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Em toda parte ouvimos falar de declínio, de um mundo que já foi

melhor, talvez há cinquenta anos, talvez séculos atrás, mas


certamente antes da modernidade, e nos arrastou juntamente por
seu caminho incerto. Enquanto alguns lamentam o desabamento da
cultura ocidental no relativismo e no niilismo e outros celebram a
tendência como um tipo de progresso libertador, Charles Taylor nos
convoca a encarar a crise política e moral de nossa época e a tirar o
máximo proveito dos desafios da modernidade.

No coração do mal-estar moderno, de acordo com a maioria das


considerações, está a noção de autenticidade, de autorrealização,
que parece tornar sem efeito toda a tradição de valores em comum
e o compromisso social. Embora Taylor reconheça os perigos
associados ao impulso moderno para a autorrealização, não é tão
rápido como os outros em rejeitá-lo. Ele pede por um enregela-
mento do pessimismo cultural.

Em uma discussão de idéias e ideologias de Friedrich Nietzsche a


Gail Sheehy, de Allan Bloom a Michel Foucault, Taylor separa o bom
do mau no cultivo moderno de um self autêntico. Ele apresenta a
rede inteira de pensamento e moral que encadeia nossa busca pela
autocriação com nosso ímpeto para a autoformação, e mostra
como tais esforços devem ser conduzidos contra um conjunto de
regras existentes ou contra uma rede de medida moral. Vistas
contra esta rede, nossas preocupações modernas com expressão,
direitos e com a subjetividade do pensamento humano revelam-se
como espólios, não como desvantagens.

Ao procurar o passado simplificadamente, julgamentos unilaterais


da modernidade, ao distinguir o bom e o valioso do social e
politicamente perigoso, Taylor articula a promessa de nossa era.
Seu estimulante e provocativo livro dá voz ao desafio da
modernidade e convoca todos nós a respondê-lo.

COLEÇÃO

RBERtüRR

COLtüRRL
Impresso no Brasil, junho de 2011

Título original: The Ethics of Authenticity Copyright © 2010 by


Charles Taylor.

Todos os direitos reservados.

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É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda.

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Revisão

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Luciane Helena Gomide

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Diagramação
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reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela
eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio
de reprodução, sem permissão expressa do editor.

A ETICA DA AUTENTICIDADE
Charles Taylor

TRADUÇÃO DETALYTA CARVALHO

Realizações

Editora

Para Bisia

Agradecimentos

Meu agradecimento vai para Connie e Frank Moore, por sua ajuda
na discussão do projeto, e para Ruth Abbey e Wanda Taylor, por sua
leitura atenta do manuscrito. Sou grato a Eusebia da Silva por sua
ajuda em definir este e o projeto maior ao qual ele pertence. 

Capítulo 1 | Três Mal-estares


Quero escrever aqui sobre alguns dos mal-estares da modernidade.
Quero dizer com isso características de nossa cultura e sociedade
contemporâneas que as pessoas experimentam como uma perda
ou um declínio, mesmo enquanto nossa civilização “se desenvolve”.
Às vezes, as pessoas sentem que algum declínio importante
ocorreu durante os últimos anos ou décadas - desde a Segunda
Guerra Mundial, ou desde os anos 1950, por exemplo. E, por vezes,
a perda é sentida ao longo de um período histórico muito maior: a
era moderna de todo o século XVII é frequentemente vista como
marco inicial do declínio. No entanto, embora a escala temporal
possa variar enormemente, há certa convergência sobre os temas
do declínio. Eles são, em geral, variações de poucas melodias
centrais. Quero escolher aqui dois desses temas centrais, e então
lançar um terceiro que, em grande parte, deriva destes dois. De
maneira alguma esses três esgotam o tópico, mas eles alcançam
boa parte do que nos preocupa e nos deixa perplexos a respeito da
sociedade moderna.

As preocupações de que falarei são bastante familiares. Ninguém


precisa ser lembrado delas; elas são discutidas, lamentadas,
desafiadas e debatidas o tempo todo nos mais variados meios. Isso
soa como uma razão para não falar mais ainda delas. Mas acredito
que essa grande familiaridade esconda o espanto, que nós não
entendamos de fato essas mudanças que nos preocupam, que a
maneira pela qual o debate normalmente é conduzido as deturpa -
e, assim, faz-nos compreender mal o que podemos fazer a respeito
delas. As mudanças que definem a modernidade são tanto bem
conhecidas quanto muito desconcertantes, e é por isso que ainda
vale a pena falar delas um pouco mais.

(1) A primeira fonte de preocupação é o individualismo. É claro


que individualismo também denomina o que muita gente
considera a maior conquista da civilização moderna. Nós
vivemos em um mundo no qual as pessoas possuem o direito
de escolher por si mesmas o próprio modo de vida, de decidir
conscientemente quais convicções abraçar, de determinar o
formato de sua vida em uma série de maneiras que seus
antepassados não podiam controlar. E esses direitos
geralmente são defendidos por nossos sistemas legais. Em
princípio, as pessoas não são mais sacrificadas às demandas
de ordens supostamente sagradas que as transcendem.

Pouquíssimas pessoas querem retroceder nessa conquista. Na


realidade, muitas acham que ela ainda está incompleta, que
arranjos econômicos ou padrões da vida em família, ou as noções
tradicionais de hierarquia, ainda restringem muito a liberdade de
sermos nós mesmos. Mas muitos de nós também somos
ambivalentes. A liberdade moderna foi ganha por nossa fuga dos
antigos horizontes morais. As pessoas costumavam se ver como
parte de uma ordem maior. Em alguns casos, esta era uma ordem
cósmica, “a grande cadeia do Ser”, na qual os homens figuravam
em lugar determinado, assim como os anjos, corpos celestiais, e as
criaturas terrenas, nossos pares. Essa ordem hierárquica no
universo se refletia nas hierarquias da sociedade humana. As
pessoas eram frequentemente fixadas em determinado lugar, papel
e estrato que eram propriamente delas e dos quais era quase
impensável se desviar. A liberdade moderna surgiu pelo descrédito
de tais ordens.

Mas, ao mesmo tempo que nos limitavam, essas ordens davam


significado ao mundo e às atividades da vida social. As coisas que
nos circundavam não eram apenas matéria-prima ou instrumentos
potenciais para nossos projetos, mas tinham o significado dado a
elas por seu lugar na cadeia do ser. A águia não era apenas mais
um pássaro, mas a líder de todo um domínio da vida animal. Da
mesma forma, os rituais e normas da sociedade tinham mais do
que um significado meramente instrumental. O descrédito dessas
ordens é o que tem sido chamado de “desencantamento” do mundo.
Com ele, as coisas perderam parte de seu encanto.

Um forte debate acerca de isso ter sido uma coisa boa


inequivocamente vem ocorrendo há dois séculos. Mas não é o que
eu quero focar aqui. Prefiro olhar para o que alguns viram serem as
consequências para a vida humana e seu significado.
A preocupação de que o indivíduo perdeu algo importante com os
horizontes sociais e cósmicos maiores de ação tem sido expressa
de maneira repetida. Alguns têm escrito sobre isso como a perda da
dimensão heróica da vida. As pessoas não possuem mais a
sensação de um propósito maior, de algo pelo qual vale a pena
morrer. Alexis de Tocqueville por vezes falou desse modo no século
passado, referindo-se aos “prazeres pequenos e vulgares” que as
pessoas tendem a buscar na era democrática.1 Articulado de outra
forma, nós sofremos de falta de paixão. Kierkegaard viu o “tempo
presente” nesses termos. E os “últimos homens” nietzschianos
estão no limiar final desse declínio; eles não possuem mais
nenhuma aspiração na vida a não ser um “lamentável conforto”.1 2

Tal perda de propósito estava ligada a um estreitamento. As


pessoas perderam a visão mais abrangente porque se centraram na
vida individual. A igualdade democrática, diz Tocqueville, orienta o
indivíduo para si mesmo, “eí menace de le renfermer enfin tout
entier dans la solitude de son propre coeur” 3 Em outras palavras, o
lado sombrio do individualismo é o centrar-se em si mesmo, que
tanto nivela quanto restringe nossa vida, tornando-a mais pobre em
significado e menos preocupada com os outros ou com a
sociedade.

Recentemente, essa preocupação veio à tona novamente no que diz


respeito aos frutos de uma “sociedade permissiva”, os feitos da
“geração eu”, ou a prevalência do “narcisismo”, para tomar apenas
três das mais conhecidas formulações contemporâneas. O sentido
de que vidas foram niveladas e estreitadas, e de que isso está
ligado a uma autoabsorção anormal e lamentável, voltou em formas
específicas à cultura contemporânea. Isto define o primeiro tema do
qual quero tratar.

(2) O desencantamento do mundo está ligado a outro


fenômeno massivamente importante da Idade Moderna, que
também perturba bastante muitas pessoas. Nós podemos
chamá-lo de primazia da razão instrumental. Por “razão
instrumental” quero dizer o tipo de racionalidade em que nos
baseamos ao calcular a aplicação mais econômica dos meios
para determinado fim. Eficiência máxima, a melhor relação
custo-benefício, é sua medida de sucesso.

Não há dúvida de que o solapar das velhas ordens alargou


imensamente o âmbito da razão instrumental. Uma vez que a
sociedade não possui mais uma estrutura sagrada, que os arranjos
sociais e os modos de ação não estão mais fundamentados na
ordem das coisas ou na vontade de Deus, eles estão, em certo
sentido, “disponíveis”. Podem ser redefinidos tendo suas
consequências voltadas para a felicidade e o bem-estar dos
indivíduos como nossa meta. O critério que doravante se aplica é o
da razão instrumental. De maneira similar, uma vez que as criaturas
que nos cercam perdem o significado que lhes foi atribuído de
acordo com seu lugar na cadeia dos seres, elas podem ser tratadas
como matéria-prima ou instrumentos para nossos projetos.

Por um lado, essa mudança foi libertadora. Por outro, há também


um mal-estar generalizado de que a razão instrumental não só
ampliou seu âmbito como também ameaça dominar nossa vida. O
medo é de que coisas que deveríam ser determinadas por outros
critérios serão decididas em termos de eficiência ou análises de
“cus-to-benefício”, de que os fins independentes que deveríam guiar
nossa vida serão eclipsados pela demanda para maximizar a
produção. Há diversas coisas que se pode indicar que dão
substância a essa preocupação: por exemplo, os modos com que as
demandas do crescimento econômico são usadas para justificar
distribuições bastante desiguais de riqueza e renda, ou a maneira
pela qual essas mesmas demandas nos tornam insensíveis às
necessidades do meio ambiente, até mesmo a ponto de um
desastre potencial. Ou, então, podemos pensar no modo em que
boa parte de nosso planejamento social, em áreas cruciais como
avaliação de riscos, é dominada por formas de análises de custo-
benefício que envolvem cálculos grotescos, colocando valores
tributáveis em vidas humanas.4 5
A primazia da razão instrumental também é evidente no prestígio e
na aura que envolvem a tecnologia e nos faz acreditar que
deveriamos buscar soluções tecnológicas mesmo quando se faz
necessário algo muito diferente. Vemos isso com frequência na
esfera política, como Bellah e seus colegas forçosamente
argumentam em seu novo livro.3 Entretanto, também invade outros
domínios, como a medicina. Patrícia Benner argumentou em
diversos trabalhos importantes que a abordagem tecnológica na
medicina frequentemente deixou de lado o tipo de cuidado que
envolve tratar o paciente como uma pessoa completa com uma
história de vida, e não como lócus de um problema técnico. A
sociedade e a comunidade médica não raro subestimam a
contribuição das enfermeiras, que, com mais frequência do que os
especialistas com conhecimento high-tech, oferecem esse cuidado
sensível de maneira mais humana.6

O lugar predominante da tecnologia também é pensado como tendo


contribuído para o estreitamento e nivelamento da vida, que acabei
de discutir em relação ao primeiro tema. As pessoas falaram de
uma perda de ressonância, profundidade ou riqueza nos nossos
arredores. Há quase 150 anos, Marx, no Manifesto Comunista,
destacou que um dos resultados do desenvolvimento capitalista era
que “tudo o que é sólido desmancha no ar”. A afirmação é de que os
objetos sólidos, duradouros, muitas vezes expressivos, que nos
serviram no passado estão sendo postos de lado pelas
commodities substituíveis, rápidas e malfeitas com as quais agora
nos cercamos. Albert Borgman fala do “paradigma do dispositivo”
pelo qual removemos mais e mais de “comprometimento diverso”
com nosso ambiente e, em vez disso, pedimos e adquirimos
produtos desenvolvidos para entregar algum benefício específico
restrito. Ele compara o que está envolvido em aquecer nossos lares,
o contemporâneo aquecedor central, com o que essa mesma
função implicava em tempos pioneiros, quando toda família tinha
de estar envolvida em cortar e empilhar a madeira e alimentar o
forno ou a lareira.7 Hannah Arendt se concentrou na qualidade cada
vez mais efêmera dos objetos modernos de uso e argumentou que
“a fatuidade e a fidedignida-de do mundo humano se encontram
primeiro no fato de que somos cercados por coisas mais
permanentes do que as atividades pelas quais foram produzidas”.8
Essa permanência fica sob ameaça em um mundo de commodities
modernas.

Essa sensação de ameaça é aumentada pelo conhecimento de que


tal primazia não é apenas uma questão de uma orientação talvez
inconsciente para a qual somos estimulados e atraídos pela era
moderna. Como tal, seria difícil o bastante combatê-la, mas pelo
menos talvez cedesse à persuasão. No entanto, também é claro que
mecanismos poderosos da vida social nos pressionam nessa
direção. Uma gerente independente, apesar da própria orientação,
pode ser forçada pelas condições do mercado a adotar uma
estratégia maximizadora que acha destrutiva. Um burocrata, apesar
de sua visão pessoal, pode ser forçado pelas regras sob as quais
opera a tomar uma decisão que ele sabe ser contra a humanidade e
o bom-senso.

Marx, Weber e outros grandes teóricos exploraram esses


mecanismos impessoais, que Weber designou com a expressão
“jaula de ferro”. Algumas pessoas quiseram tirar dessa análise a
conclusão de que estamos totalmente desamparados diante de tais
forças, ou no mínimo desamparados a menos que desmantelemos
as estruturas institucionais sob as quais temos operado nos
últimos séculos - isto é, o mercado e o Estado. Essa ambição
parece tão irrealizável hoje que equivale a dizer que estamos
desamparados.

Quero voltar a isso depois, mas acredito que essas teorias sólidas
de fatalidade sejam abstratas e equivocadas. Nossos graus de
liberdade não são zero. Há um momento de deliberar o que devem
ser nossos fins, e se a razão instrumental deve desempenhar um
papel menor em nossa vida. Mas a verdade nessas análises é que
não se trata apenas de uma mudança de perspectiva dos
indivíduos, não é apenas uma questão de conflito entre “corações e
espíritos”, ainda que seja importante. A mudança nesse domínio
terá de ser também institucional, muito embora não possa ser tão
radical e total quanto os grandes teóricos da revolução propunham.

(3) Isso nos leva ao nível político e às temidas consequências


do individualismo e da razão instrumental para a vida política.
Uma delas eu já introduzí. É a de que as estruturas e
instituições da sociedade industrial tecnológicas restringem
severamente nossas escolhas, que elas forçam tanto as
sociedades quanto os indivíduos a atribuir um peso à razão
instrumental que, em uma deliberação moral séria, nós jamais
atribuiriamos, e que pode até ser altamente destrutiva. Um
caso em questão é a nossa dificuldade em enfrentar até
mesmo ameaças vitais oriundas de desastres ambientais à
nossa vida, como a diminuição da camada de ozônio. A
sociedade estruturada em torno da razão instrumental pode ser
vista como impondo uma grande perda de liberdade, no
indivíduo e no grupo - porque não são somente nossas
decisões sociais que são moldadas por essas forças. Um estilo
de vida individual também é difícil de sustentar contra a
inclinação natural. Por exemplo, o design de algumas cidades
modernas torna difícil seu funcionamento sem um carro,
especialmente onde o transporte público foi gradualmente
destruído em favor do veículo privado.

Mas há outro tipo de perda de liberdade, que também foi


amplamente discutido, mais memoravelmente por Alexis de
Tocque-ville. Uma sociedade em que as pessoas acabam sendo o
tipo de indivíduo que é “fechado em seu próprio coração” é aquela
em que poucos vão querer participar ativamente no autogoverno.
Eles preferirão ficar em casa e desfrutar as satisfações da vida
privada, contanto que o governo vigente produza os meios para tais
satisfações e os distribua abertamente.
Isso expõe o perigo de uma nova, especificamente moderna, forma
de despotismo, que Tocqueville chama de despotismo “suave”. Não
será uma tirania do terror e da opressão como antigamente. O
governo será moderado e paternalista. Pode até manter formas
democráticas, com eleições periódicas. Mas, na realidade, tudo será
governado por um “enorme poder tutelar”9 sobre o qual o povo terá
pouco controle. A única defesa contra isso, pensa Tocqueville, é
uma vigorosa cultura política na qual a participação é valorizada,
em muitos níveis do governo e nas associações voluntárias
também. Mas o atomismo individual autoabsorto luta contra isso.
Uma vez que a participação diminui, que as associações periféricas
que eram seus veículos murcham, o cidadão individual é
abandonado sozinho perante um estado burocrático vasto e se
sente, corretamente, impotente. Isso desmotiva o cidadão ainda
mais, e o ciclo vicioso do despotismo suave está posto.

Talvez algo como essa alienação da esfera pública e a consequente


perda do controle político estejam acontecendo em nosso mundo
altamente centralizado e politizado. Muitos pensadores
contemporâneos viram a obra de Tocqueville como profética.10 Se é
assim, o que corremos o risco de perder é o controle político sobre
nosso destino, algo que poderiamos exercer em comum como
cidadãos. E isso que Tocqueville chama de “liberdade política”. O
que está ameaçada aqui é a nossa dignidade como cidadãos. Os
mecanismos impessoais mencionados podem reduzir nossos graus
de liberdade como uma sociedade, mas a perda de liberdade
política significaria que até mesmo as escolhas restantes não
seriam mais feitas por nós, mas sim pelo irresponsável poder
tutelar.

Este, então, são os três mal-estares modernos de que quero tratar


neste livro. O primeiro medo é sobre o que poderiamos chamar de
perda do significado, o enfraquecimento dos horizontes morais. O
segundo diz respeito ao eclipse dos propósitos diante da
disseminação da razão instrumental. E o terceiro é sobre a perda da
liberdade.
Evidentemente, eles não são incontroversos. Eu falei de
preocupações que são disseminadas e mencionei autores
influentes, mas nada aqui é reconhecido. Mesmo aqueles que
compartilham alguma forma dessas preocupações disputam
vigorosamente sobre como devei iam ser formuladas. E há muitas
pessoas que querem dispensá-las sem pensar duas vezes. Aqueles
que estão profundamente no que os ctíticos denominaram cultura
do narcisismo” pensam que seus opositores anseiam por uma era
passada, mais opressiva. Adeptos da razão tecnológica moderna
acham que os críticos da primazia da razão instrumental são
reacionários e obscurantistas, que planejam negar ao mundo os
benefícios da ciência. E existem defensores da mera liberdade
negativa que acreditam que o valor da liberdade política é
exagerado, e que uma sociedade em que a administração científica
se combina com a máxima independência para cada indivíduo é o
que deveriamos visar. A modernidade tem seus incentivadores
assim como seus críticos.11

Não há concordância aqui e o debate continua. Mas, no decorrer


desse debate, a natureza essencial dos desenvolvimentos, que
estão sendo desprezados aqui e louvados lá, é frequentemente mal
compreendida. E, como resultado, a verdadeira natureza das
escolhas morais a serem feitas está obscurecida. Em particular,
reivindicarei que o caminho correto a ser tomado não é nem o
recomendado por incentivadores convictos nem o favorecido pelos
totalmente críticos. Tampouco será um mero balanço entre
vantagens e custos do, digamos, individualismo, da tecnologia e da
administração burocrática que oferecerá a resposta. A natureza da
cultura moderna é mais sutil e complexa que isso. Quero reivindicar
que tanto os incentivadores quanto os críticos estão corretos, mas
de uma maneira que não pode fazei justiça por meio de um simples
equilíbrio entre vantagens e custos. Na realidade, há tanto muito
que se admirar quanto muito que se depreciar e se assustar em
todos os desenvolvimentos que tenho descrito, mas entender a
relação entre essas duas coisas é perceber 11 que a questão não é
quanto você terá de pagar, em matéria de consequências ruins, por
frutos positivos, mas, antes, como direcionar tais desenvolvimentos
para sua melhor promessa e evitar o deslize para as formas
degradadas.

Agora eu não tenho nada parecido com o espaço de que precisaria


para tratar de todos esses três temas como eles merecem, por isso
proponho um atalho. Vou me lançar a uma discussão do primeiro
tema, a respeito dos perigos do individualismo e da perda do
significado. Vou prosseguir nessa discussão em larga medida. Após
ter alguma ideia de como tal questão deve ser tratada, irei sugerir
como um tratamento similar dos outros dois temas pode ocorrer. A
maior parte da discussão, portanto, concentrar-se-á no primeiro
eixo de preocupação. Vamos examinar em mais detalhes sob qual
forma ela se coloca hoje.

Capítulo 2 | O Debate
Desarticulado
Nós podemos entendê-lo através de um livro recente e muito
influente nos Estados Unidos: The Closing of the American Mind, de
Allan Bloom. O livro em si foi um fenômeno notável: uma obra de
um acadêmico teórico da política sobre o clima de opinião entre os
estudantes da atualidade manteve-se por meses na lista dos best-
sellers do New York Times, para grande surpresa do autor. E tocou
num ponto fraco.

Ele tomou uma posição crítica severa em relação à juventude


instruída de hoje. O principal aspecto que notou em sua perspectiva
a respeito da vida foi a aceitação um tanto quanto fácil do
relativismo. Todos possuem os próprios “valores”, e sobre eles é
impossível discutir. Mas, como Bloom notou, esta não era apenas
uma posição epistemológica, uma visão acerca dos limites do que a
razão pode estabelecer; também era o sustentar de uma posição
moral: não se deve contestar os valores dos outros. Isso é problema
deles, a escolha de vida deles, e deve ser respeitado. O relativismo
estava parcialmente fundamentado em um princípio de respeito
mútuo.

Em outras palavras, o relativismo é em si uma ramificação de uma


forma de individualismo, cujo princípio é algo assim: todo mundo
tem o direito de desenvolver a própria maneira de viver,
fundamentada no próprio sentido do que é realmente importante ou
de valor. As pessoas são convocadas a serem verdadeiras consigo
mesmas e a buscar a própria autorrealização Em que isso consiste,
cada um deve, em última instância, determinar por si mesmo.
Nenhum outro pode ou deve tentar ditar seu conteúdo.

Essa posição é bastante comum hoje. Reflete o que poderiamos


chamar de individualismo da autorrealização, o qual é amplamente
disseminado em nossos dias e adquiriu força especialmente nas
sociedades ocidentais a partir dos anos 1960. Ele foi selecionado e
discutido em outros livros influentes: The Cultural Contradictions of
Capitalism, de Daniel Bell; The Culture of Narcissism e The Minimal
Self de Christopher Lasch; e A Era do Vazio, de Gilles Lipovestky.

O tom de preocupação é audível em todos eles, embora talvez de


forma menos marcante em Lipovetsky. Segue, grosso modo, as
linhas que já destaquei sobre o tema 1. Esse individualismo envolve
um centramento no self e um desligamento concomitante, ou
mesmo ignorância, de questões e preocupações mais importantes
que transcendem o self, sejam elas religiosas, políticas ou
históricas. Como consequência, a vida é estreitada ou nivelada.12
13 E a preocupação ca-racteristicamente transborda para a terceira

área que descreví: esses autores estão preocupados com as


consequências políticas possivelmente desastrosas dessa
mudança na cultura.

Agora há muito com o que concordo nas críticas que tais autores
fazem da cultura contemporânea. Como explicarei logo mais, penso
que o relativismo defendido abertamente hoje é um engano
profundo, mesmo em alguns aspectos autoestultificantes. Parece
verdadeiro que a cultura da autorrealização levou muitas pessoas a
perderem de vista as preocupações que as transcendem. E parece
óbvio que adquiriu formas triviais e autoindulgentes. Isso até pode
resultar em um tipo de absurdo, enquanto novos modos de
conformidade surgem entre pessoas que estão esforçando-se para
serem elas mesmas, e, além disso, novas formas de dependência,
uma vez que pessoas inseguras sobre suas identidades voltam-se
para todo tipo de guias e autoproclama-dos especialistas, envoltos
no prestígio da ciência ou de alguma espiritualidade exótica.

Mas há algo que não obstante quero me opor no impulso dos


argumentos que esses autores apresentam. Isso aparece
claramente em Bloom, talvez de maneira mais forte em seu tom de
desprezo pela cultura que descreve. Ele parece não reconhecer que
há um ideal moral poderoso em trabalho aqui, não importa quão
degradada e travestida possa ser sua expressão. O ideal moral por
trás da autorrealização é o de ser fiel a si mesmo, em um
entendimento especificamente moderno do termo. Décadas atrás,
isso foi definido brilhantemente por Lionel Trilling em um livro
influente, no qual ele capturava essa forma moderna e a distinguia
das anteriores. A distinção é expressa no título do livro, Sincerity
and Authenticity,14 e seguindo seus passos usarei o termo
“autenticidade” para o ideal contemporâneo.

O que quero dizer com ideal moral? Quero dizer um quadro de como
seria um modo de vida melhor ou mais elevado, onde “melhor” e
“mais elevado” são definidos não em relação ao que possamos
desejar ou precisar, mas sim oferecer um padrão do que devemos
desejar.

A força de termos como “narcisismo” (no vocabulário de Lasch), ou


“hedonismo” (na descrição de Bell), é implicar que não há ideal
moral algum em curso aqui, ou, se há, na superfície, que deve ser
visto como uma película de autoindulgência. Como Bloom coloca, a
grande maioria dos estudantes, embora eles queiram tanto quanto
qualquer outro ter boa opinião de si mesmos, está ciente de que
está ocupada com a própria carreira e seus relacionamentos. Há
certa retórica da autorrealização que dá um revestimento de
glamour a essa vida, no entanto eles podem ver que não há nada
particularmente nobre a respeito dela. “Sobrevivencialismo” tomou
o lugar do heroísmo como a qualidade admirada.15

Não tenho dúvidas de que isso descreve algumas, talvez várias,


pessoas, mas é um grande equívoco achar que nos concede um
insight para a mudança em nossa cultura, para o poder desse ideal
moral - o qual precisamos entender se quisermos explicar até
mesmo a razão pela qual é usado como um revestimento hipócrita
pelo autoindulgente.

O que precisamos entender aqui é a força moral por trás de noções


como a autorrealização. Uma que vez que tentamos explicar isso
simplesmente como um tipo de egoísmo, ou uma espécie de
relaxamento moral, uma autoindulgência no que diz respeito a uma
época anterior mais exigente e mais dura, nós já estamos no
caminho errado. Falar de “permissividade” não é suficiente. A
frouxidão moral existe, e nossa época não está sozinha nisso. O
que precisamos explicar é o que é peculiar ao nosso tempo. Não se
trata apenas de as pessoas sacrificarem seus relacionamentos
amorosos, e o cuidado de seus filhos, na busca de sua carreira.
Algo nesse sentido talvez sempre tenha existido. A questão é que
hoje muitas pessoas sentem-se convocadas a fazer isso, acham
que devem fazer isso, pensam que sua vida seria de algum modo
desperdiçada ou incompleta caso não fizessem isso.

Portanto, o que se perde nessa crítica é a força moral do ideal de


autenticidade. Ele está, de alguma maneira, sendo implicitamente
des-creditado junto com suas formas contemporâneas. Isso não
seria tão ruim caso pudéssemos nos voltar para a oposição em
busca de uma defesa. No entanto, ficaremos decepcionados. Que a
defesa da autenticidade assuma a forma de um tipo de relativismo
suave significa que a defesa enfática de qualquer ideal moral está
de algum modo fora de cogitação. Pois as implicações, como eu
acabei de descrever, são de que algumas formas de vida de fato são
mais elevadas que outras, e a cultura da tolerância para com a
autorrealização individual se esquiva dessas reivindicações. Isso
significa, como tem sido apontado com frequência, que há algo
contraditório e autodestrutivo nessa posição, já que o próprio
relativismo é alimentado (pelo menos em parte) por um ideal moral.
Contudo, de maneira consistente ou não, essa é a posição
geralmente adotada. O ideal se reduz ao nível de um axioma, algo
que não se desafia e também nunca se expõe.

Ao adotar o ideal, as pessoas na cultura da autenticidade, como


quero denominar isso, dão apoio a certo tipo de liberalismo, que
tem sido abraçado por muitos outros também. Trata-se do
liberalismo da neutralidade. Um de seus princípios básicos é de que
uma sociedade liberal precisa ser neutra a respeito de questões
sobre o que constitui uma vida boa. A vida boa é o que cada
indivíduo busca, à sua própria maneira, e o governo precisaria de
imparcialidade, bem como no que diz respeito a todos os cidadãos,
caso tomasse partido nessa questão.16 Muito embora diversos dos
escritores dessa escola sejam opositores apaixonados do
relativismo suave (Dworkin e Kymlicka entre eles), o resultado de
sua teoria é banir para a periferia do debate as discussões a
respeito da vida boa.

O resultado é uma desarticulação extraordinária sobre um dos


ideais constitutivos da cultura moderna.17 Seus oponentes o
apressam, e seus simpatizantes não conseguem falar a respeito.
Todo o debate conspira para colocá-lo à sombra, para torná-lo
invisível. E tem consequências negativas. Mas, antes de prosseguir
nisso, quero mencionar dois outros fatores que conspiram para
intensificar o silêncio.

Um deles é a sustentação do subjetivismo moral em nossa cultura.


Com isso quero dizer a visão de que as posições morais não estão
de forma alguma baseadas na razão ou na natureza das coisas,
mas são, em última instância, adotadas por cada um de nós porque
nos encontramos atraídos por elas. Nessa visão, a razão não pode
julgar disputas morais. Claro, você pode apontar a alguém certas
consequências de tal posição sobre a qual ele pode não ter
pensado. Assim, os críticos da autenticidade podem apontar para
os possíveis resultados políticos e sociais de cada pessoa que
busca a autorrealização. Contudo, se seu interlocutor ainda parece
se ater à posição original, nada mais pode ser dito para contradizê-
lo.

Os motivos para essa visão são complexos e vão muito além das
razões morais para o relativismo suave, embora o subjetivismo
forneça de maneira clara um suporte importante para esse
relativismo. Obviamente, muitas pessoas inseridas na cultura
contemporânea da autenticidade estão felizes por defender essa
compreensão do papel (ou não papel) da razão. O que talvez seja
mais surpreendente é que muitos dos seus grandes oponentes
também o estão, os quais são, por isso, levados ao desespero ainda
mais pela reforma da cultura contemporânea. Se a juventude
realmente não se importa com as causas que transcendem o self,
então, o que se pode dizer a ela?

E claro, há críticos que afirmam existir normas na razão.18 Eles


acham que existe uma coisa como a natureza humana, e que uma
compreensão disso irá mostrar que alguns modos de vida são
certos c outros, eirados, e determinados modos são elevados ou
melhores que outros. As raízes filosóficas dessa posição estão em
Aristóteles. O subjetivismo moderno, pelo contrário, tende a ser
muito crítico a Aristóteles, e reclama que sua “biologia metafísica” é
ultrapassada e completamente inacreditável nos dias de hoje.

No entanto, filósofos que pensam assim normalmente têm sido


oponentes do ideal de autenticidade; enxergam-no como parte de
uma saída equivocada das normas enraizadas na natureza humana.
Eles não tinham motivo algum para articular do que se trata;
enquanto aqueles que o sustentaram têm sido desencorajados a
fazê-lo com frequência por suas visões subjetivistas.

Um terceiro fator que obscureceu a importância da autenticidade


como um ideal moral foi a maneira normativa de explicação pelas
ciências sociais. Isso, em geral, tem esquivado de invocar ideais
morais e tende a recorrer a fatores supostamente mais duros e
realistas em suas explicações. E, assim, as características da
modernidade que tenho focado aqui, o individualismo e a expansão
da razão instrumental costumam ser contabilizados como
subprodutos da mudança social: por exemplo, como avanços da
industrialização, ou maior mobilidade ou urbanização. Certamente
há relações causais importantes a serem delineadas aqui, mas as
considerações que as invocam não raro marginalizam inteiramente
a questão da possibilidade de essas mudanças na cultura e na
perspectiva deverem alguma coisa ao próprio poder inerente como
ideais morais. A resposta implícita é geralmente negativa.19

É claro que as mudanças sociais, que devem gerar a nova


perspectiva, precisam elas mesmas ser explicadas, o que envolverá
certa recorrência a motivações humanas, a menos que
suponhamos que a industrialização ou o crescimento das cidades
tenham acontecido inteiramente em um ajuste de ausência de
espírito. Precisamos de alguma noção do que impeliu as pessoas a
mover-se firmemente em uma direção - por exemplo, em direção à
melhor aplicação da tecnologia à produção, ou em direção a
melhores concentrações de pessoas. Entretanto, o que costuma ser
invocado são motivações não morais. Com isso quero dizer
motivações que podem acionar as pessoas completamente sem
conexão com qualquer ideal moral, como defini anteriormente.
Portanto, não raro encontramos essas mudanças sociais explicadas
em termos de desejo por uma maior riqueza, ou poder, ou por meios
de sobrevivência ou de controle sobre os demais. Embora todas
essas coisas possam ser tecidas na forma de ideal moral, elas
necessitam não o ser, e, portanto, tal explicação é considerada
suficientemente “dura” ou “científica”.
Mesmo onde a liberdade individual e a expansão da razão
instrumental são vistas como idéias cuja atração intrínseca pode
ajudar a explicar sua ascensão, essa atração é frequentemente
entendida em termos não morais. Isto é, o poder dessas idéias é
muitas vezes entendido não em relação à sua força moral, mas
apenas por causa das vantagens que parecem conceder às
pessoas, independentemente de sua perspectiva moral, ou mesmo
se possuem uma perspectiva moral. A liberdade lhe permite fazer o
que quer, e a maior aplicação da razão instrumental oferece mais do
que você quer, o que quer que isso seja.20

' O individualismo tem sido usado, de fato, em dois sentidos bem


diferentes. Em um é um ideal moral, uma faceta do que venho
discutindo. Em outro, é um fenômeno amoral, algo como o que
queremos dizer com egoísmo. A ascensão do individualismo nesse
sentido costuma ser um fenômeno de repartição, no qual a perda de
um horizonte tradicional deixa mera anomia em seu despertar, e
todos se afastam por si mesmos - por exemplo, em algumas favelas
desmoralizadas e impulsionadas pelo crime formadas por
camponeses recentemente urbanizados no Terceiro Mundo (ou na
Manches-ter do século XIX). É, com certeza, catastrófico confundir
esses dois tipos

O resultado de tudo isso foi o aumento da escuridão acerca do ideal


moral da autenticidade. Críticos da cultura contemporânea tendem
a menosprezá-lo como um ideal, até mesmo confundindo-o com um
desejo não moral de fazer o que se quer sem interferência. Os
defensores dessa cultura são forçados à desarticulação a esse
respeito pela própria perspectiva. A força geral do subjetivismo no
nosso mundo filosófico e o poder do liberalismo neutro intensificam
a sensação de que esses problemas não podem e não devem ser
discutidos. E então, para completar, as ciências sociais parecem
estar dizendo a nós que, para entender tal fenômeno como a cultura
contemporânea da autenticidade, não deveriamos recorrer a tais
coisas como ideais morais em nossas explicações, mas perceber
tudo em termos de, digamos, mudanças recentes nos modos de
produção,20 21 22 ou novos padrões de absorção da juventude, ou de
segurança de afluência.

Isso importa? Acho que sim, e muito. Muitas das coisas que os
críticos da cultura contemporânea atacam são formas degradadas
ou desviantes desse ideal. Isto é, elas decorrem disso, e seus
praticantes o invocam, mas na realidade não representam uma
realização autêntica (!) disso. Relativismo suave é um caso em
questão. Bloom vê que ele possui uma base moral: “A relatividade
da verdade não é um insight teórico, mas sim um postulado moral, a
condição de uma sociedade livre, ou assim [os estudantes] a
enxergam”.11 No entanto, na realidade, eu gostaria de afirmar, ela
traveste e eventualmente trai esse insight moral. Logo, longe de ser
uma razão para rejeitar o ideal moral da autenticidade, ele mesmo
deve ser rejeitado em seu nome. Ou assim eu gostaria de
argumentar.

Uma argumentação parecida pode ser feita para aqueles apelos à


autenticidade que justificam ignorar tudo o que transcende o self-.
rejeitar o passado como irrelevante, ou negar as exigências da
cidadania, ou as responsabilidades de solidariedade, ou as
necessidade do meio ambiente. De igual modo, justificar em nome
da autenticidade um conceito de relacionamentos como
instrumental para a autorrealização individual também deve ser
visto como uma autoestultifica-ção tiavestida. A afirmação do
poder de escolha como um bem em si mesmo a ser maximizado é
um produto desviante do ideal.

Agora, se algo nesse sentido é verdadeiro, então importa poder


dizê-lo. Pois, então, tem-se algo a ser dito, com toda a razão, para
as pessoas que investem a vida nessas formas desviantes. E isso
pode fazer diferença em sua vida. Algumas dessas coisas podem
ser ouvidas. A articulação aqui tem um propósito moral, não apenas
de corrigir o que podem ser visões erradas, mas também de tornar a
força de um ideal, pelo qual as pessoas já vivem, mais palpável,
mais vivida para elas; e, ao torná-la mais vivida, capacitá-las a viver
de acordo com ela de uma maneira mais plena e integral.

O que estou sugerindo é uma posição distinta tanto dos


incentivadores quanto dos críticos da cultura contemporânea. Ao
contrário dos incentivadores, não acredito que todas as coisas são
como deve-riam ser nessa cultura. Nisto tendo a concordar com os
críticos. Mas, ao contrário destes últimos, penso que a
autenticidade deveria ser levada a sério como um ideal moral.
Também discordo de diversas posições intermediárias, que
afirmam haver algumas coisas boas nessa cultura (como maior
liberdade para o indivíduo), mas que elas venham à custa de certos
perigos (como um enfraquecimento do sentido de cidadania), de
modo que a melhor política é encontrar o ponto de negociação ideal
entre vantagens e custos.

O quadro que estou oferecendo é o de um ideal que se degradou,


mas que é bastante válido em si, e, de fato, gostaria de dizer,
inegável pelos modernos. Portanto, não precisamos de uma
condenação radical nem de uma adoração acrítica; nem de uma
negociação cuidadosamente equilibrada. O que precisamos é de
um trabalho de recuperação, através do qual esse ideal possa
ajudar a restaurar nossa prática.

Para ir adiante, você tem que acreditar em três coisas, todas


controversas: (1) que a autenticidade é um ideal válido; (2) que você
pode discutir racionalmente acerca de ideais e da conformidade
das ações a esses ideais; e (3) que esses argumentos podem fazer
diferença. A primeira convicção choca-se com o maior impulso da
crítica à cultura da autenticidade, a segunda envolve rejeitar o
subjetivismo, e a terceira é incompatível com aquelas
considerações da modernidade que nos veem presos numa cultura
moderna pelo “sistema”, seja ele definido como capitalismo,
sociedade industrial ou burocracia. Espero estar apto para tornar
parte disso plausível no que vem a seguir. Deixe-me começar pelo
ideal.
Capítulo 3 | As Fontes da
Autenticidade
A ética da autenticidade é algo relativamente novo e peculiar à
cultura moderna. Nascida no final do século XVIII, desenvolveu-se
de formas anteriores do individualismo, como o individualismo da
racionalidade desengajada, iniciado por Descartes, no qual a
exigência é de que cada pessoa pense de maneira autorresponsável
por si mesma, ou o individualismo político de Locke, que pretendia
tornar a pessoa e sua vontade anteriores às obrigações sociais.
Mas a autenticidade também tem estado, sob alguns aspectos, em
conflito com essas formas anteriores. É um produto do período
romântico, que era crítico da racionalidade desengajada e de um
atomismo que não reconhecia os laços da comunidade.

Uma maneira de descrever seu desenvolvimento é ver seu marco


inicial na noção oriunda do século XVIII de que os seres humanos
são dotados de um senso moral, um sentimento intuitivo do que é
certo e errado. O propósito original dessa doutrina era combater
uma visão rival de que saber o certo e o errado era uma questão de
calcular as consequências, em particular aquelas relacionadas a
recompensas ou castigos divinos. A noção era de que compreender
certo e errado não era uma questão de puro cálculo, mas estava
fincada em nossos sentimentos. A moralidade tem, em certo
sentido, uma voz interna.23

A noção de autenticidade se desenvolve com base em um


deslocamento do acento moral nessa ideia. Na visão original, a voz
interior é importante porque nos diz qual é a coisa certa a ser feita.
Estar em contato com nossos sentimentos morais importaria aqui
como um meio a fim de agir corretamente. O que estou
denominando de deslocamento do acento moral vem à tona quando
estar em contato assume um significado moral independente e
crucial. Torna-se algo que temos de atingir para sermos seres
humanos verdadeiros e completos.

Para entender o que há de novidade nisso, temos de ver a analogia


com visões morais anteriores, em que estar em contato com
alguma fonte - Deus, digamos, ou a Ideia do Bem - era considerado
fundamental para ser plenamente. Apenas agora a fonte com a qual
temos de nos conectar está no fundo de nós. Isso faz parte da
virada subjetiva massiva da cultura moderna, uma nova maneira de
inferioridade, na qual chegamos a pensar em nós mesmos como
seres com profundidade interior. De início, a ideia de que a fonte
está no interior não exclui nosso ser relacionado a Deus ou às
Idéias; pode ser considerado nosso próprio caminho para eles. Em
um sentido, pode ser visto apenas como uma continuação e
intensificação do desenvolvimento inaugurado por Santo Agostinho,
que viu o caminho para Deus como passando através da própria
consciência reflexiva de nós mesmos.

As primeiras variações dessa nova visão eram teístas ou, pelo


menos, panteístas. Isso é ilustrado pelo escritor filosófico mais
importante que ajudou a trazer essa mudança, Jean Jacques
Rousseau. Penso que Rousseau é importante não porque ele
inaugurou a mudança; eu argumentaria que essa grande
popularidade é oriunda em parte por ele articular algo que já estava
ocorrendo na cultura. Rousseau frequentemente apresenta o
problema da moralidade como aquele em que nós seguimos uma
voz da natureza dentro de nós. Essa voz costuma ser abafada pelas
paixões induzidas por nossa dependência das demais, das quais a
paixão-chave é o “amor-próprio” ou orgulho. Nossa salvação moral
advém da recuperação do contato moral autêntico com nós
mesmos. Rousseau até dá um nome para o contato íntimo consigo
mesmo, mais fundamental que qualquer visão moral, que é a fonte
de alegria e contentamento: ‘7e sentiment de 1’existence” .24

Rousseau também articulou da maneira mais influente uma ideia


estreitamente relacionada. Trata-se da noção do que quero
denominar liberdade autodeterminante É a ideia de que sou livre
quando decido por mim mesmo o que me diz respeito, em vez de
ser moldado por influências externas. É um padrão de liberdade que
obviamente vai além do que foi denominada liberdade negativa, na
qual sou livre para fazer o que quero sem interferências de outrem
porque isso é compatível com meu ser moldado e influenciado pela
sociedade e suas leis de conformidade. A liberdade
autodeterminante exige que eu rompa a retenção de tais
imposições externas e decida por mim mesmo sozinho.

Eu menciono isso aqui não porque é fundamental para a


autenticidade. Obviamente, os dois ideais são distintos. No entanto,
desen-volveram-se em conjunto, por vezes nas obras dos mesmos
autores, e sua relação tem sido complexa, às vezes em desacordo,
às vezes estreitamente unida. Como resultado, foram
frequentemente confundidas, e essa foi uma das fontes das formas
desviantes da autenticidade, como argumentarei. Voltarei a isso
posteriormente.

A liberdade autodeterminante tem sido uma ideia de enorme poder


na nossa vida política. Na obra de Rousseau ela assume uma forma
política, na noção de um contrato social declarado e fundado numa
vontade geral, precisamente porque a forma de nossa liberdade
comum não pode aceitar oposição nenhuma em nome da liberdade.
Essa ideia foi uma das fontes intelectuais do totalitarismo moderno,
começando, pode-se talvez argumentar, com os jacobinos. E,
embora Kant tenha reinterpretado essa noção de liberdade em
termos puramente morais, como autonomia, ela retorna à esfera
política com uma vingança em Hegel e Marx.

Mas, voltando ao ideal de autenticidade: ele se torna crucialmente


importante em razão de um desenvolvimento que ocorreu após
Rousseau e que associo a Herder - uma vez mais seu maior e
primeiro articulador em vez de seu criador. Herder passa adiante a
ideia de que cada um de nós tem um jeito original de ser humano.
Cada pessoa tem a própria “medida”, na sua maneira de dizer.3 Tal
ideia entrou profundamente na consciência moderna. E também é
novidade. Antes do final do século XVIII ninguém pensava que as
diferenças entre os seres humanos tinham esse tipo de significado
moral. Há certo modo de ser humano que é o meu modo. Sou
convocado a viver deste modo, e não imitando o de outro alguém.
Mas isso confere uma nova importância a ser verdadeiro para si
mesmo. Se não sou, eu perco o propósito da minha vida, perco o
que ser humano é para mim.

Essa é a poderosa ideia moral que chegou a nós. Ela concorda


importância moral crucial com um tipo de contato comigo mesmo,
com minha natureza interior, que é vista como em risco de ser
perdida, em parte através de pressões em direção à conformidade
externa, mas também porque, ao assumir uma posição instrumental
em relação a mim mesmo, posso ter perdido a capacidade de ouvir
essa voz interior. E, assim, aumenta grandemente a importância
desse autocontato ao introduzir o princípio da originalidade: cada
uma de nossas vozes tem algo exclusivo a dizer. Não apenas não
devo encaixar minha vida às demandas da conformidade externa;
não posso sequer encontrar o modelo pelo qual viver fora de mim
mesmo. Apenas posso encontrá-lo dentro de mim.

Ser fiel a mim significa ser fiel a minha própria originalidade, e isso
é uma coisa que só eu posso articular e descobrir. Ao articular isso
eu também me defino. Estou realizando uma potencialidade que é
propriamente minha. Essa é a compreensão por trás do ideal
moderno de autenticidade e dos objetivos de autorrealização e
autossatisfa-ção nos quais são usualmente expressos. Esse é o
pano de fundo que confere força moral à cultura da autenticidade,
incluindo suas formas mais degradadas, absurdas ou triviais. É o
que dá sentido à ideia de “fazer suas próprias coisas” ou “encontrar
sua própria realização”. 
Capítulo 4 | Horizontes
Inescapáveis
Este é um esboço bastante breve das origens da autenticidade.
Fornecerei mais detalhes posteriormente. No entanto, por hora,
basta vislumbrar o que está envolvido na discussão aqui. E,
portanto, quero tomar a segunda afirmação controversa que fiz no
final do último capítulo. Pode-se dizer qualquer coisa com razão
para as pessoas que estão imersas na cultura contemporânea da
autenticidade? Você pode falar com razão para as pessoas que
estão profundamente inseridas no relativismo suave ou que
parecem não aceitar aliança alguma maior que o próprio
desenvolvimento - digamos, aquelas que parecem prontas para
jogar fora o amor, filhos, solidariedade democrática, a favor de
algum avanço na carreira?

Bem, como raciocinamos? Raciocinar sobre questões morais é


sempre raciocinar com alguém. Você possui um interlocutor, e
começa pelo lugar onde essa pessoa está ou pela diferença de fato
entre vocês; você não raciocina a partir do zero como se estivesse
falando com alguém que não reconhece qualquer exigência moral.
Seria impossível discutir sobre o certo e o errado com uma pessoa
que não aceitou exigências morais tanto como seria impossível
debater a respeito de problemas empíricos com uma pessoa que se
recusa a aceitar o mundo da percepção ao nosso redor.25

Mas estamos imaginando discutir com pessoas que estão na


cultura contemporânea da autenticidade. E isso significa que elas
estão tentando moldar sua vida em vista desse ideal. Não somos
deixados somente com os fatos despidos de suas preferências.
Entretanto, se partirmos do ideal, então podemos indagar: quais são
as condições na vida humana de se realizar um ideal desse tipo? E
o que o ideal propriamente compreendido requer? As duas ordens
de questões entrelaçam-se, ou talvez lancem sombra em ambas.
Em segundo lugar, estamos tentando definir melhor em que
consiste o ideal. Com o primeiro, queremos trazer à tona certas
características gerais da vida humana que condicionam a
realização deste ou de qualquer outro ideal.

Na sequência, quero trabalhar duas linhas de argumento que podem


ilustrar o que está envolvido nesse tipo de questionamento. O
argumento será bastante incompleto, mais na natureza de uma
sugestão do que uma demonstração convincente pode parecer. O
objetivo será dar alguma plausibilidade a minha segunda afirmação,
de que se pode discutir racionalmente sobre tais questões e,
consequentemente, mostrar que há de fato um propósito na
tentativa de entender melhor no que a autenticidade consiste.

A característica comum da vida humana que quero evocar é o seu


caráter fundamentalmente dialógico. Tornamo-nos agentes
humanos completos, capazes de entender nós mesmos e, portanto,
de definir uma identidade através de nossa aquisição de linguagens
humanas ricas de expressão. Para os propósitos dessa discussão,
quero tomar “linguagem” em um sentido amplo, cobrindo não
apenas as palavras que pronunciamos, mas também outros modos
de expressão pelos quais definimos nós mesmos, inclusive as
“linguagens” da arte, dos gestos, do amor e similares. Mas somos
introduzidos nestas últimas pela troca com os outros. Ninguém
adquire as linguagens necessárias para autodefinição por si
mesmo. Somos apresentados a elas através das trocas com outros
que importam para nós - o que George Herbert Mead chamou de
“outros significativos”.26 A gênese da mente humana, neste sentido,
não é “monológica”, não é alguma coisa que cada um conquista
sozinho, mas dialógica.

Ademais, este não apenas é um fato sobre gênese, que pode ser
ignorado posteriormente. Não se trata apenas de que aprendemos
as linguagens pelo diálogo e depois podemos seguir usando-as
para nossos interesses sozinhos. Isso descreve a situação até certo
ponto em nossa cultura. Espera-se que nós desenvolvamos nossas
próprias opiniões, perspectivas, posições em relação às coisas, até
um grau considerável através da reflexão solitária. No entanto, não
é assim que as coisas funcionam com as questões importantes, tal
como a definição de nossa identidade. Nós a definimos sempre em
diálogo, por vezes em conflito, com as identidades que nossos
outros significativos querem reconhecer em nós. E, mesmo quando
superamos alguns dos últimos - nossos pais, por exemplo - e eles
somem de nossa vida, a conversa com eles continua em nós pelo
tempo que vivemos.27

Logo, a contribuição de outros significativos, mesmo quando


acontece no início de nossa vida, continua considerável. Algumas
pessoas podem estar me acompanhando até aqui, mas ainda
querem se ater a alguma forma de ideal monológico. Verdade,
nunca poderemos nos libertar completamente daqueles cujo amor e
cuidado nos moldaram no começo da vida, mas deveriamos lutar
para nos definirmos sozinhos ao grau mais pleno possível, vindo a
entender da melhor forma possível e, assim, ganhar algum controle
sobre a influência de nossos pais, e evitar cair ainda mais em tais
dependências. Precisaremos de relacionamentos para satisfazer,
mas não para definir a nós mesmos.

Este é um ideal comum, mas acho que subestima seriamente o


lugar do dialógico na vida humana. Ele quer se confinar tanto
quanto possível à gênese. Esquece como nosso entendimento das
coisas boas da vida pode ser transformado por desfrutarmos delas
com pessoas que amamos, como alguns bens tornaram-se
acessíveis a nós apenas através de tal deleite comum. Por causa
disso, seria necessário um grande esforço e, provavelmente, muitos
rompimentos bruscos, para impedir que nossa identidade seja
formada pelas pessoas que amamos. Considere o que queremos
dizer com “identidade”. Isto é, “quem” somos, “de onde viemos”.
Como tal, é o pano de fundo contra o qual nossos gostos e desejos,
opiniões e aspirações fazem sentido. Se algumas das coisas que
mais valorizo são acessíveis a mim apenas em relação à pessoa
que amo, então ela se torna interna a minha identidade.
Para algumas pessoas isso pode parecer uma limitação, da qual
alguém pode almejar se libertar. Este é um jeito de entender o
impulso por trás da vida do eremita ou, para pegar um exemplo
mais familiar a nossa cultura, do artista solitário. No entanto, com
base em outra perspectiva, podemos ver até isso como o almejar de
determinado tipo de dialogicidade. No caso do eremita, o
interlocutor é Deus. No caso do artista solitário, a obra em si é
endereçada a uma audiência futura, talvez ainda a ser criada pela
própria obra. A própria forma de uma obra de arte mostra seu
caráter como endereçada.1' Mas, independentemente de como
alguém se sente a esse respeito, a formação e manutenção de
nossa identidade, na ausência de um esforço heroico para sair da
existência ordinária, permanecem plenamente dialógicas em nossa
vida.

Quero apontar a seguir que esse fato central foi reconhecido na


crescente cultura da autenticidade. Mas o que desejo fazer agora é
tomar essa característica dialógica da nossa condição, de um lado,
e determinadas exigências inerentes ao ideal da autenticidade, do
outro, e mostrar que os modos mais autocentrados e “narcisistas”
da cultura contemporânea são manifestamente inadequados. De
maneira mais particular, quero mostrar que modos que optam pela
autorrealização sem consideração (a) às demandas de nossas
ligações com outros ou (b) às exigências de qualquer sorte
emanadas de algo mais ou além dos desejos humanos ou anseios
são autodestrutivos, que destroem as condições para realizar a
própria autenticidade. Vou supor isso na ordem inversa, e começar
pelo (b), argumentando com base nas exigências da própria
autenticidade como um ideal.

(1) Quando conseguimos entender o que é nos definir, determinar


em que nossa originalidade consiste, vemos que temos de tomar
como pano de fundo algum sentido do que c significativo. Definir-
me significa encontrar o que é significativo na minha diferença dos
demais. Posso ser a única pessoa com exatamente 3.732 fios de
cabelo na cabeça, ou ter exatamente o mesmo peso que alguma
árvore na Sibéria, mas e daí? Se começo a dizer que me defino por
minha habilidade de articular verdades importantes, ou tocar
Hammerklavier como ninguém, ou reavivar a tradição de meus
ancestrais, então estamos no domínio de autodefinições
reconhecíveis.

A diferença é clara. Entendemos prontamente que os últimos


atributos possuem significado humano, ou podem ser facilmente
percebidos pelas pessoas que o possuem, ao passo que o anterior
não, isto é, sem alguma história especial. Talvez o número 3.732
seja sagrado em alguma sociedade; então, ter esse número de fios
de cabelo pode ser significativo. Mas chegamos a isso o ligando ao
sagrado.

Vimos no segundo capítulo como a cultura contemporânea da


autenticidade escorrega em direção ao relativismo suave. Isso dá
ainda mais força a uma suposição comum do subjetivismo acerca
de valor: as coisas possuem significado não por elas mesmas, mas
porque as pessoas supõem que elas o têm - como se as pessoas
pudessem determinar o que é significativo, seja por decisão ou
talvez inconsciente e involuntariamente por apenas sentir-se dessa
maneira. Isso é loucura. Eu não podería simplesmente decidir que a
ação mais significativa é mexer meus dedos do pé na lama. Sem
uma explicação especial, essa não é uma afirmação inteligível
(como os 3.732 fios de cabelo citados). Portanto, eu não sabería
qual sentido atribuir a alguém que supostamente sente que foi
assim. O que alguém poderia querer dizer a respeito de quem disse
isso?

Mas, se só faz sentido com uma explicação (talvez a lama seja o


elemento do mundo espiritual, que entra em contato com seus
dedos), está aberto à crítica. E se a explicação for equivocada, não
funcionar ou puder ser substituída por uma melhor? Seu sentir de
determinada maneira pode nunca ser fundamento suficiente para
respeitar sua posição, porque seu sentimento não pode determinar
o que é significativo. O relativismo suave destrói a si mesmo.
As coisas assumem importância em contraste com as
circunstâncias de inteligibilidade. Chamemos isso de horizonte.
Portanto, uma das coisas que não podemos fazer, se vamos definir
nós mesmos significativamente, é suprimir ou negar os horizontes
contra os quais as coisas adquirem significado para nós. Este é o
tipo de movimento autodestrutivo que não raro é realizado em
nossa civilização sub-jetivista. Ao enfatizar a legitimidade da
escolha entre determinadas opções, com frequência nos vemos
privando as opções de seus significados. Por exemplo, há certo
discurso da justificação de orientações sexuais fora do padrão. As
pessoas querem argumentar que a mono-gamia heterossexual não
é a única maneira de alcançar a realização sexual, que aqueles que
estão inclinados a relações homossexuais, por exemplo, não
deveríam se sentir embarcados em um caminho menor, menos
válido. Isso se encaixa bem no entendimento moderno de
autenticidade, com sua ideia de diferença, originalidade, da
aceitação da diversidade. Tentarei falar mais dessas ligações na
sequência. Mas, por mais que a expliquemos, é claro que uma
retórica da “diferença”, da “diversidade” (até mesmo do
“multiculturalismo”), é fundamental para a cultura contemporânea
da autenticidade.

No entanto, em algumas formas esse discurso escorrega para uma


afirmação da própria escolha. Todas as opções são igualmente
válidas porque são escolhidas livremente, e é a escolha que confere
valor. O princípio subjetivista subentendido no relativismo suave
está em jogo aqui. Contudo, essa implicação nega a existência de
um horizonte de significado preexistente, através do qual algumas
coisas valem a pena e outras nem tanto, e ainda outras que não
valem nada, bastante anterior à escolha. Mas assim a escolha da
orientação sexual perde qualquer significado especial. Está nivelada
a qualquer outra preferência, como aquela por parceiros sexuais
mais altos ou mais baixos, ou por loiras ou morenas. Ninguém
sonharia em fazer julgamentos preconceituosos a respeito dessas
preferências, mas isso porque eles não têm importância. Eles
realmente dependem apenas de como você se sente. Uma vez que
a orientação sexual vem a ser assimilada a eles, que é o que
acontece quando se faz da escolha a razão justificadora crucial, o
objetivo inicial, que era afirmar o igual valor dessa orientação, é
subitamente frustrado. A diferença então afirmada torna-se
insignificante.

Afirmar o valor de uma orientação homossexual deve ser feito de


maneira diferente, mais empiricamente, alguém pode dizer, levando
em conta a real natureza da experiência e vida homo e
heterossexuais. Não pode ser assumida a priori, sob o argumento
de que qualquer coisa que escolhemos está bem.

Nesse caso a afirmação de valor é contaminada por sua ligação


com outra ideia predominante, que já mencionei como intimamente
entrelaçada com a autenticidade, a da liberdade autodeterminada.

Isto é em parte responsável pela ênfase na escolha como


consideração crucial, e também pelo escorregar em direção ao
relativismo suave. Voltarei a isso depois, ao falar sobre como o
propósito da autenticidade acaba se desviando.

Mas, por hora, a lição geral é de que a autenticidade não pode ser
defendida de maneiras que colapsem horizontes de significado. Até
o sentido de que o significado da minha vida vem de ela ser
escolhida - no caso em que a autenticidade é realmente
fundamentada na liberdade autodeterminante - depende da
compreensão de que, independentemente da minha vontade, há
algo nobre, corajoso e, portanto, significativo em dar forma a minha
vida. Há um quadro aqui de como os seres humanos são, colocados
entre essa opção pela autocriação e modos mais fáceis de evitar
fazer isso, seguindo o fluxo, conformando-se com as massas, e
assim por diante, o qual é visto como verdadeiro, descoberto, não
decidido. Horizontes são dados.

Mais ainda: o grau mínimo de generosidade, que sustenta a


importância da escolha, não é suficiente como um horizonte,
conforme vimos no exemplo da orientação sexual. Pode ser
importante que minha vida seja escolhida, como John Stuart Mill
afirma em Sobre a Liberdade,' mas pelo menos algumas opções são
mais significativas que outras, a própria ideia de autoescolha cai na
banalidade e, por isso, a incoerência. A autoescolha como ideal faz
sentido apenas porque algumas questões são mais significativas
que outras. Eu não poderia afirmar ser autosselecionador e utilizar
todo um vocabulário nietzschiano de autofazer só porque escolho
almoçar bife e batata frita em vez de poutined’ Quais problemas são
significativos, eu não determino. Se o fizesse, nenhum problema
seria significativo. No entanto, assim, o próprio ideal de
autoescolher como um ideal moral seria impossível.

Portanto, o ideal de autoescolha supõe que existem outras


questões de significado além da autoescolha. O ideal não poderia
se manter sozinho porque exige um horizonte de problemas de
importância, que ajudam a definir os aspectos nos quais autofazer é
significativo. Seguindo Nietzsche, sou de fato um filósofo
verdadeiramente maior se refaço a tabela de valores. Mas isso
significa redefinir valores relacionados a questões importantes, não
reelaborar o cardápio do McDonakPs ou a moda casual do próximo
ano.

O agente que procura significado na vida, tentando se definir de


maneira significativa, deve existir num horizonte de questões
importantes. Isso é autodestruição nos modos da cultura
contemporânea que se concentram na autorrealização em oposição
às demandas da sociedade, ou da natureza, que bloqueia a história
e os laços de solidariedade. Essas formas autocentradas
“narcisistas” são de fato superficiais e banalizadas; são “niveladas
e restritas”, como Bloom diz. Mas isso não é porque pertencem à
cultura da autenticidade. Antes, porque vão de encontro as suas
requisições. Bloquear demandas emanadas além do self é
precisamente suprimir a condição de significado e, portanto,
incorrer em banalização. Na medida em que as pessoas estão
procurando um ideal moral aqui, esse autoen-carceramento é
autoestultificante; destrói a condição na qual o ideal pode ser
realizado.

Posto de outro modo, posso definir minha identidade apenas em


contraste com o conhecimento das coisas que importam. Mas
agrupar a história, a natureza, a sociedade, as exigências da
solidariedade, tudo menos o que encontro em mim mesmo, seria
eliminar todos candidatos para o que importa. Apenas se existo em
um mundo no qual a história, ou as demandas da natureza, ou as
necessidades de meus pares seres humanos, ou as obrigações da
cidadania, ou o chamado de Deus, ou alguma outra coisa dessa
ordem importa crucialmente, eu posso definir uma identidade para
mim que não é banal. A autenticidade não é a inimiga das
demandas que emanam além do self; ela supõe tais demandas.

Mas, se é assim, há algo que se pode dizer para aqueles que estão
paralisados nos mais banais modos da cultura da autenticidade. A
razão não é impotente. Claro, não chegamos muito longe aqui;
apenas mostramos que algumas questões autotranscendentes são
indispensáveis fquestão (b) citada]. Não mostramos que qualquer
uma em particular deva ser levada a sério. O argumento até aqui é
apenas um esboço, e espero levá-lo (só um pouco) adiante nos
capítulos subsequentes. Por hora, quero voltar ao outro problema,
(a), sobre haver alguma coisa autodestrutiva em um modo de
realização que nega nossos laços com os outros. 

Capítulo 5 | A Necessidade de
Reconhecimento
(2) Outro eixo comum da crítica à cultura contemporânea da
autenticidade é que ela encoraja um entendimento puramente
pessoal de autorrealização, tornando, assim, as diversas
associações e comunidades nas quais a pessoa adentra puramente
instrumentais em seu significado. No sentido social mais amplo,
isso é antiético para qualquer compromisso forte com uma
comunidade. Em especial, torna a cidadania política, que é o sentido
de dever e aliança com a sociedade política, cada vez mais
periférica.28 29  No nível mais específico, incentiva uma visão de
relacionamentos na qual estes devem servir à realização pessoal. O
relacionamento é secundário para a autorrealização dos parceiros.
Nessa visão, vínculos incondicionais, designados a durar para
sempre, fazem pouco sentido. Um relacionamento pode durar até a
morte, se continua servindo seu propósito, mas não há sentido em
declarar a priori que deva ser assim.

Essa filosofia foi articulada num livro famoso de meados dos anos
1970:

Você não pode levar tudo consigo quando parte na jornada da meia-
idade. Você está indo embora. Afastando-se das exigências
institucionais e da agenda de outras pessoas. Afastando-se das
valorizações e atribuições externas. Você está abandonando papéis
e indo em direção ao self. Se eu pudesse dar um presente a todo
mundo que parte nesta jornada, seria uma tenda. Uma tenda para
provisoriedade. O dom das raízes portáteis (...) Para cada um de
nós há a oportunidade de surgir renascido, autenticamente único,
com uma capacidade ampliada de amar a nós mesmos e aceitar os
demais (...) Os prazeres da autodescoberta estão sempre
disponíveis. Embora os entes amados entrem e saiam de nossa
vida, a capacidade de amar permanece.30

A autenticidade parece mais uma vez ser definida aqui de uma


maneira que foca no self, que nos distancia de nossas relações com
os demais. E isso foi dimensionado pelos críticos que citei
anteriormente. Alguém pode dizer qualquer coisa sobre isso de
maneira racional?

Antes de esboçar o sentido do argumento, é importante ver que o


ideal de autenticidade incorpora algumas noções de sociedade ou,
pelo menos, de como as pessoas devam viver juntas. A
autenticidade é uma faceta do individualismo moderno e uma
característica de todas as formas de individualismo, que não
apenas enfatizam a liberdade do indivíduo, mas também propõem
modelos de sociedade. Não conseguimos enxergar isso quando
confundimos os dois sentidos bastante distintos de individualismo
que já discriminei. O individualismo de anomia e desagregação
evidentemente não possui ética social associada a ele; entretanto, o
individualismo como princípio moral ou ideal deve oferecer alguma
opinião a respeito de como o indivíduo deveria viver com os outros.

Assim, os grandes filósofos individualistas também propuseram


modelos de sociedade. O individualismo lockeano nos deu a teoria
da sociedade como contrato. Formas posteriores ligadas a noções
de soberania popular. Dois modos de existência social estão
bastante e evidentemente ligados com a cultura contemporânea da
autorrea-lização. O primeiro é baseado na noção de direito
universal: todos deveríam ter o direito e a capacidade de serem eles
mesmos. Isto é o que sustenta o relativismo suave como um
princípio moral: ninguém tem o direito de criticar os valores de
outrem. Isso inclina aqueles imbuídos dessa cultura na direção de
concepções de justiça processual: o limite na autorrealização de
qualquer um deve ser a medida preventiva de uma igual chance
nessa realização para os outros.31

Em segundo lugar, essa cultura coloca uma grande ênfase em


relacionamentos na esfera íntima, especialmente nos
relacionamentos amorosos. Estes são vistos como sendo o
principal lócus de autoex-ploração e autodescoberta e entre as
formas mais importantes de autorrealização. Tal visão reflete a
continuidade de uma tendência na cultura moderna que está velha
há séculos e coloca o centro de gravidade da vida boa não em
alguma esfera superior, mas no que quero chamar de “vida
ordinária”, isto é, a vida de produção e da família, do trabalho e do
amor.32 Não obstante, ela ainda reflete outra coisa que importa
aqui: o reconhecimento de que nossa identidade exige
reconhecimento dos outros.
Escrevi anteriormente sobre o modo como nossas identidades são
formadas em diálogo com os demais, em concordância ou conflito
com seu reconhecimento de nós. De certo modo, podemos dizer
que a descoberta e articulação desse fato em sua forma moderna
ocorreram em estreita ligação com o desenvolvimento do ideal de
autenticidade.

Podemos distinguir duas mudanças que juntas tornaram inevitável


a preocupação moderna com a identidade e o reconhecimento. A
primeira é o colapso das hierarquias sociais, que costumavam ser a
base para a honra. Estou usando “honra” no sentido do antigo
regime no qual ela é intrinsecamentc ligada a desigualdades. Para
que alguns tenham honra nesse sentido é fundamental que nem
todos a tenham. Este é o sentido em que Montesquieu a usa na sua
descrição de monarquia. A honra é, de maneira intrínseca, uma
questão de “preferência”.33 É também o sentido que usamos
quando falamos de honrar alguém, ao dar a essa pessoa uma
recompensa pública, digamos The Order of Canada.34
35  Obviamente esta não valeria a pena se amanhã decidíssemos

ofertá-la a todos os adultos canadenses.

Em oposição a essa noção de honra, temos a noção moderna de


dignidade, agora usada em um sentido universalista e igualitário,
em que falamos da inerente “dignidade dos seres humanos” ou da
dignidade cidadã. A premissa subjacente aqui é que todos tomam
parte nisto. Tal conceito de dignidade é o único compatível com
uma sociedade democrática, e era inevitável que o antigo conceito
de honra fosse marginalizado. Mas isso também significou que as
formas de reconhecimento igualitário fossem essenciais para a
cultura democrática. Por exemplo, que todos deveríam ser
chamados de senhor, senhora ou senhorita - em vez de algumas
pessoas sendo chamadas de cavalheiro ou dama, e outras apenas
por seu sobrenome, ou, ainda mais degradante, por seu primeiro
nome - foi considerado crucial em algumas sociedades
democráticas, tal como os Estados Unidos. E, mais recentemente,
por motivos similares, senhora e senhorita colapsaram para Ms.36 A
democracia originou uma política de reconhecimentos iguais, que
adquiriu formas variadas ao longo dos anos e que, agora, volta na
forma de demandas pelo status igual de culturas e de gêneros.

Mas a importância do reconhecimento foi modificada e


intensificada pelo entendimento da identidade emergente com o
ideal de autenticidade. Isso também é, em parte, uma ramificação
do declínio da sociedade hierárquica. Naquelas sociedades antigas,
o que agora chamaríamos de identidade de uma pessoa era, em
grande medida, estabelecida por sua posição social. Ou seja, o pano
de fundo que dava sentido ao que a pessoa reconhecia como
importante era em grande parte determinado por seu lugar na
sociedade e por qualquer papel ou atividades associados a ele. A
chegada de uma sociedade democrática não põe fim a isso, porque
as pessoas ainda podem se definir por seu papel social. No entanto,
o que decisivamente mina essa identificação derivada socialmente
é o próprio ideal de autenticidade. Conforme emerge, por exemplo
com Herder, ele me convoca a descobrir minha própria maneira
original de ser. Por definição, não pode ser derivado socialmente,
mas deve ser gerado interiormente.

De igual modo, não existe algo como geração interna, entendida


monologicamente, como tentei argumentar acima. O meu descobrir
a minha identidade não quer dizer que a trabalho em reclusão mas
que a negocio através do diálogo, parcialmente exposto,
parcialmente internalizado, com outros. E por isso que o
desenvolvimento de um ideal de identidade gerada interiormente dá
uma nova e crucial importância ao reconhecimento. Minha própria
identidade depende crucialmente de minhas relações dialógicas
com os outros.

O ponto em questão não é de que essa dependência dos outros


surge com a era da autenticidade. Uma forma de dependência
sempre esteve lá. A identidade derivada socialmente era por sua
natureza mesma dependente da sociedade. Mas, na era anterior, o
reconhecimento nunca surgiu como um problema. O
reconhecimento social foi embutido à identidade derivada
socialmente pelo próprio fato de que estava baseada em categorias
sociais que todos aceitavam sem questionamento. O problema
acerca da identidade derivada interiormente, pessoal e original é
que ela não aproveita esse reconhecimento a priori. Deve-se
conquistá-lo pela troca, e pode fracassar. O que surgiu com a Idade
Moderna não é a necessidade de reconhecimento, mas as
condições nas quais isso pode fracassar. E é por isso que a
necessidade agora é reconhecida pela primeira vez. Em tempos pré-
modernos, as pessoas não falavam de “identidade” e
“reconhecimento”, não porque elas não tinham (o que chamamos)
identidades ou porque estas não dependiam do reconhecimento; ao
contrário, elas eram então muito problemáticas para serem
tematizadas como tal.

Não surpreende podermos encontrar algumas das idéias seminais


acerca da dignidade do cidadão e do reconhecimento universal,
mesmo que não nesses termos, em Rousseau, um dos pontos de
origem do discurso moderno de autenticidade. Rousseau é um
crítico feroz da honra hierárquica, das “préférences”. Em uma
passagem significativa do Discurso sobre a Desigualdade, ele
destaca o momento inevitável em que a sociedade toma o caminho
da corrupção e da injustiça, quando as pessoas começam a desejar
a admiração preferencial.37 Em contraste, na sociedade
republicana, onde todos podem compartilhar igualmente levando
em consideração a atenção pública, ele vê a fonte da saúde.38
39  Entretanto, o tópico do reconhecimento recebe seu primeiro

tratamento mais influente em Hegel.11

A importância do reconhecimento é agora universalmente


reconhecida de uma forma ou de outra; em um plano pessoal,
estamos todos cientes de como a identidade pode ser formada ou
malformada em nosso contato com outros significantes. No plano
social, temos uma contínua política de reconhecimento igualitário.
Ambos foram moldados pelo crescente ideal da autenticidade, e o
reconhecimento desempenha um papel essencial na cultura que
surgiu ao redor dela.

No nível pessoal, podemos ver quanto uma identidade original


precisa e é vulnerável ao reconhecimento dado ou sustentado por
outros significantes. Não é surpresa que, na cultura da
autenticidade, os relacionamentos sejam vistos como a chave da
autodescoberta e da autoconfirmação. Relacionamentos amorosos
não são importantes apenas em razão da ênfase geral na cultura
moderna sobre as satisfações da vida ordinária. Eles também são
cruciais porque são a prova da identidade gerada interiormente.

No plano social, a compreensão de que identidades são formadas


em diálogo aberto, não moldadas por um roteiro social predefinido,
fez a política do igual reconhecimento mais central e estressante.
Na realidade, elevou consideravelmente suas apostas.
Reconhecimento igual não é apenas o modo apropriado para uma
saudável sociedade democrática. Sua recusa pode infligir danos
àqueles para os quais ele é negado, de acordo com uma visão
moderna amplamente difundida. A projeção de uma imagem
inferior ou degradante sobre outrem pode realmente distorcer e
oprimir, na medida em que é interiorizada. Não somente o
feminismo contemporâneo, mas também as relações raciais e as
discussões do multiculturalismo são sustentadas pela premissa
que nega o reconhecimento como uma forma de opressão. Pode-se
questionar se esse fator foi exagerado, mas é claro que o
entendimento da identidade e da autenticidade introduziu uma nova
dimensão na política de igual reconhecimento, que agora opera com
algo como sua própria noção de autenticidade, ao menos no que se
refere à denúncia de outras distorções induzidas envolvidas.

Tendo em mente a compreensão do reconhecimento desenvolvida


nos últimos dois séculos, podemos ver por que a cultura da
autenticidade vem atribuindo precedência aos dois modos de vida
coletiva que já mencionei: (1) no nível social, o princípio crucial é o
de equidade, que requer as mesmas chances para todos
desenvolverem a própria identidade, que inclui - como agora
podemos entender com maior clareza - o reconhecimento universal
da diferença, em quaisquer que sejam os modos em que isso seja
relevante para a identidade, seja de gênero, racial, cultural ou
concernente à orientação sexual; e, (2) na esfera privada, os
relacionamentos amorosos formadores de identidade têm uma
importância crucial.

A pergunta com a qual iniciei este capítulo talvez possa ser


colocada desta maneira: pode um modo de vida que é centrado no
self, no sentido que envolve tratar nossas associações como
meramente instrumentais, ser justificado levando em consideração
o ideal de autenticidade? Agora talvez possamos reformulá-la ao
perguntar se tais modos favorecidos de viver coletivamente
permitirão esse gênero de ser de uma maneira desvinculada.

(1) No nível social, pode parecer que a resposta é um nítido sim.


Todo reconhecimento das diferenças parece pedir que aceitemos
algum princípio de justiça processual. Não exige que reconheçamos
uma forte aliança para com uma república cidadã ou qualquer outra
forma de sociedade política. Podemos “relaxar”, contanto que
tratemos todo mundo igualmente. De fato, pode até ser afirmado
que qualquer sociedade política fundamentada em alguma noção
forte de bem comum irá, por si mesma, por esse próprio fato
endossar a vida de algumas pessoas (aqueles que apoiam essa
noção de bem comum) sobre os demais (aqueles que buscam
outras formas de bem), e, por isso, negar igual reconhecimento.
Algo assim, vimos, é a premissa fundamental de um liberalismo da
neutralidade, o qual possui muitos defensores hoje.

Mas isso é simples demais. Mantendo em mente o argumento do


capítulo anterior, temos de perguntar o que está envolvido em
reconhecer verdadeiramente as diferenças. Isso significa
reconhecer o valor igual de diferentes maneiras de ser. É este
reconhecimento de igual valor que uma política de reconhecimento
identitário requer. Contudo, o que fundamenta a igualdade de valor?
Vimos anteriormente que o mero fato de as pessoas escolherem
diferentes maneiras de ser não as faz iguais; tampouco o faz o fato
de elas se encontrarem nesses diferentes sexos, raças, culturas. A
mera diferença não pode ser em si mesma o fundamento do valor
igualitário.

Se homens e mulheres são iguais, não é porque são diferentes, mas


porque passam por cima das diferenças de algumas propriedades,
comuns ou complementares, as quais são valiosas. Eles são seres
capazes de raciocinar, amar, recordar ou de reconhecer
dialogicamente. Unir-se em um reconhecimento mútuo de
diferenças - isto é, do igual valor de identidades diferentes - exige
que compartilhemos mais do que a crença nesse princípio; temos
que compartilhar também alguns padrões de valor que as
identidades referidas conferem como iguais. Deve haver algum
acordo substancial sobre valor, ou então o princípio formal de
igualdade será vazio e uma fraude. Podemos expressar apoio ao
reconhecimento igualitário, mas não compartilharemos uma
compreensão de igualdade a menos que compartilhemos algo
mais.

Reconhecer diferenças, como autosselecionadas, requer um


horizonte de significado - neste caso, um que seja compartilhado.

Isso não mostra que devemos pertencer a uma sociedade política


comum; do contrário, não reconheceriamos os estrangeiros. E não
mostra por si que devemos levar a sério a sociedade política em
que estamos. Mais necessidades a serem atendidas. Mas já
podemos ver como o argumento pode ir: como desenvolver e cuidar
das coisas em comum de valor entre nós se torna importante, e
uma das maneiras cruciais com que fazemos isso é compartilhando
uma vida política participativa. As próprias demandas de
reconhecer a diferença nos levam além de mera justiça processual.

(2) E quanto aos nossos relacionamentos? Podemos vê-los como


instrumentais às nossas realizações e, portanto, fundamentalmente
como tentativas? Aqui a resposta é mais fácil. Certamente não, se
eles também formarão nossa identidade. Se as intensas relações
de autoexploração serão formadoras de identidade, então não
podem ser, por princípio, tentativas - embora possam, alas?1 de fato
romper-se - nem meramente instrumentais. As identidades na
realidade mudam, mas as formamos como a identidade de uma
pessoa que viveu parcialmente e vai completar essa vivência. Não
defino uma identidade para “eu em 1991”, mas, em vez disso, tento
dar sentido a minha vida como foi e como eu a projeto mais adiante
com base no que ela foi. Minhas relações definidoras de identidade
não podem ser vistas, teórica e adiantadamente, como
dispensáveis e destinadas à substituição. Se minha autoexploração
assume a forma de tais relacionamentos em série e em princípio
temporários, então não é minha identidade que estou explorando,
mas alguma modalidade de diversão.

Considerando o ideal de autenticidade, parecería que ter


relacionamentos meramente instrumentais é agir de uma maneira
autoestultificante. A noção de que se pode buscar a realização
dessa maneira parece ilusória. Em alguma medida, da mesma
forma que se pode escolher a si mesmo sem reconhecer um
horizonte de significado além da escolha.

De qualquer maneira, isso é o que esse argumento incompleto


sugeriría. Não posso afirmar ter estabelecido conclusões sólidas
aqui, mas espero ter feito algo para sugerir que o escopo do
argumento racional é muito maior do que frequentemente se supõe,
e, portanto, que essa exploração das fontes da identidade tem
algum propósito.
Capítulo 6 | O Escorregar para o
Subjetivismo
Até agora tenho sugerido uma maneira de olhar para o que foi
chamado de “a cultura do narcisismo”, a disseminação de uma
perspectiva que torna a autorrealização o maior valor na vida e que
parece reconhecer poucas demandas morais externas ou
comprometimentos sérios com os outros. O conceito de
autorrealização aparece nesses dois aspectos muito autocentrado,
daí o termo “narcisismo”. Estou dizendo que deveriamos ver essa
cultura como refletindo parcialmente uma ambição ética, o ideal de
autenticidade, mas uma que não permita em si seus modos
autocentrados. Antes, tendo em mente esse ideal, estes parecem
modos desviantes e triviais.

Isso contrasta com outras duas maneiras comuns de olhar para tal
cultura. Estas a veem (a) como de fato fortalecida por um ideal de
autorrealização, embora esse ideal seja compreendido como tão
autocentrado quanto as práticas que derivam dele; ou (b) como
somente a expressão de autoindulgência e egoísmo, isto é, não
motivado por um ideal de forma alguma. Na prática, essas duas
visões tendem a se encontrar e tornar-se uma, porque o ideal
suposto por (a) é tão baixo e autoindulgente a ponto de tornar-se
virtualmente indistinguível de (b).

Agora (a) supõe, na verdade, que, quando as pessoas propõem uma


forma muito autocentrada de autorrealização, elas são bastante
impermeáveis às considerações dos últimos dois capítulos; ou
porque

suas ambições nada têm a ver com o ideal de autenticidade que


tenho traçado, ou porque as visões morais das pessoas são
independentes da razão de qualquer maneira. Pode-se supô-los
impermeáveis tanto porque se pensa na própria autenticidade como
um ideal muito baixo, uma invocação certamente mais tênue para a
autoindulgência, quanto porque, independentemente da natureza
dos ideais contemporâneos, se mantém uma visão subjetivista das
convicções morais como meras projeções que a razão não pode
alterar.

De qualquer maneira, tanto (a) como, claro, a fortiori, (b) pintam a


cultura do narcisismo como plenamente em paz consigo mesma,
pois em qualquer leitura ela é em teoria exatamente o que é na
prática. Satisfaz as próprias aspirações e, assim, é impermeável à
discussão. Minha visão, pelo contrário, mostra que ela está repleta
de tensões, vive um ideal que não é inteiramente compreendido e
que, devidamente entendido, contestaria muitas de suas práticas.
Aqueles que o vivem, compartilhando de nossa condição humana,
podem ser lembrados daquelas características de nossa condição
que mostram serem essas práticas questionáveis. A cultura do
narcisismo vive um ideal que está sistematicamente vindo abaixo.

Mas, se estou certo, então esse acontecimento precisa de


explicação. Por que ele vem abaixo de seu ideal? O que torna a ética
da autenticidade propensa a esse tipo de desvio para o trivial?

Naturalmente, em um nível, a motivação para a adoção de formas


mais autocentradas pode ser clara o bastante. Nossos vínculos
com os outros, assim como exigências morais externas, podem
estar facilmente em conflito com nosso desenvolvimento pessoal.
As demandas de uma carreira podem ser incompatíveis com as
obrigações para com nossa família, ou com a fidelidade à alguma
causa maior ou a um princípio. A vida pode parecer mais fácil se se
puder negligenciar essas restrições externas. De fato, em certos
contextos, nos quais se luta para definir uma identidade frágil e
conflituosa, esquecer as restrições pode parecer o único caminho
para a sobrevivência.
Mas conflitos morais desse tipo, presumivelmente, sempre
existiram. O que precisa ser explicado é a facilidade relativamente
maior com que essas restrições externas podem agora ser
dispensadas ou deslegitimadas. Onde nossos ancestrais, em um
caminho similar de autoafirmação, teriam sofrido
autorreconhecidamente de um inabalável sentimento de
transgressão, ou pelo menos de desobediência de uma ordem
legítima, muitos contemporâneos atravessaram tranquilamente sua
honesta busca pelo autodesenvolvimento.

Parte da explicação reside na esfera social. Mencionei


anteriormente, no segundo capítulo, as considerações da cultura
moderna que a derivam da mudança social. Embora eu ache que
qualquer explicação simples de único sentido não possa ser
consistente, é evidente que a mudança social teve muito a ver com
a forma da cultura moderna. Determinados modos de pensar e
sentir podem eles mesmos facilitar mudanças sociais, mas, quando
isso acontece em grande escala, pode consolidar esses modos e
fazê-los parecer inevitáveis.

Esse é, indubitavelmente, o caso para as diferentes formas de


individualismo moderno. Idéias individualistas desenvolvidas no
pensamento e na sensibilidade, em especial de europeus instruídos,
durante o século XVII. Estes parecem ter facilitado o crescimento
de novas formas políticas, que desafiaram as antigas hierarquias, e
de novos modos de vida econômica, os quais deram um lugar maior
ao mercado e às empresas empreendedoras. Mas, uma vez que
essas novas formas estão em vigor e as pessoas são educadas
nelas, então esse individualismo é grandemente fortalecido porque
está enraizado em suas práticas cotidianas, na maneira como elas
ganham a vida e na maneira como se relacionam com os demais na
vida política. Trata-se de parecer a única perspectiva concebível, a
qual certamente não o foi para seus ancestrais, os pioneiros nisso.

Tal tipo de processo de entrincheiramento pode ajudar a explicar o


desmoronamento na cultura da autenticidade. As formas autocen-
tradas são desviantes, como vimos, em dois aspectos. Elas tendem
a centrar a realização no indivíduo, tornando suas afiliações
puramente instrumentais; elas impõem, em outras palavras, um
atomismo social. E tendem a ver a realização apenas como do self,
negligenciando ou deslegitimando as demandas que vêm de fora de
nossos próprios desejos ou ambições, sejam elas da história, da
tradição, da sociedade, da natureza ou de Deus; elas fomentam, em
outras palavras, um antropocentrismo radical.

Não é difícil ver como ambas as posições passam a ser enraizadas


nas sociedades industriais modernas. Desde seus primórdios, esse
tipo de sociedade envolveu mobilidade, inicialmente de
camponeses da terra para as cidades, e depois pelos oceanos e
continentes para novos países, e, por fim, hoje, de cidade para
cidade, seguindo oportunidades de emprego. A mobilidade é, de
certo modo, imposta a nós. Laços antigos são rompidos. Ao mesmo
tempo, a habitação da cidade é transformada pela imensa
concentração populacional das metrópoles modernas. Pela própria
natureza, isso envolve contato muito mais impessoal e casual no
lugar de relações mais intensas, cara a cara, em tempos passados.
Tudo isso pode apenas gerar uma cultura na qual a visão de
atomismo social se torna cada vez mais enraizada.

Além disso, nossa sociedade tecnocrática e burocrática dá cada vez


mais importância à razão instrumental. Isso fortalece o atomismo,
porque nos induz a ver nossas comunidades, assim como muitas
outras coisas, em uma perspectiva instrumental. Contudo, também
produz antropocentrismo ao nos fazer assumir uma postura
instrumental para todas as facetas de nossa vida e arredores: para
o passado, natureza, assim como para nossos arranjos sociais.

Portanto, parte da explicação para o desvio na cultura da


autenticidade deve ser atribuída ao fato de que isso está sendo
vivido em uma sociedade industrial, tecnológica e burocrática. Na
verdade, o domínio da razão instrumental é evidente em uma série
de maneiras em várias facetas do movimento de potencial humano,
cujo propósito dominante destina-se a ser a autorrealização. Não
raro nos são oferecidas técnicas, baseadas em descobertas
supostamente científicas, para alcançar a integração psíquica ou a
paz de espírito. O sonho da solução rápida também está presente
aqui, como em outros lugares, a despeito de que, desde os
primórdios e ainda hoje, o objetivo da autorrealização tem sido
entendido como oposto àquele do mero controle instrumental. Uma
técnica de solução rápida para o desapego é a contradição
suprema.

Entretanto, o contexto social não fornece toda a história. Também


há razões internas ao ideal de autenticidade que facilitam o deslize.
Na realidade, não houve apenas um deslize; mas dois, os quais
tiveram relações complexas, entrecruzadas.

O primeiro é aquele sobre o qual tenho falado aqui, o deslize para os


modos autocentrados do ideal de autorrealização na cultura popular
de nossa época. O segundo é um movimento de “alta” cultura, para
um tipo de niilismo, uma negação de todos os horizontes de
significado, que vem ocorrendo há um século e meio. A principal
figura aqui é Nietzsche (muito embora ele usasse o termo “niilismo”
em um sentido diferente, para designar algo que rejeitava), apesar
de as raízes das formas do século XX também se encontrarem na
imagem do “poète maudit” e em Baudelaire. Aspectos dessa linha
de pensamento encontraram expressão em algumas vertentes do
modernismo, e ela emergiu entre escritores que são, não raro,
designados hoje como pós-modernos, como Jacques Derrida ou o
tardio Michel Foucault.

O impacto de tais pensadores é paradoxal. Eles transferem seu


desafio nietzschiano às nossas categorias comuns a ponto de até
“desconstruir” o ideal de autenticidade e a própria noção de self.
Mas, na verdade, a crítica nietzschiana a todos os “valores” como
criados não pode senão exaltar e enraizar o antropocentrismo. No
fim, deixa o agente, mesmo com todas as dúvidas acerca da
categoria de “self”, com uma sensação de poder e liberdade
ilimitados perante um mundo que não impõe norma alguma, pronto
para desfrutar do “jogo livre”1 ou entregar-se a uma estética do
self.40 41 Conforme essa teoria “mais elevada” se infiltra na cultura
popular da autenticidade - podemos ver isso, por exemplo, entre
estudantes, que são a junção das duas culturas -, ela fortalece
ainda mais os modos autocentrados, dando-lhes certo revestimento
de justificativa filosófica mais profunda.

E, não obstante, tudo isso surge, quero afirmar, das mesmas fontes
que o ideal de autenticidade. E como isso seria possível? A
invocação da estética de Michel Foucault em uma entrevista
anterior nos aponta a direção correta. No entanto, para fazer as
associações inteligíveis aqui, temos de apresentar os aspectos
expressivos do individualismo moderno.

A noção de que cada um de nós possui uma maneira original de ser


humano implica que devemos descobrir o que é sermos nós
mesmos. Mas a descoberta não pode ser feita através da consulta
de modelos preexistentes, por hipóteses. Por isso, pode ser feita
apenas articulando-a de novo. Descobrimos o que temos que ser
em nós ao nos tornarmos esse modo de vida, ao dar expressão em
nosso discurso e ações ao que é original em nós. A noção de que a
revelação vem através da expressão é o que quero apreender ao
falar do “expressi-vismo” da noção moderna do indivíduo.42

Isso sugere imediatamente uma analogia próxima, até uma


conexão, entre autodescoberta e criação artística. Com Herder e o
entendimento expressivista da vida humana, a relação se torna
bastante íntima. A criação artística vira a forma paradigmática na
qual as pessoas podem chegar à autodefinição O artista torna-se,
de alguma maneira, o caso paradigmático do ser humano, como
agente de autodefinição original. Desde meados de 1800, tem
havido uma tendência a heroicizar o artista, a ver na vida dele a
essência da condição humana e a venerá-lo como um visionário, o
criador de valores culturais.
Mas, obviamente, com isso foi-se um novo entendimento de arte.
Não mais definida em particular pela imitação, pela mimêsis da
realidade, a arte é agora compreendida mais em matéria de criação.
Essas duas idéias vão lado a lado. Se nos tornamos nós mesmos ao
expressar o que somos, e se o que nos tornamos é por hipótese
original, não baseado no preexistente, então, o que expressamos
não é uma imitação do preexistente, mas uma criação. Julgamos a
imaginação como criativa.

Olhemos mais de perto esse caso, que se tornou um paradigma


para nós, no qual descubro a mim mesmo através do meu trabalho
como um artista, através daquilo que crio. Minha autodescoberta
passa por uma criação, pelo fazer de algo original e novo. Forjo uma
nova linguagem artística - um novo modo de pintar, uma nova
métrica ou forma poética, uma nova maneira de escrever um
romance - e, através disso e somente disso, eu me torno o que
tenho em mim para ser. A autodescoberta requer poiêsis, fazer. Isso
desempenhará um papel crucial em um dos sentidos em que essa
ideia de autenticidade evoluiu.

No entanto, antes de olharmos para isso, quero observar a íntima


relação entre nossas idéias habituais de autodescoberta e o
trabalho do artista criativo. A autodescoberta envolve a imaginação
como arte. Achamos “criativas” as pessoas que alcançaram
originalidade em sua vida. E o fato de descrevermos a vida de não
artistas em termos artísticos corresponde à nossa tendência de
considerá-los, de alguma forma, conquistadores exemplares da
autodefinição.

Contudo, há outra série de razões para essa estreita aproximação


entre arte e autodefinição. Não somente porque ambas envolvem
poiêsis criativa. E também porque autodefinição vem a ser
comparada sem demora com moralidade. Algumas teorias as
mantêm firmemente juntas. Rousseau o faz, por exemplo: “/e
sentiment de 1’existence” me tornaria uma perfeita criatura moral
se eu estivesse, todavia, em pleno contato com ele. Mas, muito
cedo, viu-se que isso não era necessariamente assim. As
exigências da autoverdade, do contato com o self, da harmonia
dentro de nós, poderíam ser bem diferentes das exigências de
tratamento adequado que se espera de nós em relação aos demais.
De fato, a própria ideia de originalidade e a noção associada de que
o inimigo da autenticidade pode ser a conformidade social impõem
a nós a ideia de que a autenticidade terá de lutar contra algumas
regras externamente impostas. Podemos, é óbvio, acreditar que ela
estará em harmonia com as regras certas, mas está no mínimo
claro que existe uma diferença especulativa entre esses dois tipos
de exigência: o de verdade ao self e o de justiça intersubjetiva.

Isso aparece de maneira cada vez mais clara no reconhecimento de


que as exigências da autenticidade estão intimamente ligadas à
estética. Estamos muito familiarizados com esse termo, e achamos
que a estética sempre foi uma categoria para pessoas, de qualquer
modo, enquanto amaram a arte e a beleza. Mas não é assim. A
noção de estética surge de outra mudança paralela no
entendimento da arte no século XVIII, ligada à mudança de modelos
de imitação para criatividade.

Onde a arte é compreendida primariamente como um tipo de


imitação da realidade, ela pode ser definida em relação à realidade
retratada, ou à sua forma de representação. Mas o século XVIII
percebe mais um desses deslocamentos em direção ao sujeito,
paralelo àquele que descreví anteriormente ligado à filosofia do
senso moral. A especificidade da arte e da beleza cessa para ser
definida em termos de realidade ou de sua maneira de
representação, e vem a ser identificada pelos tipos de sentimento
que desperta em nós, um sentimento de seu próprio tipo especial,
diverso do moral e de outros tipos de prazer. Mais uma vez, é
Hutcheson, baseando-se em Shaftesbury, que é um dos pioneiros
nessa linha de pensamento, mas que, ao final do século, é tornada
famosa, quase canônica, através da formulação dada a ela por
Immanuel Kant.
Para Kant, seguindo Shaftesbury, a beleza envolve um sentido de
satisfação, mas que é distinto da realização de qualquer desejo, ou
mesmo da satisfação decorrente da excelência moral. É uma
satisfação por si mesma, por assim dizer. A beleza oferece a própria
satisfação intrínseca. Sua finalidade é interna.

Mas a autenticidade também vem a ser entendida de forma


paralela, como sua própria finalidade. Ela nasce, como já descreví,
de uma mudança no centro de gravidade da exigência moral em
nós: autover-dade e autoplenitude são vistas cada vez mais não
como meios para ser moral, como independentemente definidas,
mas como algo valioso para o próprio bem. A autoplenitude e a
estética estão prontas para serem unidas, uma unidade à qual
Schiller atribuiu uma expressão imensamente influente em suas
Letters on the Aesthetic Education of Man.A Para esse filósofo, a
satisfação da beleza nos dá uma unidade e plenitude acima das
divisões que surgem em nós da luta entre moralidade e desejo.
Essa plenitude é algo diferente da realização da moral, e, ao final,
Schiller parece estar insinuando que é mais elevada, porque nos
compromete totalmente de um modo que a moral não pode. Claro,
para ele, as duas ainda são compatíveis, elas se encaixam.
Contudo, estão prontas para serem contrastadas, pois a plenitude
estética é uma finalidade independente, com o próprio télos, a
própria forma de bondade e contentamento.

Tudo isso contribui para as relações estreitas entre autenticidade e


arte. E ajuda a explicar alguns dos desenvolvimentos da noção de
autenticidade nos últimos dois séculos; em particular, o
desenvolvimento das formas nas quais as exigências da
autenticidade têm sido lançadas contra aquelas da moral. A
autenticidade envolve originalidade, demanda uma revolta contra a
convenção. É fácil ver como o próprio padrão de moralidade pode
ser visto como inseparável da sufocante convenção. A moral, como
costuma ser entendida, obviamente envolve aniquilar muito do que
é elementar e instintivo em nós, muitos de nossos desejos mais
profundos e poderosos. Logo, desenvolve-se um ramo de pesquisa
para a autenticidade que se coloca contra a moral. Nietzsche, que
busca um tipo de autoconstru-ção no registro da estética, vê isso
como bastante incompatível com a tradicional ética de
benevolência de inspiração cristã. E ele tem sido seguido e
excedido em várias tentativas de defender as profundidades
instintuais, mesmo a violência, contra a ética “burguesa” da ordem.
Exemplos influentes em nosso século são, em suas formas muito
diferentes: Marinetti e os futuristas, Antonin Artaud e seu Teatro da
Crueldade e Georges Bataille. O culto da violência foi também uma
das raízes do fascismo.

Portanto, a autenticidade pode se desenvolver em muitos ramos. E


todos são igualmente legítimos? Penso que não. Não estou
tentando dizer que esses apóstolos do mal estão simplesmente
errados. Eles podem estar certos em alguma coisa, uma tensão na
própria ideia de autenticidade, que pode nos puxar em mais de uma
direção. No entanto, penso que as variantes “pós-modernas”
populares de nossos dias, que tentaram deslegitimar horizontes de
significado, como vemos com Derrida, Foucault e seus seguidores,
estão de fato propondo formas desviantes. O desvio assume a
forma de esquecimento acerca de todo um conjunto de exigências
sobre a autenticidade enquanto foca exclusivamente em outras.

Em suma, podemos dizer que a autenticidade (A) envolve (i) criação


e construção, assim como descoberta, (ii) originalidade e,
frequentemente, (iii) oposição às regras da sociedade e mesmo
potencialmente ao que reconhecemos como moralidade. Contudo,
também é verdade, como vimos, que (B) requer (i) abertura aos
horizontes de significado (visto que de outro modo a criação perde
o pano de fundo que pode salvá-la da insignificância) e (ii) uma
autodefinição no diálogo. Há que se admitir que tais exigências
podem estar em tensão. Mas o que deve estar errado é um simples
privilégio de um sobre o outro, de (A), digamos, em detrimento de
(B), ou vice-versa.
Isto é o que as doutrinas de “desconstrução” da moda envolvem
hoje. Elas enfatizam (A.i), a natureza criativa e construtiva de
nossas linguagens expressivas, enquanto esquecem
completamente (B.i). E elas apreendem as formas extremas de
(A.iii), o amoralismo da criatividade, ao passo que esquecem (B.ii),
sua configuração dialógica, que nos une aos demais.

Há algo de incoerente acerca disso, porque esses pensadores


investem na perspectiva de fundo da autenticidade, por exemplo,
em seu entendimento dos poderes criativos, autoconstrutivos da
linguagem. Trata-se de algo que a filosofia científica da vida
humana mais desengajada não consegue aceitar. Mas querem
investir nela, ignorando algumas de suas constituintes essenciais.

De qualquer maneira, esteja certa ou não, podemos ver quão forte


pode ser a tentação de defender esse tipo de teoria. Está implícita
nas tensões inerentes ao ideal próprio da autenticidade entre os
lados que identifiquei como (A) e (B). E, uma vez em que se
precipita nessa direção, exaltando (A) sobre (B), algo mais entra em
jogo.

A compreensão de valor como criado dá uma sensação de poder e


liberdade. A fascinação com a violência no século XX tem sido um
caso de amor com o poder. Mas, mesmo em formas mais leves, as
teorias neonietzschianas geram um sentimento de liberdade
radical.

Isso se liga àquela outra ideia, a qual eu disse estar intimamente


ligada à autenticidade desde o início, de autodeterminação da
liberdade. Suas relações têm sido complexas, envolvendo tanto
afinidade quanto contestação.

A afinidade é óbvia. A autenticidade é ela mesma uma ideia de


liberdade; envolve a descoberta do projeto de minha vida por mim
mesmo, contra as exigências de conformidade externa. As bases
para uma aliança estão lá. Mas isso é somente o que torna as
diferenças ainda mais fatídicas. Pois a noção de autodeterminação
da liberdade, empurrada até seus limites, não reconhece quaisquer
fronteiras, nada dado que eu tenha de respeitar em meu exercício
de autodeterminação da escolha. Pode ser facilmente tombada nas
mais extremas formas de antropocentrismo. Tem, evidentemente,
uma variante social, formulada no Contrato Social de Rousseau e
desenvolvida de maneira própria por Marx e Lênin, que certamente
ligam o indivíduo à sociedade. Contudo, ao mesmo tempo, essas
variantes empurraram o centramento humano a novas alturas, em
seu ateísmo, e em sua agressividade ecológica, que ultrapassou até
mesmo aquela da sociedade capitalista.43

No fim, a autenticidade não pode, não deveria, continuar com a


liberdade autodeterminada. Ela enfraquece a si mesma. Não
obstante, a tentação está compreensivelmente lá. E onde a tradição
da autenticidade sucumbe por qualquer outra razão ao
antropocentrismo, a aliança facilmente se recomenda, torna-se
quase irresistível. Isso porque o antropocentrismo, ao abolir todos
os horizontes de significado, ameaça-nos com uma perda de
sentido e, portanto, com uma banalização de nosso predicamento.
Em certo momento, entendemos nossa situação como uma grande
tragédia, sozinhos em um universo silencioso, sem significado
intrínseco, condenados a criar valor. Mas, em um momento
posterior, a mesma doutrina, pela própria tendência inerente, produz
um mundo achatado, no qual não há escolhas muito significativas
porque não há quaisquer questões cruciais. O destino das grandes
teorias “pós-modernas” que descrevi aqui, conforme elas impactam
as universidades norte-americanas, ilustra isso. Elas se tornam
tanto mais planas e mais gentis quanto as originais. Planas, porque
servem no final das contas para reforçar as imagens mais
autocentradas da autenticidade. Gentis, porque são tomadas como
suportes para as exigências de reconhecer diferenças. Foucault, na
universidade norte-americana, é, em geral, enfaticamente visto
como uma figura da esquerda. Este não é necessariamente o caso
na França, e menos ainda na Alemanha.44
Em um mundo achatado, em que os horizontes de significado
tornam-se mais fracos, o ideal de autodeterminação da liberdade
acaba exercendo uma atração mais poderosa. Parece que o
significado pode ser conferido pela escolha, ao tornar minha vida
um exercício em liberdade, mesmo quando todas as outras fontes
falham. A autodeterminação da liberdade é em parte a solução-
padrão da cultura da autenticidade e, ao mesmo tempo, sua
perdição, uma vez que intensifica ainda mais o antropocentrismo.
Isso configura um ciclo vicioso que nos dirige a um ponto em que
nosso maior valor restante é a própria escolha. Mas, como já vimos,
isso subverte profundamente tanto o ideal de autenticidade quanto
a ética de reconhecer a diferença associada a ele.

Estas são as tensões e fraquezas dentro da cultura da


autenticidade, que, com as pressões de uma sociedade da
atomização, precipi-tam-na em seu deslize.

Capítulo 7 | La Lotta Continua


Tenho pintado um retrato da cultura da autenticidade como
influenciado, até em suas variantes mais “narcisistas”, por um ideal
de autenticidade, que, entendido corretamente, condena essas
variantes. E uma cultura que sofre de uma tensão constitutiva. Isso
contrasta com a visão comum das formas mais autocentradas de
autorrealiza-ção como mero produto de egoísmo autoindulgente,
ou, na melhor das hipóteses, como acionado por um ideal nada
melhor do que as práticas menos admiráveis.

Por que sustentar minha visão? Bem, a primeira razão é que ela me
parece verdadeira. Esse ideal parece sim, a mim, ainda operante em
nossa cultura, e a tensão parece estar lá. No entanto, quais são as
consequências para nossas ações se minha visão for verdadeira?
Enxergar as coisas da maneira como estou propondo leva a uma
posição bem diferente em relação a essa cultura. Uma posição
comum hoje, especialmente entre críticos como Bloom, Bell e
Lasch, é olhar de soslaio para o objetivo da autorrealização como
de algum modo contaminado pelo egoísmo. Isso pode levar
facilmente a uma condenação vulgar da cultura da autenticidade.
Por sua vez, há aqueles que estão bastante “inseridos” nessa
cultura, para quem tudo está bem do jeito que está. O quadro
sugerido aqui não conduz a nenhuma delas. Ele sugere que
empreendamos um trabalho de recuperação, que identifiquemos e
articulemos o ideal mais elevado por trás das práticas mais ou
menos degradantes, e depois critiquemos tais práticas com base no
ponto de vista de seus próprios ideais motivadores. Em outras
palavras, em vez de dispensar tal cultura completamente, ou apenas
aprová-la como é, devemos tentar elevar suas práticas ao tornar
mais palpável aos seus participantes o que realmente envolve a
ética a qual eles aderiram.

Isso significa comprometer-se em um trabalho de persuasão. Não


parece nem possível tampouco desejável, se você assume qualquer
dos outros pontos de vista, mas é a única política apropriada na
visão que venho defendendo. Qualquer campo cultural envolve uma
luta; pessoas com visões diferentes e incompatíveis rivalizam,
criticam e condenam umas às outras. Já existe uma luta ocorrendo
entre os incentivadores e os críticos até no que concerne à cultura
da autenticidade. Estou sugerindo que essa luta é um engano;
ambos os lados estão equivocados. O que deveriamos fazer é lutar
pelo significado de autenticidade e, do ponto de vista desenvolvido
aqui, tentar persuadir as pessoas de que a autorrealização, muito
longe de excluir relacionamentos incondicionais e exigências
morais além do self, na verdade as requer em alguma forma. A
batalha não deveria ser pela autenticidade, contra ou a favor, mas
sobre ela, definindo seu significado correto. Deveriamos tentar
elevar a cultura novamente, mais próxima de seu ideal motivador.

Claro, tudo isso assume três coisas: as três premissas que


estabelecí ao fim do capítulo II: (1) que a autenticidade é
verdadeiramente um ideal que vale a pena defender; (2) que você
pode estabelecer em razão de que ela trata; e (3) que esse tipo de
argumento pode fazer diferença na prática - isto é, você não pode
acreditar que as pessoas estão tão aprisionadas pelos vários
desenvolvimentos sociais que as condicionam à, digamos,
atomização e à razão instrumental que não poderíam mudar suas
maneiras não importa quão persuasivo você seja.

Espero ter feito algo nos capítulos precedentes para tornar (2)
plausível. Mesmo que eu não tenha produzido qualquer argumento
irrespondível, espero ter mostrado em alguma medida como os
argumentos podem ser desenvolvidos nessa área que poderia
convencer-nos. Quanto ao (3), enquanto todos têm que reconhecer
quão poderosamente somos condicionados pela nossa civilização
industrial tecnológica, aquelas visões que nos retratam como
totalmente presos e incapazes de mudar nosso comportamento
aquém do esmagamento de todo o “sistema” sempre me pareceram
descontroladamente exageradas. Mas quero falar mais a respeito
disso no próximo capítulo. Por enquanto, deixe-me apenas dizer
umas poucas palavras sobre (1), o valor desse ideal.

Também não tenho nada de muito novo a dizer sobre isso a esta
altura. Porque me parece que esse ideal, como o entendemos fora
de suas ricas fontes, fala por si. Apenas declararei sem rodeios o
que acredito que emerge de uma consideração completa dessas
fontes (mais detalhada do que pude oferecer aqui).45

Acredito que, ao articular tal ideal ao longo dos últimos dois


séculos, a cultura ocidental identificou uma das potencialidades
mais importantes da vida humana. Assim como outras facetas do
individualismo moderno - por exemplo, aquela que nos chama para
trabalhar nossas próprias opiniões e crenças por nós mesmos -, a
autenticidade aponta-nos em direção a uma forma de vida mais
autorresponsável. Permite-nos viver (potencialmente) uma vida
mais plena e diferenciada, porque mais plenamente apropriada
como nossa. Há perigos -temos explorado alguns deles. Quando
sucumbimos a eles, pode ser que caíamos em algum aspecto
abaixo do que estaríamos se esta cultura nunca tivesse se
desenvolvido. Mas, em seu melhor, a autenticidade permite um
modo de existência mais rico.

Contudo, além disso, eu gostaria de dizer algo ad hominem. Penso


que todas as pessoas em nossa cultura sentem a força desse ideal,
mesmo aquelas que tenho identificado como “críticas”: pessoas
que acham que toda a linguagem de autorrealização e do encontrar
o próprio caminho é suspeita, nonsense ou um veículo de autoindul-
gência. Pessoas que acham que é nonsense geralmente possuem
uma atitude científica, linha-dura em relação ao mundo. Pensam
que os seres humanos deveríam ser entendidos tanto quanto
possível na linguagem da ciência e escolhem as ciências naturais
como seu exemplo. Então, falar de autorrealização ou autenticidade
pode parecer vago e pouco nítido para elas. Outros críticos, como
Allan Bloom, são humanistas. Eles não partilham dessa visão
científica redutora, mas parecem entender essa linguagem como
uma expressão de frouxidão moral, ou, pelo menos, como refletindo
simplesmente uma perda dos ideais dominantes anteriormente
mais rigorosos em nossa cultura.

E, ainda assim, é difícil encontrar alguém que consideraríamos estar


na corrente principal de nossas sociedades ocidentais que,
confrontadas com as próprias escolhas de vida a respeito de
carreira ou relacionamentos, não conferem peso algum ao que
identificaríamos como realização ou autodesenvolvimento, ou
percebendo seus potenciais, ou para o que achariam algum outro
termo a partir do espectro que serviu para articular esse ideal. Eles
podem passar por cima dessas considerações em nome de outros
bens, mas sentem sua força. Existem, é claro, imigrantes de outras
culturas, e pessoas que ainda vivem em encraves muito
tradicionais, mas podemos praticamente identificar a principal
corrente cultural da sociedade liberal ocidental em relação àqueles
que sentem o apelo desta e de outras formas principais de
individualismo. Isso é, de fato e com muita frequência, a fonte de
batalhas dolorosas e difíceis entre gerações em famílias imigrantes,
apenas porque tais individualismos definem a principal corrente na
qual as crianças estão sendo aculturadas de maneira inevitável.

Não se trata, admitidamente, de um argumento para o valor do


ideal, mas deve induzir alguma humildade em seus opositores. Faria
sentido tentar desenraizá-io? Ou a política recomendada aqui faz
mais sentido em nossa situação, isto é, adotando tal ideal em seu
melhor e tentando elevar sua prática a esse nível?

Portanto, minha interpretação fundamenta uma prática bastante


diferente. Envia-nos a uma direção diferente das outras duas. Mas
também oferece uma perspectiva bem diferente das coisas. Na
verdade, parece que formas mais autocentradas de realização têm
ganhado terreno nas décadas recentes. Foi isso que causou o
alarme. As pessoas parecem, sim, estar vendo seus
relacionamentos como mais revogáveis. O crescimento das taxas
de divórcio dá apenas uma indicação parcial do aumento nos
rompimentos, pois existe um grande número de casais não casados
em nossa sociedade. Mais pessoas parecem menos enraizadas em
suas comunidades de origem, e parece haver uma queda na
participação do cidadão.

Agora, se você pensa que isso representa um novo arranjo que a


geração atual tem apoiado sem problema - ou até, se você acha que
eles apoiaram um abandono dos vínculos tradicionais em favor de
um egoísmo absoluto -, então, você desesperará pelo futuro. Não
parece haver muita razão pela qual a tendência deveria ser
revertida. Seu desespero será intensificado na medida em que
atribuir a mudança aos fatores sociais que mencionei
anteriormente: como mobilidade aumentada, e nosso crescente
envolvimento em trabalhos ou situações sociais que envolvem
nosso agir instrumentalmente, mesmo de maneira manipulada, em
relação às pessoas a nossa volta. Pois essas tendências parecem
destinadas a continuar, em alguns casos até mesmo se intensificar.
E assim o futuro parece prometer apenas níveis de narcisismo
sempre crescentes.
A perspectiva é diferente se você vê esses desenvolvimentos à luz
da ética da autenticidade, pois aí não apenas representam uma
troca de valores que não é problemática para as pessoas
concernentes. Antes, você vê as práticas novas e autocentradas
como o lugar de uma tensão erradicável. A tensão provém do
sentido de um ideal que não está sendo plenamente conhecido de
verdade. E essa tensão pode virar uma batalha, em que pessoas
tentam articular a escassez da prática, e criticá-la.

Sob essa perspectiva, a sociedade não está simplesmente se


movendo em uma direção. O fato de que há uma tensão e uma luta
significa que ela não pode ir longe. De um lado estão todos os
fatores, internos e sociais, que rebaixam a cultura da autenticidade
às suas formas mais autocentradas; do outro, estão a confiança e
as exigências inerentes desse ideal. Uma batalha está articulada, a
qual pode avançar e retroceder.

Isso pode aparecer como uma boa ou má notícia. Será má notícia


para qualquer um que esperava por uma solução definitiva. Nunca
podemos voltar à época antes que esses modos autocentrados
pudessem tentar e solicitar pessoas. Como todas as formas de
individualismo e liberdade, a autenticidade inaugura uma era de
responsabilização, se podemos usar esse termo. Pelo próprio fato
de essa cultura se desenvolver, as pessoas se tornam mais
autorresponsáveis. Está na natureza desse tipo de aumento de
liberdade que as pessoas podem afundar ainda mais, assim como
se elevar cada vez mais. Nunca nada garantirá um movimento
sistemático e irreversível até as alturas.

Esse era o sonho de diversos movimentos revolucionários, do


marxismo, por exemplo. Uma vez que se abolisse o capitalismo,
somente os grandes e admiráveis frutos do capitalismo
floresceríam; os abusos e as formas desviantes seriam minguados.
Mas isso não é como deveria ser em uma sociedade livre, que de
acordo e ao mesmo tempo nos dará as formas mais elevadas de
iniciativa moral autorres-ponsável e dedicação, e, digamos, as
piores formas de pornografia. A alegação de outrora das
sociedades marxistas de que a pornografia foi simplesmente um
reflexo do capitalismo agora foi mostrada pela ostentação oca que
era.

E, assim, isso pode surgir como boa notícia também. Se o melhor


nunca pode ser definitivamente garantido, então nem o declínio
nem a trivialidade são inevitáveis. A natureza de uma sociedade
livre é de que sempre será o lócus de uma batalha entre formas
mais elevadas e mais baixas de liberdade. Nenhum lado pode abolir
o outro, mas o limite pode ser deslocado, nunca de maneira
definitiva, mas, pelo menos, para algumas pessoas por algum
tempo, de um jeito ou de outro. Através de ações sociais, mudança
política e do ganho de corações e mentes, as formas melhores
podem ganhar terreno, ao menos por um tempo. De certo modo,
uma sociedade genuinamente livre toma como sua auto-descrição
o slogan colocado adiante em um sentido bem diferente por
movimentos revolucionários como as Brigadas Vermelhas italianas:
“la lotta continua”, a luta continua - na realidade, para sempre.

Portanto, a perspectiva que estou propondo rompe em definitivo


com o pessimismo cultural que cresceu nas décadas recentes e que
livros, como os de Bloom e de Bell, alimentaram. A analogia para
nossa época não é a do declínio do Império Romano, visto que
decadência e deslize para o hedonismo tornam-nos incapazes de
manter nossa civilização política. Isso não significa afirmar que
algumas sociedades não possam cair sem pestanejar na alienação
e na rigidez burocrática. E algumas podem de fato perder seu status
de quase imperiais. O fato de que os EUA correm o perigo de sofrer
ambas essas mudanças negativas talvez tenha aumentado, de
maneira compreensível, a sustentação do pessimismo cultural lá.46
No entanto, os EUA não são o mundo ocidental, e talvez não
devessem nem mesmo ser tomados como uma entidade única, pois
é uma sociedade imensamente variada, feita para meios e grupos
muito diferentes. Evidentemente, haverá perdas e ganhos, mas
acima de tudo “la lotta continua”.
Quase desnecessário dizer, tampouco estou propondo a visão es-
pelho-imagem, um otimismo cultural do tipo popular nos anos 1
960, tal como em The Greening of America, de Charles Reich, que
viu a ascensão de uma cultura espontânea, sutil, amorosa e
ecologicamente responsável. Esse sonho surge naturalmente da
perspectiva distorcida dos incentivadores enquanto o pessimista o
faz baseado na dos críticos. Quero ficar longe de ambas essas
visões, não tanto em um terreno comum nem em um terreno
completamente diferente. Sugiro que nesse assunto não olhemos
para a Tendência, qualquer que ela seja, para cima ou para baixo,
mas que rompamos com nossa tentação de distinguir tendências
irreversíveis, e vejamos que há uma luta aqui, cujo resultado
continuamente está para ser obtido.

Contudo, se estou certo e a luta é como a descrevo, então o


pessimismo cultural dos críticos não é apenas equivocado, ele é
também contraproducente. Porque a condenação radical da cultura
da autenticidade como ilusão ou narcisismo não é uma maneira de
nos aproximar das alturas. Nessas circunstâncias, uma aliança de
pessoas com uma perspectiva científica descompromissada e
aquelas com visões éticas mais tradicionais, assim também alguns
proponentes de uma alta cultura indignados, unem-se para
condenar tal cultura. Mas isso pode não ajudar. Um caminho que
talvez ajude a mudar as pessoas engajadas nessa cultura (e, em
algum nível, isso inclui a todos, mesmo os críticos, quero afirmar)
seria simpatizar com seu ideal ativo e tentar mostrar o que ele
realmente requer. Contudo, quando o ideal é por implicação
condenado e ridicularizado juntamente com a prática existente, as
atitudes endurecem. Os críticos são reduzidos à qualidade de puros
reacionários e uma reavaliação ocorre.

Na polarização resultante entre incentivadores e críticos, o que


precisamente se perde é um rico entendimento desse ideal. Ambos,
em um sentido, conspiram para identificá-lo com suas expressões
mais baixas e autocentradas. E contra essa conspiração que o
trabalho de recuperação deve ser feito, o que eu, em certo sentido,
tenho esboçado nos capítulos precedentes. 

Alexis de Tocqueville, De la Démocratie en Amérique, v. 2. Paris,


Carnier-Flammarion, 1981, p. 385.
2

“Erbãrrnliches Behagen”. In: Also Sprach Zarathustra. Prefácio de


Zaratus-tra, parte 3.
3

Tocqueville, op. cit., p. 127.


4

Para os absurdos desses cálculos, ver R. Bellah et. al., The Good
Society. Nova York, Knopf, 1991, p. 114-19.
5

Ibidem, capítulo 4.
6

Ver especialmente Patrícia Benner e Judith Wrubel, The Primacy of


Car-ing: Stress and Coping in Health and Illness. Menlo Park, CA,
Addison-Wesley, 1989.
7

Albert Borgman, Technology and the Character of Contemporary


Life. Chicago, University of Chicago Press, 1984, p. 41-42. Borgman
parece mesmo ecoar a figura do “último homem” de Nietzsche
quando afirma que a promessa libertadora original da tecnologia
pode degenerar na “busca de conforto frívolo” (p. 39).
8

Hannah Arendt, The Human Condition. Garden City, NJ, Doubleday,


Anchor Edition, 1959, p. 83.
9

Tocqueville, op. cit., p. 385.


10

Veja, por exemplo, R. Bellah et al., Habits of the Heart. Berkeley,


University of Califórnia Press, 1985.
11

No original: boosters e knockers. (N. T.)


12

Optamos por deixar o termo self no original sem traduzi-lo,


seguindo as traduções anteriores de Charles Taylor. (N. T.)
13

Essa imagem ocorre em Bloom, The Closing of the American Mind,


Nova York, Simon and Schuster, 1987: “A perda dos livros os fez
mais nivelados e estreitos. Mais estreitos, pois não possuem o que
é mais necessário, uma base real para insatisfação com o presente
e consciência de que há alternativas a isto. Eles estão tanto
satisfeitos com o que é e desesperançosos por jamais escapar
disto (...) Nivelados, porque sem as interpretações das coisas, sem
a poesia ou a atividade da imaginação, suas almas são como
espelhos, não da natureza, mas do que está ao redor” (p. 61).
14

Este livro também será publicado pela Editora É. (N. E.)


15

Bloom, op. cit., p. 84.


16

Ver John Rawls, A Theory of justice, Cambridge, Harvard University


Press, 1971, e “The Idea of an Overlapping Consensus”, in:
Philosophy and Public Affairs, 17, 1988; Ronald Dworkin, Taking
Rights Seriously, Londres, Duckworth, 1977, e A Matter of Principie,
Cambridge, Harvard University Press, 1985; também Will Kymlicka,
Liberalism, Community and Culture, Oxford, The Clarendon Press,
1989.
17

Escrevi sobre isso extensamente em Sources ofthe Self, Cambridge,


Harvard University Press, 1989, capítulo 3.
18

Ver em especial Alasdair Maclntyre, After Virtue, Notre Dame,


University of Notre Dame Press, 1981, e Whose Justice? Which
Rationality?, Notre Dame, University of Notre Dame Press, 1988.
19

Claro, para certo marxismo vulgar, a resposta negativa é bastante


explícita. As idéias são o produto de mudanças econômicas. Mas
diversas ciências sociais não marxistas operam implicitamente
sobre premissas similares. E isto apesar da orientação de alguns
dos grandes fundadores da ciência social, como Weber, o qual
reconhecia o papel crucial das idéias morais e religiosas na história.
20

de individualismo, que possuem causas e consequências


fundamentalmente diferentes. Razão pela qual Tocqueville
cuidadosamente distingue “individualismo” de “egoísmo”.
21

Ver David Harvey, The Condition of Post-modernity. Oxford,


Blackwell, 1989.
22

Bloom, op. cit., p. 25.


23

O desenvolvimento dessa doutrina, inicialmente na obra de Francis


Hutche-son, baseando-se nos escritos dp conde de Shaftesbury, e
sua relação adversa à teoria de Locke, eu discuti em larga medida
em Sources ofthe Self capítulo 15.
24

“O sentimento da existência desprovido de qualquer outro afeto é


por si só um sentimento precioso de contentamento e de paz que
bastaria para tornar esta existência querida e doce para quem
soubesse afastar de si todas as impressões sensuais e terrestres
que vêm sempre nos distrair e perturbar a sua doçura. Mas a
maioria dos homens agitados por paixões contínuas conhece pouco
esse estado, e como só o experimentou imperfeitamente durante
alguns instantes, só guarda uma ideia obscura e confusa que não
lhes faz sentir o seu encanto.” Les Rêveries du Promeneur Solitaire,
Vcmc Promenade. In: Oeuvres Complètes, v. 1, Paris, Gallimard,
1959, p. 1047.

' “Jeder Mensch haat ein eigenes Mass, gleichsam eine eigne
Stimmung al-ler seiner sinnlichen Gefühlc zu einander.” Herder,
Ideen, vii.I. In: Herders Sàmtliche Werke, v. XIII. Ed. Bemard Suphan.
Berlim, Weidmann, 1877-1913, p. 291. 15 v.
25

Desenvolví essa visão de debate moral amplamente em


“Explanation and Practical Reason”. Wider 'Working Paper WP72,
Helsinque, World Institute for Development Economics Research,
1989.
26

George Herbert Mead, Mind, Self and Society. Chicago, Chicago


University Press, 1934.
27

Essa dialogicidade interior foi explorada por M. M. Bakhtin e por


aqueles que se basearam em sua obra. Ver de Bakhtin,
especialmente, Problems of Dotoyevskys Poetics, Mineápolis,
University of Minnesota Press, 1984; e também Michael Holquist e
Katerina Clark, Michail Bakhtin, Cambridge, Harvard University
Press, 1984, e James Wertsch, Voices of the Mind, Cambridge,
Harvard University Press, 1991.
4 Ver Bakhtin, “The Problem of the Tcxt in Linguistics, Philology
and the Human Sciences”, in: Speeeh Genres and Other Late
Essays, ed. Caryl Emerson e Michael Holquist, Austin,
University of Texas Press, 1986, p. 126, para este conceito de
“superendereçado”, além de nossos interlocutores existentes.
28

__ ___
29

Esse argumento é vigorosamente apresentado em R. Bellah et al.,


Habits of the Heart.
30

Gail Sheehy, Passages: Predictable Crises of Adult Life. Nova York,


Bantam Books, 1976, p. 364, 513 (itálico no original).
31

' R. Bellah et al. Observe a ligação entre esse tipo de individualismo


e a justiça processual cm Habits, p. 25-26
32

Discuti toda essa virada da cultura moderna extensamente em


Sources ofthe Self, em especial no capítulo 13.
33

' Montesquieu, “La Nature de 1’Honneur Est de Demander des


Préférences et des Distinctions”. In: De PEsprit des Lois, iivro III,
capítulo vii.
34

Medalha de honra ao mérito mais elevada do Canadá. (N. T.)


35
' O significado desse movimento da “honra” para “dignidade” é
discutido de maneira muito interessante por Peter Berger em seu
“On the Obsolescence of the Concept of Honour”. In: Stanley
Hauerwas e Alasdair Maclntyre (eds.), Revisions: Changing
Perspectives in Moral Philosophy. Notre Dame, University of Notre
Dame Press, 1983, p. 172-81.
36

s Na língua inglesa há três opções de pronomes de tratamento para


se referir às mulheres: Mrs. refere-se ao título dado a uma mulher
casada e geralmente é traduzido para o português como “senhora”;
Miss refere-se à mulher não casada, traduzido por “senhorita”; e,
por fim, Ms., pronome utilizado para referir-se a uma mulher
independentemente de seu estado civil, ou seja, configura uma
opção neutra de tratamento. Em português não temos tal opção
neutra quando se trata do estado civil; temos apenas “senhora” e
“senhorita”. (N. T.)
37

Rousseau descreve as primeiras assembléias: “Cada um começa a


ver os outros e a querer ser visto e a estima pública teve um preço.
Aquele que cantava ou dançava melhor; o mais bonito, o mais forte,
o mais hábil ou o mais eloquente se tornou o mais considerado, e
esse foi o primeiro passo para a desigualdade, e ao mesmo tempo
para o vício.” Discours sur 1’Origine et les Fondements de
1’Inégalité parmi les Hommes. Paris, Granier-Flammarion, 1971, p.
210.
38

Ver, por exemplo, a passagem em “Considerations sur le


Gouvernement de Pologne” em que ele descreve o antigo festival
público, no qual todas as pessoas participavam, em Du Contrat
Social, Paris, Garnier, 1962, p. 345; e também a passagem paralela
em “Lettre à D’Alembert sur les Spectacles”, ibidem, p. 224-25. O
princípio crucial era de que não deveria haver divisão entre artistas
e espectadores, mas que tudo deveria ser visto por todos. “Mas,
enfim, quais serão os objetos desses espetáculos? O que se
mostrará neles? Nada, se quiserem. (...) coloquem os espectadores
como espetáculos; façam com que eles próprios sejam os atores;
deixem que cada um se veja e se goste nos outros, que todos
fiquem mais unidos.”
39

Ver The Phenomenology of Spirit, capítulo 4.


40

A ligação entre o anti-humanismo de Derrida e um sentido radical e


irrestrito de liberdade emerge em passagens como esta aludida
aqui, na qual ele descreve sua maneira de pensar como alguém que
“afirma o jogo livre e tenta ultrapassar o homem e o humanismo, o
nome homem sendo o nome desse ser, o qual, através da história
da metafísica ou da ontote-ologia - em outras palavras, através da
história de tudo de sua história -, sonhou com a total presença, a
fundação reassegurada, a origem e o fim do jogo”. Derrida,
“Structure, Sign, and Play in the Discourse of the Human Sciences”.
In: Richard Macksey e Eugênio Donato (eds.), The Structuralist
Controversy. Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1972, p.
264-65.
41

Michel Foucault, entrevista. In: H. Dreyfus e P. Rabinow, Michel


Foucault: Beyond Structuralism and Hermeneutics. Chicago,
University of Chicago Press, 1983, p. 245, 251.
42
Discuti o expressivismo .longamente em Hegel, Cambridge,
Cambridge University Press, 1975, capítulo 1, e em Sources of the
Self, capítulo 21.
43

' Discuti a relação entre essas duas idéias extensamente em Hegel,


Cambridge, Cambridge University Press, 1975.
44

Ver o interessante artigo de Vincent Descombes sobre Foucault: A


Criticai Reader, David Hoy (ed.), Oxford, Blackwell, 1986, in: The
London Revieiu of Books, 5 mar. 1987, p. 3, onde ele discute as
diferentes percepções de Foucault nos Estados Unidos e na França;
e também Jürgen Habermas, The Phi-losophical Discourse of
Modernity, trad. Frederick G. Lawrence, Cambridge, Mass., MIT
Press, 1987.
45

Tentei desenvolver uma consideração mais completa disso, bem


como outras vertentes da identidade moderna, em Sources of the
Self.
46

A tremenda popularidade destes dois livros, em ambos os casos


para a surpresa de seus autores, atestam isso. Um é The Closing of
the American Mind, de Bloom, o qual tenho discutido. O outro é The
Rise and Fali of the Great Powers, Nova York, Random House, 1987,
de Paul Kennedy, que é precisamente acerca da perda do status
quase imperial. Eu também deveria mencionar um filme canadense,
Le Déclin de 1’Empire Américain, que jogou com esse pessimismo
cultural e que, de forma não característica para filmes do Québec,
foi um grande sucesso ao sul da fronteira.
Capítulo 8 | Linguagens Sutis
Junto com o ideal, uma distinção muito importante fica ainda mais
camuflada nesse debate polarizado, e que é fundamental para
entender a cultura moderna. Em certo sentido, tal cultura viu um
movimento de muitas faces que se poderia chamar “subjetivação”:
isto é, o centro das coisas cada vez mais no sujeito, e de várias
maneiras. Coisas que foram um dia estabelecidas por alguma
realidade externa - a lei tradicional, digamos, ou a natureza - agora
são referidas como nossa escolha. Questões em que devíamos
aceitar os ditados da autoridade, agora precisamos pensar por nós
mesmos. A liberdade moderna e a autonomia nos centram em nós
mesmos, e o ideal de autenticidade requer que descubramos e
articulemos nossa própria identidade.

Mas existem duas facetas importantes e diferentes para esse


movimento, uma no que diz respeito ao modo e outra no que diz
respeito à matéria ou ao conteúdo da ação. Podemos ilustrar isso
com o ideal de autenticidade. Em um nível, claramente concerne à
maneira de defender qualquer fim ou forma de vida. A autenticidade
é autorre-ferente de maneira evidente: isto tem que ser minha
orientação. Mas não significa que em outro nível o conteúdo deva
ser autorreferente: que meus objetivos devam expressar ou realizar
meus desejos ou ambições, contra algo que está além destes.
Posso encontrar realização em Deus, ou em uma causa política, ou
cultivando a terra. De fato,

esse argumento sugere que encontraremos realização genuína


apenas em alguma coisa assim, que tem significado
independentemente de nós ou de nossos desejos.

Confundir esses dois tipos de autorreferencialidade é catastrófico.


Interrompe o caminho à frente, o qual não pode envolver retornar
para antes da era da autenticidade. A autorreferencialidade de
modo é inevitável em nossa cultura. Confundir as duas é criar a
ilusão de que a autorreferencialidade de conteúdo é igualmente
inescapável. A confusão confere legitimidade às piores formas de
subjetivismo.

O desenvolvimento da arte moderna nos dá um bom exemplo de


como esses dois tipos de subjetivação são crucialmente diferentes
e, ainda, quão facilmente eles são confundidos. Já que a arte
também é um terreno crucial para o ideal da autenticidade, como
vimos, é especialmente válido explorar isso aqui.

A mudança de que quero falar aqui remonta ao final do século XVIII


e está relacionada com a substituição da compreensão da arte
como mimêsis para uma compreensão que enfatiza a criação, que
discuti no capítulo VI. Diz respeito ao que poderiamos chamar de
linguagens da arte, isto é, os pontos de referência publicamente
disponíveis que, digamos, poetas e pintores podem representar.
Como Shake-speare podia basear-se nas correspondências, por
exemplo, quando, para nos fazer sentir o horror pleno do ato de
regicídio, ele colocava um servo relatando os eventos “não naturais”
que haviam sido evocados em simpatia com este feito terrível: a
noite em que Duncan é assassinado é uma noite de tormenta, com
“lamentings heard i’ the air; strange screams of death"' e permanece
escuro apesar de o dia ter começado. Na terça-feira anterior um
falcão foi morto por uma coruja caçadora, e os cavalos de Duncan
tornaram-se selvagens na noite, “Contending ‘gainst obedience, as
they would / Make war with  mankind”. De maneira semelhante,
pintar poderia basear-se amplamente nos assuntos publicamente
entendidos da história secular e divina, dos eventos e personagens
que tinham elevado significado, por assim dizer, incorporado a eles,
como a Virgem e o Menino ou O Juramento dos Horácios.

No entanto, por dois séculos estamos vivendo em um mundo no


qual esses pontos de referência não mais se mantêm para nós.
Ninguém mais acredita na doutrina das correspondências, como era
aceita na Renascença, e nem a história divina nem a secular
possuem um significado geralmente aceito. Não é que não se possa
escrever um poema sobre essas correspondências. Baudelaire o
fez. Trata-se antes de não poder basear-se na simples aceitação
das doutrinas anteriormente públicas. O poeta em si mesmo não se
submeteu a elas em sua forma canônica. Ele está chegando a algo
diferente, tentando triangular alguma visão pessoal através dessa
referência histórica, a “floresta de símbolos” que ele vê no mundo
ao seu redor. Contudo, para apreender essa floresta, precisamos
entender não tanto a doutrina pública de outrora (sobre a qual
ninguém se lembra de detalhe algum), mas, como poderiamos
colocar, a maneira em que ela ressoa na sensibilidade do poeta.

Para mostrar outro exemplo, Rilke fala de anjos. No entanto, seus


anjos não devem ser entendidos de acordo com seu lugar na ordem
tradicionalmente definida. Antes, temos de triangular o significado
desse termo por meio de todo espectro de imagens com as quais
Rilke articula seu sentido das coisas. “Who if I cried out would hear
me among the orders ofangels?”,2 inicia as Elegias de Duino. O ser
além desses berros parcialmente define esses anjos. Não
chegamos a eles através de um tratado medieval sobre a
classificação de querubim e serafim, mas temos que passar por
essa articulação da sensibilidade de Rilke. 

Poderiamos descrever a mudança desta maneira: onde a linguagem


poética antes podia contar com certas ordens de significado
publicamente disponíveis, agora tem que consistir em uma
linguagem de sensibilidade articulada. Earl Wasserman mostrou
como o declínio da antiga ordem com seu fundo de significados
estabelecidos fez necessário o desenvolvimento de novas
linguagens poéticas no período romântico. Pope, por exemplo, em
seu Windsor Forest, podia basear-se em ultrapassadas visões da
ordem da natureza como uma fonte comumente disponível de
imagens poéticas. Para Shelley, esse recurso não está mais
disponível; o poeta tem que articular o próprio mundo de
referências, e torná-las críveis. Como Wasserman explica,
Até o final do século XVIII havia suficiente homogeneidade
intelectual para os homens compartilharem certas suposições (...)
Em diversos graus (...) o homem aceitava (...) a interpretação cristã
da história, a sacralidade da natureza, a grande cadeia do ser, a
analogia dos vários planos da criação, a concepção de homem
como microcosmo (...) Estas eram sintaxes cósmicas no domínio
público; e o poeta podia pensar em sua arte como imitação da
“natureza” já que esses padrões eram o que ele queria dizer com
“natureza”.

No século XIX essas fotos do mundo passaram da consciência (...)


A mudança de uma concepção mimética da poesia para uma
criativa não é meramente um fenômeno filosófico crítico (...) Agora
(...) um ato for-mulativo adicional era requerido do poeta (...) Em si
mesmo o poema moderno deve tanto formular a própria sintaxe
cósmica quanto moldar uma realidade poética autônoma que a
sintaxe cósmica permita; “natureza”, que um dia foi anterior ao
poema e disponível para imitação, agora compartilha com o poema
uma origem comum na criatividade do poeta?

Os poetas românticos e seus sucessores têm que articular uma


visão original do cosmo. Quando Wordsworth e Hõlderlin
descrevem o mundo natural ao nosso redor, em The Prelude, The
Rhine ou em

Earl Wasserman, The Subtler Language. Baltimore, Johns Hopkins


Univer-sity Press, 1968, p. 10-11.

Homecoming, eles não mais jogam com um gama de referências


estabelecidas, como Pope ainda pôde fazê-lo em Windsor Forest.
Eles nos tornam conscientes de alguma coisa na natureza para a
qual ainda não há palavras apropriadas.1 2  Os poemas estão
encontrando as palavras para nós. Nessa “linguagem mais sútil” - a
expressão é emprestada de Shelley algo é definido e criado, além de
ser manifestado. Uma linha divisória foi traçada na história da
literatura.
Algo semelhante acontece na pintura no início do século XIX.
Caspar David Friedrich, por exemplo, distancia-se da iconografia
tradicional. Está à procura de um simbolismo na natureza que não é
baseado nas convenções aceitas. A ambição é deixar “as formas da
natureza falarem diretamente, seu poder liberado por sua
ordenação dentro da obra de arte”.'’ Friedrich também está
buscando uma linguagem sutil; está tentando dizer algo para o qual
não existem termos adequados e cujo significado tem de ser
procurado em suas obras em vez de em um léxico preexistente de
referências.3 Ele constrói o senso de afinidade entre nossos
sentimentos e cenários naturais do final do século XVIII, mas em
uma tentativa de articular mais que uma reação subjetiva. “O
sentimento nunca pode ser contrário à natureza, é sempre
consistente com a natureza.”4

Isso representa uma mudança qualitativa nas linguagens artísticas.


Isto é, não é apenas uma questão de fragmentação. Não
poderiamos descrevê-la apenas dizendo que poetas anteriores
tinham uma linguagem comumente reconhecida e agora cada um
tem a sua própria. Isso faz soar como difícil, se pudéssemos
apenas concordar, poderiamos dar, digamos, à visão de ordem de
Rilke o mesmo status de uma linguagem pública que a velha Cadeia
do Ser aproveita.

Mas a mudança tem maior alcance que isso. O que nunca poderia
ser recuperado é o entendimento público de que anjos são parte de
uma ordem ontológica independente de humanos, tendo suas
naturezas angelicais quase independentemente da articulação
humana, e, portanto, acessível por meio de linguagens descritivas
(teologia, filosofia) que não são de forma alguma aquelas de
sensibilidade articulada. A “ordem” de Rilke, pelo contrário, pode vir
a ser nossa apenas através da ratificação na sensibilidade de cada
novo leitor. Nessas circunstâncias, a própria ideia de que tal ordem
deveria ser abraçada para a exclusão de todas as outras - uma
exigência que é virtualmente inescapável no contexto tradicional -
perde qualquer força. É muito claro agora como outra sensibilidade,
outro contexto de imagens, pode nos dar uma tomada bem
diferente, mesmo no que podemos não obstante ver como uma
visão similar da realidade.

Assim, “anjos” contemporâneos devem se relacionar com o


humano, pode-se dizer a respeito da linguagem, de uma maneira
que seus antepassados não faziam. Eles não podem estar
apartados de certa linguagem da articulação, que é, como se fosse,
seu elemento interno. E essa linguagem, por sua vez, é fincada na
sensibilidade pessoal do poeta, e entendida apenas por aqueles
cuja sensibilidade ressoa como a do poeta.

Talvez o contraste possa ser visto mais fortemente se pensarmos


em como também podemos recorrer às intuições individuais para
traçar um domínio público de referências. A linguística pode fazer
uso de nossas intuições linguísticas de gramaticalidade. Tornar isso
disponível em geral exige uma virada reflexiva. Pergunto-me: você
pode dizer “Ela não tem um centavo”? e respondo negativamente.
Mas não há um apelo para falar aqui de “visão pessoal”. O que
estou mapeando aqui é precisamente um pedaço da experiência
disponível de modo público, o que todos nós apoiamos e com o que
contamos enquanto nos comunicamos. O que Eliot, Pound ou
Proust, ao contrário, me convidam a possuir é uma dimensão
pessoal erradicável.

Em relação à discussão anterior, isso significa que uma importante


subjetivação aconteceu na arte pós-romântica. Contudo, é
claramente uma subjetivação da maneira. Diz respeito a como o
poeta tem acesso ao que quer que ele nos sugere. De forma alguma
resulta em ser uma subjetivação do conteúdo, isto é, que a poesia
pós-romântica deve ser, em algum sentido, exclusivamente uma
expressão do self. Essa é uma visão comum, que parece ter
recebido algum crédito por frases famosas como a da descrição da
poesia de Wordsworth como “o transbordar espontâneo de um
sentimento poderoso”. Entretanto, o próprio Wordsworth estava
tentando fazer mais do que articular seus sentimentos quando
escreveu em “Tintern Abbey” sobre

A presence that disturbs me with the joy

Of elevated thoughts; a sense sublime

Of something far more deeply interfused,

Whose divelling is the light of setting suns,

And the round ocean and the living air,

And the blue sky, and in the mind of man:

A motion and a spirit, that impeis

AH thinking things, all objects of all thought,

And rolls through all things. (linhas 94-102)5

E o esforço de alguns dos melhores poetas modernos tem sido


precisamente articular algo além do self. Precisamos pensar
apenas em Rilke em seu “Neue Gedichte” e em um poema como
“The Pan-ther”, onde ele tenta articular as coisas com base no
interior delas, por assim dizer.

A confusão de conteúdo e modo é fácil de realizar, apenas porque a


poesia moderna não pode ser a exploração de uma ordem “objetiva”
no sentido clássico de um domínio de referências publicamente
acessíveis. E as confusões não se encontram somente com os
comentaristas. E fácil o bastante concluir que o declínio da ordem
clássica deixa apenas o self para celebrar, e seus poderes. O deslize
para o subjetivismo, e sua mistura de autenticidade com liberdade
autode-terminante, é muito prontamente aberto. Uma grande parte
da arte moderna depende apenas da celebração dos poderes e
sentimentos humanos. De novo, os futuristas vêm à mente como
exemplos.

Mas alguns dos melhores escritores do século XX não são subje-


tivistas nesse sentido. Sua agenda não é o self, mas algo além.
Rilke, Eliot, Pound, Joyce, Mann e outros estão dentre eles. O
exemplo deles mostra que o inescapável trajeto da linguagem
poética na sensibilidade pessoal não precisa significar que o poeta
não mais explora uma ordem além do self. Em seu Elegias de Duino,
por exemplo, Rilke tenta nos contar algo sobre nossos atributos,
sobre a relação dos vivos com os mortos, sobre a fragilidade
humana e sobre o poder da transfiguração presente na linguagem.

Então, os dois tipos de subjetivação devem ser distinguidos se


quisermos entender a arte moderna. E essa distinção possui grande
relevância para a luta cultural em curso a que me referi
anteriormente. Alguns dos problemas importantes de nossa época,
a respeito do amor e do nosso lugar na ordem natural, precisam ser
explorados em tais linguagens de ressonância pessoal. Para citar
um exemplo saliente, apenas porque não mais acreditamos nas
doutrinas da Grande Cadeia do Ser, não precisamos nos ver como
colocados em um universo que podemos considerar simplesmente
a fonte de materiais brutos para nossos projetos. Podemos ainda
precisar nos ver como parte de uma ordem maior que pode fazer
reivindicações de nós.

De fato, esta última pode ser pensada como urgente. Ajudaria


grandemente a evitar desastres ecológicos se pudéssemos
recuperar um sentido da exigência que nossos arredores naturais e
mais selvagens nos fazem. O viés subjetivista, que tanto a razão
instrumental como as ideologias de realização autocentrada
consideram dominante em nossa época, torna quase impossível
expor o caso aqui. Albert Borgman aponta quanto do argumento
para contenção ecológica e responsabilidade é escondido em
linguagem antropocêntrica.6 A contenção é mostrada como
necessária para o bem-estar humano. Isso é bastante verdadeiro e
importante, mas não é toda a história. Nem captura a extensão
completa de nossas intuições aqui, que frequentemente nos
apontam um sentimento que a natureza e nosso mundo reivindicam
de nós.

No entanto, não podemos explorar efetivamente essas intuições


sem a ajuda que nossas linguagens de ressonância pessoal podem
nos dar. E por isso que o fracasso em reconhecer que elas podem
ser usadas de maneira não subjetiva - a confusão entre os dois
tipos de subjeti-vação - pode ter importantes consequências
morais. Proponentes da razão desengajada ou da realização
subjetiva podem abraçar essas consequências de boa vontade.
Para eles, não há nada ali além do self a ser explorado. Críticos
radicais da modernidade buscam a antiga ordem pública, e
assimilam visões pessoalmente ressonantes ao mero subje-
tivismo. Alguns moralistas severos, também, querem conter essa
área lúgubre do pessoal, e tendem, da mesma forma, a bloquear
junto todas as suas manifestações, sejam elas subjetivistas ou
exploratórias. Reconhecemos aqui a coalizão familiar que conspira
inconscientemente para sustentar uma visão baixa e trivializada da
ética da autenticidade.

Mas, ao bloquear esse tipo de exploração além do self, eles


também estão nos privando de uma de nossas principais armas na
contínua luta contra as formas niveladas e triviais da cultura
moderna. Estão encerrando o tipo de exploração que poderia fazer
certas exigências além do self mais palpáveis e reais para nós - por
exemplo, aquelas subjacentes a uma política ecológica mais do que
antropo-cêntrica. Podemos ver novamente como a perspectiva do
debate polarizado entre incentivadores e críticos, entre otimismo e
pessimismo cultural, pode ser danificada quando se trata de
comprometer-se com o real, batalha incessante para realizar as
potencialidades mais elevadas de nossa cultura moderna.

Se autenticidade é ser verdadeiro para nós mesmos, é recobrar


nosso “sentimento da existência” , então talvez só possamos
alcançá-lo integralmente se reconhecemos que esse sentimento
liga-nos a um todo maior. Talvez não tenha sido um acidente o fato
de, no período romântico, o sentimento de si e o sentimento de
pertencer à natureza estarem associados.11’ Talvez a perda de um
sentimento de posse através de uma ordem publicamente definida
necessite ser compensada por um de vinculação mais forte e
interno. Talvez seja isso que grande parte da poesia moderna tem
tentado articular; e talvez precisemos de algumas poucas coisas a
mais hoje do que tal articulação. 7 8

Capítulo 9 | Uma Jaula de Ferro?


Tenho discutido extensamente a primeira das três preocupações
acerca da modernidade que delineei no primeiro capítulo. Não tive
muito tempo para me referir às outras duas. Mas minha esperança
era de que a extensa discussão sobre o individualismo da
autorrealização demarcaria as linhas de uma posição geral em
relação à modernidade, que podería talvez ser estendida também às
outras zonas de mal-estar. Neste capítulo, gostaria de indicar
brevemente o que isso envolvería para a dominância ameaçada da
razão instrumental.

No que diz respeito à autenticidade, sugeri que as duas posições


simples e extremas dos incentivadores e críticos, respectivamente,
devem ser evitadas; essa condenação radical da ética da
autorrealização é um engano profundo, bem como um simples
endosso global de todas as suas formas contemporâneas.
Argumentei que existe uma tensão entre os ideais éticos
subjacentes e as maneiras com que estes são refletidos na vida das
pessoas, e isso significa que um pessimismo cultural sistemático é
tão equivocado quanto um otimismo cultural global. Antes,
encaramos uma luta contínua para perceber modos mais elevados e
plenos de autenticidade contra a resistência de formas mais
niveladas e superficiais.
Algo análogo se mantém para a razão instrumental, minha segunda
área principal de preocupação. Aqui, também, há posições
extremas. Existem pessoas que enxergam o advento da civilização

tecnológica como uma espécie de declínio consumado. Perdemos o


contato com a terra e seus ritmos, que nossos antepassados
tinham. Perdemos contato conosco e com nosso próprio ser
natural, e somos conduzidos por um imperativo da dominação que
nos condena à batalha incessante contra a natureza, a de nosso
interior e a que está ao nosso redor. Tal queixa contra o
“desencanto” do mundo foi articulada repetidamente desde o
período romântico, com seu sentido perspicaz de que os seres
humanos foram triplamente divididos pela razão moderna - dentro
de si, entre si e do mundo natural.9 Ela está presente em nossa
cultura hoje de inúmeras formas. Acompanha, por exemplo, uma
admiração pela vida das pessoas pré-industriais, e não raro com
uma posição política de defesa de sociedades aborígenes contra a
invasão da civilização industrial. Também é um grande tema numa
vertente do movimento feminista, associada com a reivindicação de
que a posição dominante para com a natureza é “masculina”, e é
uma característica fundamental da sociedade “patriarcal”.

Pessoas com essa visão sentem-se incitadas a entrar em conflito


com os incentivadores convictos da tecnologia, que acham que há
uma solução para todos os nossos problemas humanos, e são
impacientes com aqueles que ficam no caminho do progresso do
que parece ser insensatez obscurantista.

Um debate analogamente polarizado é fácil de encontrar aqui.


Contudo, há uma diferença importante: os alinhamentos não são os
mesmos. Grosso modo, os críticos da autenticidade costumam ser
de direita, aqueles que o são em relação à tecnologia, de esquerda.
Mais pertinentemente, alguns (mas não todos) daqueles que são
críticos da ética de autorrealização são grandes apoiadores do
desenvolvimento tecnológico, ao passo que muitos daqueles que
“curtem” profundamente a cultura contemporânea da autenticidade
compartilham as visões acerca do patriarcalismo e estilos de vida
aborígenes a que acabei de me referir. Esses alinhamentos
cruzados conduzem mesmo a algumas contradições preocupantes.
Conservadores direitistas no estilo norte-americano falam como
advogados de comunidades tradicionais quando atacam o aborto
em pauta e a pornografia; mas em suas políticas econômicas eles
defendem uma forma descontrolada de capitalismo corporativo, o
qual, mais do que qualquer outra coisa, ajudou a dissolver
comunidades históricas, tem fomentado o atomismo, que
desconhece fronteiras ou lealdades, e está pronto para fechar uma
cidade mineira ou atacar um hábitat florestal na queda do equilíbrio
comercial. Por sua vez, encontramos apoiadores de uma posição
atenta e reverenciai para com a natureza, que iriam para o muro
defender o hábitat florestal, demonstrando-se a favor do aborto em
pauta, sob a alegação de que o corpo de uma mulher pertence
exclusivamente a ela. Alguns adversários do capitalismo selvagem
levam o individualismo possessivo mais longe que seus defensores
mais tranquilos.

Esses dois debates polarizados são bem diferentes, mas não


obstante acho que ambos estão mais ou menos igualmente
errados. Os sacrifícios que a razão instrumental fugitiva nos impõe
são bastante óbvios no endurecimento de uma perspectiva
atomística, em nossa impenetrabilidade na natureza. Aí, os críticos
estão corretos. Ainda assim, não podemos ver o desenvolvimento
da sociedade tecnológica apenas à luz de um imperativo da
dominação. Fontes morais mais ricas o alimentaram. Mas, como no
caso da autenticidade, essas fontes morais tendem a se perder de
vista, precisamente através do en-regelamento dos valores
atomistas e instrumentalistas. Recuperá-los pode nos permitir
restaurar algum equilíbrio, um em que a tecnologia ocuparia outro
lugar em nossas vidas diferente de um imperativo insistente e
irrefletido.

Aqui, mais uma vez, poderia haver uma luta entre modos melhores e
piores de viver a tecnologia, como há entre maneiras mais elevadas
e mais baixas de buscar a autenticidade. Mas a luta é inibida, em
muitos casos fracassa completamente em começar, pois as fontes
morais estão encobertas e longe de vista. E, nessa obstrução, os
críticos têm sua parte, pois a descrição implacável da sociedade
tecnológica em matéria de dominação exclui essas outras fontes
completamente.

Mas os incentivadores também não ajudam, pois tendem a comprar


tão profundamente a posição atomista e instrumentalista que
também falham em reconhecer tais forças. Da mesma forma que
com a autenticidade, ambos os lados no debate polarizado estão
em uma conspiração involuntária para manter algo fundamental da
visão, para imputar a visão mais baixa acerca do que disputam -
neste caso, a razão instrumental. Contra eles, precisamos fazer um
trabalho de recuperação, para obter uma luta frutífera em nossa
cultura e sociedade.

Antes de empreender essa recuperação, há um ponto que não


podemos evitar. Em um grau considerável, o domínio da razão
instrumental não é só uma questão da força de determinada
perspectiva moral. Também é o caso de que em muitos aspectos
nos encontramos impelidos a dar-lhe um grande espaço em nossa
vida, como mencionei no início deste livro. Em uma sociedade cuja
economia é amplamente conduzida por forças de mercado, por
exemplo, todos os agentes econômicos precisam dar um lugar
importante à eficiência se quiserem sobreviver. Em uma sociedade
tecnológica ampla e complexa, bem como nas unidades de alto
escalão que a compõe - firmas, instituições públicas, grupos de
interesse -, as atividades comuns devem ser gerenciadas em algum
grau de acordos com os princípios da racionalidade burocrática se
tiverem a pretensão de ser gerenciadas em absoluto. Portanto, se
deixamos nossa sociedade aos mecanismos de “mão invisível”
como o mercado ou tentamos gerenciá-la coletivamente, somos
forçados a operar em alguma medida de acordo com as exigências
da racionalidade moderna, adéque-se ela ou não a nossa própria
perspectiva moral. A única alternativa parece ser uma espécie de
exílio interior, uma automarginalização. A racionalidade
instrumental parece ser apta a depositar suas exigências
intermitentes em nós, nas esferas públicas ou privadas, na
economia e no Estado, nas formas complementares que aqueles
dois grandes analistas da modernidade, Marx e Weber, explicaram.

Agora, isso é muito verdadeiro e importante. Ajuda a dar conta do


poder de atitudes e filosofias atomistas e instrumentais de nossa
época. O atomismo em particular tende a ser gerado pela visão
científica que continua com a eficiência instrumental, assim como
está implícito em algumas formas de ação racional, tal como a do
empreendedor. E, então, essas atitudes adquirem quase o status de
normas, e parecem resguardadas por uma realidade social que não
se pode desafiar.

Mas as pessoas saíram disso para a afirmação de que há algo


inelutável acerca da perspectiva atomista instrumental uma vez que
adentrou nosso tipo de sociedade. Se assim fosse, então muito do
que eu disse nos capítulos anteriores não teria interesse, pois tenho
explorado e explorarei razões para limitar o escopo de
considerações instrumentais, e isto supõe que temos o poder para
fazê-lo. Supõe que temos uma escolha real aqui, mesmo se
tendemos a estar cegos para as opções abertas a nós. Se for
realmente o caso de que a sociedade tecnológica moderna nos
aprisiona numa “jaula de ferro”, então tudo foi em vão. Esse é o
terceiro grande desafio ao meu argumento todo, que delineei ao
final do capítulo 2, mas ao qual ainda não me referi propriamente.

Penso que há uma grande porção de verdade nessas imagens de


jaula de ferro . A sociedade moderna tende sim a nos empurrar na
direção do atomismo e instrumentalismo, tanto ao dificultar
restringir suas oscilações em determinadas circunstâncias quanto
por gerar uma visão que os subestima como estandartes. Mas
acredito que a visão da sociedade tecnológica como uma espécie
de destino de ferro não pode ser sustentada. Simplifica demais e
esquece o essencial. Primeiro, a ligação entre a civilização
tecnológica e essas normas não é unívoca. Não se trata apenas de
as instituições reproduzirem a filosofia; a perspectiva também teve
de começar a ter alguma força na sociedade europeia antes que as
instituições pudessem desenvolver-se. Perspectivas atomistas e
instrumentalistas começaram a se espalhar, pelo menos, entre as
classes educadas da Europa ocidental e da América antes da
Revolução Industrial. E, de fato, Weber viu a importância dessa
preparação ideológica para o capitalismo moderno.

No entanto, isso pode ser recusado como de interesse puramente


histórico. Talvez tivesse que haver uma mudança filosófica para
nossa sociedade tecnológica surgir, mas, uma vez instaurada, ela se
torna coercitiva. Essa é uma interpretação plausível do que Weber
estava tentando dizer com sua imagem da jaula de ferro.

Contudo, isso parece ser vastamente simplificado também. Os


seres humanos e suas sociedades são muito mais complexos do
que qualquer simples teoria possa dar conta. Verdade, somos
empurrados nessa direção. Verdade, as filosofias do atomismo e do
instru-mentalismo tiveram uma vantagem inicial em nosso mundo.
Mas ainda é o caso de haver muitos pontos de resistência, e estes
estão constantemente sendo gerados. Precisamos pensar apenas
em todo o movimento desde a época romântica, que desafiou o
domínio dessas categorias, e, na ramificação desse movimento
hoje, que está desafiando nossa má administração ecológica. Que
esse movimento avançou, progrediu, embora de maneira incipiente
e inadequada, em nossas práticas permanece como uma refutação
parcial de qualquer lei de ferro da sociedade tecnológica.

A história recente desse movimento nos conta muito acerca tanto


dos limites quanto das possibilidades de nossa desagradável
situação. Um público fragmentado, dividido em suas preocupações,
está de fato à deriva do que parece ser um destino inelutável que
leva em direção à dominância da razão instrumental. Cada pequeno
fragmento pode se importar profundamente com um pouco de suas
ameaças ambientais, com a destruição ou degradação em nome do
desenvolvimento. Mas parece que nisso cada comunidade local ou
grupo de cidadãos preocupados se levanta contra a vasta maioria
do público, exigindo um sacrifício no desenvolvimento, e, portanto,
PIB por cabeça, para esse público, em nome de seus interesses
minoritários. Assim formulado, o caso parece não ter jeito: é
politicamente uma causa perdida, e não parece merecer ganhar. As
máquinas de políticas democráticas reduzem inelutavelmente
essas pequenas ilhas de resistência a pó.

Mas, uma vez que um clima de entendimento comum é criado ao


redor da ameaça ao ambiente, a situação muda. Permanecem, é
claro, batalhas entre grupos locais e o público geral. Todos veem a
necessidade de um despejo, mas ninguém o quer em seu quintal.
No entanto, alguns conflitos locais são vistos de uma nova forma,
são diferentemente enquadrados. A preservação de algumas áreas
selvagens, por exemplo, a conservação de algumas espécies
ameaçadas, a proteção contra alguns assaltos devastadores no
ambiente são vistas como parte de um novo propósito comum.
Como frequentemente é o caso, os mecanismos de inevitabilidade
funcionam apenas quando as pessoas estão divididas e
fragmentadas. A situação se altera quando surge uma consciência
comum.

Não queremos exagerar nossos graus de liberdade. Mas eles não


são nulos. E isso significa que entender as fontes morais de nossa
civilização pode fazer diferença, à medida que pode contribuir para
um novo entendimento comum.

Não estamos, de fato, aprisionados. Mas há um declive, uma


inclinação nas coisas que é muito fácil de decair. A inclinação vem
dos fatores institucionais que já mencionei, mas também de uma
curvatura nas idéias em si. Vimos algo parecido com isso no caso
da autenticidade, como tentei mostrar no capítulo VI: uma maneira
na qual os ideais morais atribuem a si próprios certa distorção, ou
esquecimento seletivo.
Algo parecido também é verdade no caso da racionalidade
instrumental, e por razões parcialmente sobrepostas. Descreví
algumas das fontes para a força, em nossa cultura, de um ideal de
liberdade autodeterminante. Somos livres quando podemos refazer
as condições de nossa própria existência, quando podemos
dominar as coisas que nos dominam. Obviamente esse ideal ajuda
a conferir ainda maior importância ao controle tecnológico sobre
nosso mundo; ajuda a enquadrar a razão instrumental em um
projeto de dominação, em vez de servir para limitá-lo em nome de
outros fins. Na realidade, ele contribuiu para neutralizar alguns dos
limites que ainda existiam para a devastação tecnológica
descontrolada do ambiente, como a recente história de sociedades
marxistas-leninistas mostrou, ideologicamente desenvolvidas por
uma forma desse ideal.

A razão instrumental também cresceu com um modelo livre do


sujeito humano, o qual possui uma grande sustentação em nossa
imaginação. Oferece um retrato ideal de um humano que pensa que
se dissociou de sua incorporação confusa em nossa constituição
corporal, nossa situação dialógica, nossas emoções e nossas
formas tradicionais de vida com o intuito de ser racionalidade pura,
autove-rificante. Essa é uma das formas mais prestigiosas de razão
em nossa cultura, exemplificada pelo pensamento matemático, ou
outros tipos de cálculo formal. Argumentos, ponderações,
conselhos que podem afirmar estar baseados nesse tipo de cálculo
têm um grande poder persuasivo em nossa sociedade, mesmo
quando esse tipo de raciocínio não é realmente apropriado ao
assunto em questão, como a imensa (e, penso, desmerecida)
saliência de tal tipo de pensamento nas ciências sociais e estudos
políticos atesta. Economistas impressionam legisladores e
burocratas com sua matemática sofisticada, mesmo quando está
servindo para embalar pensamento político imaturo com resultados
potencialmente desastrosos.

Descartes foi o mais famoso porta-voz antigo desse modo de razão


desengajada, e ele tomou um passo fatídico que foi amplamente
seguido desde então. Podemos achar tal maneira de raciocinar uma
conquista que vale a pena buscar direcionar para determinados
propósitos, algo que conseguimos reter parte do tempo, muito
embora constitucionalmente nosso pensamento seja em geral
incorporado, dialógico, insuflado de emoção, e reflita os modos de
nossa cultura. Descartes resolveu supor que somos essencialmente
razão desengajada; somos puro intelecto, distinto do corpo, e nosso
modo normal de ver a nós mesmos é uma confusão lamentável.
Alguém talvez consiga ver por que esse retrato o atraía e àqueles
que o seguiram. O ideal parece ganhar força e autoridade quando
supomos que é como realmente somos, em oposição ao objetivo de
tentativas de realização um pouco frágil e local. Portanto, é muito
fácil para nós, em nossa cultura, pensar em nós como razão
essencialmente desengajada. Isso explica por que tantas pessoas
acham pouco problemático que devéssemos conceber o
pensamento humano no modelo do computador digital. Essa
autoimagem é realçada pelo sentimento de poder que acompanha
uma apreensão desengajada das coisas.

Então muito, tanto institucional quanto ideologicamente, está a


favor do atomismo e do instrumentalismo. Entretanto, se meu
argumento está correto, também podemos lutar contra isso. Uma
das maneiras de podermos fazê-lo é por meio da recuperação de
algumas das mais ricas circunstâncias morais das quais a ênfase
moderna na razão instrumental obteve sua ascensão. Não posso
desenvolver o argumento aqui, mesmo na extensão de esboço que
fiz com a autenticidade, mas gostaria de indicar, brevemente, como
poderia ser.

E obvio que parte do que favorece a razão instrumental é que ela


nos permite controlar nosso ambiente. A dominação fala conosco,
seja apenas porque podemos adquirir mais daquilo que queremos,
seja porque nivela nosso sentimento de poder, ou porque cabe em
algum projeto de liberdade autodeterminante. Mas isso não se
resume ao “domínio da natureza”, como alguns críticos parecem
sugerir. Há outros dois contextos morais importantes que eu
gostaria de mencionar aqui, dos quais a ênfase na razão
instrumental surgiu.

(1) Já vimos que ela está ligada a um sentimento de nós mesmos


como razão potencialmente desengajada. Isto se fundamenta em
um ideal moral, o de um pensar autorresponsável e autocontrolado.

Há um ideal de racionalidade aqui, que é ao mesmo tempo um ideal


de liberdade, de pensamento autônomo e autogerador.

(2) Outra vertente moral entrou em cena. O que chamei de


afirmação da vida ordinária, o sentimento de que a vida de produção
e reprodução, de trabalho e família, é que é importante para nós,
também fez uma contribuição crucial, pois nos fez dar importância
sem precedentes à produção das condições de vida em abundância
sempre crescente e o alívio do sofrimento em uma escala sempre
maior. Já no início do século XVII, Francis Bacon criticou as
tradicionais ciências aristotélicas por não terem contribuído em
nada “para aliviar a condição da humanidade”.10 Ele propôs um
modelo de ciência fixo cujo critério de verdade seria a eficácia
instrumental. Você descobriu alguma coisa quando pôde intervir
para mudar as coisas. A ciência moderna está essencialmente em
continuidade com Bacon nesse aspecto. Mas o que importa em
Bacon é que ele nos lembra de que a confiança por detrás dessa
nova ciência não era apenas epistemológica, mas também moral.

Somos herdeiros de Bacon, atualmente, por exemplo, quando


montamos grandes campanhas internacionais para aliviar a fome
ou para ajudar vítimas de enchentes. Viemos a aceitar uma
solidariedade universal atualmente, pelo menos na teoria, porém
imperfeita na nossa prática, e aceitamos isso sob a premissa de um
intervencionismo ativo na natureza. Não aceitamos que as pessoas
continuem sendo vítimas potenciais de tornados ou fomes. Nós os
consideramos males curáveis e preventivos em princípio.
Essa benevolência prática e universal também confere um lugar
crucial à razão instrumental. Aqueles que reagem contra o lugar que
ela assumiu em nossa vida sobre bases estéticas ou de estilos de
vida (e essa foi uma grande parte do protesto ao longo das décadas
desde o século XVIII) são frequentemente taxados pelos defensores
como moralmente insensíveis e sem imaginação, colocando a
própria sensibilidade estética acima das necessidades vitais das
massas de pessoas em sofrimento.

Logo, a razão instrumental vem a nós com seu próprio pano de


fundo moral rico. Não foi de forma alguma simplesmente
potencializada uma libido dominandi superdesenvolvida. E, mesmo
assim, muito frequentemente parecer servir aos fins de controle
maior, de domínio tecnológico. A recuperação de um segundo plano
moral mais rico pode mostrar que não é necessário fazer isso, e
ainda que, em muitos casos, está traindo esse segundo plano moral
ao fazê-lo - analogamente à maneira que os modos mais
autocentrados de autorrealiza-ção traem o ideal de autenticidade.

O que essa recuperação envolvería é essencialmente o mesmo que


no caso da autenticidade. Precisamos unir duas ordens de
considerações. Baseando-se (a) nas condições da vida humana que
precisam condicionar a realização dos ideais em questão, podemos
determinar (b) o que a realização efetiva dos ideais significaria.

Podemos ver o que esse tipo de reflexo envolve se observarmos um


importante exemplo, do campo dos tratamentos médicos. Sob (a),
notamos que o ideal de razão desengajada deve ser considerado
precisamente como um ideal e não como um retrato da intervenção
humana como realmente é. Somos agentes corporificados, vivendo
em condições dialógicas, habitando o tempo de uma maneira
especificamente humana, isto é, dando sentido a nossa vida como
uma história que liga o passado do qual viemos a nossos projetos
futuros. Isso significa (b) que, se pretendemos tratar de maneira
adequada um ser humano, temos que respeitar essa natureza
corporificada, dia-lógica e temporal. Extensões sem controle da
razão instrumental, como a prática médica que esquece o paciente
como uma pessoa, que não leva em conta como o tratamento
relaciona-se com sua história e, portanto, com os determinantes de
esperança e desespero, que negligencia a relação essencial entre o
agente da cura e o paciente -tudo isso deve ser impedido em nome
do segundo plano moral em benevolência que justifica essas
aplicações mesmas da razão instrumental.’ Se conseguirmos
entender por que a tecnologia é importante aqui em primeiro lugar,
então ela será por si mesma limitada e enquadrada por uma ética
do cuidado.

O que estamos buscando aqui é um enquadramento alternativo da


tecnologia. Em vez de vê-la puramente no contexto de uma
indústria de controle sempre crescente, na constantemente
regressiva fronteira de natureza resistente, talvez animada por um
sentimento de poder e liberdade, temos que entendê-la igualmente
no registro moral da ética de benevolência prática, que também é
uma das fontes na nossa cultura das quais a razão instrumental
adquiriu sua saliente importância para nós. Contudo, temos que
colocar essa benevolência sucessivamente no enquadramento de
um entendimento próprio da intervenção humana, não em relação
ao fantasma da razão desengajada desencarnado, habitando uma
máquina objetivada. Temos que relacionar tecnologia também com
o próprio ideal de razão desengajada, mas agora como um ideal, em
vez de um retrato distorcido da essência humana. Tecnologia a
serviço de uma ética da benevolência para com pessoas de carne e
osso; pensamento tecnológico, calculado como uma conquista rara
e admirável de um ser que vive no meio de um tipo de pensamento
bem diferente: viver a razão instrumental fora desses
enquadramentos seria viver nossa tecnologia de maneira muito
diferente.11 12

Embora haja uma virada ou deslize na direção da posição da


dominação, por todos os motivos mencionados anteriormente, nada
diz que temos de viver nossa tecnologia dessa maneira. Os outros
modos estão em aberto. A prospecção que encaramos aqui é uma
luta, na qual esses diferentes modos de enquadramento conflitam.
Com a autenticidade, a disputa era entre modos mais nivelados e
completos de autorrealização; aqui opõe os diferentes
enquadramentos uns contra os outros. Mais uma vez, estou
propondo que, em lugar de ver nossa situação como fadada a gerar
um desejo por um controle tecnológico sempre crescente, o que
então iremos regozijar ou lamentar dependendo de nossa
perspectiva, entendemos como aberta a contestação, como lócus
de luta provavelmente sem fim.

Nessa disputa, compreender nossas fontes morais pode contar, e


mais uma vez o debate polarizado entre incentivadores e críticos
ameaça nos privar de um recurso crucial. É por isso que um
trabalho de recuperação é valido aqui. Há uma batalha pelos
corações e mentes na qual ele possui um papel a desempenhar.

Contudo, também é verdade que essa batalha de idéias está inex-


trincavelmente ligada, parte fonte e parte resultado, a lutas políticas

posicionamento bem diferente da tecnologia em nossa vida. Chegar


ao ápice da tecnologia implica tomar uma posição instrumental
para com ela, pois, através dela, tomamos essa posição em relação
a tudo mais. Ela não abre a possibilidade de colocar a tecnologia
dentro de uma posição não instrumental, como vemos, por
exemplo, numa ética do cuidado, ou no cultivo de nossa capacidade
para a reflexão pura. Sobre essa questão, ver a discussão em
William Hutchinson, “Technology, Community and the Self”, McGilI
Univer-sity, 1992 (tese de doutorado).

Nessa discussão de enquadramento, eu obviamente emprestei


grande parte de Heidegger; ver em especial “The Question
Concerning Technology”, in: The Question Concerning Technology
and Other Essays, trad. William Lovitt, Nova York, Garland
Publishers, 1977. O que considerei que Heidegger está propondo
neste e em outros escritos é algo que chamei de enquadramento
alternativo. Para um desenvolvimento interessante dessa ideia em
mais detalhes, a qual também deve gratidão a Heidegger, ver
Borgman, Technology and the Character of Contemporary Life.
acerca dos modos de organização social. Dada a importância de
nossas instituições em gerar e manter uma posição atomista e
instrumental, não poderia ser de outro modo. E, assim, quero voltar,
em meu último capítulo, à terceira principal área de preocupação
que delineei no início.

Capítulo 10 | Contra a
Fragmentação
Argumentei no capítulo anterior que as instituições de nossa
sociedade tecnológica não impõem inelutavelmente sobre nós uma
hegemonia cada vez mais profunda da razão instrumental. Mas é
evidente que, deixadas a si mesmas, elas possuem uma tendência
de nos empurrar para essa direção. É por isso que o projeto foi
frequentemente apresentado como sobressaindo dessas
instituições todas. Tal sonho foi apresentado pelo marxismo
clássico e promulgado até certo ponto pelo leninismo. O plano era
dar fim ao mercado e trazer toda a operação da economia para
debaixo do controle consciente dos “produtores associados”, na
fala de Marx.13 Outros alimentam a esperança de que talvez
fôssemos capazes de fazê-lo sem o estado burocrático.

Hoje é evidente que essas esperanças são ilusórias. O colapso das


sociedades comunistas finalmente tornou inegável o que muitos
sentiam desde o começo: mecanismos de mercado são, de alguma
forma, indispensáveis para uma sociedade industrial, certamente
para sua eficiência econômica e, de maneira provável, também para
sua liberdade. Algumas pessoas no Ocidente festejam que essa
lição tenha finalmente sido aprendida e fazem do fim da Guerra Fria
um pretexto para a celebração de suas próprias utopias, uma
sociedade livre organizada cada vez mais através das relações de
mercado impessoais, com o Estado empurrado para um papel
residual limitado. Contudo, isso é igualmente irrealista. Estabilidade
e, logo, eficiência não poderíam sobreviver a esta retirada massiva
do governo da economia, e é duvidoso se a liberdade também
poderia ainda sobreviver na selva competitiva que um capitalismo
realmente selvagem iria originar, com suas desigualdades e
explorações descompensadas.

O que deveria ter perecido junto com o comunismo é a crença de


que sociedades modernas podem funcionar com um único
princípio, seja ele o de planejar de acordo com a vontade geral ou o
de alocações do livre mercado. Nosso desafio é na realidade
combinar de um modo não autoestultificador uma série de
maneiras de operar, que são juntamente necessárias a uma
sociedade livre e próspera, as quais também tendem a impedir uma
à outra: alocações de mercado, planejamento de Estado, provisão
coletiva para necessidades, defesa dos direitos individuais,
iniciativa democrática efetiva e controle. Em curto prazo, cada um
dos outros quatro modos pode restringir a eficiência de mercado
máxima; em longo prazo, talvez mesmo desempenho econômico,
mas com certeza justiça e liberdade sofreriam por sua
marginalização.

Não podemos abolir o mercado nem nos organizar exclusivamente


pelos mercados. Restringi-los pode ser custoso; não restringi-los
completamente seria fatal. Governar uma sociedade
contemporânea é aumentar de maneira contínua um equilíbrio entre
pedidos que tendem a concorrer uns com os outros, encontrar
constantemente novas soluções criativas enquanto o equilíbrio
antigo se torna estultificador. Nunca pode haver na natureza do
caso uma solução definitiva. Nesse aspecto, nossa situação política
se assemelha à situação cultural que descreví anteriormente. A
contínua luta cultural entre diferentes perspectivas, diferentes
enquadramentos das ideias-chave da modernidade, emparelha no
nível institucional as exigências conflitantes das distintas e, no
entanto, complementares maneiras de organizar nossa vida
comum: a eficiência de mercado pode ser atenuada pelas provisões
coletivas através do estado de bem-estar social; o planejamento
efetivo estatal pode pôr em risco direitos individuais; as operações
conjuntas de Estado e mercado podem ameaçar o controle
democrático.

Mas há mais de um paralelo aqui. Há uma ligação, como indi-quei.


A operação de mercado e do Estado burocrático tende a fortalecer
os enquadramentos que favorecem uma posição atomista e
instrumentalista diante do mundo e dos outros. Que essas
instituições não possam ser nunca abolidas, que temos de viver
com elas para sempre, tem muito a ver com a natureza infinita e
insolúvel de nossa luta cultural.

Embora não haja uma vitória definitiva, existe ganhar ou perder


terreno. O que isso envolve emerge do exemplo que mencionei no
capítulo anterior. Lá observei que a batalha de comunidades
isoladas ou grupos contra a devastação ecológica estava fadada a
ser uma luta perdida até que um tempo em que o entendimento
comum e um sentimento de propósito comum se formem na
sociedade como um todo a respeito da preservação do meio
ambiente. Em outras palavras, a força que pode reverter a
hegemonia galopante da razão instrumental é (o tipo certo de)
iniciativa democrática.

Contudo, isso coloca um problema, pois as operações conjuntas de


mercado e Estado burocrático possuem uma tendência de
enfraquecer a iniciativa democrática. Aqui retornamos à terceira
área de incômodo: o medo articulado por Tocqueville de que
determinadas condições da sociedade moderna minam a vontade
de controle democrático, o medo de que as pessoas virão a aceitar
com muita facilidade serem governadas por um “imenso poder
tutelar”.

Talvez o retrato de um despotismo leve de Tocqueville, por mais que


tenha a intenção de distingui-lo da tirania tradicional, ainda pareça
muito despótico no sentido tradicional. Sociedades democráticas
modernas parecem longe disso, porque são repletas de protestos,
livres iniciativas e desafios irreverentes à autoridade, e governos na
verdade tremem sim diante da raiva e contento dos governados,
conforme estes são revelados nas pesquisas que os governantes
jamais cessam de fazer.

No entanto, se concebermos o medo de Tocqueville de um modo


um pouco diferente, então de fato ele parece bastante real. O perigo
não é controle despótico de verdade, mas fragmentação - isto é, um
povo crescentemente menos capaz de formar um propósito comum
e levá-lo adiante. A fragmentação surge quando as pessoas se
veem cada vez mais atomisticamente, posto de outro modo, como
cada vez menos ligadas a seus colegas cidadãos em projetos
comuns e alianças. Eles podem realmente se sentir ligados aos
demais em projetos comuns, mas isso vem a acontecer mais em
agrupamentos parciais do que na sociedade inteira: por exemplo,
uma comunidade local, uma minoria étnica, os aderentes de alguma
religião ou ideologia, os promotores de algum interesse especial.

Essa fragmentação surge parcialmente através de um


enfraquecimento dos vínculos de simpatia, de uma maneira
autoalimentada, pelo próprio fracasso da iniciativa democrática.
Pois, quanto mais fragmentado um eleitorado democrático é nesse
sentido, mais ele transfere sua energia política para promover seus
agrupamentos parciais, na maneira que quero descrever a seguir, e
menos possível se torna mobilizar maiorias democráticas em torno
de programas e políticas comumente entendidos. Cresce um
sentimento de que o eleitorado como um todo é indefeso contra o
Estado leviatânico; um agrupamento parcial bem organizado e
integrado pode, realmente, ser apto a fazer uma redução
considerável, mas a ideia de que a maioria das pessoas possa
expressar e levar adiante um projeto comum se torna utópica e
ingênua. E assim as pessoas desistem. Já debilitada em simpatizar
com os demais, é enfraquecida ainda mais pela falta de uma
experiência comum de ação, e um sentimento de desespero faz
parecer uma perda de tempo tentar. Entretanto isso, é óbvio, torna-
se impossível, e um círculo vicioso está posto.

Agora, uma sociedade que segue essa rota ainda pode ser, em um
sentido, altamente democrática, isto é, igualitária, e cheia de
atividade e desafio à autoridade, como fica evidente se olharmos
para a grande república ao sul. A política começa a tomar um molde
diferente, da maneira como já indiquei. Um propósito comum que
permanece fortemente compartilhado, mesmo que outros atrofiem,
é de que a sociedade é organizada em defesa dos direitos. O estado
de direito e o respeito dos direitos são vistos como muito “da
maneira norte-americana”, isto é, como os objetos de um forte
compromisso comum. A extraordinária reação aos escândalos de
Watergate, que terminaram destituindo um presidente, é um
testemunho disso.

Em sintonia com isso, duas facetas da vida política assumem uma


saliência cada vez maior. Primeiro, cada vez mais viradas nas
batalhas judiciais. Os norte-americanos foram os primeiros a ter
uma lei de direitos arraigada, aumentada uma vez que provisões
contra discriminação e mudanças importantes foram feitas na
sociedade através de desafios do tribunal à legislação ou arranjos
privados supostamente em violação dessas provisões arraigadas.
Um bom exemplo é o famoso caso de Brown vs. Conselho de
Educação, que desintegrou as escolas em 1954. Nas décadas
recentes, mais e mais energia no processo político norte-americano
está se voltando para esse processo de revisão judicial. Questões,
que em outras sociedades são determinadas pela legislação, após
debate e, às vezes, compromisso entre diferentes opiniões, são
vistas como assuntos apropriados para decisão judicial à luz da
constituição. O aborto é um desses casos. Desde Roe vs. Wade, em
1973, quando se liberou grandemente a lei do aborto no país, o
esforço dos conservadores, agora chegando de maneira gradual à
realização, tem sido amontoar a corte a fim de obter uma inversão.
O resultado tem sido um impressionante esforço intelectual,
canalizado na revisão política e judicial, que tem feito das
faculdades de direito os centros dinâmicos do pensamento político-
social nos campi norte-americanos; e também uma série de
batalhas tirânicas sobre o que costumava ser a relativamente
rotineira - ou, pelo menos, não partidária - questão de confirmação
senatorial das nomeações presidenciais à Suprema Corte.

Paralelamente à revisão judicial e organizada para ela, a energia


norte-americana está canalizada em interesses ou políticas de
defesa. As pessoas se atiram em campanhas de um único problema
e trabalham furiosamente por sua causa preferida. Ambos os lados
são bons exemplos no debate sobre aborto. Essa faceta se
sobrepõe à anterior, pois parte da batalha é judicial, mas também
envolve fazer lobby, mobilizar opiniões de massa e a intervenção
seletiva em campanhas eleitorais contra ou a favor dos candidatos-
alvo.

Tudo isso contribui para uma série de atividades. Uma sociedade


em que isso ocorre é dificilmente um despotismo. Mas o
crescimento dessas duas facetas está ligado, parte efeito e parte
causa, à atrofia de uma terceira, que é a formação de maiorias
democráticas em torno de programas significativos que podem
então ser levados a cabo. Nesse aspecto, o cenário político norte-
americano é abismai. O debate entre os principais candidatos torna-
se cada vez mais desconjuntado, suas declarações ainda mais
flagrantemente servindo os próprios propósitos, suas
comunicações consistindo cada vez mais dos agora famosos
“trechos de entrevistas”: suas promessas risivelmente
inacreditáveis (“leia meus lábios”) e cinicamente não mantidas,
enquanto os ataques a seus oponentes afundam a níveis cada vez
mais desonrados, da mesma forma que ocorre com a impunidade.
Ao mesmo tempo, em um movimento complementar, a participação
dos eleitores nas eleições nacionais declina, e atingiu recentemente
50% da população eleitoral, bem abaixo da de outras sociedades
democráticas.
Algo pode ser dito a favor, e talvez muito possa ser dito contra este
cambaleante sistema. Talvez se possa ficar preocupado acerca
dessa estabilidade de longo prazo, preocupação, isto é, se a
alienação cidadã causada por seu sistema representativo cada vez
menos funcional pode ser compensada pela grande energia de suas
políticas de interesse especial. O argumento também tem sido de
que o estilo de política torna os problemas mais difíceis de resolver.
Decisões judiciais em geral são do tipo em que o vencedor fica com
tudo; ou você ganha ou você perde. Em particular, as decisões
judiciais acerca de direitos tendem a ser concebidas como
questões de tudo ou nada. O próprio conceito de um direito parece
pedir por satisfação integral, se for um direito em absoluto; se não,
então nada. O aborto mais uma vez pode servir como exemplo. Uma
vez que o vemos como direito do feto contra o direito da mãe, há
poucos lugares entre a imunidade ilimitada de um e a liberdade
irrestrita do outro. A preferência por ajustar as coisas de maneira
judicial, ainda mais polarizada por campanhas de interesse especial
rivais, corta efetivamente as possibilidades de compromisso.14
Também podemos argumentar que ela torna determinados
problemas mais difíceis de resolver, aqueles que requerem um
amplo consenso democrático acerca de medidas que também
envolverão algum sacrifício e dificuldade. Talvez isso seja parte do
problema norte-americano contínuo de entender sua situação
econômica em declínio através de alguma forma de política
industrial inteligente.15 Mas também me leva ao meu argumento,
que é o de que determinados tipos de projetos comuns se tornam
mais difíceis de aprovar onde esse tipo de política é dominante.

Um sistema desequilibrado como esse tanto reflete quanto fortifica


a fragmentação. Seu espírito é de um tipo adverso, no qual a
eficácia do cidadão consiste em ser apto a ter seus direitos,
quaisquer que sejam as consequências para o todo. Ambas as
políticas de problema único e de recuperação judicial operam com
base nessa posição e a reforçam ainda mais. Agora o que surgiu
além do exemplo do destino recente do movimento ecológico é que
a única maneira de compensar a oscilação embutida no mercado e
na burocracia é por meio da formação de um propósito democrático
comum. Mas isso é exatamente o que é difícil em um sistema
democrático fragmentado.

Uma sociedade fragmentada é aquela cujos membros acham cada


vez mais difícil identificar-se com sua sociedade política como uma
comunidade. Essa falta de identificação pode refletir uma
perspectiva atomista, na qual as pessoas acabam enxergando a
sociedade como puramente instrumental. Contudo, ela também
ajuda a arraigar o atomismo, pois a ausência de ação efetiva
comum lança as pessoas de volta a elas mesmas. Essa é talvez a
razão pela qual uma das filosofias sociais mais amplamente
sustentadas nos Estados Unidos contemporâneos é o liberalismo
processual da neutralidade que mencionei anteriormente (no
capítulo II), e que combina bem suavemente com uma visão
atomista.

Mas agora também podemos ver que a fragmentação ajuda o


atomismo de outra maneira. Pois o único registro efetivo à
oscilação para o atomismo e instrumentalismo embutidos no
mercado e Estado burocráticos é a formação de um propósito
comum efetivo através da ação democrática, a fragmentação na
realidade nos incapacita de resistir a essa oscilação. Perder a
capacidade de construir maiorias politicamente efetivas é perder
seu remo no meio do rio. Você é carregado inelutávelmente
correnteza abaixo, o que aqui significa cada vez mais para uma
cultura enquadrada pelo atomismo e instrumentalismo.

A política de resistência é a política da formação da vontade


democrática. Como contra aqueles adversários da civilização
tecnológica que se sentiram atraídos para uma posição elitista,
devemos ver que uma tentativa séria de se engajar na luta cultural
de nossa época exige a promoção de uma política de
fortalecimento democrático. A tentativa política de enquadrar de
novo a tecnologia crucialmente envolve resistir e reverter a
fragmentação.
Mas como você combate a fragmentação? Não é fácil e não há
receitas universais. Depende bastante da situação particular. Mas a
fragmentação cresce à medida que as pessoas não mais se
identificam com sua comunidade política, que seu senso de
pertencimento incorporado é transferido para outro lugar ou atrofia
inteiro. E é alimentada, também, pela experiência de impotência
política. E esses dois desenvolvimentos reforçam mutuamente um
ao outro. Uma identidade política minguante torna mais difícil
mobilizar efetivamente, e um sentimento de desespero gera
alienação. Há um círculo vicioso potencial aqui, mas podemos ver
como ele também poderia ser um círculo virtuoso. Uma ação
comum bem-sucedida pode trazer um senso de fortalecimento e
também fortalecer a identificação com a comunidade política.

Isso soa como dizer que o caminho para o sucesso aqui é se sair
bem, que é verdade mas, talvez, inútil. No entanto, podemos dizer
um pouco mais. Uma das fontes importantes do sentimento de
impotência é que somos governados por estados de larga escala,
centralizados e burocráticos. O que pode ajudar a mitigar esse
sentimento é descentralização do poder, como Tocqueville viu. E,
assim, em uma descentralização geral, ou uma divisão de poder,
como em um sistema federativo, particularmente baseado nos
princípios de subsidiariedade, pode ser bom para o fortalecimento
democrático. E isso é ainda mais verdadeiro se as unidades para as
quais o poder é descentralizado já figuram corno comunidades na
vida de seus membros.

Nesse aspecto, o Canadá tem sido afortunado. Temos um sistema


federativo, que tem sido impedido de se envolver com maior
centralização no modelo dos Estados Unidos por nossa diversidade,
enquanto as unidades provinciais geralmente se ajustam às
sociedades regionais com as quais seus membros se identificam.
Parece que falhamos em criar um entendimento comum que possa
manter essas sociedades regionais unidas, e, por isso, estamos
diante da possibilidade de outro tipo de perda de poder, não a que
experienciamos quando um grande governo parece completamente
indiferente, mas sim o destino de sociedades menores vivendo à
sombra de poderes maiores.

Isso tem sido ultimamente um fracasso em entender e aceitar a


natureza verdadeira da diversidade canadense. Os canadenses são
muito bons em aceitar as próprias imagens da diferença, mas estas
falharam tragicamente em corresponder ao que realmente existe.
Talvez não seja um acidente que esse fracasso venha apenas
quando uma característica importante do modelo norte-americano
começa a ter influência nesse país, na forma de revisão judicial
acerca de uma lei de direitos. Na verdade, pode-se argumentar que
a insistência na aplicação uniforme de um registro que se tornou
um dos símbolos da cidadania canadense foi uma causa importante
da dispensa do acordo de Meech Lake,16 e, portanto, de
impedimento da ruptura do país.17

Mas o ponto geral que quero extrair disso é o entrelaçamento de


diferentes vertentes de preocupação sobre a modernidade.

O reenquadrar efetivo da tecnologia requer ação política comum


para reverter a oscilação que o mercado e o Estado burocrático
engendram em relação a um atomismo e instrumentalismo
maiores. E essa ação comum requer que superemos a
fragmentação e a impotência - isto é, que direcionemos a
preocupação que Tocqueville primeiro definiu, o deslize na
democracia para o poder tutelar. Ao mesmo tempo, as posições
atomistas e instrumentalistas são fatores geradores primários dos
mais degradados e superficiais modos de autenticidade, e, assim,
uma vigorosa vida democrática, comprometida em um projeto de
reenquadrar, também teria um impacto positivo aqui.

O que nossa situação parece pedir é uma luta complexa de muitos


níveis - intelectual, espiritual e política -, cujos debates na arena
pública se interligam com aqueles numa série de arranjos
institucionais, como hospitais e escolas, onde os problemas de
enquadrar a tecnologia estão sendo vividos de uma forma concreta;
e onde tais disputas sucessivas tanto alimentam quanto são
alimentadas pelas diversas tentativas de definir em termos teóricos
o lugar da tecnologia e as demandas da autenticidade, e, além
disso, o formato da vida humana e sua relação com o cosmo.

Contudo, para comprometer-se efetivamente nesse debate mul-


tifacetado, é preciso ver o que é bom na cultura da modernidade,
assim como o que é superficial ou perigoso. Como Pascal disse
sobre os seres humanos, a modernidade é caracterizada pela
grandeur tanto quanto pela misère. Apenas uma visão que abarque
ambas pode nos dar o insigtot não distorcido para nossa época de
que precisamos elevar aos seus maiores desafios.

índice Remissivo
1

Assim, Wordsworth nos fala de como cie “tvould stand / If the night
black-ened ivith a coming storm, / Beneath some rock, listening to
notes that are / The ghostly language of the ancient earth / Or make
their dim abode in distant tuinds” (The Prelude, linhas 307-11). Em
tradução livre: “permanecería / Caso a noite enegrecida por uma
tempestade que se aproxima / Embaixo de algum refúgio, ouvindo
as notas que são / A linguagem fantasmagórica da Terra antiga /
Ou fazer sua morada sombria em ventos distantes”.
2

Charles Rosen e Henri Zerner, Romanticism and Realism. Nova York,


Norton, 1984, p. 58. Este capítulo (2) contém uma excelente
discussão sobre a aspiração romântica a um simbolismo natural.
3

Ibidem, p. 68ss.
4

Citado em Rosen e Zerner, op. cit., p. 67. Os autores relacionam isso


a uma declaração de Constable: “Para mim, pintar é apenas outra
palavra para sentir”.
5

sTradução livre: “Uma presença que me perturba com a alegria / De


pensamentos elevados; uma sensação sublime / De algo muito
mais profundamente impregnado / Cuja morada é a luz de sóis
poentes / E o contínuo oceano e o ar vivo / E o céu azul e a mente
do homem: / Um movimento e um espírito, que impelem / Todas as
coisas pensantes, todos objetos de todo pensamento / E desliza
através de todas as coisas”. (N. T.)
6

Borgman, Technology and the Character of Contemporary Life,


capítulo 11.
7

Ver Rousseau, Les Rèveries du Promeneur Solitaire, Vcmc


Promenade.
8

In: Ouevres Completes. Paris, Gallimard, 1959, p. 1045.


9

Desenvolví a explicação dessas divisões de maneira mais


minuciosa em Hegel.
10
Francis Bacon, Nouum Organum, 1.73, tradução de Francis Bacon: A
Selec-tion ofHis Works. Ed. Sydney Warhaft. Toronto, Macmillan,
1965, p. 350-51.
11

Baseei-me bastante na discussão penetrante em Benner e Wrubel,


The Pri-macy of Caring, que mostra quanto a filosofia pode
contribuir para um novo enquadramento da razão instrumental no
gênero que discuto aqui.
12

A questão que coloco aqui em termos de modos alternativos de


enquadramento é por vezes posta em matéria de controle: nossa
tecnologia de-senvolve-se descontroladamente, ou nós a
controlamos, dispondo-a para nossos propósitos? Mas o problema
dessa formulação deveria ser óbvio. Ela permanece inteiramente
dentro do quadro de dominação, e não permite um
13

“Liberdade neste campo só pode consistir no homem socializado,


nos produtores associados, a racionalidade regulando seu
intercâmbio com a Natureza, trazendo-a para debaixo de seu
controle, em vez de ser controlado por ela como pelas força cegas
da Natureza.” Capital, v. III. Nova York, International Publishers,
1967, p. 820.
14

Mary Ann Glendon, em Abortion and Divorce in Western Lau>,


Cambridge, Harvard University Press, 1987, mostrou como isso tem
feito diferença para as decisões norte-americanas nessa questão,
quando comparada com aquelas em sociedades ocidentais
comparáveis.
15

’ Levantei a questão acerca da estabilidade democrática em “Cross-


Purposes: The Liberal- Communitarian Debate”, in: Nancy
Rosenblum (ed.), Libera-lism and the Moral Life, Cambridge,
Harvard University Press, 1989. Há uma boa discussão sobre o
deslize para esse pacote cambaleante na política norte-americana
em Michael Sandel, “The Procedural Republic and the
Unencumbered Self”, in: Political Theory, 12, fev. 1984. Comparei os
sistemas norte-americano e canadense a esse respeito em
“Alternative Futures”, in: Alan Cairns e Cynthia Williams (eds.),
Constitutionalism, Citizenship and Society in Canada, Toronto,
University of Toronto Press, 1985. Há uma boa
16

Esse acordo firmado em 1987 estabelecia a volta da província do


Quebec à família institucional do Canadá, de modo que, com o
acordo, o governo canadense cedia a um pacote de exigências da
província, entre elas a possibilidade de adicionar emendas à
Constituição, ter maior poder em assuntos de imigração e nomear
juizes para a Suprema Corte. (N.T.)
17

' Discuti isso extensamente em “Shared and Divergent Values”. In:


Ronald Watts e Douglas Brown (eds.), Options for a New Canada.
Kingston, Queen’s University Press, 1991.

aborto, 97, 113-16

acordo de Meech Lake, 118 agressividade veja ambiente alta


cultura, 67, 84

ambiente
desastres do, 18, 93

e razão instrumental, 15, 93, 97

na arte, 89

preservação do, 100-01, 111, 116

reivindicações do, sobre nós, 92-93 amor, 92-93

e autorrealização, 41, 53

e identidade, 44-45, 53, 57

veja também relacionamentos

pessoais

antropocentrismo

e atomismo social, 65-66

e autenticidade, 67-68, 74-75

e horizontes de significado, 74-75

e relações com o ambiente, 93, 94 Arendt, Hannah, 16-17

Aristóteles, 28-29, 104

Artaud, Antonin, 72

arte

dialogicidade da, 44-45

e autenticidade, 72

e mimesis, 69, 86-87


e poiesis, 69, 70

subjetivação do moderno, 85-92 artista, 44-45, 69

veja também arte atomismo social

e antropocentrismo, 65-66

e capitalismo de mercado, 111

e fragmentação, 112

e mobilidade, 66

e organização social, 78, 98-99, 107-08

c razão instrumental, 96-97, 98, 99-100, 103,116,118-19


estabelecimento do, 116 veja também fragmentação;

individualismo

autenticidade

condenação da, um erro, 51, 78,

84, 95

definição da, 73

degradação de, 25, 31-33, 39, 45-

46, 65-67, 77, 93

dialogicidade da, 42-43, 53

e autorrealização, 25, 39, 63-66, 78

e criação, 70-74
e diversidade, 46-47, 58

e explicação social científica, 29

e hedonismo, 25-26

e horizonte de significado, 45,46-50, 72-73,75-76

e individualismo, 29, 35, 52, 79, 82 e liberalismo neutro, 27, 31

e liberdade autodeterminante, 37-38, 48, 73-76

e narcisismo, 25-26, 45, 63-64, 67, 73, 77, 84

e pós-modernismo, 74-75

e razão instrumental, 29, 32

e reconhecimento, 55, 57, 60, 73

e relações instrumentais, 51, 58, 60, 81

e relativismo suave, 26-27, 31,46,47 e subjetivismo moral, 28, 31,


46, 63-64, 92

fontes românticas da, 35-39 hostilidade da, à moralidade, 70-74


modo e conteúdo da, 85-86

um ideal moral, 25-27, 31, 32-33, 39,41-50, 77, 78

valor da, 78-84

veja também cultura da

autenticidade; autorrealização

autodefinição, 69-73

veja também identidade;


autorrealização

autodescoberta, 53, 69-70

veja também identidade;

autorrealização

autodesenvolvimento veja autorrealização

autoescolha, 48-49

veja também identidade;

autorrealização

autoindulgência, 13, 26, 63, 79-80 autonomia, 38, 85

veja também liberdade,

autodeterminante

autorrealização

absurdos da, 24-25

e autenticidade, 25,39,41,63, 65-66, 78, 79-80

e autoindulgência, 26, 63, 79-80

e cidadania, 51, 52-53

e família, 11-12, 64

e individualismo, 24, 25, 53, 65

e narcisismo, 25-26, 45, 49, 63

e razão instrumental, 66-67


e relações pessoais, 27, 51, 53, 65

um ideal moral, 26

veja também autenticidade

autorreferencialidade

e subjetivismo moral, 86, 92

modo e conteúdo da, 86

Bacon, Francis, 104

Bataille, Georges, 72

Baudelaire, Charles, 67, 87

beleza, 71-72

veja também estética; arte

Bellah, Robert, 15-16

Bell, Daniel, 77-78, 83

The Cultural Contradictions of

Capitalism, 24

benevolência, ética da, 106

Benner, Patrícia, 15-16

Bloom, Allan

sobre autorrealização, 25, 77-80, 83


sobre o narcisismo, 49

sobre o relativismo suave, 23, 31

The Closing of the American Mind, 23

Borgman, Albert, 16-17, 93

Brigadas Vermelhas, 82-83

Brown versus Conselho de Educação,

113-14

camada de ozônio, 18

veja também ambiente

capitalismo

abolição do, 82, 96-97

aprisionamento pelo, rejeitado, 33, 99-101

c razão instrumental, 17-18, 98-99, 111,118-19

estultificação da democracia no, 110-11, 114-16

exploração no, 96-97, 109-10

veja também mecanismos de mercado

cidadania, 19,32,51,58-59

veja também fragmentação;

participação política; atomismo social


ciência

aspectos morais da, 104

explicação no social, 29, 31 natural, 79-80

comunidade, 51, 81, 116-17

veja também fragmentação;

participação política; atomismo social

comunismo, 110

veja também marxismo contrato social, 38, 52-53


correspondências, doutrina das, 87 crescimento econômico, 15
criação artística, 69-70, 73

veja também arte

culto da violência, 72

cultura da autenticidade, 41, 42, 75-76 condenação da, um erro, 51,


78, 84, 95

degradação da autenticidade na, 25, 31, 32-33, 39, 45-46, 65-67, 77,
93

e liberalismo neutro, 27, 31 repleta de tensão, 77, 81,95 veja


também autencidade

cultura do narcisismo, 19-20, 63-64 repleta de tensão, 64, 77 veja


também narcisismo

democracia
e capitalismo de mercado, 109-11 e despotismo suave, 18-19
fortalecimento na, 117 fragmentação da, 112-16 igualdade na, 13-
14

reconhecimento na, 54-55, 57-60

Derrida, Jacques, 67, 72-73

Descartes, René, 35, 102-03 desconstrução, 67-68, 73 despotismo


suave, 18-19,111-12, 114 Deus, 36, 49-50, 85-86

diálogo

e autenticidade, 42-43

e criação artística, 73

e identidade, 43, 53, 55-58

veja também reconhecimento diferença

e autenticidade, 46-47 reconhecimento da, 58, 59-60, 118 veja


também diversidade;

multiculturalismo

dignidade, 54-55

direitos universais, 12, 52-53,110,

114-16

diversidade

e autenticidade, 46-47, 58

no Canadá, 118
veja também multiculturalismo

Dworkin, Ronald, 27

egoísmo, 26

veja também autorrealização

Eliot,T. S., 90-92

escolha, 47, 75-76

veja também autoescolha

Estados Unidos

pessimismo cultural nos, 83

políticos conservadores nos, 96-97 revisão judicial nos, 113-14, 118

estética, a, 70

e autoplenitudc, 71-72

veja também arte

expressivismo, 68-73

família, 12,26,64, 81

veja também relacionamentos pessoais

fascismo, 72

federalismo, 118
feminismo, 57-58, 95-96

Foucault, Michel, 67, 68, 72-73, 75-76 fragmentação

e apatia política, 114

e atomismo social, 112, 116-17, 118-19

e impotência, 117-18, 119

e políticas de defesa, 114 e revisão judicial, 113-16 estabelecimento


da, 116 resistência à, 117-19 veja também cidadania, comunidade,
participação política, atomismo social

Friedrich, Caspar David, 89

futuristas, 72, 92

Grande Cadeia do Ser, 12, 88, 90, 92-93 Guerra Fria, 109-10
hedonismo, 25-26

veja também narcisismo;

autoindulgência

Hegel, G. W. E, 38, 56-57 Herder, Johann, 38, 55, 69


heterossexualidade, 46-47 hierarquias sociais veja sociedade,
hierárquica

Hõlderlin, Friedrich

Homecoming, 88-89

The Rhine, 88-89 homossexualidade, 46-47 honra, 53-54 horizonte


de significado
e antropocentrismo, 74-75

e autenticidade, 45-50 e identidade, 50-51

e reconhecimento, 59-60

negação do, na alta cultura, 67, 84 Hutcheson, Francis, 71

identidade

dialogicidade da, 43, 53, 55-58 e amor, 44-45

e autodefinição, 70-73

e autodescoberta, 53, 68-70

e autoescolha, 48-49

e horizonte de significado, 49-50 e reconhecimento, 53, 55-58, 60


nas hierarquias sociais, 53-55 igualdade, 59-60

veja também democracia individualismo

do liberalismo neutro, 80 e autenticidade, 29, 35, 52, 79, 82 e


autorrealização, 24-25, 52-53, 65 e narcisismo, 14

e organização social, 107-08

e participação política, 13-14, 18-19,24

e racionalidade desengajada, 35 e relativismo moral, 23-24 e


responsabilidade, 82 expressivismo do, 68-73

nas hierarquias sociais, 12-14

um ideal moral, 52
veja também atomismo social indivíduo, 12-14

veja também individualismo instrumentalismo veja razão

instrumental; relacionamentos instrumentais

jaula de ferro, 17, 99-102

veja também razão instrumental jacobinos, 38

Joyce, James, 92

justiça processual, 52-53, 58-59

Kant, Immanuel, 38, 71

Kierkegaard, Sõren, 13

Kymlicka, William, 27

Lasch, Christopher, 77-78

The Culture of Narcissism, 24

The Minimal Self, 24

Lênin,V. L, 74, 109

liberalismo neutro, 27,31,58-59, 80, 116 veja também relativismo


suave

liberdade
autodeterminante

e autenticidade, 37, 38, 47-48, 74-76

e o contrato social, 38

e razão instrumental, 101-02

e hierarquias sociais, 12

e mudança social, 30

e razão intrumental, 18

formas mais elevadas e baixas de, 82-83

negativa, 19-20

subjetivação da, 85

linguagens

artísticas, 90

de articulação, 90

de ressonância pessoal, 92-93

e desconstrução, 73

e intervenção humana, 42-43 Lipovestky, Gilles

A Era do Vazio, 24

Livre Mercado ueja capitalismo, mecanismo de mercado

Locke, John, 35, 52-53

M
Mann, Thomas, 92

Marx, Karl

Manifesto Comunista, 16 sobre a liberdade autodeterminante, 38,


74 sobre a razão instrumental, 98-99, 101-02

sobre tecnologia, 16-17 marxismo

sobre a razão instrumental, 101-02 sobre mercados livres, 109

sobre pornografia, 82

Mead, George Herbert, 42-43 mecanismos de mercado

inevitabilidade dos, 98-99, 109-10 razão instrumental nos, 17, 98-


99, 110-11

restrições dos, 110-11 ueja também capitalismo

medicina, 15-16, 105-106

Mill, John Stuart

Sobre a Liberdade, 48-49 mobilidade social, 66, 8 1 modernidade

definição da, 11-12 patologias da, 14, 19-20 ueja também


autenticidade;

individualismo; fragmentação modos de produção, 29-31


Montesquieu, Barão de, 53-54 moralidade

e autenticidade, 70-74

voz interior da, 35-37 ueja também relativismo, moral;

subjetivismo moral
mudança social, 29-31

e crescimento do narcisismo, 64, 81 multiculturalismo, 46-47, 57-58

ueja também diferença; diversidade mundo, desencantamento do,


12-13,

14, 95-96

narcisismo

autodestrutivo, 45

e autenticidade, 25-26, 45, 63-64, 77, 84

e autorrealização, 25-26, 45, 49, 63

e mudança social, 65, 81

e subjetivismo moral, 64

ueja também cultura do narcisismo natureza ueja ambiente

Nietzsche, Friedrich

sobre a vulgaridade da modernidade, 13

sobre autoescolha, 48-49

sobre moralidade, 72

sobre o niilismo, 67

organização social, 78, 98, 107-08 outros significativos, 43-44


P

participação dos eleitores, 114

ueja também participação política participação política

apatia em relação a, 13-14, 18-19,

24,32, 81, 114

e autenticidade, 32

e individualismo, 13-14

e políticas de defesa, 114

e razão intrumental, 18-19

e revisão judicial, 113-16, 118 ueja também cidadania;

comunidade; fragmentação

Pascal, Blaise, 119 patriarcado, 95-97 pessimismo cultural, 83-84,


95 pintura, 89

ueja também arte poder, 67-68, 73-74 poesia, 87-90

ueja também arte política de resistência, 117-19 políticas de defesa,


114

veja também cidadania, fragmentação, participação política

Pope, Alexander

Windows Forest, 88-89 pornografia, 82, 96-97 pós-modernismo, 67,


72-75

Pound, Ezra, 90-92


Proust, Marcei, 90-91

razão instrumental

aspectos benevolentes da, 104-06 deliberação moral, 18

e ambiente, 15, 18, 93, 95-96

e atomismo social, 96-100, 116, 118-19

e autenticidade, 29, 32

e autorrealização, 66-67

c capitalismo de mercado, 17, 98-99,110-11,118-119

e dominação, 95-98, 101-03, 107

e liberdade, 18, 30, 103

e liberdade autodeterminante, 101-02

e medicina, 15-16

e mudança social, 30, 81

e ordenamento social, 15

e participação política, 18-19, 111

e prestígio tecnológico, 15-16, 97

e razão desengajada, 102-06

e vida ordinária, 104


jaula de ferro da, 17, 99-102 recuperação da, 98, 105-07 resistência
a, 100-01

veja também razão moral razão moral, 18, 28, 41, 50, 78

veja também razão instrumental reconhecimento

da diferença, 58-60,118

das hierarquias sociais, 53-56

e autenticidade, 55, 57-58, 73

e feminismo, 57-58

e identidade, 53, 55-58, 60

e horizonte de significado, 59-61

e multiculturalismo, 57-58

na democracia, 54-55, 57-58

no nível pessoal, 57-58

veja também diálogo

Reich, Charles

The Greening of America, 83-84 relacionamentos instrumentais, 51,


58, 60-61,81

relacionamentos pessoais

e autorrealização, 26-27, 51, 53

e identidade, 53, 57

e reconhecimento, 57-58
veja também amor

relativismo

moral

autodestrutivo, 24-27, 46

e autenticidade, 26-27, 31,46-47 e individualismo, 23-24

e respeito, 23

e subjetivismo moral, 28, 46 suave, 23, 27-28, 31, 41, 46-48

suave

autodestrutivo, 24-25, 27, 46 e autenticidade, 31, 46, 47 e


subjetivismo moral, 28, 41 um princípio moral, 23, 27, 31, 52-53

responsabilidade, 82

ressonância pessoal, linguagem da,

92-93

revisão judicial

e fragmentação, 113-16

no Canadá, 118

nos Estados Unidos, 113-16 Revolução Industrial, 99-100 Rilke,


Rainer Maria, 87, 90, 92

Elegias de D nino, 87, 92

“Neue Gedichte”, 92

“The Panther”, 92
Roe versus Wade, 113-14

romantismo, 35-39

Rousseau, Jean Jacques

Contrato Social, 74

Discurso sobre a Desigualdade, 56-57 sobre a liberdade


autodeterminante, 37-38 sobre a voz interior da moralidade, 36-37

sobre o contrato social, 37-38

sobre o reconhecimento, 56-57

Santo Agostinho, 36

Schiller, Friedrich

Letters on the Aesthetic Education

of Man, 71-72

Shaftesbury, Earl of, 71

Shakespearc, William, 86-87

Shellcy, Percy Bysshe, 88-89 significativo, 45

veja também horizonte de

significado

sociedade

burocrática
aprisionamento pela, rejeitado, 33,99-101

e razão instrumental, 66-67, 98-99

e autenticidade, 52

e defesa de direitos, 113

hierárquica

e liberdade, 12, 65

identidade na, 53-55

reconhecimento na, 53-56

industrial

aprisionamento pela, rejeitado,

33, 99-101

mecanismos de mercado na,

109-10

republicana, 56-57

tecnológica

aprisionamento pela, rejeitada, 78-79

razão instrumental na, 66-67, 97, 100

resistência à, 100-01

veja também razão instrumental sociedades aborígenes, 96


solidariedade, 32, 41, 104
veja também cidadania;

comunidade; democracia subjetivação

da arte moderna, 86-93

c autenticidade, 85, 93

maneira e forma de, 85-86, 92 subjetivismo moral

e autenticidade, 28,31,46, 63-64, 92

e autorreferencialidade, 86, 92

e degradação ambiental, 93

e escolha, 46

c narcisismo, 64

e relativismo moral, 28, 46

rejeição do, 33, 46

Suprema Corte, Estados Unidos, 113-14

veja também revisão judicial

Teatro da Crueldade, 72

tecnologia

críticos liberais da, 96-97

e mudanças sociais, 29-30

e nivelamento da vida, 16-17


glorificação da, 16-17

melhores e piores modos de viver a,

97-98

recuperação da, 106, 117-19

Tocqueville, Alexis de

sobre a descentralização, 117-18

sobre a igualdade democrática, 13

sobre despotismo suave, 18-19, I 12

sobre liberdade política, 19

Trilling, Lionel

Sincerity and Authenticity, 25

vida animal, 12-14

veja também ambiente

vida ordinária, 53, 104

Wasserman, Earl, 88

Watergate, 113

Weber, Max

sobre a jaula de ferro, 17


sobre a razão instrumental, 98-99

Wordsworth, William

The Prelnde, 88-89

“Tintem Abbey”, 91

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Taylor, Charles

A ética da autenticidade / Charles Taylor ; tradução de Talyta


Carvalho. - São Paulo : É Realizações, 2011.

Título original: The cthics of authcnticity

Bibliografia.

ISBN 978-85-8033-019-9

1. Civilização moderna 2. Ética 3. Filosofia moderna

4. Self (Filosofia) I. Título.


11-05832                                     CDD-126

Índices para catálogo sistemático:

1. Ética e autenticidade : Filosofia 126

Este livro foi impresso pela Cromosete Gráfica e Editora para É


Realizações, em junho de 2011. Os tipos usados são da família
Sabon I.ight Std e Frutiger Light. O papel do miolo é pólen bold 90g,
e o da’capa, cartão supremo 300g.
Taylor argumenta que existem algumas falhas centrais sérias na
cultura moderna das sociedades ocidentais democráticas, mas não
é impossível tentar lutar contra elas. Não estamos presos em uma
“jaula de ferro” de determinismo político e econômico. Em
particular, idéias importam, especialmente aquelas sobre valor e
moralidade.

Assim, o filósofo vê as idéias tanto respondendo a contextos,


ajudando em sua existência, quanto os alterando uma vez que eles
surjam. Ele está claramente prescrevendo remédios para questões
ligadas ao nosso tempo, não respostas eternas a questões
incontestáveis. Esta é uma força distintiva do livro. E uma obra
provocativa, sensível, que encoraja as pessoas de uma maneira
efetiva a se tornarem mais atenciosas.

CHARLES TAYLOR é professor de Filosofia e Ciência Política na


Universidade McGill, e autor de As Fontes do Self e Argumentos
Filosóficos (ambos publicados pela Loyola).

Outros livros da Coleção Abertura Cultural

• Foucault e a Revolução Iraniana - As Relações de Gênero e as

Seduções do Islamismo

Janet Afary e Kevin B. Anderson

■ Os Caminhos para a Modernidade - Os Iluminismos britânico,

francês e americano

Gertrude Himmelfarb

• Os Intelectuais e a Sociedade

Thomas Sotvell

■ A Guerra Antes da Civilização - O Mito do Selvagem Pacífico


Lawrence H. Keeley

Richard Rorty
Universidade da 'Virgínia

“O livro é de primeira linha. Taylor é um dos melhores filósofos no


continente e um dos seus mais atentos políticos. De fato, eu o
colocaria entre os doze mais importantes filósofos que escrevem
atualmente, em qualquer parte do mundo. Este livro o torna
acessível a um público mais amplo. A escrita de Taylor combina
aqui, como fez no passado, clareza, vigor e perspicácia, e é legível
para qualquer pessoa instruída. Sua tentativa de mediar os
incentivadores e críticos é revigorante, original, bastante persuasiva
e, na minha opinião, absolutamente bem-sucedida.”

COLEÇ 0 RRERtUR CULtUR L

ISBN 978-85-8033-019-9
Table of Contents
1. A ETICA DA AUTENTICIDADE
2. Capítulo 1 | Três Mal-estares
3. Capítulo 2 | O Debate Desarticulado
4. Capítulo 3 | As Fontes da Autenticidade
5. Capítulo 4 | Horizontes Inescapáveis
6. Capítulo 5 | A Necessidade de Reconhecimento
7. Capítulo 6 | O Escorregar para o Subjetivismo
8. Capítulo 7 | La Lotta Continua
9. Capítulo 8 | Linguagens Sutis
10. Capítulo 9 | Uma Jaula de Ferro?
11. Capítulo 10 | Contra a Fragmentação
12. índice Remissivo

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