Você está na página 1de 39

Quando você perde também ganha – Rodriguez, T.S.

Copyright © 2019 T.S. Rodriguez


Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial do conteúdo desta obra sem o
consentimento prévio da autora.

1ª Edição – Julho, 2019

Capa, Revisão e Diagramação: T.S. Rodriguez

Esta é uma obra de ficção e qualquer semelhança com nomes, datas ou acontecimentos reais é por
mera coincidência.
“O verdadeiro amor acontece por empatia, por magnetismo, por conjunção
estelar.”.
Arnaldo Jabor.
Capítulo Único

P edro caminhou pelos corredores do colégio esbanjando a confiança


de sempre. Avistou os dois melhores amigos e foi até eles enquanto
cumprimentava pessoas diferentes com um aceno de cabeça.
Havia um grande contraste entre os meninos, já que Marcos era alto e
corpulento e Juninho era magro e não chegava nem ao ombro do outro.
Bateram as mãos para saludar o recém-chegado e os três se distraíram por um
momento quando Isabela, outra aluna, passou ao lado deles sorrindo e
movendo o cabelo comprido.
— Oi, meninos. — A garota disse lançando a Pedro um olhar um pouco
mais longo.
— Mano, essa mina tá muito a fim de você. — Marcos comentou.
— E nem se dá ao trabalho de disfarçar. — Acrescentou Juninho.
Abriu um sorriso presunçoso. — Vamos ver no que dá.
Seguiram para a sala de aula e Juninho apontou para a porta poucos
minutos depois. — Olhem só quem tá entrando. — Os outros dois se viraram
para olhar. — A gente falando de mulher e chega justo o que não gosta da
fruta!
Pedro riu junto com os amigos porque não admitiria a verdade. Achava
o jeito de Vinicius legal. Era como se o garoto sempre dominasse o ambiente.
Talvez fosse por causa da forma como andava, com a postura reta e a cabeça
erguida, ou porque sempre conseguia passar a impressão de que tinha tudo
sob controle. O fato era que, Pedro constantemente se pegava prestando mais
atenção nele do que deveria.
Vinicius passou por eles e Marcos fez um sinal para que os amigos
olhassem. Pôs uma falsa cara de ofendido. — Mano! Você passou a mão na
minha bunda?! — Gritou malicioso.
Juninho riu alto e Pedro se juntou a ele uma vez mais para não ficar
atrás. Até que tinha sido engraçado.
Vinicius revirou os olhos e respirou fundo reunindo paciência. — Não,
Marcos. Eu não passei a mão na sua bunda porque tenho bom gosto e seu
bumbum não é tão bonito assim.
Àquela hora, a sala já estava quase cheia e todos os presentes caíram na
gargalhada. Só Vinicius não estava rindo. Caminhou seguro de si até sua
carteira e sentou sem dizer mais nenhuma palavra.
O professor de matemática chegou para a primeira aula e acabou com a
agitação.

— Vai ser demais! — Juninho exclamou entusiasmado do banco de trás


do carro. Marcos estava sentado ao lado dele e Pedro no banco do carona. O
irmão mais velho de Juninho concordara em levá-los à festa de um garoto da
escola no centro da cidade e o clima no veículo era de empolgação pura.
— Vai mesmo. — Concordou Marcos. — E sabem quem vai estar lá?
A Isabela.
Pedro sorriu satisfeito. A garota havia estado demonstrando interesse
nele há algum tempo e já era hora de agir. Por que não? — Então vou tentar a
sorte. — Anunciou arrancando frases de incentivo e aprovação dos outros
meninos.
Todos riam despreocupados quando as luzes de um farol brilharam nos
olhos de Pedro o obrigando a virar o rosto. Sentiu o carro dar uma guinada
para a direita e num instante estavam fora da estrada. O resto aconteceu
rápido demais…
— Pronto. Tudo instalado e pronto para usar. — Disse sua mãe
entregando o controle remoto da televisão da sala que ela mesma transferira
para o quarto do filho.
Pedro olhou para as pernas engessadas, apoiadas em uma almofada.
Não havia filmes e séries o suficiente na Netflix para aguentar aquilo.
— Ah, não faça essa cara. — A mãe pediu lendo seus pensamentos. —
O tempo passa rápido. Logo, logo você vai estar bom.
— Bom? — Repetiu mal-humorado. — Vou mancar pro resto da vida e
tem um monte de coisas que eu nunca vou poder fazer, mãe. — O acidente
havia sido grave e ele e Cadu, o irmão de Juninho, levaram a pior. Os que
estavam atrás tiveram ferimentos leves, mas o motorista quebrou duas
costelas, teria que colocar prótese na boca para substituir os dentes que não
puderam ser recuperados e ficou com uma cicatriz enorme na coxa.
E Pedro… As duas pernas quebradas em vários lugares. Uma semana
depois do acidente e já havia passado por três cirurgias.
Sua mãe balançou a cabeça como querendo espantar pensamentos
ruins. — Podia ter sido pior.
— E o que pode ser pior do que ficar dois meses preso numa cama?
— Existem muitas coisas piores que isso, Pedro. Você podia ter
morrido. Já parou pra pensar que por causa de um bêbado qualquer que
resolveu sair dirigindo por aí, eu podia ter perdido meu filho pra sempre? —
Os olhos dela ficaram molhados. Já era a quarta vez naquele dia.
— Para com isso, mãe. Eu tô aqui. Seu filho tá vivo. — Consolou sem
um pingo de felicidade.
Ela sentou ao lado dele na cama. — Amor, você recebeu uma segunda
chance. Muitos não têm essa oportunidade. Seu pai não teve.
Droga! Mencionar o marido morto já era demais!
— Não é tão ruim assim. — Continuou — Você vai ficar deitadão,
assistindo TV, comendo porcaria. Tá ótimo! — Deu um beijo na cabeça do
filho. — Se lembra do que o pai dizia?
— "Às vezes quando você perde também ganha”. — Pedro citou
consciente de que aquela frase era o cúmulo da positividade.
— Isso. Vai dar tudo certo. Você vai ver.

Vinicius estava sentado na frente da diretora Andréia sem poder


acreditar no que ouvia.
—… E ele vai fazer algumas das aulas, como a de História, por
exemplo, online, mas vai precisar de ajuda com várias coisas. — Ela parou de
falar e ficou esperando por uma reação. Continuou após não obter nenhuma.
— Os professores também vão ajudar enviando material por e-mail.
— Se os professores vão enviar as lições por e-mail, pra quê a senhora
precisa de mim, Diretora?
— Algumas coisas precisam de explicação. — A mulher tinha um
pouco de irritação na voz. Ela mudou a postura e assumiu outra mais tirânica.
Provavelmente achando que uma boa maneira de conseguir um favor era
obrigando a outra pessoa a aceitar fazê-lo. — Fica no caminho da sua casa e
você não tem nada a perder.
— Vou perder tempo.
Ela o ignorou a começou a pegar papéis aleatórios e movê-los de um
lugar para outro na mesa, deixando obvio que só queria parecer ocupada. —
Não custa nada, né?
— E por que a senhora não pede para os amigos dele fazerem isso? O
Marcos ou o Júnior.
— Porque eles são amigos. Vai acabar virando bagunça. E como você é
o melhor aluno da sala, achei que iria querer ajudar seu colega. O coitado está
com as duas pernas quebradas e vai ter que ficar pelo menos dois meses de
cama. Imagina!
Vinicius imaginou. Um calafrio percorreu seu corpo.
A Diretora continuou tirando papéis de um lado da mesa e passando
para o outro. — Então apareça na casa dele, explique rapidamente o que foi
visto na sala de aula naquele dia e pronto. É só isso que você tem que fazer.
Vou avisar a mãe do Pedro que você passa por lá depois da aula de hoje.
— Hoje? Mas hoje não posso.
— Por quê? Vai trabalhar? Tem muitos compromissos? — Todas as
perguntas foram feitas com um ar irônico. — E eu já avisei a sua mãe. Ela
concordou. Disse que não tem problema nenhum.
Nossa, diretora Andréia, muito obrigado por me coagir a aceitar fazer
um favor a um cara que sempre tira sarro de mim e não me ajudaria nem se
fosse pra receber um milhão de dólares! Sentiu a raiva crescer dentro de si,
mas a segurou porque a Diretora começou a mexer nos papéis de um jeito
mais frenético indicando que era o fim da conversa.
— Vou fazer o que puder. — Vinicius avisou levantando e saindo da
sala com vontade de gritar.
Tirou o celular do bolso e ligou para casa.
— Alô?
— Mãe, por que você disse pra diretora que eu ia ajudar aquele cara?
— Ela falou que era rapidinho. Que a casa do menino fica no seu
caminho e ele mora sozinho com a mãe. Não tem perigo.
— Não é pelo perigo! É que eu tenho cinco aulas hoje! Vou ter que
explicar tudo pra ele? Não posso chegar tarde ao ensaio.
Sua mãe ficou em silêncio por um momento.
— Ah... Acho que você não tem que explicar tudo. Deixa o garoto se
virar. Só ajude com as coisas que você considera que ele não vai conseguir
entender sozinho.
Vinicius soltou um gemido de frustração. — Que saco!
— Quer que eu ligue pra diretora e diga que você não vai poder?
— Sei lá. — Pensou por um minuto. — Não. Vou passar por lá rápido e
se perceber que não vai funcionar, aviso pro Pedro que não posso ir mais.
— Então tá bom. Qualquer coisa me ligue.
Ele desligou o telefone sentindo uma mistura de raiva e nervosismo.
Isso não vai dar certo. Pensou.

A casa tinha muros brancos e um portão verde-musgo. Vinicius bateu


palmas e uma mulher veio atender. Ela era basicamente uma versão feminina
de Pedro, com os mesmos olhos cor de mel e cabelo castanho.
— Vinicius?
— Isso.
— Oi. — Ela abriu o portão com um sorriso. — Eu sou a mãe do
Pedro. Fabiana. Pode entrar.
Vinicius cruzou o portão e ficou esperando que a mulher o fechasse e
tomasse a dianteira para caminhar até a porta.
— Você nunca tinha vindo aqui, né? Acho que não te conhecia.
— Não, senhora. Primeira vez que venho. — Ficou sem graça de dizer
“é que eu não sou amigo do seu filho”.
— Obrigada, viu? — Ela falou fechando a porta. — Estava com medo
de que ele perdesse o ano. Ainda bem que a diretora topou ajudar e conversou
com os professores. E vai ficar muito mais fácil para o Pedro com você vindo
aqui.
Não dava pra ser mais constrangedor. Vinicius sabia que era errado
deixar Fabiana achar que ele era um anjo encarnado e estava ali por todo o
altruísmo de seu coração quando em realidade só não havia conseguido dizer
não, mas preferiu apenas balançar a cabeça e ficar com a boca fechada.
— Ele está chateado, sabe? — A mulher continuou. — Sempre foi tão
ativo e agora… É uma situação estressante.
— Podia ter sido pior. — Vinicius comentou porque não podia ficar só
balançando a cabeça o tempo todo.
— É o que eu digo pra ele! Podia até ter morrido. — Ficaram por um
momento em um silêncio constrangedor. — Bom, vá até lá, é aquele quarto
ali. — Indicou uma das portas. — Você vai almoçar com a gente?
— Não, obrigado. Tenho que ir almoçar em casa.
Ela lançou um sorriso compreensivo e apontou para a porta do quarto
novamente.
Pedro estava pulando por canais de televisão com cara de entediado.
Lançou um olhar desinteressado.
— Posso entrar? — O outro perguntou com ainda menos empolgação.
Se é que era possível.
— Entra.
O garoto usava calças, mas dava pra ver o gesso em ambas as pernas e
um dos pés estava roxo. Tinha um quarto espaçoso. Sua cama ficava de frente
para uma parede coberta por móveis planejados que eram uma mistura de
guarda-roupa, gavetas e prateleiras. Uma delas, para a surpresa de Vinicius,
estava cheia de livros. Nunca achou que o colega fosse do tipo que lia.
Mesmo com todo o espaço de armazenamento, havia dezenas de
objetos aleatórios jogados pelos cantos; patins, um skate, algumas caixa de
jogos do Xbox.
Fabiana apareceu atrás dele com uma cadeira. — Toma. Fique à
vontade, tá?
— Obrigado. — Vinicius pegou o móvel das mãos da mulher e esperou
que ela saísse. Aproximou-se e posicionou a cadeira ao lado da cama.
— Então você é o escolhido para o sacrifício, né? — Pedro comentou
sarcástico.
— Pois é.
— Ainda não entendi porque ela mandou você aqui. — Finalmente
pousou o controle remoto. — Eu disse que o Marcos e o Juninho iam me
ajudar.
— Falei a mesma coisa, mas a diretora estava com medo de que virasse
uma farra, sei lá.
Pedro riu. — Muito provável.
— Fiquei sabendo que os professores vão te mandar a matéria e as
lições de casa por e-mail, então também não entendo porque precisei vir.
O garoto engessado coçou o pescoço parecendo um pouco sem graça.
— Ah. Acontece que o professor de Química não quis me mandar nada.
Falou que não “dava tempo” — Fez aspas com os dedos. — Mas é que ele tá
com raiva de mim porque uma vez falei que nunca ia precisar de Química pra
nada.
— Ironias da vida, né? — Vinicius brincou.
— Fazer o quê?
— Então você só vai precisar de ajuda com Química?
Deu de ombros — Nem precisa esquentar a cabeça. Posso me virar. E
os meus amigos vão ajudar com o resto.
Vinicius retirou o caderno da mochila. — Bom, eu já tô aqui mesmo.
— Abriu na matéria do dia. — Copie a teoria e depois eu te explico as
fórmulas.
— Ai, Equação Termoquímica! Detesto!
— Eu também, mas talvez não seja uma boa ideia dizer isso ao
professor. — Debochou. — Copie isso logo. Não posso ficar muito tempo.
Pedro apontou para o guarda-roupa. — Minha mochila tá lá dentro.
— Sério mesmo? — Levantou e foi até o guarda-roupa à contra gosto.
— Esta porta aqui?
— A outra.
Abriu a porta do lado e encontrou a mochila de Pedro jogada de
qualquer jeito em cima de uma pilha de roupas. A entregou com cuidado.
Esperou que o garoto copiasse as anotações e depois explicou a matéria como
pôde. Sem surpresas, Pedro entendeu tudo rapidamente e resolveu as
fórmulas sem nenhuma dificuldade. Vinicius confirmou as suspeitas de que
ele era inteligente, mas agia como tonto para não fazer feio na frente dos
amigos. Revoltante!
— Tenho que ir. — Anunciou depois de conferir o relógio. — Já é
tarde e eu ainda tenho que passar em casa pra me trocar. — Guardou o
caderno de volta na mochila e a colocou no ombro.
— Você trabalha?
— Não… Não é isso. — Respondeu não conseguindo encontrar outra
forma de desviar o assunto.
— Desculpa aí. — Pedro levantou as mãos. — Não sabia que era
segredo.
— Não é segredo. — Não havia motivo para se envergonhar, nem nada.
Era só que, a vida dele dentro da escola e a vida fora dela eram
completamente diferentes e ele nunca sentira a necessidade de misturá-las. —
Eu sou bailarino. Tenho um ensaio agora.
— Bailarino?
— Danço Ballet Clássico. — Explicou — Tô ensaiando para a
competição nacional. Fiquei em primeiro lugar na estadual, mas vou ter que
praticar muito se quiser ir bem na próxima.
Pedro fez cara de surpresa. — Nossa! Então você deve ser bom, né?
— Ser bom ou não em alguma coisa, só depende de quanto esforço
você deposita.
— Então tá! — O outro soltou impressionado. — E por que não queria
me contar?
— Porque não estava a fim de dar mais um motivo pra você e seus
amiguinhos zoarem com a minha cara.
— Ah, para. O Marcos pega pesado às vezes, mas é só de brincadeira.
Vinicius balançou a cabeça reunindo paciência. — “Brincadeira” seria
se todos achassem engraçado. Eu não acho. Quando só uma das partes ri e
outra fica ofendida ou chateada, deixa de ser brincadeira e vira bullying.
Sabia?
O queixo de Pedro caiu deixando claro que nunca havia parado para
pensar no assunto e, apesar de satisfeito com o impacto que havia causado,
Vinicius não tinha tempo para uma discussão tão séria naquele momento. —
Vai precisar de ajuda com alguma das matérias de amanhã? — Mudou de
assunto.
— Não. Tô tranquilo.
— Tem certeza? Nem com Biologia? Matéria da professora Luiza,
quem você mandou ir se catar ano passado?
Pedro começou a brincar com lençol. — É. Talvez eu precise de uma
ajudinha com Biologia também.
— Resumindo, se você fosse um aluno mais dedicado e respeitoso eu
não precisaria estar aqui.
Ele abriu a boca para responder e Vinicius o cortou. — Venho amanhã
na mesma hora.
Saiu do quarto deixando o outro com a reflexão do dia.
— Fiquei sabendo que a Diretora mandou você ir à casa do Pedro
passar a matéria. — Marcos falou assim que Vinicius pisou na sala de aula.
Disse tudo alto o suficiente para a sala inteira ouvir, como de costume. Tinha
um corte cheio de pontos ao lado da sobrancelha resultado do acidente.
— E? — Vinicius rebateu com desdém.
— Não vai ficar todo felizinho, viu? Ele gosta de mulher.
Júnior gargalhou alto com a piada do amigo e o resto da sala
acompanhou suas risadas.
— É mesmo? Porque eu jurava que era ele quem estava te comendo.
Então é outro?
A sala inteira desabou em risos, mas Marcos fechou a cara. Apertou os
punhos e deu um passo à frente insinuando que estava pronto para brigar. Foi
interrompido por Júnior que prudentemente o deteve.
Sorte. Já que segundos depois, a professora de Geografia entrou na
sala. — O que está acontecendo?
— Nada não, profe. — Júnior mentiu e ninguém contestou.
Todos foram aos respectivos lugares e Marcos continuou lançando a
Vinicius olhares cheios de ódio do fundo da sala. O rosto do garoto estava
vermelho de raiva e Vini fez questão de mandar um beijinho para provocar.
Funcionou. A cara de ódio de Marcos ficou ainda mais intensa.
Sorriu satisfeito, mesmo sabendo que estava brincando com fogo.
Marcos não era do tipo que deixava barato.

Bateu palmas na frente do portão verde-musgo. Esperou longos


minutos e nada de Fabiana aparecer. Tentou outra vez, um pouco mais forte;
Talvez ela não tivesse ouvido… Nada. Já estava desistindo quando percebeu
uma voz chamando seu nome de dentro da casa.
Abriu o portão e seguiu a voz até a parte lateral da casa. Parou na frente
de uma janela fechada. — Pedro?
— Não! O Chupa-Cabra! Lógico que sou eu! Empurra a janela. O
trinco tá quebrado, se você forçar ela vai abrir.
Seguiu a instrução e empurrou a janela de madeira. Ela abriu sem
dificuldade e o bailarino pôde visualizar Pedro caído ao lado da cadeira de
rodas.
— O que houve?
— Não tá vendo? Caí. — Ele grunhiu. — Você consegue pular?
Preciso de ajuda.
— Espere um pouco. — Se apoiou com as duas mãos no batente da
janela e deu um impulso. Conseguiu sentar e pular para dentro com agilidade.
Jogou a mochila no chão e foi correndo até o garoto. — Vou te levantar. —
Avisou. Enfiou as mãos debaixo dos braços de Pedro e o levantou. Ele
soltava gemidos de dor enquanto se apoiava na cama para tentar ajudar o
salvador a colocá-lo de volta em seu lugar.
Com o acidentado finalmente acomodado na cama, os dois limparam o
suor da testa. Entre o peso do corpo e o do gesso, havia sido uma façanha
poder segurá-lo.
— Estava tentando ir ao banheiro. Tô morrendo de vontade! — Pedro
falou olhando para a porta do quarto como se ela fosse um sonho
inalcançável.
— E cadê a sua mãe?
— Viajou a trabalho. É Aeromoça. Já tinha recusado duas viagens, se
recusasse outra ia perder o emprego. Ontem anoite ela contratou uma
enfermeira pra cuidar de mim e a filha da puta resolveu não aparecer.
— Então você tá sozinho desde ontem?
Assentiu frustrado.
— Deve estar morrendo de fome.
— O que você acha?
— Vamos parar de me atacar? — Vinicius pediu. — Não é minha
culpa.
Pedro levantou a vista com cara de surpresa. — Não tô te atacando.
— Não. Só está sendo um grosso!
O garoto não se defendeu. Suas orelhas e pescoço ficaram ligeiramente
vermelhos. Vinicius até que compreendia. Imaginou que depois de passar
horas sem comer e com vontade de fazer xixi, o mais provável era que
também estivesse irritado. — Vou te ajudar a ir até o banheiro e depois dou
uma geral na cozinha pra ver o que encontro de comer. — Sugeriu.
A cara de surpresa de Pedro ficou ainda mais pronunciada e o bailarino
a ignorou. Aproximou a cadeira de rodas da cama e depois repetiu o processo
de segurar e levantar. Fez o possível para tirá-lo da cama e sentá-lo na cadeira
sem machucar mesmo sabendo que o colega devia ter pelo menos o dobro de
seu peso.
— Ai, ai, ai! — Pedro gemeu
— Você tem que ajudar, senão não consigo!
— Tô tentando!
Depois de alguns minutos de suor e dor de ambas as partes, Pedro
estava sentado na cadeira e Vinicius recuperava o fôlego. — Onde fica o
banheiro?
— Aqui ao lado.
— Ainda bem que não é longe. — Comentou enquanto empurrava a
cadeira de rodas para fora do quarto. Demorou um pouco para conseguir
fazê-la passar pela porta e um pouco mais para enfrentar o obstáculo
chamado “porta do banheiro”. Os anos jogando Tetris ajudaram e por fim
conseguiu posicionar a cadeira de rodas na frente do vaso sanitário. — Daqui
pra frente você se vira, né?
— Com certeza! — Pedro respondeu depressa.
Vinicius revirou os olhos. Héteros! Sempre achando que os gays
querem ver o pinto deles. Saiu do banheiro e fechou a porta.
— Pronto. — Pedro gritou seguido do som da descarga.
Voltou ao banheiro. Puxou a cadeira de rodas e parou ao lado da pia.
— Quê?
— Como assim “quê”? Lava as mãos, seu porco.
Pedro soltou um suspiro de frustração e esticou as mãos com
dificuldade. Vinicius o ajudou abrindo a torneira e passando o sabonete.
Você aguenta ficar assim mais um tempo? — Perguntou quando eles
entraram no quarto. — Vou até a cozinha.
— Acho que aguento um pouco. Não muito, porque o gesso pesa, sabe?
O bailarino assentiu e saiu em sua missão. Entrou na cozinha sem saber
exatamente o que procurava. Abriu a geladeira. Havia queijo e presunto em
fatias e ele decidiu que fazer um sanduiche era a melhor e mais rápida opção.
Olhou ao redor para localizar o pão e acabou encontrando outras coisas que
podiam servir.
Minutos depois, chegou ao quarto segurando o prato com um sanduiche
caprichado de presunto, queijo, tomate e alface e um copo de leite com
chocolate. Pedro arregalou os olhos para o banquete. — Nossa! — Exclamou
emocionado.
Vinicius entregou tudo e sentou na cama enquanto ele comia com
voracidade. — Coma devagar porque se você engasgar, vou te deixar morrer
sufocado. Sério.
Pedro sorriu mastigando.
— E cadê os seus amigos? Eles bem que podiam dar uma força, né?
— Não falei nada pra eles. Não queria encher o saco de ninguém.
— Muito esperto. Se eu não tivesse aparecido, você ia fazer o quê?
Ficar todo mijado e faminto?
— Cara, você se acha, né? Desculpe por não ser inteligente como você.
Vinicius revirou os olhos.
— Não. Sério. — Pedro seguiu com a queixa. — Sei que você me acha
burro. Pode falar. Não ligo.
— Não te acho burro. Acho que gosta de parecer um pra fazer graça
para os amiguinhos tontos. Você é o típico garoto branquinho, bonitinho e
cheio de privilégios, que desperdiça tudo isso agindo feito um babaca. Eu me
esforço pra caramba até conseguir alguma e não tenho paciência com gente
como você que não valoriza nada.
— Como você sabe que eu não valorizo nada? — O outro questionou
com a boca cheia. — Fica me julgando sem nem me conhecer.
— Pedro, admita, você tem capacidade suficiente pra tirar só dez, mas
não faz o mínimo de esforço pra isso.
— Porque a escola não serve pra nada.
— Não serve pra quem vai ter a faculdade paga pela mamãe. Eu tenho
que me virar se quiser entrar numa universidade pública. Você sabe como é
difícil? Sabe alguma coisa que não tenha a ver com o seu umbigo, por acaso?
Ele não respondeu. Vinicius sentiu uma pontada de arrependimento por
ter sido duro. O problema em ser do tipo que fala primeiro e se arrepende
depois era justamente a parte do “depois”. — Eu não vim aqui pra brigar com
você.
— Não parece!
— Ai que sensível! — Caçoou.
Pedro abriu um sorrisinho tímido. — É que eu não gosto que meus
amigos me vejam desse jeito. — Confessou — Sei que é besteira, mas… Não
é o meu melhor momento.
— Se eles são seus amigos de verdade, é pra isso que servem. Pra todos
os momentos.
— Eu sei. Eles são legais. Isso é coisa minha.
Assentiu compreensível. — Não há nada de mal em parecer fraco às
vezes. Todo mundo precisa de ajuda.
Pedro terminou o sanduiche em silêncio e o colega o colocou de volta
na cama em seguida; trouxe uma garrafa de água fresca da cozinha e se
certificou de que seus remédios e tudo o que necessitasse estivesse perto da
cama. — Tudo certo? Já tenho que ir. Volto depois do ensaio pra ver como
você está e te trazer alguma coisa pra comer. — Abriu os contatos do celular,
criou um contato novo e passou o aparelho ao garoto engessado. — Me dê o
seu número. Se precisar de alguma coisa é só avisar por what’sapp.
Pedro inseriu o numero do telefone e lhe devolveu o celular. — Valeu.
— Falou cabisbaixo — Por tudo.
Por alguma razão, Vinicius sentiu o rosto esquentar. — Até mais tarde.
— Pulou a janela do quarto o mais rápido possível. Queria sair de lá. Em
parte porque realmente tinha que ir ao ensaio, mas também porque estar na
presença de Pedro começava a ficar estranho demais.

Estava assistindo ao ultimo episódio de uma série quando ouviu o


barulho do portão. Vinicius apareceu na janela minutos depois. — E aí?
Vivo?
— Por enquanto, mas não posso garantir que não vá morrer de tédio
durante a noite.
Ele sorriu e pulou para dentro do quarto sem nenhum esforço.
— Você tem facilidade com esse negócio de pular janelas. Suspeito. —
Comentou divertido.
O bailarino se aproximou e sentou em sua cama sem pudor. — Depois
te mostro a minha medalha de ouro em pulo de janelas. — Abriu a mochila e
retirou um pote embalado numa sacola plástica e um jogo de talheres. —
Minha mãe te mandou comida. E fez questão de mandar a sobremesa
também. — Avisou enquanto retirava outro pote um pouco menor.
— Bolo! — Pedro exclamou animado.
— Tá uma delicia.
Não sabia ao certo se era a fome ou se a mãe do Vinicius realmente era
uma ótima cozinheira porque tudo estava saborosíssimo. O arroz com feijão e
a carne de panela com batatas rapidamente se tornaram a melhor refeição que
Pedro já havia provado. — Muito bom!
— Minha mãe vive atrapalhando a minha dieta com as gostosuras que
cozinha. Amanhã vou ter que ensaiar em dobro por causa do tamanho do
pedaço de bolo que comi!
Pedro não conseguiu evitar olhar para o corpo dele. Era magro, mas de
um jeito atlético. A pele morena estava marcada com suor. Usava shorts e era
possível ver que tinha pernas musculosas, principalmente as coxas... Por que
estava olhando para as coxas do garoto?! Questionou a si mesmo sacudindo a
cabeça para espantar os pensamentos. — Você quer ser bailarino pra sempre?
— Indagou com o olhar fixo na televisão sem realmente prestar atenção nela.
— Quero. — Vinicius respondeu sem pensar.
— Legal. — Falou ainda evitando olhar para ele. — Você já sabe o
quer fazer da vida. Isso é bacana.
— Você não sabe?
Negou com a cabeça. — Nem ideia.
— Bom, mas você ainda tem tempo pra pensar.
— Não muito. Se eu conseguir passar este ano, vou ter que decidir o
que quero fazer da vida no ano que vem. Tô começando a sentir a pressão.
— Pensei que tivesse dito que a escola não servia pra nada.
— A escola não. Mas a faculdade é outra história.
— Então pense pelo lado positivo. Você tem todas as possibilidades.
No meu caso é o contrario. Eu pretendo ir pra faculdade, me formar, mas sei
que no final das contas, o que quero mesmo é morrer dançando. Só que a
gente vive no Brasil, né? Dificilmente vou conseguir viver de Ballet.
— Você vai conseguir. — Percebeu que as palavras haviam soado
demais como um elogio e achou melhor corrigir. — Os teimosos sempre
ganham na insistência, né?
Vinicius sorriu timidamente. — Coma o seu bolo.

— Trouxe um suco pra você, Vini. — Anunciou Fabiana entregando o


copo. — De caju.
— Obrigado.
Ela entregou outro copo de suco ao filho e saiu do quarto assobiando
tranquila. Fazia duas semanas que Vinicius ia à casa de Pedro todos os dias.
Já era parte de sua rotina. O estava ajudando com as lições de Química,
Biologia e Português, que aparentemente era o grande pesadelo do garoto.
Fabiana era sempre muito simpática com ele; especialmente depois de
descobrir que Vini ajudou seu filho no dia do fiasco da enfermeira.
— Então... — Continuou a conversa que havia sido interrompida. —
Lorde Voldemort é pior que o Grindelwald?
— Com certeza! — Pedro afirmou de maneira passional. — O cara
separou a alma em vários pedacinhos e colocou todos eles dentro de objetos
pra continuar vivo. Ele é foda.
— Ah, mas o Grindelwald no filme é o Johnny Depp. Lindo.
— Sério que você gosta daquele cara?
— Gato. — Vinicius respondeu mordendo o lábio inferior para
enfatizar.
— Devia te expulsar daqui depois dessa furada. Todo mundo que entra
neste quarto tem que preferir o Lorde das Trevas. Ponto. Só de raiva, não vou
te devolver a caneta.
— Ah vai sim! — Pedro havia estado usando sua caneta favorita. Um
primo a havia trazido de Miami e o objeto era pintado à mão com a paisagem
de uma praia. Era só um souvenir, mas Vini a adorava. — Passa pra cá.
O outro balançou a cabeça e levantou a mão que segurava o objeto.
— Devolve! — Ordenou divertido. — Tá esquecendo que não pode
correr?
Pedro voltou a negar e Vini se jogou em cima dele tentando pegar a
caneta de sua mão enquanto o garoto movia o braço rapidamente para
impedir. Os dois pararam de rir ao mesmo tempo quando, no meio da
brincadeira, se deram conta de que estavam perto demais. Vini engoliu em
seco. O rosto de Pedro estava a centímetros de distância do dele.
Lábios se tocaram. Foi muito rápido, mas aconteceu.
Afastou-se depressa. Ficaram se olhando sem saber como agir até os
assobios de Fabiana soarem próximos do quarto e o bailarino voltar para a
cadeira o mais rápido que pôde. Apanhou o copo de suco e bebeu o conteúdo
em um só gole.
— É... — Pedro começou a dizer e não continuou.
— Desculpe. — Não sabia por que estava se desculpando, apenas
achou que devia.
— Não conte pra ninguém.
Não tinha mesmo a mínima intenção de fazê-lo. — Relaxa.
O garoto devolveu sua caneta.

Estava na cama, mas o gesso das pernas havia sumido. Se sentia leve e
era como se tudo ao seu redor estivesse coberto por uma névoa fina. Vinicius
apareceu caminhando devagar em sua direção completamente nu. Mordeu o
lábio inferior enquanto se deitava sobre ele e Pedro sentiu as batidas do
coração ficando cada vez mais fortes. Um calor começou a percorrer seu
corpo e depois se concentrou em uma área específica.
Abriu os olhos e tratou de dar ritmo à respiração pesada. Olhou para os
lados instintivamente e se encontrou sozinho em seu quarto escuro. O que
estava havendo com ele? Aquilo já era absurdo!
Alcançou a pequena toalha ao lado da cama e secou o corpo empapado
de suor. Também teve que se limpar. Sua mãe não podia ver aquela sujeira de
jeito nenhum. Não aquele tipo de sujeira.

Vinicius caminhava ao seu lugar quando uma carteira foi empurrada


barrando o caminho.
— Ah, desculpa! Você ia passar? — Marcos falou com um sorriso
cínico.
Vini respirou fundo e contornou o obstáculo para chegar ao assento.

Um, dois, três, quatro. A sequência de números se repetia naturalmente


em sua cabeça enquanto movimentava o corpo. Uma e outra vez ela era
interrompida por pensamentos aleatórios que surgiam de repente. Pedro, a
escola. Tudo lutando para conseguir ocupar sua mente por completo e Vini
obrigava a si mesmo a se concentrar nos números. Um, dois, três, quatro…
— Chega. — A voz da professora, interrompeu a rotina. — Isso está
horrível, Vini. Você não está concentrado.
Nem me fale. Pensou.

— Por que essa cara?


— Nada.
— O que foi? — Pedro insistiu
Ele deixou o caderno de lado e passou as mãos pelo rosto. — Sei lá.
Acho que tô com muita coisa na cabeça. Os ensaios não estão indo muito
bem.
O observou com atenção. Tinha um ar cansado — Você precisa
aprender a relaxar, Vini. Se preocupa demais por tudo.
— É eu sei.
— Pensei que fosse por causa... Você sabe. Daquilo lá.
Haviam conseguido ignorar completamente o ocorrido por dois dias
seguidos e o batimento de Pedro acelerou apenas com a menção do evento.
— Falando nisso, o que foi aquilo?
Deu de ombros — Nunca tinha me acontecido. Quer dizer, com um
homem.
Vini olhou para a porta com cara de preocupado. — Sua mãe foi ao
mercado, né?
Pedro assentiu.
— Bom, eu acho que você já tá meio carente depois de tanto tempo
nessa cama…
— Como é que é? Foi você quem me beijou! — Contestou sentindo o
rosto esquentar.
— Não, senhor. — Vini balançou o dedo. — Você começou a
brincadeira e depois me deu um beijo. Mas vou deixar pra lá porque você tá
frágil.
— Por que eu tô frágil ou por que você gostou? — A pergunta saiu
antes que ele pudesse evitar.
— Não vim até aqui pra massagear o seu ego, Pedro.
— Qual o problema de admitir que gostou de me beijar? Eu gostei.
O queixo de Vini caiu. A verdade era que Pedro não sabia o que estava
fazendo. Havia evitado ao máximo pensar no beijo, mas quanto mais evitava
mais pensava. Queria beijá-lo outra vez. Simples assim.
Em um movimento ágil, pegou a caneta de Miami e a afastou de forma
sugestiva.
— Não vou mais cair nessa. — Vinicius falou com a voz trêmula. —
Se você tá necessitado, chame uma das meninas do Segundo A que vivem te
dando mole.
— Esta caneta vai ficar confiscada como castigo pela sua insolência.
— Palavras difíceis pra quem tá indo mal em Português. Devolve.
Pedro balançou a cabeça. — Venha pegar. — Colocou a caneta atrás de
suas costas.
Vini hesitou por um momento e depois levantou da cadeira e se
aproximou apoiando as mãos na cama. Teve o cuidado de se manter afastado
o suficiente para que seus corpos não se tocassem. — Devolve.
Tentou puxar a caneta e Pedro aproveitou para segurar seu braço. Só
precisou mover um pouco o tronco para que eles ficassem cara a cara e colou
os lábios nos de Vini. O beijou com vontade e, sendo honesto consigo
mesmo, estava aproveitando cada segundo.
— Que porra é essa? — A voz de Marcos gritou fazendo seu coração
dar um salto. Os melhores amigos estavam parados na porta do quarto.
Marcos entrou pisando duro; Segurou o braço de Vini e o puxou para
longe da cama. — O quê você pensa que tá fazendo? — Empurrou o peito
dele com força.
Pedro prendeu a respiração. Notou Vini disfarçar a dor e pelo pouco
que o conhecia, soube que o garoto tinha orgulho demais para permitir ser
tratado daquela forma. Ele se adiantou pronto para revidar e Juninho evitou o
pior entrando na frente dos dois. — Calma, gente! Parem com isso. Esta não
é a casa de vocês, né?
A sensatez do amigo fez Pedro soltar um suspiro de alívio mesmo
sabendo que aquilo estava longe de terminar.
— Calma é o caralho! — Marcos urrou. — Vamos lá fora, então. Vou
te dar uma surra. Tá achando que só porque é veado não vai apanhar? Vai
sim! Vai apanhar como homem!
— Eu sou homem, seu imbecil! — Vini gritou em resposta.
— O cacete! Tá tão desesperado assim? Precisa ficar se aproveitando
de gente doente? O cara na cama, sem poder correr e você se jogando em
cima dele! Sem vergonha!
Pedro assistia tudo mortificado. Vini o olhou buscando auxílio. —
Você não vai dizer nada?
Seu estômago afundou. Queria dizer alguma coisa. Tinha que dizer.
Todos o encaravam com expectativa e ao invés de tomar uma atitude, desviou
o olhar e abaixou a cabeça. Se odiando internamente.
— Ele não tem nada pra te dizer. — Argumentou Marcos. — E fique
longe! Vá procurar algum coitado que te queira. Deve ser difícil, né? Mas em
algum momento você vai encontrar outra bicha que esteja tão desesperada
quanto você.
— Chega, Marcos. — Pediu Júnior
Vinicius nem se deu ao trabalho de disfarçar. Deixou a lágrima cair e
olhou na sua direção uma vez mais. Quando os olhares se cruzaram, Pedro
ignorou a dor latente que pulsava em seu peito e abaixou a cabeça, rendido.
Sua mãe apareceu na porta do quarto. — O que está acontecendo? —
Indagou ao ver nas caras dos meninos que algo estava errado.
Ninguém respondeu. Vinicius pegou a mochila, pendurou-a no ombro e
saiu do quarto apressado. Pedro quis gritar. Queria sair da cama e ir correndo
atrás dele, mas algo o impedia e sabia que não eram as pernas e sim, uma
coisa chamada covardia.
— A senhora devia tomar cuidado com quem deixa entrar na sua casa
viu, Tia? — Marcos não se dava por satisfeito. — Ainda bem que não estava
aqui pra ver o que aquele safado estava fazendo com o seu filho…
A angustia de Pedro crescia mais e mais e o "Cala a boca!" saiu
descontrolado surpreendendo aos outros. Continuou para aproveitar o breve
momento de coragem — Ele não fez nada. Eu o beijei!
O quarto foi dominado por um silêncio sepulcral e Juninho o rompeu
puxando Marcos pelo braço e indicando a porta. — Venha. Vamos embora.
Os dois meninos deixaram o quarto; Marcos ainda embasbacado; e sua
mãe aproveitou a deixa para se aproximar devagar. Pedro sentiu os olhos
ficarem molhados e cobriu o rosto com as mãos para que ela não visse as
lagrimas que começaram a cair. — Eu tô tão confuso!
— Ah, meu amor. — A mulher sentou na cama e o abraçou. — Na sua
idade ficar confuso é normal.
— Mas eu gosto de mulher!
— Isso não significa que você não possa gostar de um homem. Pensei
que os adolescentes de hoje fossem mais bem informados.
Enxugou o rosto. — Mas o que eu vou fazer agora? Todo mundo vai
tirar sarro de mim na escola.
— Nem todo mundo. E os que fizerem isso, não merecem sua atenção.
— Falar é fácil!
— Você gosta mesmo dele? De verdade?
Assentiu. Já não havia mesmo como negar.
— Então pare de se preocupar com o que os outros vão pensar e pense
no Vinicius. Se gosta dele de verdade, só o que ele pensa de você importa.
Ponderou as palavras da mãe. Ela tinha toda a razão. Pensou na forma
em como Vini o olhou antes de ir embora. Um olhar de pura decepção. Seu
coração ficou apertado. — Agora não faz mais diferença. O Marcos o atacou
e eu não fiz nada. Nem abri a boca. Ele não vai me perdoar por isso.
— Você não vai saber se não tentar. Converse com ele mais tarde.
Primeiro, deixe a poeira baixar.

Pedro não conseguia dormir. Não depois do que aconteceu naquela


tarde. Ficava remoendo tudo e se odiava cada vez mais por ter ficado calado.
Como pôde? Imaginou a cena dezenas de vezes e em cada uma delas, disse
algo diferente. Mas quando devia ter falado, não saiu nada. Não defendeu
Vinicius. Não conversou com os amigos. Os amigos. Olhou para o celular ao
seu lado na cama e respirou profundamente para criar coragem.
"Alguém aí?" Perguntou no grupo de what'sapp por onde os três se
comunicavam quando estavam entediados durante as aulas. Poucos minutos
depois, Juninho ficou online e Pedro segurou a respiração enquanto o amigo
escrevia algo.
Juninho: Eu tô
"Blz?"
Juninho enviou um emoji fazendo joia.
Pedro apertou o botão para gravar um áudio, ainda inseguro. — É… O
Marcos não tá online agora, mas depois ele vai ouvir isso de qualquer jeito.
Queria dizer que… Sei lá, é que o que aconteceu hoje… Merda! Não vai dar!
Prefiro escrever.
"Queria pedir pra vcs pararem de zoar o Vini. Vcs pensam que é de
brincadeira, mas pra ele ñ é. Essas coisas machucam e se machuca a outra
pessoa, ñ é engraçado." Enviou. "Tbm quero deixar claro q vcs sempre vão
ser meus melhores amigos. Mesmo q ñ queiram mais falar comigo.". Apertou
a seta para enviar a mensagem e notou que Marcos havia começado a
escrever algo. Seu pulso acelerou com a expectativa.
Marcos: Para de falar merda. A gnt é irmão.
Juninho: Então agora cê é veado?
"Ñ, mas acho que talvez seja Bi". Informou.
Juninho: E ñ sabia?
"Não. Nem ideia."
Esperou um minuto enquanto o amigo digitava algo.
Juninho: E o troféu de pessoa mais burra do ano vai para…
Pedro riu alto. Um pouco porque foi engraçado, mas principalmente de
alívio. Marcos não disse nada, mas enviou em emoji chorando de rir um ou
dois minutos depois. O gesto indicava que ele estava participando da
conversa. Que estava lá e eles ainda eram amigos.
Juninho: Blz. Ñ vou mais zoar com o teu namoradinho lindo.

No começo sentiu raiva, mas ela logo foi embora dando lugar a uma
familiar dor. O preconceito era o tipo de coisa que deixava uma cicatriz que
apenas alguns tinham o azar de portar.
Sua mãe abriu a porta do quarto depois de três batidas leves. — Tem
gente querendo falar com você.
Vinicius estranhou. — Tá. Eu já vou.
Saiu do quarto com curiosidade e não viu ninguém ao chegar à sala.
Sua mãe indicou a porta aberta. — Lá fora.
O carro de Fabiana estava estacionado do outro lado da rua. Ela sorriu
ao vê-lo se aproximar.
— Oi, Vini! Tudo bom?
— Oi.
Pedro estava sentado na parte traseira. Suas pernas mal cabiam no
banco e Vinicius se perguntou como a mãe havia conseguido colocá-lo ali.
— Ele queria muito falar com você. — Fabiana explicou. — Sejam
bonzinhos. — Se afastou e entrou na casa fechando a porta atrás de si.
Vinicius abriu a porta do carro e sentou no banco do carona olhando
para trás. — E aí?
— Oi. — Pedro respirou fundo. Parecia estar criando coragem para
falar. Coçou o pescoço e respirou outra vez. — Eu sou um babaca. Você
passou esse tempo todo me ajudando com as coisas da escola; Indo lá em
casa… Honestamente, você tá fazendo com que essa situação toda fique
muito mais fácil. Aí o idiota aqui vai lá e te trata daquele jeito. Devia ter dito
alguma coisa. É que eu me acovardei, sabe? Sempre gostei de menina, mas aí
você apareceu e…
— Tudo bem. — Vini interrompeu.
Pedro levantou uma sobrancelha desconfiada — Sério?
— É sério. Pra dizer a verdade eu estava bem chateado, mas pensei no
assunto e percebi que não foi culpa sua. Quer dizer, as coisas aconteceram
bem rápido, né? Sei lá, foi meio doido.
— Acho que você não tá entendo, Vini. Não vim só pra pedir desculpas
por ontem. Venho dizer que gosto de você e sei que te magoei. Me preocupei
demais com o que as outras pessoas iriam pensar, mas não ligo mais. Não
vou fingir que não aconteceu nada. Você é incrível e eu não tenho vergonha
de sentir o que sinto. Sei que não mereço, mas se você me der mais uma
chance…
— Tá dada.
— Mas você adora me cortar hein?! — Soltou exasperado. — Aqui
tentando ser romântico e o cara não deixa!
Vini riu. — Você tá com as duas pernas quebradas e ainda assim veio
até a minha casa pra se desculpar. Como é que eu vou dizer não pra isso?
Pedro abriu um sorriso.
— Além do mais, — Continuou. — Pra quê vou dizer que não senti sua
falta se seria mentira?
— Também senti saudade. Ah, tenho uma coisa pra te contar. Já que
estamos sendo sinceros e tal.
— Que coisa?
Coçou o pescoço uma vez mais. — É que eu ando tendo tipo uns
sonhos com você.
— Ah é? E como são esses sonhos?
O rosto do garoto ficou tão vermelho quanto um tomate. — Bom…
Vinicius sorriu sentindo o próprio rosto esquentar. — Vamos fazer o
seguinte, quando suas pernas melhorarem, você me conta sobre esses sonhos
com mais detalhes. Com todos os detalhes!
Os dois riram cheios de energia e felicidade.
— Quer mesmo ficar comigo?
— Quero. — Pedro esticou a mão, convidativo e Vini a tomou.
— Então se prepare. Não vai ser nada fácil. Gostaria de dizer que isso
se trata só de nós dois, mas infelizmente não é assim. As coisas vão mudar
pra você. Tá sabendo, né?
— Eu sei. — O garoto engessado falou conformado. — O meu pai
morreu quando eu tinha oito anos. Ele costumava dizer que mesmo uma coisa
ruim pode trazer algo de bom se você souber reconhecer as oportunidades
que a vida dá. — Contou. — Estava me sentindo uma droga depois do
acidente. Ficava pensando “Por quê? Eu não mereço isso!” Aí você apareceu
lá em casa e me ajudou a entender o que meu pai queria dizer. “Quando você
perde também ganha”. Sei que vai ser difícil, mas também vai ser bom.
— Vai. — Vini apertou a mão dele. Não pretendia mais soltá-la.

Já estava sentado com o caderno aberto quando notou pelo canto do


olho que Júnior vinha caminhando em sua direção. Preparou-se para o pior.
— Toma. — O menino disse depositando a caneta de Miami sobre sua
carteira. — Seu namorado pediu para entregar.
— Valeu. — Vini agradeceu ainda incrédulo.
Júnior fez sinal de joia e se afastou para juntar-se a Marcos no fundo da
sala.

Ao chegar, encontrou Marcos sentado na frente do portão verde-musgo.


— Como você chegou aqui antes de mim?
— Cara, eu venho aqui desde os sete anos. Conheço todos os atalhos.
— O garoto falou sem olhar para ele.
— Não vai entrar? — Deu de ombros. Parecia chateado e Vini sentou
ao lado dele por solidariedade. — Tá tudo bem?
— Ele é meu melhor amigo. — Marcos falou indicando a casa. — Não
sei como vai ser agora.
— Vai dar tudo certo. Quando as pernas melhorarem, o Pedro vai poder
andar normalmente.
Ele soltou um suspiro que fez o bailarino compreender a situação. —
Não tá falando das pernas, né?
— É que eu não sei como foi que isso aconteceu. Ele já pegou um
monte de meninas.
— Você não deve estar sabendo, mas existe uma coisa chamada
Bissexualidade que dá a algumas pessoas o incrível poder de gostar dos dois
gêneros. E não é nada alienígena, viu? É totalmente natural e humano.
— A gente era inseparável. — Marcos seguiu ignorando seu sarcasmo.
— Eu conto com o Pedro pra tudo. O cara é a minha inspiração. Sempre foi
mais forte, mais esperto. — Balançou a cabeça. — Agora ele só quer saber de
você.
— Marcos, presta atenção. Eu não sou a Yoko Ono, tá legal? Não vou
destruir a amizade de vocês nem nada disso. O Pedro vai continuar sendo seu
melhor amigo. A sexualidade dele não tem nada a ver com isso. Ele pode ser
seu amigão e gostar de um cara ao mesmo tempo. Uma coisa não desqualifica
a outra. Se você arranjasse uma namorada, ia parar de falar com seus amigos?
Negou.
— Então! É a mesma coisa.
— É... — Soltou outro suspiro. Pelo visto, Marcos ia levar um tempo
para aprender a lidar com a mudança. Compreensível, Vini pensou. Algumas
pessoas se adaptam melhor às mudanças que outras. — Deixa ir andando
porque, honestamente, estar pegando o meu amigo não quer dizer que eu
tenho que gostar de você.
— Não tem mesmo. Eu também não tenho a mínima intenção de te
aturar.
Marcos sorriu. Levantou-se e bateu nas calças para tirar a areia. — Mas
vamos concordar em pelo menos nos tolerar, né? Pelo Pedro.
Vinicius assentiu. — Fechado.
— Não vai ficar olhando pra minha bunda. — Brincou se afastando.
— Não se preocupe. Prefiro olhar pra bunda do seu amigo.
— Ah, mano! Tá vendo? Precisava ter falado isso? Que nojo!
Vini riu e abriu o portão para entrar enquanto a mochila azul de Marcos
desaparecia de vista na rua.

Fim
Sobre a autora

Thaís Rodriguez estudou teatro, circo,


balé e ama todo e qualquer tipo de arte.
Tomou cerveja em pub irlandês, visitou pirâmides no México e quase
morreu congelada no frio do Canadá.
Começou a dar aulas de Inglês com dezessete anos e nunca parou.
Atualmente, se dedica a ensinar Inglês e Espanhol.
Iniciou a escrita de seu primeiro livro Não Inclui Manual de Instruções
em 2015, que fala sobre a relação entre um jovem neurotípico com outro no
Espectro do Autismo, e terminou o segundo, Guia Prático Para Enfrentar
Monstros, em Setembro de 2017. Livro que aborda a temática da depressão.
Está trabalhando em seu terceiro livro que também terá personagens
jovens e diversos.
Siga às redes sociais

Instagram: @rodriguezautora
Facebook: /RodriguezAutora
Goodreads: TS Rodriguez
Wattpad: @tsrodriguez

Você também pode gostar