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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE – FURG

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO – PROPESP


INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA INFORMAÇÃO – ICHI
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH
MESTRADO PROFISSIONAL EM
HISTÓRIA, PESQUISA E VIVÊNCIAS DE ENSINO-APRENDIZAGEM

A (IN)VISIBILIDADE DA AMÉRICA LATINA NO ENSINO DE


HISTÓRIA: UMA PERSPECTIVA DOS ESTUDANTES DO ENSINO
MÉDIO PÚBLICO EM UMA ÓTICA FREIREANA

DÉBORA LAÍS FREITAS

RIO GRANDE
2019
DÉBORA LAÍS FREITAS

A (IN)VISIBILIDADE DA AMÉRICA LATINA NO ENSINO DE


HISTÓRIA: UMA PERSPECTIVA DOS ESTUDANTES DO ENSINO
MÉDIO PÚBLICO EM UMA ÓTICA FREIREANA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História da Universidade Federal do
Rio Grande – FURG, como requisito final para
obtenção do título de Mestre em Educação.

Orientadora: Prof.ª Dra. Rita de Cássia Greco dos


Santos.
Linha de Pesquisa: Prática e pesquisa no ensino de
História.

RIO GRANDE
2019
DÉBORA LAÍS FREITAS

A (IN)VISIBILIDADE DA AMÉRICA LATINA NO ENSINO DE


HISTÓRIA: UMA PERSPECTIVA DOS ESTUDANTES DO ENSINO
MÉDIO PÚBLICO EM UMA ÓTICA FREIREANA

Trabalho apresentado como requisito final para


aprovação na prova de Defesa de Trabalho de
Conclusão de Mestrado do Programa de Pós-
graduação em História, Mestrado Profissional em
História, pesquisa e vivências de ensino-
aprendizagem, da Universidade Federal do Rio
Grande – FURG, sob a orientação da Professora
Dra. Rita de Cássia Grecco dos Santos.

MEMBROS DA BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________
Presidente e Orientadora: Profª Dra. Rita de Cássia Grecco dos Santos
Universidade Federal do Rio Grande – FURG

__________________________________________________________
1ª Avaliadora: Profª Dra. Renata Braz Gonçalves
Universidade Federal do Rio Grande – FURG

__________________________________________________________
2ª Avaliadora: Profª Dra. Maria Augusta Martiarena de Oliveira
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul – Campus Osório

__________________________________________________________
Suplente: Profª Dra. Adriana Kivanski de Senna
Universidade Federal do Rio Grande – FURG

RIO GRANDE
2019
AGRADECIMENTOS

Eu pensei em escrever, neste texto, apenas a seguinte frase: “Não deu tempo”,
porque estou finalizando minha escrita no último dos últimos prazos. Esse fato nada tem a ver
com a potencialidade da pesquisa, com os resultados analisados, com limitações
metodológicas ou teóricas. A principal barreira para desenvolver e concluir a pesquisa fui eu
mesma.
Primeiramente, aquele sentimento clássico de todo mestrando de querer abarcar todas
as problemáticas de pesquisa do seu tema, que não cabe desenvolver com qualidade no prazo
do Mestrado, e sempre achava que o problema não seria plenamente esclarecido sem uma
série de “penduricalhos” extensos que dariam uma dissertação cada um.
Então, a segunda questão é a terrível “síndrome do impostor”, quando, mesmo
escrevendo e produzindo, sentimos que no fundo não entendemos nada e estamos escrevendo
a esmo, sem sentido, enganando a todos de que “nossa, ela faz mestrado, é inteligente”, e no
fundo, se sentir uma farsa. E, nesse processo de se sentir uma farsa, fiquei presa por vários
meses num limbo, numa inércia. Junto a tal síndrome clássica, pelo que li entre pesquisadores,
nesses dois anos e meio, tive várias crises de ansiedade, pois a vida não é só pesquisa, envolve
meu trabalho enquanto professora da Rede Estadual de Ensino e as pendências da vida
pessoal.
Tendo em vista todos esses fatores, só não abri mão do mestrado em função do apoio
de várias pessoas, e seria injusto com elas e comigo mesma não mencioná-las neste espaço
mais informal e humanizado do texto de pesquisa.
Antes de qualquer coisa, preciso agradecer minha orientadora, a professora Rita de
Cássia Grecco dos Santos. Ela acreditou no meu potencial de professora pesquisadora e, em
uma viagem do curso de Especialização em Ensino de Sociologia no Ensino Médio, me
alertou do processo seletivo do Mestrado em História e, se não fosse por ela, eu estaria até
hoje protelando em busca de um “momento ideal”, que tenho certeza que não viria.
Ao longo do processo, nesses baixos e médios (porque altos, uma pessoa ansiosa não
tem), tive a felicidade de ter o apoio de pessoas que são mais irmãs e irmãos do que amigos e
amigas. Minha cunhada e meu cunhado, Priscila e Guilherme, que compartilharam comigo
alguns anseios, e estavam mais preocupados do que eu com o passar do tempo, me davam
apoio, comida e conselhos em todos os momentos. Minha amiga Ana Paula, doutora em
Sociologia, que mesmo depois de muita coisa na vida, esteve ao meu lado virtualmente para
me dar conselhos, sejam psicológicos, sejam acadêmicos. Os amigos que ganhei na escola, o
Júlio, o Grégory e a Évelyn, essa última me dando um dos conselhos mais sábios, quando eu
transformei o texto da minha qualificação em duzentas coisas que eu não conseguiria abarcar
com o tempo, e então ela disse: “Guria, a banca elogiou tua proposta de pesquisa e fez
sugestões, não? ENTÃO, FAZ O QUE A BANCA MANDOU E NÃO SURTA”. E, então,
revi minha megalomania, e me detive na investigação da hipótese central.
Agradeço à minha família: mãe e pai, que não entendiam muito bem a relevância da
etapa acadêmica do mestrado, mas sempre estavam atentos em me ouvir e confortar quando
eu entrava em crise. Meu irmão, Celso, o guru da racionalidade, colocava minha cabeça no
lugar, cujos chimarrões pela manhã, mesmo que me ajudassem a matar tempo e protelar,
também eram fundamentais para a minha sanidade, porque ele sempre me aconselhava com as
suas palavras sensatas. Meu sogro e minha sogra também me aguentaram muitos dias na casa
deles, em função de projetos pessoais e da proximidade com a Universidade, por vezes
estudando, por vezes olhando para o nada, mas sempre muito orgulhosos da continuidade da
minha carreira profissional e acadêmica.
Bruno, meu namorado, meu quase marido. Não pude compartilhar com ele vários
momentos do processo de construção da nossa casa, e sinto um pouco de remorso por isso,
por não ter espaço emocional de me preocupar, sonhar e projetar várias coisas referentes à
nossa iminente vida a dois. Mas ele nunca me cobrou isso, sempre me ofereceu o peito para
descansar, chorar, respirar fundo e continuar.
Agradeço aos estudantes das turmas que leciono por, pacientemente, participarem
das aulas-oficinas, minha colega Érica, que compartilhou comigo o processo de ansiedade,
procrastinação e escrita, ao Júlio, novamente, por me auxiliar no processo de aplicação das
atividades. Agradeço à banca de Qualificação, que se repete agora na defesa, por confiarem na
potencialidade da pesquisa e instigarem novos questionamentos, alguns trabalhados no
desenvolvimento da pesquisa, e outros como possibilidade de extensão.
E sempre preciso lembrar-me da banda que abriu minha mente no âmbito social,
político e musical (porque nenhum dos meus amigos gosta de ska-core), o Ska-P. Suas
músicas são, desde a graduação, a fagulha para parar e pensar sobre temas e contextos
diversos, me estimulando a ler e aprender mais sobre cada tema sociológico, histórico e
político levantado em suas letras. Quando eu já estava quase desistindo de concluir o
mestrado, eles lançaram um novo álbum, com uma música tão, mas tão profunda, que parece
que alguém foi lá e disse: “Olha, escreve aí sobre a América Latina pra uma menina lá,
desiludida com a sua pesquisa sobre a invisibilidade da América Latina no currículo escolar”.
E, então, eles escreveram “Cruz, Oro y Sangre”:

Cada 12 de octubre mi desprecio y asco a la invasión


Me niego a festejar, sí, la colonización
Ningún libro em la escuela cuenta su versión
Matanza de nativos, crimen colonial
Por la tierra, Marichiweu
Por los mares, Marichiweu
Por los muertos, Marichiweu
Por la vida, Marichiweu

Ska-P – Cruz, Oro y Sangre, Game Over, 2018

Meu muito obrigada a todas e a todos!


RESUMO

FREITAS, Débora Laís. A (in) visibilidade da América Latina no Ensino de História: uma
perspectiva dos Estudantes do Ensino Médio Público em uma ótica freireana. 2019.
Dissertação (Mestrado Profissional em História) – Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande.

A pesquisa aqui apresentada parte de uma hipótese central que se originou a partir de
constatações empíricas, no ambiente de escola pública do Magistério Estadual do Rio Grande
do Sul, reforçada através da aplicação de questionários, de que os estudantes da Educação
Básica não identificam afinidade ou pertencimento à América Latina. Em busca de averiguar
tal hipótese, realizou-se pesquisa bibliográfica sobre a constituição do currículo escolar de
História, analisando a presença ou a ausência de temáticas, referentes ao subcontinente, nos
Parâmetros Curriculares Nacionais de História e efetivou-se a coleta de dados através de
aulas-oficinas (BARCA, 2004) com os estudantes de Ensino Médio, com o objetivo de
averiguar como esses percebem a América Latina. Para realizar a discussão das causas e
desdobramentos dos resultados da pesquisa, utilizou-se a teoria de Paulo Freire, especialmente
expressa em Pedagogia do Oprimido (1981), buscando relacionar a condição de invisibilidade
expressa nos documentos orientadores e a percepção dos estudantes com os conceitos de
consciência hospedeira e invasão cultural. Percebeu-se, na análise dos PCNs, a falta de
menções à América Latina nas orientações sobre o desenvolvimento da disciplina escolar de
História. Dessa forma, a partir da identificação dos elementos que evidenciam o afastamento
dos estudantes dos temas relacionados ao subcontinente, nesta dissertação propõe-se à
discussão da América Latina como tema gerador no ensino de História e por meio de uma
proposta de sequência didática baseada nas aulas-oficinas.

Palavras-chave: Ensino de História. América Latina. Ensino Médio. Invasão Cultural.


Consciência Hospedeira.
RESUMEN

FREITAS, Débora Laís. A (in) visibilidade da América Latina no Ensino de História: uma
perspectiva dos Estudantes do Ensino Médio Público em uma ótica freireana.
2019.Dissertação (Mestrado Profissional em História) – Programa de Pós-Graduação
emHistória, Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande.

La investigación presentada aquí parte de una hipótesis central que se originó a partir de
hallazgos empíricos en el entorno escolar público del Magisterio Estatal de Rio Grande do
Sul, reforzada a través de la aplicación de cuestionarios, que los estudiantes de Educación
Básica no identifican la afinidad o pertenencia a América Latina. En busca de analizar esta
hipótesis, llevamos a cabo una investigación bibliográfica acerca de elcostitución del
currículo escolar de Historia, analizando la presencia o ausencia de temas relacionados al
subcontinente en el currículo nacional de Historia, y llevamos a cabo la colección de datos a
través de “aulas oficinas” (BARCA, 2004) con estudiantes de EnsinoMédio (escuela
secundaria), con el objetivo de examinar cómo perciben América Latina. Para debatir las
causas y consecuencias de los resultados de la investigación, se utilizó la teoría de Paulo
Freire, especialmente expresada en la “Pedagogia do Oprimido” (1981), tratando de relacionar
la condición de invisibilidad expresada en los documentos Mentores y en la percepción de los
estudiantes con los conceptos de la “consciênciahospedeira” (conciencia intransitiva) y la
“invasão cultural” (invasión cultural). Se percibió, en el análisis de los números de vista de la
falta de menciones a América Latina en las directrices sobre el desarrollo de la disciplina
escolar de la historia. Además, los elementos identificados que evidencian la eliminación de
los estudiantes de temas relacionados con el subcontinente, proponemos la discusión de
América Latina como un “tema gerador” (tema generador) en la enseñanza de Historia y se
presenta una propuesta de secuencia didáctica basada en las clases de “aulas oficina”.

Palabras-clave: Enseñanza de Historia. América Latina. Enseñanza Media. Invasión


Cultural. Consciência Intransitiva.
LISTA DE SIGLAS

LDBEN – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional


ONU – Organização das Nações Unidas
PCNs – Parâmetros Curriculares Nacionais
SEDUC-RS – Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul
SEM – Setor Educacional do Mercosul
LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Percepção das figuras no Primeiro Ano 72


Gráfico 2 - Percepção das figuras no Terceiro Ano 72
Gráfico 3 –Percepção geral sobre a Figura 5 - Representação Tenochtithan, México 73
Gráfico 4 - Percepção geral sobre a Figura 6 – Rio de Janeiro, Brasil 74
Gráfico 5 - Países com aspectos culturais considerados interessantes e capazes de
acrescentar no desenvolvimento intelectual dos estudantes 80
Gráfico 6 - Países que os estudantes consideram estar entre o grupo de Muito Alto
Desenvolvimento Humano 81
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 -Cuzco, Peru 64


Figura 2 - Berlim, Alemanha 65
Figura 3 - Paris, França 65
Figura 4 - Representação de Tenochtitlán, México 65
Figura 5 - Teotihuacán, antiga capital do Império Asteca 66
Figura 6 - Rio de Janeiro, Brasil 66
Figura 7 - Representação de organização produtiva no Império Inca (Peru) 66
Figura 8 - Obra de Debret, representando o centro do Rio de Janeiro no século XIX 67
Figura 9 - Representação de Lisboa, Portugal, no período de expansão colonial 67
Figura 10 - Bairro Clacton, Londres 67
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Eixos temáticos 58


LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Índice de Desenvolvimento Humano – 2015 16


Tabela 2 – Frequência das menções dos estudantes sobre a América Latina 70
SUMÁRIO

SUMÁRIO 12

INTRODUÇÃO 14

1 QUADRO METODOLÓGICO 25

2 ESTADO DO CONHECIMENTO: AMÉRICA LATINA NO CURRÍCULO


BRASILEIRO 33

3 UMA ANÁLISE DA AMÉRICA LATINA NOS PCNs de HISTÓRIA 40


3.1 Aspectos introdutórios dos PCNs de História e o primeiro e segundo ciclos do
Ensino Fundamental 41
3.2 Terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental 48
3.3 Ensino Médio e as Orientações Educacionais Complementares aos PCNs 53

4 AMÉRICA LATINA PELOS ESTUDANTES: UMA ANÁLISE DOS REFLEXOSDA


INVASÃO CULTURAL 61
4.1 Análise da compreensão dos estudantes sobre América Latina 67
4.2 Uma perspectiva sob a ótica de Freire 76

5 TEMAS GERADORES E PROPOSTA DE SUPERAÇÃO DO PARADIGMA


OPRESSOR 86
5.1 Temas geradores 88
5.2 Sequência didática 91

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 99

REFERÊNCIAS 105
APÊNDICE 110
INTRODUÇÃO

A pesquisa aqui apresentada tem em seu tema uma construção longa e inusitada, que
parte desde o Trabalho de Conclusão de Curso de Geografia Licenciatura, no ano de 2011,
quando a música passou a ter importância na minha vida a partir dos discursos que dela
podiam ser refletidos e problematizados. No referido período, fui apresentada ao repertório de
uma banda espanhola de ska-core1chamada Ska-P, que chamava a atenção pelos temas das
letras que, quase que em sua totalidade, envolviam assuntos latentes sobre o mundo e sobre a
humanidade de forma geral, com a apresentação de contextos sócio-históricos em seu
conteúdo.
A pesquisa de conclusão da graduação foi realizada a partir da análise de alguns
temas identificados na obra da banda, especialmente no que concerne às discussões sobre
Geopolítica. Na ocasião, realizei a discussão dos temas Imperialismo, Globalização e
Movimentos Sociais partindo do ponto de vista trazido pelas músicas da banda Ska-P,
ampliando as discussões sobre o assunto, a fim de apresentar a obra musical como fonte de
análise e de produção acadêmica e, posteriormente, desenvolver uma aplicação pedagógica na
Educação Básica.
Quando ingressei no Programa de Pós-graduação em História da Universidade
Federal do Rio Grande, meu projeto tinha como problemática o uso das músicas do Ska-P
como possibilidade de construção de uma Educação Libertária, a partir dos temas que se
vinculam ao Ensino de História. Alguns desafios estavam postos para estabelecer a
justificativa da pesquisa: Por que a banda Ska-P em especial? O que é Pedagogia Libertária?
Qual a aplicabilidade de tais práticas pedagógicas na Educação Básica e pública no Brasil?
Quais temas da História podem ser abordados? Qual o diferencial da pesquisa, a partir do uso
da música como metodologia de ensino? Todos esses questionamentos geraram muita
angústia sobre os caminhos a serem trilhados na pesquisa.
Durante a caminhada enquanto professora do Magistério Público Estadual no Rio
Grande do Sul, procurei colocar em prática algumas propostas de discussão de temas a partir
das músicas da banda Ska-P em turmas do Ensino Médio na escola onde leciono há mais de
seis anos, Escola Estadual de Ensino Médio Lília Neves. Numa das possibilidades, discuti a
1
Ska-core, ou Ska Punk é a mistura de dois ritmos musicais: o Ska, de origem jamaicana e que mistura diversas
referências musicais da América Latina, utilizando especialmente instrumentos de sopro e guitarra, e o Punk
Rock, que tem sua origem na década de 1970 em várias partes do mundo, concomitantemente, tendo como
característica principal músicas de acordes rápidos e instrumentos básicos de guitarra, baixo e bateria. O
“Hardcore” é uma derivação do Punk Rock, com batidas mais intensas e geralmente com discurso forte de
contestação política nas letras.
15

temática da imigração com os estudantes do segundo ano, utilizando a música “Lucrecia”, que
relata o caso de uma imigrante da República Dominicana que foi assassinada em Madri, na
Espanha, vítima de xenofobia, em 1992. Em outras turmas de terceiro ano, trabalhei a música
“Los Hijos Bastardos de la Globalización” que discute a divisão internacional do trabalho e as
condições de trabalho infantil análogas à escravidão em países periféricos.
Para além da discussão dos temas, o que chamou a atenção em todas as turmas foi
que os estudantes não se sentiam confortáveis ouvindo a música na língua espanhola, o que
causou estranheza, tendo em vista que, especialmente no Rio Grande do Sul, estamos
permeados por traços do idioma em questão. Em meio ao estranhamento, eles alegaram que
não estavam acostumados com música cantada em espanhol, e que não tinham interesse,
inclusive, pela disciplina Língua Espanhola na escola, mesmo esclarecendo que gostavam da
professora e da sua metodologia.
Esses episódios levantaram um questionamento que me incomodou enquanto
professora das Ciências Humanas: por que os estudantes, estando tão próximos de países que
têm o Espanhol como idioma oficial, não se sentem à vontade com uma expressão cultural tão
marcante na América Latina como a língua espanhola? Dessa forma, passei a questionar o que
poderia gerar esse sentimento de distanciamento e a falta de reconhecimento com a língua e
com as culturas dos países do subcontinente, já que eles passaram por processos históricos e
sociais mais semelhantes ao Brasil do que a cultura e hábitos europeus e anglo-americanos.
Ademais, considero de profunda pertinência, no âmbito pedagógico e de constituição
de cidadania e identidade, o reconhecimento da história dos países vizinhos, que passaram por
processos e eventos semelhantes ao do Brasil, e a discussão dessas semelhanças que
contribuem para o entendimento do próprio contexto sócio-histórico do país, relacionando-se
com o mundo a partir da América Latina.
A partir das investigações prévias, foi realizada, de forma metodológica, a aplicação
de um questionário aos estudantes do Ensino Médio da Escola Estadual Lilia Neves, situada
no limite entre a zona urbana e a zona rural da cidade do Rio Grande, que tinha como objetivo
analisar qual o nível de apropriação cultural e de conhecimento os estudantes possuem,
através de um comparativo de interesses entre países do continente Europeu e os Estados
Unidos da América, e países do subcontinente América Latina. Percebi, enquanto professora
pesquisadora em conjunto com a orientadora desta pesquisa, algumas pistas que permitiram
desenvolver uma hipótese de interpretação e investigação a partir das teorias pedagógicas em
Paulo Freire.
16

Alguns resultados do questionário serão esmiuçados no decorrer desta dissertação,


mas é importante trazer uma leitura geral que contribui para a apresentação da pesquisa. O
primeiro aspecto abordado é em relação ao conhecimento social sobre os países, através da
questão: “Marca os países que tu acreditas fazerem parte do grupo de Muito Alto
Desenvolvimento Humano, segundo a ONU”, dentre as opções estava Estados Unidos da
América, Argentina, África do Sul, China, Espanha, Reino Unido, Chile e Brasil. Desses
países, segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2015, Estados Unidos da
América (EUA), Reino Unido, Espanha, Argentina e Chile fazem parte do bloco em questão.
De um universo de quarenta e um questionários, trinta e quatro estudantes não
marcaram Chile ou Argentina como países que pudessem fazer parte do bloco de nações com
Muito Alto Desenvolvimento Humano. Todos marcaram os Estados Unidos da América como
parte do grupo, e vinte e quatro estudantes destacaram o Reino Unido e/ou a Espanha.
Diante do exposto, é possível traçar uma linha de raciocínio que permite chegar ao
tema a ser desenvolvido pela pesquisa aqui proposta: Qual a importância da História da
América Latina no currículo da Educação Básica? De que forma os conteúdos sobre América
Latina são inseridos nele e como os estudantes se apropriam ou não dos referentes ao
subcontinente?
Considerando que a construção de identidade e da cidadania são postulados
importantes no debate da Educação Progressista, surge como fundamental para tal, a
discussão das origens pré-colombianas e da colonização europeia no continente Latino-
Americano, já que a miscigenação é uma característica marcante na constituição étnica, social
e histórica no Brasil. Além disso, uma educação histórica que preconize a valorização do
protagonismo dos sujeitos demanda teorias e metodologias que apresentem as diferentes
histórias e relacionem-nas ao presente.
O objetivo fundamental da pesquisa é analisar como a América Latina vem sendo
abordada no currículo escolar e como os estudantes apreendem e reproduzem os
conhecimentos sobre o subcontinente. Acredito que o aprofundamento dessa temática pode
colaborar para o desenvolvimento de uma identidade sociocultural, que promova a cidadania e
o reconhecimento do subcontinente como parte relevante da História.
Outrossim, também procuro entender, através de conjecturas teóricas, como se dá,
social e historicamente, a construção do entendimento de América Latina expressado pelos
estudantes através das ferramentas de estudo. Dessa forma, cabe apresentar os sujeitos da
pesquisa, a construção do tema e seus objetivos.
17

1. Sujeitos

A Educação, de forma geral no Brasil e no Rio Grande do Sul, assim como o sistema
de ensino atual, vem, nos últimos anos, inserindo uma proposta de reestruturação do Ensino
Médio, que enfatiza a inserção social e o exercício da cidadania através do trabalho. Karl
Marx (1989) afirmava, em seu materialismo histórico, que o trabalho é a base da existência
humana, como meio de desenvolvimento da consciência humana, material e de classes: o
trabalho como meio, e não como finalidade.
Entretanto, os postulados nos documentos relativos à reestruturação do Ensino Médio
no Rio Grande do Sul, como, por exemplo, a transição da “Proposta Pedagógica para o Ensino
Médio Politécnico e Educação Profissional Integrada ao Ensino Médio”, apresentada em
2011, para o “Documento Orientador da Reestruturação Curricular do Ensino Fundamental e
Médio”, elaborado pelo Departamento Pedagógico da SEDUC-RS, em 2016, e as “Diretrizes
Curriculares Nacionais da Educação Básica”, alterada em 2013, até o presente momento,
apresentam o trabalho e a pesquisa como métodos eficientes de ensino, mas a justificativa
para tal reestruturação se baseia na necessidade inserção no mercado de trabalho.
Outro aspecto relevante que pode se observar através da Medida Provisória Nº 746,
no ano de 2016, foi que o Governo Federal instituiu a implantação da chamada “Reforma do
Ensino Médio” ou “Novo Ensino Médio”, que assumiu a forma da Lei Federal Nº
13.415/2017, que altera alguns postulados sobre a “Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional” – LDBEN, sob o Nº 9.394, de 1996, que já havia sofrido alterações em outras
ocasiões, mas não com a proporção dada pela Lei Nº 13.415, que incide de forma estrutural
em todo o Ensino Médio.
Cito algumas das alterações que são importantes para a reflexão a que esta pesquisa
se propõe: a obrigatoriedade do ensino de Língua Inglesa a partir do sexto ano do Ensino
Fundamental (parágrafo 5º, do artigo 26) e no Ensino Médio (parágrafo 4º, do artigo 35A),
sendo que, anteriormente era obrigatória uma Língua Estrangeira Moderna, a cargo da
comunidade escolar; a instituição de “Base Nacional Comum Curricular”, que definirá os
direitos e os objetivos de aprendizagem no Ensino Médio (artigo 35A); a retirada da
obrigatoriedade das disciplinas de Sociologia e Filosofia; a organização do currículo escolar
em itinerários formativos (artigo 36); a possibilidade de convênios com instituições de
educação a distância (parágrafo 10º, inciso I, artigo 36); a revogação de caputs que tratam de
valorização da formação social, tais como:
18

I - domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção


moderna;
II - conhecimento das formas contemporâneas de linguagem;
III - domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao
exercício da cidadania.
Diante do exposto, o sistema de ensino vigente na nossa unidade federativa, e,
preponderantemente, no Brasil, vê o mercado de trabalho como veículo de inserção social e
desenvolvimento cidadão. Nesse sentido, através de grupos de discussão proporcionados pela
disciplina de Sociologia e por iniciativa da gestão escolar da Escola Estadual Lilia Neves, em
Rio Grande, foram discutidos os sentidos da escola e da educação para os estudantes de
Ensino Médio.
As falas dos estudantes convergiram para a concepção de que a escola e o Ensino
Médio é uma etapa a ser vencida para entrar no mercado de trabalho, reforçando o
entendimento, por parte deles, de que o diploma é apenas um meio de agregar currículo, pois
é exigência para assumir qualquer posto de trabalho. Dessa forma, percebe-se que eles não o
compreendem como capital cultural (BOURDIEU, 1998), capaz de promover mobilidade
social.
Considerando o quadro político, social e econômico vivenciado no Rio Grande do
Sul e no país, a consciência cidadã necessita ir além da “formação para o trabalho”. Em artigo
publicado no livro “Cidades Rebeldes”, Venício de Lima aponta que uma das principais
características das lideranças das manifestações do tipo ocupações nas cidades pelo mundo é a
idade (2013, p. 90). Percebe-se que os movimentos sociais e protestos que promovem o
questionamento e a crítica social possuem parcela muito maior de jovens do que de adultos
com mais de 25 anos, o que nos destaca também a questão da crise de representatividade que
essa parcela da população vem sentindo nos espaços públicos.
Ademais, muitas das manifestações que surgiram a partir de 2008 pelo mundo são
reivindicações de soluções para problemas que a parcela jovem da população precisa lidar, a
exemplo o desemprego nas manifestações na Espanha, e até mesmo os movimentos da
Primavera Árabe (HARVEY, 2012, p. 11-13). Essas constatações remetem à importância do
desenvolvimento pleno dos jovens estudantes de Ensino Médio, que serão diretamente
afetados pelas relações sociais e econômicas traçadas agora.
Tendo em vista a condição sistêmica da Educação Básica brasileira e no Rio Grande
do Sul, a potencialidade da formação dos jovens para o desenvolvimento crítico de
19

proposições e transformação diante dos problemas estruturais da nossa sociedade, justifica-se


o foco da análise das hipóteses, adiante apresentadas, nos estudantes de Ensino Médio de 15 a
18 anos, e ainda pela estruturação da Educação Básica no Brasil, de acordo com as diretrizes
estabelecidas pela LDBEN, de 1996, que agrega ao Ensino Médio a tarefa de consolidar e
aprofundar os conhecimentos adquiridos no Ensino Fundamental e o aprimoramento do
educando como pessoa humana, entre outros.
Sendo o Ensino Médio a etapa de aprofundamento das discussões sobre os conceitos
básicos abordados no Ensino Fundamental, cabe a esse ser o cenário de análise no que se
refere à reflexividade crítica acerca de temas, nos limites desta pesquisa, na área das Ciências
Humanas, e em especial da História, que possam contribuir para o desenvolvimento mais
profundo e pleno dos cidadãos, dando enfoque às questões que dizem respeito à América
Latina.
Dessa forma, as análises, que compõem esta pesquisa, foram realizadas em quatro
turmas de Ensino Médio da Escola Estadual de Ensino Médio Lília Neves, num bairro
periurbano na cidade de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, que recebe estudantes de várias
áreas rurais e urbanas. O projeto foi desenvolvido nas seguintes turmas: duas do primeiro ano,
com aproximadamente 25 estudantes cada, e duas do terceiro ano, com aproximadamente 15
estudantes cada. Essa escolha permite observar possíveis diferenças de perspectiva sobre os
temas entre os estudantes que ingressaram e os que estão saindo do Ensino Médio.

2. Educação e América Latina

Considerando as características do ensino público no âmbito federal e estadual no


Rio Grande do Sul e, ainda, a conjectura atual social, política e econômica que vivenciamos,
verifica-se a importância de rememorar percepções pedagógicas que favoreçam a
conscientização social e contribuam para o desenvolvimento pleno dos jovens estudantes,
percebendo-se capazes de compreender e transformar a realidade social na qual estão
inseridos.
Morin (2002) discute a relevância de se estudar a condição humana multifacetada: a
esfera individual e a esfera social, de forma que se evidencie a essência de cada indivíduo e da
comunidade através do entendimento da pluralidade, e nela a cultura, ou as culturas, são
importantes objetos de investigação que permitem a compreensão do sujeito e da comunidade
20

e, a partir desse entendimento, favorecer um dos saberes essenciais para a educação do futuro:
ensinar a condição humana, tornar a educação mais formadora de consciência e identidade.
Nesse sentido, a profundidade com que o tema América Latina vem sendo abordado
no ensino de História é relevante em virtude de se buscar as origens culturais ignoradas pela
cultura ocidentalizadora e eurocêntrica a qual estamos familiarizados. Entretanto, isso não
significa menosprezar a importância de culturas exóticas na formação da sociedade humana
latino-americana, mas sim de atentar para um fato que Morin aponta como “desintegração
cultural”:

As assimilações de uma cultura a outra são enriquecedoras. Verificam-se


também mestiçagens culturais bem-sucedidas, como as que produziram o
flamenco, a música da América Latina, o rai. Ao contrário, a desintegração
de uma cultura sob o efeito destruidor da dominação técnico-civilizacional é
uma perda para toda a humanidade, cuja diversidade cultural constitui um
dos mais preciosos tesouros (2002, p. 57).

Isso quer dizer que, para se ensinar de forma humanizadora e conscientizadora, é


necessário que se enxergue além do espaço social ao qual se está inserido no século XXI,
contextualizar os costumes que, muitas vezes, não são entendidos como uma globalização que
homogeneíza hábitos.
Paulo Freire (1981) é uma das referências sobre a educação conscientizadora, que
deve instigar a crítica e a curiosidade do educando e apresentá-la como ferramenta para a
emancipação. Na leitura do livro Pedagogia do Oprimido, é possível identificar algumas das
razões que podem ajudar a discutir a questão da falta de identificação dos estudantes com a
América Latina.
Freire argumenta que nossa sociedade é pautada em uma relação entre oprimidos e
opressores, na qual o oprimido possui uma consciência ambígua, ou “hospedeira”, já que os
homens, tanto oprimidos quanto opressores, estão imersos em uma realidade opressora, e,
então, tendem a pensar com naturalidade, normalidade a sua condição e ter como objetivo
chegar ao patamar de opressor ou manter essa condição, posto que:

A estrutura de seu pensar se encontra condicionada pela contradição vivida


na situação concreta, existencial, em que se ‘formam’. O seu ideal é,
realmente, ser homens, mas, para eles, ser homens, na contradição em que
sempre estivera e cuja superação não lhes está clara, é ser opressores
(1981,p. 33).
21

Como parte da cultura opressora, a ideia de “progresso” ligada ao desenvolvimento


econômico e tecnológico, a “cultura globalizada” que permite a penetração cada vez maior do
mundo do opressor como ideal, a questão do mérito e da conquista, entre outros, são
exemplos dos elementos que são tidos como características que proporcionam o sucesso e o
objetivo de sua vida material.
Nessa perspectiva, o conceito de “invasão cultural” apresentado por Freire como uma
instância do processo de dominação das massas, pode ser pertinente para entender a
importância da questão e constatar sua aplicabilidade, uma vez que:

Desrespeitando as potencialidades do ser a que condiciona, a invasão


cultural é a penetração que fazem os invasores no contexto cultural dos
invadidos, impondo a estes sua visão de mundo, enquanto lhes freiam a
criatividade, ao inibirem sua expansão (FREIRE, 1981, p. 86).

Essa discussão pode ser endossada por uma análise de outro questionamento
apresentado no questionário prévio, quanto à relevância social e cultural dos Estados Unidos
da América: “Relate, em uma breve frase, qual a relevância das características sociais e
culturais dos Estados Unidos da América na tua vida social”. Por ser uma questão aberta,
quatorze questionários não apresentaram resposta.
Dos vinte e sete questionários respondidos, onze respostas convergiam para um
interesse e proximidade com a cultura do país em questão, e treze destacaram aspectos quanto
ao desenvolvimento (social, econômico e tecnológico). Apenas três respostas consideraram o
país como irrelevante cultural e socialmente para suas vidas, ou seja, os estudantes
apresentam uma relação de proximidade maior com o país norte-americano do que com a
cultura e sociedade de países latino-americanos.
Em quais momentos os estudantes brasileiros da educação básica e pública têm
acesso a imagens, a produções e a conteúdos de origem latino-americana? Quando têm a
oportunidade de se aproximar da língua espanhola (geograficamente muito mais próxima do
que a inglesa, por exemplo)? Em que espaços a discussão e a apresentação de temas e
aspectos referentes às diversas culturas latino-americanas são promovidas? Tendo em vista a
globalização econômica e sustentando o conceito de invasão cultural, os estudantes pouco
terão contato com a América Latina em outros espaços de socialização que não sejam os
escolares.
22

A pesquisa aqui desenvolvida parte, basicamente, da seguinte hipótese: o conteúdo


de História da América Latina não é trabalhado no ensino básico de forma que proporcione ao
estudante a compreensão do conceito de América Latina, sem promover o aprofundamento de
temáticas referentes ao subcontinente, desconsiderando a potencialidade do seu estudo para a
constituição de uma identidade latino-americana e para a formação cidadã e cultural. Tal
constatação é oriunda da experiência empírica enquanto professora na escola de Ensino
Fundamental e Médio na qual desenvolvi esta análise.
Através de diálogos prévios e durante as atividades de coleta de dados, observei que
grande parcela dos estudantes, especialmente do Ensino Médio, não se reconhecem e não
percebem afinidades com características histórico-culturais pertinentes ao subcontinente
latino-americano. Muitos assumem certa antipatia com, por exemplo, a língua espanhola. Ou,
então, reconhecem maior aproximação cultural com países europeus ou com os Estados
Unidos do que com os países latino-americanos.
Parte dessa falta de aproximação pode ser derivada do processo de industrialização
desenvolvido especialmente no Brasil, na Argentina e no México, que tiveram atenção e
investimento muito maiores dos Estados Unidos do que os demais países, que foram
massacrados em suas tentativas de desenvolvimento autônomo.
Eduardo Galeano, no seu clássico As veias abertas da América Latina, mostra uma
história de dominação pela força e pelo capital por parte dos países europeus e,
posteriormente, dos EUA, que permite compreender a relação histórica e ao mesmo tempo os
símbolos que circulam na “abençoada” invasão norte-americana nos mercados: “[...] o
imperialismo atual irradiaria tecnologia e progresso, e até seria de mau gosto a utilização
desta velha e odiosa palavra para defini-lo” (2010, p. 292).
A aproximação com os países do “Primeiro Mundo” ocorre através dessa massiva
investida na dominação do mercado brasileiro, e a análise rasa do contexto histórico não
favorece o desenvolvimento da identificação com os demais países latino-americanos que
possuem características sócio-históricas semelhantes, que, no entanto, tiveram processos de
“desnacionalização” mais violentos, menos “naturalizados”.
A partir dessa observação, é necessário desenvolver e organizar técnicas que
permitam auferir se tal constatação se mostra verdadeira, tanto no âmbito escolar, como forma
de analisar como os estudantes enxergam o tema da América Latina, quanto nos processos de
estruturação curricular da disciplina de História ao longo dos anos e, ainda, no processo de
construção do pensamento e linguagem (FREIRE, 1981, p. 103) dos estudantes sobre o
23

subcontinente. O que motiva a investigação aqui proposta é a hipótese, a ser averiguada, de


que a América Latina não tem o espaço e/ou não é abordada na Educação Básica de forma
que proporcione aos estudantes aproximação e identificação sócio-histórica com os países que
fazem parte do subcontinente.
Cabe, assim, discutir as causas históricas e estruturais que promovem esse
afastamento, analisar documentos oficiais para delimitar as intencionalidades institucionais
acerca do papel da História escolar e da abordagem sobre a América Latina. Com isso,
pretende-se promover o entrelaçamento entre o contexto histórico e o entendimento de Paulo
Freire sobre a Pedagogia do Oprimido, identificando aspectos que possam desvelar a relação
entre os postulados teóricos de Freire, na sua interpretação da realidade social, e a forma
como os estudantes concebem o subcontinente. Além disso, apresento uma discussão
pedagógica acerca dos temas geradores como forma de superação da invisibilidade latino-
americana no currículo e no dia a dia escolar, avaliando a relevância da metodologia e
possíveis aplicações.
Pensando nos objetivos da pesquisa, estruturei o texto de forma a apresentar, no
primeiro capítulo, o quadro metodológico pensado para atender as demandas de dados em
todas as etapas da pesquisa. Em seguida, no segundo capítulo, realizo uma análise do estado
do conhecimento acerca dos estudos sobre América Latina no currículo, apontando quais
problemáticas são discutidas sobre o tema e as pesquisas relevantes para a construção da
problemática discutida nesta dissertação.
O terceiro capítulo traz a primeira análise sobre os dados investigados em relação aos
PCNs de História, por meio da interpretação do seu conteúdo, dividido nos subcapítulos:
“Aspectos introdutórios dos PCNs de História e o primeiro e segundo ciclos do Ensino
Fundamental”, já que os três documentos disponibilizados pelo Ministério da Educação
apresentam estrutura e discussões muito semelhantes na sua introdução da disciplina de
História; “Terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental”, que enfoca as especificidades da
disciplina de História nos Anos Finais e traz algumas especificidades sobre os conteúdos
sugeridos para serem trabalhados nesses ciclos; e “Ensino Médio e as Orientações
Educacionais Complementares aos PCNs”, tratando as particularidades do Ensino Médio e
analisando o documento chamado “PCN+” referente à disciplina de História, que se propõe a
ser como um guia para as escolas, para as gestões e para os professores, propondo conteúdos e
objetivos e discutindo conceitos a serem desenvolvidos no Ensino Básico.
24

No quarto capítulo, discuto as experiências com os estudantes do Ensino Médio


orientadas pela aula-oficina sobre América Latina, dividido em dois subtítulos: “Análise da
compreensão dos estudantes sobre América Latina”, no qual apresento alguns dados
quantitativos sobre a percepção dos estudantes identificada nas aulas-oficinas; e “Uma
perspectiva sob a ótica de Freire”, em que analiso os dados obtidos considerando a teoria de
Paulo Freire sobre o paradigma da realidade opressora, conceituando acerca dessa influência
na percepção dos estudantes sobre o subcontinente, e tratando, especialmente, dos conceitos
de “invasão cultural” e “consciência hospedeira”.
O quinto capítulo trata de discussões a respeito da metodologia de Paulo Freire sobre
os temas geradores (primeiro subtítulo: “Temas geradores”) e uma proposta de sequência
didática apresentada como produto das análises da pesquisa, constatando a necessidade do
enfoque na temática América Latina na disciplina de História (segundo subtítulo: “Sequência
didática”).
Por fim, o último capítulo refere-se às considerações finais, examinando a
pertinência do tema América Latina na construção histórica dos estudantes do Ensino Médio,
considerando a realidade opressora evidenciada nas colocações dos estudantes acerca do
subcontinente e a relevância de aprofundar as pesquisas e as propostas práticas de superação
das barreiras institucionais e culturais.
1 QUADRO METODOLÓGICO

Neste capítulo, apresento os instrumentos metodológicos aplicados durante o


processo de pesquisa que buscam contemplar os seus objetivos, justificando teórica e
metodologicamente a sua utilização. Trabalhei, num primeiro momento, a aplicação de
questionário prévio (Richardson, 2008) para consolidar a hipótese de pesquisa de que os
estudantes de Ensino Médio não apresentam interesse sobre aspectos sócio-históricos e
culturais da América Latina.
Ao longo da pesquisa, utilizei a análise de conteúdo (Kaplan, 2008; Bardin, 2006)
para identificar a intencionalidade do ensino de História, e a dimensão dada à América Latina
nos PCNs de História, elencando como categorias de análise os conceitos de identidade, de
cidadania e de América Latina. Com os estudantes, elaborei uma aula-oficina (Barca, 2004)
com o propósito de analisar o entendimento e o conhecimento dos estudantes de Ensino
Médio sobre o subcontinente e desenvolver a consciência histórica a partir da percepção dos
educandos.
Na análise dos dados obtidos através de escritas e observações, empreguei
novamente a análise de conteúdo para identificar categorias de análise sobre América Latina
(características culturais; características históricas; características geográficas; características
sociais; papel da escola na constituição do saber; papel das mídias na constituição do saber;
desconhecimento) que permitiram a construção teórica, com base nos postulados de Freire
(1981) sobre “consciência hospedeira” e “invasão cultural”.
Considerando a condição de professora pesquisadora nas turmas nas quais apliquei
os instrumentos metodológicos, é preciso ter como base uma metodologia de pesquisa que
considere essa peculiaridade. Assim, a pesquisa participante, discutida em Brandão (1990),
proporciona uma estruturação que considere os sujeitos da pesquisa como agentes e
possibilita uma ação dialógica que vise à análise do problema em questão e à transformação
da prática:

Para o quê serve o conhecimento social que a minha ciência acumula com a
participação do meu trabalho? Para quem, afinal? Para que usos e em nome
de quem, de que poderes sobre mim e sobre aqueles a respeito de quem, o
que eu conheço, diz alguma coisa? (BRANDÃO, 1990, p. 10).

Pensando nesses questionamentos, este estudo busca encaixar-se nos objetivos de


uma pesquisa significante para os sujeitos participantes, incluindo a minha parte enquanto
26

pesquisadora e professora. Dessa forma, trago novamente a indagação, que pauta esta
dissertação, a fim de abordá-la mais detalhadamente: Qual a utilidade social de se discutir o
tema da América Latina no currículo e no Ensino de História?
O objeto da investigação está no “pensamento-linguagem referido à realidade”
(OLIVEIRA; OLIVEIRA in BRANDÃO, 1990, p.20), ou seja, a forma como estão colocados
os conteúdos referentes à América Latina incide na maneira de pensar dos estudantes e como
se relacionam com o conhecimento sobre o tema. Este é o enfoque da pesquisa: Como os
estudantes se apropriam ou não dos conteúdos referentes ao subcontinente? Para tanto, é
preciso compreender como o conteúdo de História da América Latina é abordado
institucionalmente e como os estudantes se apropriam desse conhecimento, que culmina no
reconhecimento ou afastamento social e cultural.
A função do pesquisador/educador é entendida por Oliveira e Oliveira (in
BRANDÃO, 1990, p. 32) como a de facilitador de um distanciamento do grupo em relação à
sua realidade vivida, para que o tema possa ser percebido como objeto de estudo e ação:

O papel do pesquisador/educador será o de criar as condições para este recuo


crítico e o de organizar a temática geradora de tal forma que os protagonistas
possam, discutindo-a, decifrá-la e agir sobre ela.

Tal objetivo deve ser transformado em metodologia didático-pedagógica que permita


que os estudantes observem suas próprias práticas e preferências como reflexo de uma
“infraestrutura de dominação” (OLIVEIRA; OLIVEIRA in BRANDÃO, 1990, p. 30) que
limita as possibilidades e a compreensão da realidade em que estão inseridos, não permitindo
que os indivíduos visualizem novas perspectivas.
Cito, abaixo, um trecho interessante de um artigo do geógrafo David Harvey sobre os
problemas urbanos, que permite que reflitamos sobre a analogia:

Mas, ao contrário – e é aqui que a dialética retorna para nos assombrar –, a


cidade nos faz sob circunstâncias urbanas que não escolhemos. Como
poderia desejar um mundo alternativo possível, ou mesmo imaginar seus
contornos, seus enigmas e charmes, quando estou profundamente imerso na
experiência que já existe? Como posso viver em Los Angeles sem me tornar
um motorista de tal maneira frustrado que voto sempre pela construção de
mais e mais super-rodovias? (2013, p. 31-32).

Como é possível entender o mundo de outra maneira, se a visão que nos é dada é
limitada pelo entendimento das classes dominantes? A afirmação da percepção marxista de
mundo e de educação é a de que não aceitamos ou não reconhecemos, quiçá buscamos
27

soluções aos problemas cotidianos, pois esses não são problemas para o sistema de produção
capitalista em que vivemos. E o papel do pesquisador/educador seria de evidenciar tais
contradições como relevantes para a compreensão do nosso cotidiano e de nossas ações.
Dessa forma, discutir e demonstrar com e para os estudantes que a forma como eles percebem
a América Latina é importante para que reconheçamos nossas próprias adversidades, torna-se
o motor para a elaboração de métodos didáticos e pedagógicos que promovam tal reflexão.
A percepção empírica, através da pesquisa sobre o estado do conhecimento referente
à América Latina no currículo escolar, revela que o ensino de História está centrado na
compreensão da perspectiva europeia, a partir da colonização do subcontinente, ou seja, a
história latino-americana narrada pela conquista e não pela derrota.
Através da dicotomia opressor e oprimido presente em Freire (1981), podemos
considerar que mesmo os oprimidos, em uma sociedade opressora, acabam vendo no opressor
o sucesso, o caminho a ser seguido, e pouco há contestação sobre esse status quo, apenas os
oprimidos são os “derrotados”, sem as qualidades requeridas para ter sucesso, que é traduzido
no modo de vida do opressor. Os autores Oliveira e Oliveira (in BRANDÃO, 1990, p. 20-21),
exemplificam sua ação educativa a partir de algumas estratégias apresentadas por
Stavenhagen (1972), na busca de uma sociedade mais justa e democrática. Dentre elas,
destaco “privilegiar, como objeto de estudo, o outro pólo da relação de dominação”.
Ao considerar relevante a compreensão da história da América Latina a partir “de
dentro”, penso que a pesquisa participante aqui proposta se encaixa na busca de uma
percepção maior por parte dos estudantes acerca da realidade em que estão inseridos de fato.
A fim de colocar em evidência os discursos dos dominados, colonizados, oprimidos,
derrotados, que seriam as experiências sociais e históricas dos países latino-americanos e suas
perdas e problemas, em contraponto ao ponto de vista europeu, colonizador, no qual a
percepção parte de um entendimento de que eles trouxeram a civilização e o progresso e que
isso não pode ser negativo.
Todas as construções e análises, realizadas nesta pesquisa sobre o tema América
Latina no ensino escolar de História, têm por objetivo a busca por novas formas de se
perceber o mundo no qual os estudantes da Educação Básica e pública brasileira estão
inseridos. Ao encaminhar o diagnóstico do problema, a proposição última é discutir a
importância e a aplicabilidade de fontes e metodologias didáticas que capacitem os estudantes
a compreender a complexidade dos processos sócio-históricos em que estão inseridos e
desenvolver neles o “poder de pensarem, produzirem e dirigirem os usos de seu saber a
respeito de si próprios” (BRANDÃO, 1990, p.10).
28

É nesse objetivo último que se funda, de acordo com Oliveira e Oliveira (in
BRANDÃO, 1990, p. 27), a metodologia da pesquisa se classifica como pesquisa-ação ou
pesquisa participante, uma vez que o mais importante na análise sobre como a América Latina
é abordada. Os impactos dessa abordagem na percepção dos estudantes trabalham para:

[...] favorecer a aquisição de um conhecimento e de uma consciência


crítica do processo de transformação pelo grupo que está vivendo este
processo, para que ele possa assumir, de forma cada vez mais lúcida e
autônoma, seu papel de protagonista e ator social.

Delimitando os caminhos a serem trilhados, sintetizo o entendimento da pesquisa


como pesquisa-ação, a partir das etapas propostas por Oliveira e Oliveira (in BRANDÃO,
1990, p. 27), com o intuito de delinear as bases da estrutura metodológica da pesquisa. As
etapas a serem consideradas são: 1 inserção do pesquisador; 2 coleta da temática geradora do
grupo com quem se trabalha; 3 organização do material recolhido junto ao povo; 4 devolução
sistemática para discussão e ação.
Sobre a inserção do pesquisador, Oliveira e Oliveira atentam para que ele não force
uma aproximação ou uma imbricação com o grupo no qual será realizada a pesquisa, pois a
mesma parte de um ponto social diferente do grupo ao qual pretende investigar e atuar de
forma diversa. Enquanto professora, é fato que os grupos, dos quais as constatações partem,
são grupos dos quais faço parte ativamente, o que poderia dificultar o distanciamento crítico
da experiência de pesquisa.
Contudo, o ponto de partida é diferente e a relação estabelecida, ainda no cotidiano
escolar, posiciona o professor como apartado da realidade dos estudantes; ou seja, mesmo que
eu seja parte da realidade e do processo que pretendo analisar, o grupo está naturalmente
colocado em posição diferente. Além disso, o grupo social que utilizo para as análises – os
estudantes de Ensino Médio de uma escola pública – não é, necessariamente, o objeto ou o
problema de pesquisa. De fato, eles são a ponta para a qual se pretende incidir a partir da
discussão do problema: a abordagem dada à história da América Latina no currículo escolar e
sua relação com a identificação ou não dos educandos com o contexto em questão.
Já apresentei a observação que motivou a pesquisa na Introdução, de que os
estudantes não têm conhecimento sobre a América Latina, articulando, assim, a hipótese de
que ela não é trabalhada na Educação Básica pública de forma que possibilite a identificação e
colabore com a construção de uma percepção solidária dos estudantes brasileiros para com a
realidade latino-americana. Para atestar essa constatação, vinda, a priori, de atividades em
29

sala de aula e grupos de discussão com os estudantes de Ensino Médio sobre temas referentes
à América Latina – como cultura, história, política, riquezas –, utilizei, como instrumento de
averiguação inicial, a aplicação de um questionário em algumas turmas dos três anos
referentes ao nível de ensino.
O questionário foi elaborado e organizado seguindo algumas considerações de Gil
(1999, p. 127-128), referentes ao que deve ser levado em consideração na construção da
ferramenta, como a objetividade dos questionamentos e a organização das perguntas de
acordo com o que se pretende abordar. Assim, o questionário foi dividido em três blocos que
pretendem conhecer os sujeitos e compreender suas respostas: informações pessoais, como
idade e escolaridade dos pais, acesso à informação e artefatos culturais, referente aos meios de
comunicação aos quais têm acesso, e conhecimentos e interesses, que fazem indagações
acerca do interesse sobre o mundo e a relação dos sujeitos com o conhecimento que têm sobre
o mesmo.
Como o objetivo do questionário foi de reforçar ou enfraquecer a hipótese, e não
necessariamente comprová-la, e tendo em vista a faixa etária dos estudantes, foram propostas
dezessete questões, em sua maioria fechadas. Gil (1999, p. 123) atenta para o fato de que a
construção de respostas fechadas deve preceder de entrevistas ou procedimentos que
forneçam ao pesquisador pistas do que é ou não relevante no universo discursivo dos
pesquisados. Neste caso, a própria hipótese deriva de um intenso contato com os sujeitos
pesquisados, estudantes da escola na qual leciono. Assim, o desafio foi elaborar respostas que
não fossem distantes da realidade e da compreensão deles, sem apresentar termos e
expressões que indicassem o posicionamento enquanto pesquisadora e professora.
A fim de investigar algumas pistas que dão indícios sobre a hipótese de pesquisa,
outra etapa discute a legislação da educação brasileira, especificamente os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) da disciplina ou o componente curricular História, buscando
em que momentos sócio-históricos a América Latina entra nas discussões acerca do currículo
de História. Dessa forma, almejo analisar as intencionalidades e as abordagens sugeridas
institucionalmente na esfera federal que contribuem para o direcionamento da aprendizagem
dos estudantes.
A partir desses objetivos, realizei a análise de conteúdo, que proporciona a
interpretação de documentos de origens variadas através de instrumentalização, procurando
destacar significados presentes ou ausentes nas mensagens, aspecto pertinente para esta etapa
da pesquisa.
30

Para Kaplan (apud RICHARDSON, 2008, p. 222), a “[...] análise de conteúdo é a


análise estatística do discurso político”, o que pressupõe um trabalho quantitativo de
categorização e codificação dos elementos presentes em um documento. Por outro lado, a
análise de conteúdo é utilizada principalmente em pesquisas qualitativas, destacando-se como
sua função metodológica de “[...] compreender melhor um discurso, de aprofundar suas
características (gramaticais, fonológicas, cognitivas, ideológicas, etc.) e extrair os momentos
mais importantes” (RICHARDSON, 2008, p. 224).
Bardin (2006) afirma que a análise de conteúdo pode ter uma função exploratória (as
descobertas enriquecem a pesquisa) ou de administração de provas (parte-se de uma hipótese,
em forma de pergunta ou afirmação, e se procura confirmá-la a partir de uma prova obtida
através da análise de conteúdo). Desse modo, a técnica é relevante para se analisar quais os
postulados ideológicos estão presentes na construção dos PCNs, considerando que eles
impactam no trabalho pedagógico, e, consequentemente, na construção dos sentidos por parte
dos alunos sobre o tema América Latina.
Ainda segundo Bardin (2006), a aplicação da técnica, no presente caso, possui
função de administração de provas, ou seja, parte-se de uma hipótese para, em seguida,
procurar sua confirmação, que se dá a partir de uma prova obtida pela análise de conteúdo. De
acordo com pesquisas que serão explicitadas no capítulo seguinte, é possível afirmar que a
sistematização da Educação no Brasil sempre esteve envolvida com a situação social e
política na qual o país estava submetido.
A pré-análise envolve leitura superficial do material ou flutuante e escolha dos
documentos, atendendo-se à sugestão de Richardson (2008), suscetíveis a oferecer as
informações necessárias ao problema e aos objetivos previamente delineados, neste caso,
concentrando a análise nos PCNS referentes ao componente curricular História. Por
conseguinte, cabe realizar um tratamento descritivo em busca da temática em questão e
classificar as expressões associadas em categorias que permitam auferir a intencionalidade
política, social e ideológica dada ao tema América Latina.
Por fim, o principal objetivo desta pesquisa é entender e analisar de que forma os
estudantes têm acesso ao tema América Latina, qual o significado atribuído a ele, e confirmar
a hipótese central de que os estudantes não possuem relação de pertencimento com o
subcontinente por conta da abordagem institucionalmente dada ao assunto e discutir como
isso impacta na construção de consciência dos educandos sobre a realidade apresentada.
Moreira (2011) elucida que a pesquisa qualitativa em Educação, mais do que buscar
auferir hipóteses, deve ser interpretativa, de acordo com a perspectiva de Erickson (apud
31

MOREIRA, 2011, p. 47). A forma como e o que os estudantes entendem por América Latina
são permeados pelas interações simbólicas de um contexto social característico, e o espaço
escolar faz parte de uma construção social e cultural que influencia os significados atribuídos
aos temas discutidos em sala de aula.
Metodologicamente, significa que os procedimentos devem se concentrar nos
resultados, buscando interpretar os caminhos que condicionaram a perspectiva dos estudantes
sobre o tema. É essencial, ainda, justificar que a pesquisa interpretativa se orienta a partir de
uma bagagem teórica que irá perpassar toda a construção do quadro metodológico e da análise
dos registros:

[...] qualquer investigação é conduzida a partir de determinados paradigmas e


bagagens teórico-conceituais, fazendo uso de certas metodologias para
estudar certos fenômenos de interesse, os quais, obviamente, são
selecionados em função de tais paradigmas e referenciais teórico-conceituais
(MOREIRA, 2011, p. 14).

Tendo em vista que a própria temática de investigação foi pensada a partir de uma
observação empírica de sala de aula, e que a relevância da mesma se justifica a partir do
postulado teórico de Paulo Freire sobre a realidade opressora e o conceito de “consciência
hospedeira” que influencia nas construções sociais e simbólicas dos indivíduos, os
procedimentos metodológicos também visam compreender o que e a partir de que os
estudantes concebem o entendimento e opiniões acerca do subcontinente.
Oliveira e Oliveira (in BRANDÃO, 1990, p. 28) identificam as etapas a se considerar
na pesquisa-ação de viés participante, já abordadas nesta dissertação. Aqui, o mais importante
é a elaboração de procedimentos que qualifiquem a etapa dois, referente à coleta da temática
geradora do grupo com quem se trabalha.
Enquanto professora pesquisadora, que investiga a partir de constatações empíricas
da prática escolar, é necessário instrumentalizar uma prática didática que permita a análise do
conhecimento construído pelos estudantes até o momento. Na verdade, essa etapa é chave
para o desenvolvimento da pesquisa, já que a hipótese basilar, já endossada em questionário, é
a de que os estudantes possuem determinado entendimento sobre os temas sociais e históricos
que concernem à América Latina, que os distanciam e promovem a rejeição aos aspectos
sociais e culturais dos países vizinhos.
Na etapa da coleta de dados, optei, então, pela elaboração de um roteiro de aulas-
oficina, conceito trabalhado por Isabel Barca (2004), discutido e apontado por muitos
pesquisadores em Ensino de História como proposta inovadora que visa compreender, por
32

parte do professor, os elementos que contribuem para a construção da consciência histórica


expressa pelos estudantes nas atividades no âmbito escolar. É importante considerar sempre
os educandos enquanto sujeitos integrantes de uma realidade social e historicamente
construída, e que a sala de aula não é, de longe, o único espaço onde eles constroem seu
entendimento sobre o mundo.
Sobre a análise dos dados, a metodologia já apresentada da interpretação de conteúdo
serve como base na compreensão das informações obtidas nas sessões de discussão. Morgan
(apud Gondim, 2002) destaca como uma das modalidades de análise dos grupos focais a de
“multi-métodos qualitativos”, ou seja, a complementaridade de metodologias. E, nesse
sentido, é relevante considerar as orientações de Bardin (1988) sobre a aplicabilidade de
análise de conteúdo nesse momento, pois o autor sugere a categorização ou a busca por
menções sobre o tema em questão, a partir do problema da pesquisa e dos objetivos traçados.
Dessa maneira, a etapa final da pesquisa propõe um encaminhamento, a através do
diagnóstico de como, por que e quais as interpretações que o tema América Latina incide
sobre os estudantes, da “devolução sistemática para a discussão e ação” sugerida como etapa
final da pesquisa participante por Oliveira e Oliveira (in BRANDÃO, 1990, p. 27). E, em
meio a isso, construir uma proposta de reflexão sobre a realidade identificada acerca da
interpretação da América Latina pelos estudantes, sob a perspectiva de outros olhares, sempre
colocando os postulados teóricos de Paulo Freire em busca da consciência crítica e
libertadora, através de uma educação problematizadora que entende na consciência a
metodologia para se alcançar a liberdade (FREIRE, 1981, p. 60).
2 ESTADO DO CONHECIMENTO: AMÉRICA LATINA NO CURRÍCULO
BRASILEIRO

Tendo em vista que as categorias iniciais que suscitam a hipótese de que o ensino da
América Latina não é trabalhado na Educação Básica de forma que proporcione a construção de
uma identidade latino-americana nos estudantes, cabe analisar algumas pesquisas que abordam a
construção da disciplina de História e o ensino de América Latina.
Os debates que cercam a Educação estão sempre articulados com os contextos sociais e
históricos vivenciados no decorrer das transformações promovidas no espaço geográfico. No Brasil,
o ensino passa a ser organizado a partir da República, em meados do século XIX, e o Colégio Dom
Pedro II, especialmente depois da Reforma Rocha Vaz (1925), passa a ser visto como espelho das
propostas curriculares que balizavam as decisões de âmbito nacional. E é já nessa fase que se
evidencia a necessidade de incluir como objetivos da Educação Básica a formação da nacionalidade
e da identidade brasileira, tendo em vista a premência de afirmação nacional e o teor das políticas
públicas do primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945).
Sobre a construção dos currículos em comum, que se desenvolvem desde a época citada,
Katia Abud (2010, p. 35) salienta a importância da disciplina de História apresentada como
colaborativa à disciplina de Geografia na função de instigar o desenvolvimento da identidade e da
“educação política”. Tal preocupação se verifica, também, nos programas de 1942, tendo na
História a base para o entendimento das características que demarcam o “nacional” e contribuem
para a construção da identidade brasileira, seja pelo intento de fortalecimento do Estado nacional,
seja pela via do distanciamento da colônia portuguesa e seus ideais liberais, seja para a defesa de
projetos de governos elitistas, pois:

Os programas de ensino de História continham elementos fundamentais para a


formação que se pretendia dar ao educando, no sentido de levá-lo à compreensão
da continuidade histórica do povo brasileiro, base do patriotismo. Nessa
perspectiva, o ensino de Histórica seria um instrumento importante na construção
do Estado Nacional, pois traria a luz o passado de todos os brasileiros, e teria “... o
alto intuito de fortalecer cada vez mais o espírito de brasilidade, isto é, a formação
da alma e do caráter nacional” (ABUD, apud BITTENCOURT, 2010, p. 34).

A organização curricular da disciplina de História nas escolas, de acordo com Bittencourt


(2010), reflete uma valorização dos sistemas de produção e toma o desenvolvimento da história
como linear em direção ao progresso. Isso é facilmente percebido, segundo Bittencourt, através da
análise curricular dos anos finais do Ensino Fundamental, na qual a história do Brasil continua
sendo separada pelos ciclos econômicos (BITTENCOURT, 2010, p. 15-16), o que pode contribuir
34

para o entendimento, por parte dos alunos, de que os países que não acompanharam essa linearidade
em direção ao progresso, não fazem parte do mesmo contexto sócio-histórico do Brasil.
Quando o enfoque da pesquisa incide nos escritos sobre identidade, currículo e cultura
referentes à História da América Latina, comumente os trabalhos encontrados fazem referência à
construção da identidade nacional e alguns estudos sobre as representações da América Latina, mas
nada que discuta a profundidade e pertinência do tema na Educação Básica.
A dissertação de Candida Beatriz Alves (2013), da Universidade de Brasília, intitulada
“Integração, identidade e universidade na América Latina” pode se aproximar à discussão proposta,
tendo em vista que analisa a integração latino-americana através dos programas universitários e
discute o conceito de identidade, analisando quais aspectos da esfera universitária podem
proporcionar a sua construção, quais aspectos os estudantes consideram que aproximam e quais os
afastam dela.
Outro trabalho que se assemelha aos objetivos da nossa pesquisa é “O olhar do ‘outro’
sobre si mesmo: as representações de América nos manuais de formação de professores no Brasil e
na Argentina” (1900/1913), de autoria de Anelice Alves Marninho Santos (2013), que realiza uma
análise comparativa entre as representações feitas da América em manuais voltados para a formação
de professores no Brasil e na Argentina, evidenciando diferenças importantes no que concerne à
interpretação da América, que acaba refletindo na forma como o continente é trabalhado na
Educação Básica. Em resumo, o autor argentino analisado, Carlos Navarro y Lamarca, dá ênfase
aos processos de independência nas Américas Latina e Anglo-saxônica, diferenciando-as
especialmente sob esse aspecto. Já o autor brasileiro, José Francisco da Rocha Pombo centraliza sua
representação no processo de colonização: ibérico e inglês.
Ainda sobre a obra de Rocha Pombo, e indo além na temática sobre América Latina, em
sua tese, a professora Maria de Fátima Sabino Dias (1997) faz uma análise sobre a instituição da
América no currículo escolar, discutindo sobre fatores externos que contribuíram para o
posicionamento dado ao conteúdo no currículo de História. Nessa perspectiva, a autora também cita
a obra didática de Rocha Pombo a partir do parecer de Manoel Bonfim (1903), que observa que o
autor apresenta uma visão nacionalista dos heróis que contribui para o afastamento local entre
países com os quais o Brasil teve como rivais em alguns embates durante sua história ainda como
Império.
Nesse ponto, trago, brevemente, a contribuição de Mario Carretero (2010) sobre essa
relação entre o papel da escola em uma sociedade e na constituição de identidade. No que cabe a
essa discussão, o autor avalia que a função que cada sociedade atribui à escola é determinante para
dimensionar o espaço que a História ocupa e o direcionamento dado ao conceito de identidade e
identidade nacional. Afinal:
35

[...] nos deparamos com o fato de que muitos dos fios com os quais tais
pensamentos [a construção de identidade nacional pela história escolar] estavam
tecidos tinham sua origem em um lugar para além da escola. Em outras palavras,
na própria função que a sociedade atribuía a tal instituição e no sentido que, por sua
vez, esta última lhe outorgava (CARRETERO, 2010, p. 24).

Assim, o sentido de identidade nacional é permeado por simbologias além da escola, mas a
posição desta é de fundamental importância para o desenvolvimento de um Estado nacional. Quer
dizer que se à escola é atribuída à função de construção dessa identidade nacional, ela será
aparelhada ideologicamente para cumpri-la. Se a escola é apenas um espaço de transição de
crianças e jovens antes de ingressarem ao mercado de trabalho, será aparelhada ideologicamente
para cumprir tal intento, etc.
Os autores Thamar Kalil-Alves e Wellington Oliveira, no artigo intitulado “O ensino de
história da América Latina no Brasil: sobre currículos e programas”, apresentam um apanhado
sobre os contextos históricos e políticos em que o currículo de História é revisado e discutem a sua
implantação no estado de Minas Gerais. A partir da análise curricular desde a Primeira República
até o início do século XX, podemos averiguar que, quando enfatizado, o ensino da América no
Brasil visa fortalecer o pertencimento econômico à Europa.
Na segunda metade do século XX, a apresentação do conteúdo sobre a América Latina visa
fortalecer laços políticos e econômicos com o tipo de governo ditatorial presente em vários países
do continente, e a consolidação da hegemonia norte-americana sobre os países considerados
subdesenvolvidos. No início do século XXI, o que o estudo destaca é a implantação da história afro-
brasileira e indígena nos currículos como uma aproximação às raízes pré-colombianas.
Elza Nadai (1993) também aponta a aproximação institucionalizada pelos mecanismos
estatais com a Europa, já em 1892, em um projeto de reforma que insere as características do
progresso europeu como forma de valorizar a identificação com o continente em questão, colocando
em primeiro plano o colonizador português e os imigrantes europeus, enfatizando o caráter
civilizador e linear em direção ao progresso na História. “[...] o explicitado e os silêncios’ (FERRO,
34), em seu conteúdo foram determinados pelas ideias de nação, de cidadão e de pátria que se
pretendiam legitimar pela escola” (1993, p. 149). A autora destaca, também, a construção de um
ideário irreal de nação brasileira, distinta dos processos colonizadores experienciados pelo país.
A identidade sempre foi importante na definição da inserção ou não, e das abordagens
dadas aos conteúdos referentes à América Latina no currículo de História no Brasil, seja pela
aproximação com as civilizações europeias, enfatizando aspectos ocidentais de “sucesso” europeu
referentes à dominação e à administração, seja a partir da segunda metade do século XX,
aproximando política e administrativamente o Brasil aos demais países latino-americanos alinhados
36

às ditaduras e ao liberalismo econômico. A identidade nacional serve como controle político e


econômico, dado por uma unidade de características socioculturais, muitas vezes, favorecidas pela
própria conjuntura institucional e pelo papel dado à escola na sociedade em questão.
No texto de Oliveira e Gabriel (2013), as autoras apresentam a análise do discurso presente
em uma pretensa reorganização curricular alinhada ao MERCOSUL, discutida desde 1991 pelo
Setor Educacional do MERCOSUL – SEM. O principal tema discutido é a questão da identidade:
sua definição e através de que ela se constitui nos países integrantes do bloco econômico. Como se
trata de análise de discurso, as autoras valem-se dos pressupostos do sociólogo Ernest Laclau para
justificar que a identidade é construída pela interface conhecimento, cultura e poder, e pode
caracterizar-se por duas lógicas distintas: a lógica da equivalência e a lógica da diferença. Segundo
as autoras, "[...] são essas lógicas que garantem a produção dos diferentes sentidos sempre em
disputa em determinada formação discursiva" (2013, p. 477). De acordo com a análise do estudo em
questão, a estratégia do SEM dá-se a partir da lógica da equivalência, em busca de um
fortalecimento econômico diante da globalização.
Sobre currículo, traz-se à discussão especialmente duas pesquisas de estudo comparado. A
primeira, de Conceição e Zamboni (2012), diz respeito ao currículo da disciplina de História na
Argentina e no Brasil, buscando elementos que diagnostiquem a abordagem dada aos estudos da
América Latina. Assim, discute a forma como o conceito de História é abordado nos currículos
desses países e propõe o conceito de "histórias conectadas", que valoriza as similitudes dos
múltiplos processos históricos, ao mesmo tempo em que rompe com o conceito de História única,
alegando que um ensino que valorize as semelhanças é mais significativo do que aqueles currículos
que abordam de forma isolada os processos de construção nacional dos países desse subcontinente.
Traçando um paralelo, trago a pesquisa de Regina Célia do Couto (2012), na qual realiza
uma pesquisa em escolas de Jaguarão (Brasil) e Rio Branco (Uruguai), que analisa o currículo e a
forma como ele contribui para a formação de identidade nacional e cultural. A autora evidencia que
o desenvolvimento de identidade nacional nos países em questão (Brasil, Uruguai e Argentina) é
realizado de maneira que a sectariza, enfatizando as peculiaridades e diferenças entre as nações, o
que dificulta um reconhecimento de proximidade com os países ao redor.
O autor argentino Gonzalo de Amézola (2008) dedica-se a estudar a relação de teoria e
prática nas salas de aula argentinas, denominando o que observa como "esquizohistoria", tendo em
vista que a história aplicada nas escolas se distancia dos métodos do conhecimento acadêmico, em
um ciclo em que os estudantes ingressam e voltam às escolas como professores, sem romper com
esse distanciamento. A justificativa para essa "distorção" estaria na compartimentação e
especialização do seu conteúdo no currículo escolar e pelas limitações institucionais para se inovar
na educação em nível escolar básico (DE AMÉZOLA, 2008).
37

Nos estudos de Amézola, é indicado que os currículos de História estiveram sempre


impregnados de uma valorização do nacionalismo que, com o tempo, contribuiu para o
estabelecimento da ditadura no país. Além disso, as reformas propostas foram verticalizadas, o que
não colaborou com o esforço dos professores em aplicá-las. Essas são algumas constatações que se
assemelham ao contexto brasileiro.
Outros trabalhos de Conceição (2010) convergem para a discussão da consciência histórica
e da construção da identidade latino-americana, inclusive acerca da discussão sobre a implantação
da disciplina “Estudos Latino-americanos”, em 2003, no Colégio de Aplicação da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC). O texto em questão ainda realiza uma análise dos efeitos dessa
proposta na percepção dos estudantes acerca dos processos históricos, sociais e políticos da
América Latina. Observação importante constatada é o fato de que alguns apontamentos dos
estudantes confluam para a percepção de que a América Latina é um espaço subjugado que, apesar
disso, o progresso, tido como linear, conseguiu alcançar e prosperar.
Dos textos analisados, todos contribuem para algumas constatações chave para o
entendimento sobre a construção do conceito de identidade no currículo escolar e, especificamente,
na disciplina de História no Brasil. Primeiramente, a noção de linearidade histórica observada na
organização curricular de forma geral, mas especialmente na história das Américas e do Brasil, que
contribui para uma exacerbada valorização de características europeias, destacadas em Abud (2010)
e Nadai (1993), e abordadas secundariamente em outros estudos analisados.
Essa linearidade leva a um segundo ponto de interferência sobre o currículo escolar de
História e sua relação com a identidade: a profunda relação econômica e política nas definições
conceituais na Educação. Bittencourt (2010) destaca, em relação à História do Brasil, a estrutura
curricular voltada para os ciclos econômicos como ativadores das transformações históricas
lineares, por favorecer o sentido civilizatório do domínio europeu e, posteriormente, estadunidense,
sobre a construção social e econômica dos países latino-americanos. Kalil-Alves e Oliveira (2011)
também salientam a função política e econômica da organização dos currículos escolares.
Ponto central da análise que se desenvolve nesta pesquisa, vem da terceira constatação: a
noção de identidade que prevalece nos trabalhos analisados provém de uma valorização das
diferenças e rivalidades entre os países, ou seja, a identidade nacional prevalece, e ela é construída
através da diferenciação e aproximação com países bem-sucedidos economicamente, o que dificulta
a aproximação entre países latino-americanos. Isso se observa, especialmente, nos trabalhos
comparativos aqui discutidos, como o de Maria Sabino Dias (1997) que destaca os aspectos de
rivalidade entre países observados nas primeiras obras didáticas do início do século XX, e os
trabalhos de Conceição e Zamboni (2013) e Couto (2012), que evidenciam os currículos entre
38

Uruguai, Argentina e Brasil, marcados por uma identidade nacional apartada dos vizinhos, por
questões políticas, econômicas e/ou culturais.
Postas essas características do ensino de História escolar, justifica-se a análise e a
discussão propostas nesta dissertação a partir do entendimento de Paulo Freire. Na leitura do livro
Pedagogia do Oprimido (1981), é possível identificar algumas das razões que ajudam a discutir a
questão que proponho sobre a falta de identificação dos estudantes com a América Latina.
Freire argumenta que nossa sociedade é pautada em uma relação entre oprimidos e
opressores. Essa relação, reforçada no modo de produção capitalista e associada a processos
históricos do imperialismo ocidental, constrói sociedades que não se sentem merecedoras porque
não possuem determinados hábitos e produtos. A reprodução desse modo de vida é resumida em
uma citação de Freire (1981, p. 24): “Opressores geram opressores, e muitos que são oprimidos
almejam ser opressores por causa do ‘poder’ de opressão, que por muitos oprimidos é tido como
objetivo”. Isso ajuda a entender porque os estudantes não se identificam com a cultura latino-
americana, tida como menor, visto que o modo de vida ocidental europeu e norte-americano é o
objetivo, é o melhor, e a cultura latina representa os que perderam.
Nessa perspectiva, o conceito de invasão cultural apresentado por Freire como uma
instância do processo de dominação das massas pode ser pertinente para o entendimento da
importância da questão e para constatar sua aplicabilidade, pois:

Desrespeitando as potencialidades do ser a que condiciona, a invasão cultural é a


penetração que fazem os invasores no contexto cultural dos invadidos, impondo a
estes sua visão de mundo, enquanto lhes freiam a criatividade, ao inibirem sua
expansão (FREIRE, 1981, p. 86).

Além disso, percebemos que os dispositivos institucionais abordados nas pesquisas aqui
trazidas, mantêm, de uma forma ou outra, o sentido de sectarização (FREIRE, 1981, p. 20). A
sectarização do mundo, em países pobres e ricos economicamente, produz uma generalização em
que os próprios oprimidos, pertencentes aos países suprimidos pela economia hegemônica e
opressora, idealizam a realidade opressora como objetivo, e se distanciam da própria história e
cultura em prol de uma “homogeneização” que é idealizada, mas não realizada. A condição
ambígua dos oprimidos como “hospedeiros” do ideal opressor, já divide na essência a massa
oprimida.
A partir desses conceitos reconhecidos em Freire, as leituras sobre o tema ensino de
América Latina parecem permeadas pela relação oprimido e opressor e reflexo do processo de
sectarização, que serão entrecruzados na pesquisa. Para analisar como o tema de América Latina é
apresentado aos estudantes brasileiros, analiso os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) da
disciplina de História, na busca por menções à temática e à relação estabelecida ou não dela com o
39

desenvolvimento dos conceitos de identidade e cidadania.


3 UMA ANÁLISE DA AMÉRICA LATINA NOS PCNs DE HISTÓRIA

Tendo em vista a realização de uma breve revisão bibliográfica sobre o ensino escolar de
História no Brasil e as constatações acerca da intencionalidade de uso institucional da disciplina
estar direcionado à formação de identidade nacional – especialmente para reforçar a distinção e
sustentar modelos econômicos e políticos de interesse governamental – busquei, na análise dos
documentos reguladores do currículo escolar da Educação Básica, reconhecer termos e expressões
que apontam as intencionalidades e as respectivas abordagens sugeridas em relação ao conteúdo
América Latina. Acredito que tal temática contribui, de maneira contundente, para o
desenvolvimento do conceito de identidade e o aumento da relevância dada ao subcontinente na sua
construção.
Considerando que as principais fontes de pesquisa constituem-se em documentos oficiais
legislativos, é relevante diferenciar e justificar a escolha pelo uso da análise de conteúdo ao invés da
análise documental. Nesse sentido, segundo Bardin (2011, p. 44), uma das principais características
da análise de conteúdo é a inferência sobre as condições de produção e as consequências
interpretativas do documento (ou outra expressão linguística), ou seja, o objetivo da análise
determina ser sobre o conteúdo da mensagem e não de categorização e representação documental.
Moraes (1999) direciona a utilização da análise de conteúdo em pesquisas qualitativas e
atenta para a importância fundamental de objetivos claros para delimitar os dados relevantes a
serem observados no uso da metodologia. Para facilitar a sua construção e interpretação, o autor
apresenta uma classificação a partir do ponto de análise:

Esta classificação se baseia numa definição original de Laswell, em que este


caracteriza a comunicação a partir de seis questões: 1) Quem fala? 2) Para dizer o
que? 3) A quem? 4) De que modo? 5) Com que finalidade? 6) Com que resultados?
Utilizando esta definição podemos categorizar os objetivos da análise de conteúdo
de acordo com a orientação que toma em relação a estas seis questões (1999, p. 3).

Como a intenção, nesta etapa da pesquisa, é analisar o discurso institucional sobre o tema
América Latina no conteúdo de História, os objetivos da análise são balizados a partir dos seguintes
questionamentos: “para dizer o que?”, isto é, na legislação orientadora da Educação Básica no
Brasil, qual a intencionalidade do ensino de História? Quais os princípios/objetivos estabelecidos
para a disciplina? Eles agregam importância ao conteúdo de América Latina? A partir de que
perspectiva?
Esses questionamentos auxiliam na emergência de categorias de análise, pois as unidades
de registro, identificadas na leitura dos documentos, visam identificar e discutir o conteúdo
ideológico que responde a tais perguntas. Ademais, considerar o “com que finalidade?”, colabora
41

para que a análise se direcione também para os discursos teóricos que se pretendem confirmar a
partir da hipótese de pesquisa. Depois de posicionar a relevância da América Latina no currículo de
História, quais aspectos a concepção dada reforça? Ela favorece a ampliação ou redução da
importância da história latino-americana na construção cidadã e de identidade? Enfatiza ou
distancia a relação sócio-histórica entre os países do subcontinente?
Partindo da pré-análise descrita por Bardin (2011, p. 125), a partir da premissa da hipótese
já apresentada sobre o enfoque e a dimensão sobre a América Latina no Ensino de História, foram
selecionados os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs, do componente História, dos ciclos do
Ensino Fundamental e Ensino Médio, uma vez que o embasamento que os estudantes apresentam
no Ensino Médio é reflexo do direcionamento do aprendizado no Ensino Fundamental. Tendo em
vista a efemeridade das reformas propostas a partir de 2017 em esfera federal, como a discussão da
Base Nacional Comum Curricular (BNCC) corrente, optou-se por discutir tais modificações em
outro momento.

3.1 Aspectos introdutórios dos PCNs de História e os Primeiro e Segundo Ciclos do


Ensino Fundamental

Na seção “Apresentação Geral do PCN de História” referente ao primeiro e segundo ciclos


do Ensino Fundamental, o documento apresenta uma contextualização do histórico da construção
das disciplinas escolares, relatando os objetivos das legislações desde o “Decreto das Escolas de
Primeiras Letras”, em 1827. Enfatizando, no que concerne à História aos marcos civis e à história
sagrada, a inauguração do Colégio Dom Pedro II, em 1837, e apontando que até o final do século
XIX, mesmo com o crescimento do espectro de abrangência da história escolar, o civismo ainda era
tido como objetivo principal da disciplina, estendido ao patriotismo a partir da Proclamação da
República em 1889, e o distanciamento da história sagrada, considerando a civilização – a ação
humana – como principal agente histórico.
As reformas no século XX, de acordo com o documento, foram direcionadas ao controle
centralizado da Educação. Nesse momento, surge a única menção ao continente americano, e se
percebe de pronto a posição da História Americana nos currículos institucionalizados nesse período:

A partir de 1930, com a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública e a


Reforma Francisco Campos, acentuou-se o fortalecimento do poder central do
Estado e do controle sobre o ensino. O ensino de História era idêntico em todo o
País, dando ênfase ao estudo de História Geral, sendo o Brasil e a América
apêndices da civilização ocidental. Ao mesmo tempo refletia-se na educação a
influência das propostas do movimento escolanovista, inspirado na pedagogia
norte-americana, que propunha a introdução dos chamados Estudos Sociais, no
42

currículo escolar, em substituição a História e Geografia, especialmente para o


ensino elementar (BRASIL, 1997, p. 21).

A abordagem dada à América, a partir da sua ocidentalização, omite a construção histórica


autóctone, e os conflitos gerados pelo encontro de dois entendimentos de mundo e sociedade que se
reconhecem no continente a partir da colonização europeia. Além disso, nesse momento da
historiografia do ensino escolar, principalmente de História, se identifica também a aproximação
com as concepções teóricas e metodológicas dos Estados Unidos, concomitante com a inserção do
poder econômico desse país de forma incisiva na industrialização brasileira (GALEANO, 2010, p.
294-295). Assim, o entendimento de civilização e modernidade passa lentamente a ser transferido
do europeu colonizador para o norte-americano (estadunidense) economicamente bem sucedido.
Seguindo a historiografia apresentada pelo documento, a fim de destacar passagens que
indiquem caráter ideológico da construção da disciplina escolar de História, a partir da metade do
século XX, o seu currículo passa a se concentrar ainda mais nos aspectos econômicos, tecnológicos
e científicos do desenvolvimento das civilizações com o intuito de reduzir diferenças sociais e
raciais provenientes da ênfase da história escolar nas guerras. De fato, Bittencourt (2010, p. 14)
sinaliza que até a década de 1990 ainda se percebe nos currículos uma periodização voltada aos
ciclos econômicos do Brasil.
A substituição gradual das disciplinas de História e Geografia pelos Estudos Sociais, na
segunda metade do século XX, reforça o que já foi apresentado anteriormente nesta pesquisa em
relação à busca por identidade nacional, uma vez que condensa as duas disciplinas escolares com o
enfoque nos marcos históricos que evocam o sentimento de orgulho nacional, muitas vezes
distanciando a história do Brasil da história latino-americana, com a justificativa da soberania
nacional.
Ademais, destaca-se a inserção da concepção de pré-requisitos, que passam a organizar o
currículo da Educação Básica a partir de então. O documento afirma que essa mudança na estrutura
curricular da Educação contribuiu para a desqualificação docente e afastamento entre a pesquisa e o
ensino, pois o aperfeiçoamento para a disciplina de Estudos Sociais não aprofundava as discussões
no âmbito da produção do conhecimento científico.
A partir do período de redemocratização na década de 1980, as disciplinas de História e
Geografia são retomadas em meio à demanda diversificada de estudantes de diversas classes
sociais, que passaram a acessar a escola. A realidade escolar vivida começa a pautar as mudanças
curriculares e metodológicas para compreender e ajustar as necessidades da sociedade que se
reconstituía. Nesse momento histórico, a análise apresentada no documento cita a crítica ao
“eurocentrismo”, na qual os historiadores e os professores reivindicaram que essa posição histórica
restringia a capacidade interpretativa e crítica dos estudantes:
43

Reafirmar sua importância no currículo não se prende somente a uma preocupação


com a identidade nacional, mas sobretudo no que a disciplina pode dar como
contribuição específica ao desenvolvimento dos alunos como sujeitos conscientes,
capazes de entender a História como conhecimento, como experiência e prática de
cidadania. (BRASIL, 1997, p. 25).

O que se constata nesta análise historiográfica do ensino escolar de História é que o


enfoque no reconhecimento dos processos históricos como constituintes da sociedade é muito
recente na Educação brasileira. Desde o início da organização da mesma, o ensino de uma forma
geral, e especialmente o ensino da disciplina em questão, vem construindo uma cultura de
afastamento dos eventos estudados e do contexto social no qual os estudantes e professores estão
imersos.
Do reforço ao civismo e ao nacionalismo, do “eurocentrismo” até o Ensino de História ser
visto como importante na construção da consciência histórica e social e como meio de proporcionar
ferramentas para a análise crítica da sociedade, se passa mais de um século pavimentando as bases
de uma História escolar excludente.
Após a seção Apresentação, o documento apresenta uma síntese da relação entre o
conhecimento histórico científico e o conhecimento histórico escolar, em que se afirmam as
transformações no entendimento histórico de tempo, das civilizações e do progresso, admitindo uma
compreensão da ciência histórica a partir das rupturas e descontinuidades. Entretanto, permanece
como objetivo específico da História escolar a construção da identidade.
A definição teórica da apreensão desse conceito não é explicitada no documento, mas a
origem da preocupação com a identidade pode fornecer pistas sobre a orientação do preceito
utilizado:

Para a sociedade brasileira atual, a questão da identidade tem se tornado um tema


de dimensões abrangentes, uma vez que se vive um extenso processo migratório
que tem desarticulado formas tradicionais de relações sociais e culturais. Nesse
processo migratório, a perda da identidade tem apresentado situações alarmantes,
desestruturando relações historicamente estabelecidas, desagregando valores cujo
alcance ainda não se pode avaliar. Dentro dessa perspectiva, o ensino de História
tende a desempenhar um papel mais relevante na formação da cidadania,
envolvendo a reflexão sobre a atuação do indivíduo em suas relações pessoais com
o grupo de convívio, suas afetividades e sua participação no coletivo (BRASIL,
1997, p. 26).

Carreter desenvolve uma discussão sobre identidade e consciência histórica a partir de


experiências de países diversos sobre a História na perspectiva dos marcos históricos, o que Novais
(2011, p. 31) caracteriza como historiografia tradicional, que prioriza os fatos históricos como
narrativas em si mesmas, de forma distinta da historiografia moderna, que vai analisar as narrativas
44

históricas em uma aproximação maior com as Ciências Sociais, dando maior contextualização aos
processos históricos.
Dentre as problemáticas identificadas, Carretero aponta a globalização como basilar na
inserção de um novo paradigma no entendimento dessas questões, pois o intercâmbio econômico,
cultural e de pessoas, intensificado por esse processo, torna evidente a importância do “outro” na
construção de consciência histórica, posto que:

As situações analisadas têm em comum o fato de que expõem mais uma vez como
deveria ser reescrita e ensinada a história na atualidade diante da presença
constitutiva e também dissolvente de “outros” fora e dentro do espaço nacional
territorial. “Fora desse espaço” quer dizer além, mas também “no interior do
outro”, que pode ser o de novas identidades supranacionais, como Europa, e de
modo mais geral remete ao enfoque comparativo intercultural, o qual define um
campo comum de competência (CARRETERO, 2010, p. 141).

Os PCNs acompanham a proposição de um movimento de revisão da História escolar em


consonância com as mudanças sociais. No caso do Brasil, a concomitância de diversas vertentes
culturais existe desde as comunidades indígenas, ao europeu colonizador e aos africanos
escravizados. Essa tríade, por muito tempo, foi ensinada como exótica e pacífica.
Situação evidenciada pelo fato de darmos atenção às demandas indígenas e
afrodescendentes no currículo escolar apenas no século XXI, indicando que essa diversidade era
excluída da discussão histórica escolar. Os “outros” sempre estiveram no Brasil, a globalização
econômica e o intercâmbio cultural facilitado escancaram essas diferenças e a legislação
educacional brasileira tem assumido lentamente tais demandas.
Na seção seguinte, o documento enfoca as especificidades do saber histórico escolar e
elenca os conceitos de fato histórico, sujeito histórico e tempo histórico como fundamentais na
consideração da transposição do saber científico ao escolar, a partir dos “conjuntos de
representações sociais do mundo” (BRASIL, 1997, p. 29) do grupo escolar. Essa parte do texto
busca elucidar, didaticamente, as diferentes concepções que podem ser adotadas dos conceitos
citados, que levam a construções metodológicas diversas.
Por meio das seções que abordam os objetivos gerais e a seleção de conteúdos da História
para o Ensino Fundamental, ainda não é possível mensurar a relevância dada aos temas referentes à
América Latina especificamente. Entretanto, através de algumas expressões utilizadas no texto, é
possível reconhecer alguma significância relativa à questão do outro na construção da identidade,
como é demonstrado em tópicos relativos aos objetivos do ensino de História: “reconhecer
semelhanças e diferenças” e “respeito à diversidade de povos e indivíduos” (BRASIL, 1997, p. 33).
Por se tratar ainda do PCN referente ao primeiro e ao segundo ciclos do Ensino
Fundamental (do 1º ao 5º ano), percebe-se um direcionamento maior às discussões locais
45

perceptíveis no dia a dia dos estudantes da faixa etária, como a questão entre o rural e urbano, uma
vez que:

A proposta privilegia, assim, no primeiro ciclo, a leitura de tempos diferentes no


tempo presente, em um determinado espaço, e a leitura desse mesmo espaço em
tempos passados. No segundo ciclo, sugere estudos sobre histórias de outros
espaços em tempos diferentes. A predominância está voltada para as histórias
sociais e culturais, sem excluir as questões políticas e econômicas (BRASIL, 1997,
p. 35).

Assim, a segunda parte do documento sobre o Ensino de História reforça a importância da


percepção e análise dos contextos locais para a construção dos conceitos históricos relevantes à
História escolar. Desta forma, encontram-se no texto trechos que se utilizam das dicotomias entre
“semelhanças e diferenças” e “permanências e transformações”. O contexto local é o ponto de
partida, o pré-requisito para construções mais amplas nas demais etapas da educação, e, para isso,
são usadas fontes orais e iconográficas próprias à faixa etária dos estudantes do primeiro ciclo.
Isto posto, é possível reconhecer um entendimento piagetiano sobre o desenvolvimento
social e cognitivo do ser humano (1975), considerando que no primeiro ciclo (dos 6º aos 8º anos) as
crianças entram na fase das operações concretas e já conseguem buscar interlocuções a partir do
contexto vivido que, na teoria de Piaget, é considerado como o "pensamento lógico", o
entendimento das relações pessoais e diretas, com contextos mais amplos, aplicado a problemas
reais, apresentados de modo concreto. Entre os objetivos do primeiro ciclo, que podem valorizar a
construção de um entendimento coletivo de identidade, retoma-se a relação comparativa: identificar
diferenças culturais, permanências e transformações no contexto local.
Entre as páginas 40 e 43 do PCN, que apresentam a proposta de eixo temático da História
local e cotidiano, algumas expressões aparecem com uma frequência significativa na narrativa do
documento, como codificado a seguir:

o “diversidade” – 2 (dois) referências;


o “diferenças” / “diferentes histórias” / “diferentes modos de viver” – 7 (sete)
referências;
o “semelhanças e diferenças” – 6 (seis) referências;
o “permanências e transformações” (ou “mudanças”) – 6 (seis) referências.

Ademais, é importante destacar que nessa proposta se discute amplamente a questão


indígena e é proposta a discussão da temática sem homogeneização de hábitos e culturas dos povos,
46

enfatizando a diversidade cultural. O reconhecimento de semelhanças e diferenças visa, até então,


destacar a diversidade sem incentivar a exclusão social e cultural, visto que o documento destaca:

Nesse sentido, a proposta para os estudos históricos é de favorecer o


desenvolvimento das capacidades de diferenciação e identificação, com a intenção
de expor as permanências de costumes e relações sociais, as mudanças, as
diferenças e as semelhanças das vivências coletivas, sem julgar grupos sociais,
classificando-os como mais “evoluídos” ou “atrasados (BRASIL, 1997, p. 40).

Percebem-se, até esta etapa do documento, perspectivas mais modernas da concepção


histórica e social por meio da valorização da história multifacetada. Novais (2011) descreve como
uma Nova História influenciada pela emergência das Ciências Sociais no século XIX e marcada
sócio-historicamente pela nova fase da Escola dos Analles, a partir da segunda metade do século
XX, tendo como nomes centrais teóricos como Le Goff e Nora:

Não se trata das grandes visões de conjunto, de uma abordagem que procura a
inteligibilidade do singular dentro de um contexto que articule as esferas de
existência. Trata-se agora de, uma vez eleito o objeto de investigação, recortado de
um real multifacetado, considerá-lo em si como uma totalidade (NOVAIS, 2011, p.
64).

Essa perspectiva delimita o foco da História na narrativa do conhecimento, enfatizando a


construção da memória social, de identidades capazes de reconhecer a diversidade como natural e
como parte integrante da vida social e da construção da História, assim como abandona a concepção
diacrônica em prol de um reforço à sincronia, comparando as temporalidades de um objeto. Esse
prisma fica claro no documento analisado, pois na descrição de seus objetivos, tanto nos gerais para
o Ensino Fundamental (p. 32), quanto nos específicos para o primeiro ciclo dos anos iniciais (p. 39
e 40), vejo, além dos critérios de avaliação (p. 44), o uso expressões que consideram a valorização
de “outros tempos e espaços” e “multiplicidade de tempos” (onze referências).
Em relação ao segundo ciclo dos anos iniciais (4º e 5º anos), o enfoque ainda se mantém no
reconhecimento da história local, mas buscando aperfeiçoar a apropriação de novas fontes e
desenvolvimento de competências. Nos objetivos específicos, já se observa o estímulo à relação do
local com espaços com contextos sociais e históricos diferentes, e a vinculação dessas realidades
aos conteúdos históricos e às relações de poder.

Prevalecem, como no primeiro ciclo, os estudos comparativos para a percepção das


semelhanças e das diferenças, das permanências e das transformações das
vivências humanas no tempo, em um mesmo espaço, acrescentando as
caracterizações e distinções entre coletividades diferentes, pertencentes a outros
espaços (BRASIL, 1997, p. 46).
47

Assim, o eixo temático de trabalho proposto se concentra na História das organizações


populacionais. Percebe-se, nessa proposição, uma preocupação contemporânea em relação à
diversidade cultural proveniente das migrações mais frequentes nas últimas décadas, e uma atenção
em relacionar a preservação da memória social, sem segregar ou desprestigiar demais hábitos e
culturas, evidenciando a própria origem diversa da história dos próprios estudantes e valorizar as
semelhanças em busca de uma identidade social e cultural mais ampla, condizente com o processo
de globalização iminente (BRASIL, 1997, p. 47).
Nos critérios de avaliação delimitados para o segundo ciclo, novamente a expressão
“semelhanças e diferenças” está presente nos três critérios elencados, acrescentando a essa análise a
identificação da história local com a de outras coletividades, classes, indivíduos e populações em
espaços sociais distintos. O documento segue com algumas orientações de objetivos didáticos ao
professor que reforçam a importância de trabalhar com os estudantes a capacidade interpretativa e
crítica da sua condição sócio-histórica e a dos demais grupos sociais, enfatizando a história como
multifacetada, e não fragmentada, além de propostas de usos de fontes e possíveis problematizações
cultivadas pelo professor constantemente em sala de aula.
A partir da intenção inicial de se realizar breve análise de conteúdo dos Parâmetros
Curriculares Nacionais de História para os anos iniciais da Educação Básica (1º ao 5º ano), que
consiste em verificar a presença ou ausência da temática da América Latina e das questões de
identidade nas orientações escolares institucionalizadas, é possível perceber que o subcontinente
não é diretamente citado em nenhuma passagem do documento, tendo apenas uma referência ao
continente americano na análise historiográfica sobre o ensino escolar de História no início do
século XX.
Todavia, é possível reconhecer que o documento dá significativa importância à construção
de identidade a partir do Ensino de História, a fim de que não se exclua a compreensão da
diversidade social e cultural que os estudantes pouco a pouco vão encontrando no seu processo de
formação e inserção social. Esse direcionamento demonstra um esforço em romper com o histórico
da educação de História escolar no Brasil que pode ser referenciado a partir dos trabalhos de Dias
(1997), Conceição e Zamboni (2013) e Couto (2012), que identificam, em suas análises
comparativas dos currículos escolares e manuais de História, um viés de distinção/diferenciação na
construção da identidade em detrimento da que reforçava as rivalidades e que era voltada para o
nacionalismo isolacionista do contexto latino-americano.
Fica a cargo do professor ou professora estabelecer relações no seu cotidiano escolar que
contemplem as discussões propostas nos PCNs acerca das “diferenças e semelhanças”,
“permanências e mudanças”, a partir de uma análise voltada para os países da América Latina,
48

especialmente no segundo ciclo dos anos iniciais, em que o documento dá ênfase à comparação e
reconhecimento da realidade sócio-histórica local com as de outras populações.

3.2 Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental

O documento seguinte, que se refere aos Parâmetros Curriculares Nacionais de História


referentes aos terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental, publicado em 1998 (quando a
estrutura dessa etapa de ensino ainda era de quinta a oitava série), mantém a mesma estrutura,
apresentando os objetivos gerais do Ensino Fundamental, já mencionados anteriormente, a partir do
documento sobre os primeiro e segundo ciclos e contextualização histórica do ensino de História no
Brasil.
Sobre a posição sociocultural do Brasil na História, o documento reconhece-a como:

[...] unicamente uma continuidade da História da Europa ocidental. Permanece a


identidade do Brasil com a civilização europeia e enfatiza-se, contraditoriamente, a
população brasileira como mestiça (BRASIL, 1998, p. 22).

Alguns apontamentos podem ser destacados do texto pela relação que estabelece com a
construção da identidade e da posição sócio, histórica e cultural do Brasil no mundo. A partir da
década de 30, do século passado, observa-se, nas pesquisas históricas, uma divisão de perspectivas
que abordavam ou o atraso econômico como consequência da mestiçagem do povo brasileiro, ou a
busca de identidade e igualdade através da valorização dos aspectos culturais diversos. De qualquer
forma, constata-se, na escrita do documento, que a tese da “democracia racial” (FREYRE, 1958)
prevalece nos estudos históricos escolares, mantendo o Estado como agente de mudanças, e a
diversidade do povo como aspecto de união em uma tríade (negros, índios e brancos) pacífica e sem
conflitos.
Destaca-se também que, a partir da década de 50, a História escolar baseia-se nas temáticas
econômicas, e a História da América recebe ênfase justamente no momento em que os Estados
Unidos da América (EUA) entram definitivamente no contexto global de hegemonia econômica
capitalista, no qual o Brasil se alinha.

Nessa tendência, apesar da ênfase atribuída às classes sociais como agentes de


transformação histórica, predominou no ensino uma abordagem estruturalista na
qual a História era estudada como conseqüência de estágios sucessivos e evolutivos
(BRASIL, 1998, p. 24).

Aliada a essa perspectiva econômica do desenvolvimento histórico, a educação brasileira


ainda absorve o tecnicismo norte-americano na busca de progredir historicamente à industrialização
49

e à modernização. A substituição das disciplinas das Ciências Humanas por uma unidade nos
“Estudos Sociais” provoca o esvaziamento da dimensão histórica dos acontecimentos, como já
mencionado anteriormente nesta dissertação.
Em decorrência do processo de democratização dos anos 80 e da mudança no quadro social
brasileiro, o documento afirma que várias perspectivas históricas foram adotadas pelos professores
da disciplina, tomando como referência a evidência de que:

A apresentação do processo histórico num eixo espaço-temporal eurocêntrico,


seguindo um processo evolutivo, sequencial e homogêneo, foi denunciada como
produto pronto e acabado, redutor da capacidade de o aluno se sentir na condição
de sujeito comum, parte integrante e agente da História, e restritivo ao
discernimento da diferença entre o conhecimento histórico produzido por
estudiosos e as ações dos homens realizadas no passado (BRASIL, 1998, p. 27).

Desse modo, o que se percebe é que mesmo com as orientações institucionais vindas da
“Lei de Diretrizes e Bases da Educação”, implantada desde 1961, o ensino da disciplina ainda
transcorre de acordo com a perspectiva do professor, o que refletia numa História escolar
heterogênea a partir da formação do professor, ou seja, referente à sua posição social e do currículo
dos cursos de graduação.
Especialmente a partir da década de 90, o discurso e a prática mudam com a ampliação do
debate pedagógico, da percepção do processo de formação na educação escolar, com uma
preocupação em aproximar o saber escolar ao saber acadêmico e, em decorrência disso, a
apropriação do processo histórico pelos estudantes. De fato, as discussões sobre os processos
pedagógicos influenciaram a mudança mais significativa no ensino escolar e no ensino de História
nas escolas, mais do que os debates da ciência histórica em si. Justamente, nesse contexto que o
Governo Federal lança a discussão e a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais em
questão.
A organização do documento, tal como o anteriormente analisado, avança na discussão do
conhecimento histórico no contexto social escolar e na relação entre o saber histórico escolar e o
saber histórico científico. Contudo, a seção realiza uma avaliação muito mais sobre a pesquisa
histórica nas últimas décadas do que apresenta horizontes ou análises sobre a prática didático-
pedagógica no ensino de História. A dimensão abordada é a questão da construção da identidade e
suas variações ao longo dos contextos históricos.
Igualmente, a nova concepção da construção de identidade baseia-se na relação entre
“diferenças e semelhanças” e “transformações e permanências” (BRASIL, 1998, p. 34) e várias
relações de dualidade (consenso/conflito, continuidades/descontinuidades de tempos históricos,
50

diversidade/aproximação, outro/eu) que devem ser utilizadas como ferramenta para a formação de
identidade e cidadania.
Na página 35, na qual se desenrola o entendimento da importância desse reconhecimento
do outro como forma de desenvolver a alteridade, destaco algumas frases como unidades de análise,
que dão pistas sobre o direcionamento do ensino de História:
o “ela demanda que o reconhecimento das diferenças não fundamente relações de
dominação, submissão, preconceito ou desigualdade” – neste registro, a ênfase é dada ao fato de
que as diferenças não devem segregar, mas sim reconhecer os diferentes processos históricos
vividos.
o “mediações construídas por experiências sociais e culturais na organização de
valores, que sugerem, mas não impõem... que orientam, mas não restringem... que possibilitam o
conhecimento ou o desconhecimento” – neste caso, o relativismo dos verbos que admitem a
importância do espaço social evidenciando as possibilidades de generalizações do contexto social
sobre o individual.
o “A percepção de alteridade [...] está relacionada à construção de uma sensibilidade
ou à consolidação de uma vontade de acolher a produção interna das diferenças e de moldar valores
de respeito por elas” – nesta sentença, a alteridade é valorizada, o que percebo pelo enfoque dado à
“diferença”. Além disso, percebe-se que o texto admite que exista uma cultura social e hegemônica
que deve aprender a conviver com as demais, diferentes.
Esse discurso relacional vai ao encontro de uma tendência curricular multiculturalista, que
surge num período pós-crítico às teorias curriculares tradicionais que concebiam a escola e o
currículo como um processo tecnicista de resultados. Segundo Silva, para Bobbitt seus objetivos
“[...] deveriam se basear num exame daquelas habilidades necessárias para exercer com eficiência
as ocupações profissionais da vida adulta” (2016, p. 23), ou seja, com um currículo que prepare o
indivíduo para o mundo do trabalho.
O rompimento com esse paradigma acontece de forma progressiva nas discussões teóricas
e acadêmicas a partir da segunda metade do século XX, advindas dos novos contextos sociais e
culturais que vão se desenhando na realidade histórica. É, especialmente, com o processo de
globalização presenciado mais horizontalmente a partir do final do século, que as questões sobre
diversidade (social, cultural, étnica) se tornam latentes na Educação Básica. Em passagens dos
próprios PCNs destacam-se o impacto do processo migratório na constituição desses novos
parâmetros a serem adotados na educação brasileira.
Sobre essa perspectiva de currículo identificada nos documentos analisados, Silva
apresenta algumas críticas em relação à forma como o multiculturalismo é tratado nas correntes
teóricas sobre currículo, pois:
51

De uma forma ou de outra, o multiculturalismo não pode ser separado das relações
de poder que, antes de tudo, obrigaram essas diferentes culturas raciais, étnicas e
nacionais a viverem no mesmo espaço. Afinal, a atração que movimenta os
enormes fluxos migratórios em direção aos países ricos não pode ser separada das
relações de exploração que são responsáveis pelos profundos desníveis entre as
nações do mundo (2016, p. 85-86).

O documento dá destaque às questões de alteridade e cidadania, colocando que a História


pode proporcionar o desenvolvimento de sujeitos conscientes das dimensões da vida social e
cultural, assim como a disciplina é capaz de “favorecer a formação do estudante como cidadão, para
que assuma formas de participação social, política e atitudes críticas diante da realidade atual,
aprendendo a discernir os limites e as possibilidades de sua atuação, na permanência ou na
transformação da realidade histórica na qual se insere” (BRASIL, 1998, p. 36), além de enfatizar a
importância da contextualização histórica no entendimento de temas promotores da cidadania.
Os objetivos definidos para o terceiro e quarto ciclos desta etapa da Educação Básica dão
ênfase à questão da alteridade e à preocupação com a perspectiva do outro, sendo utilizados termos
como diversidade, cidadania, multiplicidade de tempos, respeito e luta contra as desigualdades
(BRASIL, 1998, p. 43). Em relação ao terceiro ciclo, o documento destaca um eixo temático a ser
considerado, intitulado de “História das relações sociais, da cultura e do trabalho” e sugere
conteúdos a serem trabalhados a partir dessa discussão.
Nessa parte, podemos realizar algumas análises sobre a posição da América Latina na
proposta de construção de alteridade e cidadania. No que diz respeito ao subtema “As relações
sociais, a natureza e a terra”, no que concerne à história brasileira, o documento dá ênfase à
perspectiva do colonizador europeu e, dos sete tópicos de conteúdos sugeridos, apenas o primeiro
remete à cultura autóctone, colocando os indígenas brasileiros apenas como “caçadores e coletores”,
esvaziando a sua diversidade sociocultural. Além disso, utiliza-se de termos como “conquista” e
“ocupação” quando se refere à experiência europeia no Brasil.
Em relação aos povos americanos, os tópicos já dão um destaque maior aos aspectos
sociais e estruturais encontrados e consolidados na América antes da colonização europeia, como a
organização do tempo em calendários, os métodos de irrigação e organização das cidades. No que
diz respeito ao subtema “As relações de trabalho”, tanto no que se refere ao Brasil, quanto no que se
refere à América, os conteúdos destacados contemplam as relações produtivas no período pré-
colombiano e a implantação dos sistemas econômicos, desde o escravagista até o industrial pelos
colonizadores europeus. Os critérios de avaliação apresentados dão conta de analisar a compreensão
dos estudantes quanto à variação temporal das relações entre natureza e sociedade.
52

No quarto ciclo, a prioridade está na compreensão de conceitos capazes de favorecer a


compreensão de processos sociais e históricos e as relações de poder estabelecidas ao longo da
história. O principal eixo temático é “História das representações e das relações de poder”. No
subtema “Nações, povos, lutas, guerras e revoluções”, são destacados alguns conflitos que
influenciaram na atual configuração do território brasileiro, e aqui são citados vários episódios
relacionados à América Latina, como a Guerra Cisplatina, a Guerra do Paraguai, e algumas revoltas
que indicam que o processo de colonização não foi pacífico e nem passivo. Propõe, ainda, a
desconstrução de mitos em relação à história, à cultura e à população brasileira, o que denota uma
intencionalidade positiva em romper com a visão eurocêntrica do Brasil.
Sobre a América, os conteúdos sugeridos estão de acordo com a proposta teórica
apresentada pelo documento de abordar a perspectiva do outro na análise dos processos históricos.
Destaco que em um dos tópicos recomenda a discussão da Guerra do Paraguai sob a perspectiva do
país em questão, buscando, assim, apresentar as variadas dimensões dos processos históricos
estudados. Dos seis tópicos, quatro apresentam expressões que evidenciam o papel dos povos
nativos na constituição do espaço e do território latino-americano, como a expansão dos impérios
Inca e Asteca, confrontos e escravização dos povos indígenas, os processos de independência, e a
intervenção norte-americana nos países da região.
Porém, no subtema referente à “Cidadania e cultura no mundo contemporâneo” nenhuma
menção é feita à América ou à América Latina nos sete tópicos de conteúdo sugeridos, como se o
subcontinente ficasse à margem dos processos e discussões contemporâneas de mundo do trabalho,
globalização e lutas sociais. Por fim, o documento apresenta “Orientações e métodos didáticos”
indicando algumas ações pedagógicas que devem ser estimuladas na disciplina de História no
terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental.
Em síntese, o que é possível apreender em relação à posição da América Latina no
currículo de História no Ensino Fundamental é contraditório em alguns aspectos. Ao mesmo tempo
em que as diretrizes sugerem frequentemente a importância da análise da diversidade, da
perspectiva espaço-temporal variável, e a construção de uma cidadania que leva em conta a
compreensão das questões do tempo presente, em relação aos processos históricos do passado,
justamente quando se aborda o contemporâneo, no quarto e último ciclo do Ensino Fundamental, a
proposta não considera os problemas socioculturais latentes hoje na América Latina para discutir a
questão da alteridade e da identidade.
Mesmo que promova esse exercício de alteridade e da perspectiva do outro quando sugere,
por exemplo, a análise da Guerra do Paraguai a partir de ambos os lados do conflito, no que
concerne aos temas contemporâneos há um distanciamento entre os processos sociais e históricos
brasileiros dos demais países latino-americanos. É evidente, no documento, que os conteúdos são
53

apenas sugestões que não contemplam e não se esgotam em si mesmas. Entretanto, a ausência de
proposição de interlocução no mundo contemporâneo entre o Brasil e os demais países da América
Latina pode transparecer que o esforço de tratar do subcontinente desaparece quando se pode
desenvolver uma identidade social regional, no quarto ciclo do Ensino Fundamental.
Em relação ao afastamento brasileiro em relação à América Latina, também é possível
interpretar, tendo em vista a forma como a população indígena brasileira é abordada, que o ponto de
vista histórico preconizado institucionalmente é o da colonização portuguesa, com pouca ênfase no
passado das civilizações brasileiras nativas. O oposto acontece quando o documento se refere à
América Latina em geral, discutindo com mais detalhes as sociedades e culturas indígenas dos
demais territórios, e o esforço de independência dos futuros Estados-Nações em relação ao
colonizador europeu.

3.3 Ensino Médio e as Orientações Educacionais Complementares aos PCNs

No que se refere aos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, existem dois
documentos, o PCN em si, e o PCN+, que se referem às “Orientações Educacionais
Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais”. Os textos estão divididos em áreas do
conhecimento, a saber: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; Ciências da Natureza, Matemática
e suas Tecnologias e Ciências Humanas e suas Tecnologias, subdividindo-se nas disciplinas (ou
“componentes curriculares”), e dão enfoque às competências que os estudantes devem desenvolver
ao longo da etapa do Ensino.
Busquei, na análise desses documentos, observar a relevância dada aos temas de
“identidade”, “cidadania”, “formação cultural” e expressões que remetam ao estudo de temas
referentes à América Latina (considerando-as como categorias de análise), utilizando como unidade
de registro frases ou parágrafos, examinando primeiramente a presença ou a ausência com que esses
conceitos aparecem e o sentido/significado atribuído a eles no desenvolvimento dos Parâmetros
Curriculares Nacionais em História.
Antes de objetivamente analisar o conteúdo da disciplina, na introdução do documento do
PCN de Ciências Humanas e suas Tecnologias, algumas considerações são feitas quanto aos
conhecimentos e competências que os conteúdos de História podem contribuir na Educação, das
quais se destacam: o potencial formativo de “identidade coletiva”, a “memória socialmente
construída”, o ato de “situar-se no coletivo”, dando ênfase à História do Brasil e à contextualização
entre “figura e fundo” (BRASIL, 1999, p. 12).
Em relação ao subtítulo do documento intitulado “O que e como ensinar História”, retiro
alguns trechos divididos de acordo com as categorias 1 identidade e 2 cidadania:
54

1 Identidade:

O ensino de História pode desempenhar um papel importante na configuração da


identidade, ao incorporar a reflexão sobre a atuação do indivíduo nas suas relações
pessoais com o grupo de convívio, suas afetividades, sua participação no coletivo e
suas atitudes de compromisso com classes, grupos sociais, culturas, valores e com
gerações do passado e do futuro (BRASIL, 1999, p 22).

Nessa unidade de registro, é possível inferir que a identidade concebida institucionalmente


se refere ao ato situar-se em um grupo social, destacando a importância da afetividade, que aparece
em outras partes do documento e nos PCNs do Ensino Fundamental.

Além de consubstanciar algumas das noções básicas introduzidas nas séries


anteriores, que contribuem e fornecem os fundamentos para a construção da
identidade, tais como a de diferença e a de semelhança, o ensino de História para as
séries do nível médio amplia e consolida as noções de tempo histórico (BRASIL,
1999, p. 23).

Aqui se retoma um entendimento amplamente apresentado nos PCNs do Ensino


Fundamental, que dá ênfase à construção da identidade a partir da relação entre semelhanças e
diferenças. Esse entendimento é bastante delicado, pois, ao mesmo tempo em que é importante
valorizar a multiculturalidade e as diferentes relações com o tempo histórico, a noção da construção
de identidade a partir de semelhanças pode acabar distanciando o estudante da realidade social e
histórica dos demais países da América Latina.

Ao sintetizar as relações entre as durações e a constituição da memória e da


identidade sociais, o ensino de História, desenvolvido por meio de atividades
específicas com as diferentes temporalidades, especialmente da conjuntura e da
longa duração, pode favorecer a reavaliação dos valores do mundo de hoje, a
distinção de diferentes ritmos de transformações históricas, o redimensionamento
do presente na continuidade com os processos que o formaram e a construção de
identidades com as gerações passadas (BRASIL, 1999, p. 27).

Percebe-se, então, que o enfoque na identidade, que o documento indica, se refere à relação
entre o passado e o presente. Dependendo da dimensão dada ao tempo e espaço pelo professor, o
estudante pode condicionar-se a buscar a identidade em determinados elementos sociais, históricos
e culturais, e em outros não.
55

2 Cidadania:

A apreensão das noções de tempo histórico em suas diversidades e complexidades


pode favorecer a formação do estudante como cidadão, aprendendo a discernir os
limites e possibilidades de sua atuação, na permanência ou na transformação da
realidade histórica em que vive (BRASIL, 1999, p. 25).

Nessa unidade de registro, o documento aponta a relevância do conhecimento histórico na


potencialidade de transformação social dos indivíduos enquanto cidadãos. A cidadania aqui aparece
como a compreensão dos estudantes em inserir seu contexto social nos processos históricos que
condicionam os problemas a serem discutidos e superados na atualidade.

A formação de “cidadãos”, é importante ressaltar, não ocorre sem reflexões sobre


seu significado. Do ponto de vista da formação histórica do estudante, a questão da
cidadania envolve escolhas pedagógicas específicas para que ele possa conhecer e
distinguir diferentes concepções históricas acerca dela, delineadas em diferentes
épocas. O significado, por exemplo, que a sociedade brasileira atual tem de
cidadania não é o mesmo que tinham os atenienses da época de Péricles, assim
como não é o mesmo que possuíam os revolucionários franceses de 1789. O
sentido que a palavra assume para os brasileiros atualmente, de certa maneira,
inclui os demais sentidos historicamente localizados, mas ultrapassa os seus
contornos, incorporando problemáticas e anseios individuais, de classes, de
gêneros, de grupos sociais, locais, regionais, nacionais e mundiais, que projetam a
cidadania enquanto prática e enquanto realidade histórica (BRASIL, 1999, p. 25).

Como abordado também nos PCNs referentes ao terceiro e quarto ciclos do Ensino
Fundamental, destaca-se a importância de se compreender a cidadania através de uma
contextualização histórica, que contribua para que o estudante perceba que os seus direitos e
deveres como cidadão são permeados pelos processos históricos que dão conta da constituição da
realidade social atual.

A partir de problemáticas contemporâneas, que envolvem a constituição da


cidadania, pode-se selecionar conteúdos significativos para a atual geração.
Identificar e selecionar conteúdos significativos são tarefas fundamentais dos
professores, uma vez que se constata a evidência de que é impossível ensinar “toda
a história da humanidade”, exigindo a escolha de temas que possam responder às
problemáticas contundentes vividas pela nossa sociedade, tais como as
discriminações étnicas e culturais, a pobreza e o analfabetismo (BRASIL, 1999, p.
26).

Nesse trecho, o documento cita alguns problemas contemporâneos importantes a serem


considerados na delimitação dos conteúdos de História a serem trabalhados no Ensino Médio. Tais
temas são potencialmente positivos para se trabalhar a partir da reflexão conjunta do subcontinente
América Latina, já que todos os países do subcontinente possuem semelhanças históricas que
contribuem para a realidade social da discriminação étnica e cultural, pobreza e analfabetismo.
56

Das dez competências e habilidades a serem desenvolvidas em história, apenas uma


contempla as categorias de análises as quais esta pesquisa pretende compreender, que se referem à
identidade, à cidadania e à América Latina, e que consiste em “construir a identidade pessoal e
social na dimensão histórica, a partir do reconhecimento do papel do indivíduo nos processos
históricos simultaneamente como sujeito e como produto dos mesmos” (BRASIL, 1999, p, 28).
O documento PCN+ “Orientações educacionais complementares aos Parâmetros
Curriculares Nacionais” aponta como objetivo promover a articulação entre as competências e
habilidades apresentadas no primeiro documento, e apresenta sugestões de temas a serem
desenvolvidos no Ensino Médio. Em sua estrutura, ele realmente se coloca como um guia para as
escolas, gestões e professores adequarem-se aos Parâmetros Curriculares Nacionais, deixando mais
objetivos os propósitos do desenvolvimento do conhecimento no Ensino Médio e esclarecendo
conceitos. A presente análise de conteúdo atém-se ao capítulo do documento que trata da disciplina
de História (BRASIL, 2006, p. 69-86).
No subtítulo “Os conceitos estruturadores da História”, o texto traz um enfoque especial ao
conceito de cultura e como ele influencia nas maneiras de conceber o tempo e a História, além de
contribuir para a construção da identidade:

A ampliação do conceito de cultura abre novas perspectivas para o conceito de


identidade, à medida que passamos a considerar que as representações culturais e
os modos de comunicação, as formas de organização do cotidiano nas esferas
privadas ou os hábitos, valores e ideias incorporados no contato entre gerações
fundam a identidade pessoal e social do indivíduo (BRASIL, 2006, p. 71).

A visão de História apresentada indica a busca por um protagonismo dos sujeitos, dando
destaque, como nos demais documentos analisados, à importância do sentido de rupturas e
permanências, “mudança ou resistência” (BRASIL, 2006, p. 70), “continuidades e
descontinuidades” (op. cit. p. 73). Em “O significado das competências específicas da História”, o
documento divide as competências em grandes habilidades a serem desenvolvidas, são elas:
o Representação e comunicação: neste subitem, não há menções sobre a questão da
identidade, cidadania ou cultura;
o Investigação e compreensão: nesta parte, as competências analisadas citam a
construção da identidade, mantendo a perspectiva de todos os PCNs de História analisados até aqui,
que a concebe através de “diferenças e semelhanças, e mudanças e permanências” (BRASIL, 2006,
p. 75). Fala-se, ainda, sobre “continuidade/permanência e ruptura/transformação” (p. 75) como
elementos próprios dos processos históricos, e utilizam-se verbos como “comparar” e “hierarquizar”
valores, ideias e acontecimentos ao longo do tempo histórico.
57

o Contextualização sociocultural: as competências dizem respeito a relacionar os temas


tratados aos contextos em que foram sendo produzidos e modificados. Utiliza-se, novamente, a
concepção de “mudanças e permanências”, “diferenças e semelhanças” para caracterizar as
competências que dizem respeito à compreensão dos processos históricos e culturais.
O documento destaca o objetivo do ensino de História, no subtítulo “A articulação dos
conceitos estruturadores com as competências específicas da História”, como favorecer o
entendimento e interpretação dos estudantes da sua realidade a partir da análise dos processos
históricos relevantes para a sua constituição social (BRASIL, 2006, p. 77). Também apresenta uma
crítica importante em relação ao currículo linear do ensino de História comumente empregado nas
escolas, quando destaca que:

Os conceitos, em geral, contêm um potencial explicativo e problematizador,


funcionando também como balizadores na seleção de conteúdos significativos. Em
outras palavras, não é preciso partir da diversidade fenomênica que configura o
campo factual da História para constituir um currículo. Pode-se fazer o inverso, isto
é, partir da problematização de aspectos da existência social contemporânea que
envolvem vários conceitos e daí prosseguir para o campo factual, buscando temas
que colaborem com a construção de uma compreensão mais abrangente e com a
tomada de posição frente as problemáticas levantadas (BRASIL, 2006, p. 78).

E, como exemplo de problematização possível acerca dos conteúdos em História, o


documento trata do conceito de cidadania e de como essa contextualização histórica com os
processos sócio-históricos pode dar uma dimensão mais completa e significativa do conceito. Outro
exemplo parte da conceitualização de tempo e da importância da cultura na sua estruturação.
Por fim, no capítulo que orienta os parâmetros curriculares para a História, o subtítulo
“Sugestões de organização de eixos temáticos em História” apresenta quatro eixos: Cidadania:
diferenças e desigualdades; Cultura e trabalho; Transporte e comunicação no caminho da
globalização; Nações e nacionalismos. Primeiramente, vou apresentar os conteúdos (intitulados
como “subtemas”) que fazem parte dos temas que envolvam o conceito de cidadania (os conceitos
de identidade e cultura não aparecem como parte dos temas sugeridos) para que seja possível
verificar quais são considerados relevantes institucionalmente para o desenvolvimento.
No tema “O cidadão e o Estado” os conteúdos sugeridos focam na construção histórica do
termo “cidadania”, a partir da cidadania ateniense e da Revolução Francesa, e indica o Brasil
República para a discussão da participação política. No tema “Cidadania e liberdade”, o destaque é
dado às rebeliões escravas na Roma antiga, no Brasil, e o movimento negro nos Estados Unidos da
América. Em “Cidadania e etnia”, os conteúdos sugeridos dizem respeito aos movimentos bascos
(Espanha) e na Irlanda, além da Guerra da Iugoslávia e guerras étnicas no continente africano
(BRASIL, 2006, p. 83).
58

Quadro 1 – Eixos Temáticos

Fonte: BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Orientações Educacionais Complementares aos


Parâmetros Curriculares Nacionais, 2006.
59

Diante da observação do quadro de eixos temáticos e conteúdos sugeridos na disciplina de


História no Ensino Médio, é possível observar que, dos conteúdos globalizantes propostos, ou seja,
aqueles que tratam de processos gerais – como movimentos de resistência e libertários, eventos da
História Antiga (como as estruturas sociais dos povos primitivos), conceito de Estado, formação dos
Estados Nacionais, o nacionalismo da primeira metade do século XX –, de trinta e dois subtemas,
ainda divididos em tópicos, apenas um deles propõe o enfoque na América Latina no que tange às
relações de produção no Império Inca.
Sobre o Brasil, destacam-se subtemas específicos, que não evidenciam a correlação com os
processos históricos da América Latina. Porém, dos oito que tratam dele, em algum aspecto, apenas
um não possui vínculo direto com os processos civilizatórios europeus, que trata em tópico, da
“Vida e trabalho nas sociedades indígenas brasileiras”.
Destarte, apenas nesse quadro, retirado integralmente do PCN+ das Ciências Humanas no
componente curricular da História, fica clara a ausência dos processos históricos da e na América
Latina no currículo de Ensino Médio, o que corrobora com toda a análise deste capítulo e com a
hipótese desta pesquisa de que o subcontinente não é considerado nos Parâmetros Curriculares
Nacionais, e, consequentemente, em boa parte da Educação brasileira, como relevante na
construção do conhecimento histórico dos estudantes, e nem como potencial constituinte de
identidade e de formação cidadã crítica.
Quase a totalidade dos temas e subtemas apresentados no quadro podem trazer um enfoque
à América Latina com a função de situar o subcontinente nos processos históricos, narrados a partir
do desenvolvimento europeu e da repercussão tardia no Brasil (destacado em alguns subtemas),
para aproximar os estudantes do contexto sócio-histórico e cultural a que fazem parte.
Ademais, é possível citar alguns temas nos quais as experiências sócio-históricas pré-
colombianas ou de independência da região latino-americana podem ser o enfoque das análises
propostas, como em “Cidadania e liberdade” e “Cidadania e etnia”, em que os povos originários
podem ser destaque na luta por liberdade e distinções étnicas e culturais. Dessa forma, eles podem
fornecer maior conhecimento aos educandos sobre os conflitos locais na busca de emancipação e
aspectos culturais como a música e arte.
Nos temas “Conceito de Estado”, “A formação dos Estados Nacionais” e “Os discursos
nacionalistas”, também há exemplos possíveis, nos quais pode ser desenvolvida, através dos
processos latino-americanos de constituição dos Estados Nacionais, a estrutura social dos povos
originários antes ou durante a colonização europeia, entre outros temas.
É possível perceber, então, que mesmo que todos os PCNs de História apresentem a
importância dos conceitos de identidade e cidadania no desenvolvimento de seus postulados e
orientações curriculares, eles não dão ênfase aos processos latino-americanos de construção
60

histórica. Dessa forma, a orientação institucional brasileira não coloca a América Latina como
essencial na construção da identidade e da consciência histórica dos estudantes. Certamente, é
possível que os currículos escolares e as decisões individuais dos professores podem ir de encontro
a essas orientações. Entretanto, é possível diagnosticar que tal direcionamento não é priorizado nas
definições nacionais sobre o currículo da disciplina de História no Ensino Básico.
Alguns dos efeitos desse silenciamento da América Latina nos documentos orientadores da
disciplina de História no Ensino Básico são analisados no capítulo a seguir, quando discutirei a
aplicação das aulas-oficinas em turmas do Ensino Médio de uma escola pública sobre a percepção
dos estudantes sobre o subcontinente.
4 AMÉRICA LATINA PELOS ESTUDANTES: UMA ANÁLISE DOS
REFLEXOS DA INVASÃO CULTURAL

Neste capítulo, relato o desenvolvimento de uma atividade prática com os estudantes de


Ensino Médio para a análise do pensamento-linguagem dos mesmos acerca da América Latina,
realizando interlocuções, no segundo momento, com a perspectiva freireana sobre os conceitos de
invasão cultural e consciência hospedeira que podem explicar algumas evidências identificadas na
análise dos dados obtidos.
Seguindo os pressupostos que Barca (2004) considera relevantes para desenvolver uma
aula-oficina diretiva e significativa, elaborei duas inserções que pretendiam investigar, desenvolver
e avaliar as concepções sobre a América Latina de estudantes que estão iniciando e saindo do
Ensino Médio, a fim de reconhecer possíveis diferenças conceituais nas duas etapas.
É importante salientar que a análise detém-se, mais profundamente, neste capítulo, nas
informações da primeira inserção, que visa, especialmente, avaliar o conhecimento e a sua origem a
respeito da América Latina por parte dos estudantes, e quais processos contribuem para a
constituição do pensamento-linguagem identificado na investigação. A segunda inserção configura-
se como uma proposta de sequência didática detalhada no capítulo seguinte.
Barca (2012, p. 46) argumenta que o professor investigador deve se utilizar da informação
interiorizada nos estudantes como ferramenta de investigação e promoção do desenvolvimento
progressivo da construção conceitual, ou da consciência histórica. Nesse caminho, é crucial
conceber o educando como agente investigador de suas próprias percepções, tentando desvelar que
elementos sociais e históricos contribuem para o entendimento de mundo, ou do tema, que ele
apresenta.
De antemão, através da experiência docente, outro desafio se revela nesse processo de
autoconhecimento por parte dos discentes: é necessário, antes de tudo, um trabalho dialógico para
que eles admitam ser socialmente construídos. É fundamental, também, a aquisição da percepção de
que não são apenas indivíduos particulares e sim seres permeados pelo contexto sócio-histórico no
qual estão inseridos.
Essa dificuldade é um reflexo da realidade opressora teorizada por Freire (1989), na qual
os indivíduos oprimidos se vêem como membros do processo social, de forma que a
conscientização de que não possuem sua liberdade é dolorosa:

Quando, porém, por um motivo qualquer, os homens se sentem proibidos de atuar,


quando se descobrem incapazes de usar suas faculdades, sofrem. Este sofrimento
62

provém “do fato de se haver perturbado o equilíbrio humano” (From). Mas, o não
poder atuar, que provoca o sofrimento, provoca também nos homens o sentimento
de recusa à sua impotência (FREIRE, 1989, p. 75).

Isso é ainda mais observável nos adolescentes, que idealizam uma condição de
independência e liberdade próximas, visto que a admissão de que sua realidade é opressora e
limitadora encontra maior resistência. Essa situação não possui outro caminho de superação que não
seja a ação dialógica.
A ação e a reflexão sobre o mundo é apontada por Freire (1989, p. 77) como base para a
promoção da libertação autêntica. Desta forma, ao mesmo tempo em que os estudantes se percebem
enquanto oprimidos, o professor deve promover o espaço para que eles se entendam potentes no que
diz respeito à compreensão do mundo e de si mesmos:

Quanto mais se problematizam os educandos, como seres no mundo e com o


mundo, tanto mais se sentirão desafiados. Tão mais desafiados, quanto mais
obrigados a responder ao desafio. Desafiados, compreendem o desafio na própria
ação de captá-lo. Mas, precisamente porque captam o desafio como um problema
em suas conexões com os outros, num plano de totalidade e não como algo
petrificado, a compreensão resultante tende a tornar-se crescentemente crítica, por
isto, cada vez mais desalienante (FREIRE, 1989, p. 80).

Dessa forma, retorno ao propósito da elaboração das aulas-oficinas, como uma proposta de
romper com a estrutura educacional padronizada em aulas-conferência, ou aulas-colóquio, nas quais
o professor é o centro da atividade, e a agência do estudante é desconsiderada no processo de
progressão conceitual (BARCA, 2004, p. 132).
A proposta de aula-oficina acaba por ser um agente promotor do diálogo, pois se dá do
ponto de partida da conceituação dos estudantes, e propõe análises que os colocam como críticos
dos temas discutidos: “Propor questões orientadoras problematizadoras, que constituam um desafio
cognitivo adequando aos alunos em presença e não apenas um simples percorrer de conteúdos sem
significado para os jovens” (op. cit., p. 135).
Com esses postulados em mente, elaborei a aula-oficina, elemento introdutório de uma
sequência didática que apresentarei no quinto capítulo, buscando trazer elementos que nos
possibilitem obter as impressões prévias dos estudantes sobre a América Latina, a fim de
proporcionar um espaço de diálogo e questionamentos sobre as evidências observadas.
63

Inserção inicial:

Tempo da atividade: duas aulas de cinquenta minutos.


Objetivo geral: Compreender as concepções desenvolvidas pelos estudantes sobre as
características que definem um país latino-americano.
Objetivos específicos:
o Através da análise de paisagens de diferentes lugares, observar quais os estudantes
identificam como latino-americanas;
o Discutir os elementos que os estudantes elencam como característicos de um lugar da
América Latina;
o Discutir coletivamente o conceito de latino-americano, através de roda de diálogo
que permita aos estudantes questionar e exprimir suas concepções e opiniões sobre o tema.
Questões-orientadoras e desenvolvimento:
o Diálogo inicial sobre o que eles entendem como América Latina: o que é, como é
definida, como se constitui social e historicamente, culturalmente, se o Brasil faz parte do que
define esse conceito. É importante, antes do diálogo oral, que os estudantes registrem suas
percepções prévias sobre o tema;
o Colar no quadro imagens de paisagens variadas, sejam gravuras antigas, sejam fotos
contemporâneas, que misturem regiões da América Latina e da Europa, para que os estudantes
apontem quais delas reconhecem como paisagens latino-americanas;
o Solicitar o registro dos elementos que fazem com que eles reconheçam as imagens
como latino-americanas ou não;
o Dialogar em roda sobre os elementos levantados, buscando identificar com os
estudantes a partir de quais espaços e quais os mecanismos possibilitaram a construção dos
significados dados aos elementos latino-americanos. Nesse momento, por meio da hipótese central
da pesquisa, projeta-se que os estudantes apresentem como marcantes elementos típicos da
latinidade comumente propagados no cotidiano social, como cores, pessoas, paisagens pouco
desenvolvidas economicamente e que questionem as informações prévias que permitiram tal
construção conceitual.
Síntese: breve texto reflexivo que aponte o entendimento prévio sobre o tema América
Latina.
64

Materiais:
Figura 1: Cuzco, Peru

Fonte: Disponível em <http://travelstorecostarica.com/wp-content/uploads/2018/08/Peru-a-tu-Alcance.pdf>


Figura 2: Berlim, Alemanha

Fonte: Disponível em <https://es.123rf.com/photo_29636642_aeria-vista-de-la-ciudad-de-berl%C3%ADn-


en-alemania.html>

Figura 3: Paris, França

Fonte: Disponível em <https://caosplanejado.com/como-o-zoneamento-e-os-conjuntos-habitacionais-


favoreceram-o-estado-islamico/>
65

Figura 4: Representação de Tenochtitlan, México

Fonte: Disponível em <http://sobrehistoria.com/la-gran-ciudad-azteca-de-tenochtilan>

Figura 5: Teotihuacán, antiga capital do Império Asteca

Fonte: Disponível em <http://inexperiencia.com.br/2017/02/06/os-misterios-da-piramide-do-sol-e-da-lua-


em-teotiguacan-no-mexico-patrimonio-mundial-da-unesco/>

Figura 6: Rio de Janeiro, Brasil

Fonte: Disponível em <https://diariodorio.com/historia-do-bairro-da-lagoa/>


66

Figura 7: Representação de organização produtiva no Império Inca (Peru)

Fonte: Disponível em <https://ancientamerindia.wordpress.com/2015/12/14/cuzco-1438-1533/>

Figura 8: Obra de Debret, representando o centro do Rio de Janeiro no século XIX

Fonte: Disponível em <https://cultura.culturamix.com/arte/obras-de-arte-de-debret>

Figura 9: Representação de Lisboa, Portugal, no período de expansão colonial

Fonte: Disponível em <https://guardianlv.com/2014/06/global-city-on-the-streets-of-renaissance-lisbon-


heading-to-london/>
67

Figura 10: Bairro Clacton, Londres, Inglaterra

Fonte: Disponível em <https://www.standard.co.uk/news/uk/seaside-village-evacuated-as-stormy-weather-


brings-flood-alert-a3439261.html>

4.1 Análise da compreensão dos estudantes sobre América Latina

Com a participação do professor de História, que auxilia de forma voluntária na aplicação


e discussão das aulas, apliquei a primeira inserção sobre América Latina nas turmas de terceiro ano
do Ensino Médio (310 e 311) nos dias 17 e 18 de outubro de 2018, com a presença de onze
estudantes em cada turma.
Primeiramente, discutimos com os estudantes o que eles entendiam por América Latina, e
o principal elemento de definição que apareceu foi o da Língua Espanhola, associando o termo aos
países colonizados pela Espanha (ou a América Espanhola). Então, surgiu o questionamento se o
Brasil era latino-americano, a principal conclusão trazida pelos estudantes no diálogo é que
geograficamente o Brasil faz parte do subcontinente, mas que não reconhecem identificação com os
países em questão, destacando diferenças culturais e pouco conhecimento sobre eles.
Os países que foram citados no diálogo foram, nessa ordem, Argentina, Uruguai e
Paraguai, e os educandos reconhecem que esses países são mais presentes no cotidiano da Região
Sul do Brasil e, provavelmente, por isso estabelecem comparativos com eles e não com outros. Com
os países citados, os discentes apontaram que a identificação se dá a partir dos costumes e hábitos,
como vestimenta, culinária, futebol, com relação ao Paraguai o destaque dado foi à ligação
comercial.
Questionados sobre o que os afastam dos demais países não citados no diálogo, os
estudantes destacaram a “falta de conhecimento”, tanto por parte do que aprendem ou deixam de
aprender na escola, quanto pela citada “falta de popularidade”, fazendo paralelo com o consumo e
68

influência midiática voltados para países que não fazem parte do subcontinente. As principais frases
utilizadas e discutidas pelos estudantes foram:
o “Tudo vem de fora”;
o “O que torna um lugar interessante é o quão diferente é de nós”;
o “Estar no RS dá uma visão diferente dos países latino-americanos”.
Depois do diálogo coletivo, os estudantes realizaram registros sobre os questionamentos
discutidos: 1. O que entendo da América Latina e o que a define; 2. Alguma relação histórica entre
a América Latina e o Brasil; 3. De onde vem o conhecimento sobre esse tema.
Nos primeiros anos do Ensino Médio, nas turmas 110 e 112, com um total de quarenta
estudantes, eles apresentaram pouco conhecimento sobre América Latina além de um entendimento
confuso quanto à localização – alguns apontaram apenas a América do Sul, enquanto outros
argumentaram que são os mexicanos que são chamados de “latinos” nos Estados Unidos. Tal
percepção dá-se nitidamente através dos meios de comunicação, como filmes e televisão.
Quanto ao Brasil, na discussão em grupo, mais abrangente, percebeu-se que era estranho à
maioria a ideia do país fazer parte de um grupo social “latino”, apontando, inclusive, traços físicos e
culturais que diferenciariam os brasileiros do conceito de “latino-americano”, mas geograficamente
reconhecem o Brasil como integrante da América Latina. Os elementos citados como característicos
da América Latina foram a língua espanhola e a economia, apresentando uma visão dos latino-
americanos como “imigrantes no mundo”, sem uma nação que os ampare econômica e socialmente.
Em uma das turmas (112), alguns alunos levantaram e colaboraram com as discussões a
respeito da colonização, apontando tanto os aspectos culturais quanto os econômicos, que dariam
unidade à América Latina. Ainda assim, as falas sobre o subcontinente são colocadas como “de
fora”, eles se posicionaram como se estivessem realizando a análise de algo alheio à realidade deles.
Durante a incitação ao diálogo, questionei o porquê se colocavam tão à parte da realidade
concebida como América Latina, e alguns estudantes, em especial, expressaram que o interesse não
acontece porque o cotidiano deles é “estrangeiro”. Parafraseando a fala de uma estudante, “nossa
história é estrangeira, é colocada e reproduzida externamente e apenas a consumimos”. Dessa
forma, não somos atores/autores da história mundial, somente um espaço que surgiu depois e
atrasado.
A análise desta primeira parte da aula-oficina vai ao encontro das observações que
permitiram chegar à hipótese da pesquisa. Em todas as turmas, antes mesmo de iniciar a atividade,
na introdução da fala ao tema da atividade, os estudantes já se mostravam apreensivos. Acredito que
muito, é claro, em função da minha posição de professora e o receio de uma avaliação sobre o tema.
Isso transparece, em parte, o desconhecimento dos estudantes sobre o assunto.
69

Em um universo de turmas de 10 a 25 estudantes, o número de estudantes que se desafiou a


falar algo sobre América Latina foi muito restrito, mesmo depois que esclareci que a atividade não
seria avaliada, e que fazia parte de uma pesquisa que tinha o objetivo de saber o que eles entendiam
sobre o tema.
Alguns estudantes (e quando falo “alguns” falo de, no máximo, quatro estudantes por
turma, em média) diziam lembrar apenas de alguns temas referentes à Geografia aprendidos na
escola. No terceiro ano do Ensino Médio, boa parte dos estudantes admitia não conhecer a América
Latina, mas reconheciam que ouviram falar algumas vezes. No entanto, relataram que não tinham
interesse, porque sempre estudaram os processos históricos que aconteceram na Europa ou partiram
dela (Revoluções, guerras, etc.).
O que se observa, a partir do diálogo inicial com as quatro turmas, é que as temáticas sobre
América Latina são desconhecidas pelos estudantes, e não necessariamente negadas por eles, o que
demonstra uma condição igualmente problemática em relação à relevância dada ao subcontinente
nas Ciências Humanas, especialmente na área História.
Tal constatação não impede a análise a partir da teoria de Freire (1981), porque, como já
explanei, a construção curricular da disciplina de História é reflexo dos contextos sociais, históricos
e políticos de invasão cultural e a construção da consciência hospedeira do opressor. A preocupação
contínua sobre o impacto dessa posição sóciocurricular na construção da consciência crítica e
identitária dos estudantes. A seguir, os estudantes realizaram breve registro sobre os
questionamentos, que foram discutidos na aula, especialmente: 1 O que entendo por América Latina
e o que a define; 2 Qual a relação do Brasil com a América Latina e 3 De onde vem esse
conhecimento.
Nem todos os registros são passíveis de análise quantitativa em relação às expressões
usadas, pois os estudantes responderam às indagações, em sua maioria, de forma muito sucinta e
vaga. O que apresento aqui é uma avaliação das respostas em conjunto, considerando algumas
categorias de análise que pretendem identificar as percepções gerais deles sobre o tema. Dessa
forma, elenquei, a partir da pré-análise, as seguintes categorias para incluir as suas respostas (que
não são excludentes, portanto, o número total de menções poderá ser maior que o número de
registros analisados):
a. Características culturais que determinam a América Latina: em especial, a língua,
mas também aparecem nas respostas, com menor frequência, costumes e religião.
b. Características históricas que determinam a América Latina: em especial, o tipo de
colonização dos países que fazem parte do subcontinente;
70

c. Características geográficas que determinam a América Latina: aqui, não farei juízo
de valor quanto à localização estar certa ou errada, pois o objetivo é avaliar elementos que
caracterizam o subcontinente;
d. Características sociais que determinam a América Latina: respostas que relacionam a
América Latina e o Brasil a aspectos como pobreza e subdesenvolvimento;
e. Papel da escola na constituição do saber: quando os estudantes apontam que a
principal referência para o entendimento que eles têm por América Latina se deu especialmente a
partir da escola, e aqui podemos subdividir a categoria como: I positivo (quando a resposta tem um
embasamento relativo); II negativo (quando se utilizaram na resposta expressões como “pouco
conhecimento”, “pouco trabalhado”, entre outros) e; III neutra (quando a resposta não classifica a
qualidade do conhecimento escolar);
f. Papel das mídias na constituição do saber: quando os estudantes apontam que a
principal referência para o entendimento que eles têm por América Latina é originária dos meios de
comunicação, subdivididos em I Internet e; II Televisão;
g. Desconhecimento quase que total do tema América Latina: quando as respostas não
apresentam nenhuma referência quanto ao solicitado na atividade e os estudantes identificam
desconhecimento sobre a temática.

Tabela 2 – Frequência das menções dos estudantes sobre a América Latina


Categoria Menções nas turmas de 1º ano Menções nas turmas de 3º ano
do Ensino Médio do Ensino Médio
(40 registros) (22 registros)
A – Culturais 27 20
B – Históricas 10 10
C – Geográficas 13 5
D – Sociais 13 7
E. I – Escola – positiva 3 2
E. II – Escola – negativa 11 4
E. III – Escola – neutra 8 4
F. I – Mídias – Internet 2 4
F. II – Mídias – Televisão 9 11
G – Desconhecimento 16 5
Fonte: Elaborado pela própria Pesquisadora.

Em meio aos dados quantitativos, é possível deduzir que, em relação às turmas do primeiro
ano do Ensino Médio, os estudantes definem como América Latina especialmente características
culturais, e em segundo plano, destacam a localização geográfica como determinante para essa
definição, além de características sociais, citando problemas sociais e econômicos semelhantes
71

entre os países. Em relação à origem do conhecimento, a maioria associa à escola e à televisão.


Importante destacar que o desconhecimento sobre o tema é relevante nas respostas analisadas.
No que diz respeito ao terceiro ano do Ensino Médio, os estudantes também deram maior
destaque à questão cultural, mas, proporcionalmente, citaram bastante, também, o contexto histórico
de colonização, relacionando, em algumas respostas, às questões sociais, como o
subdesenvolvimento e as relações comerciais estabelecidas. Quanto à origem do conhecimento, a
maioria admite ter construído a partir das mídias, especialmente a televisão e filmes (citados em
algumas respostas). Importante destacar que, ao final do Ensino Médio, cinco de vinte e dois
estudantes admitem desconhecer aspectos relacionados ao subcontinente.
De uma forma geral, os educandos admitem uma relação cultural entre os países que
configuram a América Latina, dando pouca ênfase a questões históricas e sociais. A escola não atua
de forma positiva no desenvolvimento do seu conhecimento acerca do subcontinente, já que a
maioria das menções diretas ao papel da escola é negativa ou neutra. Também é perceptível, ainda,
o papel da televisão na constituição do pensamento e opinião dos estudantes.
Na segunda etapa da atividade, os discentes analisaram as imagens anteriormente
apresentadas nesta dissertação e dispostas no quadro, foi solicitado o registro sobre qual a origem de
cada uma das imagens, e selecionando duas ou três delas para descrever quais elementos os
ajudaram a definir se o espaço retratado é da América Latina ou de outro continente ou
subcontinente, dispostas na seguinte ordem:
1 – Cuzco, Peru
2- Berlim, Alemanha
3- Paris, França
4- Representação de Tenochtithan, do Império Asteca (México)
5- Representação de Teotihuacán, do Império Asteca (México)
6- Rio de Janeiro, Brasil
7- Representação da organização produtiva no Império Inca (Peru)
8- Representação do Rio de Janeiro, Brasil, no período colonial
9- Representação de Lisboa, Portugal, no período colonial
10- Bairro de Clacton, Londres, na Inglaterra

Todas as turmas, em geral, tiveram a mesma tendência de teor nas respostas. No entanto, é
preciso destacar algumas que apresentaram diferenças quanto às definições das turmas de primeiro
ano e as de terceiro ano do Ensino Médio.
Sobre a imagem 3, que consiste na fotografia de um bairro periférico da cidade de Paris, na
França, entre os quarenta estudantes dos primeiros anos, trinta apontaram como sendo uma imagem
72

referente à América Latina. Nos terceiros anos, a classificação foi equilibrada entre sim e não (doze
apontaram como América Latina, dez apontaram como não sendo). É possível interpretar que, ao
final do Ensino Médio, a tendência é de que os estudantes avaliem mais criticamente as informações
colocadas a eles.
As representações de Tenochtithan (4), antiga cidade asteca do México, e da organização
produtiva Inca, no Peru (7), também apresentaram uma diferença relevante no padrão entre as
respostas dos primeiros e dos terceiros anos. Novamente, uma parcela relevante dos estudantes dos
primeiros anos (vinte e seis de quarenta) apontou que as imagens não faziam parte da América
Latina, e nos terceiros anos, novamente uma classificação um pouco mais equilibrada, como é
possível observar nos gráficos a seguir.

Gráfico1:Percepção das figuras no Primeiro Ano

Fonte: Produzido pela pesquisadora.

Gráfico 2: Percepção das figuras no Terceiro Ano

Fonte: Produzido pela pesquisadora

A imagem de Tenochtithan, em especial, foi discutida durante as inserções, pois no


decorrer das análises questionei quais imagens estavam sendo mais difíceis de classificar, e ela foi
73

apontada em três das turmas. Eles alegaram que a imagem representava uma cidade/sociedade
muito bem organizada e com infraestruturas como construções e tecnologias de produção agrícola.
Porém, as montanhas ao fundo e, em algumas falas, a aparência de “índios” das pessoas
representadas, davam sinais de que a imagem fosse referente à América Latina. Em outras palavras,
uma sociedade organizada, com infraestrutura e tecnologias não davam sinais de que o lugar
pudesse ser latino-americano, os educandos ainda relacionaram a natureza exuberante à América
Latina e as cidades e a urbanização à Europa, como se observa no seguinte gráfico:

Gráfico 3: Percepção geral sobre a Figura 5 - Representação Tenochtithan, México

Fonte: Produzido pela pesquisadora

Por fim, a imagem 8, representando o Rio de Janeiro no século XIX, também apresentou
diferenças em relação às percepções gerais dos primeiros e dos terceiros anos. Nos primeiros anos,
vinte e seis, de quarenta estudantes, apontaram a imagem como não fazendo parte da América
Latina. Nos terceiros anos, treze, de vinte e dois estudantes indicaram-na como sendo da América
Latina e, inclusive, do Brasil. Essa análise também foi discutida, especialmente, nos terceiros anos,
no qual os estudantes argumentavam entre si, durante a atividade, que na imagem havia negros
servindo soldados brancos, cena comum no Brasil colonial.
Dessas observações em relação aos padrões de respostas diversos entre os primeiros anos
do Ensino Médio e os terceiros anos, observa-se que, mesmo que a discussão sobre as temáticas que
envolvem América Latina possa não ser evidente, ao longo do Ensino Médio os estudantes tendem
a construir uma análise mais crítica e reflexiva sobre as representações, sejam gráficas ou sociais,
apresentadas a eles.
Nesse sentido, realizei a análise de conteúdo das descrições feitas pelos estudantes acerca
de algumas das imagens selecionadas. Destarte, com base em Bardin (2006), é possível afirmar que
a aplicação da técnica, no presente caso, possui a função de administração de provas, ou seja, parte-
se de uma hipótese para, em seguida, procurar sua confirmação que se dá através de uma prova
obtida pela análise de conteúdo.
74

Assim, busco analisar nos registros dos estudantes, selecionando, nas imagens mais
citadas, a intensidade das expressões utilizadas ao longo dos textos, o que Richardson (p. 239) trata
como “a direção da informação”. Nesse caminho, operacionalizei as expressões que se referem ou
não à América Latina, a fim de observar o direcionamento dado por eles aos elementos que a
definem.
A primeira análise que apresento é breve, pois se refere à fotografia do Rio de Janeiro e
boa parte dos estudantes, imediatamente, reconheceu-a e, no ímpeto de fornecer “respostas certas”,
selecionou-a para a descrição. Dos que a citaram na análise mais específica solicitada, vinte e um
estudantes, dos sessenta e dois do total das turmas, apontaram-na como referente à América Latina.
Ainda, dois estudantes argumentaram não fazer parte da América Latina, por 1 ser da América do
Sul e 2 em função da língua (que não estava representada na imagem).
A grande maioria apenas argumentou que entendiam por América Latina porque era uma
imagem do Brasil, dois estudantes destacaram a relação entre a urbanização e a natureza, um
apontou que aparentava ser uma cidade populosa, e outro que já tinha visto a imagem na televisão, e
sabia que se referia ao Brasil. Grande parte dos estudantes (ver Gráfico 4) indicou a imagem como
fazendo parte da América Latina, e pelas descrições, eles entendem, de forma geral, que o Brasil é
um país que faz parte da América Latina, mesmo que não reconheçam característica em comum
com o subcontinente (como observado no diálogo inicial da aula-oficina).

Gráfico 4: Percepção geral sobre a Figura 6 – Rio de Janeiro, Brasil

Fonte: Produzido pela pesquisadora

De todos os registros coletados, selecionei quarenta e cinco para realizar a análise das
classificações das imagens em relação à intensidade das expressões. Para essa seleção, justifico que
os demais registros entregues carecem de informações passíveis de análise, com respostas abstratas,
ou porque não agregam adjetivos que descrevam as imagens, mas sim identificação, como “é
75

América Latina porque é Brasil”, ou “parece uma foto do México que já vi”, ou seja, não descrevem
os elementos que fazem os estudantes associarem as imagens à América Latina, ou a não
associação.
Expressões usadas para definir outras regiões (entre parênteses, o número da figura
relacionada):
- desenvolvido (1, 5)
- rico (1)
- estrutura organizada (5, 4)
- padrão da arquitetura (10, 10 3, 10, 10, 10, 10, 10)

Expressões usadas para definir a América Latina:


- subdesenvolvida (3, 3)
- pobreza (3, 10, 10, 3)
- arquitetura desorganizada (2)
- precisa de recursos (10)
- poluição, lixo (2, 3, 2, 3, 3, 3, 2, 2)
- povos diversos (8, 8, 8)
- escravidão (8, 8, 7)
- colonização (8, 8, 8, 7, 7, 8. 8)
- natureza (6, 6, 6)

Creio que a maioria dos estudantes tenha optado por descrever as imagens que os
remetessem à América Latina, por conta do direcionamento temático da aula-oficina. Assim, se
apresentaram mais expressões referentes ao que define o subcontinente do que as outras regiões
teriam de diferente. De qualquer forma, é possível observar o que compreendem como pertencente
ao contexto latino-americano, através de algumas expressões recorrentes e representativas: poluição
e lixo, pobreza, colonização.
Das imagens 2 e 3, que são fotografias aéreas de Berlim, Alemanha, e um bairro periférico
de Paris, respectivamente, os estudantes identificaram o aspecto cinza de Berlim e a rua sem
manutenção de limpeza de Paris como características que definiriam uma região da América Latina,
usando as expressões “poluição” e “lixo” de forma frequente.
A imagem 10, de um bairro periférico de Londres, Inglaterra, gerou muitas dúvidas,
observadas durante a atividade. Os estudantes tendiam a classificar a fotografia como pertencente à
América Latina, mas uma pequena placa escrita “Sold” (“vendido”, em inglês), e o padrão das casas
do bairro, mesmo que aparentemente negligenciado pela manutenção pública, influenciaram que
76

muitos classificassem como de outra região. Assim, a expressão que mais apareceu nessa imagem,
para defini-la como não sendo do subcontinente, foi “arquitetura padrão”. Os educandos, que a
classificaram como da América Latina, utilizaram como adjetivos “pobreza” e “poucos recursos”
para descrevê-la.
Sobre as imagens que são representações de períodos passados, as expressões empenhadas
para indicá-las como latino-americanas dizem respeito à representação do Brasil Colonial e da
estrutura produtiva agrícola inca, aspecto que demonstrou entendimento em relação a alguns
processos históricos, como a colonização e a escravidão.
Em relação à representação de Tenochtithan, cidade do Império Asteca, a grande maioria
dos estudantes classificaram-na como não pertencente à América Latina (ver Gráfico 3), os que a
selecionaram para descrição, apontaram características como desenvolvimento e organização como
marcantes na imagem e informaram que a classificariam como sendo de outra região que não fosse
a América Latina.
A proposição da aula oficina possibilitou uma série de diálogos que contribuíram para o
entendimento tanto no que diz respeito à origem do conhecimento e à interpretação dos estudantes
sobre como eles percebem as paisagens e as relações que estabelecem entre os elementos das
mesmas e a região a que pertencem, quanto ao desenvolvimento do seu pensamento crítico, uma
vez que eles passaram a questionar como se constituíram suas opiniões e percepções a respeito da
América Latina e do mundo, o que será discutido no subcapítulo a seguir.

4.2 Uma perspectiva sob a ótica de Paulo Freire

Depois dos procedimentos metodológicos apresentados e aplicados durante a pesquisa, é


possível constatar que existe pouca preocupação com as temáticas relacionadas à América Latina no
currículo escolar brasileiro, especialmente na disciplina de História – foco desta pesquisa – desde os
primórdios da organização curricular no Brasil, a partir do final do século XIX e início do século
XX, modelo de educação que usou como referência as experiências no Colégio Dom Pedro II.
Retomando as análises do capítulo 2, é importante salientar que o ensino tradicional de
História dá-se sob uma perspectiva linear que destaca os ciclos econômicos (BITTENCOURT,
2010) e, além disso, cabe salientar que a América Latina sempre foi abordada tendo em vista essa
relação econômica e social, de acordo com os contextos políticos do Brasil. A conexão estabelecida
com o subcontinente ocorria a partir das diferenças, dos momentos em que o país buscava, através
da Educação, a construção de uma identidade nacional, e por meio das semelhanças, quando a
instituição governamental visava o alinhamento político e ideológico com os demais países latino-
americanos (DIAS, 1997; KALIL-ALVES & OLIVEIRA, 2011).
77

Já na análise dos “Parâmetros Curriculares Nacionais para a Educação Básica” é


significativo o fato de que, nas quase duzentas páginas dedicadas à disciplina (ou componente
curricular) de História, as menções à América Latina sejam ínfimas. Mesmo quando o enfoque dos
documentos centra-se na construção da identidade e na valorização da diversidade cultural, são
apresentadas as diferenças e as semelhanças entre os processos históricos e sociais, sem propor
maiores interlocuções identitárias, políticas ou sociológicas, entre a construção histórica do Brasil e
do subcontinente.
Quanto ao que os estudantes do Ensino Médio entendem ou conhecem sobre a América
Latina, percebe-se uma tendência a não se apropriarem das temáticas referentes ao subcontinente, e
suas interpretações são notadamente marcadas por impressões desenvolvidas a partir de outras
fontes de informação que não a escola.
Ademais, tanto algumas falas dos estudantes, que serão analisadas neste subcapítulo,
quanto os resultados de análises de outros pesquisadores, como Nadai (1993) e Abud (2010) – que
percebem o enfoque na construção da História institucionalizada no Brasil sobre o colonizador
europeu como um processo natural e necessário, tendo em vista a linearidade civilizacional da
História tradicional – evidenciam que a disciplina de História no Brasil, mesmo que sua essência de
consolidação tenha sido a construção de uma identidade nacional, acaba sempre por vincular os
processos históricos através do viés europeu, dando pouca relevância aos conflitos e processos
históricos e sociais internos no subcontinente, seja para a constituição da sociedade brasileira, seja
para discutir uma parte do mundo que tem suas peculiaridades e relevância.
A consequência desta estruturação da disciplina de História, ao longo do tempo no Brasil, é
evidenciada também nas análises realizadas em sala de aula: pouco conhecimento sobre a expressão
ou o conceito de “América Latina”, reconhecimento de características negativas em relação à
sociedade, cultura e economia dos demais países que compõem o subcontinente, e a falta de
interesse na aprendizagem de temas referentes a eles. Além dessas condições institucionais
percebidas, o que contribui para que os estudantes não a reconheçam e não se vejam como parte
dessa região que possui aspectos históricos, culturais e sociais tão semelhantes? Proponho-me a
interpretar esse problema a partir dos conceitos de “consciência hospedeira” e “invasão cultural”,
discutidos na obra Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 1981).
Esta análise trata-se de uma ótica sobre a questão, que não intenta ser única e definitiva,
mas visa entender a realidade identificada na pesquisa a partir desses conceitos construídos por
Freire para descrever a realidade opressora, como ela atua na nossa consciência e no entendimento
que desenvolvemos sobre determinados temas, neste caso, a América Latina. O autor discute, na
obra em questão, alguns mecanismos utilizados para sustentar a estrutura social ao nível local e
global; nesses mecanismos ele trata da educação bancária, que consiste no entendimento e
78

organização da educação como meio de socialização e depósito de conhecimentos preexistentes,


que acaba por perpetuar as estruturas sociais, políticas e produtivas, posto que, a

[...] educação como prática da dominação que vem sendo objeto desta crítica,
mantendo a ingenuidade dos educandos, o que pretende, em seu marco ideológico
(nem sempre percebido por muitos dos que a realizam), é indoutriná-los no sentido
de sua acomodação ao mundo da opressão (FREIRE, 1981, p. 76).

Tendo em vista o histórico do desenvolvimento da Educação no Brasil, percebe-se que o


objetivo de construção de uma identidade nacional sempre acabava por vincular a história e a
cultura do Brasil ao processo de colonização europeu. Obviamente esse é um marco que constituiu
o território brasileiro, mas se vê na análise dos PCNs da disciplina de História muito pouca, ou
quase nula, ênfase aos processos sociais e históricos internos no subcontinente latino-americano,
naturalizando o processo de colonização naquela perspectiva histórica de linearidade em direção ao
progresso (BITTENCOURT, 2010), que é colocado como o modelo de sociedade com as
manifestações culturais tipicamente europeias.
Os conceitos mais relevantes para o desenvolvimento desta análise são os da “consciência
hospedeira” e o da “invasão cultural”, que dificilmente são dissociados numa definição, porque eles
se retroalimentam no processo de educação dos indivíduos, nesse caso, dando enfoque ao espaço
institucionalizado da escola. Na concepção de educação bancária, em que o estudante é um
receptáculo de ideias, conceitos e posturas consolidados anteriormente a eles, o enquadramento está
na estrutura social e econômica na qual estamos inseridos, dividida, essencialmente, entre aqueles
que detêm os meios de produção e os que vendem sua força de trabalho.
Dada essa realidade, sem questionamentos, os estudantes, em sua essência, não chegam a
questionar a origem dessa estrutura ou se ela é a única possibilidade. Dessa inércia se mantém o
entendimento de que alguns têm mais poderes econômicos, políticos e sociais, simplesmente porque
os têm, ou porque tiveram sucesso em conquistá-los.
Quando a educação não se propõe a ser dialógica (FREIRE, 1981, p. 78), e a concepção da
sociedade, tal como é, é colocada de forma naturalizada, o estudante passa a associar os processos
históricos e sociais entre sucesso e fracasso e, nessa perspectiva linear, seu objetivo é alcançar o
sucesso. Dessa forma, os educandos desenvolvem a “consciência hospedeira”, uma vez que:

Todo ato de conquista implica num sujeito que conquista e num objeto
conquistado, que passa, por isto mesmo, a ser algo possuído conquistador. Este, por
sua vez, imprime sua forma ao conquistado que, introjetando-o, se faz um ser
ambíguo. Um ser, como dissemos já, “hospedeiro” do outro (FREIRE, 1981, p.
162).
79

A partir do processo de invasão e conquista das nações europeias sobre as sociedades


americanas, iniciado no século XV, fica claro o processo de dominação promovido pelos
conquistadores, e esta passagem de Freire traduz perfeitamente o processo de aculturação a que
nossos povos foram submetidos e o são até hoje, através de mecanismos mais abrangentes e
globalizantes: “O antidialógico se impõe ao opressor, na situação objetiva da opressão, para, pela
conquista, oprimir mais, não só economicamente, mas culturalmente, roubando ao oprimido
conquistado sua palavra também, sua expressividade, sua cultura” (op. cit.).
O resultado desse processo sócio-histórico, teorizado por Freire, é percebido através da
análise dos dados emanados dos questionários iniciais aplicados aos estudantes de Ensino Médio,
que tratavam de questões sobre o interesse, o conhecimento e a aproximação cultural deles em
relação a países selecionados da Europa e da América Latina, assim como o Japão, escolhido em
função da relação com a tecnologia, que é alvo do interesse latente da juventude do século XXI.
Na aplicação dos questionários, Marconi e Lakatos (1999, p. 100) sugerem que o
pesquisador deve situar os sujeitos sobre a natureza da pesquisa, informando-os os objetivos
principais e a relevância do tema. Os questionários foram aplicados em sala de aula, e quando
apresentei a temática e relevância da pesquisa, indicando o tema América Latina como central na
análise, grande parte dos estudantes pediram explicações sobre o que consistia “América Latina”, o
que já demonstra o distanciamento em relação ao tema, o que constitui parte da hipótese inicial.
Para não induzir respostas, apenas situei geograficamente o subcontinente, para que eles pudessem
responder a algumas das questões.
Buscando aqui reforçar a hipótese, apresento a análise de uma questão fechada com
desdobramento referente ao interesse por parte dos estudantes em conhecer e se apropriar dos
aspectos culturais e intelectuais, que visaram diagnosticar qual a sua percepção geral sobre alguns
países do continente Europeu e do subcontinente latino-americano: “Indica de 1 a 5 quais dos países
possuem aspectos culturais que tu consideras como interessantes e capazes de acrescentar no teu
desenvolvimento intelectual, sendo 1 “não possui aspectos que me chamem a atenção e 5 “possui
aspectos importantes para meu desenvolvimento intelectual. Por quê?”.
Das trinta e seis respostas obtidas, da tabulação dos países apresentados (Inglaterra,
Portugal, Estados Unidos da América, Argentina, México, Japão, França, Peru, Alemanha, Espanha
e Chile), os países que foram mais elencados em relação ao interesse em se conhecer são do
continente europeu, com destaque para os Estados Unidos da América, que é do subcontinente
Anglo-Americano, mas que, historicamente, também será válido e discutido na pesquisa, por, nos
últimos séculos, possuir importante influência política, econômica e cultural mundialmente. Ainda,
se percebe muito pouco interesse em relação aos países latino-americanos citados no questionário
(Gráfico 5).
80

Gráfico 5: Países com aspectos culturais considerados interessantes e capazes de acrescentar no


desenvolvimento intelectual dos estudantes

Fonte: Produzido pela Pesquisadora.

A parte aberta da questão busca justificar o interesse elencado pelos países e divide as
respostas obtidas em: “Interesses”, “Desenvolvimento e investimentos”, “Cultura”, “Outros” e
“Sem resposta”, e o que se constata é que as escolhas estão relacionadas, especialmente, a
“desenvolvimento e investimentos”, ou seja, os países mais bem numerados seriam mais econômica
e socialmente desenvolvidos, outro aspecto relacionado é a “cultura”. De dez respostas voltadas à
cultura, apenas uma destaca países latino-americanos como interessantes, algumas respostas
denotam identificação maior com os países melhor classificados, isto é, do continente europeu.
O que se pode apreender desta análise é que os jovens de fato desenvolvem um
conhecimento, e, consequentemente, uma aproximação cultural muito maior com as referências
europeias e pouco conhecem sobre os processos históricos e culturais do subcontinente que
integram. Seguindo a perspectiva de Freire, fica clara aqui a constituição da “consciência
hospedeira” que identifica os países colonizadores e, por consequência os opressores, como
referência de sociedade.
Certamente essa condição não é consequência exclusiva da educação institucional. Os
meios de comunicação, especialmente a televisão e a internet, influenciam muito no tipo de produto
cultural que os jovens e os estudantes têm ou não acesso e o consolidam como padrão. Esta é uma
discussão interessante que pode ser feita sobre a contradição do processo de globalização que, ao
mesmo tempo em que proporciona acesso mais facilitado ao conhecimento e a produções culturais
exóticas, acaba por homogeneizar, através do poder econômico, a massificação de artistas e
produções culturais específicas dos países que detêm o maior controle econômico.
81

Entretanto, o objetivo desta pesquisa, em especial, é analisar o papel da estrutura


educacional brasileira, com enfoque na disciplina de História, e no afastamento do educando de
Ensino Médio brasileiro em relação aos temas e aspectos referentes à América Latina
(consequentemente, suas origens) a partir do entendimento da produção da consciência hospedeira.
Uma questão do questionário mais relacionada aos conhecimentos que podem ser
construídos a partir dos conteúdos curriculares é a seguinte: “Marca os países que tu acreditas
fazerem parte do grupo de Muito Alto Desenvolvimento Humano, segundo a ONU”. Dentre os
países que selecionei para as opções, três são latino-americanos (Argentina, Brasil, Chile), dois da
Europa (Espanha e Reino Unido), um da África (África do Sul), um da Ásia (China) e um da
América Anglo-Saxônica (Estados Unidos da América). Desses, exceto a África do Sul, o Brasil e a
China, todos fazem parte do grupo dos melhores classificados no Índice de Desenvolvimento
Humano no Ranking Global de 2014.

Gráfico 6: Países que os estudantes consideram estar entre o grupo de Muito Alto Desenvolvimento
Humano

Fonte: Produzido pela Pesquisadora.

O dado mais perceptível no gráfico relaciona-se ao fato de que os EUA é unanimidade ao


pensar em desenvolvimento humano. A China é o segundo país mais apontado, talvez pela sua
penetração econômica nas últimas décadas no mercado, o que demonstra associação direta dos
estudantes entre desenvolvimento econômico e desenvolvimento humano (ressaltando que a China
não integra o grupo de Muito Alto Desenvolvimento Humano). Reino Unido ainda possui uma
classificação significativa, enquanto a Espanha já é indicada menos vezes (número inferior à
metade). Uma hipótese para esse fato pode ser a relação estabelecida entre a Espanha e os países
latino-americanos. Em outras palavras, considerando que os países menos apontados como bem
82

desenvolvidos pelos estudantes são de colonização espanhola e portuguesa, pode indicar que esses
países não foram eficientes no seu processo de conquista.
Porém, o que é mais significativo para esta interpretação é o fato de que Argentina e Chile,
que fazem parte do grupo de Muito Alto Desenvolvimento Humano no IDH, comparado com os
demais países (exceto Brasil e África do Sul), têm indicação quase nula nos questionários. Tais
países estão, então, invisibilizados pelos estudantes.
Após algumas das análises desenvolvidas nesta dissertação, é possível delimitar algumas
razões para tal. Considerando a análise dos PCNs e constatando a pouca ou quase nula indicação de
temáticas que abordem a América Latina ou relacionem-na a conteúdos estruturantes da História, e
realizando a triangulação com as evidências obtidas através das aulas-oficinas, é evidente que os
estudantes não percebem o subcontinente como uma região que possa abarcar desenvolvimento
econômico, social e cultural.
Trago essa frase retirada dos registros dos estudantes durante as aulas-oficinas para
expressar esse entendimento sobre o subcontinente, discutir a representação social que existe e o
papel da escola: “Na escola, não me lembro de muito sobre América Latina, porém, através da
mídia é passada a imagem da America Latina, no geral, mais marginalizada, mais
‘subdesenvolvida”
Quando a escola deixa de realizar a análise e a reflexão de qualquer tema ou fenômeno
relevante na História, ela abre mão de desenvolver consciência crítica nos jovens educandos. A
mídia, por sua vez, seja tradicional ou alternativa, assume o papel de fornecer as informações e
influenciar na construção das opiniões e das compreensões sobre aspectos sociais e políticos.
Em relação à América Latina, quando os temas históricos, políticos e sociais do
subcontinente não são discutidos no espaço escolar, a questão da construção da identidade e a
relação entre as diferenças e semelhanças, tão citadas nos PCNs de História como objetivos da
disciplina, perdem-se e ficam a cargo das experiências além da escola nas quais os estudantes estão
imersos.
Freire aponta que um mecanismo da invasão cultural “coerente com sua matriz
antidialógica e ideológica, jamais possa ser feita através da problematização da realidade e dos
próprios conteúdos programáticos dos invadidos” (1981, p. 179). Dessa maneira, diante da realidade
pesquisada, é possível afirmar que os marcos regulatórios e legislativos da Educação Básica no
Brasil não preconizam o estudo de temas referentes à América Latina, e essa condição acaba por
reforçar o mecanismo da invasão cultural.
Ainda segundo a perspectiva de Freire (1981, p. 184), estamos condicionados a uma
cultura do êxito e do sucesso pessoal que influencia diretamente nossas concepções acerca de
temáticas sociais e, nesse sentido, a tendência é negar uma realidade que seja desfavorável ao êxito
83

pessoal. Quando os estudantes afirmam que a América Latina é colocada numa perspectiva negativa
(quando é colocada), relacionando os países especialmente à pobreza e ao subdesenvolvimento, a
reação é o afastamento da sua cultura e da sua realidade social do que é concebido como “fracasso”.
Além disso, Paulo Freire (op. cit.) relata uma experiência realizada em Nova York, que se
assemelha à que pratiquei com os estudantes de Ensino Médio, na qual uma educadora apresentou a
imagem de uma esquina da rua, onde se realizava uma atividade com grupos de áreas pobres da
cidade, e os participantes não reconheciam a paisagem como parte da sua realidade, apontando-a
como sendo da África ou da América Latina.
O autor analisa tal reação aos conceitos de consciência dual ou hospedeira e de invasão
cultural que são as bases da realidade opressora em que estamos inseridos:

Submetidos ao condicionamento de uma cultura do êxito e do sucesso pessoal,


reconhecer-se numa situação objetiva desfavorável, para uma consciência alienada,
é frear a própria possibilidade do êxito.
Quer neste, quer no caso dos profissionais, se encontra patente a força
“sobredeterminante” da cultura em que se desenvolvem os mitos que os homens
introjetam.
Em ambos os casos, é a cultura da classe dominante obstaculizando a afirmação
dos homens como seres da decisão (FREIRE, 1981, p. 184).

A invasão cultural atua de forma a suprimir a capacidade criativa e de autoria dos sujeitos
que são submetidos à dominação e à conquista: “Daí que, na ação da conquista, não seja possível
apresentar o mundo como problema, mas, pelo contrário, como algo dado, como algo estático, a que
os homens se devem ajustar” (FREIRE, 1981, p. 163). A imposição de um entendimento de
civilização trazida pelos colonizadores europeus e o “pacote” que deve vir com ela (religião,
padrões de vida e de consumo, produção artística, etc.) produz neles a consciência de que o seu
modo de vida, seus hábitos e sua cultura estão superados pelo progresso ocidental. Mais adiante, os
Estados Unidos da América assumem esse papel de conduzir os padrões econômicos e culturais da
América Latina, subjugando cada vez mais a autonomia social, cultural e econômica dos povos
nativos.
Trazendo novamente para a experiência da aula-oficina, apresento outras duas afirmativas
que evidenciam a relação entre a forma como os estudantes enxergam a América Latina:

Os meios onde são reproduzidos, em geral, são as mídias sociais, que nos passam a
imagem de uma América Latina “quebrada”, sem muitos pontos turísticos e
eventos interessantes, enquanto fortalecem a Europa, os Estados Unidos. Assim,
nos fazem perder o interesse em nosso próprio continente, através de mercadorias,
filmes, músicas, livros, história, etc.;

Algumas partes da América serviram como colônia de exploração para e Europa e


isso reflete nas nossas vidas até hoje, pois nosso continente se tornou ‘pobre’ e
84

relativamente atrasado comparado a outros. E sim, o Brasil pertence à América


Latina, mas geralmente esquecemos isso, tentando constantemente se adaptar aos
costumes europeus e norte-americanos.

Esses registros partiram de estudantes do terceiro ano do Ensino Médio, que percebem que
a forma como eles mesmos entendem a América latina é influenciada pelas mensagens e
significados passados pela mídia, quando a escola aparentemente desconsidera a potencialidade dos
temas referentes ao subcontinente. Freire (1981, p. 179) alerta que o princípio básico da invasão
cultural é o reconhecimento por parte dos invadidos como seres inferiores, e, consequentemente,
eles passam a ver os invasores como superiores e adotam seus valores e conquistas como objetivos.
Assim, seu entendimento de sociedade constitui-se através das relações socioculturais em que, se a
escola se omite de exercer sua vocação crítica e analítica, outras instituições assumem o papel de
construir.
Naturalmente, por mais que o discurso identificado nos PCNs de História seja voltado para
o reconhecimento de diferenças e semelhanças, permanências e transformações, e destaque o papel
da História na construção da identidade, mesmo na teoria falta uma maior ênfase à potencialidade
dos temas relativos à América Latina. Na prática, essa abordagem depende de indivíduos e de
instituições permeadas pela condição dual e hospedeira da realidade na qual estamos inseridos. De
acordo com Freire:

Com efeito, na medida em que uma estrutura social se denota como estrutura
rígida, de feição dominadora, as instituições formadoras que nela se constituem
estarão, necessariamente, marcadas por seu clima, veiculando seus mitos e
orientando sua ação no estilo próprio da estrutura.
Os lares e as escolas, primárias, médias e universitárias, que não existem no ar, mas
no tempo e no espaço, não podem escapar às influências das condições objetivas
estruturais dominadoras, como agências formadoras de futuros “invasores”.
As relações pais-filhos, nos lares, refletem, de modo geral, as condições objetivo-
culturais da totalidade de que participam. E, se estas são condições autoritárias,
dominadoras, penetram nos lares que incrementam o clima da opressão (FREIRE,
1981, p. 180-181).

Consequentemente, considerando as comunidades escolares de forma geral, também é


possível deduzir que a inserção da América Latina no currículo de História na Educação Básica
também está condicionada às tendências de todos os sujeitos do processo de ensino e de
aprendizagem. Dependendo, também, do interesse do professor, da elaboração do plano de ensino
da escola no que tange à dedicação maior ou menor aos temas referentes ao subcontinente e, ainda,
do nível de conscientização desses sujeitos acerca da importância de se discutir os processos
históricos e as questões sociais através da perspectiva própria latino-americana.
85

Se institucionalmente não temos uma orientação mais objetiva quanto à relevância das
temáticas, ainda mais quando elas estão permeadas de sentidos e de significados que se propõem à
análise crítica das questões, sejam históricas ou sociais, dificilmente teremos uma prática de ensino
que, espontânea e organicamente, se proponha a superar a realidade construída através da
consciência hospedeira do opressor pelo oprimido e da invasão cultural que limita as
potencialidades dos sujeitos.
5 TEMAS GERADORES E PROPOSTA DE SUPERAÇÃO DO PARADIGMA
OPRESSOR

O que é possível evidenciar, a partir das análises dos dados obtidos através de análise de
conteúdo e aulas-oficinas com estudantes do Ensino Médio público, é que, via de regra, a América
Latina e seus temas pertinentes estão à margem da importância em relação aos objetivos da
Educação Brasileira de forma institucional, mantendo os educandos afastados do subcontinente do
qual fazem parte. Mesmo que nos PCNs da disciplina/componente curricular de História as questões
da cidadania e, especialmente, da identidade, sejam colocadas como basilares na construção do
conhecimento histórico, o subcontinente quase não é mencionado e não é relacionado com o
desenvolvimento desses conceitos.
Em relação ao pensamento-linguagem dos estudantes participantes da pesquisa, observam-
se na prática (e na práxis2) as consequências da pouca relevância dada ao subcontinente na
constituição da disciplina escolar de História no Brasil. Constatei, através dos questionários, que
existe pouco interesse dos discentes em conhecer e se apropriar de aspectos culturais de países
latino-americanos, dando preferência e se reconhecendo em relação aos países do continente
europeu e aos Estados Unidos da América.
Tanto nos questionários, quanto nos dados obtidos nas aulas-oficinas, também é possível
constatar que a América Latina está relacionada, para os estudantes, com a pobreza e
subdesenvolvimento, e essas características contribuem para o pouco interesse em relação a
conhecer seus países. Os educandos também apontam a falta de acesso aos conteúdos referentes ao
subcontinente na escola, uma vez que há poucas referências prévias, já que a História contada nas
escolas foca em eventos e processos da Europa, segundo as críticas dos próprios alunos. Sendo
assim, essa falta de referências históricas e econômicas influencia para que eles pouco se
interessem, se reconheçam e se identifiquem com o subcontinente latino-americano, seja pelos
aspectos culturais e históricos, seja pelos sociais e econômicos.
Dadas essas constatações, analisei a partir da teoria de Paulo Freire em Pedagogia do
Oprimido (1981), como se deu e como se dá esse processo de afastamento social e cultural dos
estudantes em relação à América Latina, e é possível relacionar tal evidência aos conceitos de
consciência hospedeira e de invasão cultural.

2
De acordo com Freire (1981), práxis significa que, ao mesmo tempo, o sujeito age/reflete e ao refletir age, ou se
desejarmos, o sujeito da teoria vai para a prática e da sua prática chega à nova teoria, sendo assim, teoria e prática se
fazem juntas, perpetuam-se na práxis.
87

Pensando nas etapas da pesquisa-ação discutidas no quadro metodológico (OLIVEIRA E


OLIVEIRA in BRANDÃO, 1990, p. 27), e mantendo alinhamento com os postulados teóricos
utilizados para a análise desta pesquisa, torna-se necessário sistematizar uma proposta de ação
voltada para os problemas evidenciados, a fim de superá-los a partir da prática educativa.
Nesse sentido, optei por discutir a relevância metodológica dos temas geradores, proposta
de Freire ainda em Pedagogia do Oprimido, como prática dialógica que contrapõe a educação
bancária que reforçam os mecanismos de conquista como o da invasão cultural e da consciência
hospedeira. A obra Pedagogia do Oprimido foi escrita a partir de experiências e proposições
referentes à alfabetização de jovens e adultos, e assim Paulo Freire descreve a inserção do
investigador e educador na realidade em que irá trabalhar, e propõe estratégias de busca por
palavras e temáticas que sejam parte do cotidiano dos educandos para estimular a aprendizagem dos
mesmos (1981, p. 121-122).
Nesta pesquisa, entretanto, a realidade de atuação é um pouco diferente da que Freire
constroi sua teoria e sua metodologia. Analiso o contexto educacional brasileiro no início do século
XXI, em específico na disciplina de História, e o enfoque são estudantes regulares do Ensino
Médio, entre 14 e 20 anos de idade. A pesquisa é realizada com educandos matriculados no Ensino
Básico regular em escola pública no Rio Grande do Sul, fora da região metropolitana.
Dessa forma, são necessárias algumas adaptações, considerando que eles estão numa etapa
de escolarização regular – Ensino Médio – que, de acordo com a “Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Brasileira”, de 1996 e os “próprios Parâmetros Curriculares Nacionais”, tem como
finalidade, dentre outras, a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no
Ensino Fundamental, e desenvolver a formação ética, a autonomia intelectual e o pensamento
crítico. Assim, entendo que, nessa etapa, as práticas pedagógicas devem focalizar a discussão e a
análise crítica de temas que favoreçam a constituição do cidadão crítico e consciente de sua
condição ética, social e cultural.
Através desta pesquisa, é possível constatar uma demanda relevante em relação ao
reconhecimento de temas e processos históricos referentes à América Latina, muitas vezes
negligenciados aos estudantes nas etapas do processo de constituição da Educação Básica, em
específico da disciplina de História. Esta proposta refere-se a trabalhar o subcontinente como tema
gerador no ensino de História no Ensino Médio, com o objetivo de contribuir para a formação
cidadã e de identidade dos estudantes e realizar análises críticas sobre os contextos sociais,
históricos, econômicos globais, a partir das experiências no subcontinente.
88

5.1 Temas Geradores

Para apresentar brevemente no que consistem os temas geradores como proposta


metodológica, discutirei a relação entre os mecanismos de conquista como os da invasão cultural e
consciência hospedeira, além da construção da concepção histórica, demonstrando a pertinência de
uma abordagem dialógica para o desenvolvimento do pensamento crítico, pois:

Opõe-se ao pensar ingênuo, que vê o “tempo histórico como um peso, como


estratificação das aquisições e experiências do passado”, de que resulta dever ser o
presente algo normalizado e bem comportado.
[...] Para o pensar ingênuo, a meta é agarrar-se a este espaço garantido, ajustando-
se a ele e, negando a temporalidade, negar-se a si mesmo.
Somente o diálogo, que implica num pensar crítico, é capaz também de gerá-lo.
[...] A educação autêntica, repitamos, não se faz de “A” para “B” ou de “A” sobre
“B”, mas de “A” com “B”, midiatizados pelo mundo. Mundo que impressiona e
desafia a uns e a outros, originando visões ou pontos de vista sobre ele. Visões
impregnadas de anseios, de dúvidas, de esperanças ou desesperanças que
explicitam temas significativos, à base dos quais se constituirá o conteúdo
programático da educação (FREIRE, 1981, p. 97-99).

Nesse excerto, é possível avaliar o impacto das condições de conquista e da realidade


opressora analisadas por Freire no entendimento do que é História e da nossa posição nela,
enquanto objetos ou sujeitos. Em relação ao pensar ingênuo favorecido pela educação bancária, a
História tem um papel condicionante dos indivíduos, pois os estudantes adquirem determinadas
informações sobre fatos históricos e adaptam a sua consciência ao que já está dado, aspecto que
anula a possibilidade dos sujeitos serem atores dos processos em que estão inseridos.
Já o pensar crítico defendido por Freire considera que nossas percepções estão
condicionadas aos elementos que temos acesso, seja via escola, seja através de outros espaços de
socialização, mas que o diálogo e o questionamento dessa realidade e percepções são importantes
para ampliar essas perspectivas. E o papel do educador-educando é reconhecer essas realidades e
problematizá-las com os educandos-educadores. E, neste processo, o conteúdo programático se
constrói a partir dessas demandas por temáticas.
O que se percebe, no dia a dia do contexto escolar e na prática educativa, é a situação
presente, concreta e existencial da invisibilidade da América Latina. Especialmente através das
aulas-oficinas, tornaram-se claras algumas questões que estão postas como realidade objetiva dos
estudantes, como a interpretação de que o subcontinente é pobre, pouco desenvolvido, com pouca
influência cultural e histórica na sociedade ou realidade brasileira.
Concordo com Freire quando aponta que: “Neste caso, os temas se encontram encobertos
pelas ‘situações-limites’ que se apresentam aos homens como se fossem determinantes históricas,
esmagadoras, em face das quais não lhes cabe outra alternativa, senão adaptar-se” (1981, p.110).
89

Institucionalmente, além de se priorizar conteúdos e processos sociais e históricos do continente


europeu, quando se trata o Brasil nos PCNs, ele vem descolado do contexto latino-americano, o que
também parece contribuir para o afastamento que os estudantes brasileiros expressam em relação ao
subcontinente ao qual fazem parte.
Nos PCNs, o conceito apresentado para tentar contribuir para a formação cidadã dos
educandos na estrutura atual de ensino, é o de tema transversal. Essas proposições buscam
contemplar dimensões da formação escolar que não são enfoque das disciplinas escolares, mas que
englobam temas pertinentes à realidade e ao convívio social.
Em relação aos temas transversais, Macedo (in MOREIRA, 1999, p. 45) destaca que o
próprio MEC, na elaboração dos PCNs e dos temas transversais, admite a dificuldade que a
estruturação da Educação brasileira impõe à formação do cidadão crítico e do conhecimento
integral. Porém, mesmo confirmando tais limitações, não se discute no Brasil, de forma séria,
conceitual e prática, uma organização escolar que possibilite a elaboração e a prática de ensino que
supere a multidisciplinaridade em direção à interdisciplinaridade.
O autor evidencia, ainda, que a necessidade dos temas transversais propostos nos PCNs
indica que os mesmos não contemplam na sua estruturação curricular as temáticas consideradas
necessárias para a formação cidadã e do pensamento crítico, o que diz respeito ao caráter seletivo
dos currículos escolares, que elencam assuntos mais ou menos relevantes a serem apreendidos pelos
estudantes e cabe, neste caso, aos temas transversais, cumprir essa função de dar sentido social ao
conhecimento disciplinar.

Parece-nos incontestável a opção dos PCN por uma abordagem disciplinar do


conhecimento escolar. Essa é sua estrutura fundamental, o eixo em torno do qual se
desenvolve o desenho curricular. Esse núcleo é, então, atravessado pelos temas
transversais. Esses temas não são disciplinas, eles devem perpassar l todas as
disciplinas em razão de sua importância social. Os PCN estão propondo a
manutenção da lógica das disciplinas e a introdução de temas transversais de
relevância social. A despeito dessa relevância, os temas transversais serão
introduzidos sempre que a lógica disciplinar permitir (MACEDO in MOREIRA,
1999, p. 56)

A estrutura do ensino básico, em geral, se apresenta distribuída em disciplinas ou


componentes curriculares que, na prática, não dialogam, gerando um processo educacional
desarticulado, não permitindo ao educando seu desenvolvimento pleno e a construção da sua
concepção de mundo como unidade. A interdisciplinaridade tende a possibilitar a superação da
fragmentação das ciências e do conhecimento produzido, em detrimento de saberes integrais e
totalizantes.
90

Essa realidade da educação distancia os estudantes do conhecimento e dificulta a


percepção do mundo enquanto unidade, bem como não contribui para a construção de significado
do objeto aprendido. O diálogo entre as disciplinas, especialmente entre os sujeitos educadores e
educandos, para além da divisão institucional de turmas, propõe a reciprocidade entre as várias
áreas de ensino, objetivando promover a unidade entre os sujeitos partícipes do processo de ensino-
aprendizagem.
Quando se discute a aplicabilidade da metodologia dos temas geradores, e mesmo dos
transversais, esbarra-se num impasse estrutural e administrativo: os recursos humanos e materiais
para a interdisciplinaridade. A estrutura adequada constitui-se como uma das prerrogativas para o
sucesso de se trabalhar com temáticas de interesse coletivo e social que perpassem todas as
disciplinas do currículo escolar.
Em muitas escolas públicas brasileiras existe a tentativa de se trabalhar os temas
transversais. Porém, mesmo a legislação brasileira reservando um terço da carga horária dos
professores e professoras à elaboração de aulas e de reuniões, na prática, não é o que acontece, seja
por inflexibilidade de horários, seja por contenção de gastos públicos. Ademais, quando efetiva, a
lei contempla apenas professores e professoras nomeadas em cargos públicos, no caso do Rio
Grande do Sul, em específico, os contratados emergencialmente não possuem essa flexibilidade de
carga horária.
Acredito que para contribuir com a formação da identidade, a partir do reconhecimento de
semelhanças e diferenças (BRASIL, 2006, p. 75) e desenvolver o respeito à diversidade, que
aparece nos PCNs como uma condição relevante para o ensino de História (BRASIL, 1997, p. 40;
46), o enfoque nos processos sociais, históricos e culturais da América Latina é profundamente
relevante, tanto para o entendimento em escala global dos eventos históricos, quanto para a
constituição de identidade regional e construção do pensamento crítico, uma vez que: “Através de
sua permanente ação transformadora da realidade objetiva, os homens, simultaneamente, criam a
história e se fazem seres histórico-sociais” (FREIRE, 1981, p. 108).
Ao lançar a reflexão da perspectiva do dominado, ou do oprimido, como Stavenhagen
(1972) sugere, seguindo os conceitos teóricos de Freire, proporciona-se que os estudantes
questionem o porquê de não terem pensado a partir dessa perspectiva e, assim, estimule-se o
diálogo. Mesmo nas aulas-oficinas utilizadas para auferir a hipótese de pesquisa, acabou-se,
também, por codificar a situação existencial concreta de que muitos estudantes mal tinham
conhecimentos sobre a América Latina, e que nunca haviam parado para pensar sobre essa
perspectiva.
91

Ainda quando um grupo de indivíduos não chegue a expressar concretamente uma


temática geradora, o que pode parecer inexistência de temas, sugere, pelo contrário,
a existência de um tema dramático: o tema do silêncio. Sugere uma estrutura
constituinte do mutismo ante a força esmagadora de “situações-limites” em face
das quais o óbvio é a adaptação (FREIRE, 1981, p. 115).

Por isso, para se pensar a metodologia dos temas transversais, e mais ainda quando se trata
dos temas geradores, que emanam de pesquisas e discussões de cada realidade de turma e escola,
que devem ser codificadas e descodificadas, reforça-se a ideia de que a estrutura do sistema de
ensino precisa ser repensada. Entretanto, a proposta de devolução sistemática a partir das reflexões
desta pesquisa pretende apresentar ao mesmo tempo uma possibilidade concreta de ação pedagógica
nos padrões atuais da estruturação curricular, sem excluir e objetivando superar as limitações
teóricas e estruturais do currículo e da Educação brasileira.

5.2 Sequência didática

Nos anos de 2017 e 2018, na Escola Estadual Lília Neves, ambiente desta pesquisa,
esbocei, juntamente com dois professores, um projeto além do multidisciplinar, embasados na
perspectiva de Freire. Entre um grupo de professores lecionando História, Sociologia, Geografia e
Filosofia e, em alguns momentos, Educação Física, organizaram-se aulas interdisciplinares nas
quais os professores das disciplinas mediavam juntos, em sala de aula, o desenvolvimento dos
conteúdos a partir de temas geradores. Cabe salientar que essa prática exigia uma carga de trabalho
extra não remunerada, visto que os professores participavam das aulas uns dos outros fora da sua
carga horária regular.
A primeira experiência foi a partir do tema gerador “racismo”, na qual foi abordado o filme
“Invictus”, que retrata a ascensão de Nelson Mandela na presidência da África do Sul e sua
estratégia de união a partir do esporte, o Rúgbi. Em Educação Física, discutiram-se os diversos
casos de racismo e invisibilidades no esporte. Na Sociologia, abordou-se a teoria de Freire sobre o
conceito de “ser mais”, identificando na figura de Nelson Mandela uma atitude direcionada em
romper o ciclo opressor. Em História e Geografia, debateu-se, com os estudantes, acerca dos
diversos tipos de repressão étnica e racial ao longo do tempo e suas consequências no espaço
geográfico.
Considerando a origem dos temas geradores, partindo do interesse dos estudantes, foram
abordadas temáticas latentes na realidade dos jovens estudantes de Ensino Médio, como o
feminismo e relacionamentos abusivos, o debate sobre aborto, a suposta relação entre pobreza e
taxa de fecundidade apresentadas por eles, por meio das quais pudemos dialogar e
desconstruir/descodificar a impressão distorcida da realidade sobre a causalidade, dentre outros
92

temas surgidos das demandas dos educandos e que faziam parte da análise das disciplinas,
especialmente as das Ciências Humanas. A presença dos professores juntos no mesmo espaço e
tempo de sala de aula permite uma dimensão mais real da interdisciplinaridade, favorecendo a
compreensão dos estudantes acerca da dimensão do conhecimento do mundo e de seu contexto
sócio histórico.
Partindo desta análise, considero que a metodologia de temas geradores apresentada por
Freire, demanda uma ressignificação da estrutura institucional e curricular da Educação brasileira,
que se encaminhe de fato para os objetivos apontados como basilares nos PCNs e na LDBEN de
1996. Em meio a esse caminho, é necessário que se pense em propostas que ao mesmo tempo em
que se tornem adequadas à realidade escolar brasileira, busquem superar as barreiras estruturais que
dificultam a evolução de uma educação libertadora e crítica, que possibilite ao estudante
compreender, refletir, codificar e descodificar sua percepção sobre a realidade e sobre os processos
sociais e históricos que delimitam seu pensamento e linguagem.
E, reconhecendo através do caminhar desta pesquisa o silenciamento/invisibilidade da
América Latina no currículo escolar e no conhecimento dos estudantes, e considerando a
potencialidade da sua visibilidade e de sua descodificação para o desenvolvimento de identidade e
cidadania crítica por parte dos estudantes, proponho o estudo, a análise e o diálogo sobre o
subcontinente latino-americano como tema transversal, como adaptação e como tema gerador,
visando à superação das limitações teóricas e práticas na Educação brasileira.
Tratar a América Latina como tema gerador significa considerar que o subcontinente tem
papel nos processos históricos de dimensões globais, e suas realidades são permeadas pela interação
entre as partes. E assim, colocando-o como centro, ou ponto inicial da ação dialógica e
conscientizadora, parte dele a inserção dos indivíduos no mundo, permitindo que os estudantes
reflitam com maior propriedade os processos históricos, o que Freire aponta como “encadeamento
de temas significativos” (1981, p. 117). Por exemplo, quando se discute a Primeira Revolução
Industrial, protagonizada pela Inglaterra no século XVIII, como eram caracterizados os países
latino-americanos (que, na época, eram territórios e colônias de exploração)? Qual o papel do
território latino-americano nos eventos e processos históricos globais, e como é influenciado por
eles?
Dessa forma, juntamente com a elaboração das aulas-oficina, que serviram como fonte de
dados desta pesquisa, desenvolvi algumas estratégias de intervenção didático-pedagógica a fim de
proporcionar a ação dialógica e a reflexão sobre os temas referentes à história da América Latina.
Apresento, assim, uma sequência didática que segue do processo de codificação descrito no
subcapítulo “Análise da compreensão dos estudantes sobre América Latina”, aprofundando as
93

discussões sobre as percepções dos estudantes, destacando o processo de descobrimento-invasão da


América por parte dos colonizadores europeus.
Zabala (1998, p. 55) indica que a sequência didática é uma série de atividades organizadas
que deve estar relacionada a uma questão conflitante da realidade experiencial dos alunos, com o
intuito de desenvolver a curiosidade e o senso crítico, a partir de atividades diferenciadas sobre um
mesmo tema. Nesse sentido, a principal ferramenta didática utilizada, após a discussão sobre as
imagens, etapa já apresentada, é a proposta da audição e discussão de músicas da banda espanhola
Ska-P, que, apesar de não ser original do continente latino-americano, trata de temáticas políticas e
culturais por meio de uma perspectiva libertária, entendendo os processos como legítimos na busca
de um rompimento com o status quo de subdesenvolvimento e aculturamento da região.
Sempre objetivando manter a coerência com a perspectiva teórica e social de Freire, pode-
se questionar o porquê de não se utilizar de artefatos culturais naturais do subcontinente latino-
americano, ao invés de dar preferência, mais uma vez, ao ponto de vista do “opressor”. Freire
(1981, p. 45) afirma que ambos, opressores e oprimidos, estão imersos numa única realidade, a de
opressão, colocados na mesma de privação de consciência libertadora. A unidade, a solidariedade
são as propulsoras da libertação. Afinal, nas palavras do autor:

O opressor só se solidariza com os oprimidos quando o seu gesto deixa de ser um


gesto piegas e sentimental, de caráter individual, e passa a ser um ato de amor
aqueles. Quando, para ele, os oprimidos deixam de ser uma designação abstrata e
passam a ser os homens concretos, injustiçados e roubados. Roubados na sua
palavra, por isso no seu trabalho comprado, que significa sua pessoa vendida. Só na
plenitude deste ato de amar, na sua existência, na sua práxis, se constitui a
solidariedade verdadeira (FREIRE, 1981, p. 38).

Entende-se que quando um grupo de indivíduos apresenta uma perspectiva libertadora,


mesmo fazendo parte de um contexto histórico e social que os coloca como opressores, demonstra-
se a afirmativa de Freire de que tanto oprimidos quanto opressores fazem parte da mesma realidade
opressora que limita sua liberdade. Assim, o discurso da banda europeia também rompe com a
realidade opressora, a partir do momento em que se assume essa condição e busca, através da
música, conscientizar sendo conscientizadora. Reconhecermo-nos enquanto opressores também faz
parte do processo de libertação.
As narrativas, que a banda desenvolve desde o início de sua carreira, partem das
experiências dos integrantes inseridos no contexto da periferia madrilenha, principalmente no bairro
de Vallecas, e em 1995 a banda lança seu primeiro disco compacto intitulado apenas de Ska-P. No
ano seguinte, com o lançamento de “El Vals de Obrero” e letras com um apelo social variado, a
banda adquire mais visibilidade na cena musical da Espanha e da Europa, e com a obra “Eurosis”
94

em 1998, o trabalho da banda alcança com peculiaridade o público francês e a primeira turnê na
América Latina, tocando na Argentina.
O discurso da banda aborda temas recorrentes, como a defesa dos direitos humanos, as
contradições do sistema capitalista e a cena de resistência ao mesmo. Outrossim, temas de
conjectura são identificados com questões religiosas contemporâneas, com denúncias da história da
Igreja Católica, por meio de discussões culturais, debates sociais e políticos iminentes, etc., que
podem ser usados como ferramenta interdisciplinar. Nas obras da banda é possível reconhecer
também uma quantidade significativa de canções que abordam as questões histórico-sociais da
América Latina, e muitas delas fazem referência a figuras importantes como Emilliano Zapatta3 e
Victor Jara4, marcados pela resistência à repressão dos agentes dos estados capitalistas sobre as
terras e o povo latino-americano.
Nesse sentido, a discussão de canções da banda Ska-P pode ser um instrumento alternativo
para fazer a interlocução entre a música de protesto e os temas das disciplinas de Ciências
Humanas, especialmente História, tendo em vista a construção de metodologias que orientem a
análise e a discussão bibliográfica de temas pertinentes expostos nas letras das músicas. Mais
interessante ainda, é que, por ser de origem europeia, apresentar e discutir a perspectiva da banda
sobre os processos latino-americanos demonstra que a ideia de progresso, que justifica a
colonização europeia pelo mundo, não é consenso nem entre os europeus, e abre um espectro maior
de questionamentos acerca do entendimento que os estudantes têm sobre os temas referentes à
América Latina.
Direcionando nossa elaboração da sequência didática, cito algumas músicas que tratam da
América Latina, como “America Latina Libre”, que faz uma reverência e um chamamento às
nações latino-americanas quanto ao seu contexto sócio-histórico de exploração e dominação por
ditaduras oligárquicas, “Paramilitar”, destacando o protagonismo revolucionário no México, dentre
outras.
Coincidentemente, durante a elaboração desta pesquisa, a banda lançou um novo álbum,
em 2018, intitulado “Game Over”, e uma das canções chama-se “Cruz, Oro y Sangre”, cuja letra
traz a perspectiva do processo de colonização como invasão violenta e genocida por parte dos
europeus, bem como o massacre das culturas indígenas originárias. No último verso, é assumida a
responsabilidade pelas consequências nocivas do processo histórico em questão, e faz um
chamamento à resistência:

3
Emilliano Zapatta (1879 – 1919), foi o organizador de um grupo de indígenas guerrilheiros no México, que tinha o
intuito de ocupar e repartir as terras dos latifundiários que dominavam as terras apoiados pela política econômica do
governo de sistema ditatorial de Porfírio Diaz (1830-1915).
4
Na ditadura chilena liderada por Augusto Pinochet (1915-2006), vivenciada entre 1973 e 1988, em meio a milhares
ativistas políticos, um dos muitos artistas revolucionários mortos foi o músico e compositor chileno Victor Jara (1932-
1973), após ser barbaramente torturado no Estádio do Chile.
95

A los pueblos originários


Víctimas de la avaricia de nuestros antepasados
Víctimas de la cruz que lês hizo esclavos
Resistencia, vuestra lucha no ha acabado (Ska-P, Cruz, Oro y Sangre – Game Over,
2018).

Diante da pertinente análise crítica apresentada na música em questão, optei por indicá-la
como contraponto à ação dialógica promovida com os estudantes de Ensino Médio, sujeitos da
pesquisa. Dessa forma, apresento-a como proposta didática que centraliza a América Latina como
tema gerador, além da atividade da aula-oficina da inserção inicial, analisada no capítulo anterior,
propondo estender a discussão sobre temas centrais ao subcontinente de forma que se promova cada
vez mais a decodificação dos conhecimentos limitantes reconhecidos com e pelos estudantes.

Inserções conceituais:
Tempo da atividade: entre duas e quatro aulas de cinquenta minutos.
Objetivo geral: Apresentar e problematizar aspectos históricos da América Latina a partir
de uma perspectiva que coloca o subcontinente como central no processo de constituição social e
cultural.

Objetivos específicos:
o Discutir trecho da obra “As veias abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano
sobre os processos de colonialismo e neocolonialismo e seus reflexos na estrutura social do
subcontinente;
o Analisar a letra da música “Cruz, Oro y Sangre”, da banda espanhola Ska-P,
discutindo com os estudantes sobre a seleção da banda e da música, e apresentar informações sobre
os episódios e elementos citados na música, como a expansão colonialista europeia sobre as terras
americanas e problematizar o processo de descobrimento das Américas e seus desdobramentos;
o Desenvolver o conhecimento acerca da história da América Latina;
o Questionar os padrões e estereótipos reproduzidos social, cultural e historicamente
sobre o subcontinente.

Questões orientadoras e desenvolvimento:


o Anotar no quadro elementos que constituem a América Latina, na percepção dos
estudantes a partir de questionamentos como: Qual ou quais as línguas faladas na América Latina?
Que aspectos culturais são mais evidentes? Que eventos históricos importantes aconteceram no
subcontinente? Quais as etnias que compõem a população e de que forma se constituíram? Em
96

geral, quais as condições econômicas e sociais dos países latino-americanos? Que elementos te
estimulam ou não colaboram para que queiras visitar os países?
o Realizar leitura orientada dos seguintes trechos da obra “As veias abertas da América
Latina”, Eduardo Galeano:
“A nostalgia belicosa de Túpac Amaru” (p. 70-74);
“A Semana Santa dos índios termina sem ressurreição” (p. 75-80);
“Um talismã vazio de poderes” (p. 289-293);
“São sentinelas que abrem as portas: a esterilidade culpável da burguesia nacional” (p.
293-302).
o Solicitar que os estudantes destaquem trechos relevantes na leitura, para a discussão
de elementos desconhecidos sobre a História da América Latina, e identificar similaridades sócio-
históricas entre os países pertencentes ao subcontinente;
o Realizar releitura e reescrita dos versos da música (possivelmente, em um segundo
encontro de duas aulas de cinquenta minutos), buscando compreender o ponto de vista apresentado
e relacioná-lo com os conhecimentos prévios.

Síntese: os estudantes irão elaborar narrativas que apresentem percepções iniciais sobre o
tema e o desenvolvimento dos conceitos que definem a América Latina através das ferramentas
trabalhadas e, ainda, de que forma as atividades contribuíram para reforçar ou transformar o
entendimento inicial que apresentavam.

Material:
o Fotocópias dos textos selecionados da obra “As veias abertas da América Latina”;
o Fotocópias das letras das músicas trabalhadas;
o Caixa de som para audição.

Proponho o planejamento da inserção acima considerando como continuidade de um


trabalho de codificação e decodificação (FREIRE, 1981, p.122), tendo como inserção inicial a
proposta de aula-oficina que foi trabalhada com os estudantes das turmas, analisadas no capítulo
anterior. Optei pela elaboração de uma sequência didática, pois, segundo Zabala (1998, p. 18), ela
consiste em “um conjunto de atividades ordenadas, estruturadas e articuladas para a realização de
certos objetivos educacionais, que têm um princípio e um fim conhecidos tanto pelos professores
como pelos alunos”.
Mesmo que não seja concreta a viabilidade de uma prática pedagógica interdisciplinar de
fato, acredito que partir dessas percepções iniciais dos estudantes acerca da América Latina, a fim
97

de estimulá-los a conceber outras formas de interpretar os fatos históricos, é um potencial ponto de


partida para colocar o subcontinente latino-americano como protagonista nos processos históricos
que devem ser trabalhados no currículo da disciplina escolar de História, pois a:

[...] investigação temática, que se dá no domínio do humano e não no das coisas,


não pode reduzir-se a um ato mecânico. Sendo processo de busca, de
conhecimento, por isto tudo, de criação, exige de seus sujeitos que vão
descobrindo, no encadeamento dos temas significativos, a interpretação dos
problemas (FREIRE, 1981, p. 117).

Destarte, a partir da hipótese inicial, investiguei as possibilidades de visibilidade ou


invisibilidade que os temas e conteúdos referentes à América Latina têm na Educação Básica no
Brasil, identifiquei, também, poucas referências ao subcontinente nos Parâmetros Curriculares
Nacionais de História, e analisei, a partir de uma aula-oficina, o impacto da ausência da temática
nas orientações educacionais sobre a construção do pensamento e linguagem dos estudantes de
Ensino Médio. Isso significa assumir que existe uma demanda pela visibilidade do subcontinente,
que pode ser desenvolvida a partir da sua proposição como tema gerador.
Carretero (2010, p. 214) destaca que a questão do descobrimento da América, registrado
em 12 de outubro de 1492 é emblemática na forma como se irá constituir a identidade dos cidadãos
latino-americanos. Ele argumenta que existem três perspectivas – a eurocêntrica, que coloca
Colombo como protagonista de um processo civilizatório; a de “encontro entre dois mundos”, que
de certa forma também naturaliza os desdobramentos da chegada do europeu na América; e o que
evidencia o processo de espoliação e genocídio promovido pelos colonizadores europeus sobre os
povos originários – e que dependendo da abordagem dada ao tema, é possível desenvolver análises
críticas sobre outros processos históricos, “[...] bem como a questão da sua incidência no
desenvolvimento dos Estados Nacionais na Europa” (op. cit.).
Considerando que a construção de identidade e da cidadania são postulados importantes no
debate da Educação Progressista e Libertária, além de serem mencionadas com frequência nos
PCNs, surge como fundamental para tal a discussão das origens pré-colombianas e da colonização
europeia no continente latino-americano, já que a miscigenação é uma característica marcante na
constituição étnica, social e histórica no Brasil. Além disso, uma educação histórica que preconize a
valorização do protagonismo dos sujeitos demanda teorias e metodologias que apresentem as
diferentes histórias e relacionem-nas com o presente.
Nessa perspectiva, a discussão sobre o uso de novas linguagens no Ensino de História se
faz pertinente, pois a intenção é se apropriar da música como fonte histórica, ou seja, “[...] trazer
linguagens para incentivar o desenvolvimento da aula de história e utilizar tais expressões da
linguagem como fontes, em que o aluno se torna o intérprete da historicidade de tais fontes”
98

(ROCHA, 2015, p. 108). Isso quer dizer que a música não está posta como evidência, mas sim
sujeita à análise de seu conteúdo e contexto: o tema ou os sujeitos citados na música são familiares?
Já foram abordados em sala de aula ou em outro espaço de discussão? Por quê? Qual importância
que têm para serem citados na música?
A partir da análise reflexiva de uma música que aborda o processo de colonização
considerando a perspectiva dos povos colonizados, acredito ser uma proposta que possui um
potencial gerador de diálogo sobre os mais diversos temas dos processos históricos, seja na
perspectiva sócio-histórica da América Latina, seja colocando-a nas discussões dos processos
históricos globais, buscando, assim, minimizar e/ou romper o mecanismo da invasão cultural que
influencia na constituição da identidade desses jovens e a percepção que têm sobre sua própria
história.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo central da pesquisa foi de realizar um diagnóstico sobre a posição ou papel dos
temas e conteúdos sobre América Latina nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs),
especificamente de História, e avaliar como os estudantes, jovens do Ensino Médio, estão
construindo a percepção acerca do subcontinente latino-americano do qual fazem parte.
Para isso, analisei os Parâmetros Curriculares Nacionais de História, que indicam o que e
como o conteúdo histórico deve ser trabalhado no ensino escolar, e realizei atividades dialógicas de
reflexão para auferir o reflexo do Ensino de História no entendimento e reconhecimento da América
Latina como parte de processos sócio-históricos em comum e, assim, promover o potencial
desenvolvimento de identidade com o subcontinente.
Durante a pesquisa, percebeu-se que existem outros espaços de socialização que impactam
diretamente a forma como os estudantes constituem seu pensamento e linguagem acerca de variados
temas, dentre eles, os que concernem à América Latina. Certamente, a influência da mídia global, a
partir da última década do século XX, é causa direta da falta de reconhecimento desses jovens como
latino-americanos e da identificação maior com expressões culturais e temáticas sociais de países
desenvolvidos da Europa e dos Estados Unidos da América, e essa é uma problemática de pesquisa
relevante.
Entretanto, ao mesmo tempo em que reconheço a influência de outros atores sociais no
desenvolvimento social e cognitivo dos estudantes, acredito que a escola precisa assumir um papel
de maior relevância sobre questões referentes às invisibilidades na sociedade de forma geral. Se não
no espaço escolar, em que outros espaços os estudantes terão acesso fácil e espontâneo a temas que
não são de interesse da hegemonia econômica e política?
Para desenvolver a hipótese da pesquisa, de que América Latina não tem o espaço e/ou não
é abordada na Educação Básica de forma que proporcione aos estudantes aproximação e
identificação sócio-histórica com os países que fazem parte do subcontinente, apliquei um
questionário de investigação sobre o conhecimento e o interesse dos estudantes acerca de alguns
países do mundo. Na aplicação dos questionários, em seis turmas do Ensino Médio, pude observar a
falta de conhecimento do conceito de América Latina e o pouco interesse cultural, social e/ou
econômico pelos países do subcontinente apresentados nos questionamentos.
Optei por desenvolver uma pesquisa participante, de acordo com Brandão (1990) e
Oliveira e Oliveira (1990), que possibilitasse perceber, promover, uma ação dialógica e analisar o
pensamento e a linguagem dos estudantes partindo da temática geradora da América Latina. Os
autores também prevêem, como etapas da pesquisa, a devolução sistemática para a discussão e ação
das problemáticas codificadas.
100

Discuti, a partir do segundo capítulo, que a constituição da disciplina escolar de História no


Brasil sempre foi marcada por interesses econômicos e políticos, apontando para uma linearidade
histórica que favorece a ideia de “progresso” advindo do processo de colonização e, por isso, a
construção da nossa identidade passa pelo reconhecimento desta “conquista” europeia, o enfoque na
História do Brasil voltada aos ciclos econômicos – o que transparece o pensamento histórico
capitalista – e fortalecendo essa identidade por meio da diferenciação e das rivalidades em relação
aos países vizinhos.
Quando convergi para a análise dos Parâmetros Curriculares Nacionais, estruturados entre
1997 e 2006, com vistas a orientar a elaboração dos currículos escolares de História, reconheceram-
se algumas questões que são contraditórias, no meu ponto de vista, pois os textos dos PCNs
remetem com frequência à importância da constituição da identidade e da cidadania, evidenciam
várias vezes a questão da diversidade cultural (especialmente no primeiro e segundo ciclos do
Ensino Fundamental), mas não colocam como fundamentais nessas discussões a América Latina,
subcontinente de que fazemos parte e com o qual possuímos similaridades sociais e históricas e, ao
mesmo tempo, uma diversidade cultural essencial para se desenvolver tais conceitos.
No terceiro ciclo do Ensino Fundamental, destaquei algumas expressões utilizadas para
descrever a América Latina que, mais uma vez, deixam claro o processo de aproximação com a
Europa – que desenvolvi adiante através dos conceitos de consciência hospedeira e invasão cultural
– como “conquista” (enfatizando uma relação entre sucesso e fracasso), “ocupação” (como se o
território não fosse ocupado) e generalizando os indígenas como “caçadores e coletores”. No quarto
ciclo do Ensino Fundamental, alguns temas que se referem ao subcontinente são apontados nos
PCNs, todavia com o intuito de discutir episódios que influenciaram na configuração do território
brasileiro.
As orientações para o Ensino Médio pouco se diferem dos padrões apresentados para os
demais ciclos, novamente destacam-se a importância da História na construção da identidade e de
cidadania, mas não se estabelece relação entre essa construção e o reconhecimento latino-
americano. Além disso, na sugestão de eixos temáticos propostos, fica clara a pouca ou quase nula
importância dos processos sócio-históricos da América Latina na composição curricular.
O que se percebe é que a intencionalidade da relação entre passado e presente e o
conhecimento histórico depende muito do arcabouço teórico e metodológico de cada professor – e
aqui, surge outro potencial tema de pesquisa, em relação à formação de professores –, o que não é
um problema, tendo em vista a importância do ato democrático de ensinar. No entanto, a falta de
importância dada aos temas e conteúdos referentes à América Latina invisibiliza-a no meio de uma
série de outros conteúdos (por vezes, eurocêntricos) na seleção didática de cada instituição ou
professor.
101

No quarto capítulo, então, parto para a análise do impacto dessa estruturação curricular da
disciplina de História na constituição do pensamento e linguagem dos estudantes. Desenvolvi uma
proposta de ação, e apliquei, essencialmente, aquela que permitiria a coleta do material para análise
da percepção dos estudantes sobre a América Latina.
Foi evidente, nesta etapa da pesquisa, o pouco reconhecimento que os estudantes do
Ensino Médio tinham do subcontinente latino-americano. No diálogo inicial, eles se mostraram
confusos quanto ao objeto da discussão, e as referências que demonstraram eram bastante
generalizantes, como a “língua derivada do latim”, a localização geográfica e, em alguns casos,
citavam o processo de colonização como elementos integradores do subcontinente.
De modo geral, na segunda parte da investigação com os estudantes, eles elencaram que
imagens consideravam ser da América Latina, e que imagens eram de outras regiões. Tendo em
vista o pouco conhecimento apresentado no diálogo inicial, esta etapa diz muito sobre a construção
do pensamento e da linguagem dos estudantes acerca do subcontinente, pois eles tinham que
classificar as imagens e apresentar elementos que as justificassem. Sem o domínio mais profundo
das temáticas da América Latina, os resultados observados são puramente as expressões do que eles
associam ao subcontinente.
Entre imagens atuais e representações do passado, procurei trazer imagens exuberantes da
América Latina e de áreas não tão nobres de países da Europa. Em resumo, o que se observa são
classificações de aspectos negativos quando as imagens eram classificadas como América Latina
(pobreza, subdesenvolvimento, poluição), e as imagens que eram classificadas como de outras
regiões, assim eram devido à organização, à beleza, ao desenvolvimento.
Uma das imagens mais emblemáticas, considero ser a representação de Tenochtitlán,
México, no período pré-colombiano. Os estudantes que classificaram a mesma como de outras
regiões, assim o fizeram pela organização das ruas e cidades; já os que a classificaram como latino-
americana, destacaram os traços indígenas da representação de algumas pessoas, e também a
natureza, as montanhas ao fundo e a água em abundância. Na imagem do Rio de Janeiro moderno,
os que não reconheceram de pronto a cidade em si, também destacaram a natureza como
característica da América Latina. Em outras palavras, quando os elementos se referem à natureza ou
à pobreza, a classificação era América Latina, quando os elementos em destaque eram civilização e
organização, eles reconheciam a imagem como não pertencente ao subcontinente.
Além dessa relação entre aspectos “negativos” e positivos”, elencados para discernir a
América Latina de outras regiões, os estudantes também demonstraram, durante as aulas-oficinas,
que não se reconhecem, no aspecto sociocultural, como latino-americanos. Dentre os elementos
destacados que não os faziam pertencentes à América Latina, traços físicos e a aproximação cultural
com a Europa (parafraseando um estudante, o cotidiano deles é “estrangeiro”) foram mais
102

pertinentes para se desenvolver a discussão sobre os conceitos de consciência hospedeira e invasão


cultural de Freire.
Freire argumenta que nossa sociedade é pautada em uma relação entre oprimidos e
opressores. Essa relação, reforçada no modo de produção capitalista e associada a processos
históricos do imperialismo ocidental, constroi sociedades que não se sentem merecedoras porque
não possuem determinados hábitos e produtos. Isso ajuda a entender porque os estudantes não se
identificam com a cultura latino-americana, tida como menor, na qual o modo de vida ocidental
europeu e norte-americano é o objetivo, é melhor, e a cultura latina representa os que perderam.
Nessa perspectiva, o conceito de invasão cultural apresentado por Freire como uma
instância do processo de dominação das massas é pertinente para entender a importância da questão
e constatar sua aplicabilidade. Além disso, percebe-se que os dispositivos institucionais abordados
nas pesquisas aqui trazidas mantêm, de uma forma ou de outra, o sentido de sectarização (Freire,
1981, p. 20). Dessa maneira, a sectarização do mundo em países pobres e ricos economicamente,
produz uma generalização em que os próprios oprimidos, pertencentes aos países suprimidos pela
economia hegemônica e opressora, idealizam a realidade opressora como objetivo, e se distanciam
da própria história e cultura em prol de uma “homogeneização” que é idealizada, mas não realizada.
Nessa perspectiva de opressor e oprimido, é possível admitir que o direcionamento
imposto institucionalmente no Brasil, em relação ao ensino de História, corrobora com um processo
de afastamento sociocultural dos brasileiros em relação às demais nacionalidades latino-americanas.
Esse distanciamento é influenciado e influencia no fortalecimento de uma História vencedora, que
busca aproximar o Brasil das experiências ocidentais bem sucedidas e não promove o
reconhecimento de que os processos sócio-históricos do país assemelham-se a países que, no
cenário social e econômico mundial, não são protagonistas.
A partir das mudanças estabelecidas a partir do final do século XX e início do século XXI,
é possível perceber algumas mudanças de paradigmas sobre o currículo escolar, especialmente,
acerca do Ensino de História. Entretanto, superar mais de um século de uma construção social,
cultural e histórica que segrega, é um desafio constante que precisa ser encarado pelos professores,
não somente a partir da temática da América Latina, mas sim por todos os processos sociais,
culturais, históricos e espaciais que são relegados à invisibilidade pela História escolar tradicional.
Diante dessa realidade, destaco a relevância de se aplicar a metodologia dos temas
geradores, especialmente no Ensino Médio, etapa da Educação Básica que visa o aprofundamento
dos conceitos do Ensino Fundamental e o desenvolvimento do pensamento e do cidadão crítico. A
interdisciplinaridade é outro escopo que se desdobra das reflexões desenvolvidas e de pesquisas se
dedicam a esse tema. Apresentei uma prática pedagógica interdisciplinar já executada a partir de
temas geradores, mas que para ser implantada demanda um esforço além do institucional, já que as
103

estruturas dos sistemas de ensino no Brasil e de suas gestões administrativas não possibilitam a
legitimação prática da proposta de trabalhar disciplinas concomitantemente com a presença dos
professores em uma mesma carga horária.
Entretanto, tais impasses não impedem o esforço na elaboração de estratégias que visem
superar a estrutura ideológica dos sistemas de ensino que contribui, na concepção baseada na teoria
de Freire, para a manutenção da invasão cultural e consciência hospedeira, em direção a uma
educação que desenvolva o pensamento crítico e autocrítico, que promova a reflexão e
decodificação das situações-limites postas na nossa realidade.
Assim, além de propor a América Latina como tema gerador no Ensino Médio na
disciplina de História, também apresentei uma proposta de continuidade da aula-oficina aplicada
nas turmas que, na pesquisa, visou reconhecer a demanda pela visibilidade do subcontinente na
Educação Básica, mas que é geradora de diálogos que nos levaram a propor uma sequência didática
a partir da análise de música.
Na ocasião, apresentei a banda espanhola Ska-P, seu contexto e justifiquei sua pertinência
no debate entre opressores e oprimidos. Na sequência didática, sugeri a audiência da música “Cruz,
Oro y Sangre” para aprofundar as discussões sobre o processo de colonização, apresentando uma
visão que coloca os povos originários como centrais no processo, além da análise e da discussão de
textos do clássico As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano. Na elaboração da
proposta, se considera a emergência de novas linguagens no ensino de História e a importância do
protagonismo dos estudantes na construção do conhecimento histórico.
Sem pensar em findar a pesquisa ou a prática constante de ressignificação do ato de educar,
minhas considerações finais são voltadas para resgatar um apanhado geral da caminhada da
pesquisa, tendo como princípio as observações empíricas sobre a invisibilidade da América Latina
por parte dos estudantes, buscando, através de fontes e metodologias, diagnosticar a relevância dada
ao subcontinente na Educação Brasileira e seus reflexos na constituição do pensamento e linguagem
desses, reconhecendo, no processo a análise da realidade a partir da visão opressora descrita por
Freire em Pedagogia do Oprimido.
O que é possível constar, enfim, é que os dados obtidos nesta pesquisa podem ser
interpretados a partir de outras teorias sociológicas e educacionais. Entretanto, a relação entre
oprimido e opressores descrita em Freire, e a consciência ambígua e hospedeira é perceptível na
forma como os estudantes de Ensino Médio pesquisados percebem o subcontinente o qual fazem
parte, negando-o, por vezes, e por outras o colocando numa posição de fracasso e derrota que não
deixa outra opção, na realidade opressora e dual em que vivem, se não se identificarem com os
opressores que tiveram sucesso.
104

Enquanto professores e pesquisadores, devemos sempre nos preocupar com a utopia e não
nos contentarmos com o mundo que temos. Dessa forma, como manifesto de resistência, deixo a
contribuição na reflexão e na proposição de formas diferentes de se pensar a Educação e de
formarmos de fato cidadãos críticos, que sabem de onde falam.
Neste espaço de conclusão da escrita, saliento que muitos dos questionamentos e
possibilidades não se encerram aqui. A discussão sobre a América Latina no currículo escolar é um
tema de interesse de muitos pesquisadores e eles devem sempre ampliar seus horizontes em busca
das problemáticas identificadas estruturalmente e no cotidiano escolar. A Educação, enquanto um
processo que não pode ser estanque, sempre deve ser terreno fértil de investigações.
105

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110

APÊNDICE

Cruz, Oro y Sangre – Ska-P, Game Over, 2018

Um día de otoño gris se consumo la maldición


tres carabelas eclipsaron al sol
llegaron diablos blancos recubierto sen metal
clavando espadas a la fraternidad oh no!

Cruz, oro y sangre... la gran invasión


cruz, oro y sangre... la gran invasión
cruz, oro y sangre... la gran invasión
cruz, oro y sangre

Les masacraron y violaron em nombre de um dios


cuasi verdugo la santa inquisición
era herejía adorar a la luna o al sol
en la hoguera la purificación

Cruz, oro y sangre... la gran invasión


cruz, oro y sangre... la gran invasión
cruz, oro y sangre... cruz, oro y sangre

Cada 12 de octubre mi desprecio y asco a la invasión


me niego a festejar ¿sinla? colonización
ningún libro de escuela cuenta su versión
matanza de nativos, crimen colonial

Por la tierra MARICHIWEU


por los padres MARICHIWEU
por los muertos MARICHIWEU
por la vida MARICHIWEU

Nunca se fueron continúan com la exfoliación


111

adía de hoy se llama corporación


500 años de saqueos y de explotación
bajola cruz de la esclavitud oh no!

Cruz, oro y sangre... la gran invasión


cruz, oro y sangre... la gran invasión
cruz, oro y sangre... cruz, oro y sangre

Cada 12 de octubre mi desprecio y asco a la invasión


meniego a festejar ¿sinla? colonización
ningún libro de escuela cuenta su versión
matanza de nativos, crimen colonial

Por la tierra MARICHIWEU


por los padres MARICHIWEU
por los muertos MARICHIWEU
por la vida MARICHIWEU
por la tierra MARICHIWEU [Crimen colonial]
por los padres MARICHIWEU [crimen colonial]
por los muertos MARICHIWEU [crimen colonial]
por la vida MARICHIWEU [crimen colonial]

A lospueblosoriginarios
víctimas de la avaricia de nuestros antepasados
víctimas de la cruz que les hizo esclavos
RESISTENCIA... vuestra lucha no ha acabado.

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