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Copyright © 2022 Daniela Lira

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forma sem a autorização expressa e por escrito da autora, exceto pelo uso de citações
breves em resenhas e avaliações.

Obra protegida pela Lei 9.610 de 1998.

Esta é uma obra de ficcção e qualquer semelhança com nomes, acontecimentos, fatos
ou aspectos da vida real retratados aqui terão sido mera coincidência.
Dedicatória

À minha irmã, Ana Luiza porque


ela merece ter um livro dedicado a ela.
Nota da Autora
Oi! Fico muito feliz que você tenha se interessado por essa
história!
Antes de começar, aqui vão algumas coisas que você precisa
saber:
Esse livro contém descrição de uso indevido de bebidas alcóolicas,
linguagem de baixo calão, cenas íntimas sutilmente explícitas e pode
conter gatilhos de bifobia e crise de ansiedade.
Essa história também possui uma playlist no spotify contendo
todas músicas citadas no livro, que você pode acessar apontando a
câmera do aplicativo para o código abaixo ou pelo link.

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Aproveite a leitura! E não esqueça de, no final, avaliar o livro na
amazon!
Beijinho, Dani s2
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Sumário
Nota da Autora
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Epílogo
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Agradecimentos
1

Bianca

“Mas meu coração é grande e cabem


todos os meninos e meninas que eu já amei…”
Meninos e Meninas-Jão

Ela fechou a porta antes que eu pudesse responder. Disse que se


divertiu muito, que foi ótimo, depois me lançou aquele seu olhar
sedutor e fechou a porta sem me dar tempo de forçar um sorriso ou
dizer qualquer coisa em resposta.
Abraço meu corpo e me viro para o corredor. Puxo o celular da
bolsa enquanto espero o elevador parar no andar e mando uma
mensagem para Ian.

Ele demora menos de um minuto para responder.

Solto uma risada depreciativa e digito, “pois, é”. Também esperava


que eu ficasse até de manhã, pelo menos. Para ser sincera, eu
esperava muitas coisas dessa noite, e foi esse o problema.
Demoro um pouco para responder. Não foi ruim. Mas também não
foi... bom? Pelo menos não do jeito que eu gostaria.
A verdade é que estou acostumada com carinho, intimidade e até
conchinha, de vez em quando. Mas com a Amanda foi diferente.
Antes que minha respiração voltasse ao normal e meus dedos do pé
pudessem se desenrolar, ela se levantou da cama e vestiu suas
roupas, depois pegou minha calça jeans e pousou ao meu lado,
como se quisesse que eu me vestisse também e fosse embora logo.
Me senti incrivelmente envergonhada, então fiz exatamente isso.
Me vesti rápido e fui embora tentando disfarçar meus olhos que
provavelmente estavam marejados e minhas bochechas com certeza
estavam muito vermelhas.
Mesmo via mensagem, Ian consegue ler o que meu silêncio
significa: não quero falar sobre isso. Não agora.
Ele pergunta se eu quero carona, respondo que não precisa pois já
estou chamando um Uber. Ele ignora o que eu disse e pede a
localização do prédio. Está muito tarde mesmo, de qualquer forma.
Eu envio porque estou cansada e só quero ir para casa, e fazer isso
sem ter que me preocupar com minha segurança dentro do carro de
um estranho é melhor ainda.
Em 10 minutos vejo os faróis acesos de seu SUV preto se
aproximando da entrada do prédio. Quando entro no carro, Ian sorri
para mim, mas não me cumprimenta com nenhuma piada com
comentário sarcástico como de costume, porque sabe que eu não
estou no clima.
—Aconteceu alguma coisa, Bic? —Ele pergunta, sério. Deve estar
esperando o pior.
—Não —tranquilizo-o. —Não é nada demais.
Encosto minha cabeça na janela e mantenho os braços cruzados.
Passamos o trajeto inteiro em silêncio até ele perguntar:
—Quer assistir um filme quando chegar na sua casa?
Eu sorrio. Parece perfeito. Assinto com a cabeça e ele sorri
também.
Quando chegamos, acendo poucas luzes do apartamento pois sei
que minha mãe deve estar dormindo. Meu pai, em algum evento ou
sabe-se lá mais onde.
Olho no relógio do micro-ondas. 02:43 da manhã. É, não quero ter
que explicar a ela sobre onde eu estava ou com quem estava a essa
hora e nem tenho energia suficiente para inventar uma mentira.
Entro no banho enquanto Ian escolhe o filme na sala. Passo sabão
por todo meu corpo, esperando me sentir menos suja. Por que estou
me sentindo assim? É horrível. Quero esquecer essa noite. Embora
ela tenha começado de um jeito incrível, o final dela manchou todo o
resto.
Visto uma de minhas camisetas extralargas e me acomodo no
sofá. Ian escolheu Wall-E e está me esperando com o controle na
mão e um sorriso. Animações da Disney são meu ponto fraco.
—Adoro esse filme —ele diz. —Sei todas as falas.
Não consigo não rir da piada boba. Wall-e é praticamente um filme
sem diálogos.
Deito minha cabeça em seu ombro e ele encosta a dele em cima
da minha.

No dia seguinte, acordo na minha cama. Ian deve ter me deixado


aqui quando adormeci no meio do filme. Me lembro, então, de que
ele não tem chave e a porta ficou aberta a noite inteira quando ele foi
para casa. Minha mãe vai me matar quando a vir destrancada.
Moramos num edifício altamente seguro, mas, para ela, qualquer
coisa parece um bom motivo para reclamar comigo. Mando uma
mensagem para Ian para confirmar.
Meus planos para esse sábado incluem ficar o dia inteiro na cama
fazendo nada, mexendo no celular até Ian chegar e vir fazer nada
junto comigo. Mas é claro que minha mãe discorda desse plano.
Ouço sua voz me chamando vindo em direção ao meu quarto.
—Bianca… —ela para ao me ver deitada. —Não levantou até
agora? São quase duas da tarde, minha filha!
Confiro o relógio do celular. 13h016. Me esforço para não revirar
os olhos.
—Quero descansar. Essa semana já voltam as aulas da faculdade.
—Ah, ótimo. Só espero que nesse semestre você estude mais do
que descansa. Estou indo no shopping, quer ir também?
Eu recuso a oferta. Ela se vira e antes de sair, diz que tem salada
na geladeira, caso eu queira almoçar.
Espero ouvir o barulho de seus saltos batendo no piso sumindo e a
porta se fechando para finalmente levantar da cama.
Conferindo a geladeira, vejo que ainda tem uma sobra de torta de
palmito que a Grazi fez. Decido que este será meu almoço, bem
melhor que a salada cheia de frutas e grãos low-carb que minha mãe
come.
Quando são 15h, Ian me avisa que está chegando. Visto um short
e o espero subir não aviso o porteiro pois ele já conhece meu amigo
e provavelmente está cansado de o ver entrando e saindo do prédio.
—Pensa rápido! —Ele diz, aparecendo do nada no meu quarto
usando a camisa branca larga que sempre usa e descalço, já que é
habituado às regras da casa de deixar os sapatos na entrada.
Ian lança o molho de chaves em minha direção, e eu solto um grito
com o susto. Minhas chaves batem primeiro na parede e depois
caem na minha barriga, pois obviamente não fui rápida o bastante
para pegá-las no ar.
—Idiota! Ah, se isso pega no meu olho... — digo rindo enquanto
confiro se as chaves deixaram alguma marca na tinta da parede.
Ele apenas ri.
—Tá fazendo o que? —Pergunta apontando para o celular na
minha mão.
—Nada —mostro a ele a timeline do twitter na tela.
—Legal —ele diz, tirando o próprio celular do bolso e se jogando
ao meu lado na cama.
Passamos a hora seguinte mostrando memes um para o outro e
rindo feito dois idiotas. Até um momento em que ele resolve puxar
um assunto de verdade.
—E a Amanda? Você nem me contou como foi ontem, tava toda
estranha. Me deixou preocupado, Bic.
—Não foi nada demais, já te falei. É só que... foi rápido. Logo
depois da gente ter ficado, ela já foi agindo como se eu precisasse
sair da casa dela o mais rápido o possível. Eu fiquei me sentindo
meio estranha, como se… —paro de falar, sem saber quais palavras
usar.
—Como se você fosse uma prostituta que ela contratou.
—Credo, Ian —deixo escapar uma risada diante da falta de
delicadeza dele. —Eu não queria usar essas palavras, mas sim, foi
tipo isso mesmo. Me senti usada.
—Ô, Bic não fica assim —ele me consola, passando o braço por
meus ombros. —Essa Amanda não sabe o que tá perdendo. Eu
sabia que ela era boa demais pra ser verdade.
Nisso eu preciso concordar. Pelo perfil no tinder, ela parecia
perfeita. Ruiva, piercing no lábio inferior, olhos verde-escuros. 23
anos, gosta de gatos e cursa cinema. Eu e Ian ficamos chocados, ela
era linda demais.
O papo também fluiu superbem. Ian ameaçou roubar o contato
dela várias vezes, felizmente eu a tinha visto primeiro, então tinha
direito. Mal acreditei quando demos match, contei os dias para o
encontro. Infelizmente nada do que eu esperava aconteceu.
—Sei lá, Ian. Eu acho que esse negócio de encontro casual não é
pra mim. —Eu digo, deitando a cabeça no travesseiro.
—Começa a procurar alguém para namorar, então. Vamos mudar
sua bio no tinder. Talvez você devesse sair com uns caras também,
pra variar um pouco.
—E como é que isso vai me ajudar? —Solto uma risada. —
Encontrar um homem que presta é a coisa mais complicada que
existe, ainda mais em aplicativo de pegação.
—Em defesa da população do meu gênero, preciso dizer que tem
muito homem que presta por aí, sim. Eu incluso.
Reviro os olhos. Eu mereço.
—Vai a merda, você e a sua “população”! —Respondo, jogando
uma almofada em seu rosto.
Ele gargalha e a visão de seu sorriso me faz rir também.
Ian e eu somos amigos há anos. Na verdade, nos conhecemos há
quase a nossa vida toda, mas apenas nos tornamos melhores
amigos no ensino médio.
Nossos pais formaram juntos uma empresa de construção depois
que saíram da faculdade. A Bellini Mendes Construtora se tornou
uma das maiores empresas de construção do Brasil, entrando no top
15 do país com menos de 20 anos de existência.
Por serem sócios e muito amigos, Bento Mendes e meu pai,
Sérgio Bellini, sempre se reuniam em jantares e eventos corporativos
ao lado de suas belas esposas e filhos. Neste caso, eu e Ian.
Éramos muito tímidos para fazer amizade naquela época, mas
alguns anos depois, quando Ian entrou na mesma escola que eu no
ensino médio, fomos obrigados a conviver por mais tempo e logo
percebemos que isso não exigia sacrifício nenhum. Nos tornamos
amigos e insuportavelmente inseparáveis desde então.
Ter esse mané comigo me perturbando em todos os segundos do
meu dia pode ser insuportável às vezes, mas nossa amizade é
definitivamente a melhor coisa que já me aconteceu na vida.
2

Ian

“Vá em frente e chore, garotinho


Você sabe que o seu pai também chorou
Você sabe pelo o que sua mãe passou
Você tem que deixar isso sair logo, só bote para fora.”
Daddy Issues-The Neighbourhood

—Tô com saudade.


Sorrio com a bochecha pressionada contra o celular. Não faz nem
duas semanas desde que ela me viu, mesmo assim, respondo:
—Também tô.
—Não sei como vou ficar esse tempo todo sem te ver.
—Você pode voltar quando quiser. Só podia ter me deixado ficar
em casa.
—Filho, nós já conversamos sobre isso, não tem como você ficar
lá no meio da mudança. Ficar na casa do seu pai é a melhor opção
—ela diz num tom doce, querendo evitar mais uma discussão.
—Seria bem melhor se ele me pagasse um hotel, né… aí eu não
precisaria ficar aqui —resmungo.
—Rá! —Ela ri com sarcasmo. —Vá pedir a ele, então.
Nem morto.
—Mas me conta, tudo bem aí? Como tá a Samara e aquela
menininha?
—Sandra, mãe —eu rio ao corrigi-la.
Não ignoro a menção à minha meia-irmã. É só que eu mal tenho
contato com a menina e é a primeira vez em muito tempo que a vejo,
não tenho muito o que dizer sobre ela. Mas minha mãe continua
perguntando sobre minha madrasta.
—Ah, você entendeu. Ela tá sendo legal com você?
Às vezes minha mãe parece se esquecer que eu não sou uma
criança indo dormir na casa do coleguinha e sim um cara de 20 anos
tendo que passar um tempo na casa do pai babaca porque a mãe vai
morar na Europa por uns meses.
—Tá tudo de boa por aqui, mãe. Na medida do possível. Pode
ficar tranquila —ouço uma leve batida na porta —Ó, vou ter que
desligar agora, tá?
—Tá bom, meu amor. Um beijo, te amo.
—Também te amo. Beijo... tchau.
Logo depois de desligar, a cabeça loira de Sandra aparece por trás
da porta.
—Tá com fome? O jantar tá servido.
—Não, valeu. Eu como depois.
—Ian, seu pai quer que você se sente na mesa com a gente —ela
insiste, um pouco mais séria dessa vez, mas tentando não perder a
simpatia.
Resisto à tentação de bufar.
—Fala pra ele que eu já vou.
Eu digo isso apenas para ela sair. Não estou nem um pouco a fim
de sentar na mesa com dois quase desconhecidos e uma criança
com quem não tenho interesse em criar laços.
Sendo muito honesto, não foi muito difícil escolher com quem eu
queria ficar na época do divórcio dos meus pais, quase 10 anos
atrás. Meu pai nunca esteve muito presente, pelo menos não que eu
me lembre. Ele sempre foi muito ocupado com o trabalho.
Meus pais continuaram com uma relação bem pacífica, sempre se
deram bem. E por isso, minha mãe insiste que eu e ele busquemos
ter uma relação melhor, mas nós quase não convivemos.
Desde da separação, eu praticamente só o vejo duas vezes por
ano: No meu aniversário, quando me chama pra almoçar com ele, e
no natal, quando me leva para a casa da minha vó. Em alguns fins
de semana, ele me levava para andar no jet-ski de sua casa de
praia, mas era bem raro e hoje em dia, não faz mais.
Quando se casou de novo e teve um outro filho, dessa vez uma
menina, passei a vê-lo ainda menos. Por isso é tão estranho ter que
sentar com eles na mesa agora. Eu só devo ter ido na primeira festa
de aniversário da minha meia-irmã e ela agora tem uns 5 anos.
Então, basicamente, eu não conheço essas pessoas, e só estou
passando esse tempo aqui com elas porque não tenho mais opção.
E de verdade, eu tentei procurar outras opções. Busquei planos B, C,
D… até me faltarem as letras do alfabeto.
Nenhum dos meus amigos da faculdade que moram em repúblicas
têm quartos extras para mim.
Minha mãe é artista plástica e fotógrafa e recebeu essa proposta
de expor suas fotografias num museu famoso de Amsterdam, e
depois vai rodar a Europa fazendo fotos que exibem um lado não
visto das cidades mais famosas do continente.
Não quero arruinar essa oportunidade para ela e além disso, não
posso ficar esse tempo sozinho na nossa casa porque ela está
reformando seu ateliê quase que completamente. Vai abrir uma
parede de onde era seu banheiro da suíte para dar mais espaço ao
estúdio de fotografia que ela quer trazer para o apartamento.
Por causa do meu problema com asma, ela insiste que eu não
fique lá e tenha contato com a poeira da obra. Mesmo que a asma
tenha deixado de ser uma preocupação tão grande na minha vida,
discutir com a minha mãe às vezes é um caso perdido.
Eu já cogitei até passar esse tempo na casa da Bic, mas, pelo
pouco que ela comentou sobre, aparentemente as coisas entre os
pais dela também não vão tão bem. E lá não tem espaço para mim,
de qualquer forma.
Então, só me restou ficar aqui na casa do meu pai. Mas decidi que
vai ser pelo menos até o fim da obra, não quero ter que ficar até
minha mãe voltar, ela disse que provavelmente só volta no fim do
ano e esse ano acabou de começar.
Por falar nisso, amanhã é a volta às aulas na faculdade. Cacete,
essas férias passaram rápido demais.
Deito o braço nos olhos tentando conter a dor de cabeça. De
repente, acordo e percebo que cochilei por alguns minutos.
Sinto que meu pai está na porta. Provavelmente veio me chamar
para jantar, mas não me movo, finjo que ainda estou dormindo. Em
algum momento ele desiste e encosta a porta novamente.
Quando ele se vai, suspiro profundamente. Algumas horas depois,
peço um hambúrguer por delivery, desço para que o porteiro não
tenha que acionar o interfone e acordar o resto da casa, volto e como
sozinho no meu quarto.
3

Bianca

“Já faz um tempo que eu quero ser mais que uma


amizade pra você
Mas quando que vai perceber?
Já fiz de tudo que eu pude pra te esquecer
Mas isso não consegue
acontecer”
Mais que uma amizade-Cammie

Na segunda-feira, me levanto tranquila às 11h pois lembro que


minhas aulas hoje são no turno vespertino. Poder dormir até mais
tarde está no top 10 das melhores sensações do mundo.
Entro na cozinha e já sinto o delicioso cheiro de feijão ficando
pronto. Cumprimento Grazi com um beijinho no rosto.
—Finalmente acordou, hein? —Seu rosto emburrado vira um
sorriso.
—Bom dia, Grazinha! —Eu sorrio inocentemente enquanto me
sento numa das cadeiras da bancada.
—Boa tarde, você quer dizer.
—É um bom dia Grazi, pois eu acabei de acordar —eu brinco.
—Hum —ela resmunga. —Se estiver com fome, a salada já tá
pronta.
—Passo —é a minha vez de resmungar. —Prefiro esperar o
almoço ficar pronto, deixa a salada pra Dona Valéria.
Minha mãe é a única que come salada nessa casa, mas ainda faz
de tudo para me incluir em sua rotina fitness. Felizmente, a Grazi
deixa eu comer o que eu quiser. Sempre deixou, desde que começou
a trabalhar aqui em casa, quando eu tinha uns 11 anos.
Faltando vinte minutos para a aula começar, Ian chega para me
dar uma carona até a faculdade. Na cantina do campus, nossos
amigos nos esperam, segurando copos descartáveis com café puro.
Quando chegamos perto da mesa, consigo ouvir Yuri falando alto,
de pé e gesticulando como se quisesse provar um ponto muito
importante.
—Ela não tem NENHUM álbum ruim, sinto muito. Se você discorda
é porque não tem gosto.
—Não é possível que você goste de Sweetener! Aquele álbum é
uma bomba nuclear! —Pedro retruca, sentado de braços cruzados e
carregando sua expressão calma e serena de sempre.
—Boa tarde, anjos! —Eu cumprimento, segurando um riso.
—O que que tá pegando? —Ian pergunta, puxando uma cadeira
de plástico.
—Esses dois estão há quase meia hora discutindo sobre a
discografia da Ariana Grande. Minha cabeça já tá explodindo de dor!
—Morgana explica, com os dedos massageando as têmporas e os
cotovelos apoiados na mesa.
—Fala sério, amiga. O Sweetener é um dos melhores álbuns dela,
né? —Yuri volta para mim.
—Claro que não! Dangerous Woman é o maior, nada acima dele
—Pedro protesta.
Yuri revira os olhos e Pedro estica um sorriso de lado em
divertimento, percebendo que conseguiu irritá-lo.
—Dangerous Woman tem músicas melhores, mas Sweetener é o
que tem as mais bem produzidas —Ian toma a dianteira tentando
apaziguá-los sem tomar nenhum partido.
Sorrio com sua análise sobre músicas pop. Nem parece o cara que
sai com os amigos do curso para assistir futebol às quartas-feiras.
Ian é a “cota hétero” do nosso grupo, como Morgana gosta de
chamar.
—Ahá! Obrigado, Gatão. Sempre sensato. —Yuri pisca para Ian,
depois levanta uma sobrancelha na direção de Pedro.
—DW ainda é o melhor. —Pedro dá de ombros.
—Ai, olha, não vou discutir com você hoje, Pedro. Tô atrasado pra
minha aula, beijo pra quem fica. —Yuri diz, enquanto joga sua
mochila nas costas e sai andando de queixo erguido.
Pedro abaixa a cabeça segurando uma risada.
—Você gosta de provocar, né, garoto? —Eu dou um tapinha em
seu braço, rindo.
—Eu não resisto, ele é engraçado demais quando tem que
defender um ponto. —Ele responde, e eu não perco o sorriso em
seus lábios enquanto olha na direção em que Yuri foi.
—Hum! —Morgana levanta as sobrancelhas e murmura, com um
gole de café na boca —São 14h! Bora.
Vamos todos andando na direção dos prédios até nos separarmos
para seguir o caminho que nos leva a nossos respectivos
departamentos. Ian, para o de Biologia, Morgana para o de
Jornalismo, eu para o de Psicologia e Pedro, para o de Artes, onde
Yuri já deve ter chegado.
É um pouco engraçado pensar que todos os meus amigos mais
próximos fazem parte da comunidade LGBT. Tirando Ian e a Carol
que, na verdade, nem considero tão próxima assim.
Ela anda com a gente porque estudava comigo e com Ian no
ensino médio e calhou de entrar na mesma faculdade que a gente. É
uma pessoa legal de se ter por perto, não é como se eu apenas a
suportasse, realmente gosto muito dela. Só nunca fomos grandes
amigas.
Eu não escolhi meus amigos, não acho que seja algo que se
escolhe. Pelo menos, não conscientemente.
Morgana e eu nos conhecemos no meu primeiro período do curso
de psicologia, numa aula de Sociedade e Cultura, em que eu cheguei
atrasada.
Estava me sentindo perdida sem Ian, depois de anos tendo as
mesmas aulas juntos. A Morg me ajudou a encontrar um lugar para
sentar e me deu dicas de como lidar com o professor rígido que
ministrava a matéria.
Lembro de ter reparado no quanto ela é linda. Tão linda que
intimida, com seus olhos castanho-claros, maxilar definido,
sobrancelhas grossas e escuras, alta e o cabelo cacheado castanho
jogado todo para o lado.
Um mulherão. Porém, alguns minutos de conversas depois,
descobri que ela era hétero e tinha 22 anos, na época eu tinha
apenas 18.
Ela me contou também que era uma mulher transexual, e eu contei
a ela que era bissexual. Ela foi uma das primeiras pessoas na minha
vida para quem eu compartilhei esse fato.
Passamos a maior parte da aula inteira conversando, era
incrivelmente fácil falar com ela, a Morg tem esse dom de fazer você
se sentir a pessoa mais interessante do mundo quando está numa
conversa com ela. Ela tem uma voz suave e acolhedora. Nós nos
conectamos facilmente e logo ela estava andando comigo, Yuri,
Carol e Ian nos intervalos das aulas.
Pedro sempre estava por perto também, porque andava com Yuri
pra cima e para baixo. Eu sempre achei a relação desses dois muito
engraçada. Eles são o total oposto um do outro, enquanto Yuri é
expressivo e comunicativo, Pedro é reservado, mas com certeza é
uma das pessoas mais gentis e com o coração mais puro que eu
conheço. A gente se identifica muito também, Pedro é o único do
grupo que compartilha do meu fascínio por filmes de suspense.
E foi assim que montamos o nosso grupinho.
Nós passamos todos juntos pelas fases mais complicadas das
nossas vidas.
Quando Yuri foi morar numa nova república com mais quatro caras
héteros e estava apavorado, o resto de nós estava lá por ele, dando
apoio.
Quando Morgana terminou um namoro que parecia muito
promissor até o babaca tratá-la feito lixo quando descobriu que ela
era trans, nós obviamente ficamos do lado dela.
Estávamos lá a cada vez que Ian se desentendia com o pai e
cavava mais um buraco na distância entre os dois.
Estávamos lá quando Pedro se assumiu para os pais e a cada
desilusão amorosa minha, eles estavam lá por mim também.
Nós nos tornamos uma família.
Por isso, eu não acredito naquela frase que diz que os amigos são
a família que escolhemos. Nós não escolhemos nossos amigos, nós
os encontramos. E temos a opção de escolher ficar. Eu não preciso
dessa opção, eu levaria essas pessoas comigo para o resto da vida.
Eles são parte de mim e eu sou parte deles.
Acho que isso nos torna mais que integrantes de uma família.
Talvez sejamos algo sem nome, um termo sem tradução. Eu gosto
assim mesmo, porque somos definitiva e claramente muito sortudos
por, entre infinitas realidades e bilhões de pessoas nesse planeta,
termos nos encontrado.

Quando o sol se põe, já estamos liberados da aula e nos


encontramos mais uma vez na mesa branca de plástico da cantina.
Dessa vez, Carol está aqui também, depois de sair do prédio de
pedagogia.
—E aí, galera? Qual é a boa? Tô afim de tomar uma hoje, quem
anima?
—Carol, hoje é segunda-feira —eu respondo, rindo.
—Pra mim parece sexta, já não aguento mais essa semana. Esse
estágio tá me matando, aquelas crianças me enlouquecem.
A Carol conseguiu estágio numa escola primária no horário da
manhã. Eu amo crianças, então por um lado tenho inveja, por outro,
vejo as olheiras em seus olhos e agradeço por não ter que passar
por isso.
—Eu tô pensando em fazer uma resenha lá na casa do meu pai na
sexta. O que vocês acham? —Ian propõe.
—“Resenha”? —Morgana pergunta, fazendo aspas no ar.
Ian já sabe o que ela quer dizer, isso é gíria de hétero. Ele revira
os olhos e corrige:
—Uma festa. Tá bom assim?
—Seu pai deixou você fazer uma resenha no apartamento dele?
—Pergunto.
—Não, mas essa é a graça —ele pisca para mim e dá um sorriso.
Eu rio.
—Aqueles seus amigos do futebol estão convidados? —Morgana
pergunta, levantando uma sobrancelha.
Ian confirma dando de ombros. Morg resmunga e responde:
—Então, eu não vou.
—Ah, para Morg, eles são legais. —Ian defende.
—E nem são de se jogar fora também, vai que você acaba
pegando algum deles?
—Deus me livre pegar um hetero top, tá maluca, Bic!
—Você vai, né? —Ian me cutuca.
—Sinceramente, preferia passar a sexta vendo série —suspiro.
—Ah não, Bic. Você precisa sair, se divertir, esquecer daquela
Letícia —ele protesta.
—Amanda! —Corrijo.
—Nossa! É mesmo, Bi. Você nem contou como foi o encontro com
a gatona do tinder —Yuri diz.
Antes de sair com a Amanda, eu contei tudo para eles, como
sempre faço. Estava animadíssima, então nada mais justo que
contar a eles agora sobre como foi. Sobre como não foi.
—Ô Biczinha... fica assim, não. Ela que perdeu o mulherão que
você é —Morgana é a primeira a me confortar, fazendo carinho no
meu braço.
—Foi isso que eu disse a ela. —Ian sorri para mim.
—É Bi, nem pensa em sofrer por quem não te quer. E a melhor
coisa pra poder esquecer gente merda é sair pra se divertir. —Yuri
diz.
—Boa, então é isso. Festa lá na casa do meu pai na sexta, às 20h.
Eu mando o endereço no grupo —diz Ian.
—Fechou, Gatão. Eu apoio. —Como Yuri se animou, todos nós
nos empolgamos também. Eu e Morgana menos, mas se ela for, eu
vou e vice-versa. É o nosso combinado.
Depois disso, nos dispersamos de novo. Morgana, Pedro e Carol
partem para o ponto de ônibus. Yuri é o único, além de mim e Ian,
que mora perto da faculdade, já que no momento está ficando numa
república.
Hoje Ian tem treino de futsal na quadra do centro esportivo da
universidade, então Yuri e eu o acompanhamos apenas porque ele
promete carona depois.
Nas arquibancadas, Yuri não para de suspirar ao ver os jogadores
suados de regata correndo pela quadra.
Ian aparece em nosso campo de visão correndo com os lábios
comprimidos e o cabelo castanho molhado de suor jogado para trás.
—Pai amado, esse gatão faz jus ao apelido. —Yuri comenta. Não
posso deixar de rir.
Me lembro de quando esse apelido nasceu. Eu e Ian havíamos
chegado juntos, como sempre, para completar a ingressão na
universidade, fazer a matrícula, esperar numa fila enorme embaixo
de um sol escaldante e esse tipo de cortesia da faculdade federal.
Nessa mesma fila, conhecemos o ilustre Yuri Matos, um rapaz alto
e magro, de pele escura e cabelo crespo bem aparado, na nossa
frente. Lembro que o papo começou comigo pedindo uma
informação, seguiu para um diálogo genérico sobre o clima e
terminou com a gente fofocando sobre os demais alunos da fila e
rindo muito.
Em algum momento, Ian entrou na conversa para complementar a
pauta de fofocas com uma nova informação:
—Cara, vocês tão perdendo esse casal aqui atrás de mim
brigando. Parece que eles vão começar a se estapear a qualquer
momento —disse ele, sussurrando e tentando conter uma risada.
Ficamos ouvindo a treta tentando segurar o riso.
Então, Yuri se virou para mim e comentou baixinho:
—Ai amiga, amei seu namorado. Gato e fofoqueiro, arrasou.
—Ah, ele não é meu namorado, não! —Respondi rindo.
—Ah não? E o gatão por acaso tá solteiro? —Ele perguntou num
tom mais alto, para que Ian pudesse ouvir.
—Eu até que tô, mas não jogo pra esse time, cara. Foi mal —Ian
riu, sem se abalar com a cantada descarada.
—Poxa, gatão, eu tava a segundos de dar em cima de você
pesado —Yuri brincou.
Nós todos rimos mais uma vez. No final da fila, antes de sermos
separados pela triagem, compartilhamos nossos endereços das
redes sociais e prometemos nos encontrar mais vezes pelo campus.
Não sei se foi o santo que bateu ou talvez coisa de signo, mas
uma conexão muito sincera de amizade saiu daquele dia. Yuri é uma
das pessoas mais simpáticas e carismáticas que eu já tive a
oportunidade de conhecer. Ele diz que as amizades que começam
com fofoca são muito prósperas. Eu não posso discordar.
—Juro que ainda não entendo como vocês nunca se pegaram.
Olha esse homem, Bi. Como resistir? —Yuri diz, me trazendo de
volta ao presente.
—Já te falei mil vezes, nunca rolou. A gente não se vê dessa
forma.
—Eu sei, boba. Tô brincando. Acho muito chique esse negócio de
amizade platônica. Mas eu não conseguiria, se esse boy me desse
condição, eu não pensaria duas vezes.
—E quando foi que ele me deu condição?
—Ah, antes de conhecer vocês eu podia jurar que os
dois namoravam —Yuri dá de ombros. —Ele te olha de um jeito tão
carinhoso…
Ah, se isso não faz meu coração pular por um microssegundo…
Sempre que eu penso que já superei o crush de adolescência que
eu tinha pelo Ian, algo assim acontece. Como um gatilho.
Ian se movimenta pela quadra driblando com a bola e dando mais
passes e movimentos que eu não sei o nome.
De repente, um gol. Eu e Yuri gritamos, fazendo um som estridente
ecoar pela quadra.
Ian sorri e aponta em nossa direção, dedicando o gol à nós, seus
maiores fãs. Enquanto atravessa a quadra correndo, dá uma
piscadinha. Um sorriso gigante se espalha pelo meu rosto e Yuri não
deixa passar.
—Humm, e esse sorrisão?
—Tô feliz pelo gol, ué.
—Uhum…
Eu não tenho mais uma queda por ele, repito a mim mesma. Foi
um crush de adolescência. Coisa boba, do passado.
Ele tinha acabado de entrar na minha turma na escola. Estava
bronzeado de sol, provavelmente depois de passar o verão na praia
com a família. Seus pais ainda estavam juntos nessa época.
Seus cabelos castanhos pareciam mais claros, talvez queimados
pelo sol e seu sorriso era absurdamente lindo. Ainda é. Ele não
mudou muito desde aquela época, talvez tenha ficado até mais
bonito. Com o maxilar bem marcado e o tal sorriso de dentes
perfeitos.
O que acontece é que eu talvez tenha confundido a atenção
daquele menino lindo, fofo e simpático com algo além de amizade e
me via suspirando a cada vez que o fazia rir.
É óbvio que eu nunca fiz nada a respeito. Até porque, ele e a
Carol, que também era da nossa turma, começaram a namorar por
uns 3 meses, na época.
Mas nem depois disso eu fiz alguma coisa. Nunca. A amizade dele
é uma das melhores coisas que eu tenho e eu amo o Ian demais
para tornar as coisas estranhas entre nós ao tentar transformar esse
amor platônico em outra coisa mais complexa.
—Ai, para de graça, Yuri —eu digo. —Não rola nada. É sério.
Meu rosto perde o humor depois disso. Yuri decide não pressionar.
Ele continua me olhando com uma sobrancelha erguida, mas apenas
resmunga e volta a atenção ao jogo.
4

Ian

“Nossos destinos foram


traçados na maternidade”
Exagerado-Cazuza

Na quarta-feira, eu e a Bic vamos almoçar num restaurante de


saladas perto da minha casa. Ela odeia salada e protestou
incessantemente até eu prometer comprar uma torta holandesa, sua
favorita, de sobremesa.
Nossos amigos não vieram porque moram longe e depois daqui,
eu e Bic vamos direto para a aula na faculdade.
Eu peço uma porção grande de salada com vários grãos e
vegetais ricos em fibras e coisas saudáveis em geral que me ajudam
no condicionamento físico necessário para os treinos do futebol. Ela
pede uma salada média cheia de coisas não saudáveis. Bacon, peito
de peru, queijo parmesão e não economiza nos molhos.
—Que prato lindo! —Eu comento, sarcástico.
Ela levanta o dedo do meio. É sempre divertido irritá-la. Considero
como um hobbie.
—Não é tão saudável, mas com certeza é mais gostoso que o seu
—responde.
—Vai na fé, Canetinha.
—Esse apelido voltou? —Ela ri e levanta uma sobrancelha.
Além de irritá-la, meu outro hobbie favorito é inventar apelidos.
Canetinha é um apelido antigo que eu criei para ela, derivado de
Canetinha Bic, que vem do seu apelido oficial, Bic. Que, sem querer
me gabar, também é de minha autoria.
Foi na época do ensino médio, uns 4 anos atrás, quando nós não
éramos tão amigos assim ainda. As pessoas só a chamavam de
Bianca ou Bia.
—Não gosto desse apelido —ela disse para mim um dia na sala,
no intervalo entre aulas, quando uma garota da nossa turma a
cumprimentou.
—De Bia? Por que não?
—Porque esse é o apelido de Beatriz, não de Bianca —ela deu de
ombros.
—Vamos te dar um novo apelido, então —eu sugeri e ela sorriu.
—Você vai me dar um apelido?
—Eu sou bom nisso, confia.
—Tá bom, qual é a sua ideia? —Ela perguntou, levantando uma
sobrancelha.
—Ah, não. Calma, isso leva um tempo. É um trabalho muito
minucioso.
Ela riu e eu gostei de ouvir aquele som.
—Então, vai demorar?
—Não, pra você eu posso oferecer um serviço mais rápido.
Ela quebrou o contato visual e riu de novo e percebi que suas
bochechas estavam coradas.
—Tudo bem, Bianca. Temos boas opções aqui, vejamos… —
Esfreguei as mãos, pensativo. —Que tal “Bibi”? —Eu perguntei,
trazendo minha primeira sugestão.
Ela fez uma careta.
—Minha avó me chama assim às vezes, acho um pouco infantil
demais.
—Ok, próxima opção. “Bianquinha”?
—Não. Muito óbvio —ela fez outra careta.
—Que tal só “Bi”?
Ela soltou uma risada pelo nariz olhando para baixo.
—Isso eu já sou…
Franzi o cenho, me surpreendendo com sua declaração repentina.
Quando viu que eu não estava rindo também, sua expressão mudou,
ela ficou séria e me olhou com os olhos arregalados.
—Nossa. Você é a primeira pessoa pra quem eu conto isso.
—Você é bissexual? —Eu perguntei meio sem saber o que dizer.
Fui a primeira pessoa a quem ela contou isso e me pareceu algo
bem pessoal. Eu queria tomar o cuidado de agir da melhor forma,
apoiá-la. Sabia que era algo grande e importante, era óbvio.
Ela balançou a cabeça devagar, assentindo. Ainda de olhos bem
abertos, estudando minha reação.
Resolvi não reagir. Não fiz perguntas, não sabia até que ponto elas
poderiam cruzar algum limite. Me limitei a manter a expressão
relaxada e continuar a conversa.
Ela pareceu um pouco confusa no início, mas depois foi aos
poucos baixando a guarda e relaxando.
—Tudo bem, outra sugestão: “Bica”.
Essa fez ela gargalhar alto e eu me senti incrivelmente orgulhoso
em fazê-la rir tanto, principalmente depois de um momento tão sério.
—Vou entender isso como um não —eu disse. —Tudo bem, que
tal Bic?
—Bic? Tipo a marca de canetas? —Ela soltou outra risada.
—É, esse pode ser seu outro apelido. Canetinha Bic, um apelido
composto.
Ela riu mais. Eu podia me acostumar facilmente com aquele som.
—De jeito nenhum!
—É sério. Eu gosto de como esse soa. Bic. É bonitinho —eu
insisti.
—Bic —ela disse, testando o som da palavra —Gostei.
Quando ela sorriu, eu imitei o gesto, abrindo um sorriso de
satisfação ainda maior.
—Foi um prazer trabalhar para a senhora, Canetinha Bic —eu
disse, estendendo a mão para um cumprimento.
—O prazer é meu —ela aceitou a mão. —Mas sem esse negócio
de Canetinha!
—Isso é discutível. Eu gosto de Canetinha.
—Problema o seu! —Ela respondeu, rindo mais e me dando um
tapinha no braço.
Acho que foi nesse dia que nós nos conectamos e deixamos de
ser as duas crianças que cresceram juntas sem nenhum tipo de
vínculo próximo, e passamos a ser amigos de verdade.
Eu e a Bic sempre tivemos dificuldade em dizer da onde a gente
se conhecia. “Desde sempre” era uma resposta meio vaga, mas era
a verdade. A mãe dela engravidou poucos meses antes da minha
mãe descobrir que eu também estava a caminho, e embora as duas
não tivessem nada em comum além dos maridos melhores amigos,
essa fase em que entraram serviu para uni-las, ao menos
momentaneamente.
Não tenho muitas memórias de infância que incluam a Bic, mas
tenho algumas lembranças vagas de quando a gente brincava de
pique pega nos jantares sociais dos nossos pais. Ela era muito
tímida e mal conversava comigo, só no ensino médio consegui fazer
a garota falar.
Passamos o resto daquele dia na escola conversando sobre tudo e
qualquer coisa. Nem senti falta dos meus outros amigos, os meninos
com quem eu costumava andar junto. Até o final do último horário de
aulas, éramos melhores amigos.
Tenho muita sorte por ela achar graça nas minhas piadas idiotas, e
por tê-la por perto. Nossa amizade é de longe a melhor parte da
minha vida.
5

Bianca

“Ela estava cansada


porque foi trazida para um mundo
onde família era apenas sangue”
Hope Ur Ok-Olivia Rodrigo

Para a sorte da Carol, a semana passa rápido. Logo chega a


sexta-feira. Todos nós vamos à festa. Eu ainda prefiro o conforto da
minha cama, mas hoje Morgana já está mais animada então eu vou
acabar indo.
Não que eu não queira ir de jeito nenhum, pode até ser legal. Só
estou um pouco desanimada. Talvez eu precise de um incentivo
líquido para de fato relaxar.
Não pretendo seguir o conselho de Yuri e ficar com alguém
diferente para tentar esquecer a Amanda. Isso é muito estranho para
mim, eu não me sentiria bem com isso.
Essa coisa de sair beijando qualquer pessoa em festas ou no
carnaval nunca foi algo que eu visse com normalidade. Parece o tipo
de coisa que você faz sem pensar muito, só faz e se diverte. Eu não
sou assim. Costumo ser do tipo que pensa demais, inclusive.
Mas hoje, vou tentar relaxar e me divertir nessa
festa/resenha/social que o Ian vai dar.
—Filha, o… —minha mãe abre a porta, sem bater, e para a frase
ao me ver com uma toalha amarrada em volta do corpo e outra no
cabelo, parada na frente do guarda-roupa e as várias peças
espalhadas na minha cama —O que você tá fazendo?
—Escolhendo uma roupa. Vou sair hoje.
—Ah, e eu posso saber pra onde? —Ela cruza os braços.
Percebo que seus cabelos loiros não-naturais estão presos num
coque bagunçado, indicando que ela provavelmente vai ficar em
casa hoje.
—Uma festinha na casa do Ian. Quer dizer, na casa do tio Bento —
parei de chamar os pais do Ian de tios há muito tempo, mas às vezes
escapa.
—Mas por que na casa do Bento e não na casa da mãe dele? —
Minha mãe pergunta, confusa.
—A Débora vai viajar a trabalho para a Europa, então o Ian tá
ficando na casa do pai.
—Hum… E quem vai nessa festa? —Ela volta a se preocupar.
—Sei lá, mãe. Uns amigos do Ian.
—Tá… Vê se volta cedo, hein? Você está chegando em casa
muito tarde ultimamente, Bianca. Não pense que eu não percebo
isso.
—Tá bom —tento ignorar a última parte, mas faço uma nota
mental de tentar fazer menos barulho ao chegar em casa de
madrugada da próxima vez.
—Vou ficar em casa hoje —ela avisa, não sei porquê.
—Tá bom. E o papai?
Também nem sei por que pergunto isso. Ele nunca quer saber de
mim, por que eu deveria fazer o mesmo? Minha mãe é a única que
fica no meu pé e não no bom sentido.
—Ah, o seu pai deve tá jogando Squash lá na quadra ou
trabalhando ainda. Eu nem sei mais.
Percebo que ela diz a última frase num tom mais baixo, como se
estivesse falando consigo mesma.
Não respondo. Procuro não me envolver nos problemas dos meus
pais. Minha psicóloga nem me permite fazer isso, diz que não é
saudável para nenhum de nós três.
É como se cada um vivesse sua vida individualmente nessa casa e
desde o dia que eu deixei meus pais a par da minha sexualidade, o
convívio ficou ainda mais desagradável.
Eles não brigaram. Não diretamente comigo, pelo menos. Não me
botaram para fora de casa, não houve escândalo. Ao invés disso,
eles agiram de uma forma que eu nunca pude imaginar.
Eu lembro de quando comecei a me apaixonar por quem seria
minha primeira namorada, uma garota de uma turma acima da minha
na escola, apenas quatro anos atrás.
Eu sabia que o momento de contar a eles se aproximava à medida
em que o que eu sentia pela Manu aumentava. Eu estava me
apaixonando por uma garota e me sentia a ponto de explodir no bom
e no mal sentido.
Guardar aquele segredo estava me consumindo, me fazendo mal,
e eu sabia que era melhor contar sobre tudo e aguentar as
consequências do que passar o resto da vida em agonia. Além disso,
até quando eu poderia ignorar e esconder aquilo dos meus pais?
Seria pior ainda se o diretor da escola nos visse juntas nos
corredores e contasse para eles sobre o nosso relacionamento.
Então, num domingo depois do almoço, antes que eles pudessem
se levantar da mesa de jantar, eu expliquei tudo a eles. Que gostava
de uma menina, mas que também gostava de meninos, que me
identificava como bissexual e que nada mudou, nada em mim era
novo, eu ainda era a mesma e nada ia mudar, tudo ficaria bem.
E, embora parecesse errado, eu meio que desejava deixar claro
com esse discurso que ainda existia a possibilidade de eu me casar
com um homem um dia, pois sabia que isso abriria uma questão na
cabeça deles.
Não consegui segurar as lágrimas, a descarga emocional foi
enorme e a reação deles me chocou por ter sido totalmente oposta
ao meu estado no momento.
Meu pai me olhou com os olhos levemente arregalados, sem saber
o que fazer, ou dizer, ou mesmo pensar. Minha mãe pareceu
chocada, apavorada, mas também não disse nada. Então, depois de
longos minutos de silêncio, meu pai se levantou da mesa pedindo
licença, apenas como força do hábito, e saiu. Minha mãe saiu do
transe e fez o mesmo que ele.
Eu fiquei sozinha na mesa, com minhas lágrimas e soluços
desesperados presos na garganta. Quando a Grazi veio recolher os
pratos, não perdeu tempo e me abraçou.
—Você ouviu?
—Desculpa, filhinha, mas ouvi, sim.
Eu chorei nos braços dela enquanto ela afagava minhas costas.
Naquele dia, eu mandei uma mensagem para o Ian perguntando
se podia passar o resto do dia em sua casa. Nós ainda não éramos
tão próximos, mas eu não podia me refugiar na casa da minha
namorada porque ela morava longe demais e minha mesada não
cobriria o preço do Uber. Chegando lá, ele e a mãe dele me
receberam e me consolaram.
Eu não sei se posso dizer que a Grazi ou a tia Débora entendiam
ou se eram aliadas da comunidade LGBT, mas elas me deram uma
coisa simples que meus pais não puderam me dar: conforto. Porém,
de um jeito específico. Meus pais me deram conforto físico de uma
boa vida de classe alta, Ian, sua mãe e Grazi, naquele dia, me deram
algo maior que isso, o calor do conforto emocional.
Nas semanas seguintes, minha mãe falava comigo apenas o
essencial, em nome do convívio. E meu pai me evitava. O lance com
a tal Manu também não durou muito, e tenho certeza que o término
foi o que afrouxou um pouco o clima tenso de casa, embora eu tenha
sofrido horrores.
Hoje, a convivência já melhorou um pouco, mas acho que é
porque eles simplesmente resolveram esquecer do fato que eu sou
bissexual. E eu também não faço a menor questão de deixá-los
saber quando estou saindo com alguma garota.
E assim, nós seguimos. Até o dia em que eu sair dessa casa e for
morar sozinha. Eu só não sei quando é que isso vai acontecer.
Estar no meio dos meus privilégios é como viver dentro de um
berço. Eu tenho uma saída, posso muito bem arrumar um emprego e
sair de casa, mas me sinto protegida e confortável demais para
arrumar coragem de mudar. É isso o que me falta, coragem. Ser
privilegiada é minha maior covardia.
Mas, neste momento, não quero estragar ainda mais o meu humor
com esses pensamentos e memórias melancólicas, volto a ocupar
minha cabeça com meu problema atual: Não sei o que vestir.
Não que eu seja daquelas meninas riquinhas que têm milhões de
roupas de marca e mesmo assim fazem drama dizendo que não têm
roupa e blá blá blá. Quer dizer, eu tecnicamente sou sim uma menina
riquinha que tem roupas de marca. Mas a maioria dessas roupas são
mais básicas e monocromáticas.
A outra parte são de conjuntos super floridos e colados, roupas
que estão na moda e minha mãe compra achando que eu vou usar.
Eu não uso. Não como uma forma de afronta, minha fase rebelde
desesperada por atenção já passou, não as uso simplesmente
porque elas não fazem meu estilo.
Decido ir com um conjunto que não tem erro: calça Mom Jeans e
cropped preto de manga curta. Um tênis vans preto, que uso tanto
que tenho dois pares iguais. Não ligo se saem da moda, são
confortáveis e combinam com tudo.
Coloco brincos de prata nos três furos na orelha, passo um
perfume e não demoro muito tempo na maquiagem. Só um pouco de
corretivo nas olheiras e rímel.
Abro a gaveta no meu banheiro onde guardo os meus hidratantes
labiais. Devo ter uns 100 aqui, e a maioria dessa coleção é
alimentada pela minha avó, que sempre me compra um. Aqui tem de
tudo, nacionais, importados, edições limitadas e amostras grátis de
todos os sabores, marcas, cheiros e cores.
Escolho dessa vez o sabor melancia porque tem um cheiro
gostoso e vai trazer uma cor nos meus lábios pálidos.
Quando finalmente fico pronta, mando uma mensagem para
Morgana avisando que vou chamar um Uber. Eu poderia buscá-la de
carro, mas não gosto de dirigir. Além disso, estou pensando em
beber hoje. Quem sabe nessa noite eu acabe mesmo me divertindo.
6

Ian

“Sinceramente, não tenho nada para fazer aqui


Mas como meus amigos estão aqui, eu só vim para curtir”
Here-Alessia Cara

Sendo muito sincero, não tenho muitos motivos para querer


organizar essa resenha, mas meus amigos pediam há meses por
mais uma social na minha casa porque o apartamento é bem grande,
dá para fazer uma boa bagunça. No momento, não estou na minha
casa, mas felizmente, o apartamento do meu pai é tão grande quanto
o da minha mãe, então dá pro gasto.
Eu descobri que meu pai tem um compromisso hoje à noite fora da
cidade e provavelmente vai levar a Sandra com ele. Ou seja, um apê
de 150 metros quadrados só para mim, meus amigos e 6
engradados de Heineken.
Posso não estar pulando de ansiedade para a festa, mas sei que
no final a bagunça pode irritar o velho, e tirá-lo do sério é sempre um
pouco divertido. No geral, minhas expectativas estão baixas, mas
nunca se sabe, talvez eu precise de um incentivo líquido para de fato
relaxar.
Gabriel e Paulo já estão aqui jogando videogame na sala. O resto
deve chegar em pouco tempo. São 20:15 ainda. Vou até a varanda e
tiro o celular do bolso para conferir as mensagens.
O grupo dos meus amigos mais próximos é o primeiro a aparecer
no topo.

Dou risada, tiro uma foto da mesa e mando para eles com a
legenda: “cheguem logo”. Deixei na longa mesa da sala de jantar
uma pilha de copos descartáveis, duas garrafas de vodca, pacotes
de doritos e uma grande tigela de guacamole que a Rose, que
trabalha aqui na casa, preparou antes de ir embora. Parte das
cervejas estão num cooler no chão e outra parte, na geladeira.
Aos poucos, as pessoas vão chegando. O apartamento fica
praticamente cheio. Morgana, Bic e Pedro chegam juntos e me
cumprimentam com abraços.
Um tempo depois, Yuri chega com a Carol e é como se a festa de
fato começasse. Ele toma conta da playlist, trocando a música
eletrônica por alguma batida pop mais animada. Motive, da Ariana
Grande, começa a tocar no autofalante. Não reclamo,
particularmente, eu escuto de tudo.
Passo pela sala, a mesa de centro já está cheia de garrafas vazias
de cerveja. A varanda está lotada e percebo uma densa onda de
fumaça pairando no ar. Avisto Pedro e Bic conversando no sofá e me
junto a eles.
—E aí? —Digo, me sentando.
—Ah, ele só pode estar brincando! —Pedro diz de repente, mas
não é comigo que está falando.
—O que? —Eu franzo as sobrancelhas.
—A música! —Ele responde.
Bic dá uma risada. Acho que essa é Borderline, da Ariana também.
Eu ainda devo estar com cara de ponto de interrogação, porque
Pedro revira os olhos e se adianta em explicar:
—Sweetener! O Yuri colocou o álbum Sweetener pra tocar na
festa! Eu vou ter que ir até lá.
Ele começa a se levantar e Bic ri mais alto. Chego mais perto
dela.
—Tá se divertindo, Biczinha? —Pergunto.
—É, até que sim —dá de ombros.
—Humm, não me convenceu.
Ela suspira, seu sorriso vai sumindo.
—Bic, você veio aqui pra se divertir. Se anima, bebe um pouco, vai
dançar!
—Tô sem ânimo, Ian. O que você quer que eu faça?
—Aqui —puxo uma longneck do cooler próximo ao sofá.
Bic suspira, mas me deixa abrir a tampa e dá um bom gole.
Depois, faz uma careta.
—Eca! Odeio Heineken.
—Acho que tem umas latinhas de Skol no freezer —sugiro.
—Não, vou preparar uma caipivodca ou algo assim. Se vou induzir
meu bom humor com álcool, é bom que seja com alguma coisa doce,
pelo menos.
—É assim que se fala! —Eu sorrio enquanto me levanto e vou com
ela até a cozinha.
Não me considero forte para bebida, mas duas garrafas de cerveja
depois, estou muito bem. Ariana Grande liberou espaço para Doja
Cat tomar conta do recinto, sua voz rouca reverbera pelo alto falante.
Converso um pouco com cada grupo que vejo, tentando dar
atenção a todos. A galera do futebol está na varanda e todos bebem
cerveja. O pessoal da minha turma da faculdade está espalhado por
todo lugar. Para um bando de nerds da biologia, esses caras são até
que bem sociais.
Bic está com o terceiro ou quarto copo de caipivodca na mão,
parecendo muito mais animada que antes, dançando e cantando
com Carol, Yuri e Pedro.
—Ei, vocês viram a Morgana em algum lugar? —Carol pergunta.
Todos nós balançamos a cabeça negando.
Yuri reclama da falta de animação da galera e dá a ideia de nos
sentarmos ao redor da mesinha de centro da sala.
—A gente podia fazer alguma brincadeira, tipo um Verdade ou
Consequência!
—Verdade ou Consequência? O que é isso, o fundamental? —
Zomba Bic.
—Tá bom, ícone da maturidade, o que você sugere? —Yuri rebate.
—Que tal um jogo de cartas? —Uma garota de cachos loiros
próxima ao nosso grupo, sentada de lado no colo de Matheus, meu
amigo do curso, sugere.
—Ah não, tem que ser um jogo mais dinâmico, pra todo mundo
jogar —Carol argumenta. —Que tal Cidade Dorme ou Vire a
Garrafa?
—Sem condições pra jogar Cidade Dorme, metade da galera aqui
nem raciociona direito mais! —Eu digo rindo.
—Eu amei a ideia do Vire a Garrafa! Vamos jogar esse! —Yuri diz,
se animando.
—Vire a Garrafa? Gente, isso aqui é Brasil, não filme de
adolescente americano!
—Para de ser chata, Bianca! Vai, Gatão pega uma garrafa aí —
Yuri aponta para mim.
Eu olho em volta e encontro uma vazia e em pé perto do sofá. Me
estico para buscá-la e ajeito minha posição no chão.
Sentados ao redor da mesinha, estamos: Eu; Matheus, encorajado
pela loura em seu colo. Acho que ela se apresentou como Sarah;
Carol logo ao lado deles e Bic. Yuri está do meu outro lado. Pedro
chegou, perguntou qual era o jogo e se sentou bem ao lado de Yuri.
Há outras pessoas na sala também, mas ninguém quis entrar na
brincadeira, estão apenas como espectadores.
—Espera, quais são as regras? —Bic pergunta antes que Yuri
possa iniciar a partida.
—Não tem regra, é só um objetivo. Beijar a pessoa que a garrafa
apontou —Yuri responde, dando de ombros.
Ah. Por algum motivo, eu não tinha me dado conta do que o jogo
se tratava. Existe então, uma possibilidade de eu beijar uma das
pessoas nesse círculo.
Reparei em Bic enrijecendo e a expressão em seu rosto ficando
mais sóbria. Se mais alguém do grupo se preocupa com a
brincadeira, não demonstra ou apenas nem se importa. A maioria
aqui já está embriagada demais para pensar muito.
O Matheus, por exemplo, está teoricamente no jogo, mas seu
único objetivo parece descobrir até onde Sarah vai deixar a mão dele
subir por dentro da saia de seu vestido.
Yuri resolveu que ia começar, e com um movimento na mão, fez a
garrafa dar várias voltas antes de parar com a ponta voltada para
Carol. Os dois deram gritinhos, riram, se debruçaram na mesa e
encostaram os lábios rapidamente. Depois, a Carol girou e beijou
Sarah, Bic beijou Pedro. Todos deram selinhos rápidos.
—Peraí, gente, isso tá muito sem graça.
—O que é agora, Yuri? —Pedro pergunta revirando os olhos.
—Esse jogo já tá ficando chato, repetitivo. Vamos apimentar mais
as coisas. Os beijos agora vão ter que durar pelo menos uns 6
segundos.
—Por que seis? —Bic pergunta.
—Sei lá, seis é um bom número —é a resposta de Yuri.
—Ahh, gostei. Vai, é minha vez —Sarah gira a garrafa o suficiente
para que a boca aponte para ela mesma. Ela sorri, gira o corpo e
ataca a boca do Matheus num beijo que dura, com certeza, mais do
que 6 segundos. Agora são 10... 15 segundos… Ok, nós perdemos
eles.
—Beleza, acho que esses dois não estão mais afim de jogar. É a
vez de quem, agora? —Carol pergunta rindo.
—Eu vou! —Pedro diz estendendo a mão para pegar a garrafa.
Percebo que ele faz pouca força para girar e a ponta começa a
parar em minha direção e dou risada quando ouço assobios. Então,
a inércia afasta o bico da garrafa para alguns centímetros longe de
mim, parando em… Yuri.
Bic e Carol gritam, soltam uma gargalhada alta e batem palmas.
—Ah, eu mereço —Yuri revira os olhos.
Pedro não solta nenhum comentário, apenas puxa o rosto de Yuri
com uma mão e beija sua boca com os lábios fechados.
As meninas dão mais um grito e uma contagem regressiva a partir
de 6, começa. Quando eles se separam, estou assobiando e rindo
também.
—Ai, que palhaçada —Yuri revira os olhos mais uma vez, mas
percebo que está lutando contra um sorriso a se formar em seu
rosto. Pedro tenta agir casualmente, mas sua pele clara não disfarça
o tom avermelhado em suas bochechas.
—Tá, de quem é a vez agora? —Pergunto, ainda dando risada.
—Acho que pode ser você, mesmo Ian —Carol empurra a garrafa
na minha direção.
Pego a garrafa e giro. Cinco voltas depois, vai diminuindo o ritmo
até parar em uma linha vertical bem na minha frente. Levanto a
cabeça e de repente fico tenso. Porque quem está na minha frente
é… Bic.
7

Bianca

“Gire a garrafa, gire a garrafa


Se você é a razão para ela estar vazia, gire a garrafa.”
This could be us-Rae Sremmurd

Eu estou bêbada e isso é uma alucinação. Só pode ser isso. A


garrafa ainda está girando, não está apontada para mim. Só que na
realidade, ela parou, e eu nunca estive tão sóbria, porque me sinto
inteiramente gelada e em alerta agora.
A maldita garrafa parou mesmo na minha direção e agora eu vou
ter que beijar por 6 segundos o meu melhor amigo. E isso era o que
eu mais temia desde de quando Yuri abriu sua boca enorme e
inventou uma nova regra para esse jogo.
O que eu faço agora? Nada inocente pode sair de um beijo com
Ian. Sei disso porque já fantasiei beijar a boca desse garoto milhões
de vezes quando tinha 16 anos.
—Ai, ai! Esse é o melhor jogo do mundo! —Escuto Yuri gargalhar
enquanto meu olhar continua preso no de Ian. Eu só espero não
estar parecendo tão nervosa quanto realmente estou.
Percebo que Ian engole seco e hesita em poucos segundos antes
de espalmar a mão sobre a mesinha de centro e se inclinar para
frente, na minha direção. Eu ainda estou paralisada.
—Anda, Bic! Dá logo um beijo nele! —Não sei quem disse isso
porque, de novo, estou presa em um par de olhos castanhos. Mas
ouço gritinhos e uma pequena torcida se formando.
Decido então não racionalizar muito esse momento e arrancar logo
esse band-aid. Não é nada demais, de qualquer forma, é só um jogo
e todos aqui estão bêbados demais para lembrarem desse momento
no futuro. A não ser por mim.
Me inclino para frente também e pressiono os lábios contra os de
Ian.
No primeiro segundo, escuto nossas respirações se chocando.
No próximo, sinto pequenos raios percorrendo meu corpo, não sei
se pelo álcool remanescente correndo por minha corrente sanguínea
ou pelo fato de estar finalmente fazendo o que a Bianca de 16 anos
queria tanto fazer.
Então, no terceiro segundo, me dou conta de que estou realizando
uma surreal fantasia adolescente.
Nos segundos quatro e cinco, decido tomar a liberdade de
aproveitar o momento ao máximo e passo a ponta da língua pelos
lábios fechados de Ian.
No sexto e último segundo, posso jurar que escuto ele
grunhir baixinho e na transição para o próximo segundo, sinto seus
lábios se abrindo sobre os meus. Mas somos interrompidos por
gritos.
—Opa! Calma galera, é só um selinho! —É a voz de Carol rindo.
Nos separamos rápido e me esforço para desviar o olhar dele.
—Caroline! Não estraga o momento! —Yuri grita, mas também
está rindo.
O jogo continua, mas não sinto mais vontade de jogar. Mal consigo
olhar nos olhos da pessoa sentada bem à minha frente, mas sinto os
dele sobre mim o tempo inteiro.
Vejo a Morg sozinha do outro lado da sala e sorrio de alívio, me
levantando para ir atrás dela.
—Não vai mais jogar, Bic? —Yuri pergunta e sou atraída
imediatamente para o par de olhos castanhos ao seu lado.
Ian me olha com uma expressão indecifrável e tenho certeza que
está me olhando assim desde o momento em que nossos lábios se
separaram.
—Eu vou… ficar ali com a Morg —é o que consigo responder
antes de sair dali o mais rápido possível.
Assim que Morgana me vê, arregala os olhos e segura os meus
ombros.
—Eu fiz uma coisa —é o que diz.
—É… eu também fiz uma coisa —é o que digo.
Então rimos e nos afastamos do corredor, procurando um lugar
para sentar.
—Fala, o que você fez?
—Eu beijei o Ian —sussurro.
—VOCÊ O QUE??? —Ela grita.
—Puta merda, Morgana! Fala baixo!
—Amiga, desculpa, mas…. COMO ASSIM, GENTE?? Como isso
aconteceu e por que eu perdi esse momento?
—Não foi nada demais, foi só um jogo de virar a garrafa!
—Quem tava jogando?
—Eu, o Ian, o Yuri, o Pedro, a Carol e um outro casal lá.
—E você e o Ian se beijaram?
—Sim, o Yuri e o Pedro também.
—O YURI E O PEDRO TAMBÉM???
—SHHHHH!!! Sim, eles também acabaram se beijando e… Argh,
—eu suspiro em frustração —eu nem sei por que eu tô te contando
isso, não significou nada, foi só uma brincadeira, uma coisa boba e
durou só uns segundos, nem foi um beijo de verdade, um amasso e
tal foi só um…
—Amiga! —Ela me interrompe, eu provavelmente me exaltei de
novo —Calma, não surta.
Eu fecho os olhos e respiro fundo.
De repente, a expressão de Morgana muda, ela semicerra os
olhos e sorri de lado.
—Você é afim dele, né?
Essa pergunta me faz gelar.
—Não! Não sou! É sério, ele é meu melhor amigo, e só —me
apresso em responder. —É que eu tenho medo do que pode
acontecer com a nossa amizade agora.
—Bom, não tem que acontecer nada se você não quiser que
aconteça. Você falou que era só uma brincadeira, né?
—Sim…
—Então relaxa, amiga.
A paz em Morgana consegue mais uma vez me acalmar. Eu posso
fazer isso. Ser madura e tratar o assunto com naturalidade. Vim aqui
hoje para me divertir, afinal de contas. Morg me aconselha a relaxar,
então é isso que resolvo fazer.
8

Ian

“Você pode me beijar mais?


Somos tão jovens, não temos nada a
perder”
Kiss Me More-Doja Cat ft. Sza

Estou andando pelo apartamento procurando pela Bic, preciso


falar com ela. Não sei exatamente o que, mas preciso. Aquele beijo
que ela me deu me deixou um pouco confuso, porque embora
rápido, foi bom, e eu não esperava isso. Melhores amigos de anos
não dão beijos bons uns nos outros.
Então acho que precisamos conversar sobre isso. Ou não.
Precisamos fazer algo a respeito? Sei lá, estou me sentindo um
pouco estranho. Talvez sejam as cervejas que eu bebi finalmente
fazendo efeito.
Passando pelo corredor e indo para a sala, escuto a música dos
alto falantes tocando um pouco mais alto.
Eu reconheceria essa música em qualquer lugar. Bic e eu éramos
viciados nela no ensino médio.
May I have your attention please…
A voz dela ecoa tão alto quanto a voz de Eminem quando da
introdução de The Real Slim Shady reverbera por todo o
apartamento. Quando eu finalmente chego na sala, quase engasgo
com minha própria saliva quando a vejo de pé em cima da mesa da
sala de jantar com um microfone ligado ao amplificador. De onde
veio esse microfone?
Quando me vê, um enorme sorriso se espalha por seus lábios.
“We’re gonna have a problem here…”
Estou vidrado, não consigo desviar os olhos dela. Sua blusa subiu
um pouco, ela está descalça e os cabelos repicados estão
bagunçados e caindo nos olhos. Ela está… linda. E muito bêbada.
“But if you feel like I feel, I got the antidote. Women wave your
pantyhose, sing the chorus and it goes…”
Bic chega à parte do refrão e dá a deixa para seu público —as
pessoas que se reuniram em volta da mesa rindo com ela—
cantarem junto. Nem todos conhecem a música, mas todos dão
gritos e batem palmas completamente enfeitiçados por seu
entusiasmo.
A agitação me desperta de encará-la, corro os olhos pelo resto do
recinto e encontro Morgana carregando uma expressão ao mesmo
tempo chocada e divertida no rosto enquanto segura o celular,
filmando o show. Ao seu lado, Yuri e Pedro não cantam, mas
espelham a mesma energia e empolgação da garota em cima da
mesa, rindo e dançando. Carol também parece vidrada nela, mas
também sorrindo.
A música continua rolando e me surpreendo com a capacidade
que a Bic tem de, embora completamente embriagada e com a
dicção comprometida, cantar esse rap de praticamente 5 minutos de
duração quase não se embolando nas palavras e entregando a letra
com um inglês impecável. Cortesia, é claro, de anos de cursinho que
seu pai pagou.
“So will the real shady, please stand up and put one of those
fingers on each hand up and be proud to be out of your mind and out
of control and one more time, loud as you can, how does it go? ”
Ela canta a última parte interagindo com a plateia, colocando a
mão aberta atrás da orelha, os incentivando a cantar alto o último
refrão com ela mais uma vez.
Ela grita, pula e dá risada. E fico impressionado com como
conseguiu animar essa festa e colocar praticamente todo mundo
para dançar junto com ela.
Então pouco antes da música acabar, ela dá mais um pulo na
mesa e escorrega numa poça de cerveja e quase cai para fora dela,
eu me apresso para perto e estico os braços para alcançá-la.
Consigo impedir que ela leve um tombo feio, mas o resgate não é
nada glamuroso. O microfone em sua mão escorrega e bate no meu
rosto. Uma das minhas mãos está segurando sua cintura enquanto a
outra está espalmada em sua bunda, meus braços envolvem seu
corpo, mas antes que eu pense demais sobre essa posição, a coloco
no chão. Removo meus braços de sua volta e levo os dedos à minha
testa, bem onde ela me acertou.
Percebi que ela bateu o pé na quina da mesa quando eu a peguei,
então a examino para conferir se ela sente dor, mas ela está rindo
despreocupadamente. Vejo que está suada e suas bochechas estão
vermelhas, e ela ri tanto que tomba para o lado de novo. Meu Deus,
o quanto essa garota bebeu?
—Cara, essa é a coisa mais heterossexual que eu faço em anos!
—Bic diz com a voz mais alta que o usual.
—O que? Beber até cair? —Pergunto sorrindo, contagiado por sua
risada.
—Não, —ela ri ainda mais —cantar rap no meio de vários héteros
enquanto bebo até cair.
Suas pálpebras parecem pesadas, ela mal mantém os olhos
abertos, é incrível ela conseguir formular frases nesse nível de
embriaguez.
Felizmente, Morgana se aproxima para impedir um outro tombo.
—Opa! Amiga, eu acho que deu a hora da gente ir embora.
—Agora? Mas a festa acabou de começar! —Eu intervenho. A
festa na verdade começou há várias horas, mas não quero que elas
vão agora.
—Amigo, a Bic tá literalmente caindo de tão bêbada. Vou fazer ela
melhorar um pouco e levar ela para casa de Uber.
—Não querem carona? —Pergunto.
—Claro que não, você também bebeu.
Não digo mais nada, ela está certa. Não sei ao certo porque quero
tanto que elas fiquem, mas não insisto mais, busco água na
geladeira e algo doce para que Bic possa comer para cortar um
pouco do efeito do álcool e levo até o sofá onde Morg a deitou.
Fazemos ela comer e beber um pouco e quando Bic parece capaz
de dar passos firmes sozinha, descemos até a portaria e esperamos
o carro. Faço questão de pagar pela corrida e peço à Morg para
compartilhar a localização em tempo real comigo para ter certeza
que ambas vão chegar em suas casas em segurança.
Depois disso, subo de volta ao apartamento e me sento no sofá
com o celular na mão. Aos poucos, a galera vai se despedindo de
mim e saindo da casa. Quando finalmente o apartamento fica vazio e
recebo a mensagem de Morg avisando que ela e a Bic chegaram
bem, me levanto do sofá, tomo um banho e me jogo na minha cama
do quarto de hóspedes.

No dia seguinte, acordo sem um pingo de ressaca. Não tenho


certeza se esse presente é algum tipo de resistência que meu corpo
adquiriu depois de tantas bebedeiras ou se simplesmente não bebi
tanto assim.
Ainda tenho a casa toda para mim. Faço uma omelete rápida de
almoço com algumas coisas que encontro na geladeira e volto para o
quarto. Deixo para arrumar a bagunça da festa mais tarde. Nos
domingos, meu pai dispensa a Rose, então vou ter que fazer o
trabalho de arrumação sozinho. Antes disso, tomo a liberdade de
procrastinar um pouco e tiro um cochilo.
Acordo com barulhos vindo da sala. Puta merda. Eu não arrumei a
sala antes de ir me deitar. E meu pai chegou de viagem. Deve estar
se deparando com toda a bagunça de ontem.
Me levanto e visto uma camiseta e uma bermuda e com relutância
vou em direção à sala, seguindo a voz exaltada do meu pai.
—Ian! O que aconteceu aqui? —Ele praticamente grita quando me
vê.
Gesticula para as garrafas e poças de líquidos por todo o chão de
sua exorbitante sala de estar. Percebo que sua tentativa de bancar o
bonzinho para conquistar minha confiança foi para o inferno.
—Eu fiz uma social —dou de ombros. Reparo em Sandra no canto
da sala de olhos arregalados sem palavras diante da situação de
seus vasos caros, agora manchados com marcas de dedos e
respingos de bebida.
—Uma social? Sem a minha autorização?
—Você me disse que a casa era minha e que eu podia ficar à
vontade —estendo os braços. —Eu obedeci ao senhor.
Ele balança a cabeça e solta uma risada de escárnio, mas acho
que não percebe meu sarcasmo. A calma em minha voz o deixa
ainda mais puto.
—Eu te dei um voto de confiança pra ficar sozinho nessa casa por
um final de semana e isso acontece? —Meu pai olha em volta mais
uma vez, com os braços abertos. —E eu achando que você fosse
daqueles jovens tranquilos que ficam jogando no computador.
—Isso prova que você não me conhece mesmo —eu rio sem
humor.
Ele respira fundo.
—Ian, você vai limpar isso.
—Eu? Por que você não paga alguém pra fazer isso? —É a minha
resposta, em forma de pergunta.
—Isso é sua responsabilidade, você vai arcar com isso! —Ele
aponta o dedo na minha cara. —Eu vou buscar a sua irmã na casa
da coleguinha dela e quando eu voltar, eu quero esta casa um
brinco, entendeu?
Ele está praticamente gritando agora. Mas não vou aceitar que
banque a autoridade mor e grite comigo, agora. Não tenho o menor
respeito por esse homem.
Antes de ceder à ira e baixar a seu nível, respiro fundo. Busco as
chaves do meu carro no aparador do hall de entrada e anuncio
murmurando que vou sair. Eu tento ignorar as fotos de família em
que eu apareço emolduradas e penduradas na parede próxima a
porta. Por que tem fotos minhas nessa casa?
Meu pai está prestes a gritar comigo novamente, mas nessa hora
Sandra resolve agir, segurando o ombro dele.
—Bento, deixa ele. Vocês conversam depois com mais calma.
Ouço ele respondendo ainda gritando, mas não escuto o quê, pois
já bati a porta com força atrás de mim e estou andando até o
elevador. Saio com o carro da garagem ainda sem saber exatamente
para onde quero ir. Até me dar conta que a resposta é óbvia.
Quando paro o carro, eu mando uma mensagem para Bic
perguntando se posso subir.
9

Bianca

“Eu bebo até enjoar,


vomito na privada
É super divertido”
Forgetting All About You-Phoebe Ryan ft. Blackbear

São 18h do dia seguinte e felizmente eu consegui me livrar da pior


parte da ressaca, depois de passar o dia inteiro bebendo água e
comendo laranja (recomendações da Grazi).
Eu me lembro de tudo que aconteceu na festa. O que eu não sei
dizer exatamente se é uma coisa boa ou não.
Não que a Morgana me deixe esquecer também. Ela enviou meu
vídeo cantando em cima da mesa na festa com minha voz
esganiçada e desafinada no grupo do whatsapp. Yuri não parou de
me zoar por isso até agora. Mas, sinceramente, não me envergonho
de dançar e cantar na frente de estranhos, já fiz coisas piores
enquanto bêbada. Incluindo beijar meu melhor amigo na boca.
E ele está subindo pelo elevador do meu prédio nesse exato
momento. Disse que estava entediado e não queria ficar em casa
ouvindo seu pai reclamar sobre a bagunça pós-festa. E eu estou
nervosa. Muito.
Eu e Ian não nos falamos muito depois que fui embora do
apartamento dele, então eu não sei muito bem o que fazer ou como
agir perto dele mais. O que é ridículo, porque nós dois somos amigos
há milênios e nunca ficamos constrangidos um com o outro antes,
temos intimidade suficiente para levar praticamente tudo numa boa.
Meu medo é que aquele beijo, quer dizer, aquele selinho de seis
míseros segundos, tenha cruzado alguma linha com relação a essa
intimidade e comprometido nossa amizade.
Talvez eu esteja sendo patética achando que aquilo tenha
significado alguma coisa quando não foi nada. Foi só um jogo.
Nossa, eu devo ter repetido isso a mim mesma umas mil vezes.
Deixei a porta da sala de casa aberta e a do meu quarto também,
então a cabeça de Ian simplesmente aparece através dela e ele me
olha com uma expressão relaxada, num sorriso sem mostrar os
dentes.
—E aí.
—E aí —repito, cruzando as pernas e dando espaço para ele
sentar na extremidade da cama.
—Como tá a ressaca?
Dou risada, começando a relaxar. Ele parece tranquilo, nem deve
se lembrar do jogo, ou se lembra e não dá muita importância.
—Tô ótima. Bebi quase 3 litros de água hoje —aponto para a
garrafa azul na minha mesinha de cabeceira.
Ele ri de leve.
—E você? Nem bebeu muito ontem, né? —Pergunto.
—É… hoje tô com um pouco de dor de cabeça, mas é mais por
discutir com meu pai —ele faz uma careta ao pronunciar a palavra
“pai”, levantando as sobrancelhas e frisando os lábios.
—Vocês brigaram?
—Quase. Eu deixei ele falando sozinho e vim pra cá.
—Ian… você precisa concordar que dar uma festa numa casa que
nem é sua e deixar uma bagunça depois é abusar um pouco, né?
—Ah Bic, fala sério. Não é ele que vai limpar mesmo.
—Mas mesmo assim…
—Ó, quando eu cheguei lá, ele disse que eu podia ficar à vontade.
Foi isso que eu fiz.
Não resisto e dou risada.
—Ei, lembra do Paulo? Um cabeludinho que tava lá na festa? —
Ele muda de assunto.
Não me lembro, mas assinto mesmo assim. Quero saber a fofoca.
—Ele foi o último a sair. Ficou trêbado. Certeza que vomitou um
alguma decoração chique da sala da Sandra.
—Não acredito! —Eu gargalho.
Continuamos conversando sobre a festa. Fico feliz que o clima
esteja leve. Ele nem mencionou o beijo em momento nenhum, o que
só prova que eu estava sendo ridícula especulando uma rachadura
na nossa amizade.
Tenho a certeza de que o que eu senti quando nos beijamos foi
fruto da mente fantasiosa de uma adolescente cheia de hormônios
que aparentemente ainda habita em mim. Não, foi só nostalgia. Da
época em que eu gostava dele mais do que como amiga. Mas hoje
não é mais assim.
Por um momento, enquanto conversamos, eu até esqueço que
aquilo aconteceu e penso que posso seguir em frente e nada vai
mudar entre a gente. Até ele mencionar que está com sede, esticar o
corpo para frente e pegar a garrafinha d’água na mesinha.
Ele a leva aos lábios e eu penso que está tendo contato com a
minha saliva pela segunda vez em menos de 24 horas. Um outro
pensamento ridículo, é claro. E é claro que ele já bebeu da mesma
garrafa d’água que eu muitas vezes, só que eu nunca tive nenhum
pensamento estranho assim antes.
Ah, não. Agora ele está sério, bebendo a água devagar. Ele não
está pensando no mesmo que eu, está? Meu Deus, tomara que não
esteja. Isso nos pouparia a conversa constrangedora que eu tanto
quero evitar.
—Bic, sobre ontem… aquele jogo que o Yuri começou…
Sim, ele está pensando. Que ótimo.
Como eu não sei o que dizer em seguida, não o interrompo e deixo
ele sozinho na missão de terminar essa frase. Mas ele para, e o
silêncio é pior do que ter que falar sobre isso. Por isso, eu
intervenho:
—Não, tá de boa. Não foi nada.
—É! Não foi nada demais, né? Porque eu tive medo do clima ficar
estranho entre a gente e… sei lá.
—Não, Não! Tá de boa, mesmo! Eu também tive esse mesmo
medo —solto um riso nervoso. —Mas tá tranquilo, não muda nada.
—Pois é! Eu nem sei por que eu trouxe isso à tona, não foi nada
de mais.
Ai. Essa doeu um pouco. Embora eu tenha repetido e tentado me
convencer disso várias vezes, ouvir ele dizendo essas palavras
machuca um pouco meu ego, sim.
—Vamos esquecer que você mencionou isso e pesou o clima sem
motivo nenhum —brinco tentando levantar o astral mais uma vez.
E parece funcionar, pois depois disso já estamos rindo e
conversando mais sobre a festa. Nós falamos sobre como a Morg
saiu de perto do nosso grupo do nada e apareceu depois sem mais
nem menos. Especulamos sobre onde ela foi e com quem. Depois,
eu sugiro que vamos ver um filme na TV da sala, já que meus pais
ainda não chegaram.
E a noite termina assim, nós dois rindo do filme como se nada
tivesse acontecido, superando o fato que nem precisava ser
superado pois o mesmo se provou insignificante. Nossa amizade
continua a mesma, intacta e platônica. Eu posso finalmente relaxar.
10

Ian

“Ah, espere, não pode ser,


você tá brincando
Ele não disse o que eu acho que disse, não é?”
The Real Slim Shady-Eminem

—Mas e aquela morena de ontem, hein? Tá solteira?


É a terceira vez que o Henrique, um amigo do futebol, me faz essa
pergunta. E eu juro que, se houver uma quarta, vou ser obrigado a
dar um soco na cara dele.
—Qual é, Ian. Fala sério, qual é o problema? Passa o número da
gata —ele faz outra pergunta quando eu não respondo a anterior.
Não quero saber se somos amigos há anos, esse idiota não vai ter
o número da Bic. Não se eu puder evitar.
—Ele tá pegando, mané. É por isso que não quer que você fique
com ela —Paulo intervém, sentado do outro lado da mesa amarela
de plástico do bar.
Desvio os olhos do jogo projetado na pequena TV no alto da
parede e fecho a cara.
—Não viaja, cara. Ela é minha amiga. E é exatamente por isso que
não quero o cabaço aqui de gracinha com ela —aponto com o queixo
para Henrique.
—Aham, eu vi vocês se pegando naquela resenha, nem vem —
Paulo semicerra os olhos.
Que merda, cara. Para que me lembrar disso?
Eu tentei, juro que tentei fingir que aquele beijo breve que
trocamos na festa não foi nada. Mas não consegui. Como posso
ignorar o fato de que minha melhor amiga, a pessoa com quem eu
cresci junto, que eu tenho como irmã, me beijou? Simplesmente não
tem como.
Eu posso ter bebido um pouco, mas me lembro muito bem de cada
segundo em que seus lábios estavam nos meus. Inclusive lembro de
quando ela tentou aprofundar o beijo.
Me assustei com sua atitude no começo, é claro, mas o mais
surpreendente foi perceber que eu teria retribuído! Se não
tivéssemos sido interrompidos, eu teria continuado beijando ela, com
certeza. O quão louco é isso?
Sei que durou seis segundos, mas eu senti algo ali. Seis míseros
segundos, mas eu não consigo esquecer.
—Era um jogo, a gente não se pegou. Você tá viajando —é o que
respondo.
—Beleza, se ela tá disponível, por que eu não posso ficar com
ela? —Henrique insiste.
—Por que não, porra! —Respondo, perdendo a paciência.
Não sei dizer exatamente o porquê de eu ter ficado tão puto com o
Henrique e essa ideia fixa na Bic, é ela a futura psicóloga, ela é boa
em externalizar os sentimentos, eu não. Tudo que sei é que só de
imaginar ele dando em cima dela, beijando ela… sinto uma onda de
ódio subir por meu corpo.
Não é ciúme, não pode ser. Nunca senti ciúme dela antes com
nenhum outro cara. Nem com nenhuma outra mulher. É… cuidado,
só isso. O Henrique não presta para a Bianca.
—Ih cara, relaxa! Tudo bem, ela é toda sua.
—Falando em pegação… você sumiu no meio do rolê hein, cara.
Tava aonde? —Matheus pergunta a Gabriel, mudando de assunto.
O loiro apenas sorri de lado. E todos nós sabemos o que significa:
Ele ficou com alguma menina.
Um coro de “ihhh…” começa, seguido por risadas e tapinhas nas
costas de Gabriel.
—Quem era, quem era? —Paulo pergunta.
—Uma menina aí… —É a resposta.
Eles continuam a conversa, mas não escuto nada, minha mente
volta para aquela noite e para o dia seguinte, quando apareci na
casa da Bic.
Ela pareceu muito indiferente ao que aconteceu, será que ao
menos se lembra do que fizemos? Ela bebeu até cair, afinal de
contas.
Ou pior, talvez até se lembre, mas o beijo não fez diferença
nenhuma em sua vida e eu é que estou fazendo papel de palhaço
aqui me preocupando à toa. Mesmo assim, não consigo tirar de mim
a sensação de que havia algo mais naquele beijo.
Cacete, preciso fazer alguma coisa. Preciso resolver isso. Confiro
a hora no celular. Quase cinco da tarde. Talvez Bic esteja em casa, é
segunda-feira, não acho que ela tenha algum lugar para ir hoje.
Recolho a carteira, o celular e a chave do carro de cima da mesa e
me levanto, arrastando a cadeira de plástico para trás e atraindo a
atenção dos quatro caras sentados ao redor da mesa.
—Vai aonde, cara? —É Henrique quem pergunta.
—Preciso ir pra casa, lembrei que tenho um trabalho pra entregar
amanhã.
É uma mentira bem ridícula, mas parece funcionar. Entro no carro
e decido passar em casa —ou melhor, na casa do meu pai— antes
de me encontrar com a Bic. Acabei de sair da aula e fui direto para o
bar com a galera, preciso de um banho.
Mal passo pela porta da cozinha quando escuto meu pai me
chamando. Preciso fazer um esforço tremendo para não bufar.
Chego na sala e o encontro abotoando o paletó, Sandra está na
frente do enorme espelho do corredor, ajeitando o penteado no
cabelo louro perfeitamente realizado. Nem preciso perguntar para
saber que os dois estão de saída para mais um evento social.
—Demorou, hein? —Meu pai pergunta sem nem erguer os olhos.
Franzo o cenho.
—Você tava me esperando? —Pergunto.
—Te enviei uma mensagem pedindo pra chegar em casa mais
cedo. Não chegou pra você?
—Não vi, por quê?
—Preciso que você busque a sua irmã na escola hoje.
—O que? Por que? —Pergunto, ainda mais confuso.
—Porque eu e Sandra temos um compromisso.
—Tá, mas ela não volta pra casa com transporte escolar?
—Não mais, essa é a sua função agora —ele diz com a maior
calma do mundo.
—Como é que é? —Eu pergunto, a ponto de perder a cabeça.
Odeio quando ele usa esse tom de superioridade comigo.
—É o seu castigo por ter transformado esse apartamento num
chiqueiro e depois saído pela porta sem mais nem menos.
Castigo? Isso é algum tipo de piada? Quantos anos ele acha que
eu tenho?
—Quer se comportar como um moleque? Vai ser tratado como um
—ele finaliza.
—Mas o que eu tenho a ver com isso? Ela é sua filha, não sou
responsável por ela.
Sei que é um pouco insensível de minha parte, já que estamos
falando da minha meia-irmã caçula, mas não estou errado. Também
não é como se eu e Sophia tivéssemos um grande laço de
irmandade, nós apenas dividimos um sobrenome.
—Já comuniquei a secretaria da escola e te coloquei na lista de
responsáveis por buscá-la. É disso que você precisa, Ian.
Responsabilidade.
Estou tão puto e indignado que nem consigo pensar numa
resposta. Então, ele prossegue:
—Estou fazendo isso pro seu bem, filho. Além do mais, vai ser
bom pra vocês se entrosarem.
Não quero me entrosar com uma criança de 5 anos, não estou
nem um pouco interessado nisso.
—Porra, isso…
—Isso não está aberto a negociação, Ian —ele me interrompe,
usando um tom mais severo. —Você agora vai buscar a sua irmã na
escola todos os dias, a partir de hoje, às 17h e ponto final. E é bom
se apressar, faltam cinco para as cinco.
Dito isso, ele e Sandra saem pela porta. Passo as mãos pelos
cabelos tentando conter minha revolta.
Como não posso deixar a garota lá sozinha, saio do apartamento
ainda puto e sem tomar meu banho, pego o outro elevador para não
correr o risco de esbarrar com meu pai de novo.
Quando chego na garagem, ele ainda está lá saindo com seu
carro. Buzina para mim brevemente como se desse um cumprimento
simpático e eu reprimo a vontade de levantar o dedo do meio. Entro
no meu carro e bato a porta com força.

O filho da mãe não me passou o endereço, por isso tenho que


jogar o nome da escola no google e procurar a localização.
Quando chego lá, já são 17h10. Me aproximo do prédio e reparo
no quanto é exageradamente grande. Eu já deveria imaginar que a
escola em que meu pai colocou Sophia é de elite.
—Nome? —O guarda na guarita me pergunta, segurando uma
prancheta.
—Ian Mendes. Eu vim buscar a Sophia.
—De qual turma?
Porra, eu se lá.
Olho para os lados, buscando uma resposta e encontro uma
menininha sentada segurando uma lancheira. Ela está olhando para
baixo, balançando as perninhas curtas. Seus cabelos lisos e loiros
cobrem seu rosto.
—Aquela ali, ó —indico para o guarda.
—Ah, sim. Seu nome está aqui, pode levá-la.
Ele diz como se a criança fosse um produto reservado numa loja,
mas isso não me surpreende, escolas grandes normalmente tendem
a ter os alunos como números.
Já tive amigos que estudaram em escolas pequenas e contavam
com carinho sobre o quanto gostavam das professoras e diretoras,
eu tinha um pouco de inveja disso.
Caminho em direção à menina.
—Sophia?
Ela levanta o rosto e vejo sua franjinha loira caindo sobre seus
grandes olhos castanhos, que ficam confusos ao me ver ali.
—O que você tá fazendo aqui? —Ela pergunta com sua voz
aguda.
—Vim te buscar hoje, vamos?
Ela se levanta, ajeita a pequena mochila nas costas e eu me
ofereço para carregar a lancheira de suas mãos. Me segue até o
carro sem reclamar, mas não para de fazer perguntas.
—Por que você veio me buscar hoje? Achei que eu ia pra casa
com a tia Ruth do transporte. A tia Ruth tá doente? Quando ela fica
doente é o papai que vem me buscar. Por que o papai não veio?
São muitas perguntas, meu Deus.
—A tia Ruth não tá doente, Sophia. Mas sou eu quem vai te
buscar a partir de hoje, tá?
—Por quê?
—Por que seu pai mandou —resolvo simplificar.
—Meu pai não é seu pai também?
Mais seu do que meu.
—É.
—Então por que você não falou “nosso pai”?
—Não sei, Sophia —solto o ar pelo nariz, suspirando.
Eu coloco sua mochila e a lancheira exageradamente grandes e
caras no porta-malas. Quando bato a porta, vejo suas perninhas
rechonchudas balançando para fora do banco traseiro e, ao me
aproximar, percebo que ela está lutando para subir no carro. A cena
é cômica e… até fofa.
—Calma aí, eu te ajudo.
Posiciono-a sentada no banco e prendo bem o cinto de segurança
no lugar.
—Cadê a minha cadeirinha?
—Sua o quê? —Pergunto.
—A minha cadeirinha do carro. Mamãe disse que eu tenho que ir
sentada nela sempre.
—Eu não tenho sua cadeirinha aqui hoje. Amanhã eu trago, tá
bom?
—Tá bom —a menina se satisfaz com minha resposta. Graças a
Deus.
Mas eu cometo o erro de comemorar cedo demais, pois logo ela
volta a falar.
—Sabia que meu nome é Sophia com PH?
Penso numa piada envolvendo ácidos e bases, mas sei que fazer
uma piada sobre química para uma criança de 5 anos só renderia
mais perguntas, principalmente para esta criança em específico que
aparentemente é viciada em fazer perguntas. A menina trabalha no
IBGE, por acaso?
Respondo simplesmente que não, pois realmente não me
lembrava desse fato.
—Mas é. Na minha sala tem mais uma Sofia, mas o nome dela é
com F.
—Ela é sua amiga?
—Não —vejo pelo retrovisor sua cara de nojo. —Ela é minha
arqui-inimiga.
—Sua arqui-inimiga? Por quê? —Dessa vez, eu é que faço a
pergunta, segurando uma risada.
—Porque ela sempre quer fazer tudo melhor do que eu. Ela
sempre quer terminar a tarefa antes de mim, ela sempre quer
terminar de pintar o desenho antes de mim e ela sempre quer ficar
na minha frente na hora da fila.
—E você deixa?
—Às vezes. Mas só pra ela parar de me encher o saco —dá de
ombros. Não consigo resistir e solto uma risada pelo nariz.
No resto do caminho, Sophia continua me contando detalhes sobre
como foi seu dia e o que ela fez na escola, detalhes estes que eu
não solicitei.
Quando chegamos em casa, ela tira os sapatos, e os leva na mão
até seu quarto. Eu a sigo, curioso para ver o que vai fazer em
seguida.
No banheiro, ela puxa um banquinho em formato de sapo por
debaixo do armário e sobe em cima, para poder alcançar a pia. Lava
as mãos, e as seca na toalha rosa.
Tudo isso de uma forma meio desajeitada, como esperado de uma
criança, mas mesmo assim fico hipnotizado com sua esperteza.
Imagino há quanto tempo Sandra a faz passar por esse mesmo ritual
a ponto de conseguir dar conta de tudo sozinha.
Sophia passa por mim quando sai do lavabo e volta para a
cozinha. Escala a longa cadeira da bancada, se acomoda nela e
volta seus grandes olhos para mim como se esperasse alguma
deixa.
Levanto as sobrancelhas. Não sei o que ela quer. Ela espelha o
gesto.
—Tô com fome! —Diz com sua voz extremamente fina,
estendendo as mãos pequenas para cima.
É engraçado, ela consegue seguir à risca uma rotina de higiene
pessoal, mas não pode preparar um lanche sozinha?
—Quer comer o que? —Pergunto.
—Pãozinho e leite com chocolate.
Beleza, um sanduíche fácil. Isso eu consigo fazer. Vou até a
cozinha, procuro os ingredientes necessários e monto dois
sanduíches de queijo e presunto no pão de forma, porque também
estou faminto.
Pego um suco de manga para mim e faço a mistura de leite com
Nescau para Sophia. Pergunto a ela se prefere a bebida quente ou
fria, ela prefere fria.
Coloco o prato com o sanduíche e o copo de Nescau na frente
dela.
—O que é isso? —Ela reclama com a voz ainda mais aguda.
—Seu lanche —respondo confuso. O que há de errado agora, meu
Deus?
—Não é isso que eu como —ela cruza os braços e balança a
cabeça.
—Como assim, Sophia? Foi exatamente isso que você pediu.
—Meu pãozinho é aquele pequenininho.
—Pequenininho?
Do que diabos ela está falando?
Volto à cozinha, vasculho as prateleiras e finalmente encontro um
pacote aberto de bisnaguinhas no armário da despensa.
—É esse pãozinho?
—Siiiim! —Ela responde, estendendo o som da vogal.
Volto para a pia da cozinha e faço tudo de novo, dessa vez com a
bisnaguinha. Quando termino, levo novamente o prato para a
bancada, aguardando a aprovação de Sua Alteza Real, Sophia
Mendes.
Reparo no copo a sua frente e vejo que ela pelo menos tomou um
pouco do achocolatado que eu preparei.
—Tá errado. Eu não gosto de queijo.
Eu mereço. É sério. Eu sinto como se meu pai estivesse tentando
compensar todos esses anos em que falhou em ser um pai normal
para mim, do tipo que impõe disciplina, me dando um castigo. O
castigo de ser babá da filha mais nova dele.
—Como assim? Você não disse isso antes!
—Você não perguntou —ela põe as mãos na cintura e dá de
ombros.
Respiro fundo, bem fundo. Tiro as fatias de queijo das duas
bisnaguinhas em seu prato e coloco no meu sanduíche.
Agora tenho dois pães com queijo e presunto. Coloco os dois na
misteira elétrica e quando ficam prontos, vou pro sofá. Ligo a TV no
canal do jogo que eu perdi quando saí do bar, mas a transmissão já
acabou. Hoje é claramente meu dia de sorte.
Alguns minutos depois, Sophia anuncia que terminou o lanche e
escorrega do banco de volta para o chão. É tão pequena que faz o
assento parecer um arranha-céu.
—Ótimo! Agora é hora de dormir —comemoro.
—Claro que não, eu ainda tenho que tomar banho e fazer o dever
de casa.
Ah não, quando isso terá fim, meu Deus?
Nunca na minha vida puxei saco do meu pai, mas dessa vez preciso
parabenizá-lo. O velho caprichou no castigo.
—Quando é que sua mãe volta para casa, hein?
11

Bianca

“Filmes para dois,


vamos tirar nossos celulares
e desligar nossos sapatos”
Nothing-Bruno Major
Estou sem ar. É sério, preciso parar um pouco para respirar. Não
consigo parar de rir.
Estamos todos sentados na mesa da cantina da faculdade, Ian
está nos contando sobre como foi seu dia de babá da irmã mais nova
e eu não consigo parar de gargalhar ao imaginar ele sendo feito de
trouxa por uma garotinha de 5 anos de idade.
Não conheço Sophia pessoalmente. Eu fui em sua festa de
aniversário de 1 ano, mas depois que Ian parou de comparecer aos
aniversários seguintes, eu parei de ir também.
Só a vejo por foto, mas agora sabendo de seu potencial para tirar
o cara mais tranquilo que eu conheço do sério, estou louca para
reencontrá-la.
—Espera, então a menina fez você fazer três sanduíches para ela
e só comeu um? —Morgana pergunta, também chorando de rir.
—Fez! E o pior nem é isso, quando meu pai voltou para casa, me
deu o maior esporro porque aparentemente ela não devia comer
antes do jantar, se não perde a fome. Mas porra, como eu ia saber?
Eu achava que um lanchinho depois da escola fazia parte da rotina
dela!
—Então ela também te enganou? —Quase grito, essa história só
fica melhor —Meu Deus, Ian, ela te deu um golpe. Uma criança de
cinco anos te deu um golpe!
—Pois é, o golpe da bisnaguinha.
Rio ainda mais. Pedro quase cai da cadeira de tanto rir. Morgana e
Yuri estão berrando.
—Pra quê inimigos se eu tenho vocês? —Ele reclama.
—Desculpa amigo, mas essa história fez a minha semana. O
Golpe da Bisnaguinha! Por Deus… —Morgana tenta recuperar o ar e
de repente sua expressão fica séria. Acompanho seu olhar e vejo um
loiro alto vindo em direção à nossa mesa. Acho que reconheço ele
como um dos amigos do futebol de Ian.
Eles se cumprimentam mas percebo que o rapaz não tira os olhos
de minha amiga. Já ela, desvia o rosto.
—E aí, cara? Vai para o treino hoje? —O loiro, que se não me
falha a memória se chama Gabriel, pergunta a Ian.
—Foi cancelado, cara. O treinador tá acompanhando a esposa no
hospital, eles tiveram um filho há uns dias.
—Ah é, tinha esquecido disso —Gabriel continua lançando olhares
para Morgana e eu desconfio que ele só se aproximou para tentar
falar com ela, mas desistiu ao notar seu desinteresse.
—Te vejo mais tarde no bar, então? —Ele volta a atenção a Ian.
—Hoje não vai dar, cara. Tenho que buscar minha irmã na escola.
Isso parece prender a atenção do loiro.
—Nem sabia que você tinha irmã.
—Pois é, ela é minha meia-irmã, na verdade —meu amigo
responde, parecendo pouco à vontade.
—Bom, vou indo então.
—Vai lá cara, até amanhã.
Percebo que Morgana relaxa ao meu lado quando Gabriel se
afasta.
—Pelo amor de Deus, gatão. Você só tem amigo gostoso? —Yuri
indaga.
Dou risada, mas reparo em Pedro revirando os olhos.
—Eu vou indo —Morgana anuncia, se levantando e pegando a
bolsa do chão. —Vou aproveitar que nós fomos liberados mais cedo
e ir direto para casa. Tô cansada.
Yuri aceita a carona comigo e Ian. Pedro se despede de nós e
segue Morgana, que tomou o caminho contrário ao que Gabriel se
foi, em direção ao ponto de ônibus.
—Quer ir lá pra casa? Enquanto não dá a hora de buscar sua
irmã? —Eu sugiro a Ian, e ele concorda.
Puxamos nossas mochilas do chão e seguimos o longo caminho
até o estacionamento. Vejo de relance que Yuri levanta uma
sobrancelha e abre um curto sorriso, me olhando sem dizer nada.
Repreendo-o com um olhar cortante. Sei bem o que ele está
pensando.
Ian deixa Yuri na entrada da república em que vive, e então
estamos sozinhos novamente.
Voltamos a ter silêncios confortáveis e eu nem acredito que quase
me deixei preocupar por uma coisa tão estupidamente insignificante
quanto um selinho entre nós. Me sinto aliviada e grata por estarmos
bem e por saber que nada pode abalar nossa amizade.
Na minha casa, eu e Ian tiramos os sapatos, jogamos as mochilas
no chão. Eu vou para o meu quarto apenas para trocar a calça jeans
por um short mais confortável e então, volto direto para o sofá.
Nós comemos na cantina antes de vir para cá, mas Ian diz que
está com fome.
—Você acabou de comer um pão de queijo gigante! —Eu reclamo.
—E daí? Estou em fase de crescimento, um pão de queijo não
consegue me sustentar.
Reviro os olhos.
—Tem pipoca de microondas lá no armário.
—Prepara lá pra mim, Biczinha? —Ele faz biquinho. É
irritantemente fofo, mas não o suficiente para me fazer ceder.
—Vai você, preguiçoso! —Dou um tapinha em sua perna.
Ele dá risada e se levanta.
Enquanto prepara sua pipoca, eu escolho o filme na TV. Três
minutos depois, o microondas apita e ele volta para a sala.
—O que a gente vai ver?
—Pensei de a gente ver alguma série —respondo.
Ian precisa sair em uma hora para buscar a Sophia, então não dá
para ver um filme agora.
—Beleza, qual?
É agora que complica.
—Que tal One Day At a Time? —Eu sugiro.
Ele entorta o nariz.
—Parece chata.
—Retira o que disse agora! Essa série é perfeita! —Digo,
indignada.
—Outro dia a gente vê. Próxima.
Suspiro.
—Modern Family.
—Já assisti essa.
—Teen Wolf? —Tento a sorte. Há anos estou insistindo para Ian
dar uma chance à esta.
—Ah não, Bic.
—Eu JURO que você vai gostar.
—Hoje não.
Reviro os olhos.
—Grey’s Anatomy.
—Nem fodendo! Essa série não termina nunca.
—Ai, você é muito chato.
—Me dá esse controle, eu vou escolher.
Ele toma o controle remoto da minha mão sem nem me dar tempo
de lutar contra.
A tela mostra o pôster de The Office. Ele olha para mim e levanta
uma sobrancelha. Essa é a série que ele sempre insiste para que eu
veja.
—Não —balanço a cabeça.
—American Horror Story —ele sugere outra.
Jogo a cabeça para trás e rio alto. Eu já assisti essa, mas não é
por isso que estou rindo.
—Você morre de medo de filme de terror, Ian. Não vai passar nem
do primeiro episódio.
—Eu não “morro de medo” só não gosto dessas coisas com
assombração —ele rebate.
—Sinto em lhe informar, mas essa série tem muita assombração.
Ele grunhe.
—O que a gente vai ver então?
Essa votação tem potencial para durar a noite inteira, mas como
dessa vez ele tem hora para ir embora, resolvemos assistir um
episódio qualquer de Friends, que agrada a nós dois.
Ele aperta o play e eu me ajeito no sofá.
12

Ian

“E nós nos abraçamos


claro, eu amo isso
Mas eu preciso dos seus lábios nos meus”
Kiss Me More-Doja Cat ft. Sza
Quase me esqueci do que eu queria tanto resolver com a Bic
ontem, quando saí às pressas do bar. Hoje na faculdade tudo parecia
normal entre nós de novo, então foi como se aquele momento na
festa não significasse coisa alguma. Até agora.
Bic se aconchega perto de mim. Um gesto comum entre nós,
principalmente quando vemos filmes juntos, mas dessa vez tenho
total noção de seu corpo quente pressionado contra o meu.
Ela está abraçando as pernas junto ao corpo. Eu apoio o braço no
estofado acima de seus ombros. Em algum momento, ela deita a
cabeça em meu peito, enquanto rouba algumas das minhas pipocas.
Está com um cheiro bom. É doce, cítrico. Parece... tangerina? Me
pergunto se é seu perfume ou algum creme corporal. Ótimo, agora
estou imaginando Bic passando creme pelo corpo.
Meu Deus! Que porra eu estou fazendo? Quando foi que eu
comecei a ter pensamentos assim sobre ela? Preciso me livrar
dessas ideias, elas não nos levarão a nenhum lugar bom.
Bic ri de alguma piada da série e sobe os olhos para mim, que não
estou nem prestando mais atenção à tela.
Porque estou preso. Figurativamente, é claro. Ela me prendeu em
seus grandes olhos pretos. Estou reparando agora em coisas nela
que antes nunca dei tanta importância. Suas sobrancelhas escuras,
os olhos expressivos e os lábios avermelhados e brilhantes cobertos
pelo hidratante labial importado que ela vive passando. Talvez
venham deles, o tal cheiro de cereja.
Espero ela me sacudir e me fazer prestar atenção no episódio que
já deve estar no final. Acho que Chandler está prestes a fazer a
última piada. Nem me lembro mais que episódio é esse, também não
me importo com isso agora.
Eu espero ela cortar o contato visual, mas ela não o faz. Ao invés
disso, ela desce os olhos para minha boca e umedece os próprios
lábios. Espera… ela não está pensando no mesmo que eu, está?
Porque minha coerência e meu juízo estão se esvaindo de mim e
tudo que eu quero nesse momento é sentir o gosto de cereja.
Ela sobe os olhos de volta para os meus como se esperasse
alguma ação minha. Não perco tempo, nem quero saber o que ela
vai pensar disso.
Desço meus lábios sobre os dela, dessa vez, dando a ela um beijo
de verdade e… puta merda. Acho que alguns neurônios meus se
queimaram e pararam de funcionar. Meus tímpanos devem ter
apresentado um atestado para pararem de trabalhar também, pois
eu não escuto mais nada ao nosso redor.
Seus lábios são tão macios como eu imaginava e agora quem
pede permissão para adentrá-los sou eu, preciso provar mais disso.
Ela não demora em me deixar entrar. Então, perco totalmente o
controle, o ritmo aumenta e estamos nos beijando com vontade. Por
um momento, me pergunto como nunca fizemos isso antes, nosso
encaixe é simplesmente perfeito.
Ela passa os dedos pelos meus cabelos, eu não resisto e solto um
gemido baixo contra seus lábios. Desço minha mão de seu rosto
para sua cintura e pressiono sua pele macia. É a vez dela de soltar
um gemido que me dá ainda mais incentivo para continuar.
Desencaixo nossas bocas apenas para descer com beijos até seu
pescoço e a escuto arfar, apertando meu ombro e amarrotando
minha camiseta. Me dedico sobre um ponto abaixo de sua orelha,
mordiscando sua pele quente. Sinto a falta de seus lábios nos meus
mais uma vez, então volto minha atenção à sua boca e não pretendo
mais sair daqui.
Mas meus planos são frustrados cedo demais, pois de repente,
meus ouvidos recuperam seus empregos e eu escuto o som de
chaves contra a porta da sala. Porra, justo a da sala? Bic também
escuta e, rapidamente, empurra meu peito para longe dela, descola
nossos lábios e olha em direção à porta bem quando seu pai
aparece.
Ela limpa os lábios com a mão e se ajeita no sofá. O saco de
pipoca está no chão. Eu rapidamente puxo uma almofada para
esconder um relevo em minha bermuda que não poderia ter se
manifestado em momento pior.
—Oi, pai —Bic cumprimenta, tentando manter tom de voz natural,
embora tenha soado mais agudo que o normal.
—Oi, filha —ele responde, num tom monótono. Não olha em nossa
direção ainda pois, graças a Deus, está com o cenho franzido
olhando para o celular.
Começo a me levantar do sofá. Não, não. Péssima ideia, me sento
de novo. Preciso dar um jeito na situação de dentro das minhas
calças, mas ao mesmo tempo sinto que preciso sair deste
apartamento o mais rápido possível.
Olho em volta, preciso de uma distração. Tem um porta retrato da
Bic com sua família junto à sua avó no rack abaixo da TV. Isso, a
imagem da doce Dona Ivone deve espantar as ideias pecaminosas
que percorrem minha mente.
—Eu… vou indo —digo, depois de tentar me acalmar.
—Já vai, Ian? —O pai da Bic me questiona finalmente levantando
o rosto.
—Já, eu… —Sou um idiota, nada passa pela minha cabeça, não
sei o que dizer. Pensa, Ian. O que eu preciso fazer mesmo? Ah, isso!
A Sophia. —Tenho que buscar a minha irmã na escola.
Ele franze o cenho, confuso, e torço para que não tenha reparado
muito na minha aparência, porque eu tenho certeza que a
vermelhidão em meu rosto e o cabelo desgrenhado me
denunciariam.
Bic se levanta e começa a andar comigo até o hall de entrada,
provavelmente tentando fugir do olhar de seu pai também.
—Eu te levo até a porta, Ian —não olha para mim quando diz isso.
Eu tento muito não olhar para ela também, mas quando ela abre a
porta para mim, me viro e dou de cara com seus lábios inchados,
cabelos tão bagunçados quanto os meus e uma marca vermelha em
seu pescoço. Que eu causei.
Cacete, o que foi que eu fiz? O que nós fizemos?
Não me atrevo a lhe dar um beijo na bochecha para me despedir,
apenas aperto meus lábios antes de murmurar:
—Tchau.
—Tchau —ela responde no mesmo momento.
Me apresso ao virar de costas e sair andando já ouvindo ela
fechando a porta do apartamento, atrás de mim.
No elevador, encosto a cabeça no espelho enquanto respiro fundo
tentando assimilar o que diabos foram esses últimos minutos.
13

Bianca

“Mas amigos se transformam


em festas do pijama
E festas do pijama
se transformam em amor
Amor se transforma em ciúme
E agora nós dois fodemos com tudo”
Stuck in the Middle-Tai Verdes
Aproveito a total indiferença do meu pai para com a minha
presença na sala de estar e corro para o meu quarto.
Já fazem alguns minutos desde que Ian saiu pela porta, mas eu
ainda sinto meu coração pulando e batendo tão forte que posso
escutar as batidas nos meus ouvidos.
Aliás, sinto tudo ainda. Se fechar os olhos, posso sentir ainda a
sensação de seus lábios nos meus, sua respiração contra meu
pescoço, sua mão apertando minha cintura, e até a maciez de seus
cabelos entre meus dedos.
Eu ainda não sei dizer o que acabou de acontecer no sofá da
minha sala. Estou quase certa de que pode ter sido uma alucinação
da minha cabeça.
Porque… que porra foi aquela??? Num dia ele diz ter medo do
clima ficar estranho entre a gente e que o que rolou na festa não foi
nada demais. No outro, vem na minha casa e me dá o beijo mais
intenso que eu já senti na vida.
E meu Deus… que beijo. Foi infinitamente melhor do que eu
poderia ter imaginado. A forma como sua boca encaixava na minha e
a maneira como ele me tocava poderiam me levar a loucura ali
mesmo.
Eu devia ter parado. Sei que devia ter tentado impedir que
acontecesse, mas o jeito como ele me olhou, bem no fundo dos
meus olhos, simplesmente me tirou o ar e qualquer pensamento
coerente.
Foi bom demais. E terrível ao mesmo tempo, porque sinto que
todo esforço que fiz para condicionar meu cérebro a parar de pensar
em Ian como qualquer coisa além de meu amigo foi para o inferno.
Culpa dele. Dele e de sua pegada tão boa. Que droga, ele tinha
que ser gato e beijar bem também? Parece um castigo. Eu fui
agraciada com o melhor amigo do mundo, mas ele também calha de
ser uma tentação ambulante.
E agora? O que fazemos a partir daqui?
Podemos superar um selinho inocente numa brincadeira de festa,
mas um amasso intenso é um pouco mais além do que isso.
Vou tomar um banho. Frio. É disso que eu preciso nesse
momento.
Merda, amanhã vai ser um longo dia.

Acordo com o som de algo batendo na minha janela. Demoro um


pouco para despertar, mas a curiosidade me tira da cama, que diabo
de barulho é esse?
Me levanto e abro as cortinas, dando de cara com um céu
completamente cinza e o vidro da janela salpicado com gotas de
chuva. Olho para a rua e… meu Deus, quanta água! A previsão do
tempo antecipou uma típica tempestade de verão, e não um dilúvio!
Confiro o celular, são nove da manhã e já tem uma notificação de
um e-mail do colegiado da universidade avisando que as aulas foram
suspensas.
Sempre que chove muito, como hoje, o reitor suspende as aulas
para não prejudicar os alunos que dependem de ônibus para
chegarem à faculdade, pois estes também acabam cancelando as
rotas do dia.
Bom, isso só pode significar uma coisa. Duas, na verdade. A
primeira é que eu posso voltar para a cama e dormir um pouco mais.
A outra é que eu não vou precisar me encontrar cara a cara com Ian
hoje depois do que aconteceu ontem.
O que é ótimo, pois tudo o que eu menos quero é ter uma outra
conversa constrangedora com ele num intervalo de uma semana.
Não sei se ele vai querer conversar sobre isso, e se quiser, eu só
espero que não seja para pedir desculpas.
Eu preferia morrer do que ouvir ele se desculpando por ter me
beijado. Seria pior que uma rejeição, totalmente humilhante.
E eu estava lá também, não é como se ele tivesse que carregar
uma culpa por ter me beijado a força. Eu quis aquilo tanto quanto
ele.
Não deveria querer, mas eu quero. Quer dizer, eu quis. Porque não
vai acontecer de novo. Não pode.
Um beijo que leva a outro beijo, acaba levando à ficadas
ocasionais, que leva a algo a mais, que pode levar a namoro, que
por sua vez, pode levar a um término e um término com Ian seria
como perder um braço. Não quero parecer dramática, mas eu não
consigo imaginar minha vida sem ele. Não posso perdê-lo, de jeito
nenhum.
Eu talvez possa estar me precipitando também. De qualquer
forma, não quero ter que pensar nisso agora. Vou aproveitar o
presente que o universo me deu e cair na cama e dormir por mais
algumas horas.
Continua a chover nos outros dias seguintes, então fico em casa
fazendo os trabalhos da faculdade pendentes que se acumularam,
faço algumas leituras obrigatórias e assisto filmes para passar o
tempo.
Consigo fugir de Ian o fim de semana inteiro. Ele também não dá
sinal de querer falar comigo. O que é ótimo. Embora eu tenha
passado esses últimos dias fervendo em ansiedade e agonia para
resolver essa questão de uma vez, é melhor deixar pra amanhã, na
segunda-feira, quando ele vier me dar uma carona como sempre faz,
e conversar pessoalmente.
Mas o universo parece ter outros planos porque às 20h minha
campainha toca me assustando e quem está do outro lado da porta é
Ian, completamente molhado dos pés à cabeça.
14

Ian

“Eu não estou fazendo


nenhum joguinho
Todas as palavras que eu digo
vem direto do coração
Então, se você quer vir
pra esses braços
Vou deixar a porta aberta”
Leave the Door Open-Bruno Mars ft. Silk Sonic
—O que aconteceu? —É a primeira coisa que ela pergunta. Seus
olhos estão arregalados, então me apresso a tranquilizá-la.
—Não tinha vaga aqui perto. Eu estacionei um pouco longe e tive
que enfrentar a chuva.
—Ah.
Ela está me encarando, e eu a encaro de volta. Não quero quebrar
o contato visual, mas ainda estou parado no corredor.
—Posso entrar? —Pergunto sem conseguir conter um sorriso de
lado.
—Ah, pode —ela desperta do transe. —Só espera eu buscar um
tapete pra não molhar o chão. E uma toalha pra você.
Bic parece um pouco sem jeito ao me ver, mas pelo menos não
está com raiva de mim. Esse era meu maior receio. Entre outros, na
verdade.
Várias coisas passaram pela minha cabeça depois que eu saí da
casa dela naquele dia. Na verdade, meu cérebro parecia ter sido
invadido por um furacão.
Acabei chegando tarde para buscar Sophia porque simplesmente
errei o caminho até sua escola várias vezes. Na volta para casa,
estava tão distraído que ouvi os outros carros buzinarem para mim
umas cinquenta vezes.
Eu basicamente senti como se tivesse sido desconfigurado
completamente. Isso tudo porque não conseguia parar de pensar
naquele beijo.
E é por isso também que eu não consegui ficar mais nem um
segundo preso no apartamento do meu pai, porque além de ter que
conviver por mais tempo que eu gostaria com ele, Sandra e a
Sophia, eu também não conseguia controlar meus pensamentos.
Então, precisei espairecer. Nem a tempestade poderia me impedir
de sair de casa. Nunca fui de tomar decisões inconsequentes,
quando foi que me tornei tão impulsivo? Não sei o que me deu.
Agora aqui estou eu, na casa da Bic, todo molhado de chuva. E
sendo totalmente sincero, neste momento, não sei exatamente se
vim até aqui para conseguir mais um beijo ou para impedir que outro
aconteça.
Ela volta com o tapete e a toalha, depois caminha até seu quarto,
me dando a deixa para seguí-la.
—A gente precisa conversar —eu anuncio quando encosto a porta.
—É, eu sei —ela se senta na cama, mas não parece nada a fim de
tocar no assunto o qual ela sabe que eu estou me referindo.
Um silêncio se instaura, nenhum de nós reúne coragem para
começar a falar.
Então, de repente, falamos ao mesmo tempo.
—Aquilo não pode acontecer de novo—ela declara.
—Eu quero te beijar de novo —eu assumo.
Nunca na história houve um silêncio tão carregado quanto este.
Instantaneamente me arrependo da merda que deixei escapar.
—Espera, o que? —Seus olhos se arregalam mais uma vez.
—Não, você tem razão. Não pode mais acontecer —me apresso
em responder.
Sua expressão muda, seus ombros caem e ela olha para o chão.
Bic parece… decepcionada? Começo a sorrir.
—A menos que você…
—Não! Não. Olha, pode até ter sido bom… —Ela começa.
Bom? Bom foi o chocolate que eu comi hoje à tarde. Aquele beijo
foi fenomenal, indescritível…
—Mas não vai se repetir. Somos amigos, Ian. Seria muito estranho
se a gente começasse a ficar, e pode acabar mal. Eu não quero
comprometer a nossa amizade.
Ela está certa, tem toda a razão. No entanto, eu discordo
completamente. Agora que descobrimos essa atração entre nós, não
tem como voltar a como éramos antes, eu já não consigo vê-la da
mesma forma e genuinamente não acho que deveríamos
desperdiçar isso.
Por esses motivos, eu rebato:
—Bic, eu não acho que tem como voltar atrás. De alguma forma,
nossa amizade já mudou.
—Não necessariamente! —Ela fica de pé também, parando de
frente para mim. —A gente pode esquecer aquilo e seguir em frente.
Ian, eu realmente não quero deixar as coisas complicadas entre a
gente. Nossa amizade é tudo para mim e eu gosto dela do jeito que
está —diz num tom de súplica.
Eu me retraio, ela ainda tem razão.
—Eu sei, eu também —ofereço um sorriso tranquilizador.
Ela sorri de volta, com os lábios fechados.
—Então é isso, só amizade. Aquilo não vai mais acontecer.
—Não vai mais acontecer —asseguro.
15

Bianca

“Somos um do outro,
somos tão do mundo
Me chama pelo nome e vem me ver
eu não quero amar, eu quero você [...]
Quero ver você de novo
sem mexer no nosso jogo”
Coringa-Jão
Aconteceu.
Em algum momento futuro eu vou me arrepender disso, mas
agora? Foda-se. Quero aproveitar esse momento ao máximo.
Posso estar me contradizendo totalmente agora, mas, em minha
defesa, estou seguindo ordens médicas. Minha psicóloga fala muito
sobre me conectar e agradar a minha criança interior, então
considero que é isso o que estou fazendo.
Estou beijando nosso crush de adolescência, estou fazendo a
Bianca de uns anos atrás feliz. Ela teria muita inveja de mim nesse
momento e minha psicóloga teria muito orgulho, tenho certeza.
Logo depois que Ian e eu concordamos com o fato de que um
beijo não iria acontecer entre nós novamente, eu pude quase sentir
um arrependimento voltar à tona, tentei me segurar pois sabia que
estava fazendo o certo.
Ele, porém, não teve o mesmo autocontrole que eu e quebrou o
segundo silêncio que havia baixado entre nós literalmente largando a
toalha no chão e me prensando contra a parede do meu quarto, me
beijando com pressa, como se seus lábios não aguentassem mais
nem um segundo longe dos meus.
Ele fez todo o meu discurso sobre preservar nossa amizade ir para
a casa do caralho.
Eu não tive forças para resistir, retribuí ao beijo com a mesma
intensidade, sem hesitar, porque estaria mentindo se dissesse que
não passei todos esses dias sem reviver aquele último.
Agarro seus cabelos molhados e escuto um som gutural abafado
sair de sua garganta, me fazendo arrepiar por completo.
Suas mãos estão firmes em minha cintura e meus pés subiram na
ponta para acompanhar sua altura. O ritmo vai diminuindo e sua
boca devora a minha lentamente, provando e aproveitando cada
segundo. Seu perfume está misturado com o cheiro de chuva e o
beijo tem gosto do hidratante labial que eu estava usando.
Depois do que parecem horas, nós nos separamos. Estamos os
dois ofegantes, brigando por ar com nossos rostos ainda próximos.
Ele balança a cabeça, parece prestes a se desculpar.
—Não. Nem pense em pedir desculpas por isso —eu protesto,
antes que ele possa falar.
Ele solta o ar, rindo, mas não diz nada. Ficamos em silêncio
recuperando o ar. Agora com o clima entre nós um pouco mais leve,
ele indaga, ofegante:
—O que… que tipo de gloss você usa?
Solto uma risada. Eu esperava qualquer coisa, menos isso.
—Esse é de manga —respondo.
Ele assente.
—Muito gostoso.
—É —concordo com a cabeça.
—Bic?
—O que? —Sussurro.
—Eu vou te beijar de novo —ele diz com a voz baixa.
—Tá bom —eu assinto debilmente.
E assim, seus lábios voltam a deslizar sobre os meus. Sua mão
faz carinho na minha nuca, me arrancando outro gemido. Esse beijo
é mais lento que o outro, e é tão bom que sinto toda a extensão de
minhas pernas formigando. Na verdade, “bom” parece o mais ridículo
dos eufemismos.
Depois de algum tempo, que eu não vi passar, nos separamos de
novo. E entre mais respirações pesadas, ele implora:
—Por favor, não me pede pra parar com isso.
—Isso o que? —Questiono.
—Isso —ele aponta para o espaço entre nós. —Bic, isso aqui entre
a gente é bom, muito bom, e funciona. Eu não quero parar por aqui.
Sua declaração me assusta levemente. Balanço a cabeça,
começando a protestar, mas ele me interrompe, prosseguindo com
seu discurso:
—Sério, a gente sempre se dá bem, nunca brigamos e agora,
tem essa química surreal entre a gente. Qual o problema de a gente
ficar de vez em quando? O que pode dar errado?
—Quer uma lista? —Solto uma risada sem muito humor. —Ian, me
fala, qual é a sua sugestão? Uma amizade colorida? Porque se for,
eu não vou aceitar, sem chance.
—Não! Só tô dizendo pra gente deixar rolar. Continuamos amigos,
vida que segue. Mas se surgir uma vontade… a gente fica. Sem
complicação, sem momentos constrangedores e conversas
desnecessárias no dia seguinte.
—Basicamente, uma amizade colorida.
—Tá Bic, se você quiser chamar assim, fica à vontade —ele diz,
revirando os olhos.
Cruzo os braços.
—Eu tô falando sério, Ian.
—Eu também tô!
Mais um silêncio. Estou me cansando desses silêncios, eles não
são do tipo bom.
—Olha, foi só uma sugestão, tá? Não tem problema nenhum se
você…
—Eu vou pensar —interrompo.
Ele esboça um sorriso de lado.
—Tá bom, já é um começo.
—Tira esse sorrisinho da cara! —Aponto com o dedo.
—Que sorriso? —O sorriso em questão aumenta.
—Esse! Para com isso, é irritante —é lindo, na verdade, mas eu
jamais diria isso a ele.
—Bom, eu vou indo, então. Te vejo amanhã, se as aulas voltarem
—Ian diz.
Espera, ele vai embora agora? Por acaso ele veio até a minha
casa no meio de uma tempestade só para me dar mais um beijo
desconcertante e me deixar maluca pelo resto da noite? Que tipo de
tortura psicológica é essa?
—Já vai? —Pergunto, sem me conter.
—Quer que eu fique? —A porcaria do sorriso de lado presunçoso
voltou.
—Quero, mas desfaz essa cara agora. A gente vai ver um filme.
—A gente vai assistir ele inteiro, dessa vez? —O idiota pergunta.
—Sim. Você vai ficar de um lado do sofá, e eu do outro.
Saio do quarto e ando em direção à sala.
—Sim senhora —ele bate continência atrás de mim. —Prometo
que vou me comportar.
Faço questão de escolher um filme de suspense e que eu nunca
tenha visto antes, com o intuito de prender minha atenção o
suficiente e me fazer esquecer momentaneamente que Ian está há
poucos metros de mim.
É claro que meu plano não dá certo, pois estou constantemente
sendo lembrada de sua presença e sinto seus olhos sobre mim
durante maior parte do filme.
Ele cumpre com sua promessa e se comporta, não faz nenhuma
investida. Não sei dizer se fico aliviada ou decepcionada com isso.
Quando o filme acaba, eu o levo até a porta. Ele se vira para se
despedir de mim com um beijo no rosto, assim como sempre faz,
mas dessa vez, muda a rota para minha boca e me dá um selinho,
me pegando de surpresa.
Depois que se afasta, pisca para mim e entra no elevador, me
deixando parada na porta com o coração palpitando.
Eu odeio o quanto me sinto atraída por ele. É assustador. Mais
assustador ainda é ter noção do poder que eu acabo dando a ele de
destruir meu pobre coração palpitante.
16

Ian

“Amigos não fazem


as coisas que fazemos”
Just a Friend to You-Meghan Trainor
—Sabe quem é a minha melhor amiga?
—Não sei, Sophia. Quem é? —Respondo perguntando.
—A Júlia. Ela divide o lanchinho comigo, anda comigo no recreio e
brinca comigo na educação física.
—Que legal.
—Ela é muito legal mesmo.
Ajudo Sophia a subir no carro e se acomodar na cadeirinha. Travo
o cinto e estou prestes a fechar a porta quando ela faz a milésima
pergunta da do dia em um intervalo de 15 minutos, desde que eu
cheguei para buscá-la.
—Ian, você tem um melhor amigo?
—Tenho. Tenho vários amigos, mas minha melhor amiga é uma
menina, na verdade —respondo, dando a volta no carro e sentando
atrás do volante.
—Sério? —Ela parece em choque.
—Sério —olho no retrovisor e solto uma risada ao ver seu queixo
caído.
—A Maria Luiza e o Bernardo da minha sala também são melhores
amigos, mas todo mundo sabe que eles namoram escondido da
professora na hora do recreio —ela diz.
Franzo o cenho. Crianças de cinco anos já sabem o que é
namorar? Que mundo é esse?
—Como assim eles namoram, Sophia? —Pergunto, um tanto
preocupado.
—Eles ficam de mãos dadas o dia inteiro, sentam juntos no
banquinho da aula de artes e na hora da saída, eles se abraçam e
dão beijinho no rosto! —Ela me conta, com um tom de voz
sussurrado, como se esses gestos fossem uma barbaridade.
Eu começo a dizer que isso é normal entre amigos, mas logo me
lembro de que eu mesmo já ultrapassei essa linha e fiz bem mais
que isso com a minha amiga, mais de uma vez, inclusive.
Afasto os pensamentos sórdidos que invadiram a minha mente
quando pensei na Bic antes de voltar a conversa. É óbvio que as
crianças que Sophia está se referindo não têm nada a ver comigo e
com a Bic.
—Você faz essas coisas com a sua melhor amiga? —Ela pergunta.
—Faço o que?
—Ficar abraçando e andando de mãos dadas.
—Ah, sim. Isso é normal, amigos fazem essas coisas. Você não
abraça suas amigas meninas?
—Às vezes —ela dá de ombros.
—Pois é, meninos e meninas podem ser amigos também e isso
não significa que eles estejam juntos.
Viva a hipocrisia!
Sophia fica em silêncio por um momento, pensando no que eu
falei.
—Qual é o nome dela? —Pergunta.
—Da minha amiga?
—É —ela confirma.
—Bianca.
—Ela é bonita?
—Muito.
Merda, rápido demais. Quer dizer, eu não menti. A Bic é linda. Mas
minha resposta saiu tão naturalmente que assustou até a mim. E fez
suspeitas crescerem em Sophia, que pode ser criança, mas não é
nada boba.
—E você gosta dela?
—Como amiga, claro.
—Só como amiga?
—Sim, Sophia. Só como amiga.
Geralmente suas perguntas não me incomodam nem um pouco, já
me acostumei com elas, mas neste momento sinto vontade de mudar
de assunto o mais rápido possível.
—Sophia, você tem algum apelido?
—Um apelido?
—É. Um jeito legal como as pessoas te chamam, sem ser pelo seu
nome.
—A mamãe e o papai me chamam de "Sosô" às vezes.
—Não, esse é muito sem graça, você precisa de um novo.
—Um novo apelido?
—É, vou inventar um para você.
Ela parece se animar.
—E como vai ser?
—Sôfi. Que tal? Gosta desse?
Ela franze seu nariz pequeno e balança a cabeça, sua franjinha
loira acompanha o movimento.
—Tá bom, que tal… Sopa?
—Sopa? Isso é nome de comida, seu bobo!
Ela me arranca mais uma risada.
—Eu sei, mas como seu nome se escreve com P e H ao invés de
F, eu pensei em “Sopa” ou “Sopinha”. É bonitinho, não é?
—Eu gosto de Sopa.
—Do nome ou da comida? —Pergunto.
—Dos dois!
—Perfeito, então agora só vou te chamar assim.
—Oba! Eu gostei!
Ela abre um sorriso enorme que quase atravessa as bochechas
redondas. Sophia tem uma risadinha tão contagiante que é
impossível não rir com ela.
Chegamos em casa e dessa vez, não faço lanche para ela,
embora ela peça.
Meu pai e Sandra ainda estão trabalhando, então eu a ajudo com
o banho e o dever de casa.
Ela me manda ficar do lado de fora do banheiro pois diz que sabe
se virar sozinha, eu também não tenho a menor noção de como dar
banho em uma criança, então a deixo lá, mas por precaução, fico
sentado atrás da porta, caso ela precise de alguma coisa.
Na hora do dever de casa, ela usa sua lábia poderosa para me
distrair com suas perguntas e quando percebo, estou fazendo o
trabalho de cortar e colar figuras sozinho.
Mesmo assim, não acho que Sophia vá arrumar um problema com
a professora no dia seguinte porque sou tão ruim com atividades
manuais que o resultado da atividade pode facilmente ser confundido
com o de um aluno do ensino básico.
Quando seus pais chegam em casa, passo a responsabilidade de
volta para eles e me tranco no quarto de hóspedes.
Me jogo na cama e, agora que não estou ocupado com distrações
diárias, Bic volta aos meus pensamentos. Quero muito saber se ela
já tomou uma decisão sobre começar um lance casual comigo.
Não quero pressioná-la e entendo que esse é um grande salto a
se dar, somos amigos há muito tempo e nunca nos vimos de outra
forma, mas agora também temos essa atração física e é inegável.
Sei que ela precisa de um tempo para pensar, mas ainda não
consegui encontrar um jeito de esquecer a sensação do beijo dela e
não sei se estou pronto para abrir mão de querer isso.
Aciono o modo aleatório de uma das minhas playlists enquanto
arrumo os materiais que preciso levar para a faculdade amanhã. A
chuva cessou, então as aulas finalmente voltaram.
É uma sensação muito estranha quando as músicas começam a
fazer sentido nas nossas vidas.
Mesmo no modo aleatório, já contei três músicas seguidas que
falam sobre a mesma coisa: beijo na boca e segundas chances.
Bom, só me resta aceitar isso como um sinal do universo. Paro o
que estou fazendo e envio o link da música tocando no momento
para Bic, quem sabe assim seus pensamentos não se alinham com
os meus?
17

Bianca

“Vem matar logo de beijo


eu quando te vejo acabo com a saudade”
Meu Pedaço de Pecado-João Gomes
Ian estaciona o carro num local sem sombra, debaixo de um sol
escaldante. E pensar que até anteontem, não parava de chover.
Como eu me atrasei hoje, nem posso reclamar de ter que atravessar
esse sol. Além disso, Ian fez questão de parar próximo à sala onde
acontece minha aula de hoje. Meu amigo é um anjo.
Ele também não me fez nenhuma pergunta sobre a proposta que
me lançou. Eu sei que talvez eu esteja o enrolando um pouco, mas é
uma decisão mais difícil do que parece a se tomar. Os prós são bem
convincentes, mas os contras também são muitos.
—Viu a mensagem que eu te mandei ontem? —Ele pergunta
quando eu solto o cinto de segurança.
—Não —nem vi o celular hoje, levantei da cama no pulo. A
verdade é que eu perdi o sono pensando na tal proposta e fui dormir
lá para as 4h da manhã depois de maratonar alguns episódios de
reality shows de veracidade duvidosa, tentando mudar o foco dos
meus pensamentos. —Por que?
Ele não responde, apenas me mostra um sorriso de lado.
Semicerro os olhos. Que merda ele fez agora?
Não tenho tempo para interrogá-lo e descobrir, por isso, fecho a
porta do carro e murmuro um “tchau” antes de sair às pressas em
direção ao prédio de psicologia.
Luto com todas as forças contra a curiosidade para não pegar o
celular no meio da aula e descobrir que mensagem era essa que ele
mandou. Só quando a professora libera a turma, três horas e meia
depois, eu corro para o corredor e puxo o aparelho da bolsa.
Descubro que não é uma mensagem de texto simples, é um link.
Clico nele e sou redirecionada ao aplicativo do spotify, a música
linkada é Meu Pedaço de Pecado do João Gomes.
Mais aleatório impossível. Eu até conheço essa música, mas não
costumo escutar esse gênero. Ian sabe disso.
Como o link com a música veio sem nenhum tipo de contexto e sei
que ele não quer apenas me apresentar a um gênero musical
diferente, só posso crer que ele está tentando me passar algum tipo
de mensagem.
Busco os fones de ouvido na mochila e presto atenção à letra.
“Quero ser teu namorado
Ficar do seu lado…”
Oi? Não, não pode ser isso…
Então o refrão começa a tocar e faz muito mais sentido.
“Tô querendo te beijar de novo
O teu beijo me enlouqueceu
Tudo que a gente já fez foi pouco
Quero sentir seu corpo no meu. ”
Só percebo que estou parada de pé e em choque no mesmo lugar
no corredor quando a música acaba.
Ai, merda.
Eu quero muito aceitar essa loucura de proposta e ficar com ele de
novo. Estaria mentindo ridiculamente se dissesse que não penso
nisso constantemente. Mas sei que posso me arrepender muito de
cruzar essa linha no futuro.
Por outro lado, eu nunca vou saber se o arrependimento virá do
fato de eu não ter me arriscado nisso. Posso estar abrindo mão de
algo muito bom e que dê muito certo.
Respiro fundo. Três vezes, como minha psicóloga orienta.
Morgana sempre diz que é melhor acordar no dia seguinte com
arrependimento do que com vontade. Então resolvo seguir o
conselho sábio da minha amiga, e fazer outra coisa que ela sempre
me diz: “Relaxa, amiga! ”
Volto ao chat de mensagens com Ian e envio:

Não respondo, sigo o caminho até o laboratório de microbiologia. É


uma longa caminhada até lá, principalmente para alguém com
pernas curtas como eu, mas estou determinada, fazendo um leve
esforço para não deixar escapar essa coragem repentina que me
acometeu.
Depois de alguns vários minutos, finalmente chego na porta do
laboratório.
Eu tinha a ideia na minha cabeça de abrir a porta com força e pular
nos braços do Ian, assim como nos filmes, mas essa ideia morre no
instante que abro a porta bruscamente e percebo que ele não está
sozinho, tem mais outros três alunos na sala. Deus, que vergonha.
Ian está debruçado sobre uma mesa, levanta os olhos na minha
direção e me encara por trás dos óculos de grau de armação
quadrada, franzindo o cenho.
Nossa, eu tinha esquecido o quanto ele fica gato de óculos,
deveria usar mais vezes.
Os dois estudantes saem da sala depois de alguns minutos—
minutos esses que pareceram horas—e então somos só nós dois.
Sem perder tempo, começo a percorrer a distância entre nós e ele
também começa a se movimentar, saindo de trás da mesa.
—Tá tudo be… —começa a perguntar, mas eu o interrompo,
grudando nossos lábios e passando os braços por seu pescoço.
Ele corresponde ao beijo, me segurando pela cintura, e esse beijo
confirma todos os meus receios de que isso é sim uma loucura, mas
pode valer muito a pena.
—O que foi isso? —Ele indaga quando nos separamos. Pisca
algumas vezes, parecendo desnorteado, mas um sorriso bobo
cresce em seu rosto.
—Isso é um sim pra sua pergunta.
Seu sorriso aumenta.
—O que te fez mudar de ideia?
Eu poderia dizer que parei para pensar melhor, mas na verdade foi
o contrário, eu parei de pensar demais.
—Resolvi deixar rolar —é o que respondo, dando de ombros.
Então ele inclina a cabeça e volta a me beijar. Mas só por alguns
segundos, acho que está com tanto receio de ser pego usando o
laboratório para pegação quanto eu.
—Sua aula já acabou? Quer ir pra algum lugar? —Ele pergunta,
ainda sem me soltar.
—Algum lugar? —Sorrio.
—Qualquer lugar… —ele sussurra aproximando novamente os
lábios dos meus, fazendo meu corpo todo arrepiar. É impossível
dizer não.

Não sei do que Ian tanto reclama da irmã, ela é uma fofa. Só um
pouco quieta demais, não falou muito desde que cheguei.
Depois que saímos da faculdade, Ian me deixou em casa e foi
buscar Sophia na escola. Aproveitei para tomar um banho e trocar de
roupa, então ele voltou e me trouxe de novo para sua casa.
Agora, ele está tomando banho enquanto eu e Sophia estamos
sentadas no sofá, assistindo Miraculous Ladybug. E ela está em
completo silêncio, assistindo o desenho. Talvez esteja tímida, mas
não me dá a menor atenção. Eu adoro conversar com crianças, por
isso não me controlo e tento puxar assunto com ela, mesmo ela não
parecendo interessada.
—Que lindo seu lacinho, Sophia! —Elogio, apontando para as
maria-chiquinhas que prendem os fios de seus cabelos dourados.
—Obrigada —ela responde com educação, mas não tira os olhos
da tela.
O que eu falo agora? Não estou acostumada a ser ignorada por
crianças, geralmente elas gostam de mim. Quando eu e Sophia
fomos apresentadas, eu fiz questão de não cometer o erro de dizer
algo como “Lembra de mim? Te peguei no colo quando você era
bebê! ” e essas coisas que a gente ouve quando é pequeno e
encontra aquela pessoa conhecida da família que nunca viu na vida.
Todos já passamos por isso, é péssimo. Dá vontade de responder
com “É claro que eu não lembro, senhora! Meu cérebro não estava
nem desenvolvido nessa época! ”
Realmente não sei o que fiz de errado, ou como começar uma
conversa que conquiste essa menininha e a faça gostar de mim. Mas
então, me surpreendendo, Sophia respira fundo, gira seu corpo em
minha direção e fecha as mãos juntas. Parece estar se preparando
para fazer uma pergunta muito importante e eu tenho que me
segurar para não rir e perder pontos com ela, mas o gesto é tão fofo!
—Desde quando você conhece o meu irmão? —Ela olha no fundo
dos meus olhos.
Tento conter minha surpresa, eu não esperava por essa.
—Nossa, tem muito tempo. Antes mesmo de você nascer.
Ela não gosta nem um pouco dessa resposta. Claro, nenhuma
criança gosta de ser lembrada que é criança perto de um adulto.
Merda, por que eu disse isso? Agora ela vai me odiar.
—Eu só tenho cinco anos, nem é tanto tempo assim.
Franzo o cenho. O que ela quer dizer com isso?
Antes que eu pudesse responder, ela me lança outra pergunta.
—Ele já te deu um apelido?
Não sei para onde ela está tentando levar esse interrogatório, mas
eu rio respondendo:
—Aham! Ele me chama de Bic.
—Isso é nome de caneta —ela franze as sobrancelhas claras.
—Foi o que eu disse a ele, mas ele parece ser viciado em dar
apelidos bobos pras pessoas.
—Ele me deu um apelido também, e não é nada bobo —ela diz,
num tom defensivo.
—Deu? E qual é?
—Não posso te contar, é uma coisa só nossa —ela diz fechando
os olhinhos castanhos e empinando o queixo.
Então uma lâmpada se acende em cima da minha cabeça. Já sei o
que está acontecendo aqui. Ela tem ciúmes da minha amizade com
seu irmão.
Tenho vontade de gargalhar alto, mas obviamente me contenho.
Achei que ela não gostasse de mim. Tipo, de mim mesma.
Não costumo me importar muito com a opinião alheia, mas quando
se trata de crianças, é diferente, porque na maioria das vezes, elas
são seres muito verdadeiros e pouco influenciáveis por juízos
externos.
Agora que sei que seu julgamento sobre a minha pessoa não é
nada pessoal, relaxo. E tento contornar a situação.
—Ele sempre fala muito bem de você, sabia?
Isso atrai sua atenção novamente para mim.
—Sério?
—Aham, ele diz que você é muito esperta.
—O que mais ele fala? —Ela pergunta, curiosa.
—Ele disse que você um dia fez com que ele ficasse um tempão
fazendo um sanduíche para você. Eu achei aquilo muito engraçado.
—Foi bem engraçado mesmo —ela dá uma risadinha.
Fiz ela rir, acho que estou ganhando pontos!
—O que você acha de a gente aprontar com ele de novo? Tipo,
armar uma pegadinha? —Proponho, sussurrando.
O rosto de Sophia se ilumina e eu desconfio que tenha dado um
passo mais próximo de conquistar sua simpatia.
—Já sei!
18

Ian

“Diga o que você realmente quer,


porque você pode acabar conseguindo”
Motive-Ariana Grande ft. Doja Cat
Saio do box depois de uma ducha bem gelada. Está muito calor
hoje, por isso, visto uma regata e uma bermuda velha, é bom saber
que não preciso me arrumar muito para Bic, ela já me conhece
mesmo. Mas, se eu estivesse na casa da minha mãe, provavelmente
estaria ouvindo muita reclamação por escolher essa roupa também.
Saudades dela, inclusive. Vou ligar mais tarde.
Estou tão distraído que mal percebo que a casa inteira ficou na
escuridão depois que apaguei a luz do banheiro.
Será que faltou energia? Do nada? E cadê as meninas?
Ando até meu quarto e me apresso a acender a luz, ficar no
escuro completo me dá aflição.
Mas tudo acontece rápido demais. Antes que eu pudesse alcançar
o interruptor, um rosto branco surge no meu campo de visão,
iluminado por uma luz branca vindo de baixo para cima, seguido por
gritos muito altos e agudos.
Tomo um susto tão grande que acho que meu corpo inteiro
desligou e reiniciou como o sistema de um computador. Cambaleio
para trás com os olhos arregalados e acabo caindo no chão. Então
as luzes do quarto são acesas e os gritos se transformam em risadas
escandalosas. Olho para cima e vejo Bic e uma criaturinha
rechonchuda e loira se dobrando de tanto rir.
—Put… Pelo amor de Deus, Bianca! Quer me matar?
Levo a mão ao peito, meu coração bate feito louco. Respiro fundo
para me acalmar. Só não solto uma série de palavrões nesse
momento porque Sophia está no quarto e se ela replicar um deles
perto do pai, vou tomar outro esporro por sua causa.
—Foi ideia dela! —Bic aponta para Sophia.
Elas ainda estão rindo, agora tentando se acalmar. Bic levanta a
palma das mãos na direção de Sophia e ela repete o gesto, batendo
de volta.
—Isso foi muito legal! —Diz.
Ótimo, agora essas duas são melhores amigas, e estão unindo
forças para me infernizar.
—Ian, você tinha que ver a sua cara —Bic ri mais, mas se
solidariza para me ajudar a levantar, me estendendo a mão.
Eu aproveito a oportunidade para puxar seu braço, trazendo-a
para o chão também. Com a outra mão, puxo Sophia pela barra do
vestido e ela solta um gritinho estridente quando a derrubo também.
Tiro as costas do chão e faço cócegas nas duas, sei que esse é o
ponto fraco da Bic, imediatamente ela começa a tentar me chutar e
empurrar meu braço, felizmente sou mais forte que ela. Mas em
algum momento, ela consegue se libertar e muda de lado,
começando a atacar Sophia junto comigo.
—Ei, isso não vale! —Sopa protesta, se contorcendo e gritando.
—Você começou! —Rebato.
Estamos todos rindo e gritando quando Sandra aparece na porta
do quarto com cara de apavorada, nos vendo no chão.
—O que tá acontecendo, pelo amor de Deus?
—A gente tava brincando, mamãe —é Sopa quem responde.
—Ai, que susto, gente! —Ela ri com alívio e pousa a mão no peito.
—Eu ouvi gritos e… Ah! Oi, Bianca! Tudo bem, querida? Quanto
tempo!
—Oi, Sandra —Bic acena, ainda respirando com dificuldade.
—Que gritaria é essa? —Meu pai aparece atrás de Sandra,
franzindo o cenho.
—Nada de mais, meu bem. Eles estavam brincando.
—Brincando? Os vizinhos vão reclamar com essa gritaria toda! —
Ele rebate e sai da porta, resmungando.
Reviro os olhos, é incrível como ele consegue acabar com todo o
meu bom humor.
—Vem Sosô, vou esquentar seu jantar —Sandra estende a mão
para Sophia, ela se levanta e segue a mãe até a cozinha.
—Você viu como ele nem falou com você? —Pergunto quando Bic
e eu ficamos sozinhos.
Ela se levanta do chão e senta na minha cama.
—O que?
Me levanto também e deito na cama, ao seu lado.
—Meu pai te ignorou naquela hora. Porra, parece que ele só veio
até aqui pra pesar o clima sem motivo nenhum, e ainda…
Ela me interrompe, rolando de lado e encostando os lábios nos
meus num beijo casto que, embora suave, me causa um arrepio.
—Esquece isso —ela sussurra e simples assim, já esqueci.
Me inclino em sua direção e puxo seu rosto para perto de mim de
novo, beijando-a com mais intensidade dessa vez.
Começa lento e delicioso, seus lábios têm o mesmo gosto doce
que eu me lembrava da última vez, mas agora essa última vez
parece separada por anos do momento presente.
Então, aumentamos o ritmo, agora é urgente. Ela passa uma das
pernas por um dos lados da minha cintura, praticamente montando
em cima de mim. Minhas mãos agarram seus quadris e vão
descendo, mantendo-a colada em mim.
Ela geme contra meus lábios e eu perco o ar, perco a cabeça.
Desço com beijos por seu pescoço até a clavícula, ela arfa. Puxa
meus cabelos, me fazendo olhar para cima, beija minha boca mais
uma vez antes de nos afastar novamente.
—Acho melhor a gente parar um pouco —diz, ofegante.
Discordo totalmente dessa afirmação. Minha vontade é arrancar
nossas roupas e continuar plantando beijos por todo seu corpo, mas
se eu quiser mesmo cruzar essa linha com ela, tenho que concordar
que é melhor fazermos isso quando não tiver mais ninguém em casa
para atrapalhar, pelo menos.
Por isso, me afasto com relutância, colocando meus braços atrás
do meu corpo, seguramente longe dela, apoiando-os na cama.
Bic continua no meu colo. Eu continuo encarando seu rosto, sem
conseguir desviar os olhos.
—O que foi? —Ela pergunta mordendo os lábios vermelhos,
segurando um sorriso.
—Qual gloss você tava usando hoje? —Pergunto. Minha voz sai
mais grossa do que eu pretendia.
Ela ri.
—Vai ficar reparando nisso toda vez?
—Vou —nem hesito.
—Abacaxi.
—Abacaxi?
—Aham.
—É o meu favorito até agora —declaro.
—Espera até provar o de goiaba, é o melhor.
Sorrio descaradamente.
—Mal posso esperar.
19

Bianca

“Eu poderia fazer isso por horas,


sentar e conversar com você por horas”
Hrs and Hrs-Muni Long
Já deve passar das dez da noite, mas eu continuo na casa do Ian.
Mais especificamente, em sua cama. Estamos devidamente vestidos,
no entanto, e dando um tempo de toda a pegação, apenas
conversando. E o mais incrível de tudo? Não é estranho, não há
silêncios constrangedores e desagradáveis, nada mudou. Ainda
somos nós e ainda somos amigos, e isso me traz uma paz enorme.
Conversamos deitados lado a lado na cama, com os pés apoiados
na parede e nossas cabeças pendendo sob o colchão, como sempre
fazíamos. A cama é de solteiro, mas mesmo assim, não atrapalha o
conforto e nem estraga o momento de descontração entre nós.
Falamos sobre memes do twitter, aulas da faculdade e os filmes e
séries que assistimos recentemente. Também sobre a saudade que
ele sente da mãe, mas compensa com chamadas de vídeo todas as
noites e sobre como foi minha primeira interação com a Sophia.
—Ela é uma fofa e muito esperta, também. É incrível ela ter só
cinco anos —digo.
Ele sorri.
—É mesmo, né? Às vezes, eu me sinto até intimidado com a
sagacidade dela.
Seu sorriso permanece enquanto ele fala da irmã com ternura.
—E ela te encheu de perguntas, adivinhei?
—Na verdade, não. Eu achei até que ela fosse daquelas crianças
introvertidas e quietas, sabe? —Eu respondo.
Ele solta uma gargalhada alta e exagerada.
—Introvertida? E quieta?? A Sophia??? —Está quase chorando de
rir.
—Pois é, mas depois ela se soltou e eu acabei descobrindo
porque ela agiu assim.
Ele recupera o ar e franze as sobrancelhas, curioso.
—Por quê?
—Porque ela tem ciúme de você —sorrio.
—Ciúme de mim? —Ele desacredita.
Confirmo com a cabeça.
—Aparentemente, ela já acha que pode ser a única garota na sua
vida.
—E o que você acha dela tentar roubar esse posto de você?
Eu sou a única garota em sua vida?
Dou de ombros, ignorando o quanto essa constatação me atingiu.
—Eu sou contra a competição feminina, então vou ter que
aprender a ceder. Além do mais, você é só o cara que dá carona pra
nós duas de vez em quando, então baixa a bola, tá?
—Ah, é mesmo? É só isso que eu sou? —Ele ergue o corpo e diz
sério, pondo a mão no peito, fingindo estar ofendido.
—É —seguro o riso.
Então ele vem para cima de mim me atacando com cócegas na
barriga, porque é um covarde e usa meu ponto fraco contra mim
sempre que pode.
Estou gritando e rindo descontroladamente. Então, Ian se lembra
de que devemos fazer silêncio, principalmente porque Sophia deve
estar dormindo a essa hora, e tampa minha boca com a mão para
abafar meus berros.
De repente, tenho consciência de que estou deitada em sua cama,
ele está em cima de mim e nessa posição, só queria que ele tivesse
escolhido me calar com sua boca. E ele parece ter pensado o
mesmo, pois em seguida, sua expressão fica séria e ele coloca os
lábios no lugar onde sua mão estava.
E assim, voltamos à pegação. Agarro seus cabelos pois já sei o
quanto ele adora isso, e ele passeia as mãos pela lateral do meu
corpo, pois já sabe que eu adoro isso. Perco completamente a noção
por um momento, enquanto ele me beija. Mas então, novamente, eu
preciso interromper.
—Ian, e seu pai entrar aqui?
—Esquece isso —é ele quem diz dessa vez, descendo com beijos
pelo meu pescoço.
Sorrio.
—Sério, já tá ficando tarde, eu preciso voltar pra casa.
Me ajeito na cama, deslizando por debaixo dele e me sentando.
Ele faz o mesmo.
—Eu te levo. Que horas são, inclusive?
Busco meu celular do chão, e quando a tela liga, reparo nas 165
mensagens perdidas no nosso grupo antes de conseguir conferir o
horário.
Esqueci completamente que, quando saímos do laboratório hoje,
não fomos encontrar o resto da galera no local de sempre.
—A Morg e os meninos ficaram preocupados com a gente. Nem
avisamos quando a gente foi embora —digo, levantando os olhos do
celular para encará-lo.
—O que a gente vai falar pra eles? —Ian pergunta. E é uma ótima
pergunta. Eu nem havia pensado nisso.
—Você acha que a gente devia contar que a gente… tá ficando
também agora?
—Não sei. Você quer?
—Não sei —faço uma careta. Sabia que começar com essa…
coisa não seria tão fácil assim. Agora temos coisas a conversar e
resolver.
—Acho que é melhor se eles não ficarem sabendo. Pelo menos
por enquanto, ou até… sei lá, eu tenho a impressão de que eles não
vão sair do nosso pé se souberem —declaro.
—É, você tem razão.
Envio algumas mensagens, respondendo a galera e tentando
tranquilizá-los. Invento algo sobre Ian ter que buscar a irmã mais
cedo na escola e me deixado em casa também.
—Beleza. E nossos pais também não podem saber.
—Não, de jeito nenhum. Eles nunca entenderiam. Minha mãe ia
acabar descobrindo lá da Europa e já começaria a preparar um
casamento pra gente —Ian pontua.
Solto um riso nervoso.
—Pois é. E… sobre avançar o sinal…
—Avançar o sinal? —Ele ri da minha escolha de palavras.
—Você sabe do que eu to falando —reviro os olhos.
—Eu sei. Não vou tentar te convencer de fazer nada se você não
estiver a fim, Bic. Mas saiba que disso, eu estou muito a fim.
Não consigo segurar e dou um sorriso.
—Então, se rolar um clima e der vontade…
—Exato. Bic, é aquilo que a gente conversou antes, deixa rolar.
Ele é sempre tão tranquilo e sereno. Eu invejo sua capacidade de
tratar com leveza qualquer assunto.
Mais relaxada, agora que temos tudo resolvido, eu decido encerrar
a noite assim.
—Ótimo, pode me levar pra casa agora, chofer.
20

Ian

“Tanto pra fazer aos 21 anos,


Você se sente invencível”
Wanderlust-Blackbear
Estamos nos aproximando do vigésimo primeiro dia do mês de
março e com ele, o vigésimo primeiro aniversário da Bic. Por isso, eu
e a galera demos um jeito de sair mais cedo da aula hoje pra
planejar a festa dela.
Quero fazer algo grande e especial, para compensar o do ano
passado. O “tio” Sérgio, pai dela, resolveu viajar de última hora a
trabalho e basicamente ficou fora o dia inteiro. Ele só a desejou
parabéns faltando 15 minutos para a meia noite do dia seguinte.
Às vezes, eu acho que o pai dela e o meu competem para ver
quem é a pior figura paterna.
Fiquei muito puto naquele dia. Ver a Bic tendo que esconder a
tristeza que sentia justo no dia que deveria ser o melhor do ano, me
quebrou por dentro.
Por isso, esse ano vou fazer o que tiver ao meu alcance para
impedir que aquele ar melancólico volte aos olhos dela bem no dia
do seu aniversário.
—Ok, nós precisamos definir o local —Morgana fala, segurando
um caderno e uma caneta. Carol está ao seu lado, cuidando das
listas também.
—Na minha casa, quer dizer, na do meu pai, vai ser complicado
agora, principalmente depois da última festa —eu digo.
—É, na minha vai ser difícil também porque é minúscula e muito
longe daqui —Pedro menciona.
—Eu posso tentar o salão de festas do apartamento da minha mãe
—ofereço.
—Amigo, você nem tá morando lá agora, a Bic pode desconfiar. —
Morgana diz.
—Não! É perfeito, na verdade. O Ian inventa pra ela que precisa
passar lá pra buscar alguma coisa que ficou no apartamento e faz
ela entrar com ele. Ela nem vai desconfiar —Yuri intervém.
—Boa, então o local tá definido. E o resto? —Morgana pergunta.
—Bebidas, comidas, lista de convidados… —Carol enumera.
—As bebidas e comidas podem deixar comigo —digo.
—Eu amo quando você se oferece pra pagar pelas coisas, Gatão
—Yuri diz e eu rio.
—A lista pode ser simples, as amigas e os amigos da turma dela
de psicologia, a gente e… só? —Morgana pergunta.
—Acho que ela talvez queira chamar a prima, mas é só isso
mesmo.
A Bic não mantém muitas das amizades do ensino médio que
valessem verdadeiramente a pena manter e nem se importa com
isso.
—Ok, eu procuro o instagram dessa galera e mando uma DM
convidando —Morg completa.
Estou prestes a fazer mais uma pergunta sobre os preparativos
quando vejo Carol e Morgana guardando o caderno e as canetas
discretamente. Olho para trás e vejo Bic se aproximando da nossa
mesa, sorrindo ao nos ver.
Ela está usando um rabo de cavalo hoje, sua franja fica solta na
altura do queixo, ao redor do rosto. Não é um penteado que costuma
usar, deve ter prendido o cabelo pela praticidade, mas, nossa, ela
fica linda assim.
—Vocês chegaram antes de mim, o que aconteceu? Geralmente a
gente se encontra antes de vir pra cantina.
—Nossa aula acabou mais cedo —Morgana responde com
naturalidade.
Conseguimos mudar o assunto sem deixar suspeitas que ela
possa perceber. Depois, vamos embora e Bic parece totalmente
alheia aos nossos planos. O que é ótimo, quero que seja surpresa.
Essa festa vai ser a melhor que ela já teve.

—Ian, qual é o maior animal do mundo? —Sopa me pergunta do


banco de trás do meu carro.
Está me fazendo várias perguntas desde que descobriu que eu
vou ser biólogo. E de todas as milhões de perguntas que ela me faz
diariamente, dessas eu não me canso.
—Depende do tipo do animal —respondo.
—Como assim?
—O maior animal mamífero do mundo é a baleia azul.
—E o que é mamífero?
—Mamíferos são os animais que dão leite pros filhotinhos.
—Ah, tá. E o menor animal do mundo?
—De novo, depende da espécie.
—E por que depende tanto? —Ela fica impaciente. Dou risada.
—Porque os animais são diferentes, Sopinha.
—Tá e o animal mais forte do mundo, qual é?
Ela vai adorar essa.
—É um besouro. O besouro-rinoceronte.
—Um BESOURO? —Ela quase grita em surpresa.
Afirmo enquanto rio da sua cara de choque.
—Aham, ele pode suportar 850 vezes o próprio peso.
—Caramba! Ele é muito forte!
—Muito legal, né?
—Muito!
A empolgação dela me faz amar ainda mais a biologia. E é uma
das melhores sensações do mundo saber que é possível fazer da
vida o que se ama. Sinto que o ano a mais que eu passei fazendo
cursinho pré-vestibular valeu a pena, só por ter descoberto esse
curso.
Passamos perto de uma sorveteria de esquina, Sophia também vê
e já pede:
—Sorvete! Podemos comprar sorvete? Por favor, Ian!
—Sopa, você não pode tomar sorvete agora, tá quase na hora de
jantar.
—Vamos comprar pra tomar depois do jantar! Por favor?
Não consigo resistir à sua vozinha fofa e paro o carro.
Sophia escolhe os sabores: morango aos pedaços, tutti frutti e
nutella. Tampo o potinho dela e para mim, pego um picolé de ninho
trufado.
Na hora de pagar, a garota do caixa resolve puxar assunto comigo.
Deve ter uns vinte e poucos anos e até que é bonita.
—Linda a sua filha —ela elogia, apontando para a loirinha
segurando minha mão.
—Ele é meu irmão! —Sophia responde por mim.
—Ah, é? E seu irmão tá solteiro? —A garota pergunta, olhando
para mim.
Não é a primeira vez que reparo em certos olhares em minha
direção quando estou andando na rua com a Sophia. Não sei o que
há com as mulheres quando veem homens interagindo com crianças.
Quando estamos saindo da escola, já vi outras mães bem mais
velhas do que eu me encarando com sorrisinhos, inclusive. É um
pouco estranho, devo admitir.
—Não —respondo, seco.
Saio com Sophia da sorveteria e antes de entrarmos no carro,
ouço uma risada infantil. Me viro de costas e vejo um garoto que
deve ter a mesma idade de Sophia, olhando para ela enquanto
passa por nós com uma mulher mais velha, que deve ser sua mãe.
—Quem era aquele, Sopa?
—É o João, ele é da minha escola.
Sophia não parece feliz em encontrar o colega, mas não a
questiono mais sobre, coloco ela na cadeirinha e entro no carro.
Então, ela volta com as perguntas, puxando um novo assunto:
—Quem é a sua namorada, Ian?
—O que?
—Você disse pra moça da sorveteria que não tá solteiro. A mamãe
me disse que solteiro é a pessoa que não namora, se você não tá
solteiro, então quem você tá namorando?
Me surpreende a velocidade em que seu pequeno cérebro
trabalha.
—Ninguém, Sopa —respondo.
—Então porque você disse aquilo?
Eu não sei. É essa a verdade. Embora a garota do caixa fosse
bonita, não me senti nem um pouco à vontade em flertar com ela de
volta. E nem era por ter Sophia ali na hora.
Acho que estou inconscientemente fiel à Bic e ao lance sem nome
que nós estamos levando no momento.
Não sei como ela se sente sobre sermos exclusivos um do outro,
mas é definitivamente algo que devemos conversar. Particularmente,
neste momento, não sinto vontade de ficar com ninguém além dela,
o que é um pensamento arrebatador e levemente assustador, mas
enquanto estamos continuando com isso, resolvo não me preocupar.
21

Bianca

“Eu nunca realmente sei como te agradar


Você me olha como se eu fosse transparente"
8-Billie Eilish
Eles estão gritando.
Depois de anos convivendo com isso eu não deveria mais me
abalar, mas me abalo. É impossível se acostumar com isso.
Toda a classe e pompa que meus pais esbanjam em eventos
sociais, não se estende ao nosso lar. Quando discutem, começam a
brigar e quando brigam, começam a gritar. Então são xingamentos,
batidas na mesa e portas se fechando com força.
Sinto a onda de sentimentos ruins tomando conta de todo o meu
corpo. Logo os sintomas vão surgir também. O coração acelerado,
as mãos trêmulas, o estômago embrulhado, um calor que sobe do
pescoço à cabeça.
Quando eu era pequena, nessas situações, a Grazi me levava ao
meu quarto e me colocava para assistir algum filme animado no
aparelho de DVD. Shrek 2 sempre me trazia paz e espantava
os pensamentos ruins.
Mas hoje a minha ansiedade resolveu se empenhar em vencer
essa guerra e nem o filme parece capaz de me levar para aquele
lugar bom na minha mente.
Me levanto da cama e resolvo abrir a janela ainda que o ar
condicionado esteja ligado. Fecho os olhos e tento expirar o ar fresco
do lado de fora, mesmo sabendo que não há nada de fresco nesse
ar poluído da cidade.
Não resolve, nada resolve. Começo alguns exercícios para
controlar o pânico. Fecho os olhos, tampo os ouvidos e respiro
fundo, me concentrando no som do ar entrando em meus pulmões.
Abro os olhos novamente e olho em volta, começo a contar.
Um, dois, três, quatro, cinco, seis livros no nicho em cima da
minha cama.
Uma, duas, três suculentas de mentira em cima da mesinha.
Um, dois, travesseiros espalhados.
Uma TV ligada na parede.
Um, dois, três cadernos em cima da escrivaninha.
E então, não escuto mais barulhos do lado de fora. Meu coração já
não bate tão forte.
Me sento na cama.
É tão cansativo. Me sinto exausta. Física e emocionalmente.
Queria poder dizer que um dia o casamento dos meus pais já foi
perfeito e que o que estão passando agora é apenas uma fase difícil.
Queria, mas não tenho como afirmar isso.
Lembro de um dia em que minha mãe me levou ao parquinho
quando eu era criança e ficou sentada no banco com as outras
mães. Em algum momento, ela me chamou até ela e me perguntou
na frente das outras mulheres se, caso ela e meu pai se
separassem, com quem eu escolheria ficar.
Eu respondi que escolheria ficar um dia com ela e um dia com ele,
intercaladamente. Não dei a resposta que ela queria, que mostraria
às mães do parquinho que eu preferia e amava minha mãe muito
mais do que meu pai.
Acontece que eu estava buscando constantemente a aprovação
dos dois. Queria que ambos me dessem amor e atenção mais do
que qualquer coisa.
Se me perguntassem isso hoje em dia, eu escolheria sair de casa
e morar sozinha. O que não tem a ver diretamente com o fato de
hoje em dia eu já ser uma adulta, e sim que eu sinto uma vontade
constante de me afastar deles, e me sinto infinitamente mais
confortável quando não tenho que conviver com os meus pais, minha
própria família. O que é horrível por si só.
Mas isso nem sempre foi assim. Minha mãe me idolatrava, fazia de
tudo por mim, me chamava de sua princesa e me tratava como uma
bonequinha. Meu pai já foi muito carinhoso comigo também, até a
Bellini Mendes Construtora superar todas as suas expectativas e
prosperar mais que o esperado, exigindo dele mais tempo fora de
casa do que ao lado de sua família.
Não estou reclamando disso, sei que meu pai é tão investido em
seu trabalho porque além da construtora ser seu sonho, é o que nos
dá a vida confortável que ele sempre prometeu à minha mãe.
Mas isso não era suficiente para mantê-los juntos, felizes e em
paz.
Eles sempre brigavam, mas nunca quando eu estava por perto. E
sempre que brigavam, eu carregava a culpa de não estar presente
entre eles para fazer com que não se desentendessem. Como se eu
fosse responsável pela paz na nossa casa. Foram anos de sessões
com minha psicóloga para me fazer entender que eu não tinha culpa
pelo relacionamento deles ser assim.
Ouço minha mãe falando de novo. Falando não, gritando. E meu
pai rebate, também gritando. Meu Deus, quando isso vai ter fim?
Estou tendo palpitações novamente. Respiro fundo e começo a
andar pelo quarto, numa tentativa inútil de me acalmar. Eu nunca vou
conseguir ficar em paz trancada aqui dentro.
Sem pensar muito, pego o celular de cima da mesa e digito:

Para minha infinita sorte, ele é imediato ao responder:


Espero mais mensagens avisando onde ele está, já sentindo o
coração diminuindo a frequência. Quando ele avisa que chegou, eu
calço uns chinelos e observo o vão da porta. Não há luz passando
por ela, o que significa que meus pais levaram a briga para o quarto
deles.
Abro a porta devagar, pego minhas chaves e saio.
Na portaria, vejo Ian parado de frente do carro, com os braços
cruzados, os olhos levantados esperando minha aparição no saguão.
Quando eu apareço, ele solta os braços e faz menção de vir em
minha direção, mas eu já estou correndo até ele.
Minhas mãos trêmulas alcançam a porta do carro. Começo a
forçar a maçaneta, mas as portas estão trancadas.
—Bic, calma. Me fala o que aconteceu —ele fala, o medo e
preocupação permeados em sua voz. —Bic! Ei, olha para mim!
Ele pega minhas mãos geladas e me faz encará-lo.
—O que aconteceu? —Diz, agora num tom mais carinhoso,
tocando meu rosto.
—Eles estão brigando de novo —não consigo mais conter as
lágrimas. Ele me abraça, me apertando contra seu peito e fazendo
carinho em minhas costas.
—Quer ir pra algum lugar mais calmo?
Balanço a cabeça, confirmando.
Ian nos traz à praia. Uma praia menos movimentada. Dirige
praticamente até a areia, e para em cima de uma duna.
Abro a porta do carro e, só de ouvir o barulho do mar e sentir o
vento frio no rosto, me sinto um pouco melhor.
Não tenho intenção de ir até o mar, então, subo no capô do carro e
me sento, abraçando os joelhos.
Ian faz o mesmo, sentando ao meu lado. Passa o braço sobre
meus ombros e eu me aconchego a ele.
—Quer conversar? —Ele pergunta baixo, quebrando o silêncio.
—Você já sabe a história, não é nada novo.
Respiro fundo antes de continuar.
—Eu só tô cansada. Cansada desse clima lá de casa. De me
sentir acuada quando eles brigam. De não conseguir dormir, depois
que eles param, por causa da ansiedade. Cansada, pra cacete!
Sinto as lágrimas voltarem aos meus olhos.
Ele não diz nada, só escuta. Ian não é o tipo de amigo conselheiro,
que te ajuda a solucionar seus problemas. Ele é o amigo ouvinte. Ele
escuta pacientemente o que eu tenho a dizer, e escuta de verdade.
Me dá toda a atenção, olha no fundo dos meus olhos e me
compreende. E mesmo não resolvendo meus problemas na prática,
ajuda muito. Porque às vezes a gente só precisa de alguém que nos
escute, nos deixe falar e que seque nossas lágrimas.
Eu respiro fundo mais uma vez, sentindo o aperto no peito
diminuir. Ele continua com o braço ao redor dos meus ombros,
passando a mão pelo meu braço num gesto de carinho, mas percebe
que eu fiquei arrepiada por conta do vento gelado da praia.
—Tá com frio? Eu acho que tem um casaco no carro.
Ele desce do capô e abre a porta do lado do motorista.
—Eu preciso de algo pra secar meu rosto, na verdade.
—Tenho uma caixa de lenços de papel também
e uma garrafa d’água, se quiser —ele oferece.
—Isso é um bunker de sobrevivência ou um carro? —Indago,
agora rindo.
—Eu dirijo pra uma criança de cinco anos agora, preciso de kits de
segurança para várias ocasiões —ele brinca.
Ian volta com os lenços, uma garrafinha dágua e um cardigã rosa
feminino. De quem é isso?
—Isso é… —Começo a perguntar.
—É da Sophia —ele se apressa em responder.
Me envergonho da onda de ciúmes que me subiu antes de
descobrir quem é a dona do casaco, mas rapidamente tento ignorar.
Pego a blusa de frio, que obviamente não passa pelos meus
braços mas serve como um pequeno cobertor. Sophia não é uma
criança magra, então o tecido de sua blusa consegue me cobrir
suficientemente.
Seco o rosto com o lenço e bebo um pouco da água, Ian se senta
ao meu lado novamente e me envolve com seus braços. Beija o topo
da minha cabeça, e é a sensação mais pacífica e plena que eu já
senti. Um contraste enorme com o terror que passei há pouco tempo.
—Segunda-feira tá chegando, hein? —Ele diz, pousando o queixo
na minha cabeça.
—E o que que tem?
—O que tem? O que tem na segunda, Bic? —Ele pergunta,
indignado.
Eu sei que dia é segunda-feira. Mas resolvo provocá-lo.
—Dia de apresentação do meu seminário de psicofisiologia.
Ele empurra meu ombro.
—Fala sério, pô. É o Bic Day! 21 da Bic! O melhor dia do ano,
cara. Cadê a empolgação?
Solto um “Eba!” sem emoção.
—Pode parar, vai ser seu melhor aniversário. Vou comprar aqueles
balões dourados em forma dos números 2 e 1, arrumar um caminhão
cheio de cerveja heineken, bem do jeito que você gosta…
Solto uma risada pelo nariz.
— …contratar strippers…
—Opa, strippers homens ou mulheres? —Interrompo.
—Um de cada —ele sorri.
—Humm, perfeito —dou risada.
—Mas falando sério, a gente vai se encontrar naquele barzinho
perto da faculdade, sabe? Só a nossa galera. Eu, você, a Morg,
Carol, Yuri e Pedro.
Sorrio. É mais que suficiente.
Baixo os olhos para a areia, lembrando do meu aniversário
passado. É engraçado que, não foi como aqueles aniversários em
que acontecem grandes desastres, mas foi tão ruim quanto.
—Ei, —Ian levanta meu rosto com a ponta dos dedos —vai ser
legal, eu prometo.
Sua voz é baixa e, mesmo não intencionalmente, é sedutora, seu
rosto está próximo demais do meu.
—Eu sei —sussurro de volta, dando um sorriso fraco.
Ele começa a se aproximar mais, deitando a cabeça vindo em
busca de um beijo meu, mas somos interrompidos por seu celular,
que vibra pela terceira vez desde que nos encontramos nessa noite.
Ele o retira do bolso e confere o destinatário das mensagens na tela,
depois, guarda o aparelho de novo, bufando.
—Quem é? —Pergunto, sem me conter.
—Meu pai. Tá me chamando de novo pra ir jantar.
Quase esqueci que são apenas oito da noite.
—Você pode ir, se quiser. Eu já tô me sentindo melhor, pode me
deixar em casa agora —digo.
—Não vou te levar de volta, Bic. Sei que você não vai conseguir
relaxar em casa. Posso te levar pra ir jantar na casa do meu pai
comigo. Tá afim? —Ele pergunta sem esperar que eu aceite.
Eu sei que ele não quer ir jantar com sua “família”, mas não acho
que seja uma má ideia. Além do mais, eu não comi desde que
cheguei da faculdade, e definitivamente não quero voltar para a
minha casa agora. Por isso, digo:
—Por mim tudo bem.
—Sério? —Ele levanta ambas as sobrancelhas.
—Sério. Eu tô com fome mesmo. Mas só se não tiver problema pra
eles.
—Não, relaxa. Eu aviso.
—Então, vamos!
22

Ian

“Eu me lembro de você dirigindo até minha casa


No meio da noite
Sou eu quem te faz rir
Quando você sabe que está prestes a chorar”
You Belong With Me-Taylor swift
A mesa já estava posta quando chegamos, e eu me surpreendi ao
constatar que eles realmente estavam esperando por nós para
começar o jantar.
Quando nos sentamos e o filé ao molho madeira é servido, meu
pai começa a puxar assunto:
—Bianca, o seu aniversário tá chegando, né?
—É. Vou fazer 21.
—Caramba, vinte e um anos, já. Eu lembro de você bem
pirralhinha. Esse tempo passa rápido demais.
Bic sorri, simpática.
Alguns momentos de silêncio se instauram, mas Sandra sempre
tenta melhorar o clima puxando algum assunto raso. Bic responde
tudo, sempre muito educada. Enquanto isso, eu mantenho a boca
fechada, me ocupando apenas em comer.
Então, meu pai começa um assunto novo.
—Como tá o curso? Você faz psicologia, né? —Ele direciona a
pergunta à única pessoa do lado oposto da mesa que está a fim de
conversa.
—Isso. Tá sendo bem puxado agora, a semana de provas tá
chegando. Mas eu tô gostando bastante —Bic responde, com um
sorriso de boca fechada.
—Psicologia é um bom curso. Você podia convencer o Ian aqui a
seguir por esse caminho também. Eu já ofereci uma vaga pra ele na
empresa um milhão de vezes, mas ele nunca aceitou.
Reviro os olhos. É claro que não aceitei. Eu sabia que no momento
em que colocasse o crachá de funcionário da Bellini Mendes no
pescoço, nunca mais conseguiria tirar, e além disso, a última coisa
que eu quero para a minha vida é trabalhar num escritório.
—A biologia não dá tanto futuro assim. Você sabe como é, não é
fácil se dar bem como biólogo, vivendo de pesquisa e tudo mais. Ele
vai acabar tendo que dar aula pra ganhar a vida —meu pai continua.
Tava demorando.
—E qual é o problema em ser professor, pai? —Me intrometo, já
sentindo a comida cair mal no estômago.
—Nenhum, filho. A menos que você goste de ganhar uma mixaria
por ano, trabalhando feito um condenado pra isso.
Começo a sentir a raiva borbulhar dentro de mim, é quase
inacreditável ouvir esse tipo de absurdo, mas dele eu espero sempre
o pior.
Me preparo para rebater, um pouco menos educado dessa vez,
quando sinto a mão da Bic pousar em minha perna. Baixo os olhos
para ela e ela devolve o olhar rapidamente, me impedindo de falar e
me tranquilizando ao mesmo tempo.
—A profissão é bem desvalorizada mesmo, mas eu acho que se a
gente tem que arrumar uma coisa pra trabalhar pelo resto da vida,
que seja algo que a gente ame, né? Não adianta nada ganhar muito
dinheiro, mas ser infeliz fazendo o que odeia —ela intervém,
tentando manter o tom da conversa calmo.
—Nisso você tem toda razão, Bianca —Sandra diz, sorrindo, com
a mesma calmaria.
—Eu, graças a Deus, consegui o melhor desses dois mundos —
meu pai continua.
—Pena que nem todo mundo tem essa sorte —resmungo.
—Não foi sorte, Ian. Eu trabalhei muito pra chegar onde cheguei.
—Ele está sério agora.
—Se eu trabalhar muito e me esforçar em qualquer coisa que eu
quiser, posso ter sucesso também.
—Não é assim que o mundo funciona, meu filho —ele ri com
escárnio.
—Quem quer sobremesa? —Sandra tenta contornar.
—Eu! —Sophia levanta os bracinhos, da cadeirinha na
extremidade da mesa, dizendo algo pela primeira vez a noite toda.
—A gente te ajuda com os pratos, Sandra —Bic se voluntariaria,
me tirando da mesa também.
Levamos a louça para a cozinha e deixamos na bancada da pia.
Sandra pega a travessa com o tiramisù e leva à sala de jantar,
depois volta e ajuda Bic e eu a separarmos os talheres e as taças.
Sandra sai da cozinha mais uma vez para dispor o resto dos talheres
na mesa.
Quando estamos sozinhos, passo os dedos pelos cabelos e
respiro fundo, tentando afastar os a raiva que persiste em mim.
Bic percebe meus movimentos e pergunta o que foi.
—É impossível conviver com ele, Bic. Eu não aguento isso. Nós
nunca vamos ter um relacionamento normal, nunca. Minha mãe
sempre vai tentar nos unir, mas a gente nunca vai se entender, é
impossível. Ele nem se esforça pra tentar não ser desagradável ou
pelo menos entender o meu lado, eu…
—Ei! —Ela me interrompe, vindo até mim e segurando meu rosto
com as duas mãos, me fazendo olhar bem no fundo de seus olhos.
—É temporário. Você não tem obrigação de ter um bom
relacionamento com ele só porque ele é seu pai. Não deixa isso te
atingir.
E então, para selar o que diz, ela sobe na ponta dos pés e me
beija. E se suas palavras não foram suficientes para me acalmar,
isso é. Ela me leva para um lugar paralelo, onde eu não penso mais
em nada, me envolvendo no cheiro frutado que vem de seus lábios.
Reseta meus pensamentos e quando afasta a boca da minha, me
traz de volta à realidade, que agora parece um pouco melhor. Porque
eu tenho ela aqui. Ela sempre vai estar aqui.
Sandra passa pela porta, entrando na cozinha de novo e nós nos
afastamos rapidamente. Voltamos para a sala de jantar e eu me
preparo para o segundo round, dessa vez um pouco mais relaxado.
Reparo quando Sandra lança um olhar para meu pai, antes dele
começar a falar novamente:
—Ian, você tá livre no final da semana que vem?
Nesse final de semana eu tenho que arrumar as coisas para a
festa da Bic, mas por que ele quer saber?
—Sem ser esse agora?
—É, o da próxima semana. Tá livre?
—Acho que sim. —Respondo, cauteloso. Sinto que se eu franzir
minhas sobrancelhas ainda mais, corro o risco delas se tornarem
uma só.
—Surgiu uma folga no trabalho, eu estava pensando em levar
vocês pra passar o fim de semana na casa de praia —ele explica. —
Bianca, você está convidada também, é claro.
Eu olho para o lado e vejo na Bic uma expressão tão surpresa
quanto a minha.
Não consigo me lembrar da última vez em que fui para aquela
casa. Sei que ele já levou Sandra e a Sophia lá várias vezes, mas
porque está tentando me incluir em seus planos dessa vez?
—E então, vocês animam? —Meu pai pergunta para mim e para
Bic.
—Ah, eu animo! Vai ser legal —Bic responde.
O que? Ela ficou maluca? Nós não vamos nessa viagem.
Sophia solta um gritinho animado e Bic sorri para ela.
Encaro-a com ar desacreditado, Bic me olha de volta e sorri,
apertando os dedos entrelaçados aos meus. Ela mantém nossas
mãos unidas embaixo da mesa, reafirmando que tudo ficará bem.
23

Bianca

“Eu juro, são as pequenas coisas


que você faz
que me fazem querer dar tudo
para você. ”
Love language-Ariana Grande
Quarenta e sete, até agora.
Sophia tem mais de 47 bichinhos de pelúcia no quarto.
Não parece tanta coisa, mas tentar imaginar quarenta e sete
animaizinhos peludos e de cores vibrantes todos espalhados por
uma pequena cama infantil já deve dar uma ideia de que 47, nesse
contexto, é um número exagerado.
É coisa pra caramba. E nesse momento ela está me mostrando e
apresentando a cada um deles.
Estou sentada em sua cama, Ian está de pé, com as mãos na
cintura, servindo de elevador para ela puxar os bichinhos da
prateleira alta.
Sophia quer ter o prazer de buscá-los de lá com suas próprias
mãos, por isso, Ian a ergue no ar para que ela possa alcançá-los.
Já fez isso 47 vezes. Nas quarenta e sete vezes, ele resmungou
ao ter que fazê-lo. E nessas quarenta e sete vezes, eu não consegui
me segurar para não rir da situação.
—Esse é o Ramsey, ele faz aniversário no dia 16 de agosto —
Sophia diz, me entregando o 48º bichinho, uma espécie de leão com
juba colorida e um chifre de unicórnio dourado.
Sim, todos eles têm nome e data de nascimento. É, de fato,
fascinante.
—Que legal, Sopinha! Ele é muito fofo —eu elogio.
Posiciono Ramsey ao meu lado, perto de Zoey, a zebra; Kasey, o
coala e Wasabi, o macaco.
O 49º bicho é um unicórnio peludo roxo com patinhas cor de rosa.
É também o último bichinho da prateleira. Seu nome é Athena, e ela
faz aniversário em 3 de outubro.
—Ué, só 49? —Ian indaga.
— “Só”? —Eu rio.
—Tem que arredondar pra 50!
—Eu pedi mais um pra mamãe e pro papai, mas eles disseram
que eu já tenho bichinhos demais. Eu acho que vou pedir pras
minhas tias e pras minhas avós de aniversário. —Sophia diz,
cabisbaixa.
—Pode deixar que eu vou te dar o 50º —Ian afirma.
—O que é um “quiquague...”
Eu e Ian rimos.
—Quinquagésimo, Sopa. Eu vou te dar o bichinho número 50.
—Sério? —O rosto dela se ilumina.
—Sério. Mas só no seu aniversário.
—Eba! —Ela dá pulinhos e abraça a cintura de Ian, que se
surpreende com o gesto, mas a abraça de volta.
Não consigo parar de sorrir com a cena. Ian cria uma armadura de
frio e desinteressado quando se trata da Sophia, mas claramente
está entregue à garotinha. Ela o tem na palma de sua pequena mão.
São cenas como essa que fazem estremecer as partes de mim
que lutam incansavelmente para não fazer eu me apaixonar
completamente por ele.
Se se apaixonar fosse como construir um muro, Ian acabou de
colocar mais um tijolo na pilha, só com esse gesto. E eu tenho a
impressão de que nos últimos dias, ele vem colocando um tijolo de
cada vez, empilhando-os com cimento. O que significa que, se um
dia esse muro cair, vai ser ainda mais doloroso e difícil reorganizar
os tijolinhos de volta.

Já são quase dez da noite e eu ainda estou aqui. Sophia está


bocejando a cada segundo, mas se recusa a ir dormir, quer continuar
brincando comigo e com Ian.
Fizemos um acordo com ela de ir assistir um filme na sala e depois
disso, ela vai direto para a cama. Por isso, eu e Ian ou melhor, só o
Ian, porque eu não tenho tanta força, esticou o enorme sofá retrátil
de veludo cinza para que pudéssemos todos nos acomodar nele.
Sofia trouxe três bichinhos de pelúcia com ela, um elefantinho, um
pássaro kiwi e um poodle, e se deitou no meio do sofá. Ian fechou as
cortinas da varanda e deixou apenas as pequenas luzes amarelas ao
redor da TV acesas. Também ligou o ar condicionado da sala e
trouxe um cobertor, porque isso faz total sentido. E agora estamos
vendo Monstros S.A.
O acordo que fizemos com Sophia é um pouco desonesto, porque
todos sabemos que ela não vai aguentar nem meia hora de filme e
vai acabar caindo no sono.
Sandra aparece na sala vestindo um robe de seda, conferindo pela
milésima vez se a menina finalmente adormeceu.
—Relaxa Sandra, eu levo ela pro quarto quando ela dormir. —Ian
garante.
—Não é só isso, é que ela tem aula amanhã de manhã também.
Não pode perder o transporte.
—Eu levo ela na escola, não tem problema.
—Sério? Tem certeza?
—Tenho. Além disso, ela já tá quase dormindo.
—Não tô, não! —Sophia protesta.
Todos rimos e Sandra volta para o quarto.
E como previsto, a menina adormece antes da Boo aparecer em
cena no filme.
Cutuco o braço de Ian, para que ele perceba.
Ele ri, mas não faz menção de tirá-la daqui.
—Não vai levar ela pro quarto?
—Tô com preguiça —ele estica o corpo no sofá.
Reviro os olhos e rio.
Começo a me levantar para levar Sophia até sua cama.
—Por que você não dorme aqui mesmo? —Ian me pergunta.
—Como assim?
—Fica aí no sofá mesmo, amanhã quando eu for levar a Sopa na
escola, eu te deixo em casa.
—Tem certeza que não tem problema?
—Bic, relaxa. Quando é que já teve problema você dormir na
minha casa?
—Não tinha na casa da sua mãe, mas eu nunca dormi na casa do
seu pai antes.
—Não muda nada. Vou levar a Sopa pro quarto dela e trago
alguma coisa pra você usar como pijama.
Eu resolvo ceder. Enquanto isso, mando uma mensagem para
minha mãe avisando que vou dormir na casa do Ian hoje. Ela só
visualiza, ao invés de me encher de perguntas e reclamações como
sempre faz. O que pode significar que ela está ocupada, ou esgotada
de tanto brigar com meu pai a noite toda.
Quando Ian reaparece na sala, traz uma camiseta azul marinho
larga e uma bermuda verde.
—Onde é o banheiro? —Pergunto.
—Pra que? Se troca aqui mesmo —ele diz, deitado no sofá com
um sorriso perverso, colocando as mãos atrás da cabeça.
Reviro os olhos e dou um chute leve em sua canela.
—Ai! É ali, uma porta antes do fim do corredor —resmunga.
Depois de trocar minha camiseta preta e shorts pelas roupas
extralargas do Ian, volto para o sofá. Percebo que ele também trocou
suas roupas para umas mais confortáveis.
—Nossa, ficou linda. Essa bermuda realmente te valorizou —Ian
diz, quando me vê.
Levanto o dedo do meio e ele gargalha.
Quando me aninho a ele no sofá, suas mãos já estão em mim. Ele
me puxa contra seu corpo, me dá um beijo suave, lento. Eu sinto que
poderia ficar o resto da noite bem aqui, só beijando ele.
Suas mãos sobem pela minha cintura, debaixo da camisa.
Ele passa os dedos pela minha costela, me arrancando um
arquejo. Antes de subir mais a mão, eu o impeço.
Embora eu esteja muito afim, embora esteja com muita vontade de
avançar esse sinal e queira que ele continue explorando meu corpo
mais do que tudo, fico 100% consciente de onde estamos.
—Se seu pai ou a Sandra aparecem aqui…
—Tô nem aí —Ele resmunga, mordiscando meu pescoço.
Solto o ar com um riso.
—E aquela história de “nossos pais não podem saber”?
—Eu disse isso?
—Disse.
Ele se afasta e respira fundo.
—Não aqui, não agora —eu sussurro, e ele concorda.
—Então a gente vai ver o filme? Só ver o filme?
—Só ver o filme —confirmo.
—E dormir, mas só dormir.
—Sim, Ian. Só dormir —eu rio.
24

Ian

“Meu coração está partido só de falar sobre isso


Porque pessoas magoadas apenas magoam as pessoas
Elas fazem isso, fazem todos os dias. ”
Hurt People-Two feet ft. Madison Love
Um cheiro de tangerina invade minhas narinas. Estou flutuando
numa nuvem suave e com um cheiro familiar, que me remete a lar,
agarrado a algo macio e tenro. É tão bom que parece um sonho.
Daqui de cima dessa nuvem, sinto o frescor do céu e o som do
vento que vai se transformando num barulho repetitivo e estridente.
Espera, isso está errado. De onde está vindo esse som?
Abro os olhos e percebo que não estou voando e nem deitado
numa nuvem rosa como algodão-doce, estou no sofá da casa do
meu pai e esse barulho horrível vem do alarme do meu celular,
disparando.
Caí direto do céu para o inferno, aparentemente. Apenas que,
ainda estou agarrado a algo tão macio quanto as nuvens: O corpo de
Bic.
Reluto para tirar os braços em volta de sua cintura e desativar o
alarme.
Quando volto o corpo em sua direção, não resisto e planto um
beijo em seu pescoço exposto.
—Bic, acorda —sussurro em seu ouvido com a voz baixa. Percebo
um arrepio percorrendo sua pele e sorrio.
Ela pisca lentamente, esfrega os olhos e pergunta numa voz rouca
e baixinha:
—Que horas são?
—São 6:45.
—Quê isso, vou voltar a dormir —ela diz, puxando o cobertor para
cima da cabeça.
—Não vai, não. A gente tem que levar a Sopa pra escola —e puxo
a outra ponta do cobertor.
Eu também estou louco para voltar a dormir, de preferência junto a
ela, mas não posso deixar que Sophia chegue atrasada na aula por
minha culpa.
—Não, você tem que levar a Sopa pra escola —ela retruca.
—Você vai ficar aqui sozinha, então?
Ela para de puxar o cobertor e suspira.
—Não.
—Então levanta, preguiçosa —dou um tapa em sua bunda
empinada.
—Ai! —Ela geme.
—Doeu? Quer que eu dê um beijinho pra sarar?
—Para com isso! —Ela arregala os olhos e ri, mas vejo seu lindo
rosto corando.
Sophia aparece na sala, com sua mochila azul temática do
desenho Patrulha Canina, seus cabelos loiros presos em marias-
chiquinhas e uniforme, pronta para ir. Cruza os bracinhos curtos na
frente do corpo e bate o pé no chão.
—Vocês ainda não estão prontos? Andem logo! Eu vou me
atrasar!
E com sua ordem, eu e Bic nos arrumamos depressa.
Chegamos à escola apenas 5 minutos atrasados, mas mesmo
assim, escuto reclamações de Dona Sophia.
—Da próxima vez, eu venho com o papai.
—Eu só tô te trazendo hoje porque a senhora queria assistir o
filme até o final, ontem. Você devia me agradecer, Sopa.
Ela resmunga como resposta.
Depois de tirá-la da cadeirinha e buscar sua lancheira no porta-
malas, abaixo meu corpo e dou um beijinho no topo de sua cabeça
para me despedir, e nem me dou conta de que esse gesto é algo
novo, até ver o sorriso e a sobrancelha levantada de Bic pelo
retrovisor.
—Tchau Sopinha. Boa aula, viu? Obedece a professora.
—Você vem me buscar hoje também? —Ela pergunta.
—Claro.
—Hum, vê se não atrasa dessa vez.
Reprimo uma risada. Que poder eu dei à essa menina, ela
realmente me trata como seu chofer!
—Sim, senhora.
Entro no carro novamente, mas não dou a partida ainda, espero
ela passar pelo portão.
Bic está rindo no banco do carona.
—Tá achando engraçado, né?
—Muito! Ela te adestrou feito um cachorrinho —ela diz.
—Todo dia saem um trouxa e um espertão de casa, e a Sopa
nunca é a trouxa.
Bic solta mais uma gargalhada.
—Eu adoro esse apelido que você deu a ela, inclusive.
—É um dom. Minha maldição é ter nascido com um nome
impassível a apelidos —finjo um olhar triste.
—Ah, mas eu acho que ela conseguiu isso pra você.
Franzo as sobrancelhas.
—Como assim?
—Ela chama seu nome de um jeito único, soa como Inham. É uma
gracinha na voz dela, você nunca percebeu?
Sorrio feito bobo. Sopa é a primeira pessoa a me dar um apelido.
Eu realmente nunca tinha reparado nisso.
—Ei, porque ela não entrou ainda? —Bic chama minha atenção,
apontando para algo além do painel do carro.
Sophia está paralisada no meio da calçada, na frente da entrada
da escola. Não vejo seu rosto pois ela está de costas, mas consigo
ver um garoto magrelo em sua frente apontando um dedo em sua
cara. É o mesmo garoto que nós vimos saindo da sorveteria naquele
dia. Ele esbanja uma expressão de superioridade no rosto.
Me ponho em alerta. Que porra é essa?
Começo a tirar o cinto de novo, sem tirar os olhos da cena em
minha frente. Bic percebe a personificação da ira refletida na minha
cara e segura meu braço.
—Ian, espera, o que você vai fazer?
Não respondo, já estou saindo do carro e indo em direção às duas
crianças.
O garoto para de falar ao me ver, arregalando os olhos. É bom
mesmo que ele se sinta intimidado. Quem esse pirralho pensa que é
para apontar o dedo na cara da minha irmã?
Me agacho na altura de Sophia, reparando em suas sobrancelhas
franzidas e o rosto coberto por vergonha.
—O que aconteceu, Sopinha? —Suavizo minha voz.
Ela não responde. Só abaixa a cabeça.
—O que foi que esse menino falou pra você? —Tento mais uma
vez.
—Ele me chamou de baleia —ela responde tão baixo que quase
não escuto, mas entendo perfeitamente suas palavras. Algo dentro
de mim se revira. Parece que levei um soco no estômago.
Volto a olhar na direção do garoto, que está tentando sair de
fininho.
—Ei! Você aí. Qual é o seu nome, moleque? —Minha voz sai da
maneira mais ameaçadora que consigo.
Ele congela. Está cagando de medo. Me ponho de pé e caminho
em sua direção.
—Q-quem é você? —Ele pergunta, gaguejando.
—Eu sou o irmão mais velho da Sophia. E eu vou te dar um
recado bem rápido. Se você falar mais uma gracinha, tipo essa que
você soltou agora, pra ela ou pra qualquer outra pessoa nessa
escola, você vai arrumar um problemão comigo, tá ouvindo?
Ele não responde, nem pisca, mal se move. Não preciso que
confirme, apenas que tenha medo o suficiente para não mexer com a
Sophia mais uma vez. Quero que agora ele pense duas vezes antes
de sair falando maldades para outras crianças.
—Nunca mais chegue perto dela —finalizo, apontando o dedo em
sua direção.
Com isso, pego a mão de Sophia, que ainda mantém a cabeça
baixa, e a levo para dentro da escola sob minha escolta.
Quando chegamos à fila de alunos para entrar nas salas, me
abaixo novamente e escaneio seu rosto, me certificando de que está
tudo bem.
Ela sorri, pula e prende os bracinhos em volta de meu pescoço,
quase me derrubando para trás.
—Você é o melhor irmão do mundo, Inham!
E eu me derreto completamente. Quando ela me solta, olho no
fundo de seus olhinhos castanhos tão parecidos com os meus e
digo:
—Você é uma menina linda, Sopinha. Não deixa ninguém falar
coisas ruins pra você, tá bom? E se disserem, ignore. Eles são
bobos. Você é mais inteligente que esses bobos que falam mal dos
outros. Não é?
—Sou! Muito mais! —Ela responde, orgulhosa.
—Essa é a minha garota! Toca aqui —estendo a palma da mão
para ela bater de volta.
Quando volto para o carro, encontro Bic boquiaberta me olhando.
—Não sei o que você falou para aquele menininho, também não
sei o que ele fez pra merecer uma bronca, mas depois que vocês
entraram, ele ficou ali parado por uns 5 minutos. Com certeza, se
cagou. Vai ter que dar uma passada no banheiro antes de entrar na
sala.
Sinto um pouco de pena, ele era apenas uma criança. Mais velho
que a Sophia, com certeza, pelo menos uma classe acima. Mas tento
me lembrar de que o que ele falou foi por maldade, não por
infantilidade.
—Eu acho que vou acabar me ferrando por causa disso, a direção
da escola com certeza vai avisar o meu pai. Mas acho que valeu a
pena, o moleque não vai incomodar mais ninguém por enquanto.
—E o que foi que ele fez, a final? —Bic questiona.
—Ele faz bullying com ela, Bic. Sabe-se lá desde quando.
—Ai, meu Deus! —Ela se comove, cobrindo o rosto com as mãos.
—É claro que eu reparei que a Sopa não é tão magrinha quanto
suas outras coleguinhas, mas nunca achei que isso seria um
problema para ela, principalmente com a idade que ela tem.
—Pois é. E se ela fosse um menino, talvez não tivesse que sofrer
com isso tão cedo. A pressão cai mais rápido do que deveria pras
garotas —Bic reflete.
O sentimento de angústia volta a subir até a boca do meu
estômago. Me sinto impotente.
E se a bronca que dei no garoto não resolver? E se ele continuar a
pegar no pé dela, dessa vez sendo ainda mais cruel? Não quero que
Sophia tenha que sofrer com essa coisa tão pequena que nada tem
a ver com quem ela é. Ela não deveria ser julgada por nada além de
seu caráter.
Sei que isso não passa de uma constatação óbvia, mas é
revoltante demais. Dói ter que reconhecer isso. Mesmo ciente do
quanto vivemos numa sociedade doente, ser lembrado desse fato
nunca deixa de ser torturante.
25

Bianca

“Gostaria de dizer que nós tentamos


Gostaria de culpar a vida por tudo”
Almost is Never Enough-Ariana Grande ft. Nathan Sykes
—Que história é essa de que a gente vai nessa viagem à praia
com o meu pai? Eu não esqueci não, tá? —Ian me questiona,
quebrando o silêncio no caminho até a minha casa.
É bom vê-lo relaxado de novo, ele estava tenso demais desde que
saímos da escola da Sophia.
—Qual é o problema? Eu amo aquela casa de praia, e além disso,
eu preciso urgentemente pegar sol, tô branca demais.
—Isso é verdade, mas mesmo assim, que ideia é essa, Bic? Já
não basta eu ter que morar com meu pai por todos esses meses,
ainda vou ter que passar o final de semana com ele também?
—Nossa, como você é dramático! É só um fim de semana, você e
o seu pai não andam algemados juntos. Ian, olha o lado positivo! Nós
vamos à praia!
Eu amo praia, caso não tenha ficado claro.
—Você fala como se aqui não tivesse praia também —ele
resmunga enquanto para com o carro na frente do meu prédio.
—A praia em que nós vamos é bem melhor que a daqui, né —tiro
o cinto e me inclino em sua direção, puxo seu rosto para o meu e
planto um selinho em seus lábios, agindo totalmente no impulso.
Merda, isso pareceu muito uma coisa de casal. —Tchau, te vejo mais
tarde.
Ele segura meu rosto no lugar para prolongar o beijo e morde meu
lábio inferior, sorrindo.
—Tchau —diz com uma voz baixa que me faz arrepiar.
Me recupero e saio do carro, com um sorriso ridículo e irremovível
no rosto.
Mas quando entro no apartamento, ele despenca. Encontro minha
mãe sentada no sofá da sala, de pijama e com os olhos inchados,
rodeados por olheiras escuras, olhando fixamente para a TV
desligada na parede em sua frente.
Algo está muito errado. E não digo isso a julgar apenas pela
situação de seu rosto, ela não está na academia, como de costume.
Está em casa, sentada no sofá com uma terrível cara de choro.
—Mãe? Tá tudo bem?
Ela desperta do transe ao som da minha voz e vira a cabeça
rápido em minha direção.
—Aham —se apressa em disfarçar a expressão facial. —Onde
você tava?
—Na casa do pai do Ian. Eu te mandei mensagem ontem,
avisando que ficaria por lá mesmo.
—Ah, é. Esqueci. —É sua resposta.
Não sei mais o que dizer, não acho que se perguntar a ela o que
realmente aconteceu, ela vá me contar. Não temos intimidade para
conversar sobre esses assuntos mais profundos.
Às vezes, sinto falta disso. Às vezes me pego desejando ter uma
boa relação de mãe e filha com ela.
Queria que fossemos amigas ou no mínimo companheiras. Queria
poder me identificar com as minhas amigas da escola, que
reclamavam das coisas legais que suas mães faziam, como se
intrometer em suas vidas amorosas, fazer lanchinhos, tirar fotos ruins
e postar com declarações espalhafatosas e constrangedoras nas
redes sociais.
Minha mãe nunca foi assim. Eu amo ela e sei que ela me ama.
Mas às vezes me pergunto até que ponto isso é realmente amor e
não apenas comodismo. Se ela me ama só porque mães devem
amar seus filhos, e vice e versa.
Eu queria que eu e minha mãe tivéssemos abertura uma com a
outra para compartilhar e resolver nossos problemas. E sei que para
conseguir essa abertura, uma de nós tem que tomar a iniciativa de
se colocar vulnerável e disponível a ajudar, escutar e ser escutada.
Mas é claro que nenhuma de nós já sequer chegou perto de dar esse
passo.
Entro no meu quarto e me jogo direto na cama. Não são nem oito
da manhã ainda, eu mereço mais umas horas de sono. Preciso me
desligar e dar uma pausa ao meu cérebro antes de me expor mais
uma vez a todo o estresse e problemas à minha volta.

A semana passa rápido, incrivelmente rápido. De repente é


domingo e estou terminando os últimos detalhes do meu seminário
de amanhã. Às onze da noite.
Sinceramente, que tipo de universitário liga para organização e
otimização de tempo hoje em dia?
Eu poderia ter feito isso num horário mais saudável para o meu
cérebro? Poderia, mas não é o caso.
Meu telefone toca, é Ian.
—CINCO MINUTOS! —Ele grita, e eu afasto o celular da orelha.
—Cinco minutos pra quê, seu maluco?
—Pra queima de fogos do ano novo, óbvio.
Sinto a ironia em seu tom. Coloco o celular na mesa e ativo o viva
voz. Quando confiro o horário, percebo que são cinco para meia
noite. Meu Deus, eu preciso ir dormir.
—Para de graça, Bic! É o seu aniversário, porra!
—Ah, é! Oba! Que horas as strippers vão chegar, mesmo? —
Pergunto.
—Humm, eu marquei com elas às 20h, então você vai ter que
esperar mais um pouquinho —ele entra na brincadeira.
Dou risada.
—Quatro minutos agora —ele anuncia.
—Vai fazer o que a meia noite?
—Ser o primeiro a te dar parabéns, como sempre.
Um sorriso bobo nasce no meu rosto sem que eu possa impedir.
Ian continua na ligação fazendo piadas, tentando me animar. Mas
a verdade é que eu não estou triste, não mesmo. Só não tenho
expectativas altas para o dia de amanhã.
O problema com os aniversários é que eles são só mais um dia. O
que faz um aniversário ser ruim é a expectativa de que deva ser o
melhor dia do ano, mas no fim, não tem problema se for mais um dia
qualquer. No final, é só isso mesmo, é só mais um dia qualquer.
Depois de muitos anos sem comemorar meu aniversário com festas,
porque os meus pais estavam ocupados demais com o trabalho, eu
aprendi isso.
Por isso, não estou triste. Estou apenas apática. E não há
problema nenhum nisso. Nunca acho que o meu aniversário precise
ser o maior evento do mundo, todos os anos. E tudo bem. Mas o Ian
discorda disso, plenamente. Ele gosta de me contrariar.
—Dois minutos!!! —Mais um berro.
—Ian!
—Bic, é sério. Amanhã não vai ser como no ano passado, eu
prometo.
—Eu sei que não. E se for, eu já estou preparada
psicologicamente pra isso —respondo.
—Não! Para com essa merda de se preparar para o pior, você não
precisa se preparar porque eu te garanto, vai ser o seu melhor
aniversário.
Não respondo. Não sei como responder a isso. A certeza em sua
voz é quase inquietante.
—Confia em mim? —Ele pergunta.
—Confio, claro. Mas você tá me assustando com essa confiança
toda —admito.
—Confiança é a alma do negócio. Opa! UM MINUTO!
Ele aumenta o tom de voz novamente.
—Ian, você não vai acabar acordando a Sophia, gritando desse
jeito?
—A porta tá fechada. E você nem me viu gritando ainda, espera
quando der me… MEIA NOITE! FINALMENTE!!! FELIZ
ANIVERSÁRIO, BIC!!! FELIZ BIC DAY!!! —Ele berra.
—Meu Deus. Eu vou ficar surda.
—Para com isso, resmungona. Acabou de fazer 21 anos mas
parece que fez 80.
Dou outra risada. É realmente impossível ficar de mau humor perto
dele.
Ele começa a entoar um parabéns pra você alto o suficiente para
acordar todo o prédio.
—Parabéns, Bic. Muitos anos de vida, que papai do céu continue
te abençoando, que você realize todos os seus sonhos… —Ele inicia
uma ladainha que eu só ouço dos meus parentes.
—Ah, obrigada, vovó!
Ele ri.
—Sério agora, você sabe o quanto é importante pra mim. Eu enchi
seu saco há 21 anos e prometo continuar por mais 21!
Sorrio embora ele não possa ver e sinto meu coração começar a
derreter.
—Feliz aniversário, e por favor tenta se animar, senão eu serei
obrigado a te fazer feliz à força. E isso não é legal.
—Não consigo imaginar isso fazendo sentido, mas tudo bem, eu
vou me animar. Vai ser um bom aniversário.
—Vai ser o melhor! Pode subir as expectativas.
Eu vou subir com as suspeitas, isso sim. Não era pra ser só uma
noite no bar com a nossa galera? É impossível não desconfiar.
O problema do Ian é que ele não sabe mentir. Isso não é bem um
defeito, se for parar para pensar, ele é só um cara muito
transparente.
No meu aniversário de 17 anos, ele me comprou um urso de
pelúcia enorme e mandou entregar na escola, no meio da sala,
parando a explicação do professor que estava dando aula e me
fazendo passar a maior vergonha para levar aquele troço para casa.
Obviamente, o urso não era uma demonstração de carinho e sim
uma forma de me zoar.
Mas eu acabei nem me surpreendendo tanto, já sabia que ele ia
aprontar alguma. Ele ficou a semana inteira dizendo que “algo
grande" ia acontecer na minha vida.
O coitado não consegue se conter. Mas seus planos sempre
davam certo no final. De uma forma ou de outra, eu ficava muito feliz
ou muito irritada, mas nós sempre nos divertimos muito.
—Preciso desligar agora, vou postar aquela sua foto dormindo de
boca aberta no instagram.
—Não! Ian, você não vai fazer isso! —Agora quem quase grita sou
eu.
—Tchau, Bic! Feliz aniversário, beijooo…
E o filho da mãe desliga.
É meu aniversário há menos de 20 minutos mas eu já me sinto
ansiosa. Quero só ver o que vai fazer esse dia ser tão bom assim.
26

Ian

“Ouvi dizer que você está sentindo


Como se nada estivesse indo bem
Por que você não me deixa passar aí? [...]
Então cubra seus olhos, eu tenho uma surpresa”
Birthday-Katy Perry
Eu acordei num pulo, estou animado e tenho muita coisa pra fazer
hoje. Eu poderia deixar para fazer essa festa num sábado ou numa
sexta-feira? Poderia, mas qual seria a graça? Nunca gostei de
comemorar aniversários fora da data onde eles realmente
acontecem, não faz o menor sentido para mim. Por isso, se a Bic faz
aniversário numa segunda-feira, ela vai ter uma festa para ir na
segunda-feira.
E vai ser a melhor de todas. Não canso de repetir isso, estou
empolgado. Sempre gostei de presentear e fazer surpresas pras
pessoas que eu amo. Todo ano, em todas as datas comemorativas,
eu faço cartões à mão para minha mãe desde que eu era criança.
Minha maior recompensa é ver o quanto ela fica feliz com eles. Por
causa disso, nunca paro.
Embora minha mãe diga que eu não sou bom em guardar
segredos, eu sempre quis dar uma festa surpresa, só nunca tive a
oportunidade, até agora.
Estou há dias organizando isso e acho que consegui não deixar
nenhuma pista que faça a Bic desconfiar de alguma coisa. Quero
que tudo dê certo, quero ver a expressão no rosto dela quando vir
toda a decoração da festa que eu fiz para ela. Quero que ela sorria
para mim do jeito que está sorrindo agora, vindo em direção ao meu
carro.
Ela abre a boca para me cumprimentar, mas antes que possa fazer
isso, seguro seu rosto com as duas mãos e trago seus lábios para
perto dos meus. Beijo-a com vontade, lentamente, do jeito que ela
merece. É o dia dela, afinal de contas.
—Feliz BicDay —sussurro.
—Oi —ela pisca os olhos e solta o ar, seu sorriso se expande.
—Tá animada, finalmente!
—Meu pai me deu um presente! Ele não me entregou
pessoalmente, mas veio com um bilhete me desejando parabéns e,
pra mim, isso já tá ótimo.
—Eu falei que esse ano ia ser diferente. Mas e aí, o que era o
presente? —Pergunto.
—Um vestido, Ian! Um vestido maravilhoso! Eu nem gosto de usar
vestido, mas aquele é perfeito!
Estou soltando fogos por dentro. Primeiro acerto do dia.
Fui eu quem escolheu aquele vestido. Encontrei com a mãe da Bic
no shopping quando estava escolhendo seu presente e contei sobre
o que eu estava planejando para hoje. O pai dela me surpreendeu
em se oferecer para pagar pelo vestido, me ligando no dia seguinte.
Deixei, é claro. Mas não conto nada disso à ela. Quero que ela saiba
que o pai dela pensou nela hoje, pelo menos esse ano.
Entramos no carro, e seguimos direto para a faculdade. Tento me
concentrar nas aulas, mas a tarefa parece mais difícil do que nunca,
sempre acabo voltando os pensamentos para os preparativos da
festa. Estou ansioso, não paro de balançar a perna.
Depois do que parece uma eternidade, sou liberado das aulas às
17h. Morgana, Carol, Pedro e Yuri me avisam por mensagem que
também já saíram de suas respectivas aulas.
Seguindo com o plano, eles vão para o prédio da minha mãe para
ajeitarem os últimos preparativos. Têm a permissão do Juvenal, meu
fiel porteiro e camarada que, depois de muita insistência de minha
parte e uma ligação internacional para a Europa para confirmar com
a minha mãe, concordou em me ceder o espaço da área de lazer do
prédio. É claro que eu também precisei conversar com a Beth, a
síndica carrasca, mas para minha sorte, ela me adora.
Às 19h eu vou chegar com a Bic no local e espero que até lá, tudo
esteja pronto.
Me dirijo até o departamento de psicologia para encontrá-la no
meio do caminho, arrumar um jeito de enfiá-la no meu carro e dar
início ao plano.
Avisto ela saindo da sala com os olhos presos ao celular em sua
mão. Perfeito, bem na hora.
—E aí, aniversariante?
—Oi! —Ela se assusta com minha chegada, mas sorri.
—Vamos? Combinei com a galera da gente se encontrar no bar às
sete horas.
—Nossa, tem muito tempo ainda, a gente não vai fazer a parada
obrigatória na cantina?
—Na verdade, eu pensei de a gente ir pra casa e se trocar pra
depois se encontrar lá no bar.
—E eles? Vão ficar esse tempo todo esperando a gente?
Será que ela vê que eu estou suando? Droga, pra quê tantas
perguntas?
—Na verdade, eu acho que eles estão na aula ainda, vão demorar
um pouquinho —eu respondo.
—Ah, beleza, então vamos.
Graças a Deus, ela compra a mentira e eu consigo cumprir a parte
um do plano.
Levo-a em casa, tomo um banho rápido na minha, pego o que
tenho que pegar de lá e volto para buscá-la. Mesmo não se
esforçando tanto no visual, por achar que a ocasião é simples, ela
está linda. Ainda mais linda, na verdade. Passou uma maquiagem
simples, e fez algo nos cabelos que deu um brilho às mechas negras
rebeldes que emolduram seu rosto.
Ok, hora da parte final do plano. Ela parece não ter desconfiado de
nada até agora, mas quando percebe que não estou fazendo o
caminho de volta para o barzinho próxima à universidade, volta com
as perguntas.
—Ué, que caminho você tá pegando?
Beleza, qual era a mentira que eu tinha preparado pra esse
momento mesmo?
—Acabei de lembrar que deixei seu presente na casa da minha
mãe. Vamos ter que dar uma passada lá antes —respondo.
—Na casa da sua mãe? Por que não está na casa do seu pai?
Eu sabia que ela naturalmente fosse se perguntar isso, mas, para
falar a verdade, não tenho uma resposta pronta para nenhuma
dessas perguntas. O plano, na verdade, inclui falar qualquer coisa
para eu ganhar tempo para chegar até o prédio. Pode não ser o
plano mais inteligente e genial que eu já tive, mas eu tenho fé de que
possa funcionar mesmo assim.
—É um presente grande, não ia caber na casa do meu pai.
—Ai meu Deus, Ian. Grande como? Não é mais um urso gigante,
né?
Dou risada.
—Não, e não faria isso. Não sou de repetir presentes, sou mais
criativo que isso —me gabo.
—Tá, então o que é? Um coelho gigante, dessa vez?
—Você vai ver quando chegar lá.
Finalmente, paramos na frente do prédio.
Peço que ela saia do carro comigo, ela aceita ainda com uma
expressão desconfiada no rosto.
Passamos pela guarita, eu aceno para o Juvenal, ele levanta o
polegar para mim e dá uma piscadinha. Sutil, Juvenal, bem sutil.
Vamos até o hall de entrada e antes que Bic possa apertar o botão
do elevador, eu seguro seus ombros e a conduzo para a porta ao
lado que dá acesso ao salão de festas. Ela começa a protestar, mas
antes que possa fazer isso, as luzes se acendem, com gritos e um
parabéns bagunçado que começa a ser entoado.
Sussurro em seu ouvido:
—Feliz Aniversário, Bic.
27

Bianca

“Eu não sei o que faria sem você na minha vida


ela seria tão azeda…”
Sweetener-Ariana Grande
Meu coração quase escorregou para fora da boca. Mas assim que
meus olhos se acostumaram com a luz e eu fui reconhecendo cada
rosto presente no salão, é um riso que sai pela minha garganta. Está
todo mundo aqui. Carol, Morgana, Yuri, Pedro, meus amigos do
curso e até a Bruna, minha prima.
Todos eles mentiram pra mim, incluindo o bobão com um sorriso
triunfante parado atrás de mim, mas eu estou tão feliz e surpresa que
nenhum outro sentimento cabe em mim.
—Você fez isso? —Pergunto a Ian, mesmo já sabendo a resposta.
—Eu tive ajuda —ele dá de ombros.
Estou sorrindo tanto que me doem as bochechas. O lugar está
lindo, mas antes que eu possa reparar mais na decoração e
cumprimentar os convidados, Carol e Morgana me puxam me
dizendo para trocar de roupa. Fico confusa mas sigo-as. Entro no
banheiro e encontro a caixa com o vestido que meu pai me deu hoje
de manhã e suspiro ao vê-lo mais uma vez.
Ele é lindo. Num tom mais escuro de azul royal, o tubinho se ajusta
perfeitamente no meu corpo marcando minhas curvas em todos os
lugares certos. As mangas bufantes de tule vão até os pulsos, dando
um toque romântico que combina muito comigo. Ele também é curto
na medida certa, com uma fenda que sobe pela coxa no lado
esquerdo. Absolutamente perfeito.
Calço de volta os tênis all star brancos e saio do banheiro,
percebendo todos olhos se voltarem para mim seguidos por assobios
e palmas, fico inteira vermelha de vergonha pela atenção.
Agora que consigo reparar melhor na decoração, vejo que meus
amigos realmente capricharam. Dois balões enormes em formato
dos números 2 e 1 estão colados no meio da parede, como Ian
prometeu. Além disso, há um arco de balões lilás cintilantes atrás da
mesa do bolo, uma cortina de fitas brilhantes no meio e vários fios de
led coloridos cruzam o teto do salão.
Na mesa, há um bolo alto coberto por glacê branco e decorado
com glitter roxo e prata. A cor predominante da festa é roxo,
evidentemente. Também é a minha favorita, e perceber que meus
amigos se apegaram a esse fato e fizeram tudo isso pensando em
mim, preenche todo o meu coração com o amor que eu tenho por
eles. Me sinto tão especial que sinto vontade de chorar. Eu tenho os
melhores amigos do mundo inteiro, sem dúvidas.
Aos poucos, vou cumprimentando cada um que está aqui. Sinto
um par de olhos castanhos que não desgruda de mim desde a hora
que saí do banheiro. Sigo o caminho até eles, ainda sorrindo
amplamente. Passo os braços por volta de seu pescoço e o abraço
forte, sem ligar muito para o que as pessoas presentes vão pensar.
Não há como imaginar segundas intenções de um simples abraço,
espero.
—Gostou da surpresa? —Ian pergunta, ainda me abraçando.
—Amei! Há quanto tempo você vem planejando isso? —Me afasto
para olhar em seus olhos.
—Tem um tempinho —ele dá de ombros como se não fosse nada,
sem se dar conta de que é simplesmente tudo.
—É, mas ele teve ajuda, hein! —Morgana aparece sorrindo atrás
de nós, seguida por Yuri e Pedro.
—Pois é, nem pense em ficar com os créditos, gatão! —É Yuri
quem fala.
—É, conta pra ela quem te ajudou a carregar aquela mesa de vidro
pesada até aqui —Pedro cutuca Ian.
Agarro o pescoço dos três e solto gritinhos.
—Muito, muito, muito obrigada, gente! Vocês são perfeitos, tá tudo
maravilhoso. Eu amo vocês!
—A gente também te ama, Biczinha —Pedro diz, dando um beijo
na minha bochecha.
Eles me abraçam de volta e eu os solto apenas quando reclamam
de falta de ar.
—Feliz aniversário, amiga. Você merece tudo isso e muito mais! —
Morg diz, me abraçando mais uma vez e sinto meus olhos
lacrimejarem.
—Vamos começar essa festa, agora? —Yuri pergunta, nos
animando.
—Vamos! —Respondemos.
A playlist da festa contém minhas músicas favoritas, além das
mais famosas atuais. Toca de tudo, pop, funk, indie e até rock.
Vou comendo os salgadinhos, bebendo do coquetel de frutas
alcoólico maravilhoso que a Grazi fez. Como Ian conseguiu pedir
isso à ela sem que eu soubesse, eu não sei.
Enquanto isso, tento dar atenção a cada grupinho de convidados
espalhados pela área de lazer.
Saindo pelo salão principal, encontro Bruna na mesa de sinuca
conversando com as pessoas que estão jogando.
—Oi, prima! —Digo quando me aproximo.
—Oi, Bibi!
Bruna é dois anos mais velha que eu. E é a única pessoa além da
nossa avó que me chama de Bibi ainda.
—Como tá o estágio e a facul? —Eu puxo o assunto.
—Tudo bem. E você? Já começou a estagiar em algum lugar?
—Ah, não. Ainda não.
—Ai, prima, aproveita enquanto você não tem que fazer estágio
obrigatório. Trabalhar naquele escritório às vezes me estressa
demais. E olha que eu sou só uma mera estagiária! Queria que meu
chefe contratasse alguém novo pra aliviar meu lado.
A Bruna já mora sozinha e trabalha num escritório de
administração. Mesmo sendo de uma família com boa situação
financeira, assim como eu, ela é uma inspiração pra mim no quesito
independência.
Tudo que ela tem, conseguiu sem nenhuma ajuda dos pais.
Passou numa faculdade pública e conseguiu seu emprego sem
deixar que meu tio mexesse os pauzinhos necessários para que isso
acontecesse. Desde crianças, temos uma relação de muita amizade,
então minha inveja é do bem. Eu, na verdade, sempre admirei muito
sua capacidade de se dar bem sozinha e de se impor. Desejo isso
para mim também.
—Amei a decoração da sua festa, aliás —ela elogia.
—Ficou incrível, né? Foi ideia do Ian, lembra dele? Filho do Bento,
que trabalha com o meu pai?
—Sim, eu lembro, claro. Foi ele quem mandou mensagem me
convidando. Nossa ele tá um gato, hein? Com todo o respeito, prima.
Vocês namoram, né?
—Ah, não! Não, a gente é só amigo mesmo.
Repito essa mesma ladainha há anos. Um dia vou me cansar e
inventar alguma resposta absurda e mais criativa, só para deixar as
pessoas confusas. O próximo que me perguntar "Ele é seu
namorado?", eu vou rir e responder com: "Ah, não! É o meu filho
mais velho!".
—Então você não se importa se…
Ela não completa a frase, mas sei do que ela está falando.
—Não, claro que não, pode ir em frente!
Eu me importo, me importo muito, na verdade. Quem eu estou
querendo enganar? E o que é que está me fazendo admitir isso tão
facilmente? O álcool dos coquetéis que eu bebi?
—Hum... olha que eu vou mesmo, hein? —Ela diz, lançando um
olhar furtivo para ele, que está vindo em nossa direção.
—Bic, vem! Vai começar o Beer Pong! Oi Bruna, quer jogar
também? —Ele abre um sorriso cheio de dentes para ela.
Pare de sorrir para ela.
—Não, valeu. Beber cerveja de um copo com uma bolinha de ping
pong suja não me é muito atrativo. Eu passo —ela recusa sorrindo
para ele, simpática.
—É, eu consigo entender —ele também dá uma risadinha.
Nossa! Como eles são risonhos!
Para, Bianca! Que ciúme idiota é esse?, repreendo a mim mesma.
—Eu vou —me voluntario.
—Boa, assim que se fala —Ian sorri para mim dessa vez e me leva
em direção à mesa de ping pong, que já tem os copos de cerveja
organizados em forma de triângulo.
De um lado da mesa, há copos de plástico azuis, do outro, os
copos são vermelhos e quem está lá é Ian, Pedro, Yuri e Felipe, que
aparece depois pedindo para jogar. Felipe é um cara da minha turma
de psicologia. Ele é legal, frequenta a maioria das aulas que eu
desde o primeiro período e nós nos falamos às vezes.
Fico atrás dos copos azuis. Do meu lado estão, Morgana, Carol,
Luana e Iasmin, minhas outras amigas da faculdade. Mas elas não
vão jogar, só querem acompanhar a partida e servir de torcida para
mim.
—Meninos contra meninas, então? —Ian pergunta.
—Por mim tudo bem. E quem vencer, ganha o que?
—Ah, vai ter aposta? —Ele ergue uma sobrancelha.
—Claro, se não, qual é a graça? A menos que você tenha medo
da competição…
—Eu? Nunca.
—Ótimo, então o que eu ganho quando eu vencer?
—Se você vencer.
—O perdedor tem que pular na piscina —Morgana sugere.
—De roupa e tudo? —Pergunto.
—Só se quiser —Morg dá de ombros, sorrindo de lado.
—Eu topo —Ian diz.
—Eu também —digo, aceitando o desafio.
A partida se inicia. Ian me deixa começar, porque 1: damas
primeiro e 2: sou a aniversariante.
Minha bolinha de ping pong quica alto demais e não entra em
nenhum copo, batendo uma vez na mesa antes de cair direto no
chão.
Ian comemora. Na sua vez, ele também erra o alvo. Agora sou eu
quem comemora.
Na minha segunda tentativa, eu faço a bolinha quicar usando
menos força dessa vez e ela acaba pulando até entrar num dos
copos do meio da pirâmide disposta na mesa.
Eu dou um grito de comemoração. Ian pega o copo, remove a
bolinha e bebe a cerveja de dentro dele.
Um ponto para mim.
Na sua vez, a bolinha dá apenas um quique na mesa antes de cair
direto no copo da ponta da pirâmide. Sortudo. Ponto para ele. Eu
pego o copo e bebo o conteúdo com uma careta. Odeio cerveja.
O jogo vai seguindo, ele está na frente por apenas um copo. Eu
preciso vencer esse negócio por dois motivos: 1, não aguento mais
beber essa cerveja quente; e 2, não quero ter que pular naquela
piscina gelada.
Vão se aproximando as últimas rodadas. Tenho apenas um copo
restante diante de mim e Ian, dois. Se ele acertar a bolinha, é o
vencedor. Se errar, eu tenho uma chance de nos colocar num
empate e virar esse jogo.
Ele arremessa com precisão, mas é devagar demais, a bolinha
não quica alto suficiente para alcançar a borda do copo. Minha vez,
acerto o copo do canto esquerdo, ponto para mim!
Começo a suar quando ele se prepara para sua última jogada,
mas ele erra mais uma vez, sua sorte de principiante foi toda
embora. Agora, estamos empatados.
Ninguém respira, até quem estava jogando totó no outro canto da
sala, agora presta atenção na nossa competição.
Respiro fundo, arremesso a bolinha e… Acerto o copo, vencendo o
jogo!
Ergo as mãos para o alto e começo a entoar a música We are the
Champions.
Ian está claramente aborrecido por ter perdido, mas sorri mesmo
assim.
—Hora de cumprir a aposta! —Eu cantarolo para ele.
—Agora?
—Agora!
28

Ian

“Trouxe suas amigas para


minha casa
mas você é a única que vai ficar”
Surprise Party-Hoodie Allen ft. Blackbear
Ando sem muito entusiasmo até a área da piscina. O resto do
grupo faz barulho atrás de mim, acompanhando a aposta sendo
cumprida.
Eu paro na borda da piscina, ponderando se devo entrar com ou
sem minhas roupas. Não sei como seria pior. Estava calor hoje à
tarde, mas agora uma brisa fria envolve a noite.
Por fim, começo a tirar os tênis e esvazio os bolsos da bermuda.
Não tem escapatória. Não vou ficar pelado aqui, mas pelo menos
não vou estragar esse Nike, meu celular e nem minha camiseta.
Removo a peça num movimento rápido. Respiro fundo e sem
pensar muito, pulo na piscina.
Caralho, eu subestimei a temperatura dessa água. Está mais do
que fria, muito gelada.
Volto à superfície e jogo o cabelo para trás. Pronto, missão
Cumprida. Avisto Bic na multidão que se formou em volta da piscina
e sorrio, estendendo a mão, pedindo ajuda para sair.
Mas ela não é ingênua, está achando que eu vou puxá-la para
dentro da piscina no instante em que segurar minha mão. E está
certa, é exatamente essa a minha ideia.
Bic balança a cabeça, negando.
—Que isso Bic, não vai ajudar o seu melhor amigo? —Tento
chantagear.
—De boba eu só tenho a cara, amigo. Use a escada —ela aponta
para a escadinha no canto da piscina.
Tenho uma nova ideia, ainda melhor que a primeira.
—Tá bom —respondo.
Começo a nadar até a escadinha no canto da piscina, com um
sorriso de lado no rosto e sem tirar os olhos dela. Ela já sabe o que
esse olhar significa e se prepara para correr.
—Ian, não. Esse vestido é novo —aviso.
—E daí? Você compra outro.
Subo rapidamente os degraus e começo a ir em sua direção, ela
não espera mais nenhum segundo antes de disparar para o outro
lado com um gritinho. Corro atrás dela a toda velocidade, temendo
escorregar na água que desce pelo meu corpo, mas mesmo assim
não paro.
Passamos pelos corredores vazios da área da churrasqueira, eu
estou bem atrás dela, quase a alcançando. Avisto a porta da escada
de emergência e já sei que é para lá que ela vai tentar fugir. Aperto o
passo.
Antes que ela possa tocar na maçaneta, agarro sua cintura com os
braços. Bic solta um grito extremamente fino e alto com o susto.
Prendo-a contra a parede escura do corredor, recuperando o
fôlego, o corpo colado com o dela. Eu ainda estou encharcado e sem
camisa, logo, molho seu vestido quase inteiro também. Mas ela nem
parece se importar mais.
—Ganhei—eu digo, ofegante.
—Só o Pique-pega. Eu ganhei o Beer Pong.
—E como a gente desempata isso?
Estou chegando com o rosto cada vez mais próximo do seu, tão
perto que posso sentir o cheiro de seu hidratante labial de maracujá.
Ela se aproxima ainda mais, subindo nos calcanhares, nossos lábios
se tocam levemente, mas ela não me beija.
—Quero comer o bolo. Vamos cantar o parabéns. —E se
desvencilha de mim, indo em direção ao salão principal. Olha para
trás e um sorriso malicioso se expande em seus lábios.

O sorriso que eu esperei a semana inteira para ver, aparece no


rosto da Bic pela segunda vez no dia de hoje. Esse sorriso enorme
que acende um brilho em seus olhos escuros e que neste momento
está sendo iluminado pelas velas no bolo e pelas luzes artificiais de
led.
Eu faria qualquer coisa por esse sorriso. Ele faz tudo valer a pena.
Até pular numa piscina gelada e passar frio mesmo depois de vestir
de novo a camisa.
Cantamos o parabéns, cortamos o bolo, que estava uma delícia,
aliás. A Grazi é a melhor. E depois de um tempo, uma parte da
galera começou a se despedir da Bic e ir embora. São apenas dez
da noite ainda, mas eu não posso realmente culpá-los. É segunda-
feira, a final.
—Sabe o que faltou nessa festa? Mais jogos —Yuri ressalta,
enquanto estamos sentados numa das mesas, conversando.
—Tipo aquele Gire a Garrafa que você puxou da última vez? —Eu
dou risada, lembrando. Parece que faz tanto tempo desde aquele
dia.
—Isso é carência, Yuri? Tá sem pegar ninguém? —Pedro provoca.
—Tá preocupado com a minha vida sexual, Pedrinho?
Ah, não. Esses dois vão começar com esse flerte camuflado de
discussão. Busco Bic e Morgana com os olhos, não as vejo há um
tempo. Mas quem encontro é Bruna e ela sorri para mim, do outro
lado do salão. Ela me chama para que eu me aproxime. Como meus
amigos estão presos em seus próprios joguinhos de sedução,
aproveito a oportunidade para sair da mesa. Eles nem sentirão
minha falta.
—Ian, sabe onde eu consigo mais desse coquetel? —Bruna
aponta para o copo em sua mão.
—Ih, acho que acabou. Não tinha muito. Quer que eu pegue outra
bebida pra você? —Ofereço.
—Ah, tudo bem. Não precisa —Ela segura meu braço.
Bruna é bem diferente da Bic, fisicamente falando. É alta, tem
olhos castanhos e os cabelos lisos um pouco mais claros que os da
prima. É bem bonita, mas sinceramente não estou interessado no
momento. Se ela não fosse prima da minha melhor amiga e se eu e
a amiga em questão não estivéssemos envolvidos nesse rolo, quem
sabe eu até tentaria algo.
Daqui onde estamos, consigo avistar a Bic num canto. Ela olha em
nossa direção rapidamente, antes de voltar a atenção para a outra
pessoa que está com ela. A princípio, não consigo ver quem é, mas
então seu rosto aparece em meu campo de visão e descubro que é
um dos caras que estavam com a gente durante a partida de Beer
Pong. Ele parece estar tendo uma conversa casual com a Bic, mas
não gosto de como seus olhos sempre parecem pousar no decote do
vestido dela.
—Vi você caindo na piscina, o que foi aquilo? —Bruna fala comigo,
dando uma risadinha.
—Ah, eu perdi uma aposta com a Bianca —volto minha atenção a
ela.
—Vocês são amigos há muito tempo, né?
—Praticamente a vida toda —confirmo.
—E nunca rolou nada entre vocês?
E agora, devo ser sincero ou mentir na cara dura? Foda-se, ela
não precisa saber sobre a nossa vida, se a Bic quiser se abrir sobre
isso com a prima, aí já é com ela.
—Não —respondo.
Na minha visão periférica, vejo Bic rindo de algo que o cara do
Beer Pong diz à ela. Volto os olhos a eles e franzo de cenho
involuntariamente. Não gosto de ver isso também. Sinto um gosto
ruim na boca. Que merda é essa?
—Entendi —Bruna responde, virando o rosto para olhar na mesma
direção que eu. —Bom, eu vou indo, tá ficando tarde. Foi bom te
rever, Ian. Cuida bem da minha prima, hein?
O que ela quer dizer com isso?
—Tchau! Bom te ver também.
Vejo Bruna ir até onde Bic está, elas se despedem com beijinhos e
quando sai, o cara ainda está lá, puxando papo com minha amiga.
Porque ele não vai embora também? Já é tarde mesmo.
Ele tira uma mecha de cabelo do rosto dela, se aproximando. OPA,
PERAÍ!
Ele vai mesmo tentar beijá-la?
Não vai mesmo.
Ando até onde eles estão, com certa pressa.
—Bic, a Morg tá te chamando lá no banheiro. Acho que você devia
correr.
—Ah, tá bom. Eu já tô indo —ela diz, parecendo um pouco confusa
com minha aparição repentina.
—Ela disse que é uma emergência —ressalto.
—Bom, acho que deu minha hora. Tchau, Bianquinha. Te vejo
amanhã. —Cara do Beer Pong finalmente se manca. Mas não perde
a oportunidade de deixar um beijo na bochecha dela.
Não consigo evitar cruzar os braços e rolar os olhos.
—Tchau, Felipe, até amanhã! Obrigada por ter vindo —Bic se
despede.
Ela me acompanha até o meio do salão e vai andando em direção
ao banheiro, que está aberto.
—Ué, a Morg não estava aqui? —Ela indaga.
—Acho que ela já deve ter saído.
Bic semicerra os olhos, já sabe que eu estou mentindo.
—Ian…
—Tá, eu inventei isso pra te livrar daquele cara.
—Me livrar? Quem disse que eu queria me livrar dele? —Ela ergue
uma sobrancelha.
—Ele não parava de olhar pros seus peitos! E te chamou de
“Bianquinha”, pelo amor de Deus. Eu te fiz um favor.
—Sei. Tem certeza que isso não é…
—Ciúme? Claro que não, Bic. Eu tô só cuidando de você —me
apresso em responder.
—Cuidando de mim? —Ela cruza os braços e levanta ainda mais a
sobrancelha.
—Olha só, não vem falar de ciúmes comigo quando você não
parava de olhar pra minha direção quando eu tava falando com a sua
prima. Aquilo não era ciúme? —Estou blefando, eu sei que ela não
estava olhando, mas percebo agora sua expressão vacilar um pouco.
—Claro que não! Por que eu teria ciúmes? —Ela se defende.
—Por que eu teria ciúmes? —Eu questiono.
—Bom ponto.
—Ótimo, então estamos resolvidos?
—Estamos.
Não estamos, não. Porque eu definitivamente estava com ciúmes.
Não consigo nem imaginar o que aquele tal de Felipe e ela teriam
feito se eu não tivesse aparecido. Esse sentimento estranho só pode
ser ciúme, e eu assumo. Só não faço ideia do que fazer com isso
agora.
O resto dos convidados vai embora e só restam a nossa galera
aqui para arrumar um pouco da bagunça da festa e da decoração.
Levam um pouco dos doces e do bolo em quentinhas.
Morgana anuncia que é hora de ir e eu ofereço para pagar um
uber para cada um deles.
—Não amigo, é caro demais —ela protesta.
—Relaxa, não é problema nenhum.
—Tem certeza?
—Claro, pô. Tá tranquilo. Eu levaria vocês de carro, mas ficaria um
pouco perigoso pra voltar e eu já tenho que deixar a Bic em casa…
—Não, nem se preocupa. Mas valeu mesmo por pagar a corrida.
Pegar ônibus essa hora é pesado.
—Eu imagino.
—Ai, como eu adoro ter amigos ricos —Yuri comenta, e nós rimos.
Quando eles se vão, eu e Bic ficamos sozinhos.
—E aí, vamos? —Ela pergunta.
—Vamos, mas antes eu preciso te entregar seu presente.
—Meu presente?
—É claro, você acha que eu ia te fazer uma surpresa, mas não ia
te dar um presente de aniversário? Me subestimou, Biczinha.
—E onde é que está esse presente? —Ela revira os olhos,
sorrindo.
—Lá em cima —digo.
—Pensei que sua mãe tivesse ficado com a chave do
apartamento.
—Eu tenho uma reserva —sorrio.
29

Bianca

“Mas quando ele me ama, eu sinto que estou flutuando


Quando ele diz que sou linda, eu sinto que sou alguém
Mesmo quando eventualmente nós desaparecermos,
Você sempre será minha forma favorita de amar”
Cloud 9-Beach Bunny
O apartamento está coberto de poeira, plástico protegendo os
móveis e de coisas da obra, mas o quarto de Ian está intacto. Parece
até que ele o arrumou antes de me trazer aqui.
Deixamos os sapatos na porta do quarto, para não sujar o chão
com pó. Eu me sento em sua cama, avaliando o resto do ambiente.
—Por que parece que faz tanto tempo que eu não venho aqui?
Ele sorri.
—Eu pensei o mesmo quando vim aqui mais cedo. Sinto falta de
morar nesse apê.
Esse quarto é mesmo muito legal. Eu adoro a decoração
minimalista em preto e branco dos móveis e das paredes, deixa o
ambiente espaçoso mais chic. Tem um violão parado ao lado da
porta e uma tabela periódica colada na parede na frente da longa
mesa de estudos do outro lado do quarto. É a cara dele.
Ian vasculha uma gaveta no armário e volta com um envelope e
uma sacolinha de papel da Pandora.
Me entrega primeiro o envelope.
—O que é isso? —Pergunto.
—Seu presente. Mas esse, quem deu foi a Sopa.
Abro um sorriso enorme. A Sophia me dando um presente só
significa que ela oficialmente me adora.
No envelope há uma folha de papel com um desenho feito a lápis
de cor. A imagem é de um jardim com uma macieira e duas flores cor
de rosa brotando do chão. No meio da folha, há três pessoas, uma
com um vestido e cabelos compridos e pretos e um outro com
cabelos curtos em marrom. Entre eles, uma pessoa de tamanho
reduzido e cabelos amarelos. Os três dão as mãos.
No canto da folha, está escrito “De: Sophia; Para: Bic” com uma
letra de forma um pouco torta.
—Ai, que coisa mais linda!
—Eu ajudei a escrever a dedicatória. Tentei ensinar a ela a
escrever “feliz aniversário”, mas eram muitas letras e ela ficou com
preguiça.
Rio alto.
—Tá perfeito. Eu vou emoldurar isso e ir até a sua casa pra
agradecer a ela pessoalmente.
Ele sorri e se senta na cama ao meu lado.
—Agora abre o meu.
Ian me estende a sacola e de lá, eu tiro primeiro uma caneta roxa
de ponta pincel. A marca da caneta é BIC. Reviro os olhos, mas não
consigo conter um sorriso. Ele nunca vai deixar essa piada interna
morrer.
Todo ano, no meu aniversário, parte do meu presente é alguma
caneta dessa marca que, graças a Ian, divide o mesmo nome que
eu. E por eu não conseguir disfarçar o quanto acho esse gesto
engraçado e até um pouco fofo, ele continua me comprando canetas
diferentes todo ano.
Olho para cima e encontro seu sorriso triunfante. Ele aponta para a
sacola com o queixo, me indicando para conferir o resto do conteúdo
da sacola.
Retiro de lá uma caixinha branca. Meu coração acelera, não é um
anel, é?
Seguro a caixinha estudando sua expressão, ele me olha com
expectativa, com um sorriso breve.
Levanto a tampa e encontro um pingente prateado do tamanho do
meu polegar, fino em formato de coração vazado, com um espaço no
meio. É lindo e superdelicado.
Começo a agradecer, mas ele me surpreende.
Puxando seu chaveiro do bolso, Ian me mostra um pequeno
coração de prata pendurado no aro que segura as chaves. Estende a
mão para o meu presente encaixa o seu coração pequeno dentro do
espaço do meu.
—É como os nossos nomes. Bianca e Ian. Meu nome tá dentro do
seu. Eles se completam.
Eles se completam.
Estou prestes a derramar as lágrimas que segurei o dia inteiro. Eu
já tinha amado o presente antes, mas ver que há algo tão simbólico
por trás, me desmontou. Sophia acabou de arrumar uma competição,
porque acho que esse é o presente mais perfeito que eu já recebi na
vida.
Mais um tijolinho sobre a pilha.
—Entendeu? Bianca… Ian… se tirar o B, o C e o A do seu nome,
fica o meu nome… eu tinha preparado um discurso mais bonito e
poético para explicar isso, mas já esqueci tudo.
Eu estava quase caindo no choro, mas agora caio na risada.
—Sim, Ian. Eu entendi.
—Gostou?
Respondo passando os braços por seu pescoço e o abraçando
forte. Não há muitas palavras para descrever o que estou sentindo
nesse momento, então espero que ele possa entender com esse
gesto o quanto sou grata pelo presente e por ter ele.
—Eu amei. Obrigada —sussurro.
—De nada, Biczinha —ele sussurra de volta, beijando meu rosto.
Quando nos afastamos, mantemos os rostos perto. E aquela
sensação que acometeu meu peito no dia em que ele me beijou no
sofá da sala da minha casa, retorna. Como se ele estivesse
sorrateiramente invadindo todos meus pensamentos e sentidos, só
com esse olhar.
Algo tão forte quanto um ímã puxa nossos rostos para perto e de
repente, estamos nos beijando.
Lentamente, loucamente, perdendo a cabeça. Não sei nem mais
onde estamos, nem para onde foram os presentes no meu colo.
Nem percebo quando, mas ele deita minhas costas na cama e
agora está em cima de mim. De repente, o beijo se intensifica,
ficando mais urgente. Sinto o corpo ferver e meu interior se
comprimir.
Ian passa a mão pela minha cintura, vai descendo até seus dedos
agarrarem minha bunda. Deixo um gemido escapar, vibrando por
nossos lábios. Ele desce mais ainda as mãos, segurando a parte de
trás do meu joelho, afastando minhas pernas e encaixando o corpo
entre elas. Eu arfo mais uma vez, agarrando seus cabelos com força,
e é sua vez de gemer com um som gutural.
Não interrompemos o beijo. Nem por um segundo. Eu desço
minhas mãos por seu pescoço lentamente, passo pelos ombros, até
ir descendo devagar por seu peito, coberto pela camisa. Por que ele
ainda está usando essa camisa?
Chego com as mãos até sua cintura e começo a forçar o tecido
para cima.
Ele desgruda nossos lábios apenas para passar a gola pela
cabeça, mas eu o afasto gentilmente, quero aproveitar esse
momento, passando as unhas por seu abdome e o vendo estremecer
sob meu toque. Sorrio maliciosamente, ele se abaixa novamente,
capturando meu lábio inferior com o dente, antes de voltar a me
beijar.
Ian continua a explorar meu corpo com as mãos, mas ainda não é
suficiente. Sobe os dedos ávidos pela lateral do meu corpo,
procurando o zíper do vestido, até que finalmente o encontra. Meu
Deus do céu, ele está tirando minha roupa.
Vai puxando o fecho para baixo, abrindo lentamente, me dando a
chance de impedi-lo. Mas eu não vou fazer isso, não dessa vez.
—O quanto você bebeu? —Ele pergunta de repente, sussurrando
contra minha boca.
—Pouco. Por quê?
—Só pra garantir. Eu quero que você esteja sóbria pra se lembrar
disso amanhã.
Sinto o corpo arrepiar mais uma vez. Nem se eu bebesse um
galão cheio de cachaça seria capaz esquecer desse momento.
Ian termina de puxar o zíper e eu puxo as mangas do vestido para
baixo. De uma forma dolorosamente lenta, ele desce o resto do
tecido pelas minhas pernas. Depois volta, tão lentamente quanto
antes, demonstrando um autocontrole invejável. Vai plantando beijos
pelo meu tronco, até voltar ao meu pescoço.
Não estou usando sutiã e ele constata esse fato, se afastando
brevemente absorvendo a visão do meu corpo seminu em sua cama.
Solta um xingamento baixo, num suspiro. Eu sorrio e o puxo de volta
para mim. Ele está prestes a tirar o resto de suas roupas, eu estou
prestes a perguntar se ele tem camisinha, mas antes, preciso contar
a ele. Acho que ele tem que saber. Afasto-o gentilmente mais uma
vez e declaro:
—Eu nunca fiz isso antes.
Ele congela, me olhando com total confusão.
—Quer dizer, eu já tive relações sexuais antes, obviamente. Mas
nunca tive… —Digo, esperando que ele possa deduzir o resto.
—Um orgasmo?
Reviro os olhos, e solto um suspiro frustrado.
—Não, Ian. Penetração. Tô falando de pau.
Ele solta uma gargalhada. Ótimo, acabei de quebrar o clima.
—Eu não sou virgem e nem inexperiente, só pra deixar claro. Mas
quando você… sabe… for com tudo… tenta ir devagar —concluo
meu aviso.
Ele acaba rindo um pouco mais e eu sinto que o clima quente que
tínhamos começado vai esfriando aos poucos. Que merda, pra que
fui abrir minha boca para falar? Devia estar usando-a apenas para
beijá-lo.
—Bic, relaxa —ele diz com aquele tom baixo e rouco que
reacende todo o meu corpo.
Ian estica o braço acima da minha cabeça até tocar o interruptor
ao lado da cabeceira da cama, e apaga as luzes. Só o reflexo da luz
amarela do poste da rua entra pelo quarto. Ele volta a apoiar a mão
ao lado da minha cabeça e se abaixa mais uma vez, roçando os
lábios nos meus com tanta delicadeza que mal sinto, ao mesmo
tempo que um arrepio percorre cada centímetro da minha pele.
—Não vou fazer nada que você não queira —ele sussurra.
Que gracinha, ele é sempre tão atencioso e gentil. Me pergunto
como vou fazer para deixar claro para ele que a última coisa que eu
quero nesse momento é ser cortejada.
Ele passa o nariz pelo meu pescoço e vai superficialmente
percorrendo com os lábios minha garganta e clavícula até descer um
pouco mais e começar a explorar meus seios também, me
arrancando gemidos altos.
Se eu achava que o clima estava morto, ele renasce e volta com
tudo nesse momento. Estou arfando e gemendo a cada movimento
provocante de sua boca. Logo não vou aguentar mais.
Finco os dedos em seus cabelos, trazendo sua boca até a minha
mais uma vez. Passo as unhas por suas costas, puxando seu corpo
para mais perto do meu, colando nossos peitos nus. A sensação é
tão boa que até ele geme, e o som é a coisa mais sensual que já
ouvi. Mesmo assim, Ian ainda não fez nenhuma menção de tirar a
bermuda.
Pelo amor de Deus, ele quer que eu implore?
Mudei de ideia sobre ir devagar, não quero mais que ele seja
delicado, quero que me coma logo de uma vez e que não seja gentil
no processo.
—Tem camisinha? —Eu sussurro.
—Tenho.
Ele se inclina para vasculhar a gaveta da mesinha ao lado da
cama. Faz um barulho danado e a demora também não me parece
um bom sinal.
—Não tenho… —Ele declara por fim, soltando o ar com força
enquanto fecha a gaveta.
—Nem no banheiro?
—Não, não costumo deixar lá.
Ele sai de cima de mim e se joga de costas no outro lado da cama,
tão frustrado quanto eu.
—Na carteira? —Eu pergunto, ainda com um pouco de esperança.
Ele me olha e une as sobrancelhas.
—Quem é que guarda camisinha na carteira, Bic?
—Muitos homens! Você deveria fazer o mesmo!
—Eu devo ter levado a última cartela na mala, quando fui para a
casa do meu pai —lamenta, resmungando consigo mesmo.
Suspiramos ao mesmo tempo, não acreditando no nosso azar.
Mas eu sei que a noite não precisa acabar assim. Levanto meu
corpo, e passo as pernas em volta da cintura dele, me sentando em
seu colo.
Ian me olha com surpresa, apoiando as mãos nas minhas coxas
imediatamente.
Com um sorriso indecente, eu digo baixo:
—Ainda tem muita coisa que a gente pode fazer.
30

Ian

“Fazendo tempestade por algumas horas


Quando terminamos, tomamos um banho
Eu poderia fazer isso por horas
E horas, e horas…”
Hrs and Hrs- Muni Long
Ela vai descendo os dedos pelo meu tronco, até chegar a barra da
minha bermuda. Há um sorriso deliciosamente perverso em seu
rosto quando puxa o zíper para baixo. Dessa posição, tenho um
vislumbre completo de seu corpo nu, bem na minha frente. Mesmo
com o quarto praticamente inteiro escuro, consigo ver seus cabelos
negros totalmente bagunçados jogados para o lado, as marcas que
deixei em seu pescoço e o contorno de seu corpo que mal posso
esperar para terminar de explorar.
Meu Deus, ela é tão linda.
Bic desliza do meu colo, descendo ainda mais. Vai baixando a
cabeça, sem tirar os olhos dos meus. Eu deito a cabeça para trás
quando ela me leva a loucura usando a boca e as mãos em completa
sintonia.
Porra, ela sabe exatamente o que está fazendo. Não mentiu
quando disse que era experiente, e do nada me pego invejando cada
mulher e cada homem que já esteve no meu lugar e pôde
experimentar tudo o que essa boca consegue fazer.
Ela provoca e lambe sem pudor, e não tem medo de me levar ao
limite. Já sinto minhas pálpebras se fechando por conta própria,
enquanto solto suspiros descontrolados.
Pela segunda vez, me pergunto por que nunca tivemos essa ideia
antes, essa já é provavelmente a melhor transa da minha vida e eu
ainda nem estou dentro dela.
Eu não vou mentir, saber que eu seria seu primeiro me assustou
um pouco. Sei que esse termo é errado, não sou a primeira pessoa
com quem ela transa, obviamente. E também tenho plena noção de
que sexo não se resume apenas a penetração e romper o hímen. Se
fosse, as lésbicas seriam todas virgens. Esse pensamento não é
nada além de ridículo.
Normalmente, eu e a Bic contamos um para o outro sobre as
pessoas com quem ficamos, sem entrar em muitos detalhes, é claro.
Mas ela nunca me disse que nunca chegou aos “finalmentes” com
um cara antes. Por isso, fico feliz que hoje não é o dia que isso vai
acontecer. Sei que ela ia odiar se eu tratasse como uma garotinha
frágil, mas sinto que preciso me preparar psicologicamente para isso,
não quero ir com muita pressa e correr o risco de machucá-la.
Mas nesse momento, ela não está agindo nada como uma
garotinha. Seguro seus cabelos, pois preciso de algo que me
mantenha na terra, me sinto flutuando até o paraíso. Estou chegando
lá, ela já vem me deixando louco desde o momento em que me
puxou para um beijo mais intenso.
—Bic… —Tento avisar, mas não dá tempo. Explodo, e ela não
parece se abalar com isso pois engole cada gota. Depois de alguns
segundos tentando voltar ao normal, abro os olhos e a vejo com
aquele mesmo sorriso perverso, limpando o contorno da boca com
os dedos.
Nesse momento, me dou conta que nunca vou voltar ao normal.
Essa garota me arruinou por inteiro, nenhuma outra noite na minha
vida vai poder se comparar à esta.
Sorrio de volta para ela e agarro sua cintura, puxando-a para mim
e beijando sua boca com avidez, sentindo meu gosto em sua língua.
E então, num movimento rápido, troco as posições e a mantenho
embaixo de mim. Ela dá um gritinho com o gesto brusco, seguido por
uma risadinha.
—Minha vez —eu anuncio, baixo.
Exploro seu corpo com os lábios úmidos, de sua boca até o
pescoço, do pescoço até seus seios perfeitos, dando-os a devida
atenção e gemendo junto com ela. Dos seios, vou descendo em uma
linha reta até o limite onde sua calcinha se encontra.
Suas pernas estão abertas para mim e eu enrolo o elástico da
peça nas duas mãos, mas não removo ainda. Vou provocando-a com
beijos na parte interior de suas coxas, até ouvir seus gemidos se
tornarem resmungos torturados. Aí, finalmente, começo a deslizar a
última peça de roupa remanescente entre nós até seus pés, sem tirar
os olhos dos seus em nenhum momento.
Concebendo o fato de que minha melhor amiga está nua na minha
cama, e que mesmo assim tudo aqui parece tão certo e natural,
absorvo a visão de seu corpo descoberto.
Desço novamente a cabeça e planto beijos na parte interna de
suas coxas, volto a encarar seus olhos e peço, num tom baixo e
sussurrado:
—Me fala o que você quer.
—O que? —Ela indaga enquanto suspira.
—O que você quer que eu faça com você?
Ela arfa quando aperto a pele macia de suas coxas.
—Qualquer coisa que você quiser —ela responde, com os olhos
se fechando, enfiando as mãos no meu cabelo mais uma vez, me
guiando até sua pele úmida e quente.
Enterro o rosto no meio de suas pernas e nós dois gememos. Eu
sinto que poderia ficar aqui por horas. Percebo que seus gemidos se
tornam também meu som favorito a partir de agora.
Uso meus lábios e língua para levá-la ao clímax, mas sei que
posso fazer ainda melhor que isso. Com os dedos, começo com um
movimento de vai e vem para ouví-la dar gritos e gemidos cada vez
mais altos.
Ela é barulhenta e eu não esperava por isso, mas sendo sincero,
também adoro. Bic agarra meus cabelos com mais força, me
arrancando um grunhido. Porra, isso é bom demais.
Sinto seu interior se contrair ao redor dos meus dedos e sua
respiração ficando ainda mais rápida. Ela está chegando perto,
acelero os movimentos e a sinto derreter na minha boca. Bic agarra
um seio com uma mão e com a outra, morde as juntas dos dedos
para conter outro grito.
Espero conseguir gravar na mente esta cena porque é com
certeza a visão mais sensual que já capturei com os olhos.
Espero seu corpo se livrar dos tremores para voltar a cobri-lo com
o meu. Nossos lábios voltam a se encontrar num beijo lento e
molhado.
—Meu Deus, isso foi… —Ela mal consegue terminar a frase. Dou
um sorriso.
—Foi mesmo.
Ela enrosca as pernas na minha cintura, me sinto pronto para ir
além, mas sei que não é hoje que isso vai acontecer.
Por isso, rolamos na cama por um tempo, dando beijos
desajeitados até cansarmos e pararmos numa posição em que seu
corpo se aninha ao meu, de costas. Ficamos em silêncio, esperando
nossas respirações se estabilizarem. É um daqueles silêncios bons,
confortáveis.
Passo as mãos levemente por sua cintura nua, apreciando a forma
como um arrepio percorre sua pele com o gesto. Beijo seu pescoço
descoberto, pensando no quão bem eu poderia dormir aqui, assim.
Infelizmente, não posso. Pelo menos não nesse segundo, porque
preciso tomar um banho. Eu devo estar fedendo ao cloro da piscina
até agora, não sei como Bic não percebeu.
—Ian? —Ela sussurra.
—Hum?
—Eu preciso fazer xixi.
—E eu preciso de um banho —respondo.
—Então vamos? —Ela propõe.
—Agora eu tô com preguiça —enterro a cabeça em seus cabelos.
Ela ri e se desvencilha de mim, me deixando com um frio
repentino. Levanta da cama e estende a mão para mim.
—Vem.
—Só se você entrar no chuveiro comigo —eu digo.
Ela sorri.
—Fechado.
31

Bianca

“O amor nunca esteve tão perto, e tão longe


É como se sua mente estivesse dizendo pra você dar o fora
E seu coração te diz para apenas ficar…”
Down for You-Kehlani ft. Chance the Rapper
Eu, modestamente, tenho um bom conhecimento sobre o cérebro
humano, sobre suas atividades pré-determinadas e como ele reage
sobre o efeito de hormônios.
A ocitocina é um hormônio liberado durante o orgasmo, ela diminui
os níveis de cortisol, que é o hormônio do estresse, e gera no nosso
cérebro uma sensação de apego ao parceiro sexual.
E é só isso o que está acontecendo aqui.
Ian cumpriu sua promessa, ontem foi o melhor aniversário que eu
já tive em toda a minha vida. Foi também possivelmente uma das
melhores noites de sexo que eu já experienciei nesses 21 anos.
Mas eu só me sinto assim porque o hormônio do amor resolveu se
intrometer na minha vida. Não estou apaixonada por ele e nem ele
por mim.
A ciência, minha grande aliada, explica isso que eu estou sentindo
melhor que o meu coração estúpido. São os hormônios que agem
por mim.
Eu não vou me deixar levar por essa noite. Eu não posso me
apaixonar por ele. Não quando esse sentimento só parte de mim.
Ian pode ser um mau mentiroso, mas é muito bom em desapegar.
Eu o assisti sair de quatro relacionamentos e em nenhum deles,
sofreu. Nem quando eram as garotas que terminavam com ele.
Seu jeito tranquilo de ser me fascina na mesma proporção que me
assusta, porque eu não sei agir assim. Se eu começar a amá-lo,
certamente vou sair destruída no final, e ele não vai sentir nada. Não
quero nem pensar em correr esse risco.
Mesmo assim, não consigo negar que estar aqui em seus braços,
acordar mais uma vez com sua respiração em minha nuca, rodeada
por seu perfume, é de longe a melhor sensação que já experimentei.
É tão gostoso estar aqui, tão confortável, tão perigosamente,
assustadoramente bom.
Abro os olhos, os dele ainda estão fechados. Estico o corpo para o
chão, tateando até encontrar meu celular, mas seus braços me
puxam, rolando meu corpo de volta para a cama.
—Bom dia —ele diz, com aquela voz rouca.
—Bom dia —eu sussurro em resposta.
Então, ele me beija, e é como se uma corrente elétrica passasse
por toda extensão da minha pele. Ele acaricia meu corpo, que agora
já lhe é ainda mais familiar, com carinho.
Quando nos separamos, eu olho o relógio do celular em minha
mão. E de repente, volto à realidade.
Hoje é terça-feira, dia útil.
—Puta merda! Ian, a gente tem aula hoje!
—Eu sei, e daí?
—E daí que já são quinze pras duas!
—Caralho!
Pulamos da cama e eu me dou conta de que não tenho minhas
roupas aqui e nem material para a aula.
Merda, eu nem me lembro com quem eu deixei as roupas que eu
usava ontem, antes de trocar pelo vestido da festa.
—Com que roupa eu vou? A aula começa em quinze minutos, não
dá tempo de passar em casa —começo a me desesperar.
Ian, sempre muito calmo, se aproxima e segura meu rosto com as
duas mãos.
—E se a gente matasse a aula hoje? —Diz com um tom baixo,
roçando a ponta do nariz no meu.
—Não posso —suspiro. —Já matei tantas aulas desse professor
que corro o risco de reprovar nessa matéria.
Ele suspira, também frustrado, mas me ajuda procurando alguma
roupa dele, deixada no guarda-roupa desse apartamento, que eu
possa usar.
Visto às pressas uma de suas calças jeans e dobro a barra para
facilitar o meu andar. Ian me entrega uma camiseta velha que não o
cabe mais e não fica tão larga em mim. Calço meus tênis brancos e
estou pronta. Esse estilo mais “masculino”, entre várias aspas, é um
que, embora minha mãe desaprove, eu uso algumas vezes, então
com sorte as pessoas não vão estranhar muito meu “look do dia”.
Quando Ian se apronta, me empresta um caderno e uma caneta e
então nós praticamente voamos com o carro até a universidade.
Chego atrasada em 10 minutos e o professor não alivia, me dando
uma bronca como se eu fosse uma criança. Taí o motivo de eu matar
tantas aulas, esse cara é um porre.
Depois da aula, nos encontramos com a galera na cantina e
começamos a falar sobre a minha festa de ontem.
Fico feliz em saber que todo mundo se divertiu também, além de
mim. Falamos sobre o coquetel delicioso, sobre quão bom estava o
bolo de chocolate e sobre a hora em que o Ian pulou na piscina e
saiu tremendo de frio, que foi muito engraçado.
Eles me contam os detalhes e bastidores de como é a correria de
montar uma festa surpresa em pouco tempo e ainda ter que fazer
isso tudo escondido de mim.
Até que Yuri repara na minha roupa.
—Amiga, que look é esse? Achei que aqui você só usasse calça
skinny, que nem suas amigas hétero.
Embora eu saiba disfarçar mentiras melhor que o Ian, odeio mentir
para os meus amigos, mesmo assim, respondo:
—Sei lá, deu vontade de vir assim hoje —finalizo com um riso
descontraído, que ele acompanha.
—Ah, inclusive, pega aqui sua roupa, amiga. Fiquei de te entregar
ontem —Morg me estende uma sacola que tirou da bolsa contendo
meu short e minha camiseta.
—Ah, valeu! —Eu agradeço.
—Inclusive, você deixou seu vestido lá em casa também, a gente
vai ter que passar lá depois —Ian relembra.
Nossa, é verdade! Na pressa eu acabei deixando todos os meus
outros pertences lá na casa da mãe dele.
—Ué, você não deixou a Bic na casa dela ontem? Como o vestido
dela ficou na sua casa? —Carol indaga e logo depois disso, um
silêncio mortal se instala entre nós seis.
Congelo. Meus olhos se arregalam e, quando olho para Ian, ele
está espelhando a mesma cara de criança que foi pega fazendo o
que não devia.
Em escala, cada um de nossos amigos vai juntando as peças
desse quebra-cabeças.
Pois é, eu não fui para casa ontem. Eu fui pra cama com o meu
melhor amigo.
Carol percebe a situação à medida que termina sua frase, e agora
nos olha, perplexa.
Pedro franze as sobrancelhas lentamente, confuso. Depois, de
uma hora para a outra, arregala os olhos.
O queixo de Yuri cai, mas ele rapidamente o ergue novamente
com um sorriso de lado e estreitando os olhos na minha direção.
Morgana olha para mim e levanta uma sobrancelha tão alta que
quase chega à linha do cabelo.
—Bic, eu vou ao banheiro —ela diz, se levantando da cadeira,
dando a deixa óbvia para eu segui-la.
—Uhum, eu vou com você —eu levanto também, seguindo-a até o
banheiro a passos rápidos.
32

Ian

“Eles não sabem sobre as coisas que fazemos”


They Don´t Know About Us-One Direction
Por que eu tive que abrir a boca?
É só que consigo pensar. Por que é que eu tive que abrir minha
boca grande?
Bic e Morgana mal saíram da mesa e as perguntas já começaram.
Carol também se levantou com uma cara meio estranha, mas
provavelmente foi atrás das meninas no banheiro.
É Pedro quem dá início ao tão temido interrogatório, depois de se
recuperar do choque.
—Só pra ficar claro então, você e a Bic tão transando agora?
—Não Pedro, imagina. Eles são claramente apenas amigos —Yuri
ironiza, revirando os olhos. —Olha, eu só queria dizer que eu SABIA
que isso ia acontecer em algum momento e eu sempre shippei.
Isso me arranca uma risada.
—Espera aí, então vocês tão namorando? —Pedro permanece
confuso.
—Caralho, Pedro! Passou na fila da burrice quantas vezes? —Yuri
se estressa.
—Vai à merda, Yuri! Nossos amigos começaram a namorar e não
contaram pra gente e sou eu quem você xinga? —Pedro retruca.
—A gente não tá namorando! —Eu intervenho.
—Ah, não. Não vai me dizer que o que vocês tão tendo é uma
amizade colorida.
Dou de ombros. Eu sei que esse conceito de amizade colorida
desagrada a Bic. Então, apenas respondo:
—O que temos não tem um nome, a gente só fica de vez em
quando.
—E fazem mais que ficar também, né? —Pedro cerra os olhos em
divertimento.
—Não, isso só rolou ontem —respondo.
—Tá, mas como isso aconteceu? Desde quando vocês dois tão
nessa?
—Acho que desde a semana seguinte àquela festa que eu dei.
—TUDO ISSO? ISSO JÁ TEM MESES! —Yuri exclama, mas está
exagerando.
—É… mas também não foi como se a gente tivesse marcado de
ficar, a gente tava na casa dela vendo uma série e aí, do nada, rolou
um clima e a gente se pegou.
— “Do nada rolou um clima? ”
—Sim! Não sei como provar minha inocência pra vocês. Eu não
ataquei a Bic, só… aconteceu —não consigo disfarçar tão bem meu
sorriso e é claro que eles percebem.
—E por esse seu sorriso enorme, dá pra ver que você nem gostou.
—Yuri diz, sarcástico, mas está sorrindo comigo.
Tudo parece meio incerto entre essa coisa que eu e a Bic agora
temos, mas de uma coisa que eu tenho certeza: não quero que
acabe tão cedo e, se depender de mim, o que aconteceu ontem não
vai ser caso de uma vez só.
Bianca
—Garota! Vocês estão zoando a gente? —Morgana praticamente
grita quando entramos no banheiro, depois, é claro, de conferir se
estamos sozinhas.
Não respondo, apenas aperto os lábios numa linha fina.
—Cara, como assim? Quando isso aconteceu? Melhor, como
aconteceu e desde quando???
—Tem umas semanas… —Começo a explicar, mas antes que eu
possa continuar, ela me atropela com suas palavras.
—SEMANAS? —Morg berra. —Você e o Ian começam a namorar
e escondem isso da gente esse tempo todo? Quantas semanas
exatamente?
—Eu sei lá, Morgana! E a gente não tá namorando, ficou louca?
—Ah, não? Estão o que, então? “Ficando sério? ”
—Pelo amor de Deus, não! Eu e o Ian somos…
Não sei o que somos. Nem sei se há um termo sério que resume
nossa relação.
—O que temos não tem nome. A gente só fica de vez em quando.
É isso —concluo, mas ela não parece satisfeita, sua sobrancelha
continua erguida.
—Vocês são exclusivos?
—Acho que sim.
—E continuam amigos?
—Claro.
—ISSO É FICAR SÉRIO, BIANCA! Vocês têm a cumplicidade, a
amizade, o principal, que é a pegação, e não ficam com mais
ninguém! Isso é o mesmo que namorar!
—Ai, tá vendo? É por isso que a gente não contou pra vocês! Você
não entende! —Cruzo os braços e encosto as costas na parede do
banheiro.
—Nossa. Legal, essa doeu. Não confia nos seus amigos, então?
—Não! Não foi isso que eu quis dizer.
Um silêncio se ergue entre nós. Que estresse! Me sinto péssima,
não queria discutir, principalmente sobre um tema tão bobo e
insignificante como este. Parecemos duas adolescentes do ensino
médio, brigando. Quando os ânimos parecem se acalmar, eu
declaro:
—Olha, eu amo e confio em vocês, vocês são os melhores amigos
do mundo inteiro. Mas essa coisa entre o Ian e eu é muito
complicada pra explicar, por isso a gente achou melhor não contar
pra ninguém.
Morgana responde com um sorriso compreensivo e diz que
entende, mas não me convence.
—Que cara é essa, Morg? Você desaprova?
—Não! Claro que não, eu adoro vocês dois e acho que juntos,
combinam muito. Mas… pelo amor de qualquer coisa, Bic, promete
pra mim que se não der certo, vocês vão ser civilizados e ficarão
numa boa. Porque se vocês separarem o nosso grupo, aí sim eu vou
ficar brava.
—Relaxa, a gente vai se entender.
Se não der certo. Só de imaginar, sinto meu estômago embrulhar.
Não sei se estou preparada para pensar nisso agora.
—Eu sempre soube que você queria pegar ele, você não me
engana, Bianca Bellini. —Morg diz, depois de um tempo, também
encostando na parede, ao meu lado.
Reviro os olhos à menção de meu sobrenome, mas sorrio.
—E você ainda não me contou como isso aconteceu. Vai, fala! Eu
quero saber tudo!
—Ele foi lá em casa um dia, depois daquela festa. A gente tava
vendo uma série e…
—E vocês se atracaram como dois animais selvagens.
—Não! —Explodo em uma gargalhada. —Foi só um beijo.
—E você gostou só um pouco, né? —Ela ironiza.
Meu sorriso aumenta.
—Ai Morg, se você soubesse o quanto foi bom… e ontem, então…
—Não preciso, poupe-me dos detalhes sórdidos.
Nós rimos, mas então ela volta com aquela expressão séria e
preocupada no semblante.
—Ei, —ela me cutuca com o ombro —você tá feliz?
O sorriso enorme que cresce no meu rosto é involuntário.
—Tô.
—Então, eu tô feliz também. Por vocês dois. Só toma cuidado, tá?
Sei que esse negócio de uma noite só não funciona muito bem pra
você, garanta que vocês dois estão na mesma página.
—Pode deixar, mamãe —provoco, e ela ri.
33

Ian

“Fique um pouco mais, fique um pouco mais


Fique aqui comigo
Eu gosto mais de mim quando estou com você”
I Like me Better-Lauv
—É. Eles sabem agora —Bic faz a constatação quando entra e
bate a porta do meu carro.
—Pois é.
—Os meninos te interrogaram também? —Ela quer saber.
—Um pouco. E a Morg e a Carol? Ficaram muito bravas por a
gente não ter contado?
—Eu não falei com a Carol, mas a Morg ficou um pouco chateada,
sim. Já tá tudo bem agora, ela só mandou a gente ter juízo e estar
sempre nos mesmos termos.
—É a mãe do grupo —eu brinco.
Bic ri.
—É, mas ela tá meio certa. Tem umas coisas que a gente
esqueceu de conversar.
—Tipo o que? —Eu franzo o cenho, preocupado.
—Tipo, você tá ficando com mais alguém além de mim?
—Claro que não. E se tivesse, você seria a primeira a saber, como
sempre.
—É, foi o que eu pensei —ela responde, ao ouvir meu tom
ofendido não intencional.
Um silêncio se cai sobre nós enquanto eu me preparo
psicologicamente para quaisquer eventuais respostas antes de
lançar a pergunta:
—E você?
—Eu não —Bic responde sem hesitar, e eu não sei explicar o
quanto fico aliviado.
—Beleza, então tá resolvido.
Saio com o carro do estacionamento, quando chegamos à casa
dela, Bic diz, soltando o cinto de segurança:
—Quer vir aqui em casa hoje à noite? Pra devolver meu vestido?
—Só pra devolver o vestido?
—Pra isso e pra outras coisas também. Pro que você quiser —ela
sussurra a última parte, aproximando o rosto do meu. Mas antes que
eu possa minimizar esse espaço com um beijo, ela se afasta.
—A gente se vê —se despede, alcançando a maçaneta da porta.
Mas eu sou mais rápido, e tranco o carro antes que ela possa sair.
Puxando-a pela cintura, trago-a para o meu colo e tomo sua boca
com um beijo voraz, que a faz soltar um gritinho.
Depois de conseguir meu beijo, eu a solto e finalmente respondo,
sussurrando contra seus lábios:
—A gente se vê.

A gente não se viu. Naquele dia, eu fui chamado para uma reunião
de pais no colégio da Sophia. Depois do episódio com aquele garoto
no estacionamento, o pirralho contou à mãe sobre o que aconteceu e
ela fez um escândalo enorme na escola. Por isso, a diretora chamou
os pais do garoto, que eu descobri que se chama João Vitor, os pais
da Sophia e eu, o vilão, para uma conversa.
Os dois já são de turmas diferentes, então o que ficou resolvido foi
que a Sophia e o tal João Vitor estudariam em turnos separados, ela
de manhã e ele, à tarde. A diretora garantiu que o discurso anti-
bullying é muito defendido pela instituição e que repudia esse tipo de
comportamento. João Vitor pediu desculpas para minha irmã e ficou
por isso mesmo. Eu não pedi desculpas a ninguém, e nem teria feito
se me solicitassem. É claro que a minha vontade era que o moleque
fosse expulso da escola, e esperava até receber um olhar de
desaprovação e talvez mais um esporro do meu pai, mas fiquei
surpreso quando, depois que saímos da sala da coordenação, ele
me olhou com uma certa admiração no olhar.
—Olha, meu filho, eu não posso dizer que estou orgulhoso por
você ter ameaçado uma criança que tem menos da metade da sua
idade e tamanho... —Ele me disse, quando andávamos em direção
ao estacionamento. —Mas eu fico feliz que você tenha defendido a
sua irmã.
Não estou acostumado com isso. Aquela aprovação partindo dele,
aquele olhar. Não soube nem como responder. Fiquei em silêncio,
mas deixei aquele sentimento estranho marinar dentro de mim.
34

Bianca

“Somos duas pessoas pequenas


nesse grande e velho mundo [...]
Levo você comigo porque se eu não tenho você,
então eu não tenho nada”
Weak When ur Around-Blackbear
Às nove da manhã do sábado, Ian buzina com o carro tão alto que
consigo ouvir do 12º andar do meu prédio.
Termino de passar o protetor solar no meu rosto e confiro no
espelho a combinação de short jeans claro, camisa larga cinza com
estampa da banda Queen por cima do biquíni preto. Jogo minha
mochila para trás do ombro e pego o elevador.
Quando entro no carro, Ian sorri para mim, mas não diz nada, só
aponta com o dedo para o próprio rosto, sinalizando um pedido de
um beijo na bochecha. Eu me aproximo, mas no último segundo ele
vira o rosto e me beija nos lábios. Eu sorrio sem me conter e ele,
com um um sorriso convencido no rosto, finalmente me dá bom dia.
Eu correspondo e logo depois, ele me agarra pela nuca e me puxa
para perto novamente num beijo urgente cheio de saudade.
Passar esses quase dez dias sem vê-lo foi difícil, confesso. Com a
chegada da semana de provas, nós mal tivemos tempo de nos
encontrar. Mas isso não quer dizer que eu não tenha passado essa
semana inteira sem pensar nele porque, mesmo contra minha
vontade, ele não saía da minha cabeça.
Senti muita saudade, mas prefiro acreditar que isso se dá ao fato
de que agora estamos nos vendo com bem mais frequência que
antes, então é normal. É normal.
Ele manobra o carro e nós saímos da entrada do meu prédio e
pegamos a estrada, seguindo até o interior, onde fica a casa de praia
do pai dele.
Combinamos que eu vou tomar conta da trilha sonora da ida e ele,
a da volta. “Weak when ur around” do Blackbear, “Sit next to me” de
Foster The People, também “Me namora” do Natiruts e “Lança
Perfume” da Rita Lee, além de outras músicas que estranhamente
me remetem a esse clima de verão, estão na playlist.
Eu canto alto, animada. Ponho a mão para fora da janela sentindo
o vendo correr violentamente contra minha pele e, mesmo com a voz
horrível e desafinada que eu tenho, Ian não parece se incomodar,
lança olhares em minha direção vez ou outra e sorri e eu preciso
ignorar meu coração saltando todas as vezes.
Uma hora e meia de viagem depois, chegamos na casa. Entramos
pela grande porta de madeira que não parece tão grande agora que
eu cresci, o que só evidencia quanto tempo nós não vínhamos aqui.
Basicamente desde que Ian e seu pai pararam de conviver juntos.
Há muito tempo, meu pai vendeu o terreno que também tinha aqui
perto, quando eu tinha mais ou menos 4 anos. Quando ele e minha
mãe começaram a brigar. Então, eu frequentava a casa do Tio Bento
e da Tia Débora, até que eles se separaram e Ian parou de vir e,
consequentemente, eu também.
Encontramos na sala de estar o pai dele conversando com uma
senhora baixinha. Tio Bento levanta os olhos quando nos vê e seu
rosto se ilumina, ele nos cumprimenta e apresenta à cozinheira.
—Finalmente chegaram! A Sophia e a Sandra estão na praia —
ele diz. —Eu tô combinando o almoço aqui com a Mazé, vão lá
encontrar com elas enquanto isso. Eu já vou!
—Tá, a gente só vai deixar as coisas nos quartos… —Ian começa
a falar, mas eu o interrompo.
—Não! Isso a gente faz depois, vamos logo pra praia! —Sua cara
fechada se transforma num sorriso ao ver meu entusiasmo. Nós
largamos as mochilas no sofá e ele me deixa puxá-lo pelo braço até
a areia.

Ian
Bic entra na água direto. É incrível ela não tomar um choque
térmico no processo. Sua alegria é tão contagiante que ela parece
uma criança que nunca viu água na vida. E falando em criança,
Sopa, usando uma boia em cada braço rechonchudo e o rosto inteiro
branco de protetor solar, corre em direção à ela dando gritinhos de
felicidade ao nos ver chegar.
Eu sento na areia, debaixo do guarda-sol com Sandra. Depois de
algum tempo, ela me pergunta se eu quero entrar na água, mas eu
nego, me contento em ficar olhando daqui, Bic e seu sorriso gigante,
o cabelo molhado caindo nas costas, a água escorrendo por seu
corpo…
—Quer jogar? —Meu pai aparece de repente, me tirando de meu
devaneio, de calção e duas raquetes de madeira nas mãos.
—O que é isso? —Eu pergunto, fugindo da resposta, sabendo
muito bem reconhecer as raquetes de frescobol.
—Bora! Vamos ver se você consegue deixar a bola no ar por mais
de duas tacadas.
Isso é um golpe baixo, eu não jogo há muito tempo. Até porque eu
só jogava com ele, quando era moleque. Mas mesmo assim, eu cedo
à provocação e me levanto da canga de praia.
Meu pai me entrega uma das raquetes e dá a primeira tacada, eu
consigo rebater, ele joga de volta para mim e mais uma vez eu
sustento.
Na terceira tacada, ele joga alto demais, mas percebo que é de
propósito, ele quer me desafiar. Eu ando para trás a passos curtos e
rápidos, com os olhos na bolinha vermelha flutuando e,
surpreendendo nós dois, eu não a deixo cair, jogando para ele numa
tacada até que favorável.
Meu pai abre um enorme sorriso.
—Boa!
E aí está, mais migalhas de aprovação paterna.
Por algum motivo, isso causa um efeito certeiro em mim pois, sem
conseguir me conter, eu sorrio de volta e me sinto agarrado a esse
sentimento adormecido por tanto tempo dentro de mim mesmo.
Jogamos por mais algumas partidas, mas mesmo com minha
estreia promissora, eu ainda estou muito enferrujado com a falta de
prática. Nosso recorde é de 6 raquetadas antes da bola cair na areia
e ir rolando até a parte rasa do mar.
Engolindo meu orgulho, admito que me diverti bastante jogando
com meu pai, como não fazia há muito tempo. É a porcaria do
sentimento nostalgia, tenho certeza.
Saímos da praia e voltamos para a casa para almoçar. Mazé
preparou um salmão com molho de alcaparras, purê de batatas e
uma salada, que estavam uma delícia e fiz questão de elogiar.
A tarde rapidamente chega, eu e Bic colocamos nossas coisas em
nossos respectivos quartos. Ela escolheu o melhor quarto, o com
vista para o mar, paredes em tons de azul escuro e com uma âncora
de madeira logo acima da cabeceira da cama de casal. Eu fiquei com
o quarto amarelo e branco, decorado com um timão de madeira
gigante pendurado na parede. Meu pai e Sandra ficaram com o
quarto azul claro de estrela do mar e Sopa com o quarto coral com
decoração de cavalo marinho.
O pôr do sol está quase se aproximando, e para mim, essa é a
hora perfeita para pegar uma praia. Sem o sol forte para queimar a
pele e menos gente na areia, apenas o som das ondas quebrando e
o céu laranja contrastando com o azul do mar. Perfeito.
Do lado de fora da casa, olho para cima e, na varanda do quarto
do andar de cima, vejo Bic escorada no parapeito. Ela percebe
minha presença, olha para baixo e sorri. Sorrio de volta.
—Já viu a praia secreta que tem aqui? —Pergunto.
—Secreta? —Seus olhos brilham em curiosidade.
—Vai deixar de ser agora. Quer ir lá conhecer?
—Agora! —Seu sorriso aumenta ainda mais e ela some da
varanda. Escuto seus pés batendo nos degraus da escadaria de
madeira enquanto ela desce, vindo me encontrar.
35

Bianca

"Não há nada como fazer nada com você. ”


Nothing-Bruno Major

O caminho até a tal praia é secreto desde o início. Tivemos que


escalar as enormes pedras cobertas por algas ao redor da praia
principal e entrar por trás de um monte de mato para, enfim, seguir
caminho por entre as rochas.
Apesar de ter cortado o pé quase três vezes no processo e do
calor não ajudar mesmo sendo cinco da tarde, a vista faz tudo valer a
pena. O litoral da praia com um mosaico de diferentes guarda-sóis
coloridos cobrindo toda a extensão da areia e os barquinhos de
pescadores locais no meio do mar, criam uma paisagem tão linda
que eu me arrependo de não ter trazido meu celular para capturar
isso com uma foto.
Ian vai andando na minha frente, e já posso perceber que a
caminhada até a praia é longa, pois não vi um grão de areia até
agora, tudo o que eu vejo na minha frente são as enormes rochas do
litoral por onde vamos andando, alguns cactos e um mar violento.
Mas acho que faz sentido, não seria uma praia secreta se fosse fácil
de achar, por isso, eu vou seguindo absorvendo cada pedaço do
horizonte diante de mim.
Percebo que as pedras gigantes em que andamos possuem várias
cores em sua extensão, incluindo manchas.
—O que são essas coisas, Ian? Fungos? —Resolvo perguntar ao
especialista, apontando para o chão.
—São líquens.
—Sério? Achei que essas coisas só davam em árvores.
—Na verdade eles são de origem marinha mesmo, uma mistura de
fungos e algas. Mas eles conseguem sobreviver em vários
ambientes.
E o lado biólogo do Ian vem à tona.
—E o que eles fazem? —Eu pergunto.
—Eles servem de alimento pra alguns animais e também pra
indicar se um ambiente está poluído. São bioindicadores de poluição.
Sorrio. Ele é tão inteligente. Eu adoro ouvi-lo falar.
—Então quer dizer que quanto mais líquens uma árvore, por
exemplo, tiver…
—Mais limpo é o ar daquele ambiente. É… pode-se dizer que sim
—ele completa.
—Isso é muito legal! —E é mesmo.
O sorriso que ele abre ao me ouvir dizer isso, não tem preço.
Andamos mais um pouco e eu encontro mais coisas no caminho
que podem fazer o biólogo me dar mais aulas grátis.
—Um caranguejo! —Eu pareço uma criança, mas vale a pena se
ele está sorrindo assim para mim.
—Ah, é! Um caranguejo amarelo.
—Me fala sobre ele.
Ele ri suavemente, antes de começar a discorrer sobre o animal.
—Bom, ele é um crustáceo. Desova no mar, apesar de ser
terrestre, e come filhotinhos de tartarugas.
—Não! —Eu arquejo. —Pobres tartaruguinhas.
—Pois é. E essa espécie de caranguejo corre perigo, infelizmente.
—É o carma —comento.
—Você acabou de chamar a cadeia alimentar e o ciclo evolutivo de
carma? —Ian questiona, pasmo.
—Foi mal, professor.
E com isso, ele ri.
Em dado momento, depois de mais alguns longos minutos,
subimos em mais uma rocha e lá do alto, Ian anuncia que chegamos.
Quando o alcanço, quase perco o ar. O céu aqui parece ainda
mais azul e a água do mar é de um tom verde escuro-azulado
impressionante. Saio correndo pelo caminho que se abre entre a
vegetação e percebo, ao tocar com os pés no chão, que até a areia
daqui é diferente, mais grossa.
E de fato, só há nós dois aqui. Eu sei que essa parte da praia não
deve ser tão desconhecida assim, mas demos a sorte de encontrá-la
vazia.
Ian corre atrás de mim e me agarra pela cintura. Solto um gritinho
bem ridículo e quando ele me põe de volta no chão, não perco tempo
para encontrar um lugar na areia longe do alcance das ondas para
deixar minha blusa e os chinelos e corro direto para o mar. Ele me
acompanha e, no instante em que a água toca nossos pés, soltamos
um palavrão alto e em uníssono.
—Puta que pariu! A caminhada foi longa, mas eu não achei que a
gente tivesse andado o suficiente pra chegar na Antártida! —Eu
exclamo.
—Sem chance de eu entrar aí. Tá muito gelada, Bic. Vamos voltar.
—Não! Ficou louco? A gente andou quilômetros até aqui, vamos
pelo menos dar um mergulho, vem!
E assim, vamos entrando no mar, que parece congelar cada
centímetro de nossa pele e órgãos internos. Quando o nível da água
bate na minha barriga, contamos até três e mergulhamos juntos. Ao
subir à superfície, me sinto naqueles desenhos animados em que o
personagem cai na água fria e volta dentro de um cubo de gelo.
Instintivamente, me agarro à cintura de Ian, o abraçando forte,
buscando seu calor. Infelizmente, ele está tão gelado quanto eu, mas
a sensação de seu corpo e seus braços firmes ao meu redor me
tiram de qualquer agonia e eu sinto mais uma vez aquela sensação
levemente assustadora de pertencimento.
36

Ian

“Seu corpo é um problema


Me deixe estudar,
ter algum conhecimento de você. ”
10,000-PRETTYMUCH
—A gente não pode fazer isso aqui.
Depois de quase congelar no mar, nós nos deitamos em uma
rocha onde as ondas batem, escondidos por uma outra rocha
grande. As ondas se chocam contra a pedra, fazendo a água subir
como um chafariz em nossa direção. Uma vista realmente linda.
—Por que não? —Eu pergunto, mordiscando seu pescoço.
—E se alguém vir a gente aqui? —Bic geme.
—Não tem ninguém aqui —eu deslizo os dedos pelo fio de seu
biquíni. —Além do mais, quem liga pro que os outros vão pensar?
—Eu ligo quando quando a gente pode ser preso por atentado ao
pudor! —Ela responde me olhando e percebo que mesmo falando
sério, há um brilho divertido e perverso em seu olhar.
Eu respiro fundo e recolho as mãos de seu corpo porque, mais
uma vez, ela está certa. Essa praia é isolada, mas não é como se
ninguém soubesse de sua existência.
—Por que a gente se importa com o que os outros vão pensar da
gente, hein? —Pergunto depois de um tempo e Bic vira a cabeça em
minha direção franzindo o cenho. —Tipo, de um modo geral, porque
os seres humanos têm medo de julgamento?
—Você quer uma resposta pessoal ou científica?
—Científica, é claro.
Eu sempre vou querer a resposta científica. Ela sorri.
—A gente tem medo de julgamento porque sabe que a gente
também julga. Então, tecnicamente todo mundo pode julgar todo
mundo. E as pessoas são imprevisíveis, isso dá um medo danado na
gente.
—E por que a gente julga as pessoas?
—Porque faz parte da nossa natureza, da nossa inserção no meio
social —ela começa a usar os termos apropriados da psicologia e eu
me empolgo, como se em seguida, ela fosse dizer algo que possa
mudar minha vida. E pode mesmo.
—Nós colocamos pessoas em caixinhas porque precisamos
colocar uma ordem no mundo. A gente precisa sentir que tem
controle sobre o que acontece, é quase involuntário. Nós sempre
buscamos essa sensação de controle porque o controle nos traz paz
—Bic estende os braços, gesticulando ao explicar. —Quando alguém
julga você, não é sobre você, é sobre ela. É sobre o que essa
pessoa precisa fazer dentro da cabeça dela e como ela precisa
encaixar você em algum lugar pra que não se sinta perdida,
entende?
Nossa, ela é tão inteligente. Tudo sobre o que ela fala e como ela
fala, me fascinam. Bic fala com segurança e propriedade e dá para
ver o quanto poderia ficar horas falando sobre cada assunto. E eu
facilmente passaria essas horas olhando e escutando ela.
—O que alguém diz sobre o outro, diz mais sobre esse alguém,
que sobre o outro —eu completo.
—Exatamente —ela se vira para mim e trava sob meu olhar. Será
que ela vê o que se passa na minha cabeça agora? Ela me encara e
eu encaro de volta, numa intensa troca de olhares.
Quando eu penso que ela vai se aproximar para me beijar, ela
suspira e exclama de repente:
—Para de me olhar assim! —E vira o rosto para frente.
—Assim como? —Eu pergunto, sorrindo ao ver suas bochechas
corarem.
—Assim! Me desconcentra, para!
—Tá bom, vou parar —só não consigo parar de sorrir. Volto o rosto
na mesma direção que ela virou e encaro o céu azul acima de
nossas cabeças.
—Você acredita no céu? —Pergunto, depois de um tempo.
Ela solta uma risada pelo nariz. Nunca se acostuma com minhas
perguntas aleatórias repentinas.
—O céu tipo essa coisa grande e azul que na verdade não é de
fato azul ou no céu espiritual? Estamos falando filosoficamente ou
cientificamente agora?
—Filosoficamente —não quero a resposta científica, dessa vez. —
Você acha que existe um paraíso?
—Acho. Quer dizer, tem que existir, né? Senão, nada valeria a
pena —é sua resposta.
—Isso tem a ver com aquela história de colocar sentido no
mundo?
—Também. Mas eu também não acredito em inferno.
Isso aguça minha curiosidade.
—Não?
—Não —ela afirma. —Eu acho que tudo de ruim que a gente tem
que passar na vida, a gente passa aqui.
—O inferno é a terra, então? —Pergunto.
—Acho que sim. Por isso é que dizem que vaso ruim não quebra,
as pessoas ruins passam mais tempo vivas pra se redimir dos
pecados delas.
Cacete.
Vinte anos, duas décadas de convivência e ela nunca para de me
surpreender.
Encaro seu rosto e cada detalhe dele que eu nunca parei para
absorver tão de perto antes. As sardas que agora estão mais
aparentes depois de expostas ao sol, o nariz arrebitado, os lábios
rosados, e toda perfeição de seu perfil, enquanto ela fecha os olhos,
absorvendo com seus sentidos a brisa do mar.
A brisa se transforma numa rajada de vento frio de fim de tarde.
Bic franze as sobrancelhas e, ainda de olhos fechados, se aninha
para mais perto de mim em busca de calor e, neste momento, eu
acho extremamente difícil acreditar na teoria que ela levantou.
Com ela aqui em meus braços, é impossível crer que o paraíso
não seja aqui mesmo.

Apostamos uma corrida de volta à casa, pegando uma trilha de


terra entre a vegetação. Bic chega primeiro, mas fui eu que a deixei
ganhar, é claro. Estava ocupado admirando a vista, e não é ao litoral
que estou me referindo.
Comemos pizza caseira assada no forno à lenha. Eu e Sopa
orgulhosamente devoramos 4 pedaços cada, os outros na mesa se
contentaram com apenas 2. Perdedores.
Depois do jantar, meu pai dá ideia de jogarmos algum jogo de
tabuleiro e eu entro no pequeno escritório no segundo andar para
procurar algum dominó ou tabuleiro de damas entre as prateleiras
empoeiradas.
Como tem muito tempo desde que venho aqui, demoro um pouco
até me lembrar onde fica cada coisa.
Minhas mãos esbarram em um calhamaço de folhas plastificadas.
Seguindo minha curiosidade, puxo o maço para baixo e percebo que
se trata de um álbum de fotografias. Contendo muitas fotos, muitas
mesmo. Fotos de paisagens, fotos minhas de quando era bebê, fotos
dessa casa, fotos do mar, fotos de pessoas na praia.
Foi minha mãe quem tirou essas fotos? Por que será que estão
aqui?
Talvez notando minha demora, meu pai aparece no cômodo e logo
repara no conteúdo de minhas mãos.
Eu fecho o álbum rapidamente como se tivesse sido pego fazendo
algo errado.
—Tudo bem, pode ver —ele diz, erguendo a mão.
—De quem é isso? —Eu pergunto.
Ele me surpreende com a resposta.
—Era do seu avô.
Volto novamente os olhos às páginas em meu colo. De repente,
passo a ver as fotos com outros olhos.
Eu não conheci bem o meu avô. O pai do meu pai morreu quando
eu tinha uns 3 anos, por decorrência de um AVC.
—Não sabia que ele fotografava —comento.
—Pois é, ele adorava isso. Sua mãe comprou pra ele uma câmera
de presente uma vez e ele ficou alegre igual a uma criança.
—Foi com essa câmera que ele tirou essas fotos?
—Provavelmente. Esse era o verdadeiro sonho dele, eu acredito.
Quando podia sair do escritório e vinha pra essa casa fotografar, era
quando ele realmente ficava feliz —meu pai faz uma pausa. —Você
lembra de quando ele morreu, filho?
—Não. Acho que eu era muito novo.
—É, foi um pouco traumático também. Quer dizer, ele já era velho,
mas… ele morreu no escritório, trabalhando.
Eu sei que meu avô nunca se aposentou mesmo sendo um
empresário de sucesso e aparentemente ele não gostava tanto
assim do trabalho, mas não sabia que sua morte teve essas
circunstâncias. A descoberta mórbida me causa um leve espanto.
—Por que ele nunca se aposentou? —Pergunto pela primeira vez.
—Acho que era porque ele gostava de estar sempre sob controle
da empresa. Ele era muito perfeccionista e até um pouco controlador,
por isso eu nunca quis trabalhar com ele também.
Que ironia, pensei. Estou começando a reparar num padrão de
comportamento nesta família.
—Deve ser horrível morrer trabalhando com algo que odeia. —
Murmuro quase para mim mesmo, mas percebo que essas palavras
se conectam totalmente com a discussão que tivemos naquele jantar,
semanas atrás.
—É. Pior do que isso é colocar esse trabalho acima da família e
perder tempo com quem a gente mais ama… —Ele murmura de
volta, mas parece falar consigo mesmo também.
Acho que também há uma ironia aí.
Passo as páginas mais lentamente, sem coragem de encarar os
olhos do homem parado na porta e ignorando o que suas palavras
me causaram.
Até que dou de cara com uma foto amarelada do meu pai me
segurando no colo, na praia. Eu tinha os cabelos quase loiros e ele,
mais escuros. Na foto, meu pai está olhando para mim com um
sorriso enorme no rosto e eu estou olhando para a câmera, rindo de
algo, mostrando os poucos dentes da boca.
Quando levanto os olhos, percebo que ele também está vendo a
foto. Meu pai parece não ter mudado muito, mas o contorno dos
olhos castanhos, como os meus, agora tem mais rugas e os cabelos
crescem brancos atrás das orelhas. Como saímos da dupla
sorridente da foto para os estranhos dentro desse cômodo agora?
Ele respira fundo e desgruda os olhos da foto, estica o braço e
puxa do suporte da parede um violão.
—Vem, acho que o tabuleiro não tá aqui.
E sai do escritório deixando a porta aberta.
37

Bianca

“Quando a gente conversa


contando casos, besteiras
Tanta coisa em comum deixando escapar segredos [...]
E nessa novela eu não quero ser seu amigo”
Preciso Dizer Que Te Amo-Cássia Eller
Eu me surpreendo quando Ian e seu pai retornam à sala de estar
com um violão e não com os jogos de tabuleiro, mas música é
sempre bem-vinda.
Ian se senta no assento abaixo da janela enorme da sala de estar.
Seu pai lhe entrega o violão com um sorriso contido, enquanto se
acomoda numa poltrona ao lado de Sandra. Meu amigo hesita um
pouco com o instrumento nas mãos, mas depois, o acomoda no
corpo e começa a dedilhar as cordas. Então, como se tivesse
tomado uma decisão, inicia uma melodia.
Eu percebo um sorriso no rosto do tio Bento se abrir, mas não
reconheço a canção de primeira.
Os dois começam a cantar a música juntos e quando o refrão
começa a surgir, finalmente eu identifico qual é. Garotos, do Leoni.
Eu lembro que o Ian costumava cantarolar essa música o tempo
inteiro, mas isso tem muito tempo. O sorriso que Bento abriu ao
reconhecer a melodia e o jeito como os dois cantam, indica que essa
música é uma das poucas coisas que têm em comum e é comovente
ver essa conexão ser lentamente restabelecida, mesmo que só por
esse momento, durante essa canção.
Eu e Sandra acompanhamos o dueto batendo palmas e eu não
consigo tirar os olhos do garoto com o violão. Ele canta bem,
também. E fica lindo tocando. Que droga, ainda tem isso. Eu estou
mesmo ferrada.
Quando a música acaba, Ian abaixa a cabeça, quebrando o
contato visual com o pai, talvez tentando fugir do brilho que encheu a
visão do mais velho com lágrimas.
—Aceito sugestões —Ian sorri sem jeito, dando a deixa para
pedidos de próximas músicas. Eu ainda estou me recuperando do
que sua voz cantando fez comigo. Sandra pede Alice, de Kid Abelha.
Ela, Ian e seu pai cantam juntos.
—Caramba, essa é muito antiga! Não achei que você conhecesse
—ela diz, quando a música termina. Ian apenas dá de ombros, mas
está claro que todo esse repertório de MPB dos anos 80, ele herdou
do pai. O impressionante é ele ainda lembrar da letra e dos acordes.
Me pergunto se ainda pratica as canções ou se ele se distanciou
disso também.
—O nome da Sosô ia ser Alice, por causa dessa música —Bento
diz.
Ian sorri.
—Eu prefiro Sophia! —A pequena se manifesta pela primeira vez,
quando achávamos que ela já havia adormecido na poltrona.
—E eu prefiro Sopa! —Ian diz, e todos damos risada.
Ele segue com a coletânea de músicas brasileiras retiradas
diretamente do fundo do baú. Com Paralamas do Sucesso, Rita Lee,
Skank, Paula Toller, Cássia Eller e agora, Cazuza. Mais
especificamente, Preciso dizer que te amo.
Dessa vez, eu canto junto. Baixinho, tentando não estragar a
canção com minha voz que nem se compara à dele. Percebo só no
meio da canção, que estamos olhando um para o outro enquanto
cantamos.
“E nessa novela eu não quero ser seu amigo
É que eu preciso dizer que te amo, te ganhar ou perder, sem
engano
Eu preciso dizer que te amo, tanto. ”
Uma onda de calor sobe pelo meu pescoço e felizmente, a música
acaba logo, então eu viro meu rosto para o outro lado, tentando
esconder a vermelhidão das minhas bochechas.
—Bom, acho que deu nossa hora, né, meu bem? Vamos dormir?
—Bento pergunta à esposa.
—Sim. Vamos Sophia?
—Eu não tô com sono. Quero ver filme! —Sopa protesta.
—Filhinha, já tá tarde —seu pai diz.
—A gente fica pra ver o filme com ela —eu sugiro.
—Eba!
O casal não tem motivos para deixar a menina ficar acordada até
tarde num final de semana, então se retiram da sala juntos.
Ian pousa o violão na parede e pega Sopa no colo de surpresa, ela
dá um gritinho seguido de risadinhas estridentes quando ele a joga
por cima do ombro, enquanto nos dirigimos ao sofá.
Já que Sophia é, obviamente, quem manda nessa família, é ela
quem escolhe o filme. Só que Ian já passou pelo catálogo da Netflix
kids quase inteiro, e ela não se interessou por nada. Quase me
ofende essa criança ser tão pouco entusiasmada com filmes de
animação.
—Por que a gente não vê o Homem-Aranha? —Eu sugiro.
—Que filme é esse? —A loirinha pergunta.
—É sobre um garoto que é mordido por uma aranha, vira super-
herói e salva a cidade do mal.
Essa é a pior sinopse que eu poderia dar sobre um dos melhores
heróis da Marvel, mas por algum motivo, Sopa parece ter se
encantado com ela mesmo assim, pois seus olhos brilham e ela
decide:
—Gostei! Vamos ver esse!
—Bic, eu tenho quase certeza de que esse filme não é pra criança.
—Ian me alerta.
—Mas eu quero! A gente vai ver esse! —Sopa protesta e sua
ordem é facilmente acatada.
Assistimos ao primeiro filme do Espetacular Homem-Aranha,
porque o melhor Homem-Aranha é o do Andrew Garfield. Ou, pelo
menos, é o mais gato.
Surpreendendo a nós dois, a garotinha no meio do sofá sentada
entre mim e seu irmão, assiste o filme inteiro, sem nem cochilar.
Quando o filme acaba e ela descobre que há uma continuação,
aponta para a tevê exigindo que Ian selecione o próximo filme da
duologia, mas nesse ela não aguenta e dorme encostada no ombro
do irmão mais velho.
Ele sorri e a pega nos braços, pede para que eu pause o filme
enquanto leva a menina para o quarto no andar de cima.
Quando retorna, Ian pula no sofá e se senta ao meu lado. Sem
perder tempo, ele puxa meu rosto contra o seu e me beija com
vontade.
—Menta —ele sussurra, sorrindo contra meus lábios depois de
provar o sabor do hidratante labial que passei quando saí do banho.
Eu sorrio de volta. Puxo seu rosto para perto de novo e, mais uma
vez, estamos nos agarrando num sofá, mas esta vez é bem diferente
da primeira. Não estamos explorando ou descobrindo atração
nenhuma, estamos nos aproveitando dela. Ian sabe exatamente
onde e como me tocar e eu sei o que fazer para ouvi-lo soltar
aqueles grunhidos baixos que me fazem arrepiar por inteiro.
Agarro seus cabelos, deslizando as unhas sobre seu couro
cabeludo e quando ele desce com beijos molhados até meu
pescoço, eu não resisto e deixo um gemido escapar. Imediatamente,
tapo a boca com a mão.
Droga, a Sandra e o Bento podem estar acordados ainda. Sinto
Ian sorrir contra minha pele, mas não para o que está fazendo e eu
volto a amolecer sobre seu toque.
Ele desliza lentamente a mão envolta da minha cintura e sobe até
meu peito, por baixo da blusa. E fica cada vez mais difícil não emitir
nenhum som.
—Ian… —Era para ser um sussurro, mas sai como um
choramingo.
Ele responde colando os lábios nos meus, num beijo ainda mais
quente, lento, intenso…
Sua mão massageia a ponta do meu seio sensível e eu começo a
me contorcer. Preciso de mais, ao mesmo tempo que preciso que ele
pare. Alguém pode muito bem aparecer aqui nesta sala a qualquer
momento e a última coisa que eu quero é que o homem que me
segurou quando eu era bebê e que eu tenho como um tio, me veja
com seu filho, arrancando minha roupa no sofá de sua casa. Acho
que eu nunca mais seria capaz de olhar nos olhos do tio Bento se
isso acontecesse.
Ian desce a mão mais uma vez, agora parando com os dedos sob
o elástico do meu short de moletom.
—Ian…
—Hum? —Sua voz sai abafada contra meu pescoço.
—Se o seu pai aparecer aqui…
—Ele não vai aparecer aqui —ele diz, enquanto volta a deixar
beijos pelo meu maxilar. E eu arfo mais uma vez, deitando a cabeça
para trás, no encosto do sofá, mas não estou convencida, uma parte
de mim ainda está tensa.
Envolvo meus dedos em volta de seu pulso, sua mão ainda segura
a barra do meu short. E ele para tudo o que está fazendo. Era isso
que eu queria, mas ao mesmo tempo, não é isso que eu quero. Meu
peito sobe e desce e meu coração bate a milhões por hora.
—Quer que eu pare? —Ele pergunta, sussurrando no meu ouvido.
Correntes elétricas passam pelo meu corpo e eu só consigo
responder balançando a cabeça, negando.
E então ele volta a me provocar, mordisca meu pescoço e orelha
enquanto sua mão atravessa o espaço entre minha pele e a calcinha.
Eu arfo e solto gemidos, porém mais baixos desta vez.
Minhas pálpebras se fecham sozinhas e minha cabeça pende para
trás assim que seus dedos começam a massagear minha pele
vulnerável, e quando eu penso que ele vai acelerar, ele diminui a
velocidade dos movimentos.
—Eu não vou fazer nada que você não queira. Quer que eu pare
agora?
Debilmente, eu aceno.
E ele para. Eu pedi para parar?
Meu pobre cérebro enevoado de desejo não compreendeu a
pergunta corretamente e eu percebo que afirmei para que ele
parasse. Eu sou idiota? Devo ser.
—Eu…
—É, tem razão. É muito arriscado —ele diz, mas está claramente
sorrindo com presunção.
Ian tira as mãos de mim antes de deixar um beijo estalado em
meus lábios.
—Boa noite, Bic —diz por fim, ao se levantar do sofá, me deixando
aqui sentada, desnorteada e… bem, molhada.
Ele gostou de me provocar, mas eu sei que ele deve estar
sofrendo de frustração sexual tanto quanto eu, a julgar pelo volume
que eu notei em sua bermuda quando ele saiu andando.
Isso não vai ficar assim, penso. Mas, por hora, subo as escadas,
troco de roupa para meus pijamas e me deito na cama. Não vou
atrás dele. Ele que venha até meu quarto para terminar o que
começou.
38

Ian

“Toda vez que eu olho nos seus olhos, eu vejo


você é tudo que eu preciso. ”
Get You-Daniel Caesar
O relógio decorado com conchas na parede da cozinha marca 3
horas da manhã. É tão tarde assim? O tempo não parece passar.
Não consegui dormir, há muita coisa na minha cabeça. Depois de
sair do sofá pensando em Bic e no quanto eu queria terminar o que
comecei com ela naquele sofá, fui para o quarto apenas para criar
mais antecipação, mas ao ficar sozinho, minha mente voou
novamente para aquela conversa com meu pai.
“Deve ser horrível morrer trabalhando com algo que odeia.”
“Pior que isso é colocar esse trabalho acima da família e perder
tempo com quem a gente mais ama. ”
O que ele realmente quis dizer com aquelas palavras? Estava
concordando comigo? Se colocando no meu lugar? Ficando do meu
lado? Ou apenas tentando uma trégua momentânea? Talvez ele
tenha dito aquilo da boca para fora, nem tenha refletido sobre sua
declaração.
Desci do quarto silencioso para a cozinha me sentindo sufocado
de tanto pensar, vim buscar água, procurando me acalmar, mas o
conflito interno permanece. O som do ponteiro do relógio antigo na
parede é a única coisa que se ouve nessa casa e, no momento, o
toque repetitivo está a um passo de me tirar do sério.
De repente, um outro som irrompe o andar de baixo, passos na
escada de madeira. Tensiono ainda mais os músculos, não estou no
clima para interagir com meu pai ou Sandra, nem mesmo com Sopa
agora. Mas quando levanto os olhos do balcão de mármore à minha
frente, vejo que a pessoa parada na porta da cozinha é uma morena
baixinha e só a visão de seus olhos grandes e cabelos rebeldes é
capaz de remover parte do peso sobre meu peito.
—Não consegue dormir? —Ela diz, buscando um copo no armário
e o posicionando no dispenser de água na porta da geladeira.
—Não —minha voz sai mais fria do que eu gostaria.
—Tá tudo bem? —Bic se aproxima de mim, seu rosto agora
assume uma expressão preocupada.
Afirmo com a cabeça, mas ela não parece convencida.
—Ian, me fala o que aconteceu.
—Nada. É só essa coisa com o meu pai.
—O que houve dessa vez?
—Ele tá sendo legal comigo —solto um riso diante do absurdo. —
Pela primeira vez em anos, acho que nós tivemos uma trégua, e…
sei lá, acho que eu tô um pouco confuso com isso.
—Confuso como?
—Eu não sei. Acho que eu passei tanto tempo odiando meu pai
que não sei como lidar com ele de outra forma. Eu na verdade nem
conheço ele direito. Há anos ele não participa da minha vida e nem
eu da dele. Não sei como interpretar quando ele é legal comigo. Se é
por educação, se ele tá tentando uma trégua comigo porque
realmente quer se reaproximar de mim e reestabelecer uma boa
relação de pai e filho —faço uma pausa, ainda encarando o balcão
onde apoio os braços. —Eu cheguei a pensar até que ele queria
ganhar minha confiança só pra depois me convencer a trabalhar com
ele na empresa, mas nem disso eu tenho certeza agora.
Bic fica em silêncio por alguns instantes, mas eu sei que ela está
ponderando antes de dizer.
—Eu acho que é normal você ter dificuldades pra confiar nele.
Depois de tantos anos com tão pouco contato, é compreensível. Mas
não acredito que ele esteja se aproximando de você por interesse,
Ian. Não acho que seu pai faria isso.
Ela pode estar certa. Meu pai não é um vilão de desenho animado
arquitetando um plano mirabolante. Mas eu ainda não consigo evitar
ficar desconfiado quanto a sua aproximação.
E talvez sejam essas paranoias, a confusão na minha mente
quanto a esse assunto ou a insegurança falando mais alto, mas não
consigo parar de pensar. Minha cabeça parece um cômodo pequeno
com uma bola de borracha quicando lá dentro, batendo em todas as
paredes. É assim que eu me sinto.
—E se ele estiver certo, Bic? E se ser professor de biologia não for
para mim? —Passo as mãos pelos cabelos, me sentindo mais
nervoso ainda. —E se eu tiver um fracasso tão grande e viver
desempregado? Ele com certeza vai jogar na minha cara e eu não
posso…
—Ei, calma. Olha lá —ela me interrompe, apontando para a
coleção de rolhas de vinho do meu pai, guardadas em uma taça
enorme em cima da geladeira.
Eu sigo seu comando e franzo o cenho ao voltar os olhos à ela.
Ela sequer está me ouvindo? O que é essa mudança de assunto, do
nada?
—Agora olha pra cá —e aponta para o copo de vidro em cima do
balcão. Meus olhos acompanham enquanto ela passa a ponta dos
dedos pelo contorno do copo. Eu presto atenção em seu formato, no
som de suas unhas grandes tocando o vidro e no barulho que ele faz
ao ser posicionado de volta no balcão.
Bic começa a estalar os ossos das mãos e eu escuto atentamente
o som de “crec” que suas falanges fazem.
—Agora olha para mim.
Subo os olhos para seu rosto. Ela me olha de volta com uma
expressão neutra. Corre as mãos pelos cabelos, jogando-os para
trás e eu acompanho cada movimento, como se estivesse
hipnotizado.
—Olha nos meus olhos —ela orienta mais uma vez, falando
baixinho, e eu obedeço. —Tá se sentindo melhor?
Estranhamente, estou mesmo.
—O que você fez? —Pergunto, como se ela fosse algum tipo de
bruxa.
—Te distraí —ela responde, com um sorriso comedido. —Sua
ansiedade tava aumentando, então eu mudei seu hiperfoco pra
aliviar sua cabeça e fazer você parar de pensar um pouco.
—Eu não tenho ansiedade —digo.
—Todo mundo tem ansiedade. Ansiedade é uma emoção. Seu
caso pode não ser crônico como o meu, mas não sou eu quem pode
afirmar isso. Ainda —ela sorri.
Eu pisco os olhos. Sentindo um mix de admiração, espanto e
gratidão por ela nesse momento.
—O fracasso é algo fora do nosso controle, Ian. Você pode
fracassar tentando uma carreira estável da mesma forma que com
uma carreira não convencional. É um risco, então porque não se
arriscar fazendo o que gosta? Além disso, você é novo ainda. E é
privilegiado o suficiente pra não ter que se preocupar com arrumar
um emprego logo depois que se formar. A gente tem todo o tempo do
mundo.
Bic diz tudo o que eu precisava ouvir com a calma e a clareza de
quem explica a coisa mais óbvia e simples do universo. Meu peito se
enche com a vontade de segurá-la em meus braços e não soltar
mais e com a constatação da sorte que eu tenho por tê-la por perto.
Com as batidas do coração de volta ao ritmo adequado, solto o ar
que estava preso nos pulmões.
—Você vai ser uma ótima psicóloga, sabia? —Não posso deixar de
reconhecer.
—Sabia —ela diz, fingindo uma expressão esnobe.
Eu rio.
—Valeu, Bic —ofereço um sorriso de lado.
—Por nada —ela sorri de volta.
Bic começa a se virar em direção a porta, mas eu seguro sua mão
na mesa.
—Sobre essa técnica da distração… existe outro método que
ajuda na ansiedade, doutora?
Ela me lança um sorriso atrevido que certamente combina com o
que eu estou ostentando no momento.
—Ah, sim… —Ela diz, andando devagar em minha direção. Sobe
na ponta dos pés para alcançar meus lábios e sussurra contra eles:
—Muitos métodos…
Um arrepio corre por minha espinha quando seu hálito quente
paira sobre minha boca. Eu poderia agarrar sua cintura e tomar seus
lábios com o beijo urgente que estou cheio de vontade de dar, mas é
ela quem está no comando.
Bic passa a língua devagar sobre os próprios lábios, sem parar de
me provocar. Eu fecho os olhos instintivamente e ela captura meu
lábio inferior com os dentes, arrancando de mim um grunhido.
Quando penso que vai finalmente parar de me torturar e fazer o favor
de grudar logo sua boca na minha, ela fala:
—Mas tá tarde agora, amanhã eu te mostro.
E assim, Bic se afasta e sai andando da cozinha sem olhar para
trás.
Eu não vou esperar até amanhã. Com essa última provocação,
estamos quites, mas essa noite só acaba quando eu conseguir o
desempate.
39

Bianca

“Consegue ficar acordado a noite toda?


Me amando até o dia amanhecer? ”
34+35-Ariana Grande
Ele não vem?
Não é possível que ele não venha. Eu duvido que ele vá conseguir
dormir. Eu sei que eu não consigo.
Mas quando estou deitada há basicamente uma hora na enorme
cama do quarto âncora, rolando de um lado para o outro sem
conseguir dormir e me perguntando porque Ian não apareceu aqui
até agora, a porta de madeira maciça finalmente se abre.
A luz branca do corredor cria uma sombra sobre sua silhueta e eu
já começo a tremer em antecipação. Ergo o corpo sobre os
cotovelos, observando seus movimentos, enquanto ele caminha
devagar até a beira da cama.
Ian não fala nada, mas o sorriso travesso em seu rosto diz tudo,
deixando óbvias suas intenções. Ele engatinha sobre o colchão vindo
em direção a mim sem tirar os olhos dos meus, mesmo no escuro.
—Achei que você não vinha —sussurro contra seus lábios quando
ele já está perto o suficiente.
—Ficou me esperando? —Ele pergunta sorrindo, sua voz baixa
daquele jeito que reverbera por meu corpo inteiro.
—Não, só estava curiosa —provoco.
—Quer que eu saia, então? —Ele faz menção de se virar e eu
imediatamente o seguro pela gola da camiseta.
—Não.
E então não dizemos mais nada pelos próximos minutos. Eu o
beijo e ele se inclina em minha direção, me deitando novamente na
cama, enquanto encaixa o corpo entre minhas pernas. Eu gemo
contra seus lábios, agora segura de que as paredes grossas desse
quarto podem guardar apenas para nós dois cada som que ele
arrancar de mim.
Este beijo é do melhor tipo: demorado, lento, quente, molhado,
sincronizado e inconsequente. O tipo de beijo que só ele consegue
me dar e só eu consigo retribuir. Eu agarro seus cabelos, sua camisa
e suas costas, precisando de mais. Essa noite eu quero tudo dele.
Ian se apressa em tirar a camiseta que está usando, e logo
continua a passar as mãos por meu corpo até começar a se dedicar
em deixar ainda mais marcas de beijo e mordidas em meu pescoço.
Ainda me mantendo vestida, vai descendo o corpo sobre mim e
abaixa a barra do meu short de pijama apenas para perceber que
não estou usando mais nada por baixo. Ele solta um palavrão
abafado e desliza a peça por minhas pernas, sem demora.
Eu dou uma risadinha, mas ela morre quando Ian me toma com
sua boca, lambendo, provocando e me arrancando gemidos tão altos
que, embora não possamos ser ouvidos, eu sinto a necessidade de
abafar com o travesseiro. Ele mantém os olhos nos meus, se
certificando de que eu esteja gostando do que está fazendo e
“gostar” parece pouco para o que eu estou achando dessa
experiência.
Quando chego perto do limite, ele é esperto o suficiente para notar,
então para e afasta a boca de mim. Eu reclamo com mais um gemido
frustrado, mas ele volta a subir com beijos até minha boca, e eu
percebo que o que está fazendo não é só me provocar e construir a
tensão, e sim me deixar ainda mais molhada, me preparando. Assim,
antes de qualquer coisa, sou eu que refaço a pergunta:
—Trouxe camisinha?
—Você não? —Ele paralisa.
Ah, não. Eu não acredito nisso. De novo, não!
—Eu não! —Respondo.
Eu esqueci de trazer. E me odeio por isso, no momento.
—Como não?
—Sei lá, Ian. Quando eu estava arrumando minha mala, não
pensei imediatamente “Nossa, nós com certeza vamos trepar feito
loucos esse fim de semana! ”, você…
Eu paro de falar quando dou de cara com seu sorriso de canto e a
mão erguida segurando uma embalagem quadrangular. Filho da
mãe.
—Mas é claro que você teve esse pensamento, não é?
—É claro —ele debocha.
Ian volta a me beijar e, de repente, agarra minha cintura e nos gira,
trocando as posições, me colocando por cima. Ele está me deixando
tomar as rédeas e eu gosto disso, mas ao mesmo tempo me pego
um pouco insegura, sem saber muito o que fazer a partir daqui.
Ele responde minha pergunta silenciosa me entregando o pacote
do preservativo e esticando os braços para trás, me deixando
totalmente no controle. É incrível o quanto conseguimos nos
comunicar perfeitamente sem usar nenhuma palavra. Acho que
nunca estivemos em tanta sincronia quanto neste momento.
Deslizo seu short para baixo, removendo completamente, o
encontrando mais do que pronto para mim. Depois de propriamente
“vesti-lo”, tiro a última peça do meu pijama, passando a blusa pela
cabeça, ele acompanha cada movimento meu com os olhos.
Então, hesitante, eu me apoio sobre seu peito e me encaixo sobre
ele, bem devagar. Centímetro a centímetro vamos os dois gemendo
e arfando. Eu paro um pouco, deixando meu corpo se acostumar e
ajustar à sensação. E então, desço completamente. Minha
respiração falha e ouço Ian gemer baixo.
A dor está lá, mas estou tão presa no momento que tudo me
parece excitante. Sinto uma pressão muito grande, mas é, ao mesmo
tempo, muito gostoso.
Com mais uma pergunta feita dentro de uma troca de olhares, ele
apoia as mãos na minha cintura e eu começo a me mover.
Começa dolorosamente lento e vai ficando mais rápido à medida
que a fricção se intensifica.
Agora que a tensão se foi, tenho apenas o prazer do momento e
me sinto cada vez mais molhada, deslizando cada vez mais
facilmente para cima e para baixo.
Cada movimento é envolto por uma série de gemidos, arfadas e
grunhidos proferidos por nós dois, e eu amo que ambos podemos
aproveitar essa experiência juntos, ao mesmo tempo.
Chega um momento em que, por maior que seja, a velocidade
nunca parece suficiente, preciso de mais a cada segundo. Ian desce
as mãos da minha cintura e eu me debruço sobre seu peito. Ele
afunda os dedos em minha pele, me seurando e impulsionando o vai
e vem, quando os músculos das minhas pernas começam a cansar.
Com nossos corpos colados, e sua pelve encostando em mim no
lugar certo, eu gemo ainda mais alto, encontrando uma posição
ainda mais favorável. Mas ainda é pouco, eu quero mais. Preciso de
mais, mais rápido, mais forte. Então, Ian ergue o corpo, passa um
braço pela minha cintura e nos gira num gesto rápido, ainda que
delicado.
Ficando por cima, ele se encaixa entre minhas pernas, joga meus
braços para trás e segura meus pulsos contra o travesseiro. Ele olha
para baixo e para, travando os olhos nos meus de uma maneira tão
intensa que mexe em algo dentro do meu estômago.
—O que foi? —Pergunto ofegante quando percebo que ele ainda
não fez nenhuma menção de se mover.
—Você é tão linda —ele sussurra, e eu tenho certeza que pode
sentir meu corpo inteiro reagindo a essa declaração.
—E você só descobriu isso agora? —Eu provoco.
Ele sorri e balança a cabeça, negando.
—Sempre soube.
E antes que eu possa derreter completamente, ele se abaixa e me
beija de um jeito doce e delicado, é mais uma forma de me tirar de
vez o fôlego e a noção.
Ian estica os dedos sobre meus braços e os desliza até minhas
mãos, entrelaçando-os nos meus. Com nossos olhares travados, e
nossas mãos unidas, ele volta a se mover, dessa vez no comando do
prazer de nós dois. Começa, como sempre, devagar, mas fica rápido
logo, me arrancando mais gemidos e gritos.
Eu estou perto e ele também e em pouco tempo, chegamos ao
clímax juntos.
E é surreal, perfeito, indescritível. Ainda melhor que da primeira
vez. Eu fecho os olhos sem perceber e posso jurar ter visto estrelas.
Depois de alguns longos segundos, Ian encosta a testa na minha e
se mantém em cima de mim até nossas respirações ofegantes
voltarem ao normal.
Ele pode achar que está me esmagando assim, mas eu amo sentir
o peso de seu corpo sobre meu peito. Deslizo as mãos suavemente
por suas costas e depois de se recuperar parcialmente, ele deita
para o lado e me puxa para seus braços e eu planejo não sair mais
daqui.
40

Ian

“Tem um amor nos seus olhos


Que me puxa para mais perto
É tão sutil, eu estou em apuros. ”
Marvin Gaye-Charlie Puth ft. Meghan Trainor
—Quem foi sua primeira vez? —Sou eu que pergunto, quando
estamos deitados juntos na cama do quarto âncora, casualmente
conversando.
—Aquela menina que eu namorei no primeiro ano —Bic responde,
com a cabeça deitada no travesseiro, o rosto virado na minha
direção, a poucos centímetros de mim.
—A Manu foi sua primeira namorada e primeira vez?
—Pois é —ela confirma.
É um pouco estranho como, em tantos anos de amizade, nós
nunca realmente conversamos sobre esse tipo de coisa. Grandes
detalhes sobre nossas vidas sexuais ou amorosas nunca eram
mencionados. E eu via o quanto Bic parecia desconfortável quando
eu falava sobre alguma namorada. Era informação demais.
—E como foi?
—Foi bom. Ah, poderia ter sido melhor, na verdade.
—Foi a primeira vez dela também?
—Não. Acho que por isso acabou não sendo tão ruim. Ela sabia o
que fazer, diferente de mim. O problema é que foi no quarto dela, de
tarde e a família inteira tava em casa.
—Ahh... Já entendi, a casa inteira ouviu seus gemidos.
—Ei! Eu não faço tanto barulho assim! —Seu lindo rosto
enrubesce.
—Faz sim.
—Enfim, e você? Quem foi sua primeira vez? —Ela me devolve a
pergunta.
—Uma menina do outro colégio. Antes de eu ser transferido pra
sua turma.
—Espera, se isso foi antes do ensino médio, você transou pela
primeira vez com 14 anos? —Bic parece chocada.
—15. Mas sim, eu cedi a influência dos meus amigos na época. Eu
era um mané.
—Se arrepende?
—Não. Ela era mais velha. E bem gata.
—Se deu bem, então —Bic lança um sorriso brincalhão.
—Pra uma primeira vez, até que sim —abro um sorriso. —Mas
nada se compara com a última.
E assim, consigo trazer mais um sorriso ao rosto dela.
Não querendo mais falar, eu puxo Bic para mais perto e me
permito mais uma vez me perder em pensamentos, quando sua boca
quente se une à minha.
É um sentimento viciante. Quero ela o tempo todo, só me imagino
em paz quando ela está por perto, só quero falar com ela, beijar ela e
dormir com ela.
Sem quebrar o beijo, Bic deita minhas costas na cama e desliza
seu corpo para cima do meu. Toca meu rosto e separa nossos lábios
para olhar bem no fundo dos meus olhos.
Não sei se ela consegue captar o que eles expressam, mas se
continuar me olhando desse jeito, posso acabar dizendo o que está
preso no meu peito e entalado na garganta há tanto tempo e que eu
quase deixei escapar alguns minutos atrás. As três palavras que
podem abrir uma porta e mudar tudo pra melhor ou foder com tudo
de vez entre nós.
Por isso, sem usá-las, torço para que ela perceba, quando tomo
seu corpo pela segunda vez essa noite. Beijando, tocando,
provando.
A verdade é que estou rendido, obcecado, perdido. Tudo isso é tão
assustador porque sei que é novo e raro. Nunca me senti assim
antes, não desse jeito, com tanta força. Mas sei o que é e posso não
verbalizar, não agora, mas pelo menos para mim mesmo, me permito
admitir: Estou completamente apaixonado por ela.
41

Bianca

“Eu gosto tanto de você,


mas isso tudo me dá frio na barriga demais”
Melhor Sozinha :-)-: -Luísa Sonza
São quase seis da manhã. Eu cochilei ao som da respiração de
Ian, mas acordei com o som dos pássaros despertando nas
castanheiras ao redor da casa.
Ele também está acordado.
—Vamos na praia? —Pergunta.
Eu sorrio. Não tenho como negar, nem porquê não ir. Ele está
sorrindo para mim daquele jeito que faz meu estômago tremer e
sabe que eu amo a praia.

Visto meu biquíni e uma camiseta dele. Ele diz que vai de bermuda
mesmo, então descemos. Em silêncio, para ninguém mais acordar.

Quando chegamos na areia, deixamos lá nossas roupas e vamos


direto para o mar. Não há porquê sentar na canga, o sol mal
terminou de nascer.

O céu está pintado em um lindo degradê de laranja brilhante e azul


claro, e além das poucas pessoas andando pelo calçadão, só há nós
dois na praia.
A poucos centímetros de encostar os pés na maré, ele olha para
mim. Eu levanto os olhos e o encaro de volta. Ele me lança aquele
mesmo olhar, que me dá de vez em quando.

Eu conheço todos os seus olhares, mas esse é novo e eu não sei


traduzir. Suas pálpebras estão relaxadas, um dos cantos de sua
boca está levantado e um brilho reflete em sua íris. Ele me olha com
uma certeza, como se tudo estivesse alinhado e certo.

Enquanto isso, minha mente está uma zona. Esse olhar me


prende, fazendo um arrepio correr do topo da cabeça até o dedinho
do pé. Me prende tanto que nem sinto a água gelada tocar meus
dedos.

Olho para baixo, vendo a onda subindo por nossos calcanhares.


Ele acompanha meu olhar, mas sobe de novo. Pega minha mão e eu
deixo. Sorrindo, vamos entrando no mar. À medida que a água fria
sobe por nossos corpos, soltamos suspiros altos seguidos de
gargalhadas nervosas.

Em algum ponto, paramos de andar e contamos até três para


mergulhar. Voltamos à superfície, rimos mais um pouco e trememos
de frio. Então, nos damos conta do quão próximos realmente
estamos.

Ian olha no fundo dos meus olhos e, ainda sorrindo, levanta o


braço para tocar minha bochecha. E então, aproxima os lábios dos
meus. Eu só consigo ouvir o som das ondas quebrando, o barulho
que a água faz quando levanto meus braços para abraçar seu
pescoço, e o meu coração batendo rápido.

Ele me beija com intensidade e lentidão, e me segura com firmeza.


É um daqueles beijos doces, ainda que tenha o gosto salgado do
mar. Bem aqui, eu percebo que estou realmente fodida. Porque esse
é diferente de todos os outros.

Ele não me beija mais como se eu fosse a garota com quem


transa às vezes. Tampouco me beija como se beijasse a melhor
amiga num jogo de gire a garrafa. Ele me beija como se eu fosse a
mulher que ele ama.

Meu corpo treme em desespero, desejo, medo e empolgação. É


como se, nesse final de semana, Ian tivesse se empenhado em
finalizar a obra que começou no meu coração, e adicionou ainda
mais tijolinhos no muro.

Agora que está completo, só resta cair tudo. Porque é claro que eu
retribuo. É óbvio que eu o amo. Porque eu sempre amei.
42

Ian

“Você me ama, me quer, me odeia? Eu não entendo


E é para frente e para trás, eu fiz algo errado?
É para frente e para trás, repassando tudo o que eu disse”
1 Step Forward, 3 Steps Back-Olivia Rodrigo
Ela tá estranha.
Depois que saímos da praia, tomamos banhos juntos e fomos
dormir um pouco antes da hora de acordar, porque amanhã é
segunda e a Sophia estuda de manhã, então só vamos ficar na casa
até depois do almoço.
Bic sugeriu que fôssemos cada um para seu quarto e eu
concordei, assim evitamos perguntas que meu pai ou Sandra podem
ter ao nos ver juntos no mesmo cômodo. Mas mesmo assim, a Bic
está estranha.
Estamos agora nos preparando para ir embora, guardando as
coisas nos carros, o sol está quase se pondo e ela mal olha na
minha cara.
Sopa pediu para voltar com a gente, no meu carro, então, quando
termino de posicioná-la na cadeirinha, bato a porta e corro para o
outro lado, onde Bic está, antes que ela possa entrar no carro.
—Tudo bem? —Pergunto ao me aproximar dela, buscando seus
olhos.
Ela vira a cabeça e olha para trás disfarçadamente, onde o carro
do meu pai está parado, então se volta para mim, tira minha mão de
sua cintura gentilmente e murmura um “Uhum”, com um sorriso
fraco.
Não. Definitivamente, não está tudo bem.
Mas não vou fazer nada sobre isso, prefiro conversar com ela
quando estivermos sozinhos.
Sopa puxa conversa com nós dois durante o trajeto, mas só eu
respondo suas perguntas. Bic cruza os braços na frente do peito,
apoia os pés no painel do carro e deita a cabeça na janela, avisando
que vai tirar um cochilo. Mais uma vez, não digo nada.
O trajeto de uma hora parece mais longo na volta que na ida.
Minha cabeça frita com esse ponto de interrogação que Bic colocou
nela. Será que eu fiz alguma coisa? Será que foi algo que fiz na noite
passada e ela não gostou? Ou pior, será que ela se arrepende do
que fizemos?
Como ela pode ter mudado o comportamento perto de mim de
uma hora para outra? Numa hora me dá beijos apaixonados e
parece não querer sair do meu lado, no outro, mal olha na minha
cara ou fala comigo. Eu imaginava que depois de ontem, as coisas
entre nós fossem mudar inevitavelmente, mas não para pior.
Chego na portaria de seu prédio e, sem dizer uma palavra, ela tira
o cinto e abre a porta, mas antes, se vira para trás para se despedir
de Sophia. Vendo que a menina está dormindo na cadeirinha, Bic sai
do carro.
Eu saio também, buscando sua mochila no porta-malas. Ela
agradece e se despede com um “tchau”, baixinho. Puxo a alça da
mochila, não posso deixar que ela se despeça assim.
—Eu vou voltar aqui mais tarde e a gente conversa, tá? —Se eu
não tivesse que deixar a Sopa em casa, entraria nesse apartamento
nesse mesmo instante com ela e resolveria isso, mas infelizmente
vou ter que adiar essa conversa.
—Conversar sobre o que, Ian? Tá tudo bem, já falei —ela
finalmente diz algo.
—Não, com certeza não está. Te conheço, Bianca, você tá
estranha. A gente se fala depois —talvez usar seu nome a faça
perceber o quão sério eu estou.
—Não precisa vir, eu só tô um pouco cansada da viagem, só isso.
—Então me dá um beijo —eu peço.
Seu corpo tensiona como da primeira vez que teve que me beijar,
na frente de tanta gente naquela festa. Sobe na ponta dos pés e me
dá um selinho, mas eu a seguro com firmeza pela cintura, tentando
prolongá-lo.
Depois de alguns segundos de hesitação, ela cede e decide me
dar um beijo de verdade, com vontade.
Bic solta a bolsa e puxa minha nuca com as duas mãos,
aproximando nossos rostos. O beijo é bom pelos motivos óbvios,
mas também é ruim porque sua boca não tem mais cheiro de fruta, e
eu quase posso sentir gosto de despedida em seus lábios, se é que
isso é possível. Tudo aqui parece errado.
Mesmo ela tendo me beijado, eu não me convenço de que esteja
mesmo tudo bem entre nós, porque assim que separa a boca da
minha, Bic vira o rosto e vai andando até a porta de vidro do prédio,
sem nem olhar mais para trás.
43

Bianca

“Dê um tempo, meu amor


Vamos ir devagar
Nós dois precisamos de um pouco de espaço para respirar
E se você sabe o que é melhor para mim e para você, devia ir
embora
Eu sou fraca quando você está por perto”
Weak When ur Around-Blackbear
Do térreo ao meu andar, é uma viagem de uns bons 5 minutos de
elevador, e eu me forço a passar esses minutos segurando as
lágrimas. Só vou chorar quando chegar no meu quarto.
No instante em que botei os pés de volta naquela casa de praia,
depois do mergulho no mar em que percebi que estava
irremediavelmente apaixonada por Ian, uma enorme sirene soou
dentro da minha cabeça, me alertando a parar, recuar. Preciso fazer
um controle de danos e me afastar o quanto antes.
Eu não menti para ele, eu realmente estou cansada. Não dormi
nada essa noite, nem depois da praia.
O que acontece é que eu percebi o quanto eu não vivo sem ele,
não consigo imaginar minha vida sem o Ian nela. E é esse o
problema, porque por mais que essa constatação possa parecer tão
romântica, é igualmente desesperadora.
Como posso me sentir assim? Me colocar nessa posição? Tão
vulnerável, tão dependente? Isso não sou eu, eu não posso ser
assim. Não quero ser assim.
Nessa noite em que passei em claro, comecei a analisar cada
aspecto da minha vida e me dei conta de que, já que sempre
andamos juntos, Ian permeia cada parte dela e que todas as coisas
que eu posso fazer sozinha, ele faz comigo ou por mim.
Durante anos, Ian sempre tomou as decisões por nós. Eu não o
culpo, ele talvez nem tenha noção disso e também não acho que há
nada de errado no que faz.
Só que isso passou a me incomodar quando percebi que estaria
totalmente perdida sem ele por perto. Eu deveria ter minha
individualidade, para alguém que quer tanto morar sozinha e buscar
a independência, eu sou uma bela covarde que se esconde debaixo
da asa dos outros.
Isso precisa acabar, preciso me livrar dessas coisas que me
mantêm na zona de conforto. Por mais que me doa, preciso me
afastar dele. Antes que ele possa partir meu coração, e acima de
tudo, para me colocar como prioridade.
Quando abro a porta de casa, a cena que encontro me traz uma
enorme sensação de um déjà vu. Minha mãe sentada no sofá, com
os olhos inchados e vermelhos.
—Oi, filha —ela funga e esconde o rosto de mim. —Como foi o
passeio?
Talvez por sua melancolia combinar tanto com a que estou sentido,
por sentir uma enorme empatia por ela, ou talvez até por essa onda
de decisão e firmeza que se apoderou de mim nesse momento, eu
me aproximo dela e, pela primeira vez, ouso perguntar:
—Mãe, me diz o que tá acontecendo com você e o papai?
44

Ian

"Eu não sei mais o que fazer.


Já tentei de tudo, mas cê foi embora
sem dizer a hora,
sem me dar tempo de te esquecer”
Despedida-Cammie
Ela não me atende, não fala comigo. Já faz quase uma semana
desde de que eu a deixei em casa, depois da viagem, e nada mudou.
Ela continua estranha.
Naquela noite, eu a liguei para saber se nós poderíamos
conversar, mas ela disse que estava tarde, o clima em casa não
estava bom e que não tinha cabeça para conversar comigo. Eu
respeitei isso.
Ela faltou algumas aulas na faculdade, eu acho. Disse que mudou
os horários de algumas aulas e que eu não precisava mais ir buscá-
la em casa. Por isso, essa semana nós também quase não nos
vimos.
Agora é sexta-feira à noite e eu estou com meus amigos no bar,
depois de muita insistência da parte deles, bebendo como último
subterfúgio para tirar Bic da minha cabeça.
Eu não costumo fazer isso, beber para esquecer os problemas,
mas estou a ponto de ficar louco e explodir com tanta coisa
passando pela minha mente.
E, aparentemente, essa porcaria de cerveja não serve nem para
cumprir com essa função, porque o nome dela ainda é a única coisa
em que eu penso. E não só seu nome, seus olhos, seu cabelo, seu
sorriso, seu corpo… tudo nela ainda é muito presente em mim.
—Ah, qual é, Ian. Não é possível que você ainda esteja nessa
fossa. —Henrique reclama.
—Ele precisa de mais cerveja —Paulo intervém.
—Ele precisa é de um bom tapão na cabeça pra ver se acorda,
isso sim!
—Eu preciso é que vocês calem a boca! —Digo, esfregando as
têmporas.
—Isso tudo é por causa daquela sua “amiga”? Cacete, o Ian tá pior
que o Henrique quando terminou com aquela ruiva. —É Gabriel
quem provoca dessa vez, mas acaba atingindo também Henrique,
que responde levantando o dedo do meio para o loiro.
—Mano, relaxa. Termina logo essa longneck aí que eu já vou pedir
outra —Henrique diz.
E ele pede. E eu bebo.
Percebo que ainda penso nela, então bebo mais, e mais, e mais.
Na terceira garrafa, já me sinto um pouco tonto, mas minha mente
ainda está nela.
Quanto mais eu bebo, mais eu percebo que minha memória dela
está longe, pelo menos por um momento, e então eu me dou conta
disso e assim ela volta, como se nunca tivesse saído. Sua risada e
seus olhos escuros brilhando para mim voltam à minha mente como
um soco na cara, e eu me sinto ainda pior.
Eu só queria um pouco de paz, tirar essa garota dos meus
pensamentos por uns minutos. Mas isso parece impossível, então
percebo que só vou conseguir me acalmar quando falar com ela e
resolver isso de uma vez.
Por isso, recolho minhas coisas de cima da mesa amarela do bar e
me levanto.
Merda, foi muito rápido. Imediatamente quase tombo para trás.
—Opa! Calma aí, cara! Tá indo aonde? —Todos na mesa se
alertam, mas não sei quem disse isso, minha visão está um pouco
turva.
—Preciso ir ver a Bic —respondo, a voz custando a sair, meus
lábios parecem adormecidos.
—Nem fodendo! Nesse estado, é melhor ir para casa de Uber.
Eu resmungo, em protesto. Braços me puxam para baixo, me
sentando de volta na cadeira.
Eu esfrego os olhos e tento recobrar um pouco da consciência.
—Mano, se você tá tão mal assim, liga pra ela! —Acho que é
Gabriel quem sugere.
Henrique começa a protestar, querendo me poupar da humilhação,
mas nem presto atenção, resolvo seguir com a ideia.
Busco o celular e ligo para o número da Bic, salvo nos contatos de
emergência.
Um toque, dois, três, quatro… e ela desliga.
Tento mais uma vez.
Um, dois, três toques antes de desligar.
Estou empenhado esta noite, ligo mais uma vez.
Direto para a caixa postal.
Chega. Eu não aguento mais. Preciso ir até a casa dela. É o único
jeito.
Aproveito a distração dos meus amigos e me levanto de novo,
mais devagar dessa vez.
—Senta aí, maluco! —Paulo ordena.
—Eu só vou no banheiro —respondo, e tento parecer mais sóbrio.
Vou andando até o outro lado do bar, na direção dos banheiros,
mas faço uma curva desajeitada com os pés e consigo sair do
estabelecimento, indo até meu carro.
Bic pode brigar comigo, me xingar, me expulsar do prédio, mas eu
pelo menos quero uma resposta. Quero saber porquê ela não
conversa comigo, o que eu fiz de errado, e o que eu posso fazer para
consertar.
Com sorte, ninguém me viu saindo e só vão dar minha falta
quando eu já estiver longe, mas nada vai me impedir de ir até a casa
dela e fazer com que ela fale comigo de novo.
45

Bianca

“Eu só estou buscando um ponto final


Mas você me chama para mais e mais perto
O telefone tocando de novo e de novo
Porque você fica me ligando de volta”
Over-Lucky Daye
Coloquei o celular no silencioso e o guardei dentro da gaveta da
minha escrivaninha. Eu tenho medo de, se ele me ligar mais uma
vez, eu não conseguir me controlar e atender. O certo seria desligar
o aparelho de uma vez, mas por algum motivo, não consegui me pôr
a fazer isso.
Sei que é babaquice da minha parte, eu deveria ser mais clara
com ele e explicar o que está realmente acontecendo, talvez assim
ele entenda o meu lado e me deixe sozinha por um tempo. Ele
merece minha satisfação, mas eu também preciso desse tempo.
Porque, além de ter que lidar com os meus sentimentos em
relação a Ian, agora tenho que lidar com a separação dos meus pais,
e a paz na nossa casa que desmoronou de vez.
Eu deveria ter aparentado estar mais surpresa quando minha mãe
me contou que meu pai estava dormindo com outra mulher, mas não
consegui.
Não fiquei chocada, fiquei quase aliviada, como se tivesse
encontrado uma peça faltante de um quebra-cabeça. Ele passava
cada vez mais tempo fora de casa, principalmente à noite, e as
brigas entre os dois aumentaram. Esse só poderia ser o motivo.
Além disso, eu não esperava um comportamento decente vindo do
meu pai.
O desesperador mesmo foi ver minha mãe desabando. Eu nunca
na minha vida vi essa mulher chorar. Sempre vi minha mãe como
uma mulher durona e fechada, mas quando eu me aproximei dela no
sofá aquele dia, ela não conseguiu segurar as lágrimas que caíram
de seus olhos como um dique rompido.
Eu chorei junto com ela, porque segurava muita coisa também, o
limite chegou para nós duas.
Depois de recuperarmos a fala, ela deixou que saíssem também
as palavras.
—Nós nunca demos certo. É essa a verdade. Seu pai e eu…
queríamos coisas diferentes desde o início. Ele nunca quis ser pai,
sabe? E eu queria ter filhos.
Isso explica muito, pensei.
—Eu achava que depois que você nascesse, ele ia mudar de ideia,
mas… meu erro foi achar que tinha esse poder de fazer ele mudar
com o tempo, mas a gente não pode mudar as pessoas,
simplesmente não pode —ela continuou.
Eu solucei um pouco mais e acabei chamando sua atenção para
meu rosto. Minha mãe me olhou com algo que nunca vi antes:
atenção. Senti que ela realmente me via, como se finalmente
quisesse me escutar. Ela tocou meu rosto e meus olhos derrubaram
mais lágrimas.
—O que foi, filha? —Ela quis saber.
—Eu me apaixonei pelo Ian, mãe —foi minha vez de desabafar.
Ela me olhou com surpresa e confusão. Mas depois, um pouco
sem jeito, passou um braço pelas minhas costas e deitou minha
cabeça em seu colo, fazendo carinho no meu cabelo.
—Ô, minha filha…
Isso poderia ser algo natural, pensei. Eu queria poder chorar no
colo da minha mãe sempre que eu precisasse. Porque só com
aquele gesto, senti que ela estava pegando um pouco do peso sobre
meu peito e carregando consigo também. E o sentimento foi bom.
—E qual é o problema, ele não gosta de você?
—Gosta. Eu acho que gosta, mas o problema é que eu não posso
ficar com ele. Não agora, pelo menos —foi a minha resposta.
—E por que não?
Toquei meu pescoço, procurando o coração vazado do cordão que
ele me deu. Não existe B-i-a-n-c-a sem I-a-n, mas existe I-a-n sem B-
i-a-n-c-a. Preciso aprender a viver sem ele, assim como ele, sem
mim.
—Porque eu nunca fui minha. Então não posso ser de mais
ninguém. Ainda não.
Ela ficou em silêncio, absorvendo minhas palavras, depois disse:
—Eu entendo. Completamente. E é por isso também que eu
preciso me separar do seu pai. Mas pra mim é pra sempre. Você
pode ter outra chance, filha. Vocês dois são jovens, vão poder se
acertar.
E com isso, eu derramei ainda mais lágrimas em seu colo.
—Eu ainda sou bi —eu disse, depois de uns segundos de
hesitação, me sentindo na obrigação de ressaltar. —Só pra ficar
claro… Não é só porque eu quero ficar com um homem agora que eu
sou menos bissexual. Atração é uma coisa à parte, a gente não
escolhe por quem se apaixona. Sabe disso, né, mãe?
Senti seu braço tensionar ao meu redor.
—Bianca, você tem que entender que é um pouco difícil pra mim…
Que merda, pensei, eu estava a um passo de conseguir a tão
almejada boa relação com a minha mãe, e estraguei tudo tocando
nesse assunto delicado.
—Mas eu vou tentar. Prometo, filha, eu quero ficar do seu lado.
Você só precisa ter um pouco de paciência comigo —ela completou.
Eu só consegui balançar a cabeça e chorar mais. Era isso. Era
isso que eu precisava ter ouvido quatro anos atrás. Só isso.
—Te amo, mãe. E tô feliz por você. —E estava mesmo. Orgulhosa
pela coragem dela de se divorciar. Para alguém que vive na alta
sociedade e se importa tanto com a opinião dos outros, é uma
escolha ridiculamente difícil a se fazer.
—Eu também amo você, filha. Muito. Vai ficar tudo bem, você vai
ver —ela sussurrou, e tinha amor de verdade naquelas palavras.
Nos dias que se passaram, a casa ficava em silêncio. Minha mãe
pediu o divórcio e meu pai acabou aceitando, depois de mais uma
discussão. Ele passa agora as noites em algum hotel até comprar
um novo apartamento e minha mãe e eu estamos nos aproximando
um pouco mais, agora que só há nós duas no apartamento.
Estou a convencendo de começar a fazer terapia, enquanto o
processo de separação vai acontecendo. Eu pretendo voltar também
às sessões com a minha psicóloga.
Só faz uma semana, mas eu já me sinto um pouco melhor desde a
última vez que vi Ian. É claro que só de pensar em seu nome, uma
enorme onda de tristeza cai sobre mim e eu preciso lutar contra a
falta que sinto dele todos os dias, mas eu tenho certeza de que tudo
vai melhorar.
Agora, estou passando o sábado em casa, colocando as matérias
da faculdade em dia, tentando com todas as forças distrair minha
cabeça e não pensar no nome de três letras. Mas ele dificulta muito
isso quando liga para mim incansavelmente. Tipo agora.
Tiro o aparelho da gaveta para recusar mais uma chamada, mas
não são três letras que aparecem no visor.
—Oi, Morg?
—Bic! Onde você tá? —A voz dela sai alta, desesperada e
embargada.
Imediatamente, fico em alerta.
—Tô em casa, por que? O que aconteceu?
—O Ian sofreu um acidente, corre pro hospital agora!
46

Bianca

“Sentir saudade nunca traz de volta quem se foi


quando ver, já fui
Acho que agora é tarde demais pra nós dois [...]
Cê sabe como eu fico se eu te vejo chorar
E quem perde com isso é nossa relação”
Saudade-Luiz Lins ft. Konai
Faz três anos desde a última vez que eu dirigi um carro. Quando
completamos 18 anos, Ian e eu tiramos a carteira de motorista
juntos. Eu passei na prova antes dele, inclusive, mas como ele
ganhou um carro, de presente do pai, antes de mim, começou a
dirigir e a me dar caronas primeiro.
Neste momento, não tenho condições emocionais para dirigir, mal
enxergo o que está na minha frente, devido às lágrimas, e o aperto
no meu peito é tão forte que me dá enjoo, mas sei que sou
igualmente incapaz de ficar esperando qualquer carro de aplicativo
que me leve até o pronto socorro onde Ian foi levado.
Por isso, saio correndo e pego as chaves do carro da minha mãe,
mas ela me para antes e pergunta para onde estou indo. Depois de
driblar um pouco do desespero e tentar explicar com clareza a
situação, minha mãe se voluntaria a me levar e nós voamos até o
hospital.
Chegando lá, vejo o tio Bento de pé, andando de um lado para o
outro com o cenho franzido e os olhos vidrados, parecendo
consternado.
Ando em direção a ele. Quero saber o que aconteceu, preciso
saber onde Ian está, se ele está bem, se está… Não. Não posso
nem cogitar o contrário. Ele tem que estar vivo.
Ao me ver, Bento solta os braços, vem em minha direção também
e me abraça. Talvez percebendo meu estado e todo o desespero
estampado em meu rosto, ele se apressa em dizer:
—Ele tá bem, o acidente não foi grave.
Uma bigorna enorme parece sair de cima do meu peito e o alívio
me percorre.
—Onde ele tá? Eu posso ver ele? —Minha voz ainda treme e eu
não consigo parar de fazer perguntas.
—Eu não sei, mas você pode perguntar ao médico dele, quando
ele aparecer.
Eu assinto com a cabeça e olho em volta, percebendo que o resto
das pessoas da sala de espera são alguns dos amigos de Ian. Minha
mãe aparece depois de ter estacionado o carro e começa a
conversar com o tio Bento.
Eu me viro e me aproximo do grupo de rapazes sentados nas
cadeiras da sala de espera.
Gabriel é o único de pé também e dá um sorriso fraco ao me ver.
—Que bom que a Morgana conseguiu te chamar.
—Foi você quem avisou ela? —Eu pergunto.
—Foi, eu não tinha seu número. Ela deve estar vindo pra cá
também, e avisado seus outros amigos.
—Gabriel, você sabe o que aconteceu?
—Ele tava no bar com a gente. Bebeu demais, até mais que a
gente. Em algum momento, ele levantou para ir no banheiro e não
voltou mais, aí foi quando a gente percebeu que o carro dele não
tava mais estacionado na rua e que ele provavelmente tinha ido até a
sua casa.
Ele estava indo até a minha casa?
Eu arfo e escondo o rosto nas mãos. Não acredito que parte disso
é minha culpa.
—Ei, Bianca. Não se sinta culpada, tá? —O moreno de olhos
verdes sentado na cadeira diz para mim. —Eu é quem não devia ter
dado a ele tanta cerveja —resmunga, por fim.
—Para com isso, Henrique. Ninguém tem culpa nisso —Paulo, o
rapaz de pele escura e cabelos crespos sentado ao seu lado,
intervém.
—É. E além disso, a gente não tem que pensar nisso agora. O que
importa é saber se ele tá bem —Gabriel complementa.
Um tempo depois, um homem alto de jaleco branco aparece na
sala e todos nós corremos em sua direção, precisando de mais
informações sobre o estado de saúde do Ian.
O médico diz que ele foi atendido e passa bem. Sofreu uma leve
lesão na perna e teve alguns ferimentos no rosto e nos braços, mas
fora isso, seu quadro não é nada grave.
Ele completa dizendo que ele poderia ter sido pior se Ian não
estivesse usando cinto de segurança. Pelo que eu pude entender,
houve uma batida com o carro, mas Ian acertou um poste e ninguém
mais se feriu.
O doutor diz que ele acordou, mas como o horário de visitas
chegou ao fim, permite apenas a entrada do pai no quarto. Eu,
mesmo assim, imediatamente pergunto se posso entrar também.
—Você é da família? —Pergunta.
—Eu…
—Ela é prima dele —o pai de Ian se apressa em responder por
mim.
—Ah, sim. Vou dar prioridade ao pai, você pode entrar depois, tudo
bem? —Ele se dirige a mim.
Balanço a cabeça confirmando.
Quando os dois saem, Morgana entra pela porta automática do
pronto socorro e Gabriel corre até ela. Não consegui até agora
processar o porquê do amigo de Ian ter o número do contato dela e
nem porquê eles estão se abraçando desse jeito agora. Tudo o que
eu quero é ver o meu melhor amigo.
Mesmo sendo tranquilizada por seus amigos e pelo médico, eu
sinto uma enorme necessidade de falar com ele. E não deixo
escapar a contradição nisso.
Passei a semana inteira tentando evitá-lo, mas agora tudo o que
eu preciso é ver aquele sorriso de lado e tranquilo que faz meu
coração errar as batidas toda vez.
47

Ian

“Podemos apenas conversar?


Conversar sobre onde estamos indo
Antes de nos perdermos, deixe-me sair primeiro”
Talk-Khalid
Minha boca está seca e eu nem lembro de ter dormido. Muito
menos de ter acordado no hospital. Tudo ainda é muito confuso. Em
um momento, estou vendo luzes brilhantes no meio de uma avenida
escura e no outro, uma luz branca e forte reflete tudo ao meu redor.
A enfermeira me deixou a par do que aconteceu, mas mesmo
assim, me sinto um pouco desorientado ainda. E um pouco dolorido.
Meu pai entra no quarto junto com o médico que me atendeu. O
doutor dá a notícia de que está tudo bem, mas eu ainda preciso ficar
mais dois dias em observação, por causa da minha perna e da
concussão.
—Você teve muita sorte, rapaz. Só não misture bebida com
direção outra vez —aconselha.
—Nunca mais —respondo sério, minha voz saindo um pouco
rouca.
Eu não só me arrependo do que fiz como me assustei por ter
acontecido. Eu nunca fui de beber muito. Já fiquei bêbado várias
vezes, sim, mas sempre em festas ou na casa dos meus amigos e
nunca voltando para casa dirigindo. Nunca.
Mais uma vez, agi por impulsividade, e desta vez isso quase
custou a minha vida. Me sinto um imbecil irresponsável e sinto muita
raiva e vergonha de mim mesmo nesse momento.
Esse médico deve achar que eu sou mais um adolescente riquinho
inconsequente que não está nem aí para nada. Eu não sou assim.
Quando se retira, ficamos eu e meu pai sozinhos. Estou tenso. Ele
não diz nada a princípio, só anda devagar em minha direção e senta
na beirada da cama.
Eu fico esperando o esporro, a lição de moral, a decepção que
tenho certeza que ele está sentindo, serem depositados em mim.
Mas ao invés disso, ele olha na minha direção e percebo que seus
olhos estão um pouco vermelhos e sua expressão parece
envelhecida. Ele fala:
—Que puta susto você me deu, garoto —sua voz treme.
—Pai… —Tento remediar a repreensão.
—Eu não vou brigar com você, Ian. Se é isso que está pensando.
Você já é bem grandinho, é um adulto. Mas eu também sei que não é
um irresponsável, você já provou isso pra mim e eu sei que a sua
mãe fez um bom trabalho com a sua educação. Então, eu não estou
aqui pra te repreender por ter pego o carro estando totalmente
bêbado, você já recebeu as consequências de ter feito isso.
Não digo nada, não consigo dizer nada. Só espero ele continuar.
—Só quero te dizer que eu tô muito feliz por você estar vivo. Não
sei se você acredita nisso, mas eu amo você, meu filho.
Um nó do tamanho de um pneu de caminhão se instala na minha
garganta. Eu não esperava ouvir isso. Muito menos dele, muito
menos agora. Eu nem lembro da última vez que ouvi essas três
palavras vindas do meu pai.
Não consigo dizer nada em resposta, mas quando ele estica o
braço para afagar meu ombro, eu o puxo para um abraço antes que
ele possa se levantar e sair.
Espero que ele possa entender com o gesto o que eu ainda não
consigo expressar com palavras. O abraço é forte, mas na medida
do possível, porque eu ainda sinto dor em alguns lugares,
principalmente sobre o peito, por onde o cinto de segurança me
deteve.
Quando ele se afasta, seus olhos estão marejados e sinto que
talvez os meus também estejam. Ele fica de pé, respira fundo, limpa
a garganta e pousa as mãos na cintura.
—Bom, eu vou indo. Vou passar em casa e trazer umas roupas pra
você e o seu computador. Sua mãe tá desesperada, é melhor você
falar com ela por chamada de vídeo.
Meu Deus, ligaram para a minha mãe?
—Ela deve estar querendo pegar um avião de volta pro Brasil
nesse segundo —esfrego a ponte do nariz com os dedos.
—Pois é —ele ri.
Meu pai se despede e sai do quarto.
Eu fecho os olhos e deito a cabeça no travesseiro branco com
cheiro de ar condicionado.
Sinto uma vontade imensa de chorar, que merda. Parece que
acabei de sair de uma roda gigante de emoções, é tudo tão
conflitante dentro de mim que eu só quero botar tudo para fora e me
ver livre novamente.
Antes que eu possa desfrutar desse minuto sozinho no silêncio
deste quarto sem cor, a porta se abre mais uma vez e eu nem me
dou o trabalho de abrir os olhos, deve ser a enfermeira. Então, penso
que se talvez eu fingir estar dormindo, ela pode sair logo.
Mas a pessoa não se retira, e mesmo sem ver, sinto sua presença,
porém, não ouço seus movimentos.
Abro os olhos devagar e me deparo com um par de olhos soturnos
tão intensos que me arrancam o fôlego.
Bic é como uma miragem. Ter ela na minha frente depois de uma
semana, que pareceu eterna, sem vê-la é como subir no Monte
Everest, dar meia volta e absorver toda a paisagem de uma só vez.
E mesmo com os cabelos bagunçados de sempre, as roupas largas
casuais e a maquiagem dos olhos borrada, ela ainda é a garota mais
linda do mundo para mim.
Ela se sobressalta levemente quando nossos olhos se encontram,
mas não desvia o olhar, tampouco diz alguma coisa.
Permanecemos os dois em silêncio, nenhum de nós sabe o que
dizer. Talvez porque haja tanto a ser dito, que nenhum de nós sabe
bem por onde começar. Eu me contento em olhar para ela e
aproveitar a sensação de tê-la por perto de novo.
—Como você tá? —Ela pergunta, baixinho.
—Bem —respondo automaticamente, minha voz sai fraca.
Ela corre os olhos pelos arranhões em meus antebraços, a cicatriz
na minha sobrancelha e franze o cenho levemente. Parece estar
travando uma batalha interna, ponderando o que deve ou não falar e
se deve ou não me tocar.
Eu quero que ela me toque. Quero que me abrace, que fale
comigo, que quebre essa tensão que nunca antes existiu entre nós,
mas que agora é tão tangível e desconfortável. Quero que ela diga
que está tudo bem e que, quando eu sair dessa cama de hospital,
nós ficaremos juntos.
Sua mão treme ao se erguer hesitante, e eu não perco tempo em
segurá-la com a minha. Bic olha novamente nos meus olhos e, com
uma súplica, os meus pedem para que ela se aproxime.
Ela deixa que as lágrimas tomem seus olhos e abaixa o corpo para
prender os braços em volta do meu pescoço.
—Eu quase morri de medo —ela diz com a voz fina. Sinto o
coração apertar ao ouvir sua voz de choro.
—Eu sei —sussurro de volta.
—Não faz mais isso, tá? —Ela implora num tom embargado, me
abraçando forte.
—Prometo.
Eu queria poder abraçá-la do jeito certo nesse momento. Passar
os braços por sua cintura e segurá-la de uma forma que ela nunca
saia mais de perto de mim de novo, que fique comigo. Mas não dá.
Ela se afasta, limpa os olhos e funga algumas vezes, mas não diz
nada. Nenhuma das coisas que eu quero ouvir.
Ao invés disso, abraça o próprio corpo e resolve dizer:
—Eu já vou, o médico não me deu muito tempo pra ficar aqui —dá
um sorriso fraco e começa a se virar em direção à porta. —Tô feliz
que você esteja bem.
Só isso? Ela parece sincera, sei que torce pelo meu bem, mas eu
não me conformo. Depois desses últimos momentos que vivemos, é
só isso o que ela tem a me dizer?
—Bic! —Eu chamo, antes que ela possa alcançar a maçaneta. —
Fica mais um pouco.
Ela hesita.
—Pra quê?
—“Pra quê”?
Não sei responder a essa pergunta. Essa não é uma pergunta que
qualquer um de nós faria. Eu não devia ter que explicar a ela o
porquê de eu querer que ela fique, o porquê de eu gostar de sua
companhia. Esse tipo de insegurança não combina com a gente.
Eu até poderia explicar, mas vou acabar dizendo coisas que talvez
a afastem ainda mais. Posso deixar escapar certas palavras, três
palavras, e correr o risco de tê-las exposto no momento errado, de
novo.
—Eu tenho que voltar pra casa, Ian. Quando você sair daqui, a
gente se fala.
—Não! A gente vai se falar agora. Eu não aguento mais, te dei o
espaço que você queria, mas eu continuo no escuro aqui! Não sei
porque você se afastou, não faço ideia do que eu possa ter feito.
Você precisa me falar o que aconteceu pra tudo ter mudado, Bic. Por
favor.
Seus olhos expressam a mais pura tristeza, ela mantém os braços
cruzados na frente do corpo e desvia o olhar. E, como continua não
dizendo nada, eu sou obrigado a tomar conclusões.
—Foi alguma coisa que eu fiz? —Eu mantenho o tom de voz
baixo. —Eu machuquei você naquela noite? Fiz algo que você não
gostou?
—Não! Não, não foi nada disso! —Ela arregala os olhos ao dizer
com pressa. —Você… Foi tudo perfeito, não tem nada a ver com
aquela noite.
—Então, o que é?
Bic respira fundo.
—O que você quer comigo, Ian? Um namoro? —Ela questiona
sem rodeios e a maneira na qual projeta a pergunta só me conduz a
responder:
—Não…
—Porque eu sinto que não posso e nem quero me envolver com
ninguém agora. A situação lá em casa tá complicada e eu preciso de
um tempo pra processar tudo o que tá acontecendo na minha vida —
ela continua.
—O que tá acontecendo na sua vida? —Questiono.
E por que eu não posso mais fazer parte dela?
—Meus pais estão se separando —ela diz, de uma vez.
Essa declaração cala todas as minhas acusações. Eu já estive
exatamente onde ela está, sei que nada sobre essa situação é
simples. Mesmo assim, sinto que é justamente por isso que eu devo
estar lá por ela. Quero ficar ao lado dela nesse momento, assim
como ela fez comigo quando foi a minha vez.
—Eu preciso de um tempo, você precisa se recuperar. A gente se
fala quando as coisas voltarem a ser um pouco mais fáceis.
Não quero esperar as coisas ficarem mais fáceis, não quero
esperar essas cicatrizes idiotas no meu corpo se curarem, não quero
ficar mais um segundo longe dela. Eu quero insistir e lutar, mas não
posso, não se sou o único disposto a fazer isso.
Bic se aproxima mais uma vez, deixa um beijo na minha têmpora e
sai pela porta, sem olhar para trás ou dizer uma única palavra. É
isso. Não há mais nada a se fazer.
48

Bianca

“Eu não sei nem fazer baliza. ”


Brutal-Olivia Rodrigo
—Pode ir mais pra trás.
Mudo a marcha. O carro se move devagar e, de repente, as rodas
deslizam para trás rápido demais, eu piso no freio e o carro para
bruscamente, nossos corpos são jogados para frente e depois
batemos com as costas no banco.
—Foi demais —Bruna ressalta.
—Eu percebi —respondo, mal-humorada.
—Prima, relaxa. Você tá indo muito bem.
Eu já sei dirigir, tenho carteira de motorista e, mesmo que tenha
passado muito tempo desde a última vez em que eu estive atrás de
um volante, conheço todas as regras de trânsito.
Então, porque estou tendo tanta dificuldade em fazer algo tão
simples quanto estacionar o carro da minha prima na vaga de um
estacionamento vazio à meia noite de um sábado?
—Ai, chega. Tô cansada, me leva pra casa, Bruna —eu resmungo.
—Não! Tenta de novo, só mais uma vez —ela incentiva. —Você
não insistiu tanto pra gente vir aqui pra você treinar e voltar a dirigir?
Então, agora vamos.
Eu respiro fundo e coloco as mãos no volante mais uma vez. Ela
tem razão, fui eu quem a tirou de casa para começar com a primeira
parte dessa missão de me tornar um pouco mais independente.
Na última tentativa, eu consigo realizar a baliza, mas faço de modo
mais lento e desajeitado que o normal.
—Não desanima, Bibi. Você foi muito bem pra quem não dirige há
um tempo. E é tudo questão de prática, já já você vai se dar
superbem pra dirigir na rua.
—Assim espero —suspiro.
Bruna troca de lugar comigo, saindo do banco do carona para
tomar seu lugar atrás do volante e começa a pegar o caminho em
direção à minha casa. Seu celular não para de tocar.
—Quem é? —Tomo a liberdade de perguntar.
—Ah, só as meninas lá do trabalho. Tão me chamando pra ir numa
balada. Eu até iria, mas tô cansada demais, só quero dormir.
—Cansada em pleno sábado —eu constato, me surpreendo.
Bruna costumava sair nos finais de semana e, algumas vezes, me
chamava para ir junto. —O trabalho tá puxado?
—Demais! Eu vivo na correria dentro daquele escritório. Quando
chego em casa, só penso em cair na cama e dormir. Não vejo a hora
do meu chefe contratar uma nova secretária.
—E as vagas estão abertas? —Pergunto, sem rodeios.
Já faz um tempo desde que eu procuro um emprego para começar
a ganhar o meu próprio dinheiro. Parte daquele plano de criar
independência, claro. Não quero mais depender do meu pai. Além
disso, preciso de algo para fazer, além de estudar, que possa ocupar
minha cabeça.
—Você se interessa, prima? Eu posso te indicar lá —Bruna se vira
para mim.
—Ah, eu ia amar, mas não tenho experiência em nada, nunca
trabalhei.
—Você sabe usar o Excel e atender um telefone sem gaguejar?
—Sei…
—Então você é perfeita pra vaga. Monta um currículo simples e
me manda por e-mail.
—Valeu, prima! —E pela primeira vez em algum tempo, eu me
sinto animada com algo na minha vida.
Já fazem duas semanas desde que eu saí daquele quarto de
hospital. Duas semanas do dia em que achei que meu mundo fosse
acabar, que achei que fosse perdê-lo. Duas semanas desde que ouvi
a voz de Ian pela última vez.
É claro que eu o vejo pelos corredores da faculdade ainda, mas
nós não nos falamos muito. Eu sei que ele deve pensar que essa é
uma situação ridícula, eu também me sinto péssima, mas sei que se
eu nunca conseguiria voltar a ser só amiga dele, nem se tentasse.
Não depois de todos os limites que cruzamos.
Nós ainda nos encontramos com nossos amigos, porém
separadamente. Estamos todos tentando agir como se eu não
tivesse causado uma enorme ruptura na nossa “família”,
basicamente pisando em ovos, tentando não criar um clima ainda
mais tenso.
Sei que Morgana também me odeia um pouco nesse momento, e
ela está certa. Eu descumpri nossa promessa, afinal.
E sei disso porque no meio dessa semana, eu, Pedro e Yuri
estávamos andando até a biblioteca da universidade, depois de eu
convencê-los a me fazer companhia para estudar, quando
encontramos Morgana no caminho. Ela deu um sorriso sem graça e,
para forçar aquela normalidade, continuou andando ao nosso lado
sem falar nada.
Nós nos sentamos na mesa de estudos e Pedro quebrou o
silêncio, dizendo:
—Que climinha, hein?
Todos olhamos para ele, levemente alarmados.
—Pedro! —Yuri reclamou, dando-lhe um leve cutucão.
—O quê? O clima tá pesado mesmo e eu tô cansado disso. Vamos
resolver logo isso, gente. Tá insuportável, já.
Então, decidi me pronunciar.
—Olha, eu sei que fiz merda, tá bom? Eu disse que as coisas
entre eu e o Ian não iam se complicar e, como vocês puderam
perceber, deu tudo errado —suspirei. —E, Morg, eu sei que você tá
puta comigo por isso e por eu ter escondido de vocês, mas você nem
pode me culpar porque você tá pegando o Gabriel e também nem
contou pra gente —eu disse.
—Peraí, quem é Gabriel, gente? —Pedro perguntou, totalmente
confuso.
—Um amigo do Ian —respondi.
Yuri deu um berro, depois imediatamente cobriu a boca com a
mão, se lembrando do ambiente em que estávamos.
—Você tá pegando um amigo do Ian? —Ele perguntou à Morg,
conseguindo expressar o choque mesmo sussurrando, para respeitar
o silêncio da biblioteca.
—Gente! Isso aqui não é sobre mim, tá? Vamos focar aqui? —
Morgana respirou fundo antes de continuar —Bic, eu não tô puta
com você porque você separou nosso grupo. Essa culpa nem é só
sua. Eu só tô chateada porque você se afastou.
O clima voltou a pesar e, naquele momento, eu percebi outro
ponto negativo que essa overdose de Ian me causou: eu acabei me
afastando dos meus outros melhores amigos, porque só me via
querendo passar tempo com ele.
Resolvi, então, desabar e deixa-los a par de tudo o que aconteceu
nos últimos dias.
—É, a gente falou com o Ian no hospital. Ele tá bem mal com essa
situação, Bi. Aquele gatão é doido por você —Yuri disse, quando eu
terminei.
—E você também é doida por ele, que eu sei! Por isso, eu ainda
não me conformo, vocês vão parar de se falar agora? —Morg
indagou.
Eu respirei fundo antes de responder:
—Sabe como eu me senti quando me você ligou pra dizer que ele
tinha sofrido um acidente? Como se eu fosse morrer, Morg. Como se
uma parte de mim tivesse sido esmagada. Ninguém deveria se sentir
assim por causa de outra pessoa. Eu não quero me sentir assim por
ele, é um sentimento muito destrutivo e perigoso. Por isso, eu tive
que me afastar, pra me cuidar, pra aprender a viver sozinha. —Eles
permaneceram em silêncio enquanto eu falava, absorvendo o que eu
dizia —Eu preciso organizar minha vida e ele, a dele. Então, por
enquanto a gente não vai ficar junto. E tá tudo bem! —Forcei um
sorriso —Sério, vai ficar tudo bem. Eu prometo que a gente vai voltar
a se falar e as coisas vão voltar a ser como antes.
—As coisas nem sempre precisam voltar a ser como eram antes,
amiga. Nossa amizade aguenta algumas mudanças, contanto que
você esteja feliz com elas… —Morg disse, dessa vez usando um tom
carinhoso.
—Eu tô feliz —afirmei.
E estava, mesmo. Ou pelo menos, sabia que ia ficar.
No mais, a vida tem andado bem, o que é bastante irônico, na
verdade. Quando certos aspectos da minha vida parecem uma
merda, outros não poderiam estar melhores, só para me deixar mais
confusa.
Minha mãe está feliz e meu pai saiu das nossas vidas de vez, se
mudou até para outro bairro.
Me dói um pouco perceber que nossos dias são melhores sem ele.
Uma parte de mim pensa que não deveria ser assim e eu sinto em
admitir que meu pai não faz falta na minha vida, mesmo sendo
verdade.
Acho que mesmo não tendo um bom relacionamento com meu pai,
laços ainda são laços. Mas vai passar, e essa frase eu tenho repetido
bastante nos últimos dias.
Eu já comecei a vir dirigindo sozinha até a faculdade. É um
percurso rápido, mas eu faço mesmo assim, só para gerar cada vez
mais confiança no volante.
E, para completar, tenho uma entrevista com o chefe da Bruna
marcada para o final desta semana, provavelmente estarei
empregada na próxima segunda-feira.
Também falei com a minha psicóloga sobre Ian, é claro. Nossas
consultas basicamente apenas giram em torno deste maldito nome.
As palavras “dependência emocional” foram levantadas e eu custei a
aceitar.
Acho que, na verdade, fiquei apavorada com a constatação, mas,
felizmente, esse é um mal curável. Para uma pessoa que cresceu
buscando afeto e aprovação dos pais, projetar essa carência nos
relacionamentos é natural, embora tóxico.
Mas estou me reerguendo, fazendo coisas sozinhas,
experimentando pouco a pouco coisas novas. Novos sabores de
hidratante labial, novas séries e filmes para assistir sozinha,
caminhos a pé que eu antes não tomava e vou me sentindo cada vez
menos perdida e assustada e cada vez mais forte, orgulhosa.
De uma forma geral, estou lidando bem com as últimas mudanças
bruscas da minha vida.
Está tudo indo consideravelmente bem, então por que não me
sinto da mesma forma? Por que não consigo me sentir inteiramente
contente e aproveitar esses momentos? Por que ainda sinto que há
algo faltando?
49

Ian

“Você me deixa louquinho,


chorando baixinho
louquinho de amor”
Louquinho-Jão
Depois do acidente, fiquei mais dois dias no hospital, antes de ser
liberado para casa. Mas, de lá mesmo, no instante em que meu pai
me trouxe o computador, tive que ligar para minha mãe em uma
chamada de vídeo para tranquilizá-la.
—Ian de Carvalho Mendes, pelo amor de Deus! Eu não consigo
acreditar no que você fez! Quase me matou do coração, garoto! Eu
estava a ponto de largar toda a exposição aqui e pegar qualquer
meio de transporte de volta para o Brasil pra te ver! Tem noção
disso? —Ela disse.
Seus olhos pareciam cansados e vermelhos, os cabelos curtos e
castanhos estavam armados.
Percebi na hora que ela teve problemas ao dormir e me senti
terrivelmente culpado por causar tanta preocupação e deixá-la
naquele estado.
Ela estava na Espanha, um fuso horário de mais 5 horas daqui, ou
seja, eram 3 da manhã lá quando eu liguei, e minha mãe estava
totalmente em alerta.
—Tenho sim, Dona Débora. Mas não precisa se preocupar, tá? Eu
já tô bem, o acidente não foi nada grave.
—Tá tudo bem mesmo, meu filho? Você tá sentindo dor? Seu pai
me disse que o médico vai te liberar, mas se você não estiver se
sentindo bem, fala com os médicos, ouviu, Ian? Você tem essa
mania de esconder quando está doente e eu já cansei de te falar o
quanto isso te faz mal.
—Tá tudo bem, mãe. Prometo. Amanhã mesmo eu tô voltando pra
casa.
—Como você faz uma coisa dessas, meu filho? —Ela
choramingou —Você sempre tomou tanto cuidado, nunca foi de
beber muito! O que te levou a fazer essa burrada, pelo amor de
Deus?
—Uma menina —eu suspirei, nem acreditei que estava dizendo
aquilo.
—O quê? Uma menina? Você começou a namorar? E não contou
pra sua própria mãe? Que menina é essa?
—É a Bianca, mãe.
—A Bianca, filha do Sérgio e da Valéria? Você tá brincando! —E
aí, ela começou a berrar —VOCÊS FINALMENTE ESTÃO
NAMORANDO? AI, MEU DEUS, QUE NOTÍCIA MARAVILHOSA! EU
SEMPRE ACHEI VOCÊS DOIS TÃO LINDINHOS JUNTOS!
—Mãe, não! Não é nada disso, a gente não tá namorando —eu
interrompi, antes que ela começasse a fantasiar sobre ter netos.
—Ah… Mas… O que aconteceu, filho? —Dessa vez, seu tom foi
compreensivo. De alguma forma, apenas me vendo através da
câmera do computador e ouvindo minha voz, minha mãe conseguiu
captar as emoções estampadas em meu rosto, por mais complicadas
que fossem.
—Não deu certo —comecei explicando. Depois me dei conta de
que, na verdade, essa frase era simples demais e, além de não
explicar nada, era inapropriada para a situação.
Bic e eu nem conseguimos chegar a ser algo que tivesse chance
de dar certo ou não, e eu me odeio um pouco ao perceber que teria
dado tudo para correr esse tipo de risco.
—Oh, meu amor… —Minha mãe disse, com uma voz doce, depois
de eu ter explicado resumidamente a situação. —Eu tenho certeza
de que isso é só uma questão de tempo pra vocês se acertarem.
Eu quis muito acreditar naquilo.

No dia seguinte, antes de eu ir para casa, meus amigos


apareceram no hospital de manhã.
—Bom dia, campeão! Boas notícias, o médico disse que sua
cirurgia de fimose foi um sucesso, parabéns! —Henrique disse,
entrando na sala seguido por Gabriel, Matheus e Paulo.
—Nossa, cara, como você é engraçado —eu revirei os olhos.
Os outros foram um pouco mais maduros que isso e, depois de
pararem de rir, me perguntaram como eu estava.
Eles me contaram com mais detalhes de como foi o dia do
acidente. Eu não queria informações precisas de como eles me
seguiram de carro até me encontrarem desacordado. Se pudesse,
esqueceria totalmente daquela noite. Então, tentei ignorar a maior
parte, até eles citarem o nome da Bic.
—Ela tava bem mal, cara. Quase começou a chorar quando a
gente falou que você bateu o carro porque foi atrás dela —Paulo
disse.
—Vocês disseram isso a ela? —Eu berrei. Não acreditei que a
deixaram se sentir culpada.
—Não! A gente tentou acalmar ela —Gabriel corrigiu. —A garota
gosta mesmo de você, irmão.
—É… tenho certeza que foi por isso que ela veio aqui ontem pra
me dizer que acabou tudo. —Resmunguei, sarcástico.
—Ela terminou com você? Não é possível! Eu podia jurar que
vocês dois iam sair daqui felizes e saltitantes direto pra lua de mel.
—Henrique caçoou.
Tive que resistir a vontade incontrolável de jogar o travesseiro do
hospital na cara dele.

Meu outro grupo de amigos apareceu logo em seguida, vindo ver


como eu estava.
—E aí, gatão? —Yuri sentou na beira da cama. Pedro e Morg
permaneceram de pé. Ela, de braços cruzados.
—Que merda você fez com essa carinha bonita, hein?
—Ah, você me acha bonito, Morg? Muito obrigado, são seus olhos
—eu brinquei.
—Até parece que você não sabe que é o puro padrão —ela sorriu
de lado. —Só fica feio quando faz minha amiga chorar.
Meu sorriso despenca quando ela é mencionada. Subo os olhos
de volta à Morg e pergunto, baixo:
—Ela tava chorando mesmo?
Morg balançou a cabeça, confirmando.
—Bom, saiba que ela não é a única que tá sofrendo —resmunguei.
—Ian, você gosta dela? —Morg perguntou, dando um passo na
direção da cama.
—Muito. Bem mais que como amigo, mais que tudo —me
surpreendi com a naturalidade na qual a resposta saiu, era a mais
pura verdade.
—Então faz alguma coisa! —Pedro disse.
—Não tem nada que eu possa fazer. Foi ela quem “terminou”
comigo. Eu não posso ficar correndo atrás dela se ela não quiser que
eu faça isso.
—Então você vai desistir? —Yuri indagou.
—Não. Isso não.
Apesar de tudo, eu não me via desistindo dela. Uma parte de mim
sempre teria esperança de uma circunstância mais favorável para
nós dois.
—E o que vocês dois vão fazer, então? —Yuri quis saber.
Essa pergunta eu não soube responder.
Nós conversamos um pouco mais sobre a faculdade e mais outras
coisas que não envolvessem aquele nome de três letras. Depois
disso, finalmente fui para casa.
Entrar no carro do meu pai me relembrou de que aquele meu SUV
provavelmente já era. O que é uma pena, eu amava aquele carro.
Não sei se meu pai pensa em me dar outro, mas eu não contaria
com isso tão cedo, de qualquer forma.
Assim que entrei pela porta de casa, Sopa correu até mim e me
abraçou, passando seus bracinhos rechonchudos pelos meus
joelhos.
—Inham, você já melhorou?
E assim, depois de passar as 48 horas anteriores me sentindo
totalmente para baixo, essa menininha me fez sorrir com sua vozinha
fina e preocupada e o apelido que era só meu.
—Já sim, Sopinha. Tô inteiro.
—Mas você tem um dodói no rosto e no braço —ela aponta para
os arranhões.
—Isso aqui? Não é nada. Seu irmão é de ferro.
—Tipo o homem de ferro?
Quem está deixando essa criança assistir os filmes da Marvel?
—Exatamente.
—Então, você já pode brincar comigo?
Eu olhei para o meu pai, que deu de ombros, sorrindo.
Sopa pegou minha mão e me guiou até seu quarto de brinquedos.
Nós brincamos de casinha juntos até ela se cansar e, quando eu
fui para o meu quarto, me permiti chorar. Ao menos um pouco. Eu
precisava disso.
50

Ian

“Sem querer ser dramático,


mas eu quero morrer”
Smoking out the Window-Silk Sonic
É quando menos se espera que as coisas acontecem. É quando
estamos mais ansiosos que todas as outras coisas parecem andar
devagar. É quando eu só penso em uma única garota, que outras
voltam a falar comigo.
Depois que saí do hospital, recebi mensagens de várias pessoas
querendo saber sobre o meu estado de saúde, incluindo algumas
meninas com quem ficava antes da Bic.
Mas eu não visualizei nenhuma delas. Nenhuma dessas ficadas
vão me fazer sentir do jeito que eu me sinto quando estou com ela e
nenhuma dessas garotas é ela.
Uma semana virou duas semanas, que viraram três, que viraram
quatro e, de repente, um mês inteiro se passou desde que tive alta.
Nada de interessante tem acontecido na minha vida, e mesmo se
tivesse, a única pessoa com a qual eu gostaria de compartilhar
momentos não está mais interessada em passar o tempo comigo.
Então, basicamente, está tudo uma merda.
Me sinto vivendo no modo automático, nada de novo acontece.
Exceto que voltei a malhar.
Um dia, quando eu estava deitado na cama, ouvindo música e
olhando para o teto sem porra nenhuma para fazer, meu pai
apareceu na porta. Notou que a mala que ficava ao lado da cama
estava vazia e o guarda-roupa aberto continha minhas roupas.
—Achei que você fosse voltar pro apartamento da sua mãe depois
que a obra acabasse —ele disse.
—É, eu… decidi ficar aqui mesmo.
Meu pai abriu um sorriso contido.
—Admita, você gosta desse quarto.
—Até que, pra um quartinho de hóspedes, esse quarto é bem legal
—eu entrei na brincadeira.
—Ian, esse não é o quarto de hóspedes.
Isso chamou minha atenção.
—Não?
—Não. Esse sempre foi o seu quarto. Mas quando você parou de
vir pra cá quando criança, eu mandei pintarem as paredes de branco
—ele olhou em volta, parecendo pensativo. —Não sabia se você ia
voltar algum dia, mas de alguma forma a decoração de Relâmpago
McQueen tinha que sair em algum momento —ele riu.
Eu nunca tinha parado para analisar que esse ambiente era maior
que o de um quarto de hóspedes normal. E pensar que meu pai
havia feito mesmo um quarto só para mim em sua nova casa, me
sensibilizou. Esse quarto sempre foi meu, e ele ainda esperava que
eu voltasse.
—Bom, eu tô indo na academia agora. Você podia vir junto, vai ser
bom pra você fazer algum exercício —ele propôs.
—Ah, pai, que preguiça —foi minha resposta.
—Ian, larga de ser molenga e vai fazer algo com a sua vida, cara!
Só fica o dia inteiro nesse quarto sofrendo pela Bianca. Ela já seguiu
com a vida dela, sabia? Você precisa fazer o mesmo!
—Quem te disse que eu tô sofrendo pela Bianca e como você
sabe que ela tá seguindo com a vida dela? —Ergui uma sobrancelha.
—Sua mãe me contou sobre vocês.
—A MINHA MÃE? —Eu me sobressaltei.
—É, aparentemente ela voltou a conversar com a mãe da Bianca,
agora que ela e o Sérgio tão se separando.
—Nossa, parece que a fofoca rola solta nessas famílias, hein?
—Ah, faça-me um favor, você acha mesmo que ninguém ia
desconfiar do namoro de vocês? Até parece que eu também nunca vi
vocês dois de chameguinho pelos cantos. Depois que a sua mãe me
contou, tudo fez sentido. Foi por isso que você bateu o carro, não
foi? Foi tentar ir atrás da Bianca?
—Fui… —Eu confirmei, envergonhado.
—Pois é. Agora ela te largou, arrumou um emprego, tá vivendo a
vida dela e você tá aí… sofrendo pelos cantos. Já deu, coloca um
tênis de caminhada e vamos malhar.
Depois desse leve esporro, eu concordei e fui. Agora, eu e meu pai
nos exercitamos juntos todos os dias.
É surpreendente o quanto eu gosto de sua companhia. Foi um
processo tão natural que eu mal me dei conta de que agora eu e
meu pai realmente nos damos bem. E essa talvez seja uma das
poucas coisas pela qual sou grato nos últimos dias.
O único problema é que, o que era para ser uma forma saudável
de tirar minha cabeça dela, acabou virando um vício e eu agora
posso me considerar um rato de academia. A que ponto eu cheguei,
meu Deus?
E é assim que eu tenho passado esse último mês. Malhando,
estudando, e passando tempo com a minha família.
Se o eu do passado pudesse se ver tendo uma relação amigável
com o pai ou sentado no chão de um quarto inteiramente cor de rosa
e brincando de boneca com a meia-irmã mais nova, se mataria de rir,
diante do absurdo, mas é a mais clara realidade.
Enquanto estamos montando a casinha de suas bonecas, eu tento
parecer inserido no mundinho da Sophia e esconder ao máximo meu
humor, para não acabar com a brincadeira. Mas Sophia, sempre
perspicaz, vê minha expressão séria e indaga:
—Inham, por que você tá triste?
—Não tô triste, Sopa.
—Tá sim, você tá muito sério —ela insiste.
Eu lhe ofereço um sorriso cansado, me esforçando para parecer
um pouco melhor do que como realmente me sinto. Não funciona.
—Olha, os amigos ajudam a gente quando a gente tá triste. Liga
pros seus amigos, Inham.
—Meus amigos estão ocupados.
—A Bic também?
Não posso evitar soltar um longo suspiro.
—A Bic não quer falar comigo.
—Por que não?
Boa pergunta. Eu ainda não sei exatamente a resposta para essa.
—É complicado, Sopinha.
—Você já tentou falar com ela?
—Já. Acho que ela só falaria comigo se eu estivesse entre a vida e
a morte —eu brinco, mas ela não ri.
Sopa parece um pouco pensativa, mas deixa de lado.
Mais um dia se passa, sigo vivendo a rotina no modo automático e
ela não sai da minha cabeça. E eu começo a desconfiar que talvez
nunca saia.
51

Bianca

“Quando vamos além da amizade,


é difícil dizer que voltará tudo ao normal”
Best Mistake-Ariana Grande ft. Big Sean
O maior erro de qualquer pessoa é acreditar que as coisas duram.
Todos os seres humanos têm apenas uma certeza, uma só, e
mesmo assim, conseguimos esquecer de que nada é para sempre.
Minha paz, por exemplo, é algo totalmente efêmero. Os poucos
minutos de descontração em que dou risadas na copa com as outras
funcionárias do meu setor na empresa onde agora trabalho, não
perduram pelo resto do dia.
A cada vez que chego em casa do trabalho e fico sozinha com
meus pensamentos, minha mente volta a ele. Penso em como sinto
falta dele, de ser tocada por ele, de dar risadas com ele.
Eu sigo os mesmos passos todos os dias.
Acordo, vou para a faculdade. Felizmente, consegui mudar para o
turno da manhã, então não preciso arrumar desculpas para evitá-lo
lá.
Depois, volto para casa, almoço, pego o carro e vou para o
trabalho. Passo a tarde inteira lá. Então, volto para casa novamente,
tomo um banho, janto, estudo, se conseguir, e durmo. Simples
assim. Não tenho tempo para mais nada.
A sensação de autonomia deve ser uma das mais gratificantes e
reconfortantes de todas. Devo admitir, estou muito orgulhosa de mim
mesma por estar conseguindo fazer tantas coisas por conta própria.
Mas, mesmo assim, algo dentro de mim sente falta de celebrar
conquistas com ele. Porque tenho certeza de que se ele estivesse
aqui, estaria compartilhando comigo esse orgulho e ficando
extremamente feliz por mim. Sinto tanto sua falta que quase me dói.
E todos os dias, eu digo a mim mesma que vai ficar mais fácil, que
eu vou conseguir esquecer esses sentimentos. Mas não fica, e eu
não esqueço.
O telefone toca na minha bolsa quando entro no quarto, depois de
sair do banho. Deve ser a Jéssica, me chamando para sair com ela,
Bruna e as outras meninas da empresa.
Ela faz isso toda vez que se reúnem em algum barzinho pela
cidade, depois do expediente. Eu tenho quase certeza de que o que
Jéssica quer comigo vai mais além de uma amizade, tendo em vista
as olhadas que ela me dá pelos corredores da empresa, mas, como
não tenho a menor condição de me colocar na posição de tentar um
novo relacionamento, sou obrigada a dar mais uma desculpa de que
estou cansada e não quero sair.
Deixo o celular tocar enquanto procuro meu pijama na gaveta.
Quando a ligação cai na caixa postal, eu agradeço por não ter que
atender e mentir para ela na cara dura, mais uma vez.
Então, ele toca de novo. O que é estranho, porque Jéssica não
costuma insistir. Geralmente, só liga uma vez, provavelmente
sabendo que a resposta para o convite seria não.
Movida pela curiosidade, retiro o aparelho da bolsa e vejo que o
remetente das ligações é o nome com três letras. Meu coração
tropeça nas batidas e começa a pulsar mais rápido. Como pode duas
vogais e uma mísera consoante serem capazes de fazer tanto
barulho dentro do meu peito?
Atendo o telefone. Ele não me ligaria se não fosse importante.
—Ian?
Para minha surpresa, quem responde é uma voz feminina.
—Bic?
Uma voz feminina e infantil.
—Bic! Corre pra cá! O Ian precisa de ajuda! —Sophia diz, com
pressa.
A maneira urgente na qual a menina fala me faz começar a
imaginar cenários que expliquem o porquê de ela ter pego o celular
do irmão para me ligar a essa hora da noite. Então, minha memória
me leva para o dia do acidente de Ian.
O telefone tocou, eu achei que fosse ele, mas a voz do outro lado
da linha era de uma outra pessoa, me avisando que algo ruim tinha
acontecido a ele.
De repente, eu não consigo parar a ansiedade de tomar conta de
mim, e entro em desespero.
—Sopa, o que aconteceu? Tá tudo bem? —Pergunto, trêmula,
beirando o descontrole.
—Não! Você precisa vir pra cá agora!
Sem perder tempo, visto uma blusa e um short, calço os chinelos e
desço até a garagem.

São incríveis certas habilidades que a prática da direção nos traz.


Eu nunca fui e nem voltei da casa do pai dele de carro na vida, mas
de tanto observar Ian repetir esse percurso sentada no banco do
carona do carro dele, desde o começo desse ano, acabei decorando
o trajeto e chego na portaria em tempo recorde.
O porteiro já me conhece e me deixa entrar. Subo as escadas,
com pressa demais para esperar o elevador, a todo momento me
perguntando o que aconteceu dessa vez e se ele está ferido, se está
bem.
Bato na porta e, prontamente, Sophia me atende. Ela sobe na
ponta dos pés para alcançar a maçaneta e assim que me vê, me
puxa pelo braço.
—Vem, Vem! Ele precisa de você! —Ela diz, enquanto me guia até
o quarto de Ian.
—Sopa, me fala o que aconteceu! Ele se machucou? —Eu
pergunto, mas ela não responde minhas perguntas, apenas continua
me puxando, repetindo: "Vem logo! Vem logo! ”.
Começo a ficar ainda mais preocupada e confusa.
Quando chegamos na porta de madeira branca, eu giro a
maçaneta e Sophia me empurra para dentro do quarto.
Parado de pé, com apenas uma toalha enrolada em volta da
cintura, Ian se assusta e me olha com os olhos arregalados em puro
choque e descrença.
Eu congelo. Não sei nem o que pensar no momento, é muita coisa
para processar.
A primeira coisa que reparo é sua aparência. Meus olhos são
imediatamente atraídos para seu peito bronzeado e abdome
definido.
Que ótimo. Enquanto eu passei as últimas semanas me
estressando com trabalho e sofrendo, ele aparentemente resolveu se
empenhar em pegar sol e ficar ainda mais gostoso. Me parece
bastante justo. Obrigada, universo.
A porta atrás de mim é fechada, me trazendo de volta a realidade.
—O que você tá fazendo aqui? —Ele pergunta, depois de tomar
um tempo para me inspecionar também. Sua voz sai de forma suave
e cautelosa, como se eu fosse um pássaro e ele temesse que eu
possa sair voando a qualquer momento.
—Eu… você… você não tá doente? —Eu pergunto, confusa e
levemente revoltada, me lembrando do que me levou a estar nesse
quarto.
—Não… —Ele franze as sobrancelhas, está mais confuso que eu.
—Eu deveria?
—Mas… A Sophia me ligou do seu celular, disse que eu precisava
vir até aqui rápido. Eu achei que você tinha se machucado de novo,
sei lá…
—Do meu celular? —Ian olha de um lado para o outro, e começa a
vasculhar os lençóis da cama.
Então, as peças começam a se encaixar na minha cabeça.
Ele obviamente não está doente ou ferido, nem gravemente
acidentado. Sophia inventou tudo. Provavelmente para tentar nos
unir novamente...? Eu não acredito que caí nessa, me sinto tão
burra. Como pude ser capaz de largar tudo e ter acreditado em uma
mentira de criança? 1 a 0 para a aspirante a cupido de cinco anos de
idade.
—A Sophia armou pra que eu viesse aqui —eu suspiro, cheia de
vergonha.
—Ela deve ter pego meu celular quando eu tava no banho —Ian ri,
sem graça. —Ela se supera a cada dia —ele diz num tom mais
baixo, ainda não foi capaz de tirar os olhos de mim. Passa a mão
pelos cabelos úmidos e, mais uma vez, minha atenção é voltada
para seus músculos. Meu Deus, como está quente aqui dentro.
—Eu vou… pra casa. Desculpa ter aparecido assim, do nada. Eu
realmente achei que você tivesse precisando de socorro —eu digo,
me virando para alcançar a porta, necessitando urgentemente me
afastar e quebrar essa tensão.
Mas ele é mais rápido.
—Não! Bic, peraí.
Ian me alcança, me segurando pelo braço e me gira, me
colocando bem na sua frente.
—Vamos conversar.
Muito perto. Ele tá muito perto.
—Sobre o que, Ian? —Consigo perguntar.
—Sobre a gente. Você me prometeu que a gente ia se falar
depois. Já faz um mês, Bic. Por favor, vamos conversar.
—Não é melhor a gente fazer isso numa outra hora? Já são mais
de dez da noite.
—De uma sexta-feira. Eu não tô com pressa, você tem alguma
coisa pra fazer hoje ainda ou amanhã cedo?
—Não, mas…
—Então vamos conversar —ele insiste. Como é irritante.
—Ian, você tá… de toalha.
—Eu vou me trocar.
—Agora? —Eu arregalo os olhos.
—Qual o problema? Não tem nada aqui que você já não tenha
visto mesmo.
Minhas bochechas pegam fogo e eu tenho certeza que ele
percebe, pois não consegue segurar um sorriso a surgir no canto de
sua boca.
Ian se afasta e anda até o armário, sem tirar os olhos de mim, se
certificando de que eu não vou fugir. Ele põe uma bermuda e eu
tento disfarçar e não reparar tanto em seu corpo enquanto ele se
veste.
—Pronto —ele diz, se virando novamente para mim.
—Tudo bem, vamos conversar —eu cedo. —Mas eu começo
falando.
—Ótimo, sou todo ouvidos. Contanto que você ao menos fale
comigo —ele diz, se sentando na cama cruzando os dedos das mãos
e apoiando os antebraços nos joelhos.
—Eu… olha, me desculpa por eu ter me afastado de você e não te
dado satisfação. Eu me arrependo muito de não ter deixado as
coisas claras na primeira oportunidade e basicamente te
abandonado lá no hospital —faço uma pausa. —Mas eu não me
arrependo de ter me isolado. Esse tempo me fez muito bem, eu só
me sinto mal por ter acontecido dessa forma.
Ele não diz nada em resposta, apenas acena com a cabeça.
Desce os olhos do meu rosto para o meu pescoço, onde está o
cordão que ele me deu e eu não fui capaz de tirar.
Ao finalmente se pronunciar, ele me surpreende quando, ao invés
de questionar meus motivos ou começar a dar sua versão da
história, pergunta:
—E como você tá, com a separação e tudo mais?
—Tô bem. Muito bem.
—E a sua mãe?
—Tá bem, também.
Me comove genuinamente que sua primeira preocupação tenha
sido essa. Ele já esteve no meu lugar, afinal. Sabe a realidade de ser
um filho de pais separados e foi exposto a essa realidade cedo
demais, o que é ainda mais cruel.
—Eu precisava desse tempo sozinha, pra entender e processar o
que a gente viveu juntos nos últimos meses. Talvez a gente tenha ido
rápido demais com as coisas, não sei. Foi tudo tão intenso.
—E você chegou a alguma conclusão, durante esse tempo? —Ele
questiona.
—Sobre a gente?
—Sim, Bic. Sobre a gente —nunca achei que viveria para ver Ian
genuinamente tão estressado com algo. Logo ele, sempre tão
tranquilo.
—Você quer continuar sendo minha amiga, sendo mais do que
isso, ou seguindo sua vida sem olhar mais na minha cara? Eu
preciso saber —ele diz.
Há também mágoa em suas palavras, claramente. Eu entendo
isso, acho que até mereço seu tom ríspido, de certa forma.
—Eu… não sei se consigo voltar a ser sua amiga como
antigamente, Ian… acho que gente nunca vai ser como era.
—Tudo bem, eu concordo. Então, como vai ser? Vai parar de falar
comigo de vez? —Ele joga a pergunta em cima de mim, sua perna
não para de balançar.
—Não! Claro que não! Eu não quero te excluir da minha vida, de
jeito nenhum.
—Então a gente precisa se decidir, Bic —ele está ficando exaltado
e, consequentemente, eu também, sendo encurralada dessa forma.
—Eu não sei, Ian! Não é tão simples assim —meu tom de voz vai
subindo.
—Como não? Por que não? Decide, você me quer por perto ou
não? —Sua tonalidade também cresce.
Não respondo, ao invés disso, sou consumida pela onda de
nervosismo que sobe por meu corpo.
—Me fala, por que é tão difícil tomar essa decisão? —Ele insiste,
perguntando mais uma vez.
Sinto o coração dando marteladas dentro do peito. A ansiedade
sobe, seu tom de voz é suficiente para me fazer perder toda minha
paciência e autocontrole.
—PORQUE EU TE AMO, SEU IDIOTA!
52

Ian

“Eu vou te amar como um idiota ama. ”


Idiota-Jão
—O que? —Eu ouvi direito? Eu não devo ter escutado direito.
Eu ouvi a parte do “idiota”, isso ficou bem claro, mas a parte que
contém as tão temidas três palavras? Não pode ser verdade. Pode?
—Pois é! —Bic confirma, nervosa. A pele de seu rosto perfeito
completamente coberta por um tom avermelhado, e seus lindos
olhos estão marejados.
—Eu sou apaixonada por você desde a porra do ensino médio e
você nunca percebeu! Seu Idiota! Acho que todo mundo sabe disso,
menos você! —Ela gesticula exageradamente, exaltada. —E é esse
o problema, eu estou apaixonada por um idiota! E agora você vem,
como um idiota, me olha com essa cara de idiota e fala essas
idiotices me jogando uma responsabilidade que nem é só minha. “Se
decide”? Se decida você! O que é que você quer comigo?
Desde a porra do ensino médio?
Se a palavra “idiota” tiver ganhado um novo significado e agora
sirva para designar uma pessoa estupidamente feliz, então sim, sou
um grande idiota.
Sem esperar que ela termine de tagarelar e escolha outra palavra
mais criativa e ofensiva para me xingar, eu me levanto da cama de
supetão e escolho responder sua pergunta beijando os lábios com os
quais eu sonho há semanas.
Têm cheiro de goiaba e gosto de saudade. Se eu pudesse,
passaria o resto da vida com eles deslizando sobre os meus.
Bic cede com um choramingo e então me deixa intensificar o beijo.
Sobe as mãos, me segurando contra ela pela minha nuca. Nossa,
como eu senti falta disso, de tê-la em meus braços.
—Eu quero você, Bic. É tudo o que eu quero —eu sussurro,
ofegante. Separando nossas bocas apenas para deixar claro com
palavras, dizendo com todas as letras que é ela. Ela é meu tudo. —
Estamos entendidos?
—Não —ela responde, quebrando todo o clima.
Cortem a música romântica de fundo, as flores coloridas e os
pássaros voando.
Ai, caralho. O que falta agora?
—Não? —Pergunto, completamente confuso. —Por que não?
—Porque eu acabei de fazer papel de idiota aqui na sua frente me
declarando e até agora você não disse de volta.
—Eu não disse de volta? —Pergunto, segurando seu rosto em
minhas mãos.
Ela balança a cabeça, negando.
—Eu nunca te falei que eu te amo? Nunca disse que amo tudo em
você? —Faço uma pausa, e olho bem no fundo de seus olhos antes
de continuar.
—Eu nunca disse que eu amo o seu cabelo bagunçado que parece
que nunca viu um pente na vida? Nunca disse o quanto eu te acho
linda e que eu amo quando você usa seu lado psicóloga para opinar
sobre as coisas? Nunca disse o quanto eu amo os tênis sujos que
você sempre usa? —Eu faço uma pausa, completamente preso na
intensidade de seus olhos escuros. —Eu nunca disse o quanto eu
amo a sua risada alta e o fato de você ser tão barulhenta na cama?
Nunca disse que eu amo quando você desenhava corações com a
ponta da unha no meu peito, quando a gente dormia junto? Nunca
disse o quanto eu amo o sabor de cada um dos seus milhares de
hidratantes labiais e o quanto eu quero experimentar cada um deles,
um milhão de vezes? —Passo uma mecha de seu cabelo para trás
da orelha, enquanto nossos olhares permanecem travados. —Eu
nunca disse que eu te amo? Que eu amo tudo em você? Nunca?
Nem uma vez?
Ela nega mais uma vez. Seus lábios tremem e os olhos não param
de derrubar grossas lágrimas.
—Então eu sou mesmo um idiota —concluo.
Isso a faz rir por cima das lágrimas e concordar com a cabeça.
—O maior de todos.

Bianca
Ian me pressiona contra a porta enquanto me beija com uma
intensidade capaz de arrancar todo o ar dos meus pulmões. Ele me
abraça e me segura com urgência, como se estivesse me vendo pela
primeira vez em anos.
—Que saudade de você —eu declaro.
—Eu também tava —ele sorri e volta a marcar com beijos o meu
pescoço.
—Tá, então, o que a gente é agora? —Eu pergunto, depois que
recupero meu fôlego.
—A gente é o que a gente quiser. Eu não preciso de rótulos, eu só
preciso de você.
Por mais brega que isso tenha sido, eu sinto meu coração
amolecer com essas palavras.
—Falei pros nossos amigos que o que nós temos não tem nome
—digo.
—Eu fiz a mesma coisa —ele sorri. —Acho que o que a gente tem
não tem nome porque é especial demais pra ser definido em um
termo só.
Outro sorriso bobo se estica no meu rosto, sinto meu coração se
encher ainda mais. Ele está inspirado hoje e empenhado em falar
bobagens românticas clichês. Será que passou esse último mês
lendo Shakespeare ou coisa parecida?
—Isso foi lindo, mas se alguém perguntar, eu vou simplificar e
dizer que a gente namora, tá bom?
Ele solta uma gargalhada alta.
—Tá. Eu concordo.
—Então… eu sou sua namorada agora? —Eu passo os braços por
seu pescoço, o puxando para mais perto.
—Sim. Minha namorada —ele diz, sorrindo para mim daquele jeito
que faz meu estômago tremer. —Mas só se eu puder ser o seu
namorado.
—Hum… eu vou ver e te aviso.
Ele revida a provocação me dando mais mordidinhas no pescoço e
me arrancando gritinhos.
A porta atrás de mim se força para ser aberta, eu e Ian nos
entreolhamos, antes de sairmos de trás dela.
Sophia aparece e sobe os olhos para nós dois.
—Vocês já estão de bem? —Pergunta.
—Sophia, você pegou meu celular sem eu saber? —Ian questiona,
pousando as mãos na cintura, olhando sério para a menina.
—Peguei… —Ela responde.
Num movimento rápido, Ian a pega pela cintura e a joga por cima
do ombro. Começa a fazer cócegas nela e a menina desata a dar
gritinhos e a rir alto.
—Você é uma peste, mas também é a melhor cupida do mundo —
ele diz, rindo junto com ela.
—Você não tá bravo comigo? —Sophia pergunta tirando o cabelo
do rosto de modo desajeitado, quando Ian a coloca de volta no chão.
—Não. Tô feliz. Agora, vaza, já passou da sua hora de dormir e eu
quero ficar sozinho com a minha namorada.
—Que namor… —Ela franze as sobrancelhas loiras e depois abre
a cara de espanto mais cômica de todas —Vocês estão
namorando??? —Pergunta, pasma, se virando para mim.
Eu apenas balanço a cabeça, confirmando.
Depois disso, ela se recupera do choque, vira de costas, alcança a
maçaneta e, antes de sair, aponta o dedinho indicador em nossa
direção, dizendo:
—Juízo, hein?
Ian e eu esperamos ela fechar a porta completamente para
cairmos na gargalhada. Gargalhada essa que dura pouco, pois logo
depois, ele me puxa de volta para seus braços e volta a me beijar
com pressa. Temos muita saudade para matar.
Em algum momento, no meio disso, ele desgruda minhas costas
da parede do quarto e me conduz até sua cama, sem interromper o
beijo.
Ficando por cima de mim, seus beijos vão ficando mais lentos. Eu
arrasto as unhas por suas costas nuas ao passo que ele passa as
mãos por todo meu corpo, me arrancando gemidos cada vez mais
difíceis de controlar.
—Eu já levei uma advertência por causa do barulho nesse
apartamento uma vez. Então, por favor, não me faça receber outra.
—Isso só depende de você. Se isso quer dizer que você não vai
fazer ser tão bom dessa vez, então…
—Ah, eu vou fazer —ele garante, com a voz grave e sedutora no
pé do meu ouvido. —Vai ser tão bom que você vai se lembrar por
semanas.
Correntes elétricas percorrem meu corpo inteiro.
Ian não perde tempo, volta a me beijar enquanto vai subindo
lentamente a barra da minha camiseta. E geme ao descobrir que eu
não tive tempo de colocar um sutiã quando saí de casa.
Me sinto pegando fogo, quero mais, sinto uma vontade
incontrolável de arrancar nossas roupas imediatamente.
Mas, de repente, a porta se abre mais uma vez.
—Ian, você viu…
Puta que pariu. O tio Bento.
—Pai! —Ian grita, se apressando para cobrir meu corpo com o
seu.
—O que… essa é a Bianca? —Tio Bento pergunta enquanto eu
tento ao máximo me encolher e esconder.
—Pai! Cacete, não sabe bater, não?
—Como eu ia saber que você tinha alguém aqui? Eu nem vi ela
entrando!
Eles gritam um com o outro, exaltados, e tudo o que eu quero é
sumir, evaporar da face da terra. Ou morrer, talvez. Tanto faz, eu
estou com tanta vergonha que morreria aqui mesmo, sucumbiria aqui
neste colchão. Meu Deus, que vergonha!
—Dá pra você sair, por favor? —Ian pede, com pouca gentileza e a
voz elevada, apontando para a porta.
—Tá bom! Desculpa! —Seu pai responde, igualmente alterado.
Quando fecha a porta, Ian suspira e sai de cima de mim. Eu rolo
de barriga para baixo na cama, ainda cobrindo o rosto com as mãos.
—Me mata. Por favor, me mata agora.
Ian ri. ELE RI.
—Calma, podia ser pior.
—Como? COMO ISSO PODERIA SER PIOR, IAN?
—Se ele tivesse aparecido uns cinco minutos mais tarde. Aí sim,
seria um problema.
—Meu Deus, eu nunca mais vou conseguir olhar na cara do seu
pai —eu choramingo com o rosto enterrado no travesseiro dele.
—Bic, calma. Já foi. Em algum momento isso ia acontecer, né?
Agora ele vai precisar se acostumar com a minha namorada
passando a noite aqui em casa.
O jeito como ele me chama de sua namorada me faz sorrir de um
jeito incontrolavelmente bobo.
—Você tá amando poder dizer isso, né? —Viro a cabeça para ele.
—Sim. Minha namorada. —Ele sorri e me puxa para mais um
beijo.
Momentos mais tarde, Ian me empresta uma de suas blusas largas
e nós decidimos dormir. Apenas dormir. Bom, ao menos por
enquanto.
Ele se aconchega a mim, segurando minha cintura contra seu
corpo. Sussurra no meu ouvido:
—Te amo.
—Te amo —eu sussurro de volta.
Meu peito se aperta, mal cabendo tanta felicidade dentro dele.
Poderia dizer que me sinto completa aqui com ele, mas não é
verdade. Eu aprendi que sou uma pessoa inteira. Ian é um acréscimo
na minha vida, e é o melhor que eu poderia pedir.
Mas também preciso admitir que, depois dos últimos dias, eu
nunca pensei que voltaria a ser tão feliz assim.
Epílogo

Bianca

“Eu odeio acidentes,


exceto o de quando passamos de amigos para isso”
Paper Rings-Taylor Swift

7 meses depois…
Já está quase na hora de cantar parabéns e meu namorado
sumiu.
Tendo em vista de que ele é o irmão da aniversariante, é bom que
apareça logo atrás daquele bolo antes que a Sophia perceba seu
sumiço.
Essa festa é o sonho dela. Aparentemente, ela criou um fascínio
tão grande com os super-heróis da Marvel nos últimos meses e
insistiu tanto que esse fosse o tema de sua festa, que sua mãe
precisou desistir da temática de LadyBug e teve que ceder.
Uma de suas exigências foi ter todos os heróis principais,
principalmente o Homem-Aranha, em pessoa aqui, mas isso não
seria possível. Sophia disse que entende a situação, mas claramente
está um pouco triste com isso. Até agora, porém, acho que
conseguimos distraí-la desse fato.
—Bianca, o Ian não tava com você agora mesmo? —Sandra
pergunta, se aproximando de mim, tentando disfarçar o nervosismo.
—Tava, mas disse que ia no banheiro e não voltou mais!
—Meu Deus do céu, será que esse garoto passou mal? —O pai
dele indaga.
De repente, o Parabéns da Xuxa, tocando nos alto falantes, é
interrompido e a voz da cerimonialista aparece no lugar, fazendo um
anúncio.
—Atenção, criançada! Uma visita surpresa chegou aqui no
cerimonial especialmente para o aniversário da Sophia. Quem será
que é, hein?
As crianças começam a se agitar, gritando e especulando o que
possa ser a surpresa.
Então, um sujeito vestido de Homem-Aranha, o Homem-Aranha do
Andrew Garfield, diga-se de passagem, aparece agachado no chão
na pose oficial do herói, do outro lado do salão.
Ele dá um salto e fica de pé. Todas as crianças gritam e correm em
sua direção.
Ai, meu Deus.
Tio Bento se aproxima de mim e pergunta:
—Aquele é o…
—É —confirmo antes dele terminar a pergunta, segurando uma
risada. Eu reconheceria aquela bundinha de qualquer lugar. E meu
Deus, como essa fantasia fica bem nele.
Ian cumprimenta as crianças, se abaixa para ficar do tamanho
delas e responde suas perguntas, com a maior paciência e carinho.
Ele diz que está sem suas teias no momento, então não pode
demonstrar seus saltos como um verdadeiro Homem-Aranha faria.
Mesmo assim, as crianças parecem hipnotizadas por ele.
—Quem é a aniversariante? —Ele pergunta, olhando em volta,
fingindo não ver a loirinha bem em sua frente, olhando para ele com
um brilho nos olhos.
Sophia levanta os dois bracinhos o mais alto que pode.
Ian, ou melhor, o Homem-Aranha pega uma caixa escondida
debaixo de uma das mesas do salão e entrega para a menina.
Um sorriso do tamanho da lua se estende por seu rosto pequeno,
ela começa a abrir o presente sem nem pensar duas vezes.
De lá, sai um unicórnio de pelúcia colorido e brilhante. Bem
parecido com as pelúcias que ela já tem, mas esse é cinco vezes o
tamanho dos outros. É o bichinho número 50, para completar sua
coleção.
Sophia solta um grito de empolgação tão estridente que eu temo
que os copos de vidro nas mesas se quebrem.
Ela pula no colo do Homem-Aranha e ele a abraça forte, girando-a
em seus braços.
Então, ele a põe de volta no chão e se despede do grupo de
crianças, dizendo que precisa ir salvar o mundo com o Homem de
Ferro.
Sandra e Bento, juntamente com a cerimonialista, começam a
recolher os restos da caixa de brinquedo que continha o unicórnio.
Pouco tempo depois, Ian reaparece com suas roupas normais, e se
junta ao resto da família atrás do bolo para cantar o parabéns.
Ian
Quando o bolo é cortado e as crianças voltam a se dispersar pelos
brinquedos do cerimonial, eu reapareço ao lado da Bic. Beijo seus
lábios rapidamente como sempre faço quando chego perto dela e,
mesmo depois de meses de namoro, ainda sinto faíscas, como se
fosse a primeira vez.
Sophia vem correndo em nossa direção e diz:
—Inham, você perdeu, o Homem-Aranha de verdade apareceu
aqui!
—Não acredito! Era ele mesmo?
—Pois é, olha só o que ele me deu! —Ela levanta o braço e mostra
o unicórnio gigante de pelúcia.
—Que legal, Sopinha! —Eu me empolgo junto com ela.
Sophia se vira para ir embora, mas volta. Gesticula com a mão,
pedindo para eu me abaixar, e quando o faço, ela pula no meu
pescoço.
—Obrigada pelo presente, eu amei —sussurra para mim.
Eu sorrio e digo de volta:
—De nada, Sopinha. Amo você, tá bom?
—Tá bom —é sua resposta.
Depois disso, ela corre de volta para onde estão o resto de seus
amiguinhos.
—Ela sabe que era você, né? —Bic adivinha.
Eu confirmo e nós dois rimos.
—Eu já deveria saber que é impossível enganar essa criança —eu
constato.
Bic deita a cabeça no meu ombro e eu aproveito para respirar seu
cheiro frutado.
—Eu te amo, sabia?
Desde que pude expor essas palavras pela primeira vez, tenho
vontade de dizê-las sempre. É como um vício.
—Hum… quanto? —Ela pergunta, fingindo pensar.
—Muito —sussurro e abaixo a cabeça para encontrar seus lábios.
—O suficiente para colocar aquela fantasia de Homem-Aranha de
novo?
—Se você estiver sugerindo algum tipo de fantasia sexual, pode
esquecer, linda. Aquele troço é um inferno para tirar e colocar.
—Eu não tava sugerindo isso, seu tarado! —Ela desfere um tapa
no meu peito, corando. —Mas você realmente fica muito gato usando
ela.
—Fico, é? —Levanto uma sobrancelha, sorrindo de lado.
—Uhum... —Bic me abraça pela cintura e sobe na ponta dos pés
para me beijar.
—Com licença, você é o irmão da aniversariante? —Uma mulher
ruiva, não muito mais velha que eu, usando uma roupa preta e
segurando uma máquina fotográfica, interrompe nosso momento.
—Sou… —Eu respondo.
—A mãe dela tá te chamando ali pra gente tirar umas fotos,
vamos?
Engraçado, eu tenho a impressão de que já vi essa mulher em
algum lugar. Antes de eu dar qualquer passo, Bic se pronuncia e
sana minha curiosidade.
—Amanda?
—Bianca? —A ruiva ergue as sobrancelhas. —Nossa... quanto
tempo! —Ela dá um sorriso, tentando esconder o desconforto e
então, olha de mim para Bic e pergunta:
—Ele é seu… namorado?
—É —Bic sorri, simpática.
—Ian —eu ofereço a mão, me apresentando.
—Prazer. —Amanda estende o sorriso amarelo ao me
cumprimentar. —Eu achei que você fosse… —Ela se dirige a Bic.
—Eu sou bi. —Minha namorada esclarece, enfraquecendo um
pouco o sorriso.
—Ah, sim… Bom, vamos, Ian?
—Claro, só me espera um minutinho, eu já vou.
Amanda assente.
—Bom te ver, Bianca! —Diz, indo em direção ao painel de fotos.
—Igualmente. —Bic responde, sem perder a educação.
Quando ficamos sozinhos, eu e Bic nos olhamos e fazemos a
mesma careta, arregalando os olhos.
—Meu Deus, que constrangedor —ela sussurra.
—Que merda de mundo pequeno —eu reclamo. —O que essa
mulher veio fazer sendo fotógrafa do aniversário da minha irmã?
—Relaxa, Ian, não é nada de mais.
—Você tá tranquila com ela estando aqui?
—Tô. Já tem muito tempo desde o que rolou entre a gente. E você,
vai ficar bem? —Ela pergunta.
—Eu? Claro —digo, flagrando Amanda de longe, esquadrinhando
minha namorada de cima a baixo. —Só espero que ela pare de olhar
pra você desse jeito.
—Ela não tá me olhando, tá esperando você chegar lá pra tirar as
fotos.
—Hum —resmungo.
—Vem cá —ela me puxa e arruma meu cabelo com os dedos.
—Tô bonito? —Pergunto, sorrindo de lado quando ela termina.
—Lindo! —Ela ri e me dá um selinho.
—Vem logo, Inham! —Ouvimos Sophia gritando de longe e
viramos o olhar para ela. A menina exibe um sorriso enorme e, só de
ver, um idêntico surge no meu.
—Seis anos. Passa muito rápido —eu suspiro. Uma parte de mim
sente muito por não querer ter participado dos anos iniciais da vida
da minha irmã, mas a outra parte é grata por nós termos o resto de
nossas vidas para passar um ao lado do outro.
—É, ela já é quase uma mocinha —Bic também suspira. —Mas vai
se dar bem, seis anos é uma boa idade.
—Seis é um bom número —eu digo, lembrando de que seis foi o
número exato de segundos que nos trouxe até aqui. Seis míseros
segundos.
Bic sorri para mim, captando o que eu disse. Eu acho que nunca
me senti tão sortudo na vida, e é só porque sou o motivo desse
sorriso.
Sei que em algum momento no futuro, eu vou ser idiota o
suficiente para fazer esse sorriso sumir e quem sabe até transformá-
lo em lágrimas, mas farei tudo o que puder para recuperá-lo.
E sei disso com a certeza de que ficaremos juntos por quanto
tempo nos for permitido e, se depender de mim, vai ser pela a vida
inteira. Porque sempre foi ela, sempre fomos nós. Nós e essa coisa
gigante, assustadora e intensa que consome nossas almas. Essa
coisa que nos une. Esse amor, essa amizade, esse laço. Essa coisa
sem nome.

FIM
Agradecimentos
O processo de escrita desse livro foi, resumidamente, solitário. Eu
fiz tudo sozinha. E se você estiver pensando que eu digo isso para
me gabar ou para fazer você sentir pena de mim, pare agora, porque
não é nada disso.
Tenha em mente que eu escrevo esses agradecimentos sem a
menor noção do futuro desse livro. Não sei se ele vai ser um grande
sucesso ou um enorme fracasso. Portanto, estou nesse momento,
sentada na minha cama com esse notebook velho no colo, sem
ninguém de casa vendo, escrevendo essa nota totalmente sozinha
e... cagada de medo.
O futuro em si é um pavor. Por isso, acho que não há nada mais
justo que começar agradecendo a Dani de cinco meses atrás que
não parou de escrever nem quando não tinha mais ânimo para abrir
o computador. Que teve que se segurar para não contar para
ninguém sobre uma cena superlegal que escreveu porque achava
que ninguém ao seu redor se importava o equivalente ao tamanho da
sua empolgação e não tinha ninguém para compartilhar a descoberta
recente de que a escrita é uma coisa incrível, mágica e empolgante.
Em segundo lugar: Letícia, eu e esse livro devemos TUDO a
você. Você foi a primeira a ler a história da Bic e do Ian e se
apaixonar por eles junto comigo à medida que eu ia escrevendo. Se
não fosse por cada áudio e cada mensagem sua, eu não teria
passado do 6º capítulo. Você ajudou a acender na minha cabeça a
ideia de que isso poderia chegar a ser algo real, algo que eu nem
havia tido a ambição para cogitar ainda. Muito obrigada por isso. A
internet é um lugar aterrorizante às vezes, mas eu sou muito grata
por ela ter me conectado a pessoas como você!
Evelyn, minha amiga que a faculdade me presenteou, que tem o
maior coração do mundo e a maior paciência comigo (te amo por
isso), você é uma das pouquíssimas pessoas que eu tive coragem o
suficiente para contar sobre essa ideia sem noção de me tornar uma
escritora. Obrigada por estar do meu lado mesmo morando tão
longe, seu apoio e sua amizade significam o mundo para mim.
Ana Luiza, minha irmã mais nova que de repente se tornou a
melhor revisora que esse livro poderia ter. Muito obrigada pela ajuda,
pelo apoio e me desculpe por te fazer ler dois capítulos enormes de
cenas sensuais tendo em mente que sua própria irmã estava por trás
delas. Deve ter sido uma experiência horripilante, mas foi necessário!
Acho que é válido compartilhar também que o processo de escrita
desse livro caminhou lado a lado com o meu processo pessoal de
“saída do armário”. E eu acho que, inconscientemente, depositei na
Bianca o medo que eu tinha de contar para os meus pais sobre a
minha sexualidade e meu Deus, não existem palavras que
descrevam a minha gratidão por ter eles e por eles serem eles!
Pai e mãe, vocês são os melhores do mundo. Vocês me apoiam
de olhos fechados, mesmo isso sendo arriscado às vezes. Muito
obrigada por tudo, especialmente por serem o total oposto da Valéria
e do Sérgio! Amo vocês mais que o infinito, para sempre!
E obrigada a você, leitor/a/e que leu até aqui! De verdade, muito
obrigada por ter dado uma chance a esse pequeno mundinho que eu
criei. Eu espero que a história da Bic e do Ian tenha tocado seu
coração de alguma forma. E pode esperar mais histórias, porque o
universo desses personagens só começou!
Com amor, Dani s2
About The Author
Daniela Lira
Dani tem 21 anos e mora no Espirito Santo. Ela é a apaixonada pela
arte -qualquer tipo de arte- e recentemente descobriu que sua
verdadeira paixão é contar histórias. O Que Temos Não Tem Nome é
seu primeiro romance publicado. Você pode encontrá-la no instagram
(@danisheverso), tiktok (@danishereads) ou isolada em seu quarto
lendo, escrevendo, desenhando e fugindo desesperadamente de
qualquer emprego convencional.

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