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SERMÃO DE SÃO SEBASTIÃO

 Os bem-aventurados da terra, e seus quatro dotes. Quão parecidos são os espíritos bem-
aventurados da terra com os corpos bem-aventurados do céu.
A bem-aventurança do céu é bem-aventurança descoberta e visível; a bem-aventurança da terra
é bem-aventurança invisível e encoberta. A do céu é visível e descoberta, entre os resplandores da glória; a
da terra é invisível e encoberta, debaixo dos acidentes da pena: segue uma e outra bem-aventurança as
condições e estados do seu objeto. O objeto da bem-aventurança é Deus; mas Deus no céu é descoberto à
vista, e Deus na terra é encoberto à fé.
 De quatro maneiras encoberto nos representa o Evangelho aos bem-aventurados, e em outras
quatro considerações - se bem o advertimos - foi São Sebastião, o Encoberto: encoberto na vida e
encoberto na morte; encoberto na fé e encoberto nas obras; e as estas duas combinações de encobrir
reduziremos toda a prova do nosso assunto. Foi São Sebastião encoberto na vida e encoberto na morte: por
quê? Porque encobriu a realidade da vida debaixo da opinião da morte, e encobriu a aparência da morte
debaixo da realidade da vida. Foi também São Sebastião encoberto na fé e encoberto nas obras: por quê?
Porque encobriu a verdade da fé com a política das obras, e encobriu a política das obras com a
dissimulação da fé. Assim com a Igreja nos deu o assunto no Evangelho, que é a primeira fonte da verdade,
assim nos há de dar a prova nas lições que reza do santo, que é a segunda.
 Foi São Sebastião, o Encoberto, porque encobriu a realidade da vida debaixo da opinião da
morte. Na opinião de todos era Sebastião morto; mas na verdade e na realidade estava Sebastião vivo;
ferido sim, e malferido, mas, depois das feridas curado; deixado sim por morto de dia na campanha, mas de
noite retirado dela; com vozes sim de sepultura e de sepultado; mas vivo, são, valente, e tão forte como de
antes era. - Assim saiu Sebastião daquela batalha, e assim foi achado depois dela: na opinião morto, mas na
realidade vivo:  - Atam a São Sebastião a um tronco - escusada diligência, para quem estava mais atado a
Cristo, mais preso na sua fé, e mais seguro na sua constância - voam as setas, empregam-se os tiros,
despejam-se as aljavas, desaparece o corpo, pregam-se já umas setas em outras setas: quem não crerá que
está morto Sebastião? Assim o crêem os bárbaros, que já se retiram; assim o crê o tirano, que já está
satisfeito; assim o choram os amigos, assim o lamenta a Igreja, assim o geme e suspira a cristandade; mas
que importa que Sebastião esteja morto na opinião, se estava vivo na realidade? Isto é ser Sebastião, o
Encoberto, porque encobriu a realidade da vida debaixo da opinião da morte.
  Mandou o tirano imperador que atormentassem a Sebastião até que morresse; enganou-se o
bárbaro, porque para os que dão a vida por Cristo não há tormento que chegue a matar:  - Obedeceram os
algozes furiosamente, e quando viram expirar a Sebastião tiveram-no por morto; mas também se
enganaram os néscios, porque os que dão a vida por Cristo só nos olhos dos néscios podem morrer:  - E
assim, no mesmo teatro onde Sebastião despido, chagado, envolto em seu sangue, parecia que estava
morto, aí mesmo perseverava, aí mesmo se conservava, e aí mesmo triunfava vivo. Porque, como
milagroso encoberto na vida e na morte, debaixo da aparência da morte encobria a realidade da vida:
 
Notável argumento foi aquele de Cristo contra os saduceus:  Deus é, Deus de Abraão, Deus de
Isac, Deus de Jacó; logo não é Deus dos mortos, senão dos vivos. - Deus é Deus de vivos, porque os santos,
como Abraão, Isac e Jacó, que vivem com Deus, e morrem para Deus, só passam pela morte na aparência,
e sempre conservam a vida na realidade. Na aparência, para os olhos da carne, são mortos; na realidade,
para os olhos do espírito, são vivos:  - Esta foi a razão altíssima por que, dobrando Deus a Jó na segunda
fortuna tudo o que tinha perdido, lhe não dobrou os filhos; pois, se Deus premeia a paciência e constância
de Jó com lhe restituir em dobro a fazenda, os gados, os escravos e criados, os filhos, que era o que mais
estimava, por que lhos não dá também em dobro? Porque Deus não dobrou a Jó senão o que tinha perdido,
e o que lhe tinham morto os inimigos; e os filhos de Jó nem ele os perdeu, nem lhes mataram. É verdade
que os mensageiros lhe vieram dizer que todos ficavam mortos; mas Deus, em lhes não restituir, quis dar-
lhe um seguro de que estavam vivos. Se morreram fora da graça e serviço de Deus, então era verdade certa
e triste, em todo o sentido, que estavam mortos; mas como tinham passado da vida como verdadeiros filhos
de tão grande servo de Deus como Jó, ainda que debaixo da ruína da casa pereceram mortos na aparência,
ficaram sempre vivos na realidade. E se os que morrem em Deus, e para Deus, não passam mais que pelas
aparências da morte, conservando sempre as realidades da vida, que direi de Sebastião, aquele fidelíssimo e
animosíssimo servo, que não só acabou a vida em Deus, e para Deus, senão que, à força de tantos, tão
esquisitos e tão repentinos tormentos, a deu por Deus? Não deixou a vida a Sebastião no fim de seus anos,
como deixou a Abraão, Isac e Jacó; não lhe cortou o fio da vida um caso inopinado, como aos filhos de Já;
mas ele a deu a Deus voluntariamente quando mais inteira; ele a deixou cortar por Deus quando mais
florida. Por isso, meu invictíssimo encoberto, por mais que Diocleciano vos mande matar, por mais que os
algozes vos deixem por morto, por mais que Irene vos queira sepultar, por mais que vós mesmo reveleis o
lugar de vosso sepulcro, e por mais que vossas relíquias, como despojos da morte, estejam repartidas pelo
mesmo, eu, contudo, vos reconheço vivo, vos confesso vivo, vos reverencio vivo, e espero de vós favores
como de vivo, porque debaixo destas aparências da morte conservais e encobris a realidade da vida:  
Foi também Sebastião encoberto na fé e encoberto nas obras, porque, como dizíamos, encobriu
a verdade da fé com a política das obras e encobriu a política das obras com a dissimulação da fé:   onde se
devem notar muito aquelas palavras - Era cristão, mas cristão encoberto: Oh! que grande cristão por
dentro! Oh! que grande político por fora! Sebastião, visto por fora, e entendido por dentro, urna coisa era o
que era, e outra coisa era o que parecia: parecia um cortesão do palácio da terra, e era um peregrino da
corte do céu; parecia um capitão que militava debaixo das águias romanas, e era um soldado que servia
debaixo da bandeira da cruz; parecia um grande privado de Diocleciano, e era o maior confidente de Cristo.
Sua fortuna, seu hábito e traje, seu nome, tudo era suposto: o nome era ironia. Debaixo do nome de
Sebastião - que significava Augusto - encobria o príncipe a quem servia; debaixo das armas e do bastão
encobria a milícia que professava; debaixo da privança e graça do imperador encobria a graça de Cristo, de
que só vivia. Toda a sua vida era uma dissimulação da vista, toda era um enigma da opinião, e toda era uma
metáfora do que não era, porque, parecendo que toda se empregava em dar a César, só dava a Deus o que
era de Deus. Assim servia Sebastião encoberto a Cristo, porque entendia - e cuidava bem - que o servia
mais encoberto que declarado.

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