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GIL, Carmen Et All. Ed, Patrimônio e Relações Étnico-Raciais
GIL, Carmen Et All. Ed, Patrimônio e Relações Étnico-Raciais
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Resumo
O texto articula a temática da educação das relações étnico-raciais com as abordagens das histórias e culturas
indígenas, africanas e afro-brasileiras, analisando os usos de espaços de memória, monumentos, arquivos,
museus e memoriais, problematizados a partir da capacidade ou não de proporcionarem visibilidade e
positividade para negros e indígenas. Tem por base a perspectiva do pensamento decolonial (QUIJANO,
2005; MIGNOLO, 2003; WALSH, 2013). Aponta possibilidades de decolonização dos saberes em ações
educativas vinculadas ao patrimônio cultural. Conecta-se com as experimentações de ensino, pesquisa e
extensão das autoras, docentes responsáveis pela formação inicial e continuada, através do curso de
História/UFRGS.
Palavras-chave: educação; patrimônio cultural; relações étnico-raciais; decolonização; saberes.
Education, cultural heritage and ethnic-racial relations: possibilities for decolonisation of knowledge
Abstract
This paper articulates the theme of education of ethnic-racial relations with the approaches of the stories and
indigenous cultures, African and african-Brazilian, analyzing memory space uses, monuments, archives,
museums and memorials, problematized from the ability or not to provide visibility and positive for blacks
and Indians. This thematic linking is based on the perspective of decolonial thought (QUIJANO, 2005;
MIGNOLO, 2003; WALSH, 2013). Indicates to decolonization possibilities of knowledge in educational
activities related to cultural heritage. Connects with educational experimentation, research and extension of
the authors, teachers responsible for initial and continuing education, through the course of History/UFRGS.
Keywords: education; cultural heritage; ethnic-racial relations; decolonization; knowledge.
monumento, criado por uma agremiação da conceito de cultura no plural (CERTEAU, 1995),
sociedade civil organizada, em homenagem à o que significa afirmar que negamos a ideia de
memória de um líder trabalhador e negro, podemos patrimônio como um produto cultural único e
indagar: o que podemos considerar sobre o acabado. O que nos interessa, nesse processo, é
patrimônio cultural a partir de uma perspectiva buscar analisar tanto o produto cultural oferecido
étnico-racial e de um pensamento pós-colonial ou quanto a forma como os usuários operam o mesmo.
descolonizador e decolonizador? Se o patrimônio Tais operações culturais são analisadas como
cultural e seu reconhecimento oficial dependem de movimentos cujas trajetórias não são
conflitos e negociações, é possível afirmar que a indeterminadas, mas insuspeitáveis (CERTEAU,
maior parte dele, em nosso país, tende a reproduzir 2014). Embora o autor trate do domínio da
um jeito de ver o mundo a partir do colonizador, pesquisa, ele aponta para a ideia de que, ao tratar
valorizando apenas determinados grupos, etnias e de objetos da cultura, é “necessário voltar-se para a
suas lideranças ou heranças culturais? Uma proliferação disseminada de criações anônimas e
sociedade desigual do ponto de vista étnico-racial, perecíveis que irrompem com vivacidade e não se
com histórica estigmatização de grupos não capitalizam” (CERTEAU, 2014, p. 13).
brancos, tende a esquecer e evitar o registro das As reflexões que ora apresentamos
memórias como a de negros e indígenas? articulam as temáticas da educação das relações
O episódio acima narrado nos faz pensar étnico-raciais, das histórias e culturas indígenas,
nos sentidos construídos pelas pessoas a partir de africanas e afro-brasileiras, analisando os usos de
uma marca de memória – um prédio, uma placa, espaços de memória, monumentos, arquivos,
um memorial. Trata-se de marcas físicas em museus e memoriais. Tais espaços serão
espaços vividos e transitados cotidianamente, tematizados a partir da capacidade ou não de
sejam elas reconhecidas como patrimônio ou não. proporcionarem visibilidade e positividade para
Chamamos de inusitado o encontro com aquele negros e indígenas, em suas múltiplas
monumento dedicado à uma liderança negra, experimentações históricas e culturais. Cruzaremos
porque pensamos que se trata de um fenômeno nossas análises, baseadas na perspectiva do
relativamente recente o reconhecimento de uma pensamento pós-colonial e decolonial latino-
pluralidade sociocultural que positive as etnias de americano (QUIJANO, 2005; MIGNOLO, 2003;
ancestralidades não europeias e suas memórias. WALSCH, 2013) com nossas experimentações de
Identificamos como insuspeitável o ambiente de tal ensino, pesquisa e extensão em educação,
encontro, sobretudo o fato de que tal placa patrimônio e relações étnico-raciais, desenvolvidas
despertara naquele jovem casal distintas reações, como docentes responsáveis pela formação inicial
identificações ou interações com os conhecimentos e continuada através do curso de História da
por ela despertados e com suas próprias histórias Universidade Federal do Rio Grande do Sul
pessoais. Construir monumentos, marcar espaços, (UFRGS).
conservar ruínas, são processos que implicam
lutas, escolhas e produzem sentidos que escapam Indígenas e negros no Brasil: estranhamentos
às intenções de seus produtores. Reside aí o entre passado e presente a partir do pressuposto
inusitado deste encontro com João Cândido, da decolonização dos saberes
transformado em aposta na importância de nossos
diálogos, como professoras e pesquisadoras, com Pensar historicamente pode implicar certos
os sujeitos que guardam as histórias e as memórias estranhamentos sobre o passado e um olhar crítico
dos povos indígenas e negros em nossas sobre os usos do mesmo no presente. Na temática
comunidades. que ora apresentamos esses estranhamentos são
Nos escritos a seguir refletiremos sobre fundamentais. No caso do pensamento pós-
alguns pontos centrais da relação patrimônio colonial, gerido e pautado entre intelectuais latino-
cultural, ensino de História, racialidade e americanos, o que se propõe é justamente estranhar
etnicidade, temas que, por sua complexidade, são a forma como ainda hoje construímos nossos
abertos e tem muitos pontos de fuga. Abordar as conhecimentos e ações em diversos campos,
memórias indígenas e afro-brasileiras no ensino de pautados por um pensamento colonizador. Esse
História envolve esquecimentos, silêncios e gestos estranhamento nos leva ao passo seguinte, que é o
em um jogo de saberes e emoções. O aporte reconhecimento de que nossos saberes e currículos
teórico que nos orienta é a compreensão do são igualmente colonizados e, que, portanto, uma
decolonização é necessária no âmbito de quem sido aplicada pela primeira vez aos povos
atua numa perspectiva que busca o protagonismo originários da América, dentro do processo de
latino-americano. dominação colonial dos séculos XV e XVI,
Destacamos, a partir de Nilma Lino Gomes, fundamentando-se em critérios e pontos de vista
nossa escrita num contexto que “exige mudança de nascidos das experiências europeias. A descoberta
práticas e descolonização dos currículos” (GOMES, do outro está na origem da necessidade de traçar
2012). Tal mudança, por nós experimentada, distinções. Tais diferenciações começam a se
impulsiona a construção de novos olhares como vincular nas narrativas de época e na historiografia
pesquisadoras e professoras atuantes na formação posterior, marcadamente eurocêntricas, com
inicial e continuada. Para a autora, tal atributos físicos e hábitos culturais reiteradamente
destacados como inferiores, capazes de construir
[...] olhar produzirá imagens desestabilizadoras, uma história de classificação social racializada da
susceptíveis de desenvolver nos estudantes e população mundial. Nessa perspectiva, ao contar a
nos professores a capacidade de espanto e de história do mundo, em geral e da América, em
indignação e uma postura de inconformismo, as específico, o atributo cor começa a ganhar força
quais são necessárias para olhar com empenho
como divisor fundamental na distinção e
os modelos dominados ou emergentes por meio
dos quais é possível aprender um novo tipo de classificação social. A invenção da categoria cor,
relacionamento entre saberes e, portanto, entre como indicação visível de raça, ou como seu
pessoas e entre grupos sociais (GOMES, 2012, equivalente, tem suas origens relacionadas, no caso
p. 107). brasileiro, às experiências de colonialismo aqui
implementadas.
O conceito de colonialidade do poder, No Brasil que se inaugura com a
desenvolvido pelo peruano Aníbal Quijano e colonização portuguesa, um processo de
ampliado pelo argentino Walter Mignolo, ajuda- naturalização das diferenças se expressou ao longo
nos na empreitada que é pensar o patrimônio dos anos através das desigualdades de
cultural indígena e afro-brasileiro, tramado nos oportunidades experimentadas por indivíduos e
processos de dominação e opressão pós-colonial. É, grupos com atributos étnico-raciais distintos.
em síntese, uma chave de leitura para compreender Independente das considerações biológicas, o
como a memória de tais grupos tem lugar ou não- racismo brasileiro desenvolveu-se através de
lugar nas instituições de memória. Os estudos práticas discriminatórias relativas à cor e, quanto
desses autores são um convite para pensarmos no mais próximo da branquitude, menor pode ser o
que Mignolo (2003) chama de geopolítica do sofrimento e a distinção preconceituosa. O que isso
conhecimento, fazendo-nos crer que somente tem a ver com o jeito como contamos a nossa
estudiosos posicionados em determinados lugares, história, ou seja, com a historiografia? Para
culturas e línguas têm o direito ao pensamento, à responder tal pergunta, é importante buscar as
filosofia, à ciência. Para esses autores, o fim da presenças e ausências de brancos, negros e índios
colonização não significou o fim das relações de nas narrativas historiográficas e nos manuais
colonialidade, que continuam pautando as relações didáticos de história do Brasil. Muitas alternativas
econômicas, políticas, sociais e de produção de de resposta estão relacionadas com nosso processo
conhecimento. Em outros termos, não é possível de dominação colonial, mas também com a forma
pensar os triunfos da modernidade ocidental sem como nossa história foi sendo contada e
compreender a colonialidade do saber e do poder. reconstruída, predominantemente a partir de
Ao argumentar sobre essa colonialidade do referenciais eurocêntricos e brancos. Talvez, por
saber e do poder, Quijano (2005) nos coloca diante isso, nos entendamos tão pouco como americanos,
da importância da compreensão da ideia de raça mesmo estando aqui situados, cultural e
como um eixo do padrão de dominação colonial geograficamente.
europeia. Para o autor, trata-se de “uma construção Ao refletirmos sobre a produção dos últimos
mental que expressa a experiência básica da quinhentos anos de história do Brasil,
dominação colonial e que desde então permeia as necessitamos repensar essa naturalização do
dimensões mais importantes do poder mundial, referencial europeu como aquele que nos orienta
incluindo sua racionalidade específica, o para atribuir imagens de quem somos, pois essa foi
eurocentrismo” (QUIJANO, 2005, p. 117). Do a tônica do jeito como fomos construindo nossas
ponto de vista histórico, a ideia de raça parece ter ideias de nação brasileira. A referência centrada na
Europa é também a forma como se organizam os 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
currículos de História na educação superior e na Nacional (LDBEN), inserido no conjunto das
educação básica, o que significa que ainda políticas afirmativas para a promoção da igualdade
aprendemos e ensinamos mais Europa e menos racial, foi historicamente inovador ao trazer para o
América ou África, da mesma forma que embate público as práticas do racismo, do
permanecemos, em geral, tratando da América e da preconceito e da discriminação, tradicionalmente
África com uma perspectiva eurocêntrica. Por negadas ou mantidas no plano privado.
outro lado, é preciso ressaltar que estamos vivendo No campo da Educação, a inovação se
um momento de esforço no sentido de trazer as anunciou com força, convocando em especial, mas
histórias e culturas indígenas, africanas e afro- não somente, os professores de História a um
brasileiras para o cenário de nossas explicações e redimensionamento de suas práticas pedagógicas,
para nossas aulas de história. capazes de fundamentar uma educação das
Desde os anos 30 do século XX, o termo relações étnico-raciais balizada por valores que
negro começou a ser utilizado com um significado promovam a justiça, a cidadania, o diálogo
diferenciado, pois até então ele correspondia a uma intercultural, a ética, a paz e a igualdade racial.
expressão vinculada a noções de vitimização e Os caminhos da desigualdade étnico-racial
escravização. A ideia de usar o termo com na História do Brasil são tão intensos que se fez
positividade é relativa ao seu emprego pelos imperiosa a criação de movimentos para a
primeiros etnógrafos da cultura negra no Brasil, a afirmação da necessidade de construir um contexto
exemplo de Gilberto Freyre. Negro ou afro- de reparação histórica, este que nos é dado viver
brasileiro tornam-se expressões utilizadas para nos dias de hoje. É preciso destacar que muitos
designar as maneiras de viver dos negros e os brasileiros, organizados em movimentos de
traços de cultura popular de influência africana. pertencimentos étnico-raciais diversos, como os
Simultaneamente à positivação do uso desses movimentos negros e indígenas, construíram esse
termos, houve a construção do mito da democracia processo histórico de reivindicações e lutas,
racial, que desconsiderava os conflitos étnico- instituinte de posições e políticas públicas recentes
raciais como marcadores das desiguais do país.
possibilidades de acesso aos bens públicos e de O racismo, a discriminação e a intolerância
ascensão social, especialmente para descendentes não são visíveis apenas na sociedade brasileira,
de indígenas e africanos. A partir desse novo porém aqui eles se desenvolveram com
emprego do termo negro, utilizado por setores especificidades que precisam ser compreendidas
considerados da intelectualidade brasileira, surge do ponto de vista histórico. Nossa trajetória de
uma controversa popularização e politização da composição nacional é marcada pela colonização
ideia de negro, também observada através de europeia, consolidada através da imposição de
discursos e práticas de outras organizações e força sobre os povos originários dessas terras,
movimentos sociais. assim como sobre os povos africanos para cá
Nas últimas décadas, o mundo assiste a traficados como escravos. Tratamos aqui do
movimentos sociais, intelectuais e políticos pela subjugo e da resistência experimentados por uma
promoção do diálogo intercultural e da igualdade pluralidade de povos e origens étnicas, tanto
racial, que tiveram um ponto de culminância na indígenas quanto africanos, com diversos idiomas,
realização, em 2001, da III Conferência Mundial crenças, hábitos, conhecimentos e heranças
de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, culturais singulares. Essa diversidade, porém, foi
Xenofobia e Intolerância Correlata, em Durbin, sendo negada na medida em que a experiência
África do Sul, cujas declarações e documentos fundante de dominação colonial se solidificou
tornaram-se referência internacional. Já naquele sobre a valorização e padronização de formas de
momento, o Estado Brasileiro assumiu viver, pensar e agir advindas dos grupos de origem
publicamente o compromisso de reforçar e europeia que aqui se instalaram.
desenvolver ações afirmativas contra a Ao contrário da propulsão de uma
discriminação racial também no campo da sociedade baseada na beleza da valorização das
Educação. diferenças e da promoção da equidade étnico-racial,
No Brasil, o contexto inaugurado com a ocorreu a cristalização de olhares estigmatizantes
promulgação das Leis 10.639/03 e 11.645/08 que relativos às características físicas e fenotípicas de
criaram e alteraram, consecutivamente, o artigo indígenas e negros, tornados passíveis de
identificação e discriminação por conta da cor da visibilidade e positividade para negros e indígenas.
pele, tipo de cabelo, traços de nariz ou boca. Vejamos, a seguir, alguns exemplos sobre o que
A mistura de ameríndios, afrodescendentes nos apresentam os museus brasileiros acerca das
e eurodescendentes, resultante desse processo de memórias e ancestralidades indígenas, afro-
dominação colonial, construiu, ao mesmo tempo, brasileiras e africanas.
dois fenômenos sócio-históricos: por um lado,
traçou profundos abismos no tecido social Presenças e ausências de memórias indígenas,
brasileiro, marcados pela distinção e desigualdade afro-brasileiras e africanas nos museus
baseada em critérios étnico-raciais; de outra brasileiros
perspectiva, possibilitou a edificação de pontes Os museus, na qualidade de espaços
criadas por trocas culturais singulares. Abismos e privilegiados para a preservação da cultura
pontes gestaram-se em narrativas que oscilam material, reafirmaram/reafirmam uma memória
entre o público e o privado, exigindo ao estudo da nacional que expõe e valoriza objetos e ideias
temática das relações étnico-raciais olhares abertos relacionadas ao quadro de referências culturais
às complexidades e perplexidades da humanidade, branca, católica e europeia. As expressões de
presente em todos e em cada um de nós. grupos populares e historicamente marginalizados
Nesse contexto, o que é específico do ficaram invisibilizadas no processo de invenção do
Brasil? projeto de nação, construído a partir do período de
O racismo brasileiro solidificou-se independência, apesar do grande contingente
historicamente através da invisibilidade populacional africano e indígena presente na
experimentada nas relações informais e íntimas do sociedade brasileira oitocentista. Nessa nação
cotidiano das pessoas, reproduzindo-se em gestos construída, povos e culturas foram subalternizados;
diários de negativação, ridicularização e saberes, memórias e histórias locais foram
estigmatização dos grupos não brancos do país. Ao silenciados pela colonialidade do poder, mantida
mesmo tempo, é possível verificar com apesar do rompimento político-administrativo dos
transparência, em levantamentos e estudos sobre a laços coloniais com Portugal.
população brasileira, a sociedade racializada em Hoje, vivemos a emergência de outro
que vivemos. Os dados estatísticos do censo de pensamento, pós-ocidental (MIGNOLO, 2003),
2010, por exemplo, mostram traços muito visíveis capaz de operar para a descolonização intelectual.
de uma desigualdade racial que tem diminuído Esse pensamento, segundo o autor, constrói-se a
pouco nos quesitos educação e renda. Nesse partir dos estudos de intelectuais africanos, árabes,
levantamento, os brancos, assim como no censo de latino-americanos, tais como Paulo Freire, Aníbal
2000, seguem recebendo salários mais altos e Quijano, Enrique Dussel, Darcy Ribeiro, Roberta
estudam mais que os negros; igualmente dominam Menchú, Rivera Cusicanqui, Rodolfo Kusch, Franz
o ensino superior no País e ainda há diferenças Fanon, Khatibi, entre outros, que pensaram o
relevantes na taxa de analfabetismo entre as conhecimento na perspectiva da colonialidade do
categorias de cor e raça. Assim, enquanto, para o poder e da construção de outras narrativas sobre o
total da população, a taxa de analfabetismo é de presente e o passado desses espaços no mundo.
9,6%, entre os brancos esse índice cai para 5,9%. Nesse cenário, também os museus, como
O censo de 2010 mostrou que cerca de 70% da expressão de uma Nova Museologia, cada vez
população brasileira tem relacionamentos mais modificam suas exposições buscando
amorosos com pessoas do mesmo grupo de cor ou apresentar uma narrativa mais diversa, plural e
raça. Dados desse tipo demonstram o profundo transgressora. O estudo de Nila Rodrigues Barbosa
abismo que nos divide, capaz de criar (2010), no Museu Histórico Abílio Barreto, de
oportunidades sociais de acordo com critérios Belo Horizonte, é exemplo. No acervo, os objetos
baseados na etnicidade e na racialidade. Tais de suplício, fotografias e textos não eram
informações devem ser analisadas em perspectiva relacionados ao negro, mas a “tipos populares”, o
histórica, ou seja, podem nos levar a criar que indicava o não lugar do negro no acervo
estranhamentos na forma de compreender o museológico e a necessidade de nomear
presente quando em estreita relação com as tecnicamente os objetos do acervo. Como parte
experiências do passado. Esses estranhamentos desse tensionamento, a equipe do Museu organizou
criam novos olhares sobre os espaços de memória a exposição “Uma questão de raça: representações
e a capacidade ou não de proporcionarem do negro no museu da cidade”, na qual a curadoria
Histórico, em 1986; a criação da Fundação esses espaços sejam pensados em relação direta
Cultural Palmares, em 1988; o Memorial Zumbi com os intelectuais e movimentos sociais
dos Palmares, inaugurado em 1990 para ser um indígenas e negros. O protagonismo desses grupos
centro cultural destinado a promover ações é fundamental para que se desestabilize a
afirmativas de valorização da cultura africana e colonialidade do poder e do saber.
afro-brasileira e a fundação do Museu Nacional da Recorrendo aos estudos de autores como
Cultura Afro-brasileira (MUNCAB), em 2002. Aníbal Quijano (2005), Walter Mignolo (2003) e
Nesse mesmo cenário, é importante destacar o Catherine Walsh (2013), é possível defender uma
crescimento dos museus que se dedicam a compor educação decolonial nos museus, mantendo em
um acervo que valoriza diferentes etnias, entre os tensão a narrativa e as vozes que as exposições
quais: Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileiro apresentam. Esses pesquisadores fazem parte do
em Salvador (BA), Memorial Mãe Menininha do grupo de investigação
Gantois em salvador (BA), Casa do Benin em “Modernidade/Colonialidade” formado,
Salvador (BA), Memorial das Baianas em Salvador predominantemente, por intelectuais da América
(BA), Museu da Abolição em recife (PE), Museu Latina, postulando que modernidade e
Afro-Brasil, em São Paulo (SP), Museu Afro- colonialidade são as duas caras de uma mesma
Brasileiro (SE), Museu do Negro (RJ), Museu 13 moeda. Para Oliveira y Candau (2013, p. 279):
de Maio, em Santa Maria (RS), Museu do Percurso
do Negro, em Porto Alegre (RS), Território Negros [...] el colonialismo es más que una imposición
de Porto Alegre (RS), Museu Kuahí dos Povos política, militar, jurídica o administrativa. Bajo
Indígenas do Oiapoque, em Macapá (AP), Museu la forma de colonialidad llega a las raíces más
Indígena, em Coroa Vermelha (BA), Museu profundas de un pueblo y sobrevive a pesar de
la descolonización o emancipación de las
Magüta dos Índios Ticuna em Benjamin Constant
colonias latinoamericanas, asiáticas y africanas,
(AM). en los siglos XIX y XX. Lo que estos autores
A relação de museus étnicos evidencia nos muestran es que a pesar de que ya acabaron
também o crescimento dos estudos, questionando a los colonialismos modernos, la colonialidad
forma como os museus brasileiros abordavam e sobrevive.
abordam a história indígena, africana e afro-
brasileira. Ulpiano de Menezes (1994, p. 25) Através da leitura desses autores,
aponta que “a exposição museológica pressupõe propomos descolonizar, na perspectiva do
[...] uma concepção da sociedade, de cultura, de pensamento pós-colonial e decolonial, o museu e o
dinâmica social, de tempo, de espaço, de agentes patrimônio da noção de cultura eurocentrada e,
sociais e assim por diante”. Exposições contam sobretudo, construir pedagogias que possibilitem
histórias, evidenciam memórias, expressam estar, ser, sentir, existir, fazer, pensar, escutar e
disputas, escolhas e silenciamentos. Podem saber de outro modo.
também ampliar as representações sobre diferentes O termo descolonizar relaciona-se com o
grupos sociais e étnico-raciais que circulam na conceito decolonial. Segundo Catherine Walsh, o
cidade. conceito decolonial relaciona-se, na literatura, a
Ressaltamos que, assim como na outros, como: descolonialidade, descolonial, como
historiografia brasileira mais recente, também decolonialidade e decolonial. Para a
destacadamente nos estudos do período Pós- autora, suprimir o “s” é uma opção. Vejamos sua
Abolição, os espaços de memória começam a argumentação, no sentido de que o termo
estudar os negros e o racismo no Brasil a partir de decolonial:
um pressuposto e de uma necessidade de pensar o
cotidiano desses homens e mulheres como sujeitos [...] pretende marcar una distinción con el
sociais, justamente pelas especificidades das significado en castellano del “des” y lo que
relações étnico-raciais constituídas em nosso país e puede ser entendido como un simple desarmar,
evidenciadas na escrita do item anterior. deshacer o revertir de lo colonial. Es decir, a
Se seguimos na argumentação que, para pasar de un momento colonial a un no colonial,
estudar, pensar e tratar da decolonização dos como que fuera posible que sus patrones y
huellas desistan en existir. Con este juego
espaços de memória é igualmente necessário tratar
lingüístico, intento poner en evidencia que no
do cotidiano e dos sujeitos sociais envolvidos nas existe un estado nulo de la colonialidad, sino
relações que ali destacamos, urge evidenciar que posturas, posicionamientos, horizontes y
proyectos de resistir, transgredir, intervenir, in- escravizados, sendo necessário dar visibilidade nas
surgir, crear e incidir. Lo decolonial denota, exposições para os movimentos de rebelião, já que
entonces, un camino de lucha continuo en el o estudo do passado está, necessariamente,
cual se puede identificar, visibilizar y alentar vinculado às demandas do tempo presente.
“lugares” de exterioridad y construcciones
Articular ideias em torno dessas relações
alter-(n)ativas (WALSH, 2013, p. 24-25).
entre museus e ensino de História implica em
reconhecer as instituições museais como lugares
Reconhecemos, em conexão com Walsh,
educativos nos quais são produzidas distintas
que nossos saberes e nossos fazeres estão
representações. Lugares que dão a ver as formas
permeados pelo desejo de romper, transgredir e
segundo as quais os sujeitos de um grupo social se
resistir a toda forma de persistência dos projetos
relacionam com o tempo; onde a visão é
colonizadores eurocentrados.
desnaturalizada e os regimes visuais de cada época
Assim, questionamo-nos sobre o que os
podem ser compreendidos. Convictas desse
museus ensinam das histórias e das culturas
pressuposto propomos aos alunos do Curso de
indígenas, africanas e afro-brasileiras, atentando
Licenciatura em História da UFRGS, por exemplo,
para a conexão dos objetos das exposições com as
estágios docentes em museus, arquivos, memoriais,
histórias de vidas dos sujeitos que produziram tais
bibliotecas e outros projetos que tematizem a
objetos. Como objetos, palavras e imagens podem
memória e a história, de forma a instigar o
produzir argumentos que tecem histórias de vidas?
professor em formação a ampliar os espaços de
Uma exposição é, também, um diálogo entre
ensinar-aprender História. A disciplina de Estágio
diferentes grupos: os que usaram os objetos, os que
de Docência em História III – Educação
criaram a exposição e os que a visitam. Reside aí o
Patrimonial explora arquivos, memoriais, centros
compromisso dos museus com uma educação que
culturais, museus, acervos particulares com acesso
transite das narrativas hegemônicas para as
permitido, exposições permanentes ou temporárias,
histórias vivas que reivindicam a presença de
bibliotecas históricas de visitação livre, prédios
direitos à memória e ao reconhecimento. Exemplo
históricos abertos ao público, etc. Também discute
interessante é o Memorial Mãe Menininha do
questões de ordem teórica, apoiada nas noções de
Gantois, criado em 1992 em homenagem a uma
memória, de ensino de História e de patrimônio
importante mãe-de-santo do Brasil. O Memorial
cultural. A carga horária dessa disciplina está
foi construído no mesmo local onde ocorriam as
distribuída em três momentos: atuação nas
práticas culturais por ele abordadas e rememoradas,
instituições culturais, aulas presenciais na
tornando-se evocador de memórias e possibilitando
Universidade e orientações individuais ou em
o encontro entre o vivido e o narrado.
grupo. Nos espaços de atuação, o acadêmico
Outro aspecto interessante do Memorial
realiza observações, monitoria e docência em
Mãe Menininha do Gantois é seu caráter biográfico,
História, acompanhando as atividades cotidianas
com ênfase mais no sujeito do que nos objetos. Se,
das instituições culturais, em especial as ações
para Marcelo Nascimento Cunha (2006, p. 105),
educativas, quais seja, acompanhar o mediador nas
“[...] homens e mulheres das comunidades afro-
visitas guiadas, participar das reuniões de estudos
brasileiras são lembrados reduzidos ao papel de
organizadas pela instituição, propor atividades com
personagens, ou melhor, transformados em
o acervo e efetivar tais ações com alunos da
arquétipos como a baiana de acarajé, a mãe-de-
Educação Básica. Ressaltamos que nossa atuação
santo, o capoeira, normalmente, apresentados de
está fundamentada na ideia de que o patrimônio
forma anônima, sem vínculos ou trajetória
cultural é um desses temas potentes para provocar
pessoal”, esse Memorial busca justamente o
caminho inverso. Ao contar a história de uma transgressões pedagógicas. Vejamos a seguir um
breve relato de nossas ações de ensino e de
liderança e de uma “casa de santo”, o Memorial
extensão, no campo da formação inicial e
rompe essa lógica, igualmente segue na contramão
continuada de professores de História, focando a
de outros espaços de memória, na medida em que
experiência em parceria com o Projeto Territórios
sua ênfase não está centrada na condição de
Negros: afro-brasileiros em Porto Alegre.
escravizada de sua personagem protagonista. Para
Marcelo Nascimento Cunha (2006), insistir nessa
representação centrada na escravização e Experimentações com as territorialidades
vitimização é limitar a reflexão à criminalização da negras em Porto Alegre: o Projeto Territórios
Negros em intersecção com o ensino e a
resistência ou destacar a passividade dos sujeitos
um dos locais mais caros da cidade e congrega experiências e anseios sociais. Não podemos
bairros como Rio Branco, Bom Fim e Mont’Serrat. ficar atrelados ao livro didático [...] que tenta
Tal espaço faz parte do percurso realizado pelo diminuir a importância daqueles que não
Projeto Territórios Negros: afro-brasileiros em possuem a matriz europeia. [...] resposta para
o profissional que buscar fazer a diferença está
Porto Alegre.
no seu cotidiano escolar, na comunidade
Quando tratamos dos territórios negros não trabalhada, com o seu grupo educacional
estamos apenas tratando dos espaços de exclusão, envolvido. Essa resposta se constrói
mas dos agenciamentos e das estratégias dos constantemente [...]. (Relato 1, cursista e
sujeitos em seus cotidianos para uso dos espaços professora da rede pública estadual, Porto
da cidade. O protagonismo dos sujeitos, nessa Alegre. Fórum virtual na plataforma
perspectiva, é fundamental, pois a territorialidade é moodle/UFRGS do Curso de Extensão
justamente a multiplicidade de usos de um mesmo Territórios Negros: patrimônios afro-
território, entendido como lócus de disputas entre brasileiros em Porto Alegre, 2015).
os sujeitos (SANTOS, 2009). É justamente esse
[...] Meus sentimentos são de felicidade e
protagonismo que se busca evidenciar no percurso
angústia. Felicidade pela oportunidade, ainda
dessa ação educativa e patrimonial do Projeto que tardia, de estar aprendendo, de me sentir
Territórios Negros, quando se destacam os lugares viva com estes “novos” conhecimentos e ter a
e espaços de memórias praticados pelos negros, certeza de que ainda é possível fazer a
como as territorialidades quilombolas, diferença. Por outro lado, sinto uma enorme
carnavalescas, entre outras. angústia ao perceber minha falta de
Entre as reflexões construídas ao longo conhecimento em temas que agora percebo
dessa ação de extensão, destacamos aqui alguns como básicos e essenciais. Há mais de 20 anos
excertos recolhidos dos fóruns virtuais constituídos atuo em escolas onde maioria dos alunos são
ao longo do processo de consecução do curso. Eles negros. A história destes alunos sempre foi
tratada com superficialidade. Nos três últimos
expressam as reflexões compartilhadas acerca das
anos já fazia uma tentativa de qualificar o meu
experimentações metodológicas propostas, como trabalho, o que inclusive me levou a procurar
registros de trocas de saberes dos professores em o curso, mas percebo que deixei muito a
percursos de aprendizagens junto às comunidades desejar por falta de conhecimento.
escolares, suas territorialidades negras e seus Desconhecia a força e riqueza desta história.
patrimônios culturais. Vejamos: Muito transitei na frente do MOCAMBO que
visitamos e não sabia de sua existência assim
Se fosse possível, cada Griô deveria ser como de seu significado. Griôs, outro termo
tombado como Patrimônio Histórico da desconhecido e mais o seu papel e perfil […]
Humanidade, visto que, eles são alicerces (Relato 2, cursista e professora da rede pública
fundamentais nas narrativas de culturas que estadual, Porto Alegre. Fórum virtual na
não são retratadas pela cultura letrada. A plataforma moodle/UFRGS do Curso de
oralidade contrasta com o que há de mais Extensão Territórios Negros: patrimônios afro-
moderno que temos, a Era Digital. Os brasileiros em Porto Alegre, 2015).
povos/etnias que não possuem a sua
ancestralidade registrada ou documentada [...] muitos destes aspectos negados da cultura
utilizam da memória e da oralidade para africana estão expostos por seus descendentes
transmitir às gerações futuras o seu contexto dentro de nossas comunidades escolares, o que
histórico e manterem viva a sua própria nos cabe é ter esta percepção atenta. No
história. Assim, temos nas culturas negras cotidiano e na crítica podemos notar
africanas e nas culturas indígenas, a comportamentos e ações que ainda nos
religiosidade, a musicalidade, a dança, a remetem ao momento interior da negação
ritualística, presentes até os dias de hoje. Se comportamental e territorial, e propiciam
não fossem os Griôs responsáveis pela construção de um novo território simbólico. [...]
transmissão de todos esses conhecimentos, os mapas não trataram de revelar esta luta
certamente boa parcela dessas culturas já interna, trataram de pormenorizar as
haveria desaparecido. Eis que cabe a nós, populações a uma nação homogênea com a
educadores, desenvolvermos práticas de ensino mesma língua, que foi resumida a números
que não utilizem somente o conteúdo demográficos. Tratemos de fazer nossos
programado, mas sim, a interação com a núcleos locais múltiplos para múltiplas visões
cultura de nossos alunos mediantes suas [...] (Relato 3, cursista e professora da rede
pública estadual, Porto Alegre. Fórum virtual
territórios negros são colocados de forma preconceitos individuais e sociais. Vejamos mais
secundária na narrativa histórica de Porto um excerto: [...] no início da viagem, um aluno
Alegre, sendo a povoação açoriana o discurso com apenas 10 anos, apontou para o meu cabelo e
oficial apresentado (MEDEIROS, Tanise afirmou que ele era “ruim”, feito de “teia de
Baptista de, 2013).
aranha” (GOMES, Matheus, 2015).
Nessa experiência específica, o estagiário
Abrir mão de velhas certezas é, certamente, foi vítima das representações que circulam na
um belo exercício no fazer-se professor de História.
sociedade e fazem com que as crianças e jovens
Suspeitar que, talvez, os conteúdos de sempre e as
não tenham orgulho de seu pertencimento. Na
abordagens que privilegiam a matriz teórica
sequência, o estagiário conta que:
embasada em autores europeus necessitem ser
ampliadas para que possamos perceber as
[...] em turmas onde nitidamente tínhamos
memórias e histórias invisibilizadas nos currículos
uma maioria negra, menos da metade dos
e no “lugar oficial de memória” (museus),
alunos se manifestava quando
acreditando que esse movimento é fecundo na
perguntávamos quem se identificava como
formação do professor de História. Dialogar com
tal. A esmagadora maioria dos estudantes
crianças e jovens sobre memórias indígenas,
negros não sabiam o significado de
africanas e afro-brasileiras, problematizar
nenhum dos locais onde ocorreu a história
conceitos como preconceito, resistência,
de seus antepassados, ou seja, um ‘vazio
estranhamento, pertencimento, patrimônio cultural,
histórico’ precisa ser coberto na
seguindo os ensinamentos de Quijano (2005),
consciência pela educação. A reprodução
contribui para que possamos, a cada dia, aprender
de piadas que reforçavam a construção do
como o poder e o saber outorgaram à diversidade o
estereótipo animalesco do negro
caráter de problema, impondo a ideia de que não
construído desde o século XVI era
só a pele fosse branca, mas também as
frequente e inclusive me encontrou como
mentalidades.
vítima em uma ocasião (GOMES, Matheus,
É profícuo para o professor em formação
2015).
deparar-se com perguntas, tal como aquela de uma
criança que, ao sair do Mercado Público (no centro
Mergulhar nesse universo de
de Porto Alegre), indaga a estagiária sobre a
discriminações e preconceitos, em alguns casos
Tradição do Bará do Mercado: “professora, porque
sutil e naturalizado; problematizar representações
essa história nunca é contada? As pessoas passam
construídas historicamente e oportunizar encontros
todos os dias por ali e nem sabem o que significa
com diferentes histórias e memórias é condição
aquilo no chão” (Escrita de estágio de Caroline
para a docência nas escolas de hoje: sem tais
Silva Uezu). Uma indagação como essa nos faz
elementos é quase impossível seguir caminhando
refletir sobre as intensas e positivas possibilidades
em direção à escola multicultural, capaz de
que a experiência da visita ao Mercado Público e
experimentar a equidade nas relações étnico-
ao mosaico ali esculpido no chão, em granito
raciais.
vermelho e amarelo, monumentando e registrando
nosso patrimônio imaterial e religioso, o Bará do
Considerações finais
Mercado. Em termos de ação educativa trata-se de
um exemplo de transgressão, ao trazer a presença
A articulação entre as temáticas da
de algo que estava ausente e invisibilizado e, assim,
educação, do patrimônio e das relações étnico-
questionar o caráter monocultural e o etnocêntrico
raciais nos instigou nessa escrita, dentro da
do currículo escolar. Supõe a possibilidade de
perspectiva do pensamento decolonial, uma vez
perguntar sobre as escolhas curriculares e
que estamos muito sensibilizadas e provocadas
desestabilizar a pretensa neutralidade dos
pelas experiências de ensino, pesquisa e extensão
conhecimentos e práticas educativas.
que experimentamos a partir das parcerias
No exercício da docência, o estagiário, ao
estabelecidas com o Projeto Territórios Negros em
abordar a história africana e afro-brasileira, pode
Porto Alegre.
se colocar diante dos desafios da educação das
Tais experimentações nos colocam diante
relações étnico-raciais, pois identifica atitudes de
de um campo de possibilidades em que o inusitado
preconceito racial e busca problematizar,
volta a operar em nossas reflexões. Retornamos ao
desnaturalizar e questionar estereótipos e
episódio narrado no início desta escrita para posturas em relação aos saberes e aos poderes
destacar novamente a importância da relação com estabelecidos como hegemônicos.
o patrimônio, estabelecida pelos sujeitos em Ressaltamos que a potencialidade de um
interação, nas múltiplas formas de usos de um trabalho com objetos ou espaços de memória,
mesmo território. Um patrimônio é escolhido e transformados em documentos ou monumentos,
exposto para ser visualizado, ou não, conforme as consiste em criar situações nas quais a curiosidade,
demandas dos grupos sociais e das relações de a problematização e o encantamento dos sujeitos
saberes e poderes entre eles estabelecida. O sejam o mote para a construção de conhecimentos
inusitado, para nós, está relativo ao olhar atento e não o objetivo final de uma experimentação
para aqueles que protagonizaram e protagonizam educativa no campo do patrimônio. O patrimônio,
territorialidades marcadas pelas ancestralidades nessa perspectiva, deixa de ser compreendido
locais, especialmente indígenas e afro-brasileiras. como um produto cultural único e acabado e passa
Tratar da decolonização dos espaços de a ser perseguido através da forma como os
memória, como intentamos fazer na escrita que ora usuários o operam.
encerramos, requer o direcionamento de nossos
saberes e sensibilidades para a vida cotidiana e Notas
para os sujeitos sociais envolvidos nas relações ou
nos fatos que decidimos destacar. Voltamos a dizer 1 I Episódio vivido e narrado por Carla Beatriz
que, recorrendo aos estudos de autores como Meinerz, dezembro de 2015.
Aníbal Quijano (2005), Walter Mignolo (2003) e
Catherine Walsh (2013), defendemos uma
educação decolonial nos museus, mantendo em Referências
tensão a narrativa e as vozes que as exposições
apresentam. Que sujeitos são os protagonistas de
nossas escolhas? Quem escolhe conosco? Tais BARBOSA, N.R. O não-lugar do negro no acervo
perguntas evidenciam nossa posição de que os museológico: problemas e perspectivas. In:
espaços de memória devem ser pensados em GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado; RAMOS,
relação direta com as comunidades, os intelectuais Francisco Régis Lopes (Org.). Futuro do retérito:
e os grupos sociais organizados, particularmente escrita da história e história do museu. Fortaleza:
no caso das presentes reflexões, indígenas e negros. Instituto Frei Tito de Alencar, 2010. p. 276- 293.
O protagonismo desses grupos é fundamental para
que se desestabilize a colonialidade do poder e do BITTENCOURT, I.C. Os percursos do negro em
saber, uma vez que o conceito de raça é um Porto Alegre: territorialidade negra urbana. In:
conceito central nos estudos de colonialidade que VILASBOAS, Ilma Silva; BITTENCOURT,
nos inspiram. Essa mesma afirmação, relativa ao Iosvaldyr Carvalho; SOUZA, Vinícius Vieira de.
protagonismo das comunidades locais, é válido Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre.
para os espaços educativos escolares. Porto Alegre: Ed. Porto Alegre, 2010, p. 9-74.
O Projeto Territórios Negros, foco de
nossas práticas educativas em análise, ao destacar CERTEAU, M. A Cultura no Plural. São Paulo:
lugares e espaços de memórias praticados pelos Ed. Papirus, 1995. _____. A Invenção do
afro-brasileiros em nossa cidade, e as ações de Cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Ed.
ensino e extensão a ele correlatas, contribuem na Vozes, 2014.
construção de outras relações com a cidade e seu
patrimônio cultural. Estamos num contexto de CUNHA, M. N.B. Teatro de memórias, palco de
continuidades das lutas por reconhecimento de esquecimentos: culturas africanas e das diásporas
uma pluralidade sociocultural que positive as negras em exposições. Tese apresentada no
etnias de ancestralidades não europeias e suas Programa de Pós-Graduação PUC/SP, 2006.
memórias em nosso país. Reiteramos que,
construir monumentos, conservar ou destruir DIEHL, I. L. Processos de identificação aluno-
espaços, registrar bens materiais e imateriais, são ação patrimonial: uma experiência a partir dos
processos que implicam escolhas e produzem territórios negros de Porto Alegre. Artigo
sentidos que escapam às intenções de seus apresentado para conclusão da disciplina de
propositores, mas que dificilmente estão isentos de Estágio de Docência em História III – educação
Sobre as autoras
Carmem Zeli de Vargas Gil é Professora da Faculdade de Educação e do Mestrado Profissional em Ensino
de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Possui doutorado e mestrado em Educação pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Realizou estágio pós-doutoral na UBA/Argentina. Possui