vezes trabalhando em alguma obra com meu pai, outras vezes
vendendo bolinhos de aipim (ou macaxeira, ou mandioca a depender de
onde você está) com e para a minha madrasta. E às vezes eu passava
períodos naquele quartinho, ainda mais depois que minha irmã fez 15
anos e ganhou um computador. E este computador, olha só, ficou
exatamente neste quartinho em Nova Iguaçu.
Um pouco antes deste computador, eu cheguei a ir tentar a vida em
Ribeirão Preto, aquela mesma cidade onde um ano antes eu fracassei em
conseguir dinheiro o suficiente para pagar minha faculdade. Desta vez
pensei que conseguiria mudar de vida com a ajuda de uma família que
conheci na época e que me acolheram como filho. Fiquei exatamente 35
dias por lá, mas dei tanto trabalho que me mandaram de volta para o Rio.
Era uma fase tenebrosa da minha vida, onde eu tentava de tudo um
pouco, mas nada dava certo. Para piorar eu tinha problemas sociais reais e
que tentava fugir deles escapando para viver em coisas virtuais, e isso me
causava mais problemas ainda! Graças à Deus esse defeito extremo foi
contornado poucos meses depois, com pedido de desculpas formal e oral
a eles e que, depois de virem o que aconteceria na minha vida de 1998 em
diante, com certeza devem ter orgulho de terem me ajudado a superar
isso tudo.
Durante o ano de 1998, com a ajuda da minha mãe, fizemos várias
frentes de ação. Ela me ajudou custeando alguns concursos públicos (um
deles me deu o emprego que tenho hoje), inclusive militares, e ideias de
como fazer dinheiro extra, como explicador, vendedor, aprendiz etc.
Quando fiz 18 anos eu poderia até assinar carteira, mas sem emprego

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formal anterior e sem ter sequer feito estágio algum durante o ensino
médio era complicado conseguir isso logo de cara; mas, para minha sorte
(ou providência divina) isso não demoraria tanto assim.

Formalmente formalizado

Meu primeiro emprego com carteira assinada veio no início do ano


de 1999; bem no réveillon. Após um período de experiência de 60 dias fui
oficialmente cadastrado no PIS no dia primeiro de março. Ser auxiliar de
serviços gerais era uma conquista e tanto para um jovem de 18 anos
durante os anos 90 e, para mim, era mais especial depois de tantos anos
em atividades informais.
Durante os 2 anos e meio em que estive trabalhando em um
mercado no bairro da Posse em Nova Iguaçu/RJ aprendi muito, mas muito
mesmo, sobre a seriedade de se ter e de se manter em um emprego. Digo
isso pois no início foi muito ruim; não para mim, mas para a Fátima, minha
chefe. Ela foi a melhor chefe que eu poderia ter em um início de carreira,
pois teve que lidar com alguém totalmente desprovido de
profissionalismo e noção da realidade.
Foram várias situações inusitadas e erros grotescos da minha parte,
mas que para minha sorte fui lapidado como um carvão até chegar a se
tornar praticamente um diamante. Vou contar algumas situações desta
fase para que entendam meu raciocínio.
Cheguei ao mercado para auxiliar na informatização dele, desde a
contabilidade, estoque, folha e demais formalidades, até o atendimento
ao cliente final, como cadastro dos produtos, registros de tributação e
instalação dos equipamentos nos caixas. Eu já estava usando um
computador em casa há um ano e já tinha feito um cursinho genérico de
computação (leia-se Windows e pacote Office), logo eu estava pronto para
trabalhar na área, né!? Afinal, do que mais precisaria nos anos 90? Mal
sabia eu que iria trabalhar de verdade na área de tecnologia somente 2
décadas depois.
O trabalho inicial era relativamente simples: catalogar os códigos de
barras de todos os produtos das gôndolas do supermercado e cadastrar

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todos eles no banco de dados. Para isso eu precisei bolar algum jeito
otimizado de se fazer isso. Afinal, ainda não haviam inventado os tablets e
os celulares sequer tinham telas; os computadores eram desktops, uns
trambolhos nada fáceis de se deslocar. Além disso, o escritório ficava no
segundo andar e muitos produtos eram pesados para ficar se carregando
escada acima. Eu não poderia errar um número sequer pois isto
significaria prejuízo na certa. Mesmo se comprassem um leitor de códigos
manual não teríamos um laptop para fazer o armazenamento e a rede
interna era praticamente inexistente – a não ser por alguns cabos RJ45
escondidos pelos corredores pois, se não usávamos internet, imagina rede
sem fio! Aliás, apesar de comunicação sem fio existir desde os anos 50, a
primeira rede wi-fi do mundo só viria a surgir em 2004, 5 anos depois.
Então, o jeito foi começar literalmente na mão, escrevendo em um
caderno e anotando todos os detalhes para depois repassar ao sistema lá
em cima.
Logo de cara já deu para saber que não era a melhor das ideias, pois
no mínimo era um retrabalho sem sentido com direito a risco de perda de
dados. Afinal, posso muito bem escrever sete e na hora de digitar ler um,
por exemplo. Mesmo tendo uma caligrafia exemplar era passível de erro e
nos primeiros testes após a primeira implantação já foram constatadas
algumas irregularidades no banco de dados. Uma nova solução foi
implementada e consistia em levar os produtos até o computador, um a
um, e digitar diretamente no teclado vendo os códigos de barras na
mesma hora. Ainda assim outros erros foram sendo encontrados e outras
formas foram sendo testadas e... acho que já entenderam onde eu quero
chegar. Por fim, fui trabalhar em outras coisas no supermercado.
Um tempo como balconista na loja de ferragens, um tempo
cuidando do estoque de materiais de construção, outro momento fazendo
trabalhos de escritório, contabilidade e até de sonorização do ambiente.
Até que inevitavelmente comecei a trabalhar como office-boy e fazendo
serviços bancários. Foi daí que, sem noção da realidade, deixei escapar na
porta do estabelecimento que era eu quem ia levar o dinheiro no banco
para pagar as contas! Qualquer mal-intencionado já saberia a quem
atacar, né!? Demorou um tempo até que eu voltasse a ser o rapaz dos
pagamentos; enquanto isso virei o rapaz dos recebimentos: virei caixa do
supermercado.

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Com essa nova mudança mudaram algumas coisas: a carga horária
aumentou, o salário um pouco também (os 70 reais a mais na época eram
equivalentes a compra do mês) e passei a trabalhar aos domingos. Para
completar o pacote, também fazia o fechamento do supermercado
algumas vezes, saindo bem depois do final do expediente apenas depois
de bater tudo direitinho.
Com um ano e meio de trabalho comecei a perceber que ali eu não
teria futuro. As possibilidades de promoção eram muito limitadas e eu não
tinha tempo e nem recursos para fazer um curso ou coisa do tipo, além da
chefe, apesar de muito boa e atenciosa, não poder dar um aumento e
nem ter cargos a oferecer a não ser todos os que eu já havia
experimentado nesse período. Foi em uma conversa sobre o assunto com
minha mãe que ela me contou sobre uma vaga de office-boy na Zona Sul
em um escritório de Auditoria Médica cujos donos eram patrões da minha
tia, a mesma que por um tempo cuidou de mim e meus irmãos naquele
período “intertestamentário” entre a separação dos meus pais e minha
independência durante o ensino médio.

Segunda Chance

Quando cheguei lá neste novo local de trabalho reconheci uma das


funcionárias, a secretária do chefe, ao mesmo tempo que lembrei de que
era uma ex-vizinha minha do tempo em que morei nos fundos do beco na
época de escola. E seria ela, e não a gerente da empresa, quem ditaria as
regras do que eu faria, aonde iria e demais rotinas. Para mim uma
providência não ter que lidar diretamente com a gerente daquele setor da
empresa onde eu passei a trabalhar, já que ela era esposa do dono; o
motivo era que pra mim, se existe um ser humano mais semelhante ao
Senhor Burns da série Os Simpsons, seria exatamente ela.
Por um tempo vivi uma realidade nova, com novos horizontes se
abrindo, com novos contatos e aprendizado. No escritório aprendi a
confeccionar relatórios, encadernar, preparar documentos e nas visitas
que fazia por todo o Grande Rio conheci muitas pessoas interessantes,
alguns ricos e até uns famosos. Pra minha surpresa um dos que conversei
nesse período foi o Evandro Mesquita que tem fama de ser garotão

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irresponsável, mas que, ao me ver com uma aliança no dedo da mão
direita me disse: “já está amarrado?”. Eu falei poucas palavras, como
sempre, e ele me respondeu algo como “...sua decisão e sentimento são
mais importantes do que o que os outros vierem a dizer...”.
Meses se passaram e não demorou muito tempo para entender que
ali eu teria poucas opções de progressão; na verdade enxerguei apenas
duas: ou me especializava na área de computação e atuava com coisas
mais tecnológicas ou faria algum curso na área médica nem que fosse pra
trabalhar com Home Care nas equipes que estavam sendo criadas pois, na
estrutura da empresa, não havia espaço para promoção. Continuar ali era
ser o garoto do escritório para sempre e isso me doeu demais quando a
ficha caiu. Pra piorar eu não tinha, e até hoje eu não tenho, nada a ver
com qualquer coisa na área da saúde. Jamais conseguiria trocar um
curativo, limpar uma ferida, perfurar a pele de alguém ou me
responsabilizar pela cura e saúde de alguém.
No final de semana seguinte eu me abri para minha noiva e chorei
demais, pois eu não tinha futuro e as previsões dos nossos pais estavam
corretas, pois eu não tinha nada para oferecer a ela e não teria condições
de casar-se permanecendo naquela situação. Costumávamos sempre orar
juntos, todas as vezes em que nos despedíamos, e com certeza a oração
daquele dia incluía o nosso futuro. E uma das coisas que ela se lembra
muito bem desse dia, e que já me falou outras vezes, foi uma das frases
que eu disse pra ela, entre outras coisas: Por quê a Caixa não me chama,
se eu passei e tinha uma colocação boa?

Caixinha de Surpresas

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Dá Para Acreditar?

Por mais que eu não quisesse envolver assuntos que envolvam


temas mais polêmicos ficaria muito difícil não mencionar a igreja e tudo
que envolve religião na influência de determinadas fases da minha
história. Por isso separei um capítulo exclusivo só para questões que
façam parte, direta ou até indiretamente, com a igreja.

Cruz Credo

A expressão originalmente tinha um significado bem simples: creio


na cruz. Isto resume bem o porquê de alguém se declarar cristão. Bem
recentemente o cristianismo atingiu a marca de 2,2 bilhões e meio de
adeptos, 500 milhões a mais do que a segunda maior religião do mundo, o
islamismo. E por ter nascido no Brasil eu tinha quatro chances em cinco de
ser criado como um cristão. Venceu a estatística.
Apesar de meus pais terem se batizado, ritual público de declaração
da crença em Jesus Cristo (daí o nome), quando eu já tinha 1 ano, ainda
assim me considero ter “nascido na igreja”. Isto se deve pelo fato de que
minha avó, e até a bisavó, já terem tomado parte ativa na igreja desde
décadas antes do tal batismo deles. Logo, convivi desde sempre com
princípios do sistema religioso tradicional e clássico.
Fui criado dentro das doutrinas pregadas pela Igreja Adventista do
7º Dia, uma instituição formalmente instituída há quase 200 anos, mas
que, a princípio, segue dogmas milenares de origem bíblica. Uma religião
muitas vezes confundida com uma seita, pois apesar de ser cristã e
protestante se difere em alguns pontos dos demais evangélicos. O
principal deles está explícito no nome que se refere ao dia sagrado de
guarda; enquanto a grande maioria dos cristãos se reúnem no primeiro
dia da semana para congregar, os adventistas realizam seus cultos
principais no sétimo dia, no caso o sábado.
Um ponto mais a fundo desse detalhe do dia de guarda é mais
peculiar do que parece, pois, diferentemente das demais religiões que se
reúnem, mas não santificam o domingo, os adventistas não só separam o

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dia como também o tratam como dia sagrado. E, como cereja do bolo, os
dias não são contados da forma tradicional, onde as datas são divididas a
partir da meia-noite, e sim no horário do pôr-do-sol. Isto significa que o
sábado se inicia no crepúsculo de sexta-feira e termina no mesmo horário
de sábado. Pode parecer confuso a princípio, porém, para se adequar ao
restante do planeta, acabam contando os demais dias da forma
tradicional: na prática, de domingo a quinta-feira, o dia termina à meia-
noite.
Estas informações que estou dando agora parecem não ter sentido
focar tão detalhadamente assim, mas é que elas serão imprescindíveis
para alguns dos tópicos seguintes, pois estas convicções, para quem confia
e acredita na sua vigência eterna como eu, influencia e muito em várias
decisões. Aí a expressão do título, o modo pejorativo dela, pode ser
externada por quem não está familiarizado com esta doutrina; afinal,
perder oportunidades de trabalho ou arriscar a própria carreira por causa
de uma crença dessas? Cruz credo!
Eu sempre tive uma visão séria da religião. Quando digo sempre é
desde a primeira infância mesmo e é até hoje. Lembro de várias broncas
que levei, principalmente do meu pai, quando por algum momento de
descontração infantil, me comportei inadequadamente em locais onde
havia algum ritual litúrgico sendo conduzido – mesmo quando fora dos
cultos regulares. Por exemplo, certa vez eu estava assistindo a um ensaio
do coral que meu pai regia, quando eu tinha entre 3 e 4 anos, e
simplesmente eu ficava passando por baixo dos bancos da igreja e tirando
a atenção dos cantores. Outra situação foi quando fui chamado a atenção,
também aos 4 anos, enquanto tomava banho e cantava um hino da
doxologia do culto divino, um dos rituais mais solenes da igreja até então,
quando os componentes da plataforma entravam no templo junto com o
pregador que daria o sermão do dia. Mas a mais icônica foi quando fui
proibido de subir na parte mais alta da plataforma, chamada púlpito, pois
para alguém estar ali deveria estar trajando roupas apropriadas, e no
momento eu usava bermudas.
Sobre o sábado em si, por se iniciar no pôr-do-sol de sexta-feira,
antes de escurecer era de costume deixar tudo pronto para não se realizar
coisa secular alguma nas horas sagradas. Então, tudo que se podia deixar
pronto no dia anterior era tratado com urgência. Comida pronta, roupa

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passada, casa limpa são apenas alguns dos critérios que eram seguidos à
risca; e eu tinha orgulho e prazer de lavar os meus tênis e engraxar os
sapatos do meu pai todas as tardes de sexta. Então, na hora de definir
minha carreira ou profissão esse detalhe pesou e muito na decisão. A
princípio tentei ser pastor, como já contei anteriormente, e depois parti
para alguns concursos públicos com o incentivo da minha mãe (inclusive
financeiro) mas os primeiros empregos foram na iniciativa privada mesmo.
Apesar de não ser um capítulo sobre trabalho ele está intimamente
ligado ao assunto religião, então as próximas histórias vão revelar um
pouco do porquê ainda ser um crente. Ou melhor, um cristão evangélico
protestante.

No Tempo de Escola

Antes de chegar na carreira propriamente dita preciso mencionar


algumas situações de conflito enquanto ainda era estudante. Por mais que
eu nunca tenha estudado à noite (um problema que muitos da minha
religião enfrentam devido às aulas de sexta-feira) diversas vezes tive que
passar por provações que chegaram a abalar a minha fé, mas que mesmo
sendo atacada em nenhum momento foi vencida pelos argumentos
apresentados.
Ainda na pré-escola, atual 1º ano, tive que agradecer o convite, mas
recusar participar de alguns eventos. Me fantasiar no carnaval, participar
das festas juninas e os santos venerados além de comer doces distribuídos
no final de setembro são algumas das datas que eu me recordo com
detalhes na época. Pode parecer meio radical nesse ponto, mas como eu
disse antes, levava muito a sério minhas convicções; mas confesso que
ficar sentado em uma cadeira enquanto assistia meus coleguinhas
participarem das atividades nessas datas festivas não era lá muito legal.
Certa vez preferi ir para a secretaria, ainda na pré-escola, e ficar assistindo
Sitio do Pica Pau Amarelo na TV do que ver os coleguinhas dançando
quadrilha nas festas juninas de 1985.
Outra coisa muito bem lembrada é sobre alimentação. As
orientações passadas pelas gerações desde a criação do adventismo é
sobre alimentos saudáveis e abstinência de vários tipos de comidas.

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Então, desde bem pequeno eu já carregava esses conselhos de recusar
alguns tipos de alimentos. Não é muito difícil seguir tais regras, pois eram
basicamente recusar frutos do mar, porco e seus derivados. Todo o
restante me era permitido, então não era nada demais.
O primeiro ano do ensino fundamental foi boa parte cursado em
uma escola confessional que, conforme relatado anteriormente, o ano
letivo foi abruptamente interrompido. A partir dali, tirando o 2º ano, todo
o restante da minha vida acadêmica antes da graduação foi cursando em
escolas públicas. Sendo à tarde ou de manhã, independente do período do
ano, e apenas em dias úteis, nunca precisei me reportar a docentes,
secretaria ou direção sobre minhas convicções - no máximo recusar um ou
outro item do cardápio da merenda escolar que nunca faltou em todos
esses anos.
O problema de verdade começou quando iniciei os estudos no
ensino médio. Em 1994 eu tinha 14 anos quando comecei a fazer o curso
de Administração (eu preferiria eletrotécnica, mas a minha admissão na
escola técnica federal não foi tão tranquila assim, mesmo eu tendo
passado muito bem na prova – minha mãe e avó interviram e conseguiram
reverter uma injustiça) pude botar em prática minha fé pela primeira vez.
Logo no 1º ano do ensino médio, por estudar a tarde, o turno tinha
1 hora a menos de aula do que a turma matutina. As 5 horas faltantes da
grade eram repostas aos sábados. A minha “sorte” foi que metade das
aulas eram de professores que já davam um tempo ou dois durante a
semana e, apesar de nunca ter ido a uma aula aos sábados sequer, não
precisei ser reprovado por faltas ou por notas pois nunca faziam provas
aos sábados. A não ser pelas aulas de educação física, que também eram
aos sábados, porém eram focadas basicamente em treinos de handball –
aliás, a escola João Luiz do Nascimento era referência no estado do Rio de
Janeiro em torneios da modalidade. No entanto era um grupo seleto de
alunos/atletas, pois éramos 7 turmas de 40 alunos em média, então a
peneira era bem fina. Porém, havia uma matéria exclusiva do dia de
sábado: Biologia.
Não me lembro do nome da professora, só me lembro que ela
chegou a conversar comigo uma vez nas primeiras semanas de aulas. É
claro que as minhas faltas iriam atrapalhar, mesmo que eu pudesse
estudar os livros sozinho e fazer as provas normalmente pois sempre eram

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em dias da semana. 30% de faltas reprovavam, e isso poderia afetar todo
o meu ano letivo. O que fazer? Bem, na verdade eu não notei algo nessa
conversa, mas depois de 2 bimestres vendo-a esporadicamente nas
correções de testes e aplicação das duas provas do primeiro semestre
pude notar que ela estava grávida! Durante este período ela faltou várias
vezes aos sábados, dando presença para todos os alunos e, como a
instituição não conseguiu um professor que a substituísse, logo o restante
do ano foi abonado e eu passei na matéria dela sem ter ido uma única vez
aos sábados.
Já no 2º ano pedi para alterar o meu turno e passei a estudar na
parte da manhã. Assim, não teria mais problemas com os sábados da
turma vespertina. No entanto, essa calmaria durou apenas o primeiro
semestre, pois logo no início do segundo haveria uma “Feira de Ciências”,
e adivinhem em qual dia ela seria apresentada? Sim, já ouviram esta
história antes? Pois bem, apesar do nome ciências no título ela não
influenciaria na nota de matérias da área como química ou coisas do tipo,
mas valeriam 2 pontos em todas as disciplinas.
Eu questionei minha situação aos organizadores do evento e
expliquei o porquê de não estar presente no dia na apresentação, mas
que participaria de todo o processo de preparação. Foi em vão pois foram
irredutíveis, até porque sabiam de outros colegas adventistas (eu conhecia
dois deles) participariam para não perderem os dois pontos em todas as
matérias do terceiro bimestre. O resultado foi ter suas avaliações com
limite de 8 pontos caso acertasse tudo, pois perdi os dois pontos em todas
elas. No entanto, naquele ano, como em todos os anos anteriores, eu não
fiquei em recuperação em nenhuma matéria, pois todas as notas do
restante do ano compensaram a falta delas por conta da minha ausência
na tal feira.
No 3º ano a feira foi apresentada em dia de semana no horário
normal de aula e continuei frequentando as aulas no período da manhã,
mas desta vez o problema que enfrentei, e que me levou a minha primeira
recuperação em toda a minha vida acadêmica, foi inusitada. Como não
tem a ver com religião ou convicção doutrinária eu deixo para contar em
outra parte deste livro. Esta seção é apenas uma introdução para assuntos
mais sérios a serem tratados nas próximas páginas.

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Futuro do Presente

Neste capítulo entramos no período derradeiro da minha história,


onde ocorrem os eventos mais recentes e decisivos pois demonstram
quem eu realmente me tornei e o porquê de muitas coisas. E, como minha
vida foi completada por duas criações divinas de Deus que o próprio
Criador se encarregou de me entregar, foi uma forma de me conduzir pelo
caminho certo e tenta me fazer não desistir. Nathan e Adriane, não
necessariamente nessa mesma ordem, são as peças que faltavam na
minha vida e que me completaram a fim de que me preparasse para
querer viver para sempre!

Pretérito Mais Que Perfeito

Antes de entrar no assunto a seguir eu preciso que você entenda o


contexto na qual eu estava passando no momento. Na época eu tinha
acabado de começar a trabalhar em um supermercado como Office boy,
não tinha muitos recursos e meu salário era o Suficiente apenas para
sobreviver; tanto que eu morava em um pequeno quarto de 4 metros
quadrados e ainda dividia o espaço muitas vezes com o meu irmão.
Eu tinha acabado de completar 19 anos e estava no meu primeiro
emprego de carteira assinada. A Carga horária, até então, era bem
tranquila e a distância da casa para o trabalho era algo em torno de meia
hora.
Era janeiro de 1999 e aquele parecia ser só mais um sábado
qualquer; normal, nada demais. Eu estava na igreja pela manhã como de
costume e fazendo as minhas rotinas como, por exemplo, tocar no piano e
assistir à escola sabatina. Porém, uma coisa muito diferente aconteceu
naquele sábado no momento musical - quando um cantor o grupo musical
participa do culto fazendo uma apresentação - apareceu uma menina
diferente e que me chamou muito atenção. E quer saber? Ela me chamou
a atenção de uma forma bem diferente, porque eu nunca tinha sentido
aquilo antes. Eu ainda sequer nem tinha visto o rosto dela pra início de
conversa, pois primeiro eu ouvia somente a voz.
Eu lembro bem de que não estava dentro da nave da igreja quando
ouvi aquela voz pela primeira vez e naquela hora fiquei tão curioso que eu

80
voltei para dentro da igreja só pra assistir o final daquela música que a tal
menina estava cantando. Talvez eu estivesse me apaixonado à primeira
vista, provavelmente pela primeira e única vez na vida, e não sabia ou não
tinha noção do que estava acontecendo naquele momento de verdade.
Sobre tudo o que aconteceu naquele dia, principalmente depois
daquela manhã, eu não me lembro muito bem de tudo, nem do que eu fiz
e nem o que aconteceu ao meu redor ou com quem eu falei ou conversei;
eu só sei que depois daquele momento haveria um novo intervalo para
participação musical na liturgia do culto e com certeza ela cantaria
novamente. A diferença foi que dessa vez eu estava sentado no primeiro
banco, logo de frente a ela. Eu e um amigo da mesma igreja, colegas
desde a infância, chamado Marlon - inclusive trabalhamos há mais de 20
anos na mesma empresa até hoje.
Enquanto ela cantava essa segunda música eu cheguei para o
Marlon ao meu lado e falei assim: “Cara, era essa menina aí que eu estava
procurando”. Um dos motivos de ter falado isso é porque, apesar de ter
19 anos, havia 2 anos que eu não namorava mais ninguém. Inclusive, em
toda a minha vida, eu tinha namorado ou ficado vamos dizer assim com
outras 2 ou 3 meninas desde a minha adolescência, mas dentre as
curiosidades é que a nenhuma delas eu pedi em namoro. Tanto é que o
tempo de relacionamento com nenhuma delas não passou por mais do
que algumas semanas ou, em duas situações, não mais do que poucos
meses. Por mais que eu tentasse me enquadrar no quesito normalidade,
para alguém da minha idade, eu cedi muito a pressão por convenções
sociais, mas eu não me considerava ou não me sentia muito à vontade de
fazer o mesmo que eles faziam como, por exemplo, ficar “ficando” com
meninas só por diversão ou para passar o tempo. A minha intenção era
achar alguém que fosse minha namorada de verdade e na minha cabeça
estar com alguém era com intenção de conhecer a fim de casar-se!
Sempre foi assim, mesmo quando dei meu primeiro beijo com 15 anos, e
nunca namorei alguém, mesmo aquelas na qual eu não tive muita
afinidade, sem que eu tentasse de todas as formas entender através da
empatia, sobre como eram as vidas delas. Tudo isso para saber como que
eu me encaixaria na vida delas para poder passar a minha vida toda do
lado delas, pois até então eu só via exemplos negativos ou histórias ruins
sobre relacionamentos.
Eu passei maus bocados de interpretações sobre meu
comportamento, tanto das garotas que me conheciam, mas
principalmente dos garotos que agiam com muita naturalidade e

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brincavam com coisas que pra mim eram assuntos muito sérios. Eu nunca
brinquei com o coração de ninguém mas por duas vezes fui eu quem se
sentiu usado ou não levado a sério. Nunca foi minha intenção fazer nada
do tipo e, com certeza, se eu soubesse que seria assim, jamais teria cedido
minha dedicação e tempo a elas. Então eu estava há muito tempo meio
que desmotivado ou desinteressado em querer namorar; inclusive, muitas
das minhas amigas da época nesse período entre 1997 e 1999 me
botavam apelidos como “arroz de festa” ou coisa do tipo.
Essa era minha situação naquele momento, enquanto eu assistia de
camarote aquele anjo cantando na minha frente; só contemplando e com
meus pensamentos voando. Então, para mim, se eu encontrasse alguém
ao ponto de eu ter que pedir pra namorar eu deveria sentir algo diferente,
algo especial. Eu mesmo pedi muitas vezes a Deus isso, esse tipo de sinal
ou sentimento; e não fiquei parado apenas esperando ou aguardando!
Durante esses dois anos anteriores eu tinha visitado dezenas de igrejas
participando de muitos projetos de música, com grupos, corais, quartetos
e demais conjuntos. Eu também participava tocando instrumentos e
conheci bastante gente; tanto que naquele ano cheguei até a fazer uma
apresentação em um teatro com um grupo relativamente famoso da
época, e então assim eu tive oportunidade de conhecer várias pessoas,
principalmente garotas da mesma faixa etária, mas mesmo assim o tal
sinal eu não vi ou senti. Se chegou a rolar clima com alguém alguma vez
foi unilateral e não rolou nada; então passei muito tempo sozinho mesmo,
vivendo a minha vida jogando meus videogames, mexendo no
computador que meu pai comprou para minha irmã nesse meio tempo e
trabalhando muito para sobreviver, ou para poder comprar algo para
comer ou para ir em algum lugar... enfim, nada de mais - tudo normal.
Aquele momento naquela ocasião estava sendo completamente
diferente de tudo o que eu tinha sentido antes, e no momento da
ocorrência eu não estava assimilando ainda e nem saberia explicar até
hoje, de forma lógica, do porquê de estar prestando tanta atenção
naquela pessoa. Mesmo assim vou tentar detalhando minha percepção,
porque, veja bem, ela não era de um padrão estonteante de beleza que
chamasse tanto a atenção. Ela sequer tinha corpo definido, até porque ela
tinha somente 16 anos, mas dava para se notar que ela não levava muito a
sério a questão de aparência, de se produzir igual as demais, como pela
ausência de roupa de moda e até de maquiagem. Os cabelos pra mim
eram lindos, naturais sem tingimento ou alisamento (sempre digo isso a
ela que prefiro os cabelos naturais) e reparei até nos calçados que usava,
pois não tinham aqueles saltos que quase todas usavam para parecerem

82
mais altas – aliás, a altura dela impressiona até hoje. Como “cereja do
bolo” a voz dela, gente do céu, era de um contralto melodioso
encantador, mais grossa do que qualquer outra que eu tinha ouvido antes.
Ela estava cantando o tenor, literalmente, uma música cantada por um
tenor.
No momento do intervalo, que tem entre a escola sabatina e o
Culto Divino, é um período onde fazem anúncios na igreja; e as pessoas
que vão compor a plataforma se preparam para entrarem durante a
doxologia. Eu como pianista procuro o pregador do dia para saber quais
seriam as músicas e já me preparar, então eu fui para os fundos da área
externa da igreja na parte de trás, talvez beber uma água também; e,
nesse momento, quando eu passava pelo corredor, ela me aparece no
mesmo corredor, só que vindo na direção contrária. Ali foi quando os
nossos olhares se cruzaram pela primeira vez. Esse exato momento eu não
me lembro, juro para vocês (deveria estar pensando na ordem do culto,
preocupado com as músicas que iria tocar, sei lá), mas quem me conta o
que aconteceu até hoje é ela. De acordo com o relato dela, eu passei por
ela e olhei para trás depois que ela passou e ela também olhou para trás
para me ver. Foi ali que a gente se olhou de frente e de tão perto, mas é
claro, ou seja, é óbvio que a gente desvirou o rosto rápido, enfim, por
conta da vergonha, timidez ou coisa do tipo.
E aí, na hora do culto Divino, foi minha vez de participar da
programação tocando as músicas congregacionais, mas como a minha
característica social é muito limitada - ou seja, eu não consigo interagir,
conversar direito ou coisa que o valha - por mais que eu tivesse vontade
de conhecer de saber mais alguma coisa sobre ela, eu simplesmente não
consegui trocar uma palavra sequer com ela naquele sábado. Ela foi
embora e eu nem sabia para onde que ela tinha ido ou de onde ela era.
Passaram-se alguns dias, talvez semanas, até que o pastor da igreja
me procurou para me fazer uma proposta. Estava chegando o mês de
fevereiro, e com isso o Carnaval, e como toda a igreja que normalmente
fazem nesse período do ano, estariam realizando um retiro espiritual com
a participação de todos que se interessassem. Haviam alugado um sítio
com o local apropriado para poder abrigar lá todo mundo durante o
período de Carnaval, com alojamentos, camas, quartos e alimentação
inclusas; fizeram um pacote interessante e convidaram a igreja toda para
participar. Sairia um ônibus da igreja e levaria todos que quisessem e aí na
Quarta-feira de Cinzas voltaríamos. Porém, tudo isso não tinha como sair
de graça, né!? O problema é que o valor, o preço do tal passeio era, se não

83
me falha a memória, de R$60,00. Na época isso era muito dinheiro,
praticamente meio salário-mínimo (em FEV/99 era R$130,00) e
correspondia a 1/3 do meu salário até então, além de que e eu não estava
interessado em participar desse acampamento de Carnaval. Conversa vai,
conversa vem, e o pastor queria insistir porque eu ajudaria na
programação e ainda ele me prometeu que eu não precisaria ficar na
cozinha (situação que acontece normalmente para quem vai participar
desses eventos, pois muitas das tarefas normais do dia-a-dia são divididas
entre os participantes), logo eu ficaria apenas com o teclado tocando, mas
com a obrigação apenas de estar à disposição em todo o tempo e
participando de todos os cultos.
Foi aí que eu tive uma ideia e falei para ele o seguinte: “...tá bom, eu
posso até ir, mas só se você conseguir trazer aquela menina que cantou
naquele dia...”. Eu nem sabia o nome dela, mas ele sabia exatamente de
quem eu estava falando, pois cheguei a conversar com ele a respeito
despretensiosamente numa situação anterior, alegando se tratar de um
projeto musical. Continuei: “se você conseguir trazer aquela menina que
estava cantando aquele dia, se ela for para acampamento, se ela tiver lá
eu também vou, combinado? Fechado?” E aí o Wilson falou “fechado” e
então apertamos as mãos. Ficou combinado dessa forma. Um fato
engraçado é que ele me confessou semanas depois de estar tentando
colocar ela “na fita” de outro rapaz lá na época, mas aceitou meio que
surpreso a minha proposta. Ainda bem, pois a tal criatura recomendada
nos anos seguintes se mostrou nem um pouco estável em suas relações,
colecionando 4 esposas diferentes até o momento – com certeza ela
sofreria e só de pensar nesta possibilidade me bate uma angústia
tremenda.
O problema é que, tanto eu quanto muitas pessoas, não confiavam
muito no que o tal pastor da história falava na época; eu mesmo não levei
muito a sério esse acordo que eu tinha feito com ele. Porém, os dias
foram se passando, até que chegou a tal sexta-feira de Carnaval antes da
semana do retiro espiritual. E aí, como eu morava próximo da igreja,
naquela tarde quando eu desci do ônibus voltando do trabalho, em vez de
eu ir direto para a minha rua onde eu morava, eu só andei um quarteirão
a mais para poder passar justamente na frente da igreja e poder ver o
pessoal indo para acampamento. Eu sabia que o ônibus ia sair só quando
tivesse quase escurecendo, bem mais tarde como sempre, e naquele
período da tarde o pessoal iria começar a chegar e muito provavelmente
ficariam conversando em frente à igreja. Eu fui mais de curiosidade e, até
certo ponto, eu acho que eu tinha até esquecido do acordo que eu tinha

84
feito com o pastor; afinal, depois da conversa sobre participar do
acampamento, ele até então não havia me falado mais nada!
Foi naquela tarde de sexta-feira que, quando eu cheguei na frente
da igreja, notei que tinha algo diferente: tinha uma menina diferente
sentada em cima de uma mala, na frente do portão da igreja, e eu
reconheci instantes depois de quem se tratava. Pronto! Bateu desespero,
lembrei de tudo na hora e aí naquele momento eu não sabia mais o que
fazer. Só lembro que eu corri dali e fui para casa, peguei a primeira
mochila que eu vi e comecei a ensacar de qualquer jeito algumas roupas
que eu iria precisar para o final de semana: roupa para culto, roupa para
sei lá mais o quê, para ir para a piscina, para jogar bola para e tudo mais.
Além também de coisas pessoais e de limpeza, é claro, como toalha, pente
e escova, mas esqueci de algumas outras coisas, como objetos de
cozinha.; mas, tudo bem, pois tive ajuda da cozinheira chefe (minha avó,
hehehe) durante o período.
Passei no barbeiro da esquina, na mesma rua da igreja, para cortar o
meu cabelo. Uma curiosidade muito interessante sobre esse dia é que o
estilo do meu cabelo, até então, sempre foi penteado para os lados, na
maioria das vezes um pouco mais comprido do que o normal, desde que
eu nasci; e, naquele dia, o barbeiro estava inspirado! Eu falei para ele um
pouco da situação em que eu estava vivendo e parece que ele entendeu.
Tanto é que ele simplesmente cortou meu cabelo completamente
diferente de antes – ficou curto, penteado para trás e totalmente
arrepiado. Ele me arrumou um gel fixador e a partir dali eu passei a fazer
uso do cabelo de forma diferente.
Então eu fui em direção à igreja e ainda havia bastante tempo, pois
as pessoas ainda estavam chegando. Tanto que, quando eu cheguei lá, o
ônibus sequer havia chegado pois não tinha nada estacionado em frente à
igreja. Só que eu não fui diretamente à ela; fiquei apenas olhando, de
longe, e registrando na minha memória de longo prazo a contemplação
daquele quadro inesquecível. Ela estava com fone de ouvido, ouvindo
alguma fita provavelmente, e estava usando um short preto que tinha
uma cordinha branca que prendia a cintura, além de uma camisa branca.
Provavelmente existem vários detalhes que eu vou lembrar, como a forma
do cabelo, o jeito que ela prendia ele (e ele se soltava vez ou outra), os
gestos e coisas do tipo, mas se tem algo mesmo inesquecível é que eu
treinei várias frases para tentar começar uma conversa com ela. Eu devo
ter ensaiado dezenas palavras na tentativa de quebrar o gelo e em
determinado momento ela deve ter me notado e percebido meu

85
nervosismo de longe. Tanto é que eu lembro de ter captado uma certa
simpatia e conexão que me deu um tipo de alívio e conforto; foi nesse
momento que eu decidi ir e conversar com ela. Eu tinha que falar alguma
coisa, pois sabia que estava me vendo também e que por eu estar
encarando ela por tanto tempo pressenti que se não fizesse algo naquele
momento, talvez perdesse a única chance de causar uma boa primeira
impressão!
Larguei tudo, a vergonha e o medo, e deixei todos esses
pensamentos de lado e definitivamente fui em direção a ela para falar.
Quando cheguei a poucos centímetros dela apareceu de repente, do nada,
uma amiga de infância; uma criatura extrovertida, que fala pelos cotovelos
e se meteu no meio de nós, a poucos centímetros de ambos. E aí começou
a falar, e conversar, e fazer perguntas... Para encurtar a história, chegou
num ponto em que ela pegou no ar o que realmente estava rolando
segundos antes de ela chegar ali e, maliciosamente, arquitetou um plano
que, de alguma forma, acabou dando certo – pelo menos para ela. E não é
que conseguiu um jeito de mexer os pauzinhos para fazer com que eu e a
Adriane nos sentássemos no mesmo banco do ônibus e fôssemos a
viagem toda grudados um do lado do outro?
Uma curiosidade absurda, insana e inexplicável, para não dizer
bizarra, foi que em todo esse meio tempo, entre a chegada na frente da
igreja e a saída do ônibus, eu não consegui falar nada com ela. Pior de
tudo, nós entramos no ônibus, sentamo-nos juntos, conversávamos com a
galera ao redor, cantávamos, brincávamos e tal, mas entre nós dois eu
não consegui falar nada com ela durante essa 1 hora, 1 hora e meia de
viagem. Chegamos no local do acampamento naquela sexta-feira à noite,
todo mundo procurou os alojamentos e fizeram seus respectivos check-
ins. Eu tive que dormir junto com os equipamentos e outras bolsas da
própria igreja, num salão improvisado na casa principal daquele sítio,
porque eu não tinha pagado pelo acampamento - e até hoje não paguei
nada. Mas, não me importei com nada, de forma alguma, de ter que
dormir no chão em um colchonete que sobrou de alguém, pois eu estava
ali amarradão, tranquilo e feliz, porque eu estava ali e ela também. EU
teria 4 dias para conhecê-la melhor e tentar pelo menos entender o que
era aquilo que eu estava sentindo, pois nunca tinha experimentado nada
semelhante antes. De alguma forma eu sabia que ela era o presente de
Deus para mim, minha alma gêmea e por quem eu esperava por tanto
tempo, só que não era nada daquilo que eu imaginava que seria. Afinal,
como posso gostar tanto de alguém que nunca troquei uma palavra
sequer?

86
Durante todo o dia de sábado participei de todas as programações
ativamente, sem ter muito tempo nem para pensar direito; e chegou o
horário do almoço, passou um período da tarde e nada da gente se falar.
O pessoal todo, ensaiando para a programação que ia fazer no horário do
pôr-do-sol, se reuniu e ela estava naquele meio. Foi aí que, nesse intervalo
de tempo, eu descubro que ela também tocava piano! Caramba, e ela
tocava melhor do que eu – e tocava lendo partitura!!! Enfim, além de
cantar ela também toca – e compõe; pensei comigo: ela é perfeita! Não
tem outro adjetivo. Tudo parecia encaminhado, mas eu ainda não tinha
coragem de falar com ela.
Aquele momento na tarde do dia anterior foi apenas um momento
que passou e eu perdi a chance de falar quando tive oportunidade e
coragem. Já ela, também era bem introvertida (ou até mais do que eu) e
não proferia uma palavra sequer; também não conversava, não dizia nada.
Até que, enfim, o dia escureceu e aquela tarde acabou. Já era noite e
depois do jantar, depois de muitas trocadas de olhares e tentativas
frustradas de falar algo com ela, eu tomei a iniciativa e decidi puxar ela
para um canto mais reservado para me abrir com ela. Perguntei se ela
queria conversar e ela aceitou ’de boa’. Fomos para um lugar um pouco
mais afastado, porém em um local um pouco mais alto daquele terreno
todo do acampamento. Apesar de ser mais distante das atrações daquela
noite de sábado era um local onde quase todo mundo que estivesse
acordado poderia ver onde estávamos e o que nós estaríamos fazendo. Lá,
inclusive do nosso lado, existiam algumas redes e só depois de sentarmos
em um banco para conversarmos descobrimos que uma delas estava
ocupada por um tio, atualmente falecido. Então, quando ele percebeu
nossa presença e entendeu a intenção da situação falou algo do tipo:
“pode fazer de conta que eu não estou aqui” ou “faz de conta que não
tem ninguém aqui”, provavelmente para deixar a gente bem à vontade
com o que poderia rolar ali no momento.
Estávamos nós dois, pela primeira vez, sozinhos (de certa forma) e
eu com a melhor das intenções, numa situação inusitada e totalmente
atípica se comparada a todas as que tive anteriormente. Eu fui direto ao
ponto e conversei com ela a respeito do que eu sentia, do que eu estava
querendo dizer e comecei a falar de nós; talvez tenha perguntado do que
ela estava achando, como estava se sentindo e, em determinado
momento, a pedi em namoro. Perguntei se ela queria namorar comigo, se
ela me aceitava como namorado e ela disse que “a gente podia tentar”.
Nessa hora eu fui até um pouco ríspido em seguida, porque eu respondi
algo do tipo “você quer mesmo ou não?” e foi aí que ela disse o tão

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aguardado SIM. Foi só quando ela falou sim que nós demos o nosso
primeiro beijo; e foi naquele primeiro beijo que eu descobri, sentindo lá
no fundo do meu coração, que realmente eu ia passar o resto da minha
vida com ela.
Apesar de ela ter apenas 16 anos, e eu que estava com 19, éramos
simplesmente 2 adolescentes imaturos e inexperientes em se tratando de
relacionamento amoroso, mas de alguma forma eu sabia que a minha
oração a Deus estava sendo atendida naquele momento. Foi por isso que
naquele mesmo instante, depois do primeiro beijo, a primeira coisa que
nós fizemos juntos em seguida, foi pedir licença e sugerir que fizéssemos
uma oração. Óbvio que ela concordou e ali, sentados naquele banco, de
mãos dadas, nós oramos a Deus e pedimos a Ele para que estivesse à
frente daquele namoro; que eu estava de coração agradecido a Deus pela
pelo privilégio de eu ter oportunidade de conhecer tão cedo a minha a
minha outra metade.
A partir dali uma rotina que nunca falhou, desde o primeiro dia de
namoro até o primeiro dia de casados (exatos 4 anos, 3 meses e 17 dias)
foi que nós nos falávamos praticamente todos os dias, mas todas as vezes
que nos encontrávamos pessoalmente e namorávamos, sempre fazíamos
uma oração de despedida; sempre nós orávamos depois de cada
momento juntos. Isso nunca deixou de acontecer, nunca deixei de orar em
encontro algum. Aliás, no nosso primeiro ano de namoro, no ano 2000,
nós completamos pela primeira vez um ano bíblico completo (leitura
diária e consecutiva de capítulos devidamente programados). Nós lemos a
bíblia toda, completa, e discutíamos e conversávamos sobre a Bíblia.
Também foi um ano fantástico, maravilhoso ano 2000, quando nós
pudemos nos conhecer melhor e conhecer nossas famílias, se acostumar
com o nosso jeito de ser. No início do namoro ela soube da minha
situação, de que eu morava naquele quartinho minúsculo, e logo depois
quando fui morar com a minha mãe num período em uma quitinete
pequena, e em seguida, que também ela conheceu melhor a minha mãe e
que 2 anos depois consegui alugar um apartamento e morei sozinho. Eu
mudei de emprego nesse meio tempo e passei a pagar integralmente
minhas contas, até que morei em outros 2 lugares antes de a gente se
casar.
Foi assim, nesse meio tempo, entre namoro e noivado, que nós
participamos de alguns projetos musicais juntos, cantando, às vezes
tocando, outras apenas ensaiando e dirigindo; chegamos a visitar dezenas
de igrejas. Porém, apesar da minha independência e maturidade de

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ambos ter evoluído, talvez por sermos tão novos, nossos pais nunca
aprovaram nosso casamento. Em 2001 nós ficamos noivos, bem no início
do ano, quando comemoramos nossos 2 anos de namoro. Convidamos
nossos pais para um almoço que preparamos e lá foram lá os 4 juntos
conosco (meus pais e os pais dela) no apartamento onde eu estava
morando. Eu havia comprado as alianças e ficamos noivos ali na frente
deles; não teve uma festa, não teve nada de mais, nem amigos
convidados! Foi algo em que decidimos e fizemos com a presença dos
nossos pais – aliás, eu não a pedi em casamento! Eu até hoje eu não pedi
diretamente a ela!!! Sim, eu pedi para os pais, mas aí é algo na qual não
sei se considero como uma gafe ou um erro, até porque, vez ou outra, ela
ainda me fala “tá bom, você não me pediu em casamento”. Realmente foi
uma decisão conjunta, decidimos “vamos nos casar”. A gente conversava
várias vezes a respeito, mas tinha algo que me incomodava e que eu falei
no começo do capítulo: eu não tinha um emprego bom e eu não ganhava
o suficiente; eu não tinha condições de sustentar uma casa - ainda mais
com mais uma! Então, a minha situação era muito precária e de certa
forma eu tinha vontade, mas também tinha medo de fazer o pedido sem
ter condições, ou de pelo menos ter uma casa ou um emprego estável.
Concordar, não concordaram; mas permitiram. Deixaram. A
condição era esperar mais um ou dois anos. Para mim, tudo bem.
Concordamos e fizemos nosso noivado desta forma e, durante os
próximos 2 anos, marcamos o nosso casamento - mesmo antes de
conseguir ser chamado para o meu emprego atual, na qual já estou lá há
20 anos. Graças a Deus tudo foi sendo encaminhado do jeito que deveria
ser; Ele fez tudo, na hora certa e no tempo certo. Tudo foi se ajustando, se
ajeitando e, mesmo se casando, nós não tínhamos nada: não tínhamos a
casa, não tínhamos geladeira, fogão, cama nem nada. Nós compramos
apenas um sofá e o colchão; a cama foi presente de uma tia dela e o
guarda-roupas o padrinho dela quem deu o valor para comprarmos a
vista, mas ele não chegou. Quer dizer, até chegou, mas faltando alguns
pedaços! Tivemos várias dificuldades e problemas, mas que no final deu
tudo certo. Enfim, nos casamos e estamos vivendo essa história até hoje.

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GLOSSÁRIO

Alagados, Trenchtown – Em 1986 os Paralamas do Sucesso emplacaram a


canção “Alagados” escancarando na mídia as mazelas da desigualdade
social e a hipocrisia dos que dizem se importar com as classes menos
favorecidas. Na letra também faz referência a Trenchtown, subúrbio da
Jamaica, um país colonizado pelos Britânicos mas que possui favelas bem
similares às mencionadas pela música do trio Bi Ribeiro, João Barone e
Herbert Vianna. Já Alagados é um bairro pobre de Salvador/BA que a
banda faz um paralelo com a Comunidade da Maré aqui do Rio de Janeiro.

Anjo Bom – Este era o título da música tema da novela Chispita que foi ao
ar no SBT em março de 1984 e fez um relativo sucesso. Os compositores
dela são curiosamente Mario Lucio de Freitas e Marcelo Gastaldi – ambos
famosos na área de dublagem, sendo que o primeiro foi o dono dos
principais estúdios paulistas entre os anos 80 e 90, como a Marshmallow,
a Maga e a Gota Mágica, enquanto o segundo era só a voz do Chaves, por
exemplo, mas famoso na TV desde os anos 50.

Caixinha de Surpresas – Não, não vou falar sobre Joseph Climber,


personagem do Welder Rodrigues e os revezes que passa durante a
história dele. Também não vou associar ao futebol ou a famosa frase do
Benjamim Wright que usou ela pela primeira vez. A origem da expressão é
mais simples do que parece, pois não há ninguém no mundo que não
tenha recebido um presente misterioso. Aliás, a grande maioria dos
brindes são de fato surpresas – mesmo sendo boas ou ruins. Nada mais é
do que um presente embalado, cujo conteúdo só é sabido após aberto.

Dorme Dormideira – Esta é uma referência à planta “mimosa pudica”,


mas mais conhecida como “não-me-toque”. A curiosidade é que pertence
à família das ervilhas e pode ser usada para tratar feridas, dores e
problemas de articulação. Na prática a gente tocava nela só para ver as
folhas se fechando enquanto cantávamos essa canção: “...dorme, dorme,
dormideira, para acordar segunda-feira...”.

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Família Ê, Família A, Família – É uma frase repetida diversas vezes no
refrão da música “Família” de Tony Belloto & Arnaldo Antunes eternizada
no som dos Titãs. O álbum Cabeça Dinossauro foi icônico no final dos anos
80 e até minha professora de português na 5ª série levou uma vitrola e
um vinil para sala de aula e a atividade era analisar a letra de “Homem
Primata”. Não tem como não recomendar a maioria das faixas desta obra,
exceto pelo famigerado “Bichos Escrotos” que, aliás, foi tocada no fatídico
dia – e sem censuras! A professora foi aclamada na época, mas se fosse
hoje em dia aconteceria o inverso – provavelmente seria “cancelada”.

Ferve Ele no Óleo – Esta é a frase do papagaio do pirata “Terrível Mão de


Martelo” do desenho animado Thundercats, cujo apetite do seu dono por
unicórnios (???) fez com que os protagonistas intervissem no grupo dos
Berserkers. Para entender o contexto, só assistindo ao desenho animado.
E a frase era proferida e repetida pelo papagaio a todos que desafiavam o
tal pirata, que ameaçava jogar todos os personagens (que podiam ser
animais, robôs e demais seres antropomórficos) num caldeirão de óleo
fervente.

Memória de Longo Prazo – Memória é a capacidade mental de que possui


a função de codificar, armazenar e recuperar informações. As memórias
são divididas em 3 tipos, a saber: sensorial, operacional e a de longo
prazo. O tipo mencionado nos permite acessarmos estes registros sempre
que necessário e são armazenadas de forma distinta das demais e podem
ser explícitas (semânticas ou episódicas) ou implícitas. Ou seja, podem ser
aprendidas fazendo e assistindo ou de um jeito menos controlado, como
por exemplo de forma automática.

Organofobia – Existe fobia para tudo e esta pode ser mais normal do que
se imagina. Esta se refere ao medo de seres de vida sintética, digamos
assim; basicamente formas de vida artificial, como robôs, androides e
demais aparelhos ou componentes eletrônicos autômatos. Ou seja, pavor
de que máquinas assumam definitivamente o lugar dos humanos. Com o

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advento de novas formas de vida autônomas, como o ChatGPT, o medo se
intensificou de uns tempos para cá.

Parques e Recreação – Se trata da tradução direta do título de um seriado


norte-americano que ganhou outro nome em português: “Confusões de
Leslie”. Assim como todas as séries cômicas da NBC não fez muito sucesso,
mas conseguiu durar 7 temporadas. Alerta de spoiler, desta série surgiu a
teoria atual do avião invisível flagrado pelo Google recentemente.

Pérola de Grande Preço – Esta é uma referência direta à Parábola de Jesus


relatada na Bíblia no livro de Mateus capítulo 13 nos versículos 45 e 46.
Nela um comerciante vende tudo o que tem para comprar a tal pérola que
ele viu sendo negociada, pois sabia que ela valeria muito mais do que o
que cobravam, mesmo sendo muito cara. Então a expressão é usada para
explicar sobre coisas que são mais valiosas do que parecem.

Resumo da Ópera – Hoje em dia esta expressão faz cada vez mais sentido,
pois significa que o interlocutor já está cansado de ouvir a história que
está sendo contada e quer que termine logo. A origem da palavra italiana
“Ópera” tem a ver com qualquer tipo de obra (arquitetura, literária,
pintura e etc), então não se refere apenas a música. O mais provável é que
tenha se popularizado no século XVII quando o teatro lírico incorporou
para si o significado, porém suas execuções demoravam muito. Daí surgiu
a busca dos apreciadores em formas condensadas dessas obras, dando
início aos famosos resumos que existem até hoje!

That 70’s Show – Esta expressão se refere ao título de uma série de TV do


final dos anos 90 que contava a história de um grupo de jovens que viviam
no Wisconsin entre 1976 e 1979. Esta foi também uma das primeiras
séries que assisti quando me casei em 2003 e tivemos pela primeira vez na
vida assinatura de TV. Desde então nunca mais acompanhei nada pela TV
aberta analógica.

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