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Um caixão fechado. Condolências. Lágrimas. Interrogatório. Sussurros. Pena.

Roupas novas. Mudança. Avião. Frio. Corte de cabelo. Escola. Solidão. Pesadelos.
Vazio.

A Dra. Lindsey era a única que falava espanhol na região. Era mais um alguém que
tentava decifrar aqueles olhos vazios. Era outra pessoa para olhá-lo com uma
compaixão degradável.

“I’m sorry” ela disse. Foi a primeira frase que ele aprendeu em inglês. Ouvira
algumas vezes antes dessa. Todo mundo parecia lastimar algo quando o via.

Ela lhe deu papel e giz, lhe perguntou se gostava de piano, ele não respondeu e
ela botou uma música para tocar mesmo assim. As notas ecoaram em seu peito.
Melancolia? Paz? O papel e os gizes jazem na mesinha à sua frente.

E um mês se passou daquele jeito, no silêncio, na inércia, numa sala cinza com
papéis, giz de cera e músicas de piano.

“I don- I don’t see any improvement, Doctor. ”

“A case like this can take a lot of time, ma’am…”

“I know… I know, it’s just… It’s been two months already, I can't…” Um suspiro.

“Well, I may warn you, then,” um apelo “it might take years for him to fully recover
to something like this.”

E outro mês se passou.

“Nah, I dunno if he can understand us, at all…”

“Shush! Don't say that! I heard he is special! ”

“No, he is not! He just wants attention, ” um tom ríspido, um volume um pouco mais
alto. O professor os calou.

Mais um mês. Remédios. Papel, giz e música. Uma bandeja no refeitório derrubada
de propósito. Risadas. Olhares. Pânico.

Com isso ele mudou de escola, mas não foi uma decisão sábia, não, longe disso.
Ele era um brinquedo novo. As crianças estavam curiosas, os professores, em sua
maioria, sentiam pena; os pais, bem…eles sentiam uma mistura de raiva, medo e
nojo. Ele nunca entendeu o porquê, entretanto.

Em algumas semanas nessa rotina nova ele aprendeu a não sentir, a não estar
presente, a ser apenas uma casca vazia. Era libertador, na verdade, o dia passava
sem que percebesse, mas isso não deixou a Dra. Lindsey muito feliz.
Até que dias se tornaram semanas, e então meses, e dois anos se passaram. Sua
tia separou-se do marido pouco depois que Joseph, seu filho, se mudou por causa
da faculdade. George não sabia, mas sentia que aquilo era sua culpa.

A maior parte dos dias, quando ele não estava na escola ou atento a algum
desenho da tv, ou até com a Dra. Lindsey; e quando sua tia não estava no trabalho,
eram apenas os dois naquela casa, em silêncio. Ela com um copo de vinho nas
mãos, assistindo o garoto sentado no chão e rabiscando algo no papel.

“¿Qué haces, niño?” Sem resposta. Um suspiro. Um gole no vinho. “Sabes que
tienes que hablar en algún momento, ¿no?”

Ele continuou sua pintura, e ficou assim por alguns minutos até que a tia se
levantou e sentou no chão à sua frente, o papel entre eles. Ele não levantou o olhar,
preenchia grande parte da folha num vermelho escarlate, que à primeira vista algo
sem nexo, mas a Dra. Lindsey havia lhe mostrado a lógica e os padrões naqueles
rabiscos. Mais alguns minutos em silêncio.

“Wanna see something?” Ele não respondeu, mas ela também havia aprendido a
notar essas mudanças tímidas no rosto do garoto; uma piscadela, uma contração
nos lábios, seus olhos mexendo rapidamente de um ponto para outro. Ele estava
curioso. Ela sorriu, deixou o copo no chão e se levantou, estendeu-lhe a mão e ele
pegou seu indicador. Ela o guiou pelas escadas até o segundo andar, até o sótão,
acendeu a luz — que não fez um trabalho tão bom assim — e puxou o pano de cima
do que parecia um móvel bem grande. Poeira voou. Ela tossiu. Ele espirrou.

Um piano.

“It’s probably out of tune, though…” Ela coçou a nuca e tocou uma tecla, sujando o
dedo de poeira “We could put it downstairs, what you think?”

Uma piscadela, os olhos abrindo um pouco mais, levemente.

Ela sorriu e espalmou o topo da cabeça do menino. Carinho.

No dia seguinte o instrumento já estava no andar de baixo, limpo, graças ao


esforço dos dois que descansavam no quintal. Um copo de suco na mão de cada
enquanto esperavam o homem que viria afinar o piano.

Um sorriso. Um desvio de olhar. Um gole no suco e um suspiro. Um mês se passou.

Dra. Lindsey introduziu algo chamado "comunicação alternativa”, na verdade, por


diversas vezes no passado, ela havia tentado, dessa vez só dando certo porque o
menino queria. Era um tipo de tablet e estava funcionando.

O menino mostrava interesse em pintar, em tocar piano, mas mantinha-se ainda


em seu mundo. Não conseguia — ou não queria — interagir com outras pessoas. Ele
gostava de animais também, talvez porque não falavam.
Um passo de cada vez.

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