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RIO GRANDE
2019
DÉBORA LAÍS FREITAS
RIO GRANDE
2019
DÉBORA LAÍS FREITAS
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Presidente e Orientadora: Profª Dra. Rita de Cássia Grecco dos Santos
Universidade Federal do Rio Grande – FURG
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1ª Avaliadora: Profª Dra. Renata Braz Gonçalves
Universidade Federal do Rio Grande – FURG
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2ª Avaliadora: Profª Dra. Maria Augusta Martiarena de Oliveira
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul – Campus Osório
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Suplente: Profª Dra. Adriana Kivanski de Senna
Universidade Federal do Rio Grande – FURG
RIO GRANDE
2019
AGRADECIMENTOS
Eu pensei em escrever, neste texto, apenas a seguinte frase: “Não deu tempo”,
porque estou finalizando minha escrita no último dos últimos prazos. Esse fato nada tem a ver
com a potencialidade da pesquisa, com os resultados analisados, com limitações
metodológicas ou teóricas. A principal barreira para desenvolver e concluir a pesquisa fui eu
mesma.
Primeiramente, aquele sentimento clássico de todo mestrando de querer abarcar todas
as problemáticas de pesquisa do seu tema, que não cabe desenvolver com qualidade no prazo
do Mestrado, e sempre achava que o problema não seria plenamente esclarecido sem uma
série de “penduricalhos” extensos que dariam uma dissertação cada um.
Então, a segunda questão é a terrível “síndrome do impostor”, quando, mesmo
escrevendo e produzindo, sentimos que no fundo não entendemos nada e estamos escrevendo
a esmo, sem sentido, enganando a todos de que “nossa, ela faz mestrado, é inteligente”, e no
fundo, se sentir uma farsa. E, nesse processo de se sentir uma farsa, fiquei presa por vários
meses num limbo, numa inércia. Junto a tal síndrome clássica, pelo que li entre pesquisadores,
nesses dois anos e meio, tive várias crises de ansiedade, pois a vida não é só pesquisa, envolve
meu trabalho enquanto professora da Rede Estadual de Ensino e as pendências da vida
pessoal.
Tendo em vista todos esses fatores, só não abri mão do mestrado em função do apoio
de várias pessoas, e seria injusto com elas e comigo mesma não mencioná-las neste espaço
mais informal e humanizado do texto de pesquisa.
Antes de qualquer coisa, preciso agradecer minha orientadora, a professora Rita de
Cássia Grecco dos Santos. Ela acreditou no meu potencial de professora pesquisadora e, em
uma viagem do curso de Especialização em Ensino de Sociologia no Ensino Médio, me
alertou do processo seletivo do Mestrado em História e, se não fosse por ela, eu estaria até
hoje protelando em busca de um “momento ideal”, que tenho certeza que não viria.
Ao longo do processo, nesses baixos e médios (porque altos, uma pessoa ansiosa não
tem), tive a felicidade de ter o apoio de pessoas que são mais irmãs e irmãos do que amigos e
amigas. Minha cunhada e meu cunhado, Priscila e Guilherme, que compartilharam comigo
alguns anseios, e estavam mais preocupados do que eu com o passar do tempo, me davam
apoio, comida e conselhos em todos os momentos. Minha amiga Ana Paula, doutora em
Sociologia, que mesmo depois de muita coisa na vida, esteve ao meu lado virtualmente para
me dar conselhos, sejam psicológicos, sejam acadêmicos. Os amigos que ganhei na escola, o
Júlio, o Grégory e a Évelyn, essa última me dando um dos conselhos mais sábios, quando eu
transformei o texto da minha qualificação em duzentas coisas que eu não conseguiria abarcar
com o tempo, e então ela disse: “Guria, a banca elogiou tua proposta de pesquisa e fez
sugestões, não? ENTÃO, FAZ O QUE A BANCA MANDOU E NÃO SURTA”. E, então,
revi minha megalomania, e me detive na investigação da hipótese central.
Agradeço à minha família: mãe e pai, que não entendiam muito bem a relevância da
etapa acadêmica do mestrado, mas sempre estavam atentos em me ouvir e confortar quando
eu entrava em crise. Meu irmão, Celso, o guru da racionalidade, colocava minha cabeça no
lugar, cujos chimarrões pela manhã, mesmo que me ajudassem a matar tempo e protelar,
também eram fundamentais para a minha sanidade, porque ele sempre me aconselhava com as
suas palavras sensatas. Meu sogro e minha sogra também me aguentaram muitos dias na casa
deles, em função de projetos pessoais e da proximidade com a Universidade, por vezes
estudando, por vezes olhando para o nada, mas sempre muito orgulhosos da continuidade da
minha carreira profissional e acadêmica.
Bruno, meu namorado, meu quase marido. Não pude compartilhar com ele vários
momentos do processo de construção da nossa casa, e sinto um pouco de remorso por isso,
por não ter espaço emocional de me preocupar, sonhar e projetar várias coisas referentes à
nossa iminente vida a dois. Mas ele nunca me cobrou isso, sempre me ofereceu o peito para
descansar, chorar, respirar fundo e continuar.
Agradeço aos estudantes das turmas que leciono por, pacientemente, participarem
das aulas-oficinas, minha colega Érica, que compartilhou comigo o processo de ansiedade,
procrastinação e escrita, ao Júlio, novamente, por me auxiliar no processo de aplicação das
atividades. Agradeço à banca de Qualificação, que se repete agora na defesa, por confiarem na
potencialidade da pesquisa e instigarem novos questionamentos, alguns trabalhados no
desenvolvimento da pesquisa, e outros como possibilidade de extensão.
E sempre preciso lembrar-me da banda que abriu minha mente no âmbito social,
político e musical (porque nenhum dos meus amigos gosta de ska-core), o Ska-P. Suas
músicas são, desde a graduação, a fagulha para parar e pensar sobre temas e contextos
diversos, me estimulando a ler e aprender mais sobre cada tema sociológico, histórico e
político levantado em suas letras. Quando eu já estava quase desistindo de concluir o
mestrado, eles lançaram um novo álbum, com uma música tão, mas tão profunda, que parece
que alguém foi lá e disse: “Olha, escreve aí sobre a América Latina pra uma menina lá,
desiludida com a sua pesquisa sobre a invisibilidade da América Latina no currículo escolar”.
E, então, eles escreveram “Cruz, Oro y Sangre”:
FREITAS, Débora Laís. A (in) visibilidade da América Latina no Ensino de História: uma
perspectiva dos Estudantes do Ensino Médio Público em uma ótica freireana. 2019.
Dissertação (Mestrado Profissional em História) – Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande.
A pesquisa aqui apresentada parte de uma hipótese central que se originou a partir de
constatações empíricas, no ambiente de escola pública do Magistério Estadual do Rio Grande
do Sul, reforçada através da aplicação de questionários, de que os estudantes da Educação
Básica não identificam afinidade ou pertencimento à América Latina. Em busca de averiguar
tal hipótese, realizou-se pesquisa bibliográfica sobre a constituição do currículo escolar de
História, analisando a presença ou a ausência de temáticas, referentes ao subcontinente, nos
Parâmetros Curriculares Nacionais de História e efetivou-se a coleta de dados através de
aulas-oficinas (BARCA, 2004) com os estudantes de Ensino Médio, com o objetivo de
averiguar como esses percebem a América Latina. Para realizar a discussão das causas e
desdobramentos dos resultados da pesquisa, utilizou-se a teoria de Paulo Freire, especialmente
expressa em Pedagogia do Oprimido (1981), buscando relacionar a condição de invisibilidade
expressa nos documentos orientadores e a percepção dos estudantes com os conceitos de
consciência hospedeira e invasão cultural. Percebeu-se, na análise dos PCNs, a falta de
menções à América Latina nas orientações sobre o desenvolvimento da disciplina escolar de
História. Dessa forma, a partir da identificação dos elementos que evidenciam o afastamento
dos estudantes dos temas relacionados ao subcontinente, nesta dissertação propõe-se à
discussão da América Latina como tema gerador no ensino de História e por meio de uma
proposta de sequência didática baseada nas aulas-oficinas.
FREITAS, Débora Laís. A (in) visibilidade da América Latina no Ensino de História: uma
perspectiva dos Estudantes do Ensino Médio Público em uma ótica freireana.
2019.Dissertação (Mestrado Profissional em História) – Programa de Pós-Graduação
emHistória, Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande.
La investigación presentada aquí parte de una hipótesis central que se originó a partir de
hallazgos empíricos en el entorno escolar público del Magisterio Estatal de Rio Grande do
Sul, reforzada a través de la aplicación de cuestionarios, que los estudiantes de Educación
Básica no identifican la afinidad o pertenencia a América Latina. En busca de analizar esta
hipótesis, llevamos a cabo una investigación bibliográfica acerca de elcostitución del
currículo escolar de Historia, analizando la presencia o ausencia de temas relacionados al
subcontinente en el currículo nacional de Historia, y llevamos a cabo la colección de datos a
través de “aulas oficinas” (BARCA, 2004) con estudiantes de EnsinoMédio (escuela
secundaria), con el objetivo de examinar cómo perciben América Latina. Para debatir las
causas y consecuencias de los resultados de la investigación, se utilizó la teoría de Paulo
Freire, especialmente expresada en la “Pedagogia do Oprimido” (1981), tratando de relacionar
la condición de invisibilidad expresada en los documentos Mentores y en la percepción de los
estudiantes con los conceptos de la “consciênciahospedeira” (conciencia intransitiva) y la
“invasão cultural” (invasión cultural). Se percibió, en el análisis de los números de vista de la
falta de menciones a América Latina en las directrices sobre el desarrollo de la disciplina
escolar de la historia. Además, los elementos identificados que evidencian la eliminación de
los estudiantes de temas relacionados con el subcontinente, proponemos la discusión de
América Latina como un “tema gerador” (tema generador) en la enseñanza de Historia y se
presenta una propuesta de secuencia didáctica basada en las clases de “aulas oficina”.
SUMÁRIO 12
INTRODUÇÃO 14
1 QUADRO METODOLÓGICO 25
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 99
REFERÊNCIAS 105
APÊNDICE 110
INTRODUÇÃO
A pesquisa aqui apresentada tem em seu tema uma construção longa e inusitada, que
parte desde o Trabalho de Conclusão de Curso de Geografia Licenciatura, no ano de 2011,
quando a música passou a ter importância na minha vida a partir dos discursos que dela
podiam ser refletidos e problematizados. No referido período, fui apresentada ao repertório de
uma banda espanhola de ska-core1chamada Ska-P, que chamava a atenção pelos temas das
letras que, quase que em sua totalidade, envolviam assuntos latentes sobre o mundo e sobre a
humanidade de forma geral, com a apresentação de contextos sócio-históricos em seu
conteúdo.
A pesquisa de conclusão da graduação foi realizada a partir da análise de alguns
temas identificados na obra da banda, especialmente no que concerne às discussões sobre
Geopolítica. Na ocasião, realizei a discussão dos temas Imperialismo, Globalização e
Movimentos Sociais partindo do ponto de vista trazido pelas músicas da banda Ska-P,
ampliando as discussões sobre o assunto, a fim de apresentar a obra musical como fonte de
análise e de produção acadêmica e, posteriormente, desenvolver uma aplicação pedagógica na
Educação Básica.
Quando ingressei no Programa de Pós-graduação em História da Universidade
Federal do Rio Grande, meu projeto tinha como problemática o uso das músicas do Ska-P
como possibilidade de construção de uma Educação Libertária, a partir dos temas que se
vinculam ao Ensino de História. Alguns desafios estavam postos para estabelecer a
justificativa da pesquisa: Por que a banda Ska-P em especial? O que é Pedagogia Libertária?
Qual a aplicabilidade de tais práticas pedagógicas na Educação Básica e pública no Brasil?
Quais temas da História podem ser abordados? Qual o diferencial da pesquisa, a partir do uso
da música como metodologia de ensino? Todos esses questionamentos geraram muita
angústia sobre os caminhos a serem trilhados na pesquisa.
Durante a caminhada enquanto professora do Magistério Público Estadual no Rio
Grande do Sul, procurei colocar em prática algumas propostas de discussão de temas a partir
das músicas da banda Ska-P em turmas do Ensino Médio na escola onde leciono há mais de
seis anos, Escola Estadual de Ensino Médio Lília Neves. Numa das possibilidades, discuti a
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Ska-core, ou Ska Punk é a mistura de dois ritmos musicais: o Ska, de origem jamaicana e que mistura diversas
referências musicais da América Latina, utilizando especialmente instrumentos de sopro e guitarra, e o Punk
Rock, que tem sua origem na década de 1970 em várias partes do mundo, concomitantemente, tendo como
característica principal músicas de acordes rápidos e instrumentos básicos de guitarra, baixo e bateria. O
“Hardcore” é uma derivação do Punk Rock, com batidas mais intensas e geralmente com discurso forte de
contestação política nas letras.
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temática da imigração com os estudantes do segundo ano, utilizando a música “Lucrecia”, que
relata o caso de uma imigrante da República Dominicana que foi assassinada em Madri, na
Espanha, vítima de xenofobia, em 1992. Em outras turmas de terceiro ano, trabalhei a música
“Los Hijos Bastardos de la Globalización” que discute a divisão internacional do trabalho e as
condições de trabalho infantil análogas à escravidão em países periféricos.
Para além da discussão dos temas, o que chamou a atenção em todas as turmas foi
que os estudantes não se sentiam confortáveis ouvindo a música na língua espanhola, o que
causou estranheza, tendo em vista que, especialmente no Rio Grande do Sul, estamos
permeados por traços do idioma em questão. Em meio ao estranhamento, eles alegaram que
não estavam acostumados com música cantada em espanhol, e que não tinham interesse,
inclusive, pela disciplina Língua Espanhola na escola, mesmo esclarecendo que gostavam da
professora e da sua metodologia.
Esses episódios levantaram um questionamento que me incomodou enquanto
professora das Ciências Humanas: por que os estudantes, estando tão próximos de países que
têm o Espanhol como idioma oficial, não se sentem à vontade com uma expressão cultural tão
marcante na América Latina como a língua espanhola? Dessa forma, passei a questionar o que
poderia gerar esse sentimento de distanciamento e a falta de reconhecimento com a língua e
com as culturas dos países do subcontinente, já que eles passaram por processos históricos e
sociais mais semelhantes ao Brasil do que a cultura e hábitos europeus e anglo-americanos.
Ademais, considero de profunda pertinência, no âmbito pedagógico e de constituição
de cidadania e identidade, o reconhecimento da história dos países vizinhos, que passaram por
processos e eventos semelhantes ao do Brasil, e a discussão dessas semelhanças que
contribuem para o entendimento do próprio contexto sócio-histórico do país, relacionando-se
com o mundo a partir da América Latina.
A partir das investigações prévias, foi realizada, de forma metodológica, a aplicação
de um questionário aos estudantes do Ensino Médio da Escola Estadual Lilia Neves, situada
no limite entre a zona urbana e a zona rural da cidade do Rio Grande, que tinha como objetivo
analisar qual o nível de apropriação cultural e de conhecimento os estudantes possuem,
através de um comparativo de interesses entre países do continente Europeu e os Estados
Unidos da América, e países do subcontinente América Latina. Percebi, enquanto professora
pesquisadora em conjunto com a orientadora desta pesquisa, algumas pistas que permitiram
desenvolver uma hipótese de interpretação e investigação a partir das teorias pedagógicas em
Paulo Freire.
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1. Sujeitos
A Educação, de forma geral no Brasil e no Rio Grande do Sul, assim como o sistema
de ensino atual, vem, nos últimos anos, inserindo uma proposta de reestruturação do Ensino
Médio, que enfatiza a inserção social e o exercício da cidadania através do trabalho. Karl
Marx (1989) afirmava, em seu materialismo histórico, que o trabalho é a base da existência
humana, como meio de desenvolvimento da consciência humana, material e de classes: o
trabalho como meio, e não como finalidade.
Entretanto, os postulados nos documentos relativos à reestruturação do Ensino Médio
no Rio Grande do Sul, como, por exemplo, a transição da “Proposta Pedagógica para o Ensino
Médio Politécnico e Educação Profissional Integrada ao Ensino Médio”, apresentada em
2011, para o “Documento Orientador da Reestruturação Curricular do Ensino Fundamental e
Médio”, elaborado pelo Departamento Pedagógico da SEDUC-RS, em 2016, e as “Diretrizes
Curriculares Nacionais da Educação Básica”, alterada em 2013, até o presente momento,
apresentam o trabalho e a pesquisa como métodos eficientes de ensino, mas a justificativa
para tal reestruturação se baseia na necessidade inserção no mercado de trabalho.
Outro aspecto relevante que pode se observar através da Medida Provisória Nº 746,
no ano de 2016, foi que o Governo Federal instituiu a implantação da chamada “Reforma do
Ensino Médio” ou “Novo Ensino Médio”, que assumiu a forma da Lei Federal Nº
13.415/2017, que altera alguns postulados sobre a “Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional” – LDBEN, sob o Nº 9.394, de 1996, que já havia sofrido alterações em outras
ocasiões, mas não com a proporção dada pela Lei Nº 13.415, que incide de forma estrutural
em todo o Ensino Médio.
Cito algumas das alterações que são importantes para a reflexão a que esta pesquisa
se propõe: a obrigatoriedade do ensino de Língua Inglesa a partir do sexto ano do Ensino
Fundamental (parágrafo 5º, do artigo 26) e no Ensino Médio (parágrafo 4º, do artigo 35A),
sendo que, anteriormente era obrigatória uma Língua Estrangeira Moderna, a cargo da
comunidade escolar; a instituição de “Base Nacional Comum Curricular”, que definirá os
direitos e os objetivos de aprendizagem no Ensino Médio (artigo 35A); a retirada da
obrigatoriedade das disciplinas de Sociologia e Filosofia; a organização do currículo escolar
em itinerários formativos (artigo 36); a possibilidade de convênios com instituições de
educação a distância (parágrafo 10º, inciso I, artigo 36); a revogação de caputs que tratam de
valorização da formação social, tais como:
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e, a partir desse entendimento, favorecer um dos saberes essenciais para a educação do futuro:
ensinar a condição humana, tornar a educação mais formadora de consciência e identidade.
Nesse sentido, a profundidade com que o tema América Latina vem sendo abordado
no ensino de História é relevante em virtude de se buscar as origens culturais ignoradas pela
cultura ocidentalizadora e eurocêntrica a qual estamos familiarizados. Entretanto, isso não
significa menosprezar a importância de culturas exóticas na formação da sociedade humana
latino-americana, mas sim de atentar para um fato que Morin aponta como “desintegração
cultural”:
Essa discussão pode ser endossada por uma análise de outro questionamento
apresentado no questionário prévio, quanto à relevância social e cultural dos Estados Unidos
da América: “Relate, em uma breve frase, qual a relevância das características sociais e
culturais dos Estados Unidos da América na tua vida social”. Por ser uma questão aberta,
quatorze questionários não apresentaram resposta.
Dos vinte e sete questionários respondidos, onze respostas convergiam para um
interesse e proximidade com a cultura do país em questão, e treze destacaram aspectos quanto
ao desenvolvimento (social, econômico e tecnológico). Apenas três respostas consideraram o
país como irrelevante cultural e socialmente para suas vidas, ou seja, os estudantes
apresentam uma relação de proximidade maior com o país norte-americano do que com a
cultura e sociedade de países latino-americanos.
Em quais momentos os estudantes brasileiros da educação básica e pública têm
acesso a imagens, a produções e a conteúdos de origem latino-americana? Quando têm a
oportunidade de se aproximar da língua espanhola (geograficamente muito mais próxima do
que a inglesa, por exemplo)? Em que espaços a discussão e a apresentação de temas e
aspectos referentes às diversas culturas latino-americanas são promovidas? Tendo em vista a
globalização econômica e sustentando o conceito de invasão cultural, os estudantes pouco
terão contato com a América Latina em outros espaços de socialização que não sejam os
escolares.
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Para o quê serve o conhecimento social que a minha ciência acumula com a
participação do meu trabalho? Para quem, afinal? Para que usos e em nome
de quem, de que poderes sobre mim e sobre aqueles a respeito de quem, o
que eu conheço, diz alguma coisa? (BRANDÃO, 1990, p. 10).
pesquisadora e professora. Dessa forma, trago novamente a indagação, que pauta esta
dissertação, a fim de abordá-la mais detalhadamente: Qual a utilidade social de se discutir o
tema da América Latina no currículo e no Ensino de História?
O objeto da investigação está no “pensamento-linguagem referido à realidade”
(OLIVEIRA; OLIVEIRA in BRANDÃO, 1990, p.20), ou seja, a forma como estão colocados
os conteúdos referentes à América Latina incide na maneira de pensar dos estudantes e como
se relacionam com o conhecimento sobre o tema. Este é o enfoque da pesquisa: Como os
estudantes se apropriam ou não dos conteúdos referentes ao subcontinente? Para tanto, é
preciso compreender como o conteúdo de História da América Latina é abordado
institucionalmente e como os estudantes se apropriam desse conhecimento, que culmina no
reconhecimento ou afastamento social e cultural.
A função do pesquisador/educador é entendida por Oliveira e Oliveira (in
BRANDÃO, 1990, p. 32) como a de facilitador de um distanciamento do grupo em relação à
sua realidade vivida, para que o tema possa ser percebido como objeto de estudo e ação:
Como é possível entender o mundo de outra maneira, se a visão que nos é dada é
limitada pelo entendimento das classes dominantes? A afirmação da percepção marxista de
mundo e de educação é a de que não aceitamos ou não reconhecemos, quiçá buscamos
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soluções aos problemas cotidianos, pois esses não são problemas para o sistema de produção
capitalista em que vivemos. E o papel do pesquisador/educador seria de evidenciar tais
contradições como relevantes para a compreensão do nosso cotidiano e de nossas ações.
Dessa forma, discutir e demonstrar com e para os estudantes que a forma como eles percebem
a América Latina é importante para que reconheçamos nossas próprias adversidades, torna-se
o motor para a elaboração de métodos didáticos e pedagógicos que promovam tal reflexão.
A percepção empírica, através da pesquisa sobre o estado do conhecimento referente
à América Latina no currículo escolar, revela que o ensino de História está centrado na
compreensão da perspectiva europeia, a partir da colonização do subcontinente, ou seja, a
história latino-americana narrada pela conquista e não pela derrota.
Através da dicotomia opressor e oprimido presente em Freire (1981), podemos
considerar que mesmo os oprimidos, em uma sociedade opressora, acabam vendo no opressor
o sucesso, o caminho a ser seguido, e pouco há contestação sobre esse status quo, apenas os
oprimidos são os “derrotados”, sem as qualidades requeridas para ter sucesso, que é traduzido
no modo de vida do opressor. Os autores Oliveira e Oliveira (in BRANDÃO, 1990, p. 20-21),
exemplificam sua ação educativa a partir de algumas estratégias apresentadas por
Stavenhagen (1972), na busca de uma sociedade mais justa e democrática. Dentre elas,
destaco “privilegiar, como objeto de estudo, o outro pólo da relação de dominação”.
Ao considerar relevante a compreensão da história da América Latina a partir “de
dentro”, penso que a pesquisa participante aqui proposta se encaixa na busca de uma
percepção maior por parte dos estudantes acerca da realidade em que estão inseridos de fato.
A fim de colocar em evidência os discursos dos dominados, colonizados, oprimidos,
derrotados, que seriam as experiências sociais e históricas dos países latino-americanos e suas
perdas e problemas, em contraponto ao ponto de vista europeu, colonizador, no qual a
percepção parte de um entendimento de que eles trouxeram a civilização e o progresso e que
isso não pode ser negativo.
Todas as construções e análises, realizadas nesta pesquisa sobre o tema América
Latina no ensino escolar de História, têm por objetivo a busca por novas formas de se
perceber o mundo no qual os estudantes da Educação Básica e pública brasileira estão
inseridos. Ao encaminhar o diagnóstico do problema, a proposição última é discutir a
importância e a aplicabilidade de fontes e metodologias didáticas que capacitem os estudantes
a compreender a complexidade dos processos sócio-históricos em que estão inseridos e
desenvolver neles o “poder de pensarem, produzirem e dirigirem os usos de seu saber a
respeito de si próprios” (BRANDÃO, 1990, p.10).
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É nesse objetivo último que se funda, de acordo com Oliveira e Oliveira (in
BRANDÃO, 1990, p. 27), a metodologia da pesquisa se classifica como pesquisa-ação ou
pesquisa participante, uma vez que o mais importante na análise sobre como a América Latina
é abordada. Os impactos dessa abordagem na percepção dos estudantes trabalham para:
sala de aula e grupos de discussão com os estudantes de Ensino Médio sobre temas referentes
à América Latina – como cultura, história, política, riquezas –, utilizei, como instrumento de
averiguação inicial, a aplicação de um questionário em algumas turmas dos três anos
referentes ao nível de ensino.
O questionário foi elaborado e organizado seguindo algumas considerações de Gil
(1999, p. 127-128), referentes ao que deve ser levado em consideração na construção da
ferramenta, como a objetividade dos questionamentos e a organização das perguntas de
acordo com o que se pretende abordar. Assim, o questionário foi dividido em três blocos que
pretendem conhecer os sujeitos e compreender suas respostas: informações pessoais, como
idade e escolaridade dos pais, acesso à informação e artefatos culturais, referente aos meios de
comunicação aos quais têm acesso, e conhecimentos e interesses, que fazem indagações
acerca do interesse sobre o mundo e a relação dos sujeitos com o conhecimento que têm sobre
o mesmo.
Como o objetivo do questionário foi de reforçar ou enfraquecer a hipótese, e não
necessariamente comprová-la, e tendo em vista a faixa etária dos estudantes, foram propostas
dezessete questões, em sua maioria fechadas. Gil (1999, p. 123) atenta para o fato de que a
construção de respostas fechadas deve preceder de entrevistas ou procedimentos que
forneçam ao pesquisador pistas do que é ou não relevante no universo discursivo dos
pesquisados. Neste caso, a própria hipótese deriva de um intenso contato com os sujeitos
pesquisados, estudantes da escola na qual leciono. Assim, o desafio foi elaborar respostas que
não fossem distantes da realidade e da compreensão deles, sem apresentar termos e
expressões que indicassem o posicionamento enquanto pesquisadora e professora.
A fim de investigar algumas pistas que dão indícios sobre a hipótese de pesquisa,
outra etapa discute a legislação da educação brasileira, especificamente os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) da disciplina ou o componente curricular História, buscando
em que momentos sócio-históricos a América Latina entra nas discussões acerca do currículo
de História. Dessa forma, almejo analisar as intencionalidades e as abordagens sugeridas
institucionalmente na esfera federal que contribuem para o direcionamento da aprendizagem
dos estudantes.
A partir desses objetivos, realizei a análise de conteúdo, que proporciona a
interpretação de documentos de origens variadas através de instrumentalização, procurando
destacar significados presentes ou ausentes nas mensagens, aspecto pertinente para esta etapa
da pesquisa.
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MOREIRA, 2011, p. 47). A forma como e o que os estudantes entendem por América Latina
são permeados pelas interações simbólicas de um contexto social característico, e o espaço
escolar faz parte de uma construção social e cultural que influencia os significados atribuídos
aos temas discutidos em sala de aula.
Metodologicamente, significa que os procedimentos devem se concentrar nos
resultados, buscando interpretar os caminhos que condicionaram a perspectiva dos estudantes
sobre o tema. É essencial, ainda, justificar que a pesquisa interpretativa se orienta a partir de
uma bagagem teórica que irá perpassar toda a construção do quadro metodológico e da análise
dos registros:
Tendo em vista que a própria temática de investigação foi pensada a partir de uma
observação empírica de sala de aula, e que a relevância da mesma se justifica a partir do
postulado teórico de Paulo Freire sobre a realidade opressora e o conceito de “consciência
hospedeira” que influencia nas construções sociais e simbólicas dos indivíduos, os
procedimentos metodológicos também visam compreender o que e a partir de que os
estudantes concebem o entendimento e opiniões acerca do subcontinente.
Oliveira e Oliveira (in BRANDÃO, 1990, p. 28) identificam as etapas a se considerar
na pesquisa-ação de viés participante, já abordadas nesta dissertação. Aqui, o mais importante
é a elaboração de procedimentos que qualifiquem a etapa dois, referente à coleta da temática
geradora do grupo com quem se trabalha.
Enquanto professora pesquisadora, que investiga a partir de constatações empíricas
da prática escolar, é necessário instrumentalizar uma prática didática que permita a análise do
conhecimento construído pelos estudantes até o momento. Na verdade, essa etapa é chave
para o desenvolvimento da pesquisa, já que a hipótese basilar, já endossada em questionário, é
a de que os estudantes possuem determinado entendimento sobre os temas sociais e históricos
que concernem à América Latina, que os distanciam e promovem a rejeição aos aspectos
sociais e culturais dos países vizinhos.
Na etapa da coleta de dados, optei, então, pela elaboração de um roteiro de aulas-
oficina, conceito trabalhado por Isabel Barca (2004), discutido e apontado por muitos
pesquisadores em Ensino de História como proposta inovadora que visa compreender, por
32
Tendo em vista que as categorias iniciais que suscitam a hipótese de que o ensino da
América Latina não é trabalhado na Educação Básica de forma que proporcione a construção de
uma identidade latino-americana nos estudantes, cabe analisar algumas pesquisas que abordam a
construção da disciplina de História e o ensino de América Latina.
Os debates que cercam a Educação estão sempre articulados com os contextos sociais e
históricos vivenciados no decorrer das transformações promovidas no espaço geográfico. No Brasil,
o ensino passa a ser organizado a partir da República, em meados do século XIX, e o Colégio Dom
Pedro II, especialmente depois da Reforma Rocha Vaz (1925), passa a ser visto como espelho das
propostas curriculares que balizavam as decisões de âmbito nacional. E é já nessa fase que se
evidencia a necessidade de incluir como objetivos da Educação Básica a formação da nacionalidade
e da identidade brasileira, tendo em vista a premência de afirmação nacional e o teor das políticas
públicas do primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945).
Sobre a construção dos currículos em comum, que se desenvolvem desde a época citada,
Katia Abud (2010, p. 35) salienta a importância da disciplina de História apresentada como
colaborativa à disciplina de Geografia na função de instigar o desenvolvimento da identidade e da
“educação política”. Tal preocupação se verifica, também, nos programas de 1942, tendo na
História a base para o entendimento das características que demarcam o “nacional” e contribuem
para a construção da identidade brasileira, seja pelo intento de fortalecimento do Estado nacional,
seja pela via do distanciamento da colônia portuguesa e seus ideais liberais, seja para a defesa de
projetos de governos elitistas, pois:
para o entendimento, por parte dos alunos, de que os países que não acompanharam essa linearidade
em direção ao progresso, não fazem parte do mesmo contexto sócio-histórico do Brasil.
Quando o enfoque da pesquisa incide nos escritos sobre identidade, currículo e cultura
referentes à História da América Latina, comumente os trabalhos encontrados fazem referência à
construção da identidade nacional e alguns estudos sobre as representações da América Latina, mas
nada que discuta a profundidade e pertinência do tema na Educação Básica.
A dissertação de Candida Beatriz Alves (2013), da Universidade de Brasília, intitulada
“Integração, identidade e universidade na América Latina” pode se aproximar à discussão proposta,
tendo em vista que analisa a integração latino-americana através dos programas universitários e
discute o conceito de identidade, analisando quais aspectos da esfera universitária podem
proporcionar a sua construção, quais aspectos os estudantes consideram que aproximam e quais os
afastam dela.
Outro trabalho que se assemelha aos objetivos da nossa pesquisa é “O olhar do ‘outro’
sobre si mesmo: as representações de América nos manuais de formação de professores no Brasil e
na Argentina” (1900/1913), de autoria de Anelice Alves Marninho Santos (2013), que realiza uma
análise comparativa entre as representações feitas da América em manuais voltados para a formação
de professores no Brasil e na Argentina, evidenciando diferenças importantes no que concerne à
interpretação da América, que acaba refletindo na forma como o continente é trabalhado na
Educação Básica. Em resumo, o autor argentino analisado, Carlos Navarro y Lamarca, dá ênfase
aos processos de independência nas Américas Latina e Anglo-saxônica, diferenciando-as
especialmente sob esse aspecto. Já o autor brasileiro, José Francisco da Rocha Pombo centraliza sua
representação no processo de colonização: ibérico e inglês.
Ainda sobre a obra de Rocha Pombo, e indo além na temática sobre América Latina, em
sua tese, a professora Maria de Fátima Sabino Dias (1997) faz uma análise sobre a instituição da
América no currículo escolar, discutindo sobre fatores externos que contribuíram para o
posicionamento dado ao conteúdo no currículo de História. Nessa perspectiva, a autora também cita
a obra didática de Rocha Pombo a partir do parecer de Manoel Bonfim (1903), que observa que o
autor apresenta uma visão nacionalista dos heróis que contribui para o afastamento local entre
países com os quais o Brasil teve como rivais em alguns embates durante sua história ainda como
Império.
Nesse ponto, trago, brevemente, a contribuição de Mario Carretero (2010) sobre essa
relação entre o papel da escola em uma sociedade e na constituição de identidade. No que cabe a
essa discussão, o autor avalia que a função que cada sociedade atribui à escola é determinante para
dimensionar o espaço que a História ocupa e o direcionamento dado ao conceito de identidade e
identidade nacional. Afinal:
35
[...] nos deparamos com o fato de que muitos dos fios com os quais tais
pensamentos [a construção de identidade nacional pela história escolar] estavam
tecidos tinham sua origem em um lugar para além da escola. Em outras palavras,
na própria função que a sociedade atribuía a tal instituição e no sentido que, por sua
vez, esta última lhe outorgava (CARRETERO, 2010, p. 24).
Assim, o sentido de identidade nacional é permeado por simbologias além da escola, mas a
posição desta é de fundamental importância para o desenvolvimento de um Estado nacional. Quer
dizer que se à escola é atribuída à função de construção dessa identidade nacional, ela será
aparelhada ideologicamente para cumpri-la. Se a escola é apenas um espaço de transição de
crianças e jovens antes de ingressarem ao mercado de trabalho, será aparelhada ideologicamente
para cumprir tal intento, etc.
Os autores Thamar Kalil-Alves e Wellington Oliveira, no artigo intitulado “O ensino de
história da América Latina no Brasil: sobre currículos e programas”, apresentam um apanhado
sobre os contextos históricos e políticos em que o currículo de História é revisado e discutem a sua
implantação no estado de Minas Gerais. A partir da análise curricular desde a Primeira República
até o início do século XX, podemos averiguar que, quando enfatizado, o ensino da América no
Brasil visa fortalecer o pertencimento econômico à Europa.
Na segunda metade do século XX, a apresentação do conteúdo sobre a América Latina visa
fortalecer laços políticos e econômicos com o tipo de governo ditatorial presente em vários países
do continente, e a consolidação da hegemonia norte-americana sobre os países considerados
subdesenvolvidos. No início do século XXI, o que o estudo destaca é a implantação da história afro-
brasileira e indígena nos currículos como uma aproximação às raízes pré-colombianas.
Elza Nadai (1993) também aponta a aproximação institucionalizada pelos mecanismos
estatais com a Europa, já em 1892, em um projeto de reforma que insere as características do
progresso europeu como forma de valorizar a identificação com o continente em questão, colocando
em primeiro plano o colonizador português e os imigrantes europeus, enfatizando o caráter
civilizador e linear em direção ao progresso na História. “[...] o explicitado e os silêncios’ (FERRO,
34), em seu conteúdo foram determinados pelas ideias de nação, de cidadão e de pátria que se
pretendiam legitimar pela escola” (1993, p. 149). A autora destaca, também, a construção de um
ideário irreal de nação brasileira, distinta dos processos colonizadores experienciados pelo país.
A identidade sempre foi importante na definição da inserção ou não, e das abordagens
dadas aos conteúdos referentes à América Latina no currículo de História no Brasil, seja pela
aproximação com as civilizações europeias, enfatizando aspectos ocidentais de “sucesso” europeu
referentes à dominação e à administração, seja a partir da segunda metade do século XX,
aproximando política e administrativamente o Brasil aos demais países latino-americanos alinhados
36
Uruguai, Argentina e Brasil, marcados por uma identidade nacional apartada dos vizinhos, por
questões políticas, econômicas e/ou culturais.
Postas essas características do ensino de História escolar, justifica-se a análise e a
discussão propostas nesta dissertação a partir do entendimento de Paulo Freire. Na leitura do livro
Pedagogia do Oprimido (1981), é possível identificar algumas das razões que ajudam a discutir a
questão que proponho sobre a falta de identificação dos estudantes com a América Latina.
Freire argumenta que nossa sociedade é pautada em uma relação entre oprimidos e
opressores. Essa relação, reforçada no modo de produção capitalista e associada a processos
históricos do imperialismo ocidental, constrói sociedades que não se sentem merecedoras porque
não possuem determinados hábitos e produtos. A reprodução desse modo de vida é resumida em
uma citação de Freire (1981, p. 24): “Opressores geram opressores, e muitos que são oprimidos
almejam ser opressores por causa do ‘poder’ de opressão, que por muitos oprimidos é tido como
objetivo”. Isso ajuda a entender porque os estudantes não se identificam com a cultura latino-
americana, tida como menor, visto que o modo de vida ocidental europeu e norte-americano é o
objetivo, é o melhor, e a cultura latina representa os que perderam.
Nessa perspectiva, o conceito de invasão cultural apresentado por Freire como uma
instância do processo de dominação das massas pode ser pertinente para o entendimento da
importância da questão e para constatar sua aplicabilidade, pois:
Além disso, percebemos que os dispositivos institucionais abordados nas pesquisas aqui
trazidas, mantêm, de uma forma ou outra, o sentido de sectarização (FREIRE, 1981, p. 20). A
sectarização do mundo, em países pobres e ricos economicamente, produz uma generalização em
que os próprios oprimidos, pertencentes aos países suprimidos pela economia hegemônica e
opressora, idealizam a realidade opressora como objetivo, e se distanciam da própria história e
cultura em prol de uma “homogeneização” que é idealizada, mas não realizada. A condição
ambígua dos oprimidos como “hospedeiros” do ideal opressor, já divide na essência a massa
oprimida.
A partir desses conceitos reconhecidos em Freire, as leituras sobre o tema ensino de
América Latina parecem permeadas pela relação oprimido e opressor e reflexo do processo de
sectarização, que serão entrecruzados na pesquisa. Para analisar como o tema de América Latina é
apresentado aos estudantes brasileiros, analiso os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) da
disciplina de História, na busca por menções à temática e à relação estabelecida ou não dela com o
39
Tendo em vista a realização de uma breve revisão bibliográfica sobre o ensino escolar de
História no Brasil e as constatações acerca da intencionalidade de uso institucional da disciplina
estar direcionado à formação de identidade nacional – especialmente para reforçar a distinção e
sustentar modelos econômicos e políticos de interesse governamental – busquei, na análise dos
documentos reguladores do currículo escolar da Educação Básica, reconhecer termos e expressões
que apontam as intencionalidades e as respectivas abordagens sugeridas em relação ao conteúdo
América Latina. Acredito que tal temática contribui, de maneira contundente, para o
desenvolvimento do conceito de identidade e o aumento da relevância dada ao subcontinente na sua
construção.
Considerando que as principais fontes de pesquisa constituem-se em documentos oficiais
legislativos, é relevante diferenciar e justificar a escolha pelo uso da análise de conteúdo ao invés da
análise documental. Nesse sentido, segundo Bardin (2011, p. 44), uma das principais características
da análise de conteúdo é a inferência sobre as condições de produção e as consequências
interpretativas do documento (ou outra expressão linguística), ou seja, o objetivo da análise
determina ser sobre o conteúdo da mensagem e não de categorização e representação documental.
Moraes (1999) direciona a utilização da análise de conteúdo em pesquisas qualitativas e
atenta para a importância fundamental de objetivos claros para delimitar os dados relevantes a
serem observados no uso da metodologia. Para facilitar a sua construção e interpretação, o autor
apresenta uma classificação a partir do ponto de análise:
Como a intenção, nesta etapa da pesquisa, é analisar o discurso institucional sobre o tema
América Latina no conteúdo de História, os objetivos da análise são balizados a partir dos seguintes
questionamentos: “para dizer o que?”, isto é, na legislação orientadora da Educação Básica no
Brasil, qual a intencionalidade do ensino de História? Quais os princípios/objetivos estabelecidos
para a disciplina? Eles agregam importância ao conteúdo de América Latina? A partir de que
perspectiva?
Esses questionamentos auxiliam na emergência de categorias de análise, pois as unidades
de registro, identificadas na leitura dos documentos, visam identificar e discutir o conteúdo
ideológico que responde a tais perguntas. Ademais, considerar o “com que finalidade?”, colabora
41
para que a análise se direcione também para os discursos teóricos que se pretendem confirmar a
partir da hipótese de pesquisa. Depois de posicionar a relevância da América Latina no currículo de
História, quais aspectos a concepção dada reforça? Ela favorece a ampliação ou redução da
importância da história latino-americana na construção cidadã e de identidade? Enfatiza ou
distancia a relação sócio-histórica entre os países do subcontinente?
Partindo da pré-análise descrita por Bardin (2011, p. 125), a partir da premissa da hipótese
já apresentada sobre o enfoque e a dimensão sobre a América Latina no Ensino de História, foram
selecionados os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs, do componente História, dos ciclos do
Ensino Fundamental e Ensino Médio, uma vez que o embasamento que os estudantes apresentam
no Ensino Médio é reflexo do direcionamento do aprendizado no Ensino Fundamental. Tendo em
vista a efemeridade das reformas propostas a partir de 2017 em esfera federal, como a discussão da
Base Nacional Comum Curricular (BNCC) corrente, optou-se por discutir tais modificações em
outro momento.
históricas em uma aproximação maior com as Ciências Sociais, dando maior contextualização aos
processos históricos.
Dentre as problemáticas identificadas, Carretero aponta a globalização como basilar na
inserção de um novo paradigma no entendimento dessas questões, pois o intercâmbio econômico,
cultural e de pessoas, intensificado por esse processo, torna evidente a importância do “outro” na
construção de consciência histórica, posto que:
As situações analisadas têm em comum o fato de que expõem mais uma vez como
deveria ser reescrita e ensinada a história na atualidade diante da presença
constitutiva e também dissolvente de “outros” fora e dentro do espaço nacional
territorial. “Fora desse espaço” quer dizer além, mas também “no interior do
outro”, que pode ser o de novas identidades supranacionais, como Europa, e de
modo mais geral remete ao enfoque comparativo intercultural, o qual define um
campo comum de competência (CARRETERO, 2010, p. 141).
perceptíveis no dia a dia dos estudantes da faixa etária, como a questão entre o rural e urbano, uma
vez que:
Não se trata das grandes visões de conjunto, de uma abordagem que procura a
inteligibilidade do singular dentro de um contexto que articule as esferas de
existência. Trata-se agora de, uma vez eleito o objeto de investigação, recortado de
um real multifacetado, considerá-lo em si como uma totalidade (NOVAIS, 2011, p.
64).
especialmente no segundo ciclo dos anos iniciais, em que o documento dá ênfase à comparação e
reconhecimento da realidade sócio-histórica local com as de outras populações.
Alguns apontamentos podem ser destacados do texto pela relação que estabelece com a
construção da identidade e da posição sócio, histórica e cultural do Brasil no mundo. A partir da
década de 30, do século passado, observa-se, nas pesquisas históricas, uma divisão de perspectivas
que abordavam ou o atraso econômico como consequência da mestiçagem do povo brasileiro, ou a
busca de identidade e igualdade através da valorização dos aspectos culturais diversos. De qualquer
forma, constata-se, na escrita do documento, que a tese da “democracia racial” (FREYRE, 1958)
prevalece nos estudos históricos escolares, mantendo o Estado como agente de mudanças, e a
diversidade do povo como aspecto de união em uma tríade (negros, índios e brancos) pacífica e sem
conflitos.
Destaca-se também que, a partir da década de 50, a História escolar baseia-se nas temáticas
econômicas, e a História da América recebe ênfase justamente no momento em que os Estados
Unidos da América (EUA) entram definitivamente no contexto global de hegemonia econômica
capitalista, no qual o Brasil se alinha.
e à modernização. A substituição das disciplinas das Ciências Humanas por uma unidade nos
“Estudos Sociais” provoca o esvaziamento da dimensão histórica dos acontecimentos, como já
mencionado anteriormente nesta dissertação.
Em decorrência do processo de democratização dos anos 80 e da mudança no quadro social
brasileiro, o documento afirma que várias perspectivas históricas foram adotadas pelos professores
da disciplina, tomando como referência a evidência de que:
Desse modo, o que se percebe é que mesmo com as orientações institucionais vindas da
“Lei de Diretrizes e Bases da Educação”, implantada desde 1961, o ensino da disciplina ainda
transcorre de acordo com a perspectiva do professor, o que refletia numa História escolar
heterogênea a partir da formação do professor, ou seja, referente à sua posição social e do currículo
dos cursos de graduação.
Especialmente a partir da década de 90, o discurso e a prática mudam com a ampliação do
debate pedagógico, da percepção do processo de formação na educação escolar, com uma
preocupação em aproximar o saber escolar ao saber acadêmico e, em decorrência disso, a
apropriação do processo histórico pelos estudantes. De fato, as discussões sobre os processos
pedagógicos influenciaram a mudança mais significativa no ensino escolar e no ensino de História
nas escolas, mais do que os debates da ciência histórica em si. Justamente, nesse contexto que o
Governo Federal lança a discussão e a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais em
questão.
A organização do documento, tal como o anteriormente analisado, avança na discussão do
conhecimento histórico no contexto social escolar e na relação entre o saber histórico escolar e o
saber histórico científico. Contudo, a seção realiza uma avaliação muito mais sobre a pesquisa
histórica nas últimas décadas do que apresenta horizontes ou análises sobre a prática didático-
pedagógica no ensino de História. A dimensão abordada é a questão da construção da identidade e
suas variações ao longo dos contextos históricos.
Igualmente, a nova concepção da construção de identidade baseia-se na relação entre
“diferenças e semelhanças” e “transformações e permanências” (BRASIL, 1998, p. 34) e várias
relações de dualidade (consenso/conflito, continuidades/descontinuidades de tempos históricos,
50
diversidade/aproximação, outro/eu) que devem ser utilizadas como ferramenta para a formação de
identidade e cidadania.
Na página 35, na qual se desenrola o entendimento da importância desse reconhecimento
do outro como forma de desenvolver a alteridade, destaco algumas frases como unidades de análise,
que dão pistas sobre o direcionamento do ensino de História:
o “ela demanda que o reconhecimento das diferenças não fundamente relações de
dominação, submissão, preconceito ou desigualdade” – neste registro, a ênfase é dada ao fato de
que as diferenças não devem segregar, mas sim reconhecer os diferentes processos históricos
vividos.
o “mediações construídas por experiências sociais e culturais na organização de
valores, que sugerem, mas não impõem... que orientam, mas não restringem... que possibilitam o
conhecimento ou o desconhecimento” – neste caso, o relativismo dos verbos que admitem a
importância do espaço social evidenciando as possibilidades de generalizações do contexto social
sobre o individual.
o “A percepção de alteridade [...] está relacionada à construção de uma sensibilidade
ou à consolidação de uma vontade de acolher a produção interna das diferenças e de moldar valores
de respeito por elas” – nesta sentença, a alteridade é valorizada, o que percebo pelo enfoque dado à
“diferença”. Além disso, percebe-se que o texto admite que exista uma cultura social e hegemônica
que deve aprender a conviver com as demais, diferentes.
Esse discurso relacional vai ao encontro de uma tendência curricular multiculturalista, que
surge num período pós-crítico às teorias curriculares tradicionais que concebiam a escola e o
currículo como um processo tecnicista de resultados. Segundo Silva, para Bobbitt seus objetivos
“[...] deveriam se basear num exame daquelas habilidades necessárias para exercer com eficiência
as ocupações profissionais da vida adulta” (2016, p. 23), ou seja, com um currículo que prepare o
indivíduo para o mundo do trabalho.
O rompimento com esse paradigma acontece de forma progressiva nas discussões teóricas
e acadêmicas a partir da segunda metade do século XX, advindas dos novos contextos sociais e
culturais que vão se desenhando na realidade histórica. É, especialmente, com o processo de
globalização presenciado mais horizontalmente a partir do final do século, que as questões sobre
diversidade (social, cultural, étnica) se tornam latentes na Educação Básica. Em passagens dos
próprios PCNs destacam-se o impacto do processo migratório na constituição desses novos
parâmetros a serem adotados na educação brasileira.
Sobre essa perspectiva de currículo identificada nos documentos analisados, Silva
apresenta algumas críticas em relação à forma como o multiculturalismo é tratado nas correntes
teóricas sobre currículo, pois:
51
De uma forma ou de outra, o multiculturalismo não pode ser separado das relações
de poder que, antes de tudo, obrigaram essas diferentes culturas raciais, étnicas e
nacionais a viverem no mesmo espaço. Afinal, a atração que movimenta os
enormes fluxos migratórios em direção aos países ricos não pode ser separada das
relações de exploração que são responsáveis pelos profundos desníveis entre as
nações do mundo (2016, p. 85-86).
apenas sugestões que não contemplam e não se esgotam em si mesmas. Entretanto, a ausência de
proposição de interlocução no mundo contemporâneo entre o Brasil e os demais países da América
Latina pode transparecer que o esforço de tratar do subcontinente desaparece quando se pode
desenvolver uma identidade social regional, no quarto ciclo do Ensino Fundamental.
Em relação ao afastamento brasileiro em relação à América Latina, também é possível
interpretar, tendo em vista a forma como a população indígena brasileira é abordada, que o ponto de
vista histórico preconizado institucionalmente é o da colonização portuguesa, com pouca ênfase no
passado das civilizações brasileiras nativas. O oposto acontece quando o documento se refere à
América Latina em geral, discutindo com mais detalhes as sociedades e culturas indígenas dos
demais territórios, e o esforço de independência dos futuros Estados-Nações em relação ao
colonizador europeu.
No que se refere aos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, existem dois
documentos, o PCN em si, e o PCN+, que se referem às “Orientações Educacionais
Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais”. Os textos estão divididos em áreas do
conhecimento, a saber: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; Ciências da Natureza, Matemática
e suas Tecnologias e Ciências Humanas e suas Tecnologias, subdividindo-se nas disciplinas (ou
“componentes curriculares”), e dão enfoque às competências que os estudantes devem desenvolver
ao longo da etapa do Ensino.
Busquei, na análise desses documentos, observar a relevância dada aos temas de
“identidade”, “cidadania”, “formação cultural” e expressões que remetam ao estudo de temas
referentes à América Latina (considerando-as como categorias de análise), utilizando como unidade
de registro frases ou parágrafos, examinando primeiramente a presença ou a ausência com que esses
conceitos aparecem e o sentido/significado atribuído a eles no desenvolvimento dos Parâmetros
Curriculares Nacionais em História.
Antes de objetivamente analisar o conteúdo da disciplina, na introdução do documento do
PCN de Ciências Humanas e suas Tecnologias, algumas considerações são feitas quanto aos
conhecimentos e competências que os conteúdos de História podem contribuir na Educação, das
quais se destacam: o potencial formativo de “identidade coletiva”, a “memória socialmente
construída”, o ato de “situar-se no coletivo”, dando ênfase à História do Brasil e à contextualização
entre “figura e fundo” (BRASIL, 1999, p. 12).
Em relação ao subtítulo do documento intitulado “O que e como ensinar História”, retiro
alguns trechos divididos de acordo com as categorias 1 identidade e 2 cidadania:
54
1 Identidade:
Percebe-se, então, que o enfoque na identidade, que o documento indica, se refere à relação
entre o passado e o presente. Dependendo da dimensão dada ao tempo e espaço pelo professor, o
estudante pode condicionar-se a buscar a identidade em determinados elementos sociais, históricos
e culturais, e em outros não.
55
2 Cidadania:
Como abordado também nos PCNs referentes ao terceiro e quarto ciclos do Ensino
Fundamental, destaca-se a importância de se compreender a cidadania através de uma
contextualização histórica, que contribua para que o estudante perceba que os seus direitos e
deveres como cidadão são permeados pelos processos históricos que dão conta da constituição da
realidade social atual.
A visão de História apresentada indica a busca por um protagonismo dos sujeitos, dando
destaque, como nos demais documentos analisados, à importância do sentido de rupturas e
permanências, “mudança ou resistência” (BRASIL, 2006, p. 70), “continuidades e
descontinuidades” (op. cit. p. 73). Em “O significado das competências específicas da História”, o
documento divide as competências em grandes habilidades a serem desenvolvidas, são elas:
o Representação e comunicação: neste subitem, não há menções sobre a questão da
identidade, cidadania ou cultura;
o Investigação e compreensão: nesta parte, as competências analisadas citam a
construção da identidade, mantendo a perspectiva de todos os PCNs de História analisados até aqui,
que a concebe através de “diferenças e semelhanças, e mudanças e permanências” (BRASIL, 2006,
p. 75). Fala-se, ainda, sobre “continuidade/permanência e ruptura/transformação” (p. 75) como
elementos próprios dos processos históricos, e utilizam-se verbos como “comparar” e “hierarquizar”
valores, ideias e acontecimentos ao longo do tempo histórico.
57
histórica. Dessa forma, a orientação institucional brasileira não coloca a América Latina como
essencial na construção da identidade e da consciência histórica dos estudantes. Certamente, é
possível que os currículos escolares e as decisões individuais dos professores podem ir de encontro
a essas orientações. Entretanto, é possível diagnosticar que tal direcionamento não é priorizado nas
definições nacionais sobre o currículo da disciplina de História no Ensino Básico.
Alguns dos efeitos desse silenciamento da América Latina nos documentos orientadores da
disciplina de História no Ensino Básico são analisados no capítulo a seguir, quando discutirei a
aplicação das aulas-oficinas em turmas do Ensino Médio de uma escola pública sobre a percepção
dos estudantes sobre o subcontinente.
4 AMÉRICA LATINA PELOS ESTUDANTES: UMA ANÁLISE DOS
REFLEXOS DA INVASÃO CULTURAL
provém “do fato de se haver perturbado o equilíbrio humano” (From). Mas, o não
poder atuar, que provoca o sofrimento, provoca também nos homens o sentimento
de recusa à sua impotência (FREIRE, 1989, p. 75).
Isso é ainda mais observável nos adolescentes, que idealizam uma condição de
independência e liberdade próximas, visto que a admissão de que sua realidade é opressora e
limitadora encontra maior resistência. Essa situação não possui outro caminho de superação que não
seja a ação dialógica.
A ação e a reflexão sobre o mundo é apontada por Freire (1989, p. 77) como base para a
promoção da libertação autêntica. Desta forma, ao mesmo tempo em que os estudantes se percebem
enquanto oprimidos, o professor deve promover o espaço para que eles se entendam potentes no que
diz respeito à compreensão do mundo e de si mesmos:
Dessa forma, retorno ao propósito da elaboração das aulas-oficinas, como uma proposta de
romper com a estrutura educacional padronizada em aulas-conferência, ou aulas-colóquio, nas quais
o professor é o centro da atividade, e a agência do estudante é desconsiderada no processo de
progressão conceitual (BARCA, 2004, p. 132).
A proposta de aula-oficina acaba por ser um agente promotor do diálogo, pois se dá do
ponto de partida da conceituação dos estudantes, e propõe análises que os colocam como críticos
dos temas discutidos: “Propor questões orientadoras problematizadoras, que constituam um desafio
cognitivo adequando aos alunos em presença e não apenas um simples percorrer de conteúdos sem
significado para os jovens” (op. cit., p. 135).
Com esses postulados em mente, elaborei a aula-oficina, elemento introdutório de uma
sequência didática que apresentarei no quinto capítulo, buscando trazer elementos que nos
possibilitem obter as impressões prévias dos estudantes sobre a América Latina, a fim de
proporcionar um espaço de diálogo e questionamentos sobre as evidências observadas.
63
Inserção inicial:
Materiais:
Figura 1: Cuzco, Peru
influência midiática voltados para países que não fazem parte do subcontinente. As principais frases
utilizadas e discutidas pelos estudantes foram:
o “Tudo vem de fora”;
o “O que torna um lugar interessante é o quão diferente é de nós”;
o “Estar no RS dá uma visão diferente dos países latino-americanos”.
Depois do diálogo coletivo, os estudantes realizaram registros sobre os questionamentos
discutidos: 1. O que entendo da América Latina e o que a define; 2. Alguma relação histórica entre
a América Latina e o Brasil; 3. De onde vem o conhecimento sobre esse tema.
Nos primeiros anos do Ensino Médio, nas turmas 110 e 112, com um total de quarenta
estudantes, eles apresentaram pouco conhecimento sobre América Latina além de um entendimento
confuso quanto à localização – alguns apontaram apenas a América do Sul, enquanto outros
argumentaram que são os mexicanos que são chamados de “latinos” nos Estados Unidos. Tal
percepção dá-se nitidamente através dos meios de comunicação, como filmes e televisão.
Quanto ao Brasil, na discussão em grupo, mais abrangente, percebeu-se que era estranho à
maioria a ideia do país fazer parte de um grupo social “latino”, apontando, inclusive, traços físicos e
culturais que diferenciariam os brasileiros do conceito de “latino-americano”, mas geograficamente
reconhecem o Brasil como integrante da América Latina. Os elementos citados como característicos
da América Latina foram a língua espanhola e a economia, apresentando uma visão dos latino-
americanos como “imigrantes no mundo”, sem uma nação que os ampare econômica e socialmente.
Em uma das turmas (112), alguns alunos levantaram e colaboraram com as discussões a
respeito da colonização, apontando tanto os aspectos culturais quanto os econômicos, que dariam
unidade à América Latina. Ainda assim, as falas sobre o subcontinente são colocadas como “de
fora”, eles se posicionaram como se estivessem realizando a análise de algo alheio à realidade deles.
Durante a incitação ao diálogo, questionei o porquê se colocavam tão à parte da realidade
concebida como América Latina, e alguns estudantes, em especial, expressaram que o interesse não
acontece porque o cotidiano deles é “estrangeiro”. Parafraseando a fala de uma estudante, “nossa
história é estrangeira, é colocada e reproduzida externamente e apenas a consumimos”. Dessa
forma, não somos atores/autores da história mundial, somente um espaço que surgiu depois e
atrasado.
A análise desta primeira parte da aula-oficina vai ao encontro das observações que
permitiram chegar à hipótese da pesquisa. Em todas as turmas, antes mesmo de iniciar a atividade,
na introdução da fala ao tema da atividade, os estudantes já se mostravam apreensivos. Acredito que
muito, é claro, em função da minha posição de professora e o receio de uma avaliação sobre o tema.
Isso transparece, em parte, o desconhecimento dos estudantes sobre o assunto.
69
c. Características geográficas que determinam a América Latina: aqui, não farei juízo
de valor quanto à localização estar certa ou errada, pois o objetivo é avaliar elementos que
caracterizam o subcontinente;
d. Características sociais que determinam a América Latina: respostas que relacionam a
América Latina e o Brasil a aspectos como pobreza e subdesenvolvimento;
e. Papel da escola na constituição do saber: quando os estudantes apontam que a
principal referência para o entendimento que eles têm por América Latina se deu especialmente a
partir da escola, e aqui podemos subdividir a categoria como: I positivo (quando a resposta tem um
embasamento relativo); II negativo (quando se utilizaram na resposta expressões como “pouco
conhecimento”, “pouco trabalhado”, entre outros) e; III neutra (quando a resposta não classifica a
qualidade do conhecimento escolar);
f. Papel das mídias na constituição do saber: quando os estudantes apontam que a
principal referência para o entendimento que eles têm por América Latina é originária dos meios de
comunicação, subdivididos em I Internet e; II Televisão;
g. Desconhecimento quase que total do tema América Latina: quando as respostas não
apresentam nenhuma referência quanto ao solicitado na atividade e os estudantes identificam
desconhecimento sobre a temática.
Em meio aos dados quantitativos, é possível deduzir que, em relação às turmas do primeiro
ano do Ensino Médio, os estudantes definem como América Latina especialmente características
culturais, e em segundo plano, destacam a localização geográfica como determinante para essa
definição, além de características sociais, citando problemas sociais e econômicos semelhantes
71
Todas as turmas, em geral, tiveram a mesma tendência de teor nas respostas. No entanto, é
preciso destacar algumas que apresentaram diferenças quanto às definições das turmas de primeiro
ano e as de terceiro ano do Ensino Médio.
Sobre a imagem 3, que consiste na fotografia de um bairro periférico da cidade de Paris, na
França, entre os quarenta estudantes dos primeiros anos, trinta apontaram como sendo uma imagem
72
referente à América Latina. Nos terceiros anos, a classificação foi equilibrada entre sim e não (doze
apontaram como América Latina, dez apontaram como não sendo). É possível interpretar que, ao
final do Ensino Médio, a tendência é de que os estudantes avaliem mais criticamente as informações
colocadas a eles.
As representações de Tenochtithan (4), antiga cidade asteca do México, e da organização
produtiva Inca, no Peru (7), também apresentaram uma diferença relevante no padrão entre as
respostas dos primeiros e dos terceiros anos. Novamente, uma parcela relevante dos estudantes dos
primeiros anos (vinte e seis de quarenta) apontou que as imagens não faziam parte da América
Latina, e nos terceiros anos, novamente uma classificação um pouco mais equilibrada, como é
possível observar nos gráficos a seguir.
apontada em três das turmas. Eles alegaram que a imagem representava uma cidade/sociedade
muito bem organizada e com infraestruturas como construções e tecnologias de produção agrícola.
Porém, as montanhas ao fundo e, em algumas falas, a aparência de “índios” das pessoas
representadas, davam sinais de que a imagem fosse referente à América Latina. Em outras palavras,
uma sociedade organizada, com infraestrutura e tecnologias não davam sinais de que o lugar
pudesse ser latino-americano, os educandos ainda relacionaram a natureza exuberante à América
Latina e as cidades e a urbanização à Europa, como se observa no seguinte gráfico:
Por fim, a imagem 8, representando o Rio de Janeiro no século XIX, também apresentou
diferenças em relação às percepções gerais dos primeiros e dos terceiros anos. Nos primeiros anos,
vinte e seis, de quarenta estudantes, apontaram a imagem como não fazendo parte da América
Latina. Nos terceiros anos, treze, de vinte e dois estudantes indicaram-na como sendo da América
Latina e, inclusive, do Brasil. Essa análise também foi discutida, especialmente, nos terceiros anos,
no qual os estudantes argumentavam entre si, durante a atividade, que na imagem havia negros
servindo soldados brancos, cena comum no Brasil colonial.
Dessas observações em relação aos padrões de respostas diversos entre os primeiros anos
do Ensino Médio e os terceiros anos, observa-se que, mesmo que a discussão sobre as temáticas que
envolvem América Latina possa não ser evidente, ao longo do Ensino Médio os estudantes tendem
a construir uma análise mais crítica e reflexiva sobre as representações, sejam gráficas ou sociais,
apresentadas a eles.
Nesse sentido, realizei a análise de conteúdo das descrições feitas pelos estudantes acerca
de algumas das imagens selecionadas. Destarte, com base em Bardin (2006), é possível afirmar que
a aplicação da técnica, no presente caso, possui a função de administração de provas, ou seja, parte-
se de uma hipótese para, em seguida, procurar sua confirmação que se dá através de uma prova
obtida pela análise de conteúdo.
74
Assim, busco analisar nos registros dos estudantes, selecionando, nas imagens mais
citadas, a intensidade das expressões utilizadas ao longo dos textos, o que Richardson (p. 239) trata
como “a direção da informação”. Nesse caminho, operacionalizei as expressões que se referem ou
não à América Latina, a fim de observar o direcionamento dado por eles aos elementos que a
definem.
A primeira análise que apresento é breve, pois se refere à fotografia do Rio de Janeiro e
boa parte dos estudantes, imediatamente, reconheceu-a e, no ímpeto de fornecer “respostas certas”,
selecionou-a para a descrição. Dos que a citaram na análise mais específica solicitada, vinte e um
estudantes, dos sessenta e dois do total das turmas, apontaram-na como referente à América Latina.
Ainda, dois estudantes argumentaram não fazer parte da América Latina, por 1 ser da América do
Sul e 2 em função da língua (que não estava representada na imagem).
A grande maioria apenas argumentou que entendiam por América Latina porque era uma
imagem do Brasil, dois estudantes destacaram a relação entre a urbanização e a natureza, um
apontou que aparentava ser uma cidade populosa, e outro que já tinha visto a imagem na televisão, e
sabia que se referia ao Brasil. Grande parte dos estudantes (ver Gráfico 4) indicou a imagem como
fazendo parte da América Latina, e pelas descrições, eles entendem, de forma geral, que o Brasil é
um país que faz parte da América Latina, mesmo que não reconheçam característica em comum
com o subcontinente (como observado no diálogo inicial da aula-oficina).
De todos os registros coletados, selecionei quarenta e cinco para realizar a análise das
classificações das imagens em relação à intensidade das expressões. Para essa seleção, justifico que
os demais registros entregues carecem de informações passíveis de análise, com respostas abstratas,
ou porque não agregam adjetivos que descrevam as imagens, mas sim identificação, como “é
75
América Latina porque é Brasil”, ou “parece uma foto do México que já vi”, ou seja, não descrevem
os elementos que fazem os estudantes associarem as imagens à América Latina, ou a não
associação.
Expressões usadas para definir outras regiões (entre parênteses, o número da figura
relacionada):
- desenvolvido (1, 5)
- rico (1)
- estrutura organizada (5, 4)
- padrão da arquitetura (10, 10 3, 10, 10, 10, 10, 10)
Creio que a maioria dos estudantes tenha optado por descrever as imagens que os
remetessem à América Latina, por conta do direcionamento temático da aula-oficina. Assim, se
apresentaram mais expressões referentes ao que define o subcontinente do que as outras regiões
teriam de diferente. De qualquer forma, é possível observar o que compreendem como pertencente
ao contexto latino-americano, através de algumas expressões recorrentes e representativas: poluição
e lixo, pobreza, colonização.
Das imagens 2 e 3, que são fotografias aéreas de Berlim, Alemanha, e um bairro periférico
de Paris, respectivamente, os estudantes identificaram o aspecto cinza de Berlim e a rua sem
manutenção de limpeza de Paris como características que definiriam uma região da América Latina,
usando as expressões “poluição” e “lixo” de forma frequente.
A imagem 10, de um bairro periférico de Londres, Inglaterra, gerou muitas dúvidas,
observadas durante a atividade. Os estudantes tendiam a classificar a fotografia como pertencente à
América Latina, mas uma pequena placa escrita “Sold” (“vendido”, em inglês), e o padrão das casas
do bairro, mesmo que aparentemente negligenciado pela manutenção pública, influenciaram que
76
muitos classificassem como de outra região. Assim, a expressão que mais apareceu nessa imagem,
para defini-la como não sendo do subcontinente, foi “arquitetura padrão”. Os educandos, que a
classificaram como da América Latina, utilizaram como adjetivos “pobreza” e “poucos recursos”
para descrevê-la.
Sobre as imagens que são representações de períodos passados, as expressões empenhadas
para indicá-las como latino-americanas dizem respeito à representação do Brasil Colonial e da
estrutura produtiva agrícola inca, aspecto que demonstrou entendimento em relação a alguns
processos históricos, como a colonização e a escravidão.
Em relação à representação de Tenochtithan, cidade do Império Asteca, a grande maioria
dos estudantes classificaram-na como não pertencente à América Latina (ver Gráfico 3), os que a
selecionaram para descrição, apontaram características como desenvolvimento e organização como
marcantes na imagem e informaram que a classificariam como sendo de outra região que não fosse
a América Latina.
A proposição da aula oficina possibilitou uma série de diálogos que contribuíram para o
entendimento tanto no que diz respeito à origem do conhecimento e à interpretação dos estudantes
sobre como eles percebem as paisagens e as relações que estabelecem entre os elementos das
mesmas e a região a que pertencem, quanto ao desenvolvimento do seu pensamento crítico, uma
vez que eles passaram a questionar como se constituíram suas opiniões e percepções a respeito da
América Latina e do mundo, o que será discutido no subcapítulo a seguir.
[...] educação como prática da dominação que vem sendo objeto desta crítica,
mantendo a ingenuidade dos educandos, o que pretende, em seu marco ideológico
(nem sempre percebido por muitos dos que a realizam), é indoutriná-los no sentido
de sua acomodação ao mundo da opressão (FREIRE, 1981, p. 76).
Todo ato de conquista implica num sujeito que conquista e num objeto
conquistado, que passa, por isto mesmo, a ser algo possuído conquistador. Este, por
sua vez, imprime sua forma ao conquistado que, introjetando-o, se faz um ser
ambíguo. Um ser, como dissemos já, “hospedeiro” do outro (FREIRE, 1981, p.
162).
79
A parte aberta da questão busca justificar o interesse elencado pelos países e divide as
respostas obtidas em: “Interesses”, “Desenvolvimento e investimentos”, “Cultura”, “Outros” e
“Sem resposta”, e o que se constata é que as escolhas estão relacionadas, especialmente, a
“desenvolvimento e investimentos”, ou seja, os países mais bem numerados seriam mais econômica
e socialmente desenvolvidos, outro aspecto relacionado é a “cultura”. De dez respostas voltadas à
cultura, apenas uma destaca países latino-americanos como interessantes, algumas respostas
denotam identificação maior com os países melhor classificados, isto é, do continente europeu.
O que se pode apreender desta análise é que os jovens de fato desenvolvem um
conhecimento, e, consequentemente, uma aproximação cultural muito maior com as referências
europeias e pouco conhecem sobre os processos históricos e culturais do subcontinente que
integram. Seguindo a perspectiva de Freire, fica clara aqui a constituição da “consciência
hospedeira” que identifica os países colonizadores e, por consequência os opressores, como
referência de sociedade.
Certamente essa condição não é consequência exclusiva da educação institucional. Os
meios de comunicação, especialmente a televisão e a internet, influenciam muito no tipo de produto
cultural que os jovens e os estudantes têm ou não acesso e o consolidam como padrão. Esta é uma
discussão interessante que pode ser feita sobre a contradição do processo de globalização que, ao
mesmo tempo em que proporciona acesso mais facilitado ao conhecimento e a produções culturais
exóticas, acaba por homogeneizar, através do poder econômico, a massificação de artistas e
produções culturais específicas dos países que detêm o maior controle econômico.
81
Gráfico 6: Países que os estudantes consideram estar entre o grupo de Muito Alto Desenvolvimento
Humano
desenvolvidos pelos estudantes são de colonização espanhola e portuguesa, pode indicar que esses
países não foram eficientes no seu processo de conquista.
Porém, o que é mais significativo para esta interpretação é o fato de que Argentina e Chile,
que fazem parte do grupo de Muito Alto Desenvolvimento Humano no IDH, comparado com os
demais países (exceto Brasil e África do Sul), têm indicação quase nula nos questionários. Tais
países estão, então, invisibilizados pelos estudantes.
Após algumas das análises desenvolvidas nesta dissertação, é possível delimitar algumas
razões para tal. Considerando a análise dos PCNs e constatando a pouca ou quase nula indicação de
temáticas que abordem a América Latina ou relacionem-na a conteúdos estruturantes da História, e
realizando a triangulação com as evidências obtidas através das aulas-oficinas, é evidente que os
estudantes não percebem o subcontinente como uma região que possa abarcar desenvolvimento
econômico, social e cultural.
Trago essa frase retirada dos registros dos estudantes durante as aulas-oficinas para
expressar esse entendimento sobre o subcontinente, discutir a representação social que existe e o
papel da escola: “Na escola, não me lembro de muito sobre América Latina, porém, através da
mídia é passada a imagem da America Latina, no geral, mais marginalizada, mais
‘subdesenvolvida”
Quando a escola deixa de realizar a análise e a reflexão de qualquer tema ou fenômeno
relevante na História, ela abre mão de desenvolver consciência crítica nos jovens educandos. A
mídia, por sua vez, seja tradicional ou alternativa, assume o papel de fornecer as informações e
influenciar na construção das opiniões e das compreensões sobre aspectos sociais e políticos.
Em relação à América Latina, quando os temas históricos, políticos e sociais do
subcontinente não são discutidos no espaço escolar, a questão da construção da identidade e a
relação entre as diferenças e semelhanças, tão citadas nos PCNs de História como objetivos da
disciplina, perdem-se e ficam a cargo das experiências além da escola nas quais os estudantes estão
imersos.
Freire aponta que um mecanismo da invasão cultural “coerente com sua matriz
antidialógica e ideológica, jamais possa ser feita através da problematização da realidade e dos
próprios conteúdos programáticos dos invadidos” (1981, p. 179). Dessa maneira, diante da realidade
pesquisada, é possível afirmar que os marcos regulatórios e legislativos da Educação Básica no
Brasil não preconizam o estudo de temas referentes à América Latina, e essa condição acaba por
reforçar o mecanismo da invasão cultural.
Ainda segundo a perspectiva de Freire (1981, p. 184), estamos condicionados a uma
cultura do êxito e do sucesso pessoal que influencia diretamente nossas concepções acerca de
temáticas sociais e, nesse sentido, a tendência é negar uma realidade que seja desfavorável ao êxito
83
pessoal. Quando os estudantes afirmam que a América Latina é colocada numa perspectiva negativa
(quando é colocada), relacionando os países especialmente à pobreza e ao subdesenvolvimento, a
reação é o afastamento da sua cultura e da sua realidade social do que é concebido como “fracasso”.
Além disso, Paulo Freire (op. cit.) relata uma experiência realizada em Nova York, que se
assemelha à que pratiquei com os estudantes de Ensino Médio, na qual uma educadora apresentou a
imagem de uma esquina da rua, onde se realizava uma atividade com grupos de áreas pobres da
cidade, e os participantes não reconheciam a paisagem como parte da sua realidade, apontando-a
como sendo da África ou da América Latina.
O autor analisa tal reação aos conceitos de consciência dual ou hospedeira e de invasão
cultural que são as bases da realidade opressora em que estamos inseridos:
A invasão cultural atua de forma a suprimir a capacidade criativa e de autoria dos sujeitos
que são submetidos à dominação e à conquista: “Daí que, na ação da conquista, não seja possível
apresentar o mundo como problema, mas, pelo contrário, como algo dado, como algo estático, a que
os homens se devem ajustar” (FREIRE, 1981, p. 163). A imposição de um entendimento de
civilização trazida pelos colonizadores europeus e o “pacote” que deve vir com ela (religião,
padrões de vida e de consumo, produção artística, etc.) produz neles a consciência de que o seu
modo de vida, seus hábitos e sua cultura estão superados pelo progresso ocidental. Mais adiante, os
Estados Unidos da América assumem esse papel de conduzir os padrões econômicos e culturais da
América Latina, subjugando cada vez mais a autonomia social, cultural e econômica dos povos
nativos.
Trazendo novamente para a experiência da aula-oficina, apresento outras duas afirmativas
que evidenciam a relação entre a forma como os estudantes enxergam a América Latina:
Os meios onde são reproduzidos, em geral, são as mídias sociais, que nos passam a
imagem de uma América Latina “quebrada”, sem muitos pontos turísticos e
eventos interessantes, enquanto fortalecem a Europa, os Estados Unidos. Assim,
nos fazem perder o interesse em nosso próprio continente, através de mercadorias,
filmes, músicas, livros, história, etc.;
Esses registros partiram de estudantes do terceiro ano do Ensino Médio, que percebem que
a forma como eles mesmos entendem a América latina é influenciada pelas mensagens e
significados passados pela mídia, quando a escola aparentemente desconsidera a potencialidade dos
temas referentes ao subcontinente. Freire (1981, p. 179) alerta que o princípio básico da invasão
cultural é o reconhecimento por parte dos invadidos como seres inferiores, e, consequentemente,
eles passam a ver os invasores como superiores e adotam seus valores e conquistas como objetivos.
Assim, seu entendimento de sociedade constitui-se através das relações socioculturais em que, se a
escola se omite de exercer sua vocação crítica e analítica, outras instituições assumem o papel de
construir.
Naturalmente, por mais que o discurso identificado nos PCNs de História seja voltado para
o reconhecimento de diferenças e semelhanças, permanências e transformações, e destaque o papel
da História na construção da identidade, mesmo na teoria falta uma maior ênfase à potencialidade
dos temas relativos à América Latina. Na prática, essa abordagem depende de indivíduos e de
instituições permeadas pela condição dual e hospedeira da realidade na qual estamos inseridos. De
acordo com Freire:
Com efeito, na medida em que uma estrutura social se denota como estrutura
rígida, de feição dominadora, as instituições formadoras que nela se constituem
estarão, necessariamente, marcadas por seu clima, veiculando seus mitos e
orientando sua ação no estilo próprio da estrutura.
Os lares e as escolas, primárias, médias e universitárias, que não existem no ar, mas
no tempo e no espaço, não podem escapar às influências das condições objetivas
estruturais dominadoras, como agências formadoras de futuros “invasores”.
As relações pais-filhos, nos lares, refletem, de modo geral, as condições objetivo-
culturais da totalidade de que participam. E, se estas são condições autoritárias,
dominadoras, penetram nos lares que incrementam o clima da opressão (FREIRE,
1981, p. 180-181).
Se institucionalmente não temos uma orientação mais objetiva quanto à relevância das
temáticas, ainda mais quando elas estão permeadas de sentidos e de significados que se propõem à
análise crítica das questões, sejam históricas ou sociais, dificilmente teremos uma prática de ensino
que, espontânea e organicamente, se proponha a superar a realidade construída através da
consciência hospedeira do opressor pelo oprimido e da invasão cultural que limita as
potencialidades dos sujeitos.
5 TEMAS GERADORES E PROPOSTA DE SUPERAÇÃO DO PARADIGMA
OPRESSOR
O que é possível evidenciar, a partir das análises dos dados obtidos através de análise de
conteúdo e aulas-oficinas com estudantes do Ensino Médio público, é que, via de regra, a América
Latina e seus temas pertinentes estão à margem da importância em relação aos objetivos da
Educação Brasileira de forma institucional, mantendo os educandos afastados do subcontinente do
qual fazem parte. Mesmo que nos PCNs da disciplina/componente curricular de História as questões
da cidadania e, especialmente, da identidade, sejam colocadas como basilares na construção do
conhecimento histórico, o subcontinente quase não é mencionado e não é relacionado com o
desenvolvimento desses conceitos.
Em relação ao pensamento-linguagem dos estudantes participantes da pesquisa, observam-
se na prática (e na práxis2) as consequências da pouca relevância dada ao subcontinente na
constituição da disciplina escolar de História no Brasil. Constatei, através dos questionários, que
existe pouco interesse dos discentes em conhecer e se apropriar de aspectos culturais de países
latino-americanos, dando preferência e se reconhecendo em relação aos países do continente
europeu e aos Estados Unidos da América.
Tanto nos questionários, quanto nos dados obtidos nas aulas-oficinas, também é possível
constatar que a América Latina está relacionada, para os estudantes, com a pobreza e
subdesenvolvimento, e essas características contribuem para o pouco interesse em relação a
conhecer seus países. Os educandos também apontam a falta de acesso aos conteúdos referentes ao
subcontinente na escola, uma vez que há poucas referências prévias, já que a História contada nas
escolas foca em eventos e processos da Europa, segundo as críticas dos próprios alunos. Sendo
assim, essa falta de referências históricas e econômicas influencia para que eles pouco se
interessem, se reconheçam e se identifiquem com o subcontinente latino-americano, seja pelos
aspectos culturais e históricos, seja pelos sociais e econômicos.
Dadas essas constatações, analisei a partir da teoria de Paulo Freire em Pedagogia do
Oprimido (1981), como se deu e como se dá esse processo de afastamento social e cultural dos
estudantes em relação à América Latina, e é possível relacionar tal evidência aos conceitos de
consciência hospedeira e de invasão cultural.
2
De acordo com Freire (1981), práxis significa que, ao mesmo tempo, o sujeito age/reflete e ao refletir age, ou se
desejarmos, o sujeito da teoria vai para a prática e da sua prática chega à nova teoria, sendo assim, teoria e prática se
fazem juntas, perpetuam-se na práxis.
87
Por isso, para se pensar a metodologia dos temas transversais, e mais ainda quando se trata
dos temas geradores, que emanam de pesquisas e discussões de cada realidade de turma e escola,
que devem ser codificadas e descodificadas, reforça-se a ideia de que a estrutura do sistema de
ensino precisa ser repensada. Entretanto, a proposta de devolução sistemática a partir das reflexões
desta pesquisa pretende apresentar ao mesmo tempo uma possibilidade concreta de ação pedagógica
nos padrões atuais da estruturação curricular, sem excluir e objetivando superar as limitações
teóricas e estruturais do currículo e da Educação brasileira.
Nos anos de 2017 e 2018, na Escola Estadual Lília Neves, ambiente desta pesquisa,
esbocei, juntamente com dois professores, um projeto além do multidisciplinar, embasados na
perspectiva de Freire. Entre um grupo de professores lecionando História, Sociologia, Geografia e
Filosofia e, em alguns momentos, Educação Física, organizaram-se aulas interdisciplinares nas
quais os professores das disciplinas mediavam juntos, em sala de aula, o desenvolvimento dos
conteúdos a partir de temas geradores. Cabe salientar que essa prática exigia uma carga de trabalho
extra não remunerada, visto que os professores participavam das aulas uns dos outros fora da sua
carga horária regular.
A primeira experiência foi a partir do tema gerador “racismo”, na qual foi abordado o filme
“Invictus”, que retrata a ascensão de Nelson Mandela na presidência da África do Sul e sua
estratégia de união a partir do esporte, o Rúgbi. Em Educação Física, discutiram-se os diversos
casos de racismo e invisibilidades no esporte. Na Sociologia, abordou-se a teoria de Freire sobre o
conceito de “ser mais”, identificando na figura de Nelson Mandela uma atitude direcionada em
romper o ciclo opressor. Em História e Geografia, debateu-se, com os estudantes, acerca dos
diversos tipos de repressão étnica e racial ao longo do tempo e suas consequências no espaço
geográfico.
Considerando a origem dos temas geradores, partindo do interesse dos estudantes, foram
abordadas temáticas latentes na realidade dos jovens estudantes de Ensino Médio, como o
feminismo e relacionamentos abusivos, o debate sobre aborto, a suposta relação entre pobreza e
taxa de fecundidade apresentadas por eles, por meio das quais pudemos dialogar e
desconstruir/descodificar a impressão distorcida da realidade sobre a causalidade, dentre outros
92
temas surgidos das demandas dos educandos e que faziam parte da análise das disciplinas,
especialmente as das Ciências Humanas. A presença dos professores juntos no mesmo espaço e
tempo de sala de aula permite uma dimensão mais real da interdisciplinaridade, favorecendo a
compreensão dos estudantes acerca da dimensão do conhecimento do mundo e de seu contexto
sócio histórico.
Partindo desta análise, considero que a metodologia de temas geradores apresentada por
Freire, demanda uma ressignificação da estrutura institucional e curricular da Educação brasileira,
que se encaminhe de fato para os objetivos apontados como basilares nos PCNs e na LDBEN de
1996. Em meio a esse caminho, é necessário que se pense em propostas que ao mesmo tempo em
que se tornem adequadas à realidade escolar brasileira, busquem superar as barreiras estruturais que
dificultam a evolução de uma educação libertadora e crítica, que possibilite ao estudante
compreender, refletir, codificar e descodificar sua percepção sobre a realidade e sobre os processos
sociais e históricos que delimitam seu pensamento e linguagem.
E, reconhecendo através do caminhar desta pesquisa o silenciamento/invisibilidade da
América Latina no currículo escolar e no conhecimento dos estudantes, e considerando a
potencialidade da sua visibilidade e de sua descodificação para o desenvolvimento de identidade e
cidadania crítica por parte dos estudantes, proponho o estudo, a análise e o diálogo sobre o
subcontinente latino-americano como tema transversal, como adaptação e como tema gerador,
visando à superação das limitações teóricas e práticas na Educação brasileira.
Tratar a América Latina como tema gerador significa considerar que o subcontinente tem
papel nos processos históricos de dimensões globais, e suas realidades são permeadas pela interação
entre as partes. E assim, colocando-o como centro, ou ponto inicial da ação dialógica e
conscientizadora, parte dele a inserção dos indivíduos no mundo, permitindo que os estudantes
reflitam com maior propriedade os processos históricos, o que Freire aponta como “encadeamento
de temas significativos” (1981, p. 117). Por exemplo, quando se discute a Primeira Revolução
Industrial, protagonizada pela Inglaterra no século XVIII, como eram caracterizados os países
latino-americanos (que, na época, eram territórios e colônias de exploração)? Qual o papel do
território latino-americano nos eventos e processos históricos globais, e como é influenciado por
eles?
Dessa forma, juntamente com a elaboração das aulas-oficina, que serviram como fonte de
dados desta pesquisa, desenvolvi algumas estratégias de intervenção didático-pedagógica a fim de
proporcionar a ação dialógica e a reflexão sobre os temas referentes à história da América Latina.
Apresento, assim, uma sequência didática que segue do processo de codificação descrito no
subcapítulo “Análise da compreensão dos estudantes sobre América Latina”, aprofundando as
93
em 1998, o trabalho da banda alcança com peculiaridade o público francês e a primeira turnê na
América Latina, tocando na Argentina.
O discurso da banda aborda temas recorrentes, como a defesa dos direitos humanos, as
contradições do sistema capitalista e a cena de resistência ao mesmo. Outrossim, temas de
conjectura são identificados com questões religiosas contemporâneas, com denúncias da história da
Igreja Católica, por meio de discussões culturais, debates sociais e políticos iminentes, etc., que
podem ser usados como ferramenta interdisciplinar. Nas obras da banda é possível reconhecer
também uma quantidade significativa de canções que abordam as questões histórico-sociais da
América Latina, e muitas delas fazem referência a figuras importantes como Emilliano Zapatta3 e
Victor Jara4, marcados pela resistência à repressão dos agentes dos estados capitalistas sobre as
terras e o povo latino-americano.
Nesse sentido, a discussão de canções da banda Ska-P pode ser um instrumento alternativo
para fazer a interlocução entre a música de protesto e os temas das disciplinas de Ciências
Humanas, especialmente História, tendo em vista a construção de metodologias que orientem a
análise e a discussão bibliográfica de temas pertinentes expostos nas letras das músicas. Mais
interessante ainda, é que, por ser de origem europeia, apresentar e discutir a perspectiva da banda
sobre os processos latino-americanos demonstra que a ideia de progresso, que justifica a
colonização europeia pelo mundo, não é consenso nem entre os europeus, e abre um espectro maior
de questionamentos acerca do entendimento que os estudantes têm sobre os temas referentes à
América Latina.
Direcionando nossa elaboração da sequência didática, cito algumas músicas que tratam da
América Latina, como “America Latina Libre”, que faz uma reverência e um chamamento às
nações latino-americanas quanto ao seu contexto sócio-histórico de exploração e dominação por
ditaduras oligárquicas, “Paramilitar”, destacando o protagonismo revolucionário no México, dentre
outras.
Coincidentemente, durante a elaboração desta pesquisa, a banda lançou um novo álbum,
em 2018, intitulado “Game Over”, e uma das canções chama-se “Cruz, Oro y Sangre”, cuja letra
traz a perspectiva do processo de colonização como invasão violenta e genocida por parte dos
europeus, bem como o massacre das culturas indígenas originárias. No último verso, é assumida a
responsabilidade pelas consequências nocivas do processo histórico em questão, e faz um
chamamento à resistência:
3
Emilliano Zapatta (1879 – 1919), foi o organizador de um grupo de indígenas guerrilheiros no México, que tinha o
intuito de ocupar e repartir as terras dos latifundiários que dominavam as terras apoiados pela política econômica do
governo de sistema ditatorial de Porfírio Diaz (1830-1915).
4
Na ditadura chilena liderada por Augusto Pinochet (1915-2006), vivenciada entre 1973 e 1988, em meio a milhares
ativistas políticos, um dos muitos artistas revolucionários mortos foi o músico e compositor chileno Victor Jara (1932-
1973), após ser barbaramente torturado no Estádio do Chile.
95
Diante da pertinente análise crítica apresentada na música em questão, optei por indicá-la
como contraponto à ação dialógica promovida com os estudantes de Ensino Médio, sujeitos da
pesquisa. Dessa forma, apresento-a como proposta didática que centraliza a América Latina como
tema gerador, além da atividade da aula-oficina da inserção inicial, analisada no capítulo anterior,
propondo estender a discussão sobre temas centrais ao subcontinente de forma que se promova cada
vez mais a decodificação dos conhecimentos limitantes reconhecidos com e pelos estudantes.
Inserções conceituais:
Tempo da atividade: entre duas e quatro aulas de cinquenta minutos.
Objetivo geral: Apresentar e problematizar aspectos históricos da América Latina a partir
de uma perspectiva que coloca o subcontinente como central no processo de constituição social e
cultural.
Objetivos específicos:
o Discutir trecho da obra “As veias abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano
sobre os processos de colonialismo e neocolonialismo e seus reflexos na estrutura social do
subcontinente;
o Analisar a letra da música “Cruz, Oro y Sangre”, da banda espanhola Ska-P,
discutindo com os estudantes sobre a seleção da banda e da música, e apresentar informações sobre
os episódios e elementos citados na música, como a expansão colonialista europeia sobre as terras
americanas e problematizar o processo de descobrimento das Américas e seus desdobramentos;
o Desenvolver o conhecimento acerca da história da América Latina;
o Questionar os padrões e estereótipos reproduzidos social, cultural e historicamente
sobre o subcontinente.
geral, quais as condições econômicas e sociais dos países latino-americanos? Que elementos te
estimulam ou não colaboram para que queiras visitar os países?
o Realizar leitura orientada dos seguintes trechos da obra “As veias abertas da América
Latina”, Eduardo Galeano:
“A nostalgia belicosa de Túpac Amaru” (p. 70-74);
“A Semana Santa dos índios termina sem ressurreição” (p. 75-80);
“Um talismã vazio de poderes” (p. 289-293);
“São sentinelas que abrem as portas: a esterilidade culpável da burguesia nacional” (p.
293-302).
o Solicitar que os estudantes destaquem trechos relevantes na leitura, para a discussão
de elementos desconhecidos sobre a História da América Latina, e identificar similaridades sócio-
históricas entre os países pertencentes ao subcontinente;
o Realizar releitura e reescrita dos versos da música (possivelmente, em um segundo
encontro de duas aulas de cinquenta minutos), buscando compreender o ponto de vista apresentado
e relacioná-lo com os conhecimentos prévios.
Síntese: os estudantes irão elaborar narrativas que apresentem percepções iniciais sobre o
tema e o desenvolvimento dos conceitos que definem a América Latina através das ferramentas
trabalhadas e, ainda, de que forma as atividades contribuíram para reforçar ou transformar o
entendimento inicial que apresentavam.
Material:
o Fotocópias dos textos selecionados da obra “As veias abertas da América Latina”;
o Fotocópias das letras das músicas trabalhadas;
o Caixa de som para audição.
(ROCHA, 2015, p. 108). Isso quer dizer que a música não está posta como evidência, mas sim
sujeita à análise de seu conteúdo e contexto: o tema ou os sujeitos citados na música são familiares?
Já foram abordados em sala de aula ou em outro espaço de discussão? Por quê? Qual importância
que têm para serem citados na música?
A partir da análise reflexiva de uma música que aborda o processo de colonização
considerando a perspectiva dos povos colonizados, acredito ser uma proposta que possui um
potencial gerador de diálogo sobre os mais diversos temas dos processos históricos, seja na
perspectiva sócio-histórica da América Latina, seja colocando-a nas discussões dos processos
históricos globais, buscando, assim, minimizar e/ou romper o mecanismo da invasão cultural que
influencia na constituição da identidade desses jovens e a percepção que têm sobre sua própria
história.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo central da pesquisa foi de realizar um diagnóstico sobre a posição ou papel dos
temas e conteúdos sobre América Latina nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs),
especificamente de História, e avaliar como os estudantes, jovens do Ensino Médio, estão
construindo a percepção acerca do subcontinente latino-americano do qual fazem parte.
Para isso, analisei os Parâmetros Curriculares Nacionais de História, que indicam o que e
como o conteúdo histórico deve ser trabalhado no ensino escolar, e realizei atividades dialógicas de
reflexão para auferir o reflexo do Ensino de História no entendimento e reconhecimento da América
Latina como parte de processos sócio-históricos em comum e, assim, promover o potencial
desenvolvimento de identidade com o subcontinente.
Durante a pesquisa, percebeu-se que existem outros espaços de socialização que impactam
diretamente a forma como os estudantes constituem seu pensamento e linguagem acerca de variados
temas, dentre eles, os que concernem à América Latina. Certamente, a influência da mídia global, a
partir da última década do século XX, é causa direta da falta de reconhecimento desses jovens como
latino-americanos e da identificação maior com expressões culturais e temáticas sociais de países
desenvolvidos da Europa e dos Estados Unidos da América, e essa é uma problemática de pesquisa
relevante.
Entretanto, ao mesmo tempo em que reconheço a influência de outros atores sociais no
desenvolvimento social e cognitivo dos estudantes, acredito que a escola precisa assumir um papel
de maior relevância sobre questões referentes às invisibilidades na sociedade de forma geral. Se não
no espaço escolar, em que outros espaços os estudantes terão acesso fácil e espontâneo a temas que
não são de interesse da hegemonia econômica e política?
Para desenvolver a hipótese da pesquisa, de que América Latina não tem o espaço e/ou não
é abordada na Educação Básica de forma que proporcione aos estudantes aproximação e
identificação sócio-histórica com os países que fazem parte do subcontinente, apliquei um
questionário de investigação sobre o conhecimento e o interesse dos estudantes acerca de alguns
países do mundo. Na aplicação dos questionários, em seis turmas do Ensino Médio, pude observar a
falta de conhecimento do conceito de América Latina e o pouco interesse cultural, social e/ou
econômico pelos países do subcontinente apresentados nos questionamentos.
Optei por desenvolver uma pesquisa participante, de acordo com Brandão (1990) e
Oliveira e Oliveira (1990), que possibilitasse perceber, promover, uma ação dialógica e analisar o
pensamento e a linguagem dos estudantes partindo da temática geradora da América Latina. Os
autores também prevêem, como etapas da pesquisa, a devolução sistemática para a discussão e ação
das problemáticas codificadas.
100
No quarto capítulo, então, parto para a análise do impacto dessa estruturação curricular da
disciplina de História na constituição do pensamento e linguagem dos estudantes. Desenvolvi uma
proposta de ação, e apliquei, essencialmente, aquela que permitiria a coleta do material para análise
da percepção dos estudantes sobre a América Latina.
Foi evidente, nesta etapa da pesquisa, o pouco reconhecimento que os estudantes do
Ensino Médio tinham do subcontinente latino-americano. No diálogo inicial, eles se mostraram
confusos quanto ao objeto da discussão, e as referências que demonstraram eram bastante
generalizantes, como a “língua derivada do latim”, a localização geográfica e, em alguns casos,
citavam o processo de colonização como elementos integradores do subcontinente.
De modo geral, na segunda parte da investigação com os estudantes, eles elencaram que
imagens consideravam ser da América Latina, e que imagens eram de outras regiões. Tendo em
vista o pouco conhecimento apresentado no diálogo inicial, esta etapa diz muito sobre a construção
do pensamento e da linguagem dos estudantes acerca do subcontinente, pois eles tinham que
classificar as imagens e apresentar elementos que as justificassem. Sem o domínio mais profundo
das temáticas da América Latina, os resultados observados são puramente as expressões do que eles
associam ao subcontinente.
Entre imagens atuais e representações do passado, procurei trazer imagens exuberantes da
América Latina e de áreas não tão nobres de países da Europa. Em resumo, o que se observa são
classificações de aspectos negativos quando as imagens eram classificadas como América Latina
(pobreza, subdesenvolvimento, poluição), e as imagens que eram classificadas como de outras
regiões, assim eram devido à organização, à beleza, ao desenvolvimento.
Uma das imagens mais emblemáticas, considero ser a representação de Tenochtitlán,
México, no período pré-colombiano. Os estudantes que classificaram a mesma como de outras
regiões, assim o fizeram pela organização das ruas e cidades; já os que a classificaram como latino-
americana, destacaram os traços indígenas da representação de algumas pessoas, e também a
natureza, as montanhas ao fundo e a água em abundância. Na imagem do Rio de Janeiro moderno,
os que não reconheceram de pronto a cidade em si, também destacaram a natureza como
característica da América Latina. Em outras palavras, quando os elementos se referem à natureza ou
à pobreza, a classificação era América Latina, quando os elementos em destaque eram civilização e
organização, eles reconheciam a imagem como não pertencente ao subcontinente.
Além dessa relação entre aspectos “negativos” e positivos”, elencados para discernir a
América Latina de outras regiões, os estudantes também demonstraram, durante as aulas-oficinas,
que não se reconhecem, no aspecto sociocultural, como latino-americanos. Dentre os elementos
destacados que não os faziam pertencentes à América Latina, traços físicos e a aproximação cultural
com a Europa (parafraseando um estudante, o cotidiano deles é “estrangeiro”) foram mais
102
estruturas dos sistemas de ensino no Brasil e de suas gestões administrativas não possibilitam a
legitimação prática da proposta de trabalhar disciplinas concomitantemente com a presença dos
professores em uma mesma carga horária.
Entretanto, tais impasses não impedem o esforço na elaboração de estratégias que visem
superar a estrutura ideológica dos sistemas de ensino que contribui, na concepção baseada na teoria
de Freire, para a manutenção da invasão cultural e consciência hospedeira, em direção a uma
educação que desenvolva o pensamento crítico e autocrítico, que promova a reflexão e
decodificação das situações-limites postas na nossa realidade.
Assim, além de propor a América Latina como tema gerador no Ensino Médio na
disciplina de História, também apresentei uma proposta de continuidade da aula-oficina aplicada
nas turmas que, na pesquisa, visou reconhecer a demanda pela visibilidade do subcontinente na
Educação Básica, mas que é geradora de diálogos que nos levaram a propor uma sequência didática
a partir da análise de música.
Na ocasião, apresentei a banda espanhola Ska-P, seu contexto e justifiquei sua pertinência
no debate entre opressores e oprimidos. Na sequência didática, sugeri a audiência da música “Cruz,
Oro y Sangre” para aprofundar as discussões sobre o processo de colonização, apresentando uma
visão que coloca os povos originários como centrais no processo, além da análise e da discussão de
textos do clássico As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano. Na elaboração da
proposta, se considera a emergência de novas linguagens no ensino de História e a importância do
protagonismo dos estudantes na construção do conhecimento histórico.
Sem pensar em findar a pesquisa ou a prática constante de ressignificação do ato de educar,
minhas considerações finais são voltadas para resgatar um apanhado geral da caminhada da
pesquisa, tendo como princípio as observações empíricas sobre a invisibilidade da América Latina
por parte dos estudantes, buscando, através de fontes e metodologias, diagnosticar a relevância dada
ao subcontinente na Educação Brasileira e seus reflexos na constituição do pensamento e linguagem
desses, reconhecendo, no processo a análise da realidade a partir da visão opressora descrita por
Freire em Pedagogia do Oprimido.
O que é possível constar, enfim, é que os dados obtidos nesta pesquisa podem ser
interpretados a partir de outras teorias sociológicas e educacionais. Entretanto, a relação entre
oprimido e opressores descrita em Freire, e a consciência ambígua e hospedeira é perceptível na
forma como os estudantes de Ensino Médio pesquisados percebem o subcontinente o qual fazem
parte, negando-o, por vezes, e por outras o colocando numa posição de fracasso e derrota que não
deixa outra opção, na realidade opressora e dual em que vivem, se não se identificarem com os
opressores que tiveram sucesso.
104
Enquanto professores e pesquisadores, devemos sempre nos preocupar com a utopia e não
nos contentarmos com o mundo que temos. Dessa forma, como manifesto de resistência, deixo a
contribuição na reflexão e na proposição de formas diferentes de se pensar a Educação e de
formarmos de fato cidadãos críticos, que sabem de onde falam.
Neste espaço de conclusão da escrita, saliento que muitos dos questionamentos e
possibilidades não se encerram aqui. A discussão sobre a América Latina no currículo escolar é um
tema de interesse de muitos pesquisadores e eles devem sempre ampliar seus horizontes em busca
das problemáticas identificadas estruturalmente e no cotidiano escolar. A Educação, enquanto um
processo que não pode ser estanque, sempre deve ser terreno fértil de investigações.
105
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SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo.
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APÊNDICE
A lospueblosoriginarios
víctimas de la avaricia de nuestros antepasados
víctimas de la cruz que les hizo esclavos
RESISTENCIA... vuestra lucha no ha acabado.