Sermão 147: «Muitos profetas e justos desejaram ver
o que vós vedes»
Sermão 99: «O fermento que faz levedar toda a
humanidade»
«O jejum dos amigos do Esposo»
Sermão 30: «Come com os publicanos e com os
pecadores!»
Sermão 81: «Ele próprio surgiu no meio deles e
disse-lhes: 'A paz esteja convosco'.»
Sermão 50: «Imediatamente, a barca atingiu a
margem para onde iam»
Sermão 37: «O Sinal de Jonas»
«Jesus aproximou-se dela e tomou-a pela mão» Sermão 18 Quem escutou com atençã o o evangelho deste dia sabe por que razã o o Senhor do cé u entrou numa humilde casa daquela povoaçã o. Uma vez que, por bondade, veio socorrer todos os homens, nã o espanta que ele entre em todos os lugares. "Tendo chegado a casa de Pedro, Jesus viu a sogra dele de cama, com febre" (Mt 8,14). Eis o motivo que conduziu Jesus a casa de Pedro: nã o o desejo de se pô r à mesa mas a debilidade daquela doente; nã o a necessidade de tomar uma refeiçã o mas a ocasiã o de realizar uma cura. Veio exercer o seu poder divino e nã o tomar parte de um banquete com homens, porque nã o era vinho mas lá grimas o que se derramava em casa de Pedro... Cristo nã o entrou, pois, naquela casa para tomar o seu alimento, mas para restaurar a vida. Deus anda à procura dos homens, nã o dos bens humanos. Quer dar bens celestes; nã o deseja encontrar as coisas terrestres. Assim, Cristo veio cá abaixo para nos tomar com ele; nã o veio procurar as coisas que nó s possuimos. ***** «Até que tudo tenha levedado» Sermão 99 Busquemos o sentido profundo desta pará bola. A mulher que tomou o fermento é a Igreja; o fermento que ela tomou é a revelaçã o da doutrina celeste; as trê s medidas em que misturou o fermento sã o a Lei, os Profetas e os Evangelhos, onde o sentido divino mergulha e se esconde sob termos simbó licos, a im de ser agarrado pelo iel e escapar ao in iel. Quanto à s palavras "até que tudo tenha levedado", dizem respeito ao que diz o apó stolo Paulo: "Imperfeita é a nossa ciê ncia, imperfeita també m a nossa profecia. Quando vier o que é perfeito, desaparecerá o que é imperfeito" (1 Co 13,9). O conhecimento de Deus está agora na massa: espalha-se nos sentidos, enche os coraçõ es, aumenta as inteligê ncias e, tal como todo o ensinamento, alarga-os, eleva-os e desenvolve-os até à s dimensõ es da sabedoria celeste. Tudo será levedado em breve. Quando? Na segunda vinda de Cristo. ***** «Ele come com os publicanos e os pecadores!» Sermão 30: Pl 52, 285-286 Deus é acusado de se vergar para o homem, de se sentar perto do pecador, de ter fome da sua conversã o e sede do seu regresso, de tomar o alimento da misericó rdia e o cá lice da benevolê ncia. Mas Cristo, meus irmã os, veio a esta refeiçã o; a Vida veio ao seio dos seus convidados para que, condenados à morte, vivam com a Vida; a Ressurreiçã o prostrou-se para que aqueles que jaziam se levantem dos seus tú mulos; a Bondade baixou-se para elevar os pecadores até ao perdã o; Deus veio ao homem para que o homem chegue até Deus; o juiz veio à refeiçã o dos culpados para desviar a humanidade da sentença de condenaçã o; o mé dico veio junto dos doentes para os restabelecer comendo com eles; o Bom Pastor inclinou o ombro para trazer a ovelha perdida ao aprisco da salvaçã o. «Ele come com os publicanos e os pecadores!» Mas quem é pecador, senã o aquele que recusa ver-se como tal? Nã o será afundar-se no seu pecado e, a bem dizer, identi icar-se com ele, o deixar de se reconhecer pecador? E quem é injusto, senã o aquele que se acha justo?... Vamos, fariseu, confessa o teu pecado, e poderá s vir à mesa de Cristo; Cristo, por ti, far-se-á pã o, esse pã o que será partido para o perdã o dos teus pecados; Cristo tornar-se- á , por ti, no cá lice, esse cá lice que será derramado para a remissã o das tuas faltas. Vamos, fariseu, compartilha a refeiçã o dos pecadores, e Cristo compartilhará a tua refeiçã o; reconhece-te pecador, e Cristo comerá contigo; entra com os pecadores no festim do teu Senhor, e poderá s deixar de ser pecador; entra com o perdã o de Cristo na casa da misericó rdia. ***** «Tal como Herodes, queremos ver a Jesus» Sermão 147T O amor nã o admite nã o ver aquilo que ama. Nã o consideraram todos os santos ser pouca coisa aquilo que obtinham quando nã o viam a Deus? … Por isso Moisé s ousa dizer: “Se alcancei graça aos teus olhos, revela-me o teu rosto” (Ex 33, 13). E diz o salmista : “Revela-nos o teu rosto” (Sl 79,4). Nã o era por isso que os pagã os construı́am ı́dolos? No seio do pró prio erro, eles viam com os olhos o que adoravam. Deus sabia, pois, que os mortais se atormentavam no desejo de o ver. O que ele escolheu para se revelar era grande na terra e nã o era o mais pequeno nos cé us. Porque o que, na terra, Deus fez semelhante a si, nã o podia icar sem honra nos cé us : “Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança, diz» (Gn 1, 26)… Que ningué m pense, pois, que Deus fez mal em vir aos homens atravé s de um homem. Ele fez-se carne entre nó s para ser visto por nó s. ***** «Não temais» Sermão 80 «Eu sei que procurais Jesus, o cruci icado. Nã o está aqui". Assim falava o anjo à s mulheres, ele que tinha aberto o tú mulo por essa razã o. Nã o tinha sido para fazer sair Cristo, que já nã o estava lá , mas para lhes fazer saber que Cristo já nã o estava lá . "Ressuscitou, tal como tinha dito... Vinde ver o lugar onde o Senhor tinha sido depositado" (Mt 28,5-6). Vinde, mulheres, vinde. Vede o lugar onde tı́nheis depositado Adã o, onde o gé nero humano tinha sido sepultado. Comprendei que o seu perdã o foi tã o grande quã o grande tinha sido a injustiça feita ao Senhor... Quando as mulheres entram no sepulcro, tomam parte no acto de sepultar Jesus, tornam-se participantes da pró pria Paixã o. Ao sairem do sepulcro, erguem-se na fé antes de ressuscitarem na cerne. "Deixaram o tú mulo, tré mulas e cheias de alegria"... A Escritura diz: "Servi o Senhor com temor e estremecei de jú bilo por ele» (Sl 2,11). «E Jesus veio ao seu encontro e disse-lhes: 'Salve!'» Cristo vem ao encontro daquelas que correm com fé , para que reconheçam com os seus olhos Aquele em quem tinham acreditado pela fé . Quer confortar com a sua presença aquelas que tinham icado a tremer pelo que lhes tinha sido dito... Vem ao seu encontro como um mestre, saú da-as como um familiar, devolve-lhes a vida por amor, guarda-as pelo temor. Saú da-as para que o sirvam amorosamente, para que o receio nã o as faça fugir. "Salve!" "Elas aproximaram-se e agarraram-lhe os pé s"... "Salve!", quer dizer: Toquem-me. Quis ser agarrado, Ele que suportou que o amarrassem...
Diz-lhes: "Nã o temais". O que o anjo tinha dito, o Senhor di-lo
també m. O anjo tinha-as con irmado, Cristo vai torná -las mais fortes ainda. "Nã o temais. Ide anunciar aos meus irmã os que devem ir para a Galileia. Lá me verã o". Erguendo-se de entre os mortos, Cristo tomou consigo o homem, nã o o abandonou. Chama- lhes, por isso, seus irmã os, à queles que pelo corpo tinha tornado seus irmã os de sangue; chama-lhes irmã os, à queles que adoptou como ilhos de Seu Pai. Chama-lhes irmã os, à queles que, como herdeiro pleno de bondade, quis tornar seus co-herdeiros. ***** «Deus à procura de uma só ovelha para salvação de todas» Sermão 168, 4-6 O facto de encontrarmos um objecto que tı́nhamos perdido enche-nos de uma alegria nova cada vez que ocorre. E esta alegria é maior do que a que experimentá vamos, antes de o perder, quando aquele objecto estava bem guardado. Mas a pará bola da ovelha perdida fala mais da ternura de Deus do que da maneira como os homens habitualmente se comportam. E ela exprime uma verdade profunda. Abandonar o que tem importâ ncia por amor do que há de mais humilde é pró prio do poder divino, nã o da cobiça humana. Porque Deus faz mesmo existir o que nã o é ; parte à procura do que está perdido, guardando o que deixou icar para trá s, e encontra o que se tinha transviado sem perder o que está à sua guarda. E por isso que este pastor nã o é da terra mas do cé u. A pará bola nã o é de forma alguma a representaçã o de obras humanas, mas esconde misté rios divinos, como é demonstrado cabalmente pelos nú meros que menciona: "Se um de vó s, diz o Senhor, tiver cem ovelhas e perder uma..." Como vedes, a perda de uma só ovelha magoou o pastor, tanto como se o rebanho inteiro, privado da sua protecçã o, se tivesse metido por um caminho errado. E por isso que, deixando as outras noventa e nove, ele parte à procura de uma só , nã o se ocupa senã o de uma só , a im de as encontrar e, nela, as salvar a todas. ***** «Então hão-de jejuar» Sermão 81 Há trê s actos, meus irmã os, em que a fé se sustenta, a piedade consiste e a virtude se manté m: a oraçã o, o jejum e a misericó rdia. A oraçã o bate à porta, o jejum obté m, a misericó rdia recebe. Oraçã o, misericó rdia e jejum sã o uma só coisa, dando-se mutuamente a vida. Com efeito, o jejum é a alma da oraçã o e a misericó rdia é a vida do jejum. Que ningué m os divida, pois nã o podem ser separados. Quem pratica apenas um ou dois deles, esse nada tem. Assim, pois, aquele que reza tem de jejuar, e aquele que jejua tem de ter piedade. Ele que escute, o homem que pede e que, ao pedir, deseja ser escutado; aquele que nã o se recusa a ouvir os outros quando lhe pedem alguma coisa, esse faz-se ouvir por Deus. Aquele que pratica o jejum tem de compreender o jejum; isto é , tem de ter compaixã o do homem que tem fome, se quer que Deus tenha compaixã o da sua pró pria fome. Aquele que espera obter misericó rdia tem de ter misericó rdia; aquele que quer bene iciar da bondade tem de praticá -la; aquele que quer que lhe dê em tem de dar. […] Sê pois a norma da misericó rdia a teu respeito: se queres que tenham misericó rdia de ti de certa maneira, em certa medida, com tal prontidã o, sê tu misericordioso com os outros com a mesma prontidã o, a mesma medida e da mesma maneira. A oraçã o, a misericó rdia e o jejum devem, pois, constituir uma unidade, para nos recomendarem diante de Deus, devem ser a nossa defesa, sã o uma oraçã o a nosso favor com este triplo formato. ***** «Cristo cura-nos a paralisia dos membros e do coração» Homilia sobre o mistério da encarnação A encarnaçã o de Cristo nã o é normal, é milagrosa; nã o é conforme à razã o, mas ao poder divino; prové m do Criador, e nã o da natureza; nã o é corrente, é singular; é divina, e nã o humana. Nã o se deu por necessidade, mas por poder. […] Foi misté rio de fé , renovaçã o de salvaçã o para o homem. Aquele que, sem ter nascido, formou o homem com barro intacto (Gen 2, 7), ao nascer, fez um homem a partir de um corpo intacto; a mã o que Se dignou tomar a argila para nos criar dignou-Se també m tomar a nossa carne para nos recriar. […] Homem, por que te desprezas assim, tu que é s tã o precioso aos olhos de Deus? Por que te desonras a tal ponto, quando Deus te honra desta maneira? Por que procuras saber como foste feito, e nã o queres saber em vista de que foste feito? Nã o compreendes que todo este mundo que conheces foi feito para ti? […] Cristo encarna para devolver à natureza corrompida a sua integridade; assume a condiçã o de criança, aceita ser alimentado, percorre todas as idades, a im de restaurar a idade ú nica, perfeita e duradoura que Ele pró prio tinha criado. Ele carrega o homem, para que o homem nã o possa voltar a cair. Torna celestial aquele que tinha criado terreno; dá um espı́rito divino à quele que tinha criado humano. E, deste modo, eleva-o por inteiro a Deus, a im de nada deixar nele que pertença ao pecado, à morte, ao labor, à dor, à terra. Eis o que nos trouxe Nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo Deus, vive e reina com o Pai, na unidade do Espı́rito Santo, agora e para sempre, e pelos sé culos dos sé culos. ***** «O homem levantou-se e seguiu-o» Sermão 30 Sentado no seu posto de cobrança, este infeliz publicano estava numa situaçã o pior do que o paralı́tico de que vos falei no outro dia, que jazia no seu leito (Mc 2,1s). Um estava atingido de paralisia no seu corpo, o outro na sua alma. No caso do primeiro, todos os membros estavam disformes; no caso do segundo, era o juı́zo no seu todo que estava confundido. O primeiro jazia, prisioneiro da sua carne; o outro estava sentado, cativo de alma e de corpo. Era contra a sua vontade que o paralı́tico sucumbia aos sofrimentos; o publicano, ele, estava voluntariamente escravo do mal do pecado. Este ú ltimo, inocente a seus pró prios olhos, era acusado de cupidez pelos outros; o primeiro, no meio das suas feridas, sabia-se pecador. Um acumulava lucro sobre lucro, e todos eram pecados; o outro apagava os seus pecados gemendo nas suas dores. Por isso sã o justas estas palavras dirigidas ao paralı́tico: “Meu ilho, os teus pecados estã o perdoados”, porque pelos seus sofrimentos ele compensava as suas faltas. Quanto ao publicano, ele escutou estas palavras: “Vem, segue-me”, quer dizer: “Tu reparará s, seguindo-me, tu que te perdeste seguindo o dinheiro”. Algué m dirá : porque é que o publicano, aparentemente mais culpado, recebe um dom maior? Ele torna-se imediatamente apó stolo… Ele pró prio recebeu o perdã o, e concede a outros a remissã o dos seus pecados; ele ilumina toda a terra com a luz da pregaçã o do Evangelho. Quanto ao paralı́tico, é julgado digno de receber apenas o perdã o. Queres saber porque é que o publicano recebeu mais graças? E que, segundo uma palavra do apó stolo Paulo: “Onde abundou o pecado superabundou a graça” (Rom 5,20). ***** «Vendo a fé deles» Sermão 50 “Ele foi para a sua cidade; apresentaram-lhe um paralı́tico, deitado num catre” (Mt 9,1). Jesus, diz o Evangelho, ao ver a fé daquela gente, disse ao paralı́tico: “Filho, tem con iança, os teus pecados estã o perdoados”. O paralı́tico ouve este perdã o e permanece mudo. Nem sequer agradece. Desejava a cura do seu corpo mais do que a da sua alma. Lamentava os males do seu corpo doente, mas os males eternos da sua alma, ainda mais doente, nã o os carpia. E que para ele a vida presente era mais preciosa do que a vida futura. Cristo tinha razã o ao ter em conta a fé dos que lhe apresentaram o doente e nã o ter em nenhuma conta a patetice deste. Devido à fé doutrem, a alma do paralı́tico ia ser curada antes do seu corpo. “Vendo a fé deles”, diz o Evangelho. Notai aqui, irmã os, que Deus nã o se incomoda com o que querem os homens insensatos, nã o espera encontrar a fé nos ignorantes, nã o analisa os desejos tolos de um invá lido. Em contrapartida, nã o recusa vir em auxı́lio da fé de outrem. Esta fé é um presente da graça e ela concilia-se com a vontade de Deus. ***** «Muitos profetas e justos desejaram ver o que vós vedes» Sermão 147 Quando viu o mundo transtornado pelo medo, Deus pô s em acçã o o seu amor para o chamar a Si, a sua graça para o convidar, o seu afecto para o abraçar. Aquando do dilú vio, […] chama Moisé s a gerar um mundo novo, encoraja-o por meio de doces palavras, dá - lhe uma con iança de predilecto, instrui-o com bondade sobre o presente e consola-o com a sua graça relativamente ao futuro. […] Participa no seu labor e encerra na arca o germe do mundo inteiro, a im de que o amor pela sua aliança banisse o medo. […] Em seguida, Deus chama Abraã o do meio das naçõ es, eleva o seu nome e faz dele pai dos crentes. Acompanha-o pelo caminho, protege-o no estrangeiro, cumula-o de riquezas, honra-o com vitó rias, con irma-o com as suas promessas, arranca-o à s injustiças, consola-o na sua hospitalidade e maravilha-o com um nascimento inesperado, a im de que, atraı́do pela doçura do amor divino, ele aprenda a […] adorar a Deus amando-O e já nã o temendo-O. Mais tarde, Deus consola Jacob em f uga por meio de sonhos. No regresso, provoca-o para um combate e, durante a luta, estreita-o nos braços, a im de que ele ame o pai dos combates e deixe de O temer. Depois, chama Moisé s e fala-lhe com o amor de um pai, para o convidar a libertar o seu povo. Em todos estes acontecimentos, a chama da caridade divina abrasou o coraçã o dos homens […] e estes, de alma ferida, começaram a desejar ver a Deus com os olhos da carne. […] O amor nã o admite nã o ver aquilo que ama. Nã o é verdade que todos os santos consideraram pouca coisa tudo quanto obtinham quando nã o viam a Deus? […] Que ningué m pense, pois, que Deus fez mal em vir ter com os homens por meio de um homem. Ele tomou carne entre nó s para ser visto por nó s. ***** «O fermento que faz levedar toda a humanidade» Sermão 99 Cristo comparava há pouco o Seu reino a um grã o de mostarda; agora, identi ica-o com fermento. Ele contava que um homem semeara uma sementinha e nascera uma grande á rvore; agora a mulher incorpora uma pitada de fermento para fazer crescer a sua massa. Na verdade, como diz o apó stolo Paulo: «Diante do Senhor, a mulher é insepará vel do homem, e o homem da mulher» (1Cor 11,11)... Nestas pará bolas, Adã o, o primeiro homem, e Eva, a primeira mulher, sã o conduzidos da á rvore do conhecimento do bem e do mal ao sabor ardente dessa á rvore da mostarda do evangelho... Eva recebera do demó nio o fermento da má fé ; e essa mulher recebe de Deus o fermento da fé ... Eva, pelo fermento da morte, corrompera, na pessoa de Adã o toda a massa do gé nero humano; uma outra mulher renovará na pessoa de Cristo, pelo fermento da ressurreiçã o, toda a massa humana. Depois de Eva, que amassou o pã o dos gemidos e do suor (Gn, 3,19), esta cozerá o pã o da vida e da salvaçã o. Depois daquela que foi, em Adã o, a mã e de todos os mortos, esta será em Cristo a «verdadeira mã e de todos os vivos» (Gn, 3,20). Pois se Cristo quis nascer, foi para que nessa humanidade em que Eva semeou a morte, Maria restaurasse a vida. Maria oferece-nos a perfeita imagem desse fermento, ela propõ e- nos a pará bola, quando em seu seio recebe do cé u o fermento do Verbo e o derrama em seu seio virginal sobre a carne humana, que digo eu? Sobre uma carne que, no seu seio virginal, é toda celeste e que ela faz, assim, levedar. ***** «O jejum dos amigos do Esposo» “Porque é que nó s e os fariseus jejuamos freqü entemente e os teus discı́pulos nã o jejuam?” Porquê ? Porque, para vó s, o jejum é uma questã o de lei e nã o de dom espontâ neo. Em si mesmo, o jejum nã o tem valor, o que conta é o desejo daquele que jejua. Que proveito pensais tirar, vó s que jejuais constrangidos e forçados? O jejum é uma charrua maravilhosa para lavrar o campo da santidade: revolve os coraçõ es, desenraiza o mal, arranca o pecado, enterra o vı́cio, semeia a caridade; alimenta a fecundidade e prepara a colheita da inocê ncia. Quanto aos discı́pulos de Cristo, eles estã o postos mesmo no coraçã o do campo maduro da santidade; recolhem os feixes das virtudes; alimentam-se do Pã o da nova colheita; por isso, nã o podem praticar jejuns que já nã o tê m valor... “Porque é que os teus discı́pulos nã o jejuam?” O Senhor responde-lhes: “Os amigos do Esposo poderã o jejuar, enquanto o Esposo está com eles?” Aquele que toma esposa deixa de lado o jejum, abandona a austeridade; entrega-se inteiramente à alegria, participa nos banquetes; mostra-se afá vel, amá vel e alegre; faz tudo o que lhe inspira a sua afeiçã o pela noiva. Cristo celebrava nessa altura as suas bodas com a Igreja: por isso, ele aceitava tomar parte em refeiçõ es, nã o se recusava aos que o convidavam; cheio de benevolê ncia e de amor, mostrava-se humano, acessı́vel, amá vel. E que ele queria unir o homem a Deus e fazer dos seus companheiros membros da famı́lia divina. ***** «Come com os publicanos e com os pecadores!» Sermão 30 Deus é acusado de se inclinar sobre o homem, de se sentar perto do pecador, de ter fome de conversar com ele e sede do seu regresso, de tomar o alimento da misericó rdia e o cá lice da benevolê ncia. Mas Cristo, meus irmã os, veio a este banquete; a Vida veio ao encontro destes convivas para que, condenados à morte, vivam com a Vida; a Ressurreiçã o reclinou-se para que os que jaziam se ergam dos seus tú mulos; a Bondade humilhou-se para elevar os pecadores até ao perdã o; Deus veio até ao homem para que o homem chegue até Deus; o juiz veio à mesa dos culpados para poupar a humanidade da sentença de condenaçã o; o mé dico veio a casa dos doentes para os restabelecer comendo com eles; o Bom Pastor inclinou o ombro para trazer a ovelha perdida ao redil da salvaçã o. "Ele come com os publicanos e com os pecadores!" Mas quem é pecador senã o o que recusa ver-se como tal? Nã o é afundar-se no seu pecado e mesmo identi icar-se com ele, o facto de deixar de se reconhecer pecador? E quem é injusto senã o o que se considera justo?... Vamos, fariseu, confessa o teu pecado e poderá s vir à mesa de Cristo; Cristo far-se-á pã o para ti, esse pã o que será partido para perdã o dos teus pecados; Cristo tornar-se-á para ti o cá lice, esse cá lice que será derramado para remissã o das tuas faltas. Vamos, fariseu, partilha a refeiçã o dos pecadores e Cristo partilhará a tua refeiçã o; reconhece-te pecador e Cristo comerá contigo; entra com os pecadores no festim do teu Senhor e poderá s deixar de ser pecador; entra com o perdã o de Cristo na casa da misericó rdia. ***** «Ele próprio surgiu no meio deles e disse- lhes: 'A paz esteja convosco'.» Sermão 81 A Judeia rebelde tinha expulsado a paz da terra e lançado o universo no caos primordial. També m entre os discı́pulos a guerra causava estragos; a fé e a dú vida atacavam-se furiosamente uma à outra. Os coraçõ es destes homens, onde a tempestade rugia, nã o eram capazes de encontrar uma enseada de paz, um porto de calma. Perante este espectá culo, Cristo, que sonda os coraçõ es, que manda nos ventos, que domina as tempestades, que, com um simples gesto, transforma a borrasca em cé u sereno, irmou-os na sua paz, dizendo: "A paz esteja convosco! Sou Eu; nã o temais. Sou Eu, o cruci icado, o morto, o sepultado. Sou Eu, o vosso Deus, feito homem por vó s. Sou Eu. Nã o sou um espı́rito revestido de corpo, mas a pró pria verdade feita carne. Sou Eu, vivo entre os mortos, descido dos cé us ao coraçã o dos infernos. Sou Eu, de quem a morte fugiu, a quem os infernos temeram. No seu pavor, o inferno proclamou-Me Deus. Nã o receies, Pedro, tu que me negaste, nem tu, Joã o, tu que fugiste, nem to dos vó s que Me abandonastes, que só pensastes em Me trair, que ainda nã o credes em Mim, embora Me vejais. Nã o receeis, sou Eu mesmo. Chamei-vos pela graça, escolhi-vos pelo perdã o, sustentei-vos com a Minha compaixã o, apoiei-vos com o Meu amor, e tomo-vos hoje, pela Minha pura bondade." ***** «Imediatamente, a barca atingiu a margem para onde iam» Sermão 50 Cristo sobe a uma barca: nã o foi entã o Ele que pô s a descoberto o leito do mar depois de lhe ter afastado as á guas, para que o povo de Israel passasse a pé enxuto, como que por um vale? (Ex 14,29) Nã o foi Ele que tornou irmes as vagas do mar debaixo dos pé s de Pedro, de forma a que a á gua fosse para os seus passos um caminho só lido e seguro? (Mt 14,29) Ele sobe para uma barca. Para atravessar o mar deste mundo até ao im dos tempos, Cristo sobe para a barca da sua Igreja, para conduzir os que crê em nele numa travessia tranqü ila até à pá tria celeste e fazer cidadã os do seu Reino aqueles com quem comunga na sua humanidade. Na realidade, Cristo nã o precisa da barca, mas a barca precisa de Cristo. Com efeito, sem este piloto celeste, a barca da Igreja, agitada pelas ondas, jamais chegaria ao porto. ***** «O Sinal de Jonas» Sermão 37 Toda a histó ria de Jonas no-lo mostra como uma perfeita igura do Salvador… Jonas desceu a Joppe para tomar um barco com destino a Tarsis… O Senhor desceu do cé u à terra, a divindade à humanidade; o poder soberano desceu à nossa misé ria… para embarcar no navio da sua Igreja… E o pró prio Jonas quem toma a iniciativa de ser lançado à s ondas: «Pegai em mim, diz ele, e lançai-me ao mar!» Anuncia assim a paixã o voluntá ria do Senhor. Quando a salvaçã o de uma multidã o depende da morte de uma ú nica pessoa, essa morte está nas mã os dela, que pode livremente adiá -la ou, entã o, adiantá -la a im de evitar o perigo. Todo o misté rio do Senhor está nisto pre igurado. A morte nã o é para Ele uma necessidade: procede da sua livre escolha. Ouçamo-l’O: «Tenho poder de oferecer a vida e poder de a retomar: ningué m ma tira» (Jo 10, 18) … Imaginemos o enorme peixe, imagem horrı́vel e cruel do inferno. Ao devorar o profeta, sente a força do Criador… e com temor, oferece alojamento nas suas entranhas a esse viajante vindo do alto… Depois de trê s dias… devolve-o à luz do dia, para dar aos pagã os aquele que tinha tirado aos judeus. E este o sinal, o ú nico sinal, que Cristo consentiu dar aos judeus a im de lhes fazer compreender que a gló ria que eles pró prios esperavam de Cristo se iria voltar també m para os Gentios… Os ninivitas sã o igura das naçõ es que acreditaram… Que felicidade a nossa, meus irmã os! O que foi anunciado e prometido em igura, vemo-lo e possuı́mo-lo verdadeiramente face a face.