Você está na página 1de 1

Considerações sobre o Bem-estar da Criatura Morta

Hoje eu acordei me sentido morto, de uma forma boa. Soa estranho, eu sei, eu
também acho. Mas é que a vida às vezes doi. A morte costuma ser mais
acolhedora, mais complacente, provedora de uma placidez sem igual.
Encerraram-se as questões existenciais incessantes, os compromissos
inconvenientes, as obrigações angustiantes, os horários que não se pode
cumprir, o medo desmesurado da perda. Não há mais nada a se perder, não se
preocupe! Agora só lhe resta o breu – e o breu lhe soa familiar. Era o breu quem
lhe abraçava à noite quando a solidão lhe açoitava o lombo, enquanto as paredes
testemunhavam, emudecidas pelo pânico, os gritos que transbordavam pelos
olhos insones que não queriam mais ver a extensão do sofrimento que
presenciavam. Breu a quem você confidenciava os seus piores crimes,
conservando em total sigilo suas fantasias eróticas depravadíssima, mantendo
em seu silêncio a reputação incólume. Quando o mundo desmoronava, era no
breu que você buscava refúgio. Também era o breu que supria o ócio existencial
da sua natureza sem conteúdo. O breu sempre foi de uma lealdade canina para
contigo como quem tenta, por zelo, apressadamente tomar um velho amigo nos
braços com a intenção de que ele não caia, de que ele não morra, de que não ele
chore. E agora o breu foi tudo o que lhe restou. Pensando agora, a morte sempre
lhe coube e lhe caiu bem. O contato com a vida, rotina, pessoas, amigos,
questões a administrar e providências a serem tomadas não harmoniza com um
ser de uma natureza essencialmente morta, que se desligou, que colapsou e,
uma vez colapsada, deteriorou, que sobrevive como um contraponto à vida
como que em um ato de legítima rebeldia. O direito da criatura só de reivindicar
a própria solidão. Não deixa de ser uma forma de resistência, um orgulho, uma
dignidade. Chamar para si a ofensa do outro como uma reivindicação justa
tomada por iniciativa própria é uma forma de ser escutado e, uma voz que
precisa transbordar, só quer achar passagem. É se empoderar da própria
impotência. É se enxergar no breu. E, uma vez identificado com o breu, estar
livre das amarras da claridade diurna.

Você também pode gostar