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http://dx.doi.org/10.24933/horizontes.v35i1.

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Educação, patrimônio cultural e relações étnico-raciais: possibilidades para a


decolonização dos saberes
Carmem Zeli de Vargas Gil*
Carla Beatriz Meinerz**

Resumo
O texto articula a temática da educação das relações étnico-raciais com as abordagens das histórias e culturas
indígenas, africanas e afro-brasileiras, analisando os usos de espaços de memória, monumentos, arquivos,
museus e memoriais, problematizados a partir da capacidade ou não de proporcionarem visibilidade e
positividade para negros e indígenas. Tem por base a perspectiva do pensamento decolonial (QUIJANO,
2005; MIGNOLO, 2003; WALSH, 2013). Aponta possibilidades de decolonização dos saberes em ações
educativas vinculadas ao patrimônio cultural. Conecta-se com as experimentações de ensino, pesquisa e
extensão das autoras, docentes responsáveis pela formação inicial e continuada, através do curso de
História/UFRGS.
Palavras-chave: educação; patrimônio cultural; relações étnico-raciais; decolonização; saberes.

Education, cultural heritage and ethnic-racial relations: possibilities for decolonisation of knowledge

Abstract
This paper articulates the theme of education of ethnic-racial relations with the approaches of the stories and
indigenous cultures, African and african-Brazilian, analyzing memory space uses, monuments, archives,
museums and memorials, problematized from the ability or not to provide visibility and positive for blacks
and Indians. This thematic linking is based on the perspective of decolonial thought (QUIJANO, 2005;
MIGNOLO, 2003; WALSH, 2013). Indicates to decolonization possibilities of knowledge in educational
activities related to cultural heritage. Connects with educational experimentation, research and extension of
the authors, teachers responsible for initial and continuing education, through the course of History/UFRGS.
Keywords: education; cultural heritage; ethnic-racial relations; decolonization; knowledge.

Introdução história de João Cândido através daquela placa.


No cotidiano de trabalho partilhado com o marido
Começamos com uma narrativa de um (que me abanou de longe), observou o monumento
episódio inusitado, efetivamente vivido e agora e buscou mais informações sobre o importante
reinventado, porque em processo de rememoração líder que era ali destacado. Descobriu e narrou
e registro: Ao esperar na frente do portão que sobre a vida de resistência e a característica de
acessa visitações aos doentes em tratamento companheirismo daquele homem nascido em
intensivo, no Hospital Conceição de Porto Alegre, Encruzilhada do Sul. O repertório de informações
reparo a existência de uma placa. Paro em frente da jovem se encontrou com o que eu sabia de meus
ao lugar onde está o pequeno monumento e leio estudos como professora de História: o almirante
com atenção que se trata de uma homenagem da lutou pelos direitos dos marinheiros, foi banido em
Associação dos Funcionários do Grupo Hospitalar vida, homenageado após sua morte, marcado por
ao almirante negro, líder da Revolta da Chibata, carregar a cor do outro-subalterno numa
João Cândido, morto em 1969, anistiado sociedade racista e desigual. Insisto que nas
oficialmente em 2008. Num ambiente palavras daquela jovem o sabor de lembrar essa
insuspeitável, leio aquelas inesperadas palavras história era diferente, tinha o pulsar do sentido
de reconhecimento. Com a emoção ainda em atribuído com singular sensibilidade e a alegria
movimento dentro de mim, ouço uma jovem que da descoberta de algo pouco conhecido. Naquele
dispara ao meu lado: “quer comprar uma água momento a placa instituiu-se para mim como um
gelada?”; “tu já ouviu falar do João Cândido, o lugar de memória e gerou o que chamo de
cara da placa?”. A segunda aproximação vinha encontro inusitado numa tarde ensolarada de
carregada de orgulho. A jovem e negra, cheia de verão1.
vontade de conversar, contou-me que descobriu a A partir dessa narrativa acerca de um
*
Endereço Eletrônico: carmemz.gil@gmail.com
**
Endereço Eletrônico: carlameinerz@gmail.com
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monumento, criado por uma agremiação da conceito de cultura no plural (CERTEAU, 1995),
sociedade civil organizada, em homenagem à o que significa afirmar que negamos a ideia de
memória de um líder trabalhador e negro, podemos patrimônio como um produto cultural único e
indagar: o que podemos considerar sobre o acabado. O que nos interessa, nesse processo, é
patrimônio cultural a partir de uma perspectiva buscar analisar tanto o produto cultural oferecido
étnico-racial e de um pensamento pós-colonial ou quanto a forma como os usuários operam o mesmo.
descolonizador e decolonizador? Se o patrimônio Tais operações culturais são analisadas como
cultural e seu reconhecimento oficial dependem de movimentos cujas trajetórias não são
conflitos e negociações, é possível afirmar que a indeterminadas, mas insuspeitáveis (CERTEAU,
maior parte dele, em nosso país, tende a reproduzir 2014). Embora o autor trate do domínio da
um jeito de ver o mundo a partir do colonizador, pesquisa, ele aponta para a ideia de que, ao tratar
valorizando apenas determinados grupos, etnias e de objetos da cultura, é “necessário voltar-se para a
suas lideranças ou heranças culturais? Uma proliferação disseminada de criações anônimas e
sociedade desigual do ponto de vista étnico-racial, perecíveis que irrompem com vivacidade e não se
com histórica estigmatização de grupos não capitalizam” (CERTEAU, 2014, p. 13).
brancos, tende a esquecer e evitar o registro das As reflexões que ora apresentamos
memórias como a de negros e indígenas? articulam as temáticas da educação das relações
O episódio acima narrado nos faz pensar étnico-raciais, das histórias e culturas indígenas,
nos sentidos construídos pelas pessoas a partir de africanas e afro-brasileiras, analisando os usos de
uma marca de memória – um prédio, uma placa, espaços de memória, monumentos, arquivos,
um memorial. Trata-se de marcas físicas em museus e memoriais. Tais espaços serão
espaços vividos e transitados cotidianamente, tematizados a partir da capacidade ou não de
sejam elas reconhecidas como patrimônio ou não. proporcionarem visibilidade e positividade para
Chamamos de inusitado o encontro com aquele negros e indígenas, em suas múltiplas
monumento dedicado à uma liderança negra, experimentações históricas e culturais. Cruzaremos
porque pensamos que se trata de um fenômeno nossas análises, baseadas na perspectiva do
relativamente recente o reconhecimento de uma pensamento pós-colonial e decolonial latino-
pluralidade sociocultural que positive as etnias de americano (QUIJANO, 2005; MIGNOLO, 2003;
ancestralidades não europeias e suas memórias. WALSCH, 2013) com nossas experimentações de
Identificamos como insuspeitável o ambiente de tal ensino, pesquisa e extensão em educação,
encontro, sobretudo o fato de que tal placa patrimônio e relações étnico-raciais, desenvolvidas
despertara naquele jovem casal distintas reações, como docentes responsáveis pela formação inicial
identificações ou interações com os conhecimentos e continuada através do curso de História da
por ela despertados e com suas próprias histórias Universidade Federal do Rio Grande do Sul
pessoais. Construir monumentos, marcar espaços, (UFRGS).
conservar ruínas, são processos que implicam
lutas, escolhas e produzem sentidos que escapam Indígenas e negros no Brasil: estranhamentos
às intenções de seus produtores. Reside aí o entre passado e presente a partir do pressuposto
inusitado deste encontro com João Cândido, da decolonização dos saberes
transformado em aposta na importância de nossos
diálogos, como professoras e pesquisadoras, com Pensar historicamente pode implicar certos
os sujeitos que guardam as histórias e as memórias estranhamentos sobre o passado e um olhar crítico
dos povos indígenas e negros em nossas sobre os usos do mesmo no presente. Na temática
comunidades. que ora apresentamos esses estranhamentos são
Nos escritos a seguir refletiremos sobre fundamentais. No caso do pensamento pós-
alguns pontos centrais da relação patrimônio colonial, gerido e pautado entre intelectuais latino-
cultural, ensino de História, racialidade e americanos, o que se propõe é justamente estranhar
etnicidade, temas que, por sua complexidade, são a forma como ainda hoje construímos nossos
abertos e tem muitos pontos de fuga. Abordar as conhecimentos e ações em diversos campos,
memórias indígenas e afro-brasileiras no ensino de pautados por um pensamento colonizador. Esse
História envolve esquecimentos, silêncios e gestos estranhamento nos leva ao passo seguinte, que é o
em um jogo de saberes e emoções. O aporte reconhecimento de que nossos saberes e currículos
teórico que nos orienta é a compreensão do são igualmente colonizados e, que, portanto, uma

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decolonização é necessária no âmbito de quem sido aplicada pela primeira vez aos povos
atua numa perspectiva que busca o protagonismo originários da América, dentro do processo de
latino-americano. dominação colonial dos séculos XV e XVI,
Destacamos, a partir de Nilma Lino Gomes, fundamentando-se em critérios e pontos de vista
nossa escrita num contexto que “exige mudança de nascidos das experiências europeias. A descoberta
práticas e descolonização dos currículos” (GOMES, do outro está na origem da necessidade de traçar
2012). Tal mudança, por nós experimentada, distinções. Tais diferenciações começam a se
impulsiona a construção de novos olhares como vincular nas narrativas de época e na historiografia
pesquisadoras e professoras atuantes na formação posterior, marcadamente eurocêntricas, com
inicial e continuada. Para a autora, tal atributos físicos e hábitos culturais reiteradamente
destacados como inferiores, capazes de construir
[...] olhar produzirá imagens desestabilizadoras, uma história de classificação social racializada da
susceptíveis de desenvolver nos estudantes e população mundial. Nessa perspectiva, ao contar a
nos professores a capacidade de espanto e de história do mundo, em geral e da América, em
indignação e uma postura de inconformismo, as específico, o atributo cor começa a ganhar força
quais são necessárias para olhar com empenho
como divisor fundamental na distinção e
os modelos dominados ou emergentes por meio
dos quais é possível aprender um novo tipo de classificação social. A invenção da categoria cor,
relacionamento entre saberes e, portanto, entre como indicação visível de raça, ou como seu
pessoas e entre grupos sociais (GOMES, 2012, equivalente, tem suas origens relacionadas, no caso
p. 107). brasileiro, às experiências de colonialismo aqui
implementadas.
O conceito de colonialidade do poder, No Brasil que se inaugura com a
desenvolvido pelo peruano Aníbal Quijano e colonização portuguesa, um processo de
ampliado pelo argentino Walter Mignolo, ajuda- naturalização das diferenças se expressou ao longo
nos na empreitada que é pensar o patrimônio dos anos através das desigualdades de
cultural indígena e afro-brasileiro, tramado nos oportunidades experimentadas por indivíduos e
processos de dominação e opressão pós-colonial. É, grupos com atributos étnico-raciais distintos.
em síntese, uma chave de leitura para compreender Independente das considerações biológicas, o
como a memória de tais grupos tem lugar ou não- racismo brasileiro desenvolveu-se através de
lugar nas instituições de memória. Os estudos práticas discriminatórias relativas à cor e, quanto
desses autores são um convite para pensarmos no mais próximo da branquitude, menor pode ser o
que Mignolo (2003) chama de geopolítica do sofrimento e a distinção preconceituosa. O que isso
conhecimento, fazendo-nos crer que somente tem a ver com o jeito como contamos a nossa
estudiosos posicionados em determinados lugares, história, ou seja, com a historiografia? Para
culturas e línguas têm o direito ao pensamento, à responder tal pergunta, é importante buscar as
filosofia, à ciência. Para esses autores, o fim da presenças e ausências de brancos, negros e índios
colonização não significou o fim das relações de nas narrativas historiográficas e nos manuais
colonialidade, que continuam pautando as relações didáticos de história do Brasil. Muitas alternativas
econômicas, políticas, sociais e de produção de de resposta estão relacionadas com nosso processo
conhecimento. Em outros termos, não é possível de dominação colonial, mas também com a forma
pensar os triunfos da modernidade ocidental sem como nossa história foi sendo contada e
compreender a colonialidade do saber e do poder. reconstruída, predominantemente a partir de
Ao argumentar sobre essa colonialidade do referenciais eurocêntricos e brancos. Talvez, por
saber e do poder, Quijano (2005) nos coloca diante isso, nos entendamos tão pouco como americanos,
da importância da compreensão da ideia de raça mesmo estando aqui situados, cultural e
como um eixo do padrão de dominação colonial geograficamente.
europeia. Para o autor, trata-se de “uma construção Ao refletirmos sobre a produção dos últimos
mental que expressa a experiência básica da quinhentos anos de história do Brasil,
dominação colonial e que desde então permeia as necessitamos repensar essa naturalização do
dimensões mais importantes do poder mundial, referencial europeu como aquele que nos orienta
incluindo sua racionalidade específica, o para atribuir imagens de quem somos, pois essa foi
eurocentrismo” (QUIJANO, 2005, p. 117). Do a tônica do jeito como fomos construindo nossas
ponto de vista histórico, a ideia de raça parece ter ideias de nação brasileira. A referência centrada na

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Europa é também a forma como se organizam os 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
currículos de História na educação superior e na Nacional (LDBEN), inserido no conjunto das
educação básica, o que significa que ainda políticas afirmativas para a promoção da igualdade
aprendemos e ensinamos mais Europa e menos racial, foi historicamente inovador ao trazer para o
América ou África, da mesma forma que embate público as práticas do racismo, do
permanecemos, em geral, tratando da América e da preconceito e da discriminação, tradicionalmente
África com uma perspectiva eurocêntrica. Por negadas ou mantidas no plano privado.
outro lado, é preciso ressaltar que estamos vivendo No campo da Educação, a inovação se
um momento de esforço no sentido de trazer as anunciou com força, convocando em especial, mas
histórias e culturas indígenas, africanas e afro- não somente, os professores de História a um
brasileiras para o cenário de nossas explicações e redimensionamento de suas práticas pedagógicas,
para nossas aulas de história. capazes de fundamentar uma educação das
Desde os anos 30 do século XX, o termo relações étnico-raciais balizada por valores que
negro começou a ser utilizado com um significado promovam a justiça, a cidadania, o diálogo
diferenciado, pois até então ele correspondia a uma intercultural, a ética, a paz e a igualdade racial.
expressão vinculada a noções de vitimização e Os caminhos da desigualdade étnico-racial
escravização. A ideia de usar o termo com na História do Brasil são tão intensos que se fez
positividade é relativa ao seu emprego pelos imperiosa a criação de movimentos para a
primeiros etnógrafos da cultura negra no Brasil, a afirmação da necessidade de construir um contexto
exemplo de Gilberto Freyre. Negro ou afro- de reparação histórica, este que nos é dado viver
brasileiro tornam-se expressões utilizadas para nos dias de hoje. É preciso destacar que muitos
designar as maneiras de viver dos negros e os brasileiros, organizados em movimentos de
traços de cultura popular de influência africana. pertencimentos étnico-raciais diversos, como os
Simultaneamente à positivação do uso desses movimentos negros e indígenas, construíram esse
termos, houve a construção do mito da democracia processo histórico de reivindicações e lutas,
racial, que desconsiderava os conflitos étnico- instituinte de posições e políticas públicas recentes
raciais como marcadores das desiguais do país.
possibilidades de acesso aos bens públicos e de O racismo, a discriminação e a intolerância
ascensão social, especialmente para descendentes não são visíveis apenas na sociedade brasileira,
de indígenas e africanos. A partir desse novo porém aqui eles se desenvolveram com
emprego do termo negro, utilizado por setores especificidades que precisam ser compreendidas
considerados da intelectualidade brasileira, surge do ponto de vista histórico. Nossa trajetória de
uma controversa popularização e politização da composição nacional é marcada pela colonização
ideia de negro, também observada através de europeia, consolidada através da imposição de
discursos e práticas de outras organizações e força sobre os povos originários dessas terras,
movimentos sociais. assim como sobre os povos africanos para cá
Nas últimas décadas, o mundo assiste a traficados como escravos. Tratamos aqui do
movimentos sociais, intelectuais e políticos pela subjugo e da resistência experimentados por uma
promoção do diálogo intercultural e da igualdade pluralidade de povos e origens étnicas, tanto
racial, que tiveram um ponto de culminância na indígenas quanto africanos, com diversos idiomas,
realização, em 2001, da III Conferência Mundial crenças, hábitos, conhecimentos e heranças
de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, culturais singulares. Essa diversidade, porém, foi
Xenofobia e Intolerância Correlata, em Durbin, sendo negada na medida em que a experiência
África do Sul, cujas declarações e documentos fundante de dominação colonial se solidificou
tornaram-se referência internacional. Já naquele sobre a valorização e padronização de formas de
momento, o Estado Brasileiro assumiu viver, pensar e agir advindas dos grupos de origem
publicamente o compromisso de reforçar e europeia que aqui se instalaram.
desenvolver ações afirmativas contra a Ao contrário da propulsão de uma
discriminação racial também no campo da sociedade baseada na beleza da valorização das
Educação. diferenças e da promoção da equidade étnico-racial,
No Brasil, o contexto inaugurado com a ocorreu a cristalização de olhares estigmatizantes
promulgação das Leis 10.639/03 e 11.645/08 que relativos às características físicas e fenotípicas de
criaram e alteraram, consecutivamente, o artigo indígenas e negros, tornados passíveis de

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identificação e discriminação por conta da cor da visibilidade e positividade para negros e indígenas.
pele, tipo de cabelo, traços de nariz ou boca. Vejamos, a seguir, alguns exemplos sobre o que
A mistura de ameríndios, afrodescendentes nos apresentam os museus brasileiros acerca das
e eurodescendentes, resultante desse processo de memórias e ancestralidades indígenas, afro-
dominação colonial, construiu, ao mesmo tempo, brasileiras e africanas.
dois fenômenos sócio-históricos: por um lado,
traçou profundos abismos no tecido social Presenças e ausências de memórias indígenas,
brasileiro, marcados pela distinção e desigualdade afro-brasileiras e africanas nos museus
baseada em critérios étnico-raciais; de outra brasileiros
perspectiva, possibilitou a edificação de pontes Os museus, na qualidade de espaços
criadas por trocas culturais singulares. Abismos e privilegiados para a preservação da cultura
pontes gestaram-se em narrativas que oscilam material, reafirmaram/reafirmam uma memória
entre o público e o privado, exigindo ao estudo da nacional que expõe e valoriza objetos e ideias
temática das relações étnico-raciais olhares abertos relacionadas ao quadro de referências culturais
às complexidades e perplexidades da humanidade, branca, católica e europeia. As expressões de
presente em todos e em cada um de nós. grupos populares e historicamente marginalizados
Nesse contexto, o que é específico do ficaram invisibilizadas no processo de invenção do
Brasil? projeto de nação, construído a partir do período de
O racismo brasileiro solidificou-se independência, apesar do grande contingente
historicamente através da invisibilidade populacional africano e indígena presente na
experimentada nas relações informais e íntimas do sociedade brasileira oitocentista. Nessa nação
cotidiano das pessoas, reproduzindo-se em gestos construída, povos e culturas foram subalternizados;
diários de negativação, ridicularização e saberes, memórias e histórias locais foram
estigmatização dos grupos não brancos do país. Ao silenciados pela colonialidade do poder, mantida
mesmo tempo, é possível verificar com apesar do rompimento político-administrativo dos
transparência, em levantamentos e estudos sobre a laços coloniais com Portugal.
população brasileira, a sociedade racializada em Hoje, vivemos a emergência de outro
que vivemos. Os dados estatísticos do censo de pensamento, pós-ocidental (MIGNOLO, 2003),
2010, por exemplo, mostram traços muito visíveis capaz de operar para a descolonização intelectual.
de uma desigualdade racial que tem diminuído Esse pensamento, segundo o autor, constrói-se a
pouco nos quesitos educação e renda. Nesse partir dos estudos de intelectuais africanos, árabes,
levantamento, os brancos, assim como no censo de latino-americanos, tais como Paulo Freire, Aníbal
2000, seguem recebendo salários mais altos e Quijano, Enrique Dussel, Darcy Ribeiro, Roberta
estudam mais que os negros; igualmente dominam Menchú, Rivera Cusicanqui, Rodolfo Kusch, Franz
o ensino superior no País e ainda há diferenças Fanon, Khatibi, entre outros, que pensaram o
relevantes na taxa de analfabetismo entre as conhecimento na perspectiva da colonialidade do
categorias de cor e raça. Assim, enquanto, para o poder e da construção de outras narrativas sobre o
total da população, a taxa de analfabetismo é de presente e o passado desses espaços no mundo.
9,6%, entre os brancos esse índice cai para 5,9%. Nesse cenário, também os museus, como
O censo de 2010 mostrou que cerca de 70% da expressão de uma Nova Museologia, cada vez
população brasileira tem relacionamentos mais modificam suas exposições buscando
amorosos com pessoas do mesmo grupo de cor ou apresentar uma narrativa mais diversa, plural e
raça. Dados desse tipo demonstram o profundo transgressora. O estudo de Nila Rodrigues Barbosa
abismo que nos divide, capaz de criar (2010), no Museu Histórico Abílio Barreto, de
oportunidades sociais de acordo com critérios Belo Horizonte, é exemplo. No acervo, os objetos
baseados na etnicidade e na racialidade. Tais de suplício, fotografias e textos não eram
informações devem ser analisadas em perspectiva relacionados ao negro, mas a “tipos populares”, o
histórica, ou seja, podem nos levar a criar que indicava o não lugar do negro no acervo
estranhamentos na forma de compreender o museológico e a necessidade de nomear
presente quando em estreita relação com as tecnicamente os objetos do acervo. Como parte
experiências do passado. Esses estranhamentos desse tensionamento, a equipe do Museu organizou
criam novos olhares sobre os espaços de memória a exposição “Uma questão de raça: representações
e a capacidade ou não de proporcionarem do negro no museu da cidade”, na qual a curadoria

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expôs as omissões e equívocos em relação ao pensamento ocidental, descritor do continente


negro. africano como desqualificado e construtor de
Outro exemplo diz respeito à exposição imagens estereotipadas perpetuadas em diferentes
apresentada em 2013, no Museu Júlio de contextos históricos. Em terceiro lugar, para o
Castilhos/RS, sobre Aurélio Veríssimo de autor, as exposições enfatizam o lugar do negro no
Bittencourt, um jornalista negro que foi chefe de passado colonial ou imperial da monocultura,
gabinete de Júlio de Castilhos e Borges de como vítimas submetidas à violência do sistema
Medeiros, membro da Irmandade do Rosário e da escravista, sem capacidade de reação. Quando as
Academia Rio-Grandense de Letras. A exposição, marcas da resistência aparecem em tais
apesar de ser uma ação pontual do Museu Júlio de expografias, são na forma de comportamentos
Castilhos, valorizou a atuação de um negro, indo individuais e aleatórios que fortalecem o
além do lugar comum de outras representações que imaginário da desobediência. Silencia-se sobre
destacam negros artistas e jogadores. Vale destacar resistências cotidianas nas senzalas, experiências
que essa exposição tem importância, também, por comunitárias, revoltas que ganharam as ruas ou o
ter sido criada nesse museu, que adotou uma movimento quilombola, ainda recortado e tratado
tipologia histórica comprometida com a construção somente a partir do Quilombo de Palmares.
de uma memória oficial do estado. Por outro lado, Marcelo Nascimento Cunha refere-se ao
a exposição coloca acento em um negro bem- branqueamento dos museus, com exposições que
sucedido. reduzem a participação do negro na sociedade
Marcelo Cunha (2006, p. 99), investigando brasileira ao contexto da escravização, sendo que
exposições de nove museus brasileiros, constata perseguições religiosas, desigualdade social e
que o discurso sobre as populações africanas e preconceito racial não parecem interessar aos
afro-brasileiras se situa no passado e que as “[...] museus brasileiros. São raras as exceções. Uma
análises na perspectiva das dinâmicas histórico- delas é o Museu Afro-Brasil de São Paulo, cujo
culturais de luta e resistência frente às seculares discurso procura valorizar a participação do negro
agressões ocidentais estão ausentes nos discursos em diversos setores, principalmente na arte. A sede
expográficos sobre África e sociedades da diáspora do museu é no Pavilhão Padre Manoel da Nóbrega,
negra”. Nas conclusões de sua pesquisa, o autor dentro do movimentado Parque Ibirapuera, num
aponta algumas recorrências: primeiro, constata prédio modernista, projetado por Oscar Niemeyer e
que são raras as exposições sobre africanos e afro- denominado, a princípio, de Palácio das Nações,
brasileiros, em geral aparecendo como apêndices construído para as comemorações oficiais do IV
de outras narrativas pautadas na história branca Centenário da Cidade de São Paulo. O museu
ocidental. Tal omissão expressa o entendimento da conserva um acervo com mais de 6 mil obras, entre
cultura africana tangenciando a brasileira “sem que pinturas, esculturas, gravuras, fotografias,
seja afirmado, de forma categórica, que estamos documentos e peças etnológicas, de autores
falando de uma das bases essenciais da pretendida brasileiros e estrangeiros, produzidos a partir do
cultura nacional” (CUNHA, 2006, p. 240). Em século XVIII até os dias de hoje, tendo como
segundo lugar, o autor afirma que há nas curador e fundador o artista plástico baiano
exposições uma tendência em apresentar a África Emanoel Araújo. O Museu Afro-Brasil, apesar de
cristalizada em experiências do passado, povoada ter sua sede em uma edificação que diretamente
por culturas tradicionais, na qual os modos de vida não possui ligação com a temática do acervo,
estariam marcados pela permanência de costumes, expõe fragmentos das culturas africanas e afro-
criando uma visão homogeneizadora acerca desse brasileiras e nos convida a refletir sobre a
Continente destacadamente rico em pluralidades importância do negro na construção do Brasil em
do ponto de vista sociocultural. Igualmente, suas diferentes espaços e tempos.
análises indicam que “[...] não encontramos O Museu Afro-Brasil, criado em 2004,
exposições que apresentem referências representa um novo momento na valorização das
contemporâneos do Continente, na sua culturas africanas e afro-brasileiras no país,
complexidade decorrente dos diversos momentos embora seja importante lembrar que as iniciativas
históricos, desde o período pré-colonial até a dessa natureza começaram já na década de 1980
atualidade” (CUNHA, 2006, p. 241). Os museus e com o tombamento da Serra da Barriga, localizada
suas exposições, sob esse ponto de vista, são no município de União dos Palmares, inscrita no
construídos majoritariamente na lógica do Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e

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Histórico, em 1986; a criação da Fundação esses espaços sejam pensados em relação direta
Cultural Palmares, em 1988; o Memorial Zumbi com os intelectuais e movimentos sociais
dos Palmares, inaugurado em 1990 para ser um indígenas e negros. O protagonismo desses grupos
centro cultural destinado a promover ações é fundamental para que se desestabilize a
afirmativas de valorização da cultura africana e colonialidade do poder e do saber.
afro-brasileira e a fundação do Museu Nacional da Recorrendo aos estudos de autores como
Cultura Afro-brasileira (MUNCAB), em 2002. Aníbal Quijano (2005), Walter Mignolo (2003) e
Nesse mesmo cenário, é importante destacar o Catherine Walsh (2013), é possível defender uma
crescimento dos museus que se dedicam a compor educação decolonial nos museus, mantendo em
um acervo que valoriza diferentes etnias, entre os tensão a narrativa e as vozes que as exposições
quais: Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileiro apresentam. Esses pesquisadores fazem parte do
em Salvador (BA), Memorial Mãe Menininha do grupo de investigação
Gantois em salvador (BA), Casa do Benin em “Modernidade/Colonialidade” formado,
Salvador (BA), Memorial das Baianas em Salvador predominantemente, por intelectuais da América
(BA), Museu da Abolição em recife (PE), Museu Latina, postulando que modernidade e
Afro-Brasil, em São Paulo (SP), Museu Afro- colonialidade são as duas caras de uma mesma
Brasileiro (SE), Museu do Negro (RJ), Museu 13 moeda. Para Oliveira y Candau (2013, p. 279):
de Maio, em Santa Maria (RS), Museu do Percurso
do Negro, em Porto Alegre (RS), Território Negros [...] el colonialismo es más que una imposición
de Porto Alegre (RS), Museu Kuahí dos Povos política, militar, jurídica o administrativa. Bajo
Indígenas do Oiapoque, em Macapá (AP), Museu la forma de colonialidad llega a las raíces más
Indígena, em Coroa Vermelha (BA), Museu profundas de un pueblo y sobrevive a pesar de
la descolonización o emancipación de las
Magüta dos Índios Ticuna em Benjamin Constant
colonias latinoamericanas, asiáticas y africanas,
(AM). en los siglos XIX y XX. Lo que estos autores
A relação de museus étnicos evidencia nos muestran es que a pesar de que ya acabaron
também o crescimento dos estudos, questionando a los colonialismos modernos, la colonialidad
forma como os museus brasileiros abordavam e sobrevive.
abordam a história indígena, africana e afro-
brasileira. Ulpiano de Menezes (1994, p. 25) Através da leitura desses autores,
aponta que “a exposição museológica pressupõe propomos descolonizar, na perspectiva do
[...] uma concepção da sociedade, de cultura, de pensamento pós-colonial e decolonial, o museu e o
dinâmica social, de tempo, de espaço, de agentes patrimônio da noção de cultura eurocentrada e,
sociais e assim por diante”. Exposições contam sobretudo, construir pedagogias que possibilitem
histórias, evidenciam memórias, expressam estar, ser, sentir, existir, fazer, pensar, escutar e
disputas, escolhas e silenciamentos. Podem saber de outro modo.
também ampliar as representações sobre diferentes O termo descolonizar relaciona-se com o
grupos sociais e étnico-raciais que circulam na conceito decolonial. Segundo Catherine Walsh, o
cidade. conceito decolonial relaciona-se, na literatura, a
Ressaltamos que, assim como na outros, como: descolonialidade, descolonial, como
historiografia brasileira mais recente, também decolonialidade e decolonial. Para a
destacadamente nos estudos do período Pós- autora, suprimir o “s” é uma opção. Vejamos sua
Abolição, os espaços de memória começam a argumentação, no sentido de que o termo
estudar os negros e o racismo no Brasil a partir de decolonial:
um pressuposto e de uma necessidade de pensar o
cotidiano desses homens e mulheres como sujeitos [...] pretende marcar una distinción con el
sociais, justamente pelas especificidades das significado en castellano del “des” y lo que
relações étnico-raciais constituídas em nosso país e puede ser entendido como un simple desarmar,
evidenciadas na escrita do item anterior. deshacer o revertir de lo colonial. Es decir, a
Se seguimos na argumentação que, para pasar de un momento colonial a un no colonial,
estudar, pensar e tratar da decolonização dos como que fuera posible que sus patrones y
huellas desistan en existir. Con este juego
espaços de memória é igualmente necessário tratar
lingüístico, intento poner en evidencia que no
do cotidiano e dos sujeitos sociais envolvidos nas existe un estado nulo de la colonialidad, sino
relações que ali destacamos, urge evidenciar que posturas, posicionamientos, horizontes y

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26 Carmem Zeli de Vargas Gil, Carla Beatriz Meinerz

proyectos de resistir, transgredir, intervenir, in- escravizados, sendo necessário dar visibilidade nas
surgir, crear e incidir. Lo decolonial denota, exposições para os movimentos de rebelião, já que
entonces, un camino de lucha continuo en el o estudo do passado está, necessariamente,
cual se puede identificar, visibilizar y alentar vinculado às demandas do tempo presente.
“lugares” de exterioridad y construcciones
Articular ideias em torno dessas relações
alter-(n)ativas (WALSH, 2013, p. 24-25).
entre museus e ensino de História implica em
reconhecer as instituições museais como lugares
Reconhecemos, em conexão com Walsh,
educativos nos quais são produzidas distintas
que nossos saberes e nossos fazeres estão
representações. Lugares que dão a ver as formas
permeados pelo desejo de romper, transgredir e
segundo as quais os sujeitos de um grupo social se
resistir a toda forma de persistência dos projetos
relacionam com o tempo; onde a visão é
colonizadores eurocentrados.
desnaturalizada e os regimes visuais de cada época
Assim, questionamo-nos sobre o que os
podem ser compreendidos. Convictas desse
museus ensinam das histórias e das culturas
pressuposto propomos aos alunos do Curso de
indígenas, africanas e afro-brasileiras, atentando
Licenciatura em História da UFRGS, por exemplo,
para a conexão dos objetos das exposições com as
estágios docentes em museus, arquivos, memoriais,
histórias de vidas dos sujeitos que produziram tais
bibliotecas e outros projetos que tematizem a
objetos. Como objetos, palavras e imagens podem
memória e a história, de forma a instigar o
produzir argumentos que tecem histórias de vidas?
professor em formação a ampliar os espaços de
Uma exposição é, também, um diálogo entre
ensinar-aprender História. A disciplina de Estágio
diferentes grupos: os que usaram os objetos, os que
de Docência em História III – Educação
criaram a exposição e os que a visitam. Reside aí o
Patrimonial explora arquivos, memoriais, centros
compromisso dos museus com uma educação que
culturais, museus, acervos particulares com acesso
transite das narrativas hegemônicas para as
permitido, exposições permanentes ou temporárias,
histórias vivas que reivindicam a presença de
bibliotecas históricas de visitação livre, prédios
direitos à memória e ao reconhecimento. Exemplo
históricos abertos ao público, etc. Também discute
interessante é o Memorial Mãe Menininha do
questões de ordem teórica, apoiada nas noções de
Gantois, criado em 1992 em homenagem a uma
memória, de ensino de História e de patrimônio
importante mãe-de-santo do Brasil. O Memorial
cultural. A carga horária dessa disciplina está
foi construído no mesmo local onde ocorriam as
distribuída em três momentos: atuação nas
práticas culturais por ele abordadas e rememoradas,
instituições culturais, aulas presenciais na
tornando-se evocador de memórias e possibilitando
Universidade e orientações individuais ou em
o encontro entre o vivido e o narrado.
grupo. Nos espaços de atuação, o acadêmico
Outro aspecto interessante do Memorial
realiza observações, monitoria e docência em
Mãe Menininha do Gantois é seu caráter biográfico,
História, acompanhando as atividades cotidianas
com ênfase mais no sujeito do que nos objetos. Se,
das instituições culturais, em especial as ações
para Marcelo Nascimento Cunha (2006, p. 105),
educativas, quais seja, acompanhar o mediador nas
“[...] homens e mulheres das comunidades afro-
visitas guiadas, participar das reuniões de estudos
brasileiras são lembrados reduzidos ao papel de
organizadas pela instituição, propor atividades com
personagens, ou melhor, transformados em
o acervo e efetivar tais ações com alunos da
arquétipos como a baiana de acarajé, a mãe-de-
Educação Básica. Ressaltamos que nossa atuação
santo, o capoeira, normalmente, apresentados de
está fundamentada na ideia de que o patrimônio
forma anônima, sem vínculos ou trajetória
cultural é um desses temas potentes para provocar
pessoal”, esse Memorial busca justamente o
caminho inverso. Ao contar a história de uma transgressões pedagógicas. Vejamos a seguir um
breve relato de nossas ações de ensino e de
liderança e de uma “casa de santo”, o Memorial
extensão, no campo da formação inicial e
rompe essa lógica, igualmente segue na contramão
continuada de professores de História, focando a
de outros espaços de memória, na medida em que
experiência em parceria com o Projeto Territórios
sua ênfase não está centrada na condição de
Negros: afro-brasileiros em Porto Alegre.
escravizada de sua personagem protagonista. Para
Marcelo Nascimento Cunha (2006), insistir nessa
representação centrada na escravização e Experimentações com as territorialidades
vitimização é limitar a reflexão à criminalização da negras em Porto Alegre: o Projeto Territórios
Negros em intersecção com o ensino e a
resistência ou destacar a passividade dos sujeitos

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Educação, patrimônio cultural e relações étnico-raciais: possibilidades para a decolonização dos saberes 27

extensão universitária Territórios Negros, temos buscado criar parcerias


para que o mesmo ganhe força político-
O Projeto Territórios Negros: afro- pedagógica, ampliando-se como experiência
brasileiros em Porto Alegre existe desde 2009, histórica e cultural fundamental de nossa cidade.
com funcionamento regular desde 2011, e se Como profissionais da Universidade Pública,
constitui em espaço de estágio curricular do Curso temos limites e possibilidades em nosso campo de
de História e atualmente conta com ações atuação e no cumprimento de um papel específico
extensionistas universitárias vinculadas às junto à sociedade, atinente ao exercício
temáticas correlatas à Lei 10.639/03 e à educação indissociável do ensino, da pesquisa e da extensão.
das relações étnico-raciais. Tal Projeto é por nós Nesse sentido, nos articulamos em parcerias para
compreendido como propulsor de uma construir ações que caminhem na perspectiva da
metodologia própria, uma pedagogia transgressora, formação inicial e continuada dentro da temática e
de acordo com o pressuposto da decolonização dos da metodologia do Projeto. Compreendemos que a
currículos, saberes e poderes. Consiste na UFRGS tem uma trajetória de pesquisas sobre as
realização de um percurso de ônibus que percorre temáticas e as comunidades envolvidas no Projeto
pontos específicos da cidade, passando por regiões e que é sua função social compartilhar esses
historicamente reconhecidas como territórios de estudos e colocá-los em interação com os sujeitos
moradias, trabalhos, lutas, sociabilidades e que fazem hoje a experimentação do percurso dos
religiosidades vinculadas à negritude, tais como: territórios negros em Porto Alegre.
Largo da Forca (Praça General Sampaio), A partir dos pressupostos evidenciados
Pelourinho (Igreja das Dores), Mercado Público de acima, em relação ao nosso papel como
Porto Alegre, Campo da Redenção (Parque formadoras no interior de uma Instituição Pública
Farroupilha), Colônia Africana (Bairro Rio de Educação Superior, assumimos a coordenação
Branco), Ilhota (imediações da Av. Érico de um coletivo de trabalho em torno do Projeto,
Veríssimo), Areal da Baronesa (Quilombo da contando com um grupo competente e
Travessa Luis Garanha), Largo Zumbi dos comprometido, formado por técnicos do
Palmares. Departamento de Educação e Desenvolvimento
Segundo Francieli Renata Ruppenthal Social, estudantes das pós-graduações em
(2015), o embrião do Projeto surgiu, conforme Antropologia, Geografia e História, assim como
afirmam seus idealizadores, a partir da aplicação professores ou assessores da SMED e da Secretaria
de uma oficina, promovida pela assessoria Municipal de Cultura, através do Museu de
pedagógica de relações étnico-raciais da Secretaria História de Porto Alegre.
Municipal de Educação de Porto Alegre (SMED), Essa forte parceria tornou possível a
em agosto de 2008. Resultante de parcerias realização do Curso de Extensão Territórios
estabelecidas, inicialmente, entre SMED, Negros: patrimônios afro-brasileiros em Porto
Companhia de Processamento de Dados do Alegre, em 2015. O curso foi desenvolvido através
Município (PROCEMPA), Secretaria Adjunta do do Laboratório de Ensino de História e Educação
Povo Negro e a Companhia Carris Porto Alegrense, (LHISTE), institucionalizado como Programa de
empresa pública municipal de transporte coletivo, Extensão, originando-se de uma demanda trazida
hoje é mantida efetivamente por três profissionais de fora da universidade, pelos sujeitos e grupos
da empresa Carris que se aventuram na árdua envolvidos com o Projeto, com o objetivo de
tarefa de manter a memória afro-brasileira, ativada fortalecer o mesmo. A concretização da articulação
a partir da denúncia de sua invisibilidade e dessas parcerias em torno dessa iniciativa pioneira,
esquecimento no espaço público de Porto Alegre. que é o Projeto Territórios Negros, levou-nos a
O crescimento da realização do percurso, atuar em duas grandes ações: a formação contínua
atendendo mais de 30 mil participantes, entre dos professores que realizam o percurso, por um
alunos, professores e público em geral, motivou os lado e, por outro viés, a produção de material
coordenadores a buscarem, na Universidade didático de apoio, tanto para os trabalhos
Federal do Rio Grande do Sul, outra instituição realizados no ônibus quanto para as atividades
que ajudasse a qualificar e ampliar as ações do desenvolvidas na escola, antes ou depois da
Projeto. Em nossas ações extensionistas e de realização do percurso.
ensino, através da realização de cursos de Faremos, inicialmente, uma breve
formação e de estágios docentes no Projeto descrição do curso de formação. Tal experiência

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28 Carmem Zeli de Vargas Gil, Carla Beatriz Meinerz

contemplou em sua consecução metodológica a territórios, central no Projeto em questão,


criação de ações educativas com percursos referenciamos que, nesse percurso, o que se propõe
próprios e inéditos, por parte dos extensionistas, é, também, ocupar o centro da cidade, retomar e
mapeando as marcas de pertencimento negro no encontrar-se com as memórias negras que vão
entorno das comunidades escolares de atuação dos além dos registros oficiais e do patrimônio
mesmos. Com 40 (quarenta) vagas disponíveis, edificado de Porto Alegre, ainda centrado na
totalmente gratuito, foi aberto para professores, valorização do modelo arquitetônico europeu. No
licenciandos e pessoas oriundas de movimentos percurso, o mediador enfatiza a presença das
sociais. Realizou-se de forma presencial e com populações negras na cidade, sugerindo uma
atividades a distância (plataforma moodle) “reterritorialização” do centro para experienciar a
simultaneamente, concluindo-se com a construção cidade com múltiplos olhares. Lembramos aqui a
de materiais pedagógicos a partir da experiência noção de territorialidade negra, discutida por
dos cursistas. A ação promoveu o debate em torno Iosvaldyr Carvalho Bittencourt (2010). Para o
da questão das territorialidades negras em toda a autor, as populações negras teriam vivido uma
cidade de Porto Alegre e, assim, possibilitou aos dupla desterritorialização: na África, ao serem
extensionistas que refletissem em suas retirados de sua terra e, na América, ao serem
comunidades sobre esses espaços, posteriormente privados de liberdade. Iosvaldyr (2010) indica, no
criando mapas e fôlderes com percursos dos início do século XX, o processo de periferização
territórios negros nas suas comunidades. Esses das populações negras e brancas empobrecidas em
percursos foram criados em oficina de Porto Alegre, pressionadas a se deslocarem do
mapeamento dos territórios selecionados nas centro para locais mais afastados da cidade.
comunidades dos educadores. Em cada um dos Trabalhamos com o conceito de
mapas foram apontados os locais que constituem territorialização a partir da ideia de usos dos
territorialidades negras e adicionadas breves espaços, ou seja, o sujeito pode se desterritorializar
descrições com suas respectivas histórias. Temas sem necessariamente ter saído do lugar e vice-
como culturas e histórias afro-brasileiras em Porto versa. Assim, a desterritorialização não é apenas a
Alegre, territórios e territorialidades negras, remoção ou o deslocamento das populações, é
educação das relações étnico-raciais, pedagogia igualmente a desativação dos processos de vínculo
griô, entre outros, foram abordados ao longo do dos sujeitos com os espaços. Além das migrações e
processo de formação, cotejado pelo desafio final deslocamentos forçados, como os citados acima,
de construção de percursos nas comunidades podem ser exemplos disso a proibição de práticas
escolares. Os encontros presenciais foram religiosas, a mudança de nomes de lugares, entre
realizados na Universidade e em espaços de outros. No caso de Porto Alegre, por exemplo, o
memória como o Mocambo – Associação lugar chamado, a partir do século XIX, de Colônia
Comunitária Amigos e Moradores do Bairro Africana, pouco a pouco foi apagado da história da
Cidade Baixa e Arredores, organização voltada à cidade. Tratava-se de um espaço habitado por
preservação da cultura afro-gaúcha, lugar onde negros, no período da abolição do pós-abolição,
fizemos uma roda com alguns griôs. mas que igualmente acolhia imigrantes
Para nós, reconhecer os espaços públicos e desembarcados em Porto Alegre e que não
privados frequentados, apropriados e constituídos seguiam para as colônias alemãs ou italianas. Tal
pela população negra da capital ao longo de sua região da cidade foi retratada na literatura e em
história, é função educativa e desafio da formação estudos diversos como local de marginais e
inicial e continuada dos professores de História. marginalizados. Sabemos que os moradores negros
Para conhecê-los, é preciso estudá-los e esse da Colônia Africana foram “removidos” da região
estudo se faz em diálogo com os intelectuais que pela ação dos poderes públicos e da especulação
vivem e estudam em nosso entorno, igualmente imobiliária (KERSTING, 1998). Entretanto,
com os sujeitos sociais que guardam as memórias estudos mais recentes (ROSA, 2014) indicam que
desses grupos que pouco conhecemos. foi também a atitude de alguns moradores da
No processo de desenvolvimento dessas Colônia Africana, notadamente imigrantes brancos,
parcerias, compreendemos a necessidade de motivo de aversão ao local e aos seus moradores
aprofundarmos conceitos correlatos à História em negros e contributo para sua desterritorialização.
diálogo com outras áreas como Antropologia e Hoje, o espaço urbano em que existia a Colônia
Geografia. Retomando, por exemplo, o conceito de Africana, em termos de especulação imobiliária, é

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Educação, patrimônio cultural e relações étnico-raciais: possibilidades para a decolonização dos saberes 29

um dos locais mais caros da cidade e congrega experiências e anseios sociais. Não podemos
bairros como Rio Branco, Bom Fim e Mont’Serrat. ficar atrelados ao livro didático [...] que tenta
Tal espaço faz parte do percurso realizado pelo diminuir a importância daqueles que não
Projeto Territórios Negros: afro-brasileiros em possuem a matriz europeia. [...] resposta para
o profissional que buscar fazer a diferença está
Porto Alegre.
no seu cotidiano escolar, na comunidade
Quando tratamos dos territórios negros não trabalhada, com o seu grupo educacional
estamos apenas tratando dos espaços de exclusão, envolvido. Essa resposta se constrói
mas dos agenciamentos e das estratégias dos constantemente [...]. (Relato 1, cursista e
sujeitos em seus cotidianos para uso dos espaços professora da rede pública estadual, Porto
da cidade. O protagonismo dos sujeitos, nessa Alegre. Fórum virtual na plataforma
perspectiva, é fundamental, pois a territorialidade é moodle/UFRGS do Curso de Extensão
justamente a multiplicidade de usos de um mesmo Territórios Negros: patrimônios afro-
território, entendido como lócus de disputas entre brasileiros em Porto Alegre, 2015).
os sujeitos (SANTOS, 2009). É justamente esse
[...] Meus sentimentos são de felicidade e
protagonismo que se busca evidenciar no percurso
angústia. Felicidade pela oportunidade, ainda
dessa ação educativa e patrimonial do Projeto que tardia, de estar aprendendo, de me sentir
Territórios Negros, quando se destacam os lugares viva com estes “novos” conhecimentos e ter a
e espaços de memórias praticados pelos negros, certeza de que ainda é possível fazer a
como as territorialidades quilombolas, diferença. Por outro lado, sinto uma enorme
carnavalescas, entre outras. angústia ao perceber minha falta de
Entre as reflexões construídas ao longo conhecimento em temas que agora percebo
dessa ação de extensão, destacamos aqui alguns como básicos e essenciais. Há mais de 20 anos
excertos recolhidos dos fóruns virtuais constituídos atuo em escolas onde maioria dos alunos são
ao longo do processo de consecução do curso. Eles negros. A história destes alunos sempre foi
tratada com superficialidade. Nos três últimos
expressam as reflexões compartilhadas acerca das
anos já fazia uma tentativa de qualificar o meu
experimentações metodológicas propostas, como trabalho, o que inclusive me levou a procurar
registros de trocas de saberes dos professores em o curso, mas percebo que deixei muito a
percursos de aprendizagens junto às comunidades desejar por falta de conhecimento.
escolares, suas territorialidades negras e seus Desconhecia a força e riqueza desta história.
patrimônios culturais. Vejamos: Muito transitei na frente do MOCAMBO que
visitamos e não sabia de sua existência assim
Se fosse possível, cada Griô deveria ser como de seu significado. Griôs, outro termo
tombado como Patrimônio Histórico da desconhecido e mais o seu papel e perfil […]
Humanidade, visto que, eles são alicerces (Relato 2, cursista e professora da rede pública
fundamentais nas narrativas de culturas que estadual, Porto Alegre. Fórum virtual na
não são retratadas pela cultura letrada. A plataforma moodle/UFRGS do Curso de
oralidade contrasta com o que há de mais Extensão Territórios Negros: patrimônios afro-
moderno que temos, a Era Digital. Os brasileiros em Porto Alegre, 2015).
povos/etnias que não possuem a sua
ancestralidade registrada ou documentada [...] muitos destes aspectos negados da cultura
utilizam da memória e da oralidade para africana estão expostos por seus descendentes
transmitir às gerações futuras o seu contexto dentro de nossas comunidades escolares, o que
histórico e manterem viva a sua própria nos cabe é ter esta percepção atenta. No
história. Assim, temos nas culturas negras cotidiano e na crítica podemos notar
africanas e nas culturas indígenas, a comportamentos e ações que ainda nos
religiosidade, a musicalidade, a dança, a remetem ao momento interior da negação
ritualística, presentes até os dias de hoje. Se comportamental e territorial, e propiciam
não fossem os Griôs responsáveis pela construção de um novo território simbólico. [...]
transmissão de todos esses conhecimentos, os mapas não trataram de revelar esta luta
certamente boa parcela dessas culturas já interna, trataram de pormenorizar as
haveria desaparecido. Eis que cabe a nós, populações a uma nação homogênea com a
educadores, desenvolvermos práticas de ensino mesma língua, que foi resumida a números
que não utilizem somente o conteúdo demográficos. Tratemos de fazer nossos
programado, mas sim, a interação com a núcleos locais múltiplos para múltiplas visões
cultura de nossos alunos mediantes suas [...] (Relato 3, cursista e professora da rede
pública estadual, Porto Alegre. Fórum virtual

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30 Carmem Zeli de Vargas Gil, Carla Beatriz Meinerz

na plataforma moodle/UFRGS do Curso de construída durante sua vivência no espaço de


Extensão Territórios Negros: patrimônios afro- memória. Orientar essa escrita nos possibilita
brasileiros em Porto Alegre, 2015). acompanhar o processo de reflexão que cada um
constrói durante o estágio, percebendo a relevância
[...] Os conflitos expostos no texto da Isabel
da inserção do professor em formação em espaços
nos remetem a nossa própria história expondo
as mesmas estratégias usadas pelos de memórias. Entre as aprendizagens da docência,
portugueses na África e pelos exploradores do indicadas pelos estagiários do Projeto Territórios
mercado imobiliário em Porto Alegre. A Negros, destacamos algumas na forma de excertos
pressão pelo espaço privilegiado, a redução da retirados de suas escritas. Vejamos:
cultura local até que ela seja considerada
‘errada’, a imposição de uma nova estética [...] preciso abrir mão de velhas certezas sobre
foram as mesmas formas de dominação o tempo, refletir sobre seu desenvolvimento
utilizadas para empurrar para as áreas anterior ao discurso histórico nas experiências
periféricas as populações negras que culturais diversas de tempo, pensar as relações
habitavam o entorno da área central da cidade. de poder que o modelo de tempo moderno
Exemplo de resistência pela sua cultura e encenou como a colonialidade do tempo
identificação histórica, o Areal da Baronesa e subalterno e abrir mão de velhos binarismos
o espaço Mocambo, mostram que a resistência que estiveram presentes no discurso histórico.
aconteceu (e acontece) ainda hoje na nossa O tempo da diáspora poderá trabalhar a
cidade. A preservação da história local, o experiência museal nas ações educativas em
mapeamento afetivo da região constitui-se na situações entre lugares, como no Territórios
estratégia mais forte de manutenção do Negros, para posicionar estrategicamente
sentimento de pertencimento da comunidade e continuidades para as futuras rupturas
sua efetiva resistência a uma padronização e (GONZAGA, 2015, p.69-70).
massificação da cultura [...] (Relato 4, cursista
e professora da rede pública estadual, Porto [...] o processo de aproximação com a cultura
Alegre. Fórum virtual na plataforma de matriz africana, seja ela através da
moodle/UFRGS do Curso de Extensão capoeira, seja através da religião, possibilitou
Territórios Negros: patrimônios afro- através de suas próprias vivências prévias ou
brasileiros em Porto Alegre, 2015). da representação, entendida como trazer a
presença algo que estava ausente, positivar a
Esses breves fragmentos merecem análise cultura africana em suas manifestações e assim
e compreensão de nossa parte, porém o objetivo de gerar um processo de identificação e
trazê-los na escrita que ora produzimos não é outro pertencimento a esta matriz cultural (DIEHL,
Isadora Lunardi, 2014).
senão evidenciar as possibilidades criadas num
processo de formação continuada, as Nos diversos momentos do percurso realizado
problematizações e desestabilizações construídas pelo projeto Territórios Negros em que foram
em momentos de trocas, capazes de criar abordadas, de forma direita ou indireta, as
movimentos de resistência e transgressão do ponto identidades religiosas de matriz africana, foi
de vista curricular. Tais movimentos conectam-se possível identificar três tipos de
com o pensamento decolonial que ora nos comportamento recorrentes: para alguns
fundamenta. alunos, este momento revelou uma certa ânsia
Pensemos, a partir de agora, nos estágios por se fazer ouvir, a partir de uma fala que
de docência em espaços de memória pouco procurava, principalmente, desvincular sua
religião às associações com o ‘demônio’/
convencionais, a partir do caso específico do
‘diabo’, um mal a ser combatido; outros,
Projeto Territórios Negros em Porto Alegre. Tal mesmo instigados por seus professores a
Projeto constitui-se como espaço de estágio de trazerem suas contribuições enquanto
docência do Curso de História desde 2013-2. praticantes destas religiões, silenciaram, o que
Portanto, durante cinco semestres (até 2015), 14 se pode compreender como um mecanismo de
acadêmicos realizaram 10h de observação e 30h de defesa; houve ainda aqueles preocupados em
docência percorrendo o centro de Porto Alegre apontar, ou mesmo "acusar", o pertencimento
com alunos da Educação Básica, fazendo aula fora de outrem a uma religião de matriz africana,
do espaço convencional da aula. No final do frente a qual declararam sentir "medo
semestre cada estagiário elabora um artigo que se (VALADA, Luana Veeck. 2014).
organiza a partir de uma questão-problema
Olhar diferente para a cidade, pois os

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Educação, patrimônio cultural e relações étnico-raciais: possibilidades para a decolonização dos saberes 31

territórios negros são colocados de forma preconceitos individuais e sociais. Vejamos mais
secundária na narrativa histórica de Porto um excerto: [...] no início da viagem, um aluno
Alegre, sendo a povoação açoriana o discurso com apenas 10 anos, apontou para o meu cabelo e
oficial apresentado (MEDEIROS, Tanise afirmou que ele era “ruim”, feito de “teia de
Baptista de, 2013).
aranha” (GOMES, Matheus, 2015).
Nessa experiência específica, o estagiário
Abrir mão de velhas certezas é, certamente, foi vítima das representações que circulam na
um belo exercício no fazer-se professor de História.
sociedade e fazem com que as crianças e jovens
Suspeitar que, talvez, os conteúdos de sempre e as
não tenham orgulho de seu pertencimento. Na
abordagens que privilegiam a matriz teórica
sequência, o estagiário conta que:
embasada em autores europeus necessitem ser
ampliadas para que possamos perceber as
[...] em turmas onde nitidamente tínhamos
memórias e histórias invisibilizadas nos currículos
uma maioria negra, menos da metade dos
e no “lugar oficial de memória” (museus),
alunos se manifestava quando
acreditando que esse movimento é fecundo na
perguntávamos quem se identificava como
formação do professor de História. Dialogar com
tal. A esmagadora maioria dos estudantes
crianças e jovens sobre memórias indígenas,
negros não sabiam o significado de
africanas e afro-brasileiras, problematizar
nenhum dos locais onde ocorreu a história
conceitos como preconceito, resistência,
de seus antepassados, ou seja, um ‘vazio
estranhamento, pertencimento, patrimônio cultural,
histórico’ precisa ser coberto na
seguindo os ensinamentos de Quijano (2005),
consciência pela educação. A reprodução
contribui para que possamos, a cada dia, aprender
de piadas que reforçavam a construção do
como o poder e o saber outorgaram à diversidade o
estereótipo animalesco do negro
caráter de problema, impondo a ideia de que não
construído desde o século XVI era
só a pele fosse branca, mas também as
frequente e inclusive me encontrou como
mentalidades.
vítima em uma ocasião (GOMES, Matheus,
É profícuo para o professor em formação
2015).
deparar-se com perguntas, tal como aquela de uma
criança que, ao sair do Mercado Público (no centro
Mergulhar nesse universo de
de Porto Alegre), indaga a estagiária sobre a
discriminações e preconceitos, em alguns casos
Tradição do Bará do Mercado: “professora, porque
sutil e naturalizado; problematizar representações
essa história nunca é contada? As pessoas passam
construídas historicamente e oportunizar encontros
todos os dias por ali e nem sabem o que significa
com diferentes histórias e memórias é condição
aquilo no chão” (Escrita de estágio de Caroline
para a docência nas escolas de hoje: sem tais
Silva Uezu). Uma indagação como essa nos faz
elementos é quase impossível seguir caminhando
refletir sobre as intensas e positivas possibilidades
em direção à escola multicultural, capaz de
que a experiência da visita ao Mercado Público e
experimentar a equidade nas relações étnico-
ao mosaico ali esculpido no chão, em granito
raciais.
vermelho e amarelo, monumentando e registrando
nosso patrimônio imaterial e religioso, o Bará do
Considerações finais
Mercado. Em termos de ação educativa trata-se de
um exemplo de transgressão, ao trazer a presença
A articulação entre as temáticas da
de algo que estava ausente e invisibilizado e, assim,
educação, do patrimônio e das relações étnico-
questionar o caráter monocultural e o etnocêntrico
raciais nos instigou nessa escrita, dentro da
do currículo escolar. Supõe a possibilidade de
perspectiva do pensamento decolonial, uma vez
perguntar sobre as escolhas curriculares e
que estamos muito sensibilizadas e provocadas
desestabilizar a pretensa neutralidade dos
pelas experiências de ensino, pesquisa e extensão
conhecimentos e práticas educativas.
que experimentamos a partir das parcerias
No exercício da docência, o estagiário, ao
estabelecidas com o Projeto Territórios Negros em
abordar a história africana e afro-brasileira, pode
Porto Alegre.
se colocar diante dos desafios da educação das
Tais experimentações nos colocam diante
relações étnico-raciais, pois identifica atitudes de
de um campo de possibilidades em que o inusitado
preconceito racial e busca problematizar,
volta a operar em nossas reflexões. Retornamos ao
desnaturalizar e questionar estereótipos e

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32 Carmem Zeli de Vargas Gil, Carla Beatriz Meinerz

episódio narrado no início desta escrita para posturas em relação aos saberes e aos poderes
destacar novamente a importância da relação com estabelecidos como hegemônicos.
o patrimônio, estabelecida pelos sujeitos em Ressaltamos que a potencialidade de um
interação, nas múltiplas formas de usos de um trabalho com objetos ou espaços de memória,
mesmo território. Um patrimônio é escolhido e transformados em documentos ou monumentos,
exposto para ser visualizado, ou não, conforme as consiste em criar situações nas quais a curiosidade,
demandas dos grupos sociais e das relações de a problematização e o encantamento dos sujeitos
saberes e poderes entre eles estabelecida. O sejam o mote para a construção de conhecimentos
inusitado, para nós, está relativo ao olhar atento e não o objetivo final de uma experimentação
para aqueles que protagonizaram e protagonizam educativa no campo do patrimônio. O patrimônio,
territorialidades marcadas pelas ancestralidades nessa perspectiva, deixa de ser compreendido
locais, especialmente indígenas e afro-brasileiras. como um produto cultural único e acabado e passa
Tratar da decolonização dos espaços de a ser perseguido através da forma como os
memória, como intentamos fazer na escrita que ora usuários o operam.
encerramos, requer o direcionamento de nossos
saberes e sensibilidades para a vida cotidiana e Notas
para os sujeitos sociais envolvidos nas relações ou
nos fatos que decidimos destacar. Voltamos a dizer 1 I Episódio vivido e narrado por Carla Beatriz
que, recorrendo aos estudos de autores como Meinerz, dezembro de 2015.
Aníbal Quijano (2005), Walter Mignolo (2003) e
Catherine Walsh (2013), defendemos uma
educação decolonial nos museus, mantendo em Referências
tensão a narrativa e as vozes que as exposições
apresentam. Que sujeitos são os protagonistas de
nossas escolhas? Quem escolhe conosco? Tais BARBOSA, N.R. O não-lugar do negro no acervo
perguntas evidenciam nossa posição de que os museológico: problemas e perspectivas. In:
espaços de memória devem ser pensados em GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado; RAMOS,
relação direta com as comunidades, os intelectuais Francisco Régis Lopes (Org.). Futuro do retérito:
e os grupos sociais organizados, particularmente escrita da história e história do museu. Fortaleza:
no caso das presentes reflexões, indígenas e negros. Instituto Frei Tito de Alencar, 2010. p. 276- 293.
O protagonismo desses grupos é fundamental para
que se desestabilize a colonialidade do poder e do BITTENCOURT, I.C. Os percursos do negro em
saber, uma vez que o conceito de raça é um Porto Alegre: territorialidade negra urbana. In:
conceito central nos estudos de colonialidade que VILASBOAS, Ilma Silva; BITTENCOURT,
nos inspiram. Essa mesma afirmação, relativa ao Iosvaldyr Carvalho; SOUZA, Vinícius Vieira de.
protagonismo das comunidades locais, é válido Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre.
para os espaços educativos escolares. Porto Alegre: Ed. Porto Alegre, 2010, p. 9-74.
O Projeto Territórios Negros, foco de
nossas práticas educativas em análise, ao destacar CERTEAU, M. A Cultura no Plural. São Paulo:
lugares e espaços de memórias praticados pelos Ed. Papirus, 1995. _____. A Invenção do
afro-brasileiros em nossa cidade, e as ações de Cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Ed.
ensino e extensão a ele correlatas, contribuem na Vozes, 2014.
construção de outras relações com a cidade e seu
patrimônio cultural. Estamos num contexto de CUNHA, M. N.B. Teatro de memórias, palco de
continuidades das lutas por reconhecimento de esquecimentos: culturas africanas e das diásporas
uma pluralidade sociocultural que positive as negras em exposições. Tese apresentada no
etnias de ancestralidades não europeias e suas Programa de Pós-Graduação PUC/SP, 2006.
memórias em nosso país. Reiteramos que,
construir monumentos, conservar ou destruir DIEHL, I. L. Processos de identificação aluno-
espaços, registrar bens materiais e imateriais, são ação patrimonial: uma experiência a partir dos
processos que implicam escolhas e produzem territórios negros de Porto Alegre. Artigo
sentidos que escapam às intenções de seus apresentado para conclusão da disciplina de
propositores, mas que dificilmente estão isentos de Estágio de Docência em História III – educação

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Educação, patrimônio cultural e relações étnico-raciais: possibilidades para a decolonização dos saberes 33

Patrimonial do Curso de História da UFRGS, Eurocentrismo e América Latina. In: A


2014. colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências
sociais. Perspectivas latino-americanas. CLACSO,
GOMES, M. A educação patrimonial como arena Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales,
da disputa pela consciência antirracista. Artigo 2005.
apresentado para conclusão da disciplina de
Estágio de Docência em História III – educação Fórum virtual na plataforma moodle/UFRGS do
Patrimonial do Curso de História da UFRGS, Curso de Extensão Territórios Negros:
2015. patrimônios afro-brasileiros em Porto Alegre,
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de Porto Alegre. Artigo apresentado para RUPPENTHAL, F. R. Um percurso possível: uma
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QUIJANO, A. Colonialidade do poder,

Sobre as autoras

Carmem Zeli de Vargas Gil é Professora da Faculdade de Educação e do Mestrado Profissional em Ensino
de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Possui doutorado e mestrado em Educação pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Realizou estágio pós-doutoral na UBA/Argentina. Possui

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34 Carmem Zeli de Vargas Gil, Carla Beatriz Meinerz

graduação em História pela Faculdade Cenecista de Osório.

Carla Beatriz Meinerz é Professora adjunta do Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de


Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Possui mestrado e doutorado em Educação pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, graduou-se em História na mesma Universidade.

Recebido em dezembro de 2016.


Aprovado em março de 2016.

Horizontes, v. 35, n. 1, p. 19-34, jan./abr. 2017

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