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Olhares contemporâneos sobre

os bairros populares
Rio de Janeiro
Série
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares
Volume 1: Rio de Janeiro

Comitê Organizador

Mauro Amorosos (UERJ/FEBF)


Rafael Soares Gonçalves (PUC-Rio)
Mario Brum (UERJ)
Mauro Amoroso
Mario Brum
Rafael Soares Gonçalves
(Organizadores)

Olhares contemporâneos sobre


os bairros populares
Rio de Janeiro
Copyright © Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs), 2022

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998.


Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os
meios empregados, sem a autorização prévia e expressa do autor.

Editor João Baptista Pinto


Revisão Rita Luppi
Projeto Gráfico e Capa Jenyfer Bonfim
Imagem: Lu Brasil

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

O38

Olhares contemporâneos sobre os bairros populares Rio de Janeiro / organização Mauro


Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital,
2022.
190 p. : 15,5x23 cm.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-89925-57-6
1. Sociologia urbana - Rio de Janeiro (RJ). 2. Bairros - Rio de Janeiro (RJ). 3. Vida
comunitária - Rio de Janeiro (RJ). 4. Planejamento urbano - Rio de Janeiro (RJ) - Aspectos
sociais. I. Amoroso, Mauro. II. Brum, Mario. III. Gonçalves, Rafael Soares.
22-75574 CDD: 307.76098153
CDU: 316.334.56(815.3)

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439

Letra Capital Editora


Tels: (21) 3553-2236 / 2215-3781
vendas@letracapital.com.br
www.letracapital.com.br
Apresentação

F avela, periferias, área ou habitação especial de interesse


social, subúrbio. A multiplicidade de termos para definir
o espaço de moradias populares na cidade é sinal da dificuldade
de enquadrar experiências diversas das lutas de moradores des-
ses territórios, geralmente pessoas negras e pobres, no acesso à
cidade. Desde o século XIX, esses espaços de habitação têm sido
uma questão de grande relevância, sobre a qual se debruçam
representantes do Estado e da sociedade civil. No tocante às po-
líticas públicas, é possível notar uma certa ambiguidade. Histori-
camente, pode-se observar ações claras de proibição e até erradi-
cação desses locais, assim como iniciativas de urbanização e até
um relativo grau de regularização fundiária. Nesse movimento,
também vemos que muitas dessas localidades se desenvolvem
pelo viés da informalidade, fazendo surgir uma dinâmica pró-
pria, porém entrelaçada com a do espaço urbano. Esse quadro
não revela um paradoxo, mas um dos objetos de estudos mais
complexos e envolventes das ciências humanas.
Essa complexidade, em parte, pode ser explicada pelos em-
bates de sentidos que essas experiências acumulam. O primeiro
deles é a própria definição desses espaços como bairros. Ou seja,
são partes da(s) cidade(s), opção feita na escolha do título deste
livro: Olhares contemporâneos sobre os bairros populares. Reconhe-
cendo, no entanto, que são partes tratadas de modo desigual,
quase sempre estigmatizadas, o que faz com que adquiram ter-
mos diferenciados usados por diferentes atores para reconhe-
cê-las: ocupações, favelas, periferias, subúrbios, loteamentos, e
muitos outros.
Assim, um local pensado como uma ocupação para seus
moradores pode ser retratado pela imprensa, e geralmente o é,
como invasão. Um loteamento é pensado como favela, um espaço
na área central da cidade é pensado como periférico. De modo
que essa disputa de termos revela uma disputa de sentidos e,

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Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

mais a fundo, expressões das lutas pelo acesso à habitação e ao


mínimo de condições de sobrevivência na cidade.
No Rio de Janeiro, as favelas são um dos espaços mais famo-
sos desse tipo. Seu formato começa a aparecer de meados para
final do século XIX, porém, seu batismo ocorre já no início do
século XX, quando o Morro da Providência, local de nascimento
de Machado de Assis, vira o Morro da Favela. A diversidade de
origens e formatos desses espaços são exemplos da complexidade
de se compreender a habitação popular: comumente associadas
ao surgimento por invasão, a verdade é que muitas encontram
sua origem na informalidade ou em políticas de Estado, tendo o
estigma negativo socialmente atribuído como ponto em comum.
Porém, é preciso destacar que, na “cidade maravilhosa” há ou-
tros tipos de espaço de moradia popular.
Em comum entre elas, e daí deriva o termo popular, a difi-
culdade ou mesmo a impossibilidade de adquirir a moradia den-
tro do mercado formal de habitação. E é dessa condição original,
econômica, que pensamos esses espaços populares, retomando a
trilha de Edward Palmer Thompson (1987), pensando na condi-
ção econômica como um ponto de partida, não como um roteiro
de ações predefinidas. Assim, as múltiplas definições sobre os
bairros populares se originam das múltiplas identidades, ações,
antagonistas, desafios e soluções dos moradores desses territó-
rios em suas lutas pelos direitos à habitação, serviços, condições
de vida, dignidade, enfim, o direito à cidade (LEFEBVRE, 2008).
Essa diversidade também se revela no espraiamento das ca-
tegorias pelo espaço, sendo abordados aqui distintos territórios
como campo: a área central da cidade do Rio e áreas localizadas
na sua periferia metropolitana; políticas de Estado direcionadas
às habitações populares no Brasil e no Reino Unido, sob impac-
tos das reformas neoliberais ocorridas naquele país; e ainda, o
subúrbio de Bangu e a favela da Rocinha. Enfim, as variadas
experiências e territórios originam diferentes categorias de defi-
nição desses, nem sempre (ou quase nunca) unânimes.
Os recortes cronológicos nos artigos também são variados:
abrange desde a formação de uma periferia, na virada dos sécu-
los XIX para o XX, a partir da instalação de uma grande indús-
tria de tecidos no bairro de Bangu, no Rio de Janeiro, chegando

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Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

até aos Grandes Eventos na cidade do Rio com suas obras de


remoção ou a urbanização de favelas, ambos processos ocorridos
nos governos petistas nas duas primeiras décadas do século XXI.
Como se percebe, este livro aborda a Região Metropolitana
do Rio de Janeiro. Entretanto, o interessado no tema deve estar
atento para as diferenças regionais sobre as diferentes cidades
dos estados brasileiros. Em São Paulo, por exemplo, desde os
anos 1960, o conceito de periferia tem sido usado pela arquitetu-
ra e urbanismo, bem como pelas ciências sociais, em pesquisas
e reflexões sobre bairros populares. Outras categorias regionais
devem ser mencionadas, como as vilas do Rio Grande do Sul e
os mocambos recifenses. Ou seja, para que o debate seja feito de
forma a honrar a riqueza dessa temática, é vital pensarmos essas
referências locais dentro de seu próprio universo de práticas e
significados. Não como corpos sociais isolados de um contexto
mais amplo, mas de modo a compreender esses aspectos regio-
nais sem que eles sejam eclipsados por modelos de desenvolvi-
mento urbano pensados a partir das grandes capitais do Sudeste.
Outro importante ponto a ser destacado é a mudança do
perfil de estudantes de graduação e pós-graduação nas últimas
décadas. Muitos moradores de mocambos, vilas, periferias, fa-
velas e tantos outros ocuparam e passaram a produzir conheci-
mento sobre esses locais de habitação popular. Essa feliz novi-
dade é um dos principais motivos para o surgimento da coleção
“Olhares contemporâneos sobre os bairros populares”: construir
coletivamente um espaço para que, os que passaram por esse
percurso acadêmico, exponham seus estudos para o público.
Este primeiro volume sobre a cidade do Rio de Janeiro preten-
de contribuir para um já consolidado debate sobre os bairros
populares, reconhecendo a riqueza de reflexões construídas por
todo território brasileiro. Desse modo, os próximos exemplares
da coleção contemplarão esses locais, para além do amplamente
debatido Sudeste.
É o que este livro, assim como os futuros, em seus diversos
artigos, espera trazer aos leitores que aqui encontrarão diversifi-
cados aportes teóricos, problemas levantados e reflexões, formas
de inserção e relação com os temas e, por fim, os diferentes cam-
pos, múltiplos, diversos e que, por isso, carecem de diferentes

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Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

olhares. Assim, múltiplos também devem ser os olhares sobre


esses espaços e seus respectivos processos e sujeitos envolvidos.
E por isso, os Olhares aqui apresentados partem de perspectivas
interdisciplinares, com áreas como Comunicação, História, Geo-
grafia, Serviço Social, Ciências da Saúde, Economia, Antropolo-
gia, Sociologia dialogando ao longo deste livro.

Glaucia Marinho aborda em seu artigo a memória da mora-


dia popular no centro do Rio de Janeiro, mais precisamente em
sua zona portuária, através das ocupações que ocorreram no lo-
cal. O foco da análise recairá no caso do Quilombo das Guerrei-
ras, um grupo de moradores organizados de forma autogestio-
nária, que habitou um dos imóveis entre os anos de 2006 e 2014.
Como sabido, o Rio de Janeiro, sediou uma série de eventos in-
ternacionais entre 2007 e 2016. Nesse período, a zona portuária
passou por uma grande remodelação, que construiu uma área
voltada para lazer e turismo conhecida como Porto Maravilha,
com quiosques, museus e outros equipamentos similares.
Esse processo levou a uma série de remoções e desocupa-
ções forçadas, como no Quilombo das Guerreiras. Gláucia Ma-
rinho reflete sobre a memória desses sujeitos sobre o surgimen-
to da ocupação, suas formas de organização e autogestão e seu
processo de expulsão através da remoção pelo poder público. Ao
escolher esse caminho, o capítulo se revela uma importante con-
tribuição para o entendimento da agência dos atores populares
na dinâmica urbana, bem como as contradições e arbitrarieda-
des presentes no projeto de renovação da zona portuária carioca
nesse período.

O trabalho de Cristina Pedroza de Faria (Kita Pedroza), Mi-


chele Paula da Silva e Michel Silva tem como objeto de estudo o
jornal Fala Roça. O texto é baseado na tese de doutorado da pri-
meira autora, cuja pesquisa e trabalho de campo ocorreu entre
2014 e 2018. O periódico é editado por moradores da Rocinha,
uma das mais famosas favelas cariocas, sendo dois autores do ar-
tigo alguns de seus criadores e ainda atuantes em sua produção.
Esse aspecto já aponta uma importante contribuição metodoló-
gica da pesquisa ao refutar a ideia de “nativo”, que diminui e

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Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

simplifica o papel dos colaboradores pertencentes ao campo pes-


quisado. Desse modo, a relação de parceria construída no campo
da pesquisa resulta em uma construção coletiva de conhecimen-
to, exposta através da coautoria dos envolvidos.
Outro importante aspecto da reflexão é o fato de ela ter seu
foco principal não no conteúdo do jornal, mas em seu processo
de distribuição. O impresso é distribuído pelas ruas das favelas,
em uma prática que desperta uma série de vivências e experiên-
cias de sociabilidade, elementos que acabam construindo todo
um universo comunicacional. Com essa abordagem, os autores
pretendem refletir sobre o coletivo de moradores da Rocinha
como um sujeito social de rica complexidade e possuidor de uma
densa rede de práticas cotidianas diversas.

Francisco Onorato analisa o que seria uma memória da vio-


lência na Baixada Fluminense entre os anos 1990 e 2000 através
da trajetória da promotora Tânia Maria Moreira. Sua atuação se
deu na 4ª Vara Criminal do Fórum de Duque de Caxias, sendo
que muitos de seus casos abordaram integrantes de grupos de
extermínio. Partindo da hipótese de ausência de interesse polí-
tico por parte do Estado e agentes públicos em investigar esses
grupos, o autor usa como fontes o livro de memórias da promo-
tora, entrevistas de história oral com pessoas próximas a ela e
um rico acervo de fontes que estavam com a família de Tânia
Moreira.
Desse modo, o texto é uma importante contribuição no cam-
po da memória, através da temática da violência e seus significa-
dos sobre um período que se inicia na reconstrução democrática
no Brasil após a Ditadura Militar. Trata-se de uma importante re-
flexão para o entendimento de como agentes estatais se relacio-
nam com grupos promotores da criminalidade violenta, em uma
sólida e histórica conjuntura de mandonismo local presente não
apenas em Duque de Caxias, mas em toda Baixada Fluminense.

O artigo de Ciro Andrade da Silva é resultado de sua pes-


quisa pós-doutoral sobre a política habitacional atual do Rei-
no Unido, realizada no Programa de Pós-Graduação em Servi-
ço Social da PUC-Rio, com estágio pós-doutoral na Escola de

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Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

Geografia da Universidade de Leeds. O artigo procurou analisar


a política atual de moradia da Grã-Bretanha. Após a crise de
2008, o governo britânico apresentou várias medidas de austeri-
dade, o que, segundo o autor, afetou o investimento das gestões
municipais do que restou do parque de habitação pública, já con-
siderado deteriorado desde o final dos anos 1990. Analisou, nes-
se contexto, o novo programa de compra de casas implementado
nos últimos anos pelo governo britânico, o “Help To Buy”, cujo
acesso se dá somente pelo setor privado.
O artigo realiza inicialmente o histórico das políticas de
moradia implementadas no Reino Unido e se concentra particu-
larmente sobre as principais mudanças de finalidade da política
de moradia social, sobretudo no que diz respeito às unidades
de locação social, construídas durante o apogeu do Estado de
Bem-Estar Social no pós-guerra e que foram disponibilizadas no
mercado com a implementação do programa “Right To Buy”, de
cunho neoliberal, introduzido por Margaret Thatcher a partir
de 1979.
A partir de entrevistas com os usuários da moradia social
e agentes públicos, o artigo procura analisar a política atual de
moradia, em face das medidas ainda mais austeras de retirada
de investimentos públicos por sucessivos governos de direita. O
autor sublinha os desafios atuais diante da crise de moradia so-
cial no Reino Unido, já que o aspecto social da política atual é
bastante residual e destinada somente àqueles segmentos mais
vulneráveis da população, perdendo, assim, o caráter de univer-
salidade que, no passado, foi referência mundial.

O artigo de Kevin Kermoal é resultado parcial de seus es-


tudos doutorais, em cotutela, de Ciências Políticas e Sociais pela
Université Libre de Bruxelles (ULB) e de Serviço Social pela PU-
C-Rio. O artigo se volta para a compreensão dos impactos da
introdução das lógicas de gestão mercadológica no marco regu-
latório do então Ministério das Cidades sobre o trabalho técnico
social nos projetos de urbanização de favelas, analisando mais
especificamente o eixo de Urbanização de Assentamentos Pre-
cários (conhecido como PAC-Favelas), dentro do Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC). Para o autor, tal programa

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Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

permitiu a promoção do desenvolvimento econômico a partir da


potencialização dos investimentos públicos e da criação de um
ambiente atrativo para investimentos privados. Se os governos
municipais e estaduais são responsáveis pela formulação e execu-
ção de projetos com recursos federais, eles devem respeitar, no
contexto do trabalho técnico social, o quadro normativo formu-
lado pelo então Ministério das Cidades com o acompanhamento
e a fiscalização da Caixa Econômica Federal.
Além da análise dos documentos que compõem o quadro
normativo e operacional do trabalho técnico social, o trabalho
mobiliza dados oriundos de pesquisas conduzidas pelo autor so-
bre o trabalho técnico social no PAC da Rocinha e no PAC do
Complexo do Alemão, implementado pelo Estado do Rio de Ja-
neiro. O artigo incialmente faz uma análise teórica do neolibera-
lismo, identificando como ele mobiliza ativamente as instituições
estatais para reconfigurar as relações entre o Estado e o merca-
do, na perspectiva de tornar a ação pública mais eficiente e de
criar condições favoráveis às lógicas de mercado.
Nesse sentido, há uma reconfiguração do trabalho técnico
social com forte racionalização e tecnificação dentro do arranjo
regulatório do Ministério das Cidades, o que se configura, para
o autor, como um mecanismo de modernização neoliberal da
política social segundo lógicas de mercado. Em seguida, o artigo
analisa a instrumentalização do trabalho técnico social através
da imposição de um modelo gerencial moldado por orientações
de racionalização técnica e da garantia de um processo de boa
governança. Nesse contexto, para o autor, as diretrizes do Mi-
nistério das Cidades estabelecem um padrão de intervenção ao
trabalho técnico social, que levam a um quadro fragmentado e
descentralizado da governança urbana.

Sob uma perspectiva economicista, Paulo Cesar dos Reis


apresenta farta pesquisa documental para tratar da formação do
bairro de Bangu a partir da instalação da Companhia Progresso
Industrial do Brasil (CPIB), fábrica de tecidos típica da segun-
da Revolução Industrial, com grande quantidade de operários,
conjugando espaço de trabalho, moradia e lazer que ocasionou a
expansão urbana por áreas rurais. Características dos processos

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Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

ocorridos na Europa e América do Norte e, em menor escala,


nos processos de industrialização ocorridos no Brasil nas viradas
do século XIX para o XX, na esteira da consolidação do sistema
capitalista de recém- implantada República e extinção formal da
escravidão.
O autor traça as origens da CPIB desde o quadro societário,
em que demonstra os perfis socioeconômico dos acionistas e as
ideias, apresentadas como modernizadoras, que guiaram a insta-
lação da fábrica, circundada pelas habitações destinadas à mão
de obra, tanto para operários quanto para os quadros gerenciais,
além da instalação de equipamentos destinados à lazer ou servi-
ços de alimentação e educação.
Nesse processo, formou-se ao redor da fábrica um bairro
que hoje é considerado um subúrbio do Rio de Janeiro. Ao tratar
das origens do bairro, surgido pelas mãos do capital, demons-
trando os sujeitos, os propósitos e o que existia antes no terri-
tório, uma área essencialmente rural “distante” cerca de 30 qui-
lômetros da urb carioca, que ao longo das décadas seguintes,
com o adensamento e expansão urbana do Rio, foi incorporado
na mancha urbana da cidade, o autor consegue demonstrar as
origens econômicas no surgimento de uma periferia na cidade.

Por fim, Marcos Dominguez e Marize Cunha têm como


objeto de estudo o acesso à água, elemento mais básico para
a vida, e consequentemente, para o acesso à moradia. Apesar
disso, no Jardim Catarina, localizado em São Gonçalo, na Re-
gião Metropolitana do Rio de Janeiro, foram estabelecidas dife-
rentes dinâmicas pelos moradores e outros atores, como o Esta-
do e seus funcionários, que, para obterem água, recorrem tanto
a ligações clandestinas, localmente conhecidos como “gatilhos”,
quanto a caminhões-pipa. O que chama atenção, no entanto, é
que exatamente no Jardim Catarina está uma das maiores esta-
ções de abastecimento de água do Brasil, pertencente à Compa-
nhia Estadual de Água e Esgoto (Cedae)
O direito à água no Jardim Catarina se dá a partir dessas
dinâmicas, em que o conceito de margens (DAS & POOLE, 2008)
utilizado aqui pelos autores demonstra sua eficácia em explicar
o funcionamento do Estado para manter sua legitimidade em

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Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

áreas populares sem distribuir benesses urbanas na mesma qua-


lidade das áreas mais ricas da cidade, abrindo, porém, brechas
no sistema para que essas benesses cheguem ali, minimamente,
de algum modo. A partir das análises dos papéis de diferentes
agentes atuando nas margens, os autores traçam de que modo os
processos de formação e expansão do Jardim Catarina ocorrem
na lógica do abastecimento de água e da atuação dos diferentes
atores nisso.
E ainda, as diferentes percepções dos diversos atores sobre
o Jardim Catarina e suas localidades também são estruturadas
nesses processos. Bairro, favela, loteamento... as diversas e por ve-
zes contraditórias identidades locais em disputa no Jardim Cata-
rina demonstram quão complexas são as periferias do Brasil e
do mundo.
Assim, os Olhares lançados neste livro foram diversos, tanto
do ponto de vista dos observadores, homens e mulheres de di-
ferentes áreas do conhecimento e com diferentes inserções nos
territórios abordados, quanto do objeto observado: a origem, a
trajetória, o Estado, os moradores e suas dinâmicas.
Em comum, a luta pelo direito pelos direitos, que passa pelo
reconhecimento desses direitos, pelo reconhecimento como par-
te da cidade e além, parte da sociedade: são bairros populares,
sem que seja preciso lançar sobre eles qualquer olhar, estigmati-
zante ou mesmo positivado, antes de serem considerados como
merecedores de atenção, recursos e dignidade.

Mauro Amoroso
Mario Brum
Rafael Soares Gonçalves

Referências
DAS, Veena; POOLE, Deborah. “El Estado y sus márgenes. Etnografías com-
paradas”. Cuadernos de Antropología Social, Buenos Aires, n. 27, 2008.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 5. ed. São Paulo: Ed. Centauro, 2008.
THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. (3 vols.)
São Paulo: Paz e Terra, 1987.

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Sumário

À margem do cais: desterritorialização


da memória, da luta e do lar na zona portuária
do Rio de Janeiro........................................................................ 17
Glaucia Almeida Marinho

Jornal Fala Roça: construindo vozes


da favela da Rocinha.................................................................. 38
Cristina Pedroza de Faria
Michel Silva
Michele Paula da Silva

“Minhas armas são a caneta e a retórica”:


Tânia Maria Sales e a atuação contra os
grupos de extermínio da Baixada Fluminense........................ 67
Francisco Onorato

A política habitacional no Reino Unido: pelo direito


de morar e viver.......................................................................... 96
Ciro Andrade da Silva

O Trabalho Técnico Social: a reconfiguração neoliberal


do trabalho social na urbanização de favelas........................... 121
Kevin Kermoal

A Companhia Progresso Industrial do Brasil: a


formação de uma communitas capitalista no sertão
carioca (1888-1919) .................................................................... 145
Paulo Cesar dos Reis

A produção do espaço na metrópole do Rio de Janeiro:


a disputa histórica pela água no Jardim Catarina,
São Gonçalo................................................................................ 163
Marcos Thimoteo Dominguez
Marize Bastos da Cunha

Sobre os organizadores:............................................................. 188


À margem do cais: desterritorialização
da memória, da luta e do lar na zona
portuária do Rio de Janeiro

Glaucia Almeida Marinho1

“Haviam-lhe falado num homem


que traficava memórias, que vendia o passado”
(Vendedor de passados, de José Eduardo Agualusa)

Este artigo pretende discutir o aniquilamento da memória e


das formas organizativas e associativas das ocupações sem teto au-
tônomas da zona portuária do Rio de Janeiro, a partir das lembran-
ças e dos esquecimentos dos moradores da Ocupação Quilombo
das Guerreiras, que foi um coletivo de moradia autogestionário pre-
sente na região de 2006 a 2014, quando sofreu um despejo forçado.
Para isso, pretendo usar a narrativa como instrumento de análise. A
memória despontou como uma possibilidade analítica, que ganhou
força pelo compromisso teórico-político da história oral.
A proposta da coletânea é apresentar novos olhares
sobre a periferia. No entanto, a periferia não é mais um lugar
estritamente físico. Hoje em dia, ela determina um lugar social.
Quem nasce em Brás de Pina, na zona norte, por exemplo, é
suburbano. Quem nasce no Cosme Velho, na zona sul da cidade,
é detentor de direitos, segundo a nossa engenharia social. Este
trabalho é sobre o direito das pessoas periféricas habitarem o
Centro e suas percepções sobre as mudanças que ocorreram ali
a partir das obras de requalificação urbana do Porto Maravilha –
na “era dos megaeventos”2 –, que levou ao despejo da ocupação3.
1
Glaucia Almeida Marinho é graduada em Comunicação Social pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação
em Educação, Cultura e Comunicação da FEBF/UERJ. Integra a organização de
direitos humanos Justiça Global.
2
Chamo de “era dos megaeventos” o período que vai de 2007, quando o Rio de Janeiro
sediou os Jogos Pan-americanos até a realização dos Jogos Olímpicos, em 2016.
3
Para preservar a privacidade dos entrevistados, os nomes foram trocados.

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Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

Durante os anos 2000, uma série de ocupações sem teto


autogestionadas imprimiram uma nova cara ao Centro do Rio
de Janeiro, trazendo à tona, inclusive, uma história da presença
negra, até então silenciada. No entanto, essas experiências de
moradias coletivas e autônomas foram quase que completamen-
te varridas da região com as obras de requalificação do porto.
Os imóveis que abrigavam essas ocupações estão vazios, ruindo.
Entretanto, a deterioração desses prédios não condena ao esque-
cimento a luta por moradia travada naquele local; silencia, mas
não apaga da memória a experiência vivida. Segundo o histo-
riador Boubacar Barry (2009, apud Macêdo, 2013, p. 4), “não se
pode retirar de um povo a história que ele viveu na sua própria
carne. Enquanto o homem vive, ele vive com sua história, ele vive
com sua memória”.
Michel Pollack (1989) chama atenção que as memórias sub-
terrâneas podem emergir e disputar a narrativa com a memória
dita oficial. Um processo simultâneo de elevação e sublevação.
Nessa mesma perspectiva, a escritora Chimamanda Adichie
(2009) aponta que “histórias podem destruir a dignidade de um
povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade per-
dida”. O apagamento e o silenciamento, mecanismos de agres-
são e distorção da memória, são ferramentas para impedir que
os negros tenham acesso à sua própria história. Comumente, os
sem tetos são deslegitimados, desqualificados e até criminaliza-
dos por sua luta política, a partir de histórias preconcebidas e
disseminadas de acordo com interesses políticos vigentes. Neste
artigo escolho o caminho da reparação, como afirma Abdias do
Nascimento (1980, p. 248): “Ter um passado é ter uma conse-
quente responsabilidade nos destinos e no futuro da nação ne-
gro-africana”.
A socióloga Elaine Freitas de Oliveira (2009) aponta que
o racismo está presente nos planos urbanísticos oficiais com o
objetivo de desterritorializar principalmente a população negra.
E, é justamente dentro desse universo simbólico e prático do
“apartheid brasileiro” que os negros experienciam as interpela-
ções espaciais, sociais e raciais que definem a sua cidadania par-
cial (VARGAS, 2013). Segundo Maria Nilza da Silva (2000), ba-
sear toda a análise na classe retardou a devida discussão e a luta

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Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

pela superação do racismo na sociedade brasileira. Então, é im-


portante evidenciar e não secundarizar o racismo. Franz Fanon,
em Os condenados da Terra (1961, p. 35) afirma que “nas colônias
a infraestrutura econômica é igualmente uma superestrutura.
A causa é consequência: o indivíduo é rico porque é branco, é
branco porque é rico”4.
As ocupações sem teto no Centro do Rio de Janeiro surgem
e se insurgem contra essa dinâmica urbana racista que empurra
os negros, economicamente os mais pobres, para as áreas perifé-
ricas. Teçá, ex-morador da Ocupação Quilombo das Guerreiras,
me conta em entrevista que foi atraído para participar da ocu-
pação a partir da possibilidade de morar no Centro. “Eu mora-
va na Penha, mas todas as minhas atividades eram na cidade”
(Depoimento de Teçá, 07/08/2016). Ele também narra as suas
experiências de moradia antes de chegar à ocupação:

A primeira [casa], que eu me lembro, enquanto criança (...)


sei que era muito precária porque meus pais diziam (...) A
segunda era boa, podemos chamar de boa. Eu acho que já
entendia mais ou menos o que era uma coisa boa. A terceira,
melhor ainda. E a última, tipo top de linha, porque os
filhos já estavam trabalhando e já fizeram tudo direitinho.
Dividiram. Um colocou ar-condicionado. O outro, a televisão.
Sabe? Botou uma casa digna. Mesmo estando dentro de
uma comunidade, era uma casa com todo conforto possível,
imaginável (Depoimento de Teçá, 07/08/2016).

Para Teçá, a moradia digna é uma associação da constru-


ção com a mobília. Durante o governo Lula (2003-2011) houve
valorização do salário-mínimo, aumento do emprego formal e
expansão do crédito, que possibilitou a aquisição com mais fa-
cilidade de eletrodomésticos e outros bens de consumo, mas
as políticas públicas de habitação e urbanização das favelas e
periferias não seguiram o mesmo ritmo. Teçá conta que depois
da casa pronta eles tiveram que mudar, porque a sua mãe já não
4
Não estou comparando os apartheid sul-africano ou norte-americano com o
contexto brasileiro, mas são exercícios interpretativos de casos de segregação que
devem ser objeto de análise, principalmente sobre as políticas adotadas nesses dois
países após o apartheid.

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Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

tinha condições de subir as escadas para chegar em casa. “E


tem tiroteio, de vez em quando. Como é que corre num lugar
de escadas uma pessoa com quase 80 anos?” (Depoimento de
Teçá, 07/08/2016). A efetivação do direito pleno à moradia não
se dá a partir da aquisição ou financiamento de uma casa; ela
está associada à possibilidade de uma vida digna e o exercício
integral do direito à cidade. Não é só morar, é morar, ter acesso
e direitos garantidos.
Acir, outro ex-morador da Ocupação Quilombo das Guerrei-
ras, conta que chegou ao Rio de Janeiro com um ano de idade
e morou no Catete, um bairro da zona sul que fica próximo ao
Centro, durante 13 anos. Do Catete, foi morar em Rocha Miran-
da, na zona norte da cidade. “Com muita dificuldade, eu conse-
gui continuar os estudos e trabalhar. Trabalhava no Centro da
cidade. A distância me incomodava muito. Eu chegava em casa
de madrugada, então foi um período muito difícil da minha vida”
(Depoimento de Acir, 18/04/2017). Segundo o antropólogo Pe-
dro Freire (2011, p. 44), “habitar o Centro, para as populações
sem teto, assume o próprio sentido de habitar a cidade, de ser e
estar nela”. Tanto que ainda hoje é comum ouvir “vou à Cidade”,
quando alguém precisa ir aos bairros centrais. Contudo, o direito
à cidade não se dá no acesso individual, ele é coletivo, como uma
ocupação sem teto.

O Porto Negro
“A cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas
da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos
corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros
das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas,
entalhes, esfoladuras”
(Ítalo Calvino – Cidades invisíveis)

A Ocupação Quilombo das Guerreiras é datada de 9 de ou-


tubro de 2006, quando dezenas de famílias sem teto ocuparam
um imóvel abandonado pela Companhia Docas do Rio de Janei-
ro na Av. Francisco Bicalho, número 49, próximo à Rodoviária

20
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

Novo Rio5. No entanto, a sua história começa bem antes; ela é


herdeira de uma série de ocupações autônomas organizadas por
movimentos sociais na mesma região. O marco inicial foi a Ocu-
pação Chiquinha Gonzaga (2004), quando militantes da Frente
de Luta Popular (FLP) e da Central dos Movimentos Populares
(CMP) convocaram camelôs, pessoas em situação de rua, mora-
dores de favelas e periferias e outros militantes de movimentos
sociais para construir uma ocupação por moradia no Centro da
cidade. Esse movimento teve a ver com as possibilidades vislum-
bradas no início do governo Lula (2003-2006), tido, a princípio,
como um governo de caráter popular, expectativas alimentadas,
ainda mais, pela criação do Ministério das Cidades, que tinha
entre as suas competências o desenvolvimento de políticas seto-
riais de habitação, políticas de subsídio à habitação popular e,
posteriormente, a implantação do Sistema Nacional de Habita-
ção de Interesse Social (SNHIS) e do [extinto] Fundo Nacional
para Habitação de Interesse Social (FNHIS). Me lembro de um
cartaz de cartolina com um recorte de jornal colado na entra-
da da Ocupação Chiquinha Gonzaga que dizia que o presidente
Lula transformaria todos os imóveis abandonados em habitação
popular. Engajados com um projeto contra-hegemônico, essa ex-
periência desencadeou outras ocupações no centro do Rio de Ja-
neiro, como a Ocupação Zumbi dos Palmares (2005), Ocupação
Quilombo das Guerreiras (2006), Ocupação Machado de Assis
(2008), Ocupação Guerreiros do 234 (2009) e Ocupação Guer-
reiros Urbanos (2010) – todas elas foram despejadas – e outros
projetos emancipatórios, como o Fórum contra o Choque de Or-
dem, o Grupo de Educação Popular do Morro da Providência
(GEP), o Comitê de Solidariedade às Ocupações Sem Teto.
Uma das características fundamentais dessas ocupações
eram as suas formas organizativas e associativas. A historiado-
ra Mariana Penna (2010, p. 83) destaca que essa noção de co-
letivo experimentada na Ocupação Chiquinha Gonzaga, e,
5
Antes de se estabelecerem na Av. Francisco Bicalho, os moradores da Ocupação
Quilombo das Guerreiras sofreram dois despejos violentos. O primeiro em um
prédio abandonado pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), na Rua
Alcindo Guanabara, número 20, hoje, Ocupação Manuel Congo, e depois quando
ocuparam um prédio privado abandonado na Rua Estrela, número 64, no bairro
do Rio Comprido.

21
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

posteriormente, adaptada à Ocupação Quilombo das Guerreiras


e demais, tinha como princípio “a negação do personalismo e da
autoridade”, através do estabelecimento de regras coletivas. As
ocupações possuíam regimentos internos construídos pelo gru-
po, marcados por dois vieses: a proteção do coletivo de forma
integral, soberano e harmônico e da casa como habitação e não
instrumento de acúmulo. Assim, resgatando princípios de solida-
riedade, coletividade e apoio mútuo, que eram característicos da
sociabilidade negra daquela região. As ocupações sem teto autô-
nomas transformaram as formas de habitar na zona portuária,
ao mesmo tempo que recuperaram o significado da resistência
negra. Um exemplo são os nomes adotados: Chiquinha Gonza-
ga, Zumbi dos Palmares, Quilombo das Guerreiras, Machado de
Assis, Guerreiros do 234, Guerreiros Urbanos. São todos “refe-
renciais de mudança e de justiça social”, destaca Oliveira. (2009,
p. 90).6

A luta quilombola
Por menos que conte a história
Não te esqueço meu povo
Se Palmares não vive mais
Faremos Palmares de novo
(José Carlos Limeira).

Na obra Quilombismo, Abdias do Nascimento (1980) indica


que os quilombos foram uma das primeiras experiências de liber-
dade nas Américas. Se opunham ao modelo econômico colonial
e aos valores europeus. Desde o século XV até hoje, inspiram a
luta e a formação de novos agrupamentos, e mesmo com as dife-
renças em suas formas organizativas, dado o tempo histórico ou
a geografia, se igualavam em essência. Abdias recupera Beatriz
Nascimento que afirmava ter o quilombo “um papel fundamen-
tal na consciência histórica dos negros” (NASCIMENTO, 1980,

6
Vale lembrar que o resgate da herança negra a partir do nome das ocupações
não está restrito às ocupações autogestionadas; por todo Centro encontrávamos
iniciativas com o mesmo propósito: Ocupação Revolta dos Malês, Ocupação
Anastácia, Ocupação Mariana Criola, Ocupação Carlos Marighella.

22
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

p. 68). Não por acaso, na mesma região da Ocupação Quilombo


das Guerreiras está o Cais do Valongo. Estima-se que em 20 anos
de funcionamento chegaram por ali cerca de 1 milhão de africa-
nos que foram escravizados. O Rio de Janeiro teve o maior fluxo
de cativos em todo o planeta.
O emprego na estiva e nos trapiches também levou trabalha-
dores a se instalarem na região. Essa contingência de pessoas co-
laborou para a formação de uma comunidade portuária negra.
Para se ter uma ideia, o Ilê Axé Opô Afonjá do Rio de Janeiro é
anterior ao fundado na Bahia. Da mesma forma, o Porto do Rio
foi cenário de luta, onde foi criado o que é considerado um dos
primeiros sindicatos do Brasil, a Companhia dos Homens Pretos,
conhecido como Sindicato da Resistência, em 1903, e posterior-
mente, em 1905 é fundado o sindicato Sociedade de Resistência
dos Trabalhadores em Trapiches de Café, basicamente formado
por pessoas negras.
Segundo Lefebvre (2001, p. 113), “apenas grupos, classes e
frações de classes sociais capazes de iniciativas revolucionárias
podem se encarregar das, e levar até a sua plena realização, so-
luções para os problemas urbanos; com essas forças sociais e
políticas, a cidade renovada se tornará a obra”. As ocupações
autogestionadas do Centro promoveram um aprofundamento
da disputa e do sentido do direito à – viver na – cidade, a partir
do resgate da memória negra e de suas formas associativas. Um
processo insurgente promovido pelos sem tetos organizados, que
passam a construir sua moradia ancorados em valores antirra-
cistas, partilhados e elaborados coletivamente. E anticapitalista,
pois para a construção dessa experiência é necessário confrontar
com a propriedade privada e o individualismo. Esse novo ho-
mem, descolonizado, tem condições de recriar uma nova cidade.
Aí que reside o direito à cidade; ele não se encerra na satisfação
dos direitos fundamentais, ele propõe a transformação da reali-
dade urbana em algo diferente dos princípios em que se alicer-
ça o capitalismo. No entanto, esse movimento de transformação
do Centro do Rio de Janeiro pelos sem-teto foi interrompido
bruscamente a partir da adoção de políticas de mercantilização
da cidade, em consequência da série de megaeventos esporti-
vos que o Rio de Janeiro abrigou a partir da segunda metade

23
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

dos anos 2000 e impulsionou a retirada do papel o projeto de


requalificação urbana da zona portuária7. É nesse contexto que a
Ocupação Quilombo das Guerreiras é despejada.

Prelúdio

Nos anos 1970, a atividade portuária entra em decadência


na cidade, motivada pela transferência da capital do país para
Brasília, passando pelo envelhecimento das instalações do Cais
do Porto, que se tonaram obsoletas e passaram a não atender
mais às novas demandas do mercado internacional. Logo, várias
empresas saíram do local, deixando diversos imóveis vazios. Des-
de então, surgiram propostas de ações e projetos de revitalização
da área.
No início dos anos 2000, a Prefeitura do Rio começou uma
empreitada para trazer para a região uma filial do museu ame-
ricano Guggenheim, que funcionaria como um catalisador de
investimentos públicos e privados para deslanchar o projeto de
revitalização da área. A aposta era na valorização da região atra-
vés do entretenimento, turismo e consumo. Inaugurando no Rio
um processo urbano moldado pela lógica da circulação e acumu-
lação do capital, onde o entretenimento e o consumo são facetas
das estratégias para regeneração urbana e a parceria público-pri-
vada é um elemento principal (HARVEY, 2005). Não deu certo
com o Guggenheim. A justiça vetou a construção do museu e
condenou o ex-prefeito do Rio, Cesar Maia, e a Fundação Solo-
mon R. Guggenheim, determinando o ressarcimento aos cofres
públicos do município o valor de US$ 2 milhões, referente ao
pagamento de um estudo de viabilidade para a construção da

7
Em 2009, foi criada também a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região
do Porto do Rio de Janeiro (Cdurp) gestora da Prefeitura do Rio na Operação
Urbana Consorciada Porto Maravilha. Todo Centro passou por transformações
e despejo de ocupações, como aconteceu com o antigo Grande Hotel Bragança,
no Largo da Lapa, e lembro dos tempos da ocupação e do despejo, em 2010. Uns
moradores contavam que estavam lá há mais de 40 anos. O que era bem possível, já
que o Hotel Bragança foi fechado nos anos 1940. A prefeitura despejou as famílias
alegando risco, a Defesa Civil interditou o imóvel, que reabriu semanas antes das
Olimpíadas como Hotel 55/RIO.

24
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

filial do museu no Rio, feito sem licitação pública8. Logo depois


do impedimento judicial, Cesar Maia anunciou que o centro
cultural francês Georges Pompidou manifestou interesse em se
instalar no Rio9. Por que de repente a cidade se transformou em
um lugar desejado para a instalação de bens culturais e de entre-
tenimento internacional? O que isso significava?
O geógrafo David Harvey nos lembra que o neoliberalismo
criou um sistema de governança que integra o Estado e os inte-
resses corporativos. O aparato estatal favorece o capital corpora-
tivo e as classes superiores na moldagem dos processos urbanos
(HARVEY, 2008). É possível perceber isso pela agenda adotada
pela cidade. Em 2001, o Comitê Olímpico do Brasil (COB) con-
tratou a Fundação Getúlio Vargas (FGV) para fazer um estudo
de viabilidade, que seria a base da candidatura do Rio para se-
diar os Jogos Pan-Americanos. A cidade apresentou oficialmente
sua candidatura na XXXIX Assembleia Geral da Organização
Desportiva Pan-Americana (ODEPA), com a proposta de realizar
os Jogos Pan-Americanos junto com os Jogos Parapan-America-
nos, iniciativa, até então, inédita. O sucesso dos Jogos Sul-Ame-
ricanos de 2002, realizados em São Paulo, Rio de Janeiro, Curi-
tiba e Belém, após a desistência da Colômbia, também contaram
favoravelmente a escolha10. Em 2002, o Rio é eleito cidade-sede
do Pan 2007. Esse movimento inseriu a cidade na rota do capital
imobiliário especulativo, que define como elas serão produzidas,
transformando-as numa mercadoria. A cidade se torna o lugar
8
Justiça do RJ mantém condenação a Cesar Maia e Fundação Guggenheim: Rrus
terão de devolver US$ 2 milhões; ex-prefeito disse que vai recorrer. Projeto previa
construção de museu submerso na Baía de Guanabara... Rio de Janeiro, RJ, 11
nov. 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/11/
justica-do-rj-mantem-condenacao-cesar-maia-e-fundacao-guggenheim.html>.
Acesso em: 25/09/2016.
9
Depois do Guggenheim, Maia quer o Pompidou no Rio: prefeito César Maia
anuncia que recebeu “uma nota” do centro cultural Georges Pompidou, em
Paris, comunicando o interesse em se instalar no Rio. Rio de Janeiro, RJ, 27 fev.
2005. Disponível em: <http://www.forumpermanente.org/administ/arquivo_
hibernante/guggenheim/pompidou>. Acesso em: 25/09/2016.
10
Os Jogos Sul-Americanos estavam previstos para serem realizados em Córdoba,
na Argentina, mas devido à crise econômica que o país atravessou, eles desistiram
de organizá-los. Então, Bogotá, na Colômbia, se prontificou em recebê-los, mas por
causa dos “problemas de segurança” os jogos correram o risco de cancelamento,
novamente. Em abril de 2002, o Brasil propôs uma edição com quatro sedes: São
Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Belém, e passou.

25
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

de reprodução do capital e também o principal objeto de acu-


mulação dele; tal sistema prioriza a sua dimensão de valor de
troca, como espaço do lucro. Essa política foi consolidada com a
escolha do Brasil como sede da Copa do Mundo de Futebol de
2014, em 2007, e o Rio de Janeiro para sediar os Jogos Olímpicos
de 2016, em 2009. Na contramão desse projeto está o direito à
cidade e à proteção dos direitos fundamentais do povo. O resul-
tado da aplicação desse modelo é um Rio de Janeiro mais global
e mais segregado. Desde então se intensificaram as políticas de
valorização urbana e promoção turística na zona portuária do
Rio, que recebeu R$ 8 bilhões para investimentos em infraestru-
tura, e a população negra, mais uma vez, foi afetada.
No final de 2012, Donald Trump Jr. anunciou no Palácio
da Cidade, local de trabalho do prefeito do Rio de Janeiro, uma
parceria com investidores privados e a Caixa Econômica Fede-
ral (CEF) para a construção de cinco torres comerciais, com 38
andares cada, na Avenida Francisco Bicalho. As duas primeiras
Trump Towers começariam a ser erguidas no segundo semestre
de 2013, com previsão de conclusão até os Jogos Olímpicos de
2016. As outras três torres seriam construídas conforme deman-
da do mercado. As Organizações Trump escolhem o porto como
polo imobiliário dado que a região se tornaria “o novo centro
empresarial do Rio de Janeiro que está sendo construído com
investimentos em infraestrutura de mais de 8 bilhões de reais
(cerca de 4 bilhões de dólares)”11.

TRUMP TOWERS RIO será o núcleo desse novo centro


empresarial com seu padrão AAA nível internacional, a sua
escala e localização na zona com os prédios mais altos do
Porto Maravilha. O terreno do empreendimento se beneficia
da melhor conectividade através da Av. Francisco Bicalho e
outras artérias da cidade com os dois aeroportos, o atual
centro empresarial, os túneis para a Zona Sul, a ponte
Rio-Niterói, etc. A futura estação do TAV (trem bala), as
estações do novo VLT (veículo leve sobre trilhos) e do metrô,
bem como a rodoviária Novo Rio estão ao lado do complexo
(Trecho retirado do site do empreendimento).

11
Disponível em: http://trumptowersrio.com/. Acesso em: 25/09/2016.

26
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

Após o anúncio, em setembro de 2013, a presidente Dilma


Rousseff assinou um decreto dando autorização à Prefeitura do
Rio de Janeiro desapropriar 14 imóveis da União. De acordo com
o documento, as desapropriações serviriam para a “implantação
do projeto de revitalização e urbanização da zona portuária”.
Um dos imóveis era a Ocupação Quilombo das Guerreiras. O re-
cado foi dado, com as obras de infraestrutura e a melhoria física
do espaço, eles não podiam ficar. Estavam à margem do porto.
Teçá conta que a partir daí a Companhia de Desenvolvimento
Urbano da Região do Porto (CDURP) criou várias formas para
despejá-los.

Um dia a gente acorda com vários funcionários desse Porto


Novo já dentro do prédio, dentro da parte externa, onde tem
o estacionamento, colocando material de obra ali dentro,
canos. E a gente não entendeu. (...) Começaram a colocar
máquinas, tratores pesados, aquelas máquinas gigantescas
ali dentro, foi quando nós perdemos aquele espaço. E foi
quando começou a destruição da horta que a Jaci a duras
penas conseguiu construir ali na Quilombo (depoimento de
Teçá, 07/08/2016).

O sucesso da ação da prefeitura para retirar os moradores


da Ocupação Quilombo das Guerreiras do imóvel foi fundamen-
tado na violência. Desde táticas de infiltração para desmobilizar
o coletivo até corte de luz e água. Também se utilizaram de um
conhecimento técnico para ludibriar os sem tetos: “O pessoal
[do CDURP] falou, inclusive, que foi um pessoal lá da prefeitura,
foram os engenheiros dizendo que (...) não tinha como morar
dentro do prédio, porque o prédio não estava legal”, “uma men-
tira absurda somente para tirar a gente dali, porque eles não
queriam a gente ali” (Depoimento de Araci, 19/03/2017).
Segundo Fanon (1961, p. 33), nas regiões coloniais, “o in-
termediário [entre o poder] não torna mais leve a opressão, não
dissimula a dominação. Exibe-as, manifesta-as com a boa cons-
ciência das forças da ordem. O intermediário leva a violência
à casa e ao cérebro do colonizado”. As obras de requalificação
urbana da zona portuária condenaram à ruína dezenas de

27
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

formas e expressões de habitar na cidade. Entretanto, o processo


vivido na ocupação não se esvai com o despejo. Então, questio-
nei os moradores da Ocupação Quilombo das Guerreiras o que
significou a revitalização para eles. De cara, Kauane desmonta o
jogo de luz e sombra da revitalização.

Não revitalizou porque o centro, processo de revitalização das


áreas centrais, porque ‘revitalizar’ é uma palavra hipócrita,
ela não existe. Revitalizar significa dar vida e o centro
não tem falta de vida; o centro ele tem falta de políticas,
porque quando o centro do Rio de Janeiro era capital, essa
população foi expulsa, e aí culparam os negros, os pobres
e os desempregados pelas próprias pestes e posteriormente
quando o centro deixa... quando o Rio de Janeiro deixa de ser
a capital do Rio e volta a ser reocupado, vem aí um processo
de revitalização do governo Paes. No primeiro governo do
Eduardo Paes ele já disse ao que vinha, que era um processo
mais uma vez de higienização dessa área, processo de expulsão
dessas camadas populares do centro da cidade. Mais uma vez
o centro é negado a essa população, esse trabalhador que
constrói a cidade (depoimento da Kauane, 18/04/2017).

Kauane discute os sentidos e ideologia que estão alicerçados


à política e quais os desafios em disputa na memória e no discur-
so oficial sobre a zona portuária do Rio de Janeiro. A adoção do
nome “revitalização” para as intervenções urbanísticas na região
já leva a uma compreensão do porto como um lugar esvaziado de
vida. Logo, se tornam legítimas as ações compreendidas naquela
localidade, principalmente as que remetem ao desenvolvimento
econômico e que, por consequência, inventam uma outra histó-
ria “higienizada” para aquela região tão malfadada – porto de es-
cravos, das prostitutas, do contrabando, dos camelódromos, da
primeira favela, das ocupações sem teto, da Revolta da Vacina. O
cronista João do Rio, no conto “As crianças que matam” (2009),
chega a declarar que os crimes eram comuns na localidade:

O bairro onde o assassinato é natural abraça a Rua da Saúde,


com todos os becos, vielas e pequenos cais que dela partem,
a Rua da Harmonia, a do Propósito, a do Conselheiro

28
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

Zacarias, que são paralelas à da Gamboa, a do Santo Cristo,


a do Livramento e a atual Rua do Acre. Naturalmente as
ruas que as limitam ou que nelas terminam – São Jorge,
Conceição, Costa, Senador Pompeu, América, Vidal de
Negreiros e a Praia do Saco – participam do estado de alma
dominante.
Toda essa parte da cidade, uma das mais antigas, ainda
cheia de recordações coloniais, tem, a cada passo, um traço
de história lúgubre. A Rua da Gamboa é escura, cheia de
pó, com um cemitério entre a casaria; a da Harmonia já se
chamou do Cemitério, por ter aí existido a necrópole dos
escravos vindos da costa da África; a da Saúde, cheia de
trapiches, irradiando ruelas e becos, trepando morro acima
os seus tentáculos, é o caminho do desespero; a da Prainha,
mesmo hoje aberta, com prédios novos, causa, à noite, uma
impressão de susto.

E até hoje esse estigma continua. Comumente, a área da


Central, Gamboa e Santo Cristo são descritas como perigosas.
Eu mesma cresci ouvindo essas afirmações. Fanon (1961) des-
creve como era a cidade onde habitavam os colonizados, que é
semelhante à descrição de João do Rio sobre a região portuária,
ambas cidades onde existem áreas negras. Nos dois casos o pas-
sado histórico dos subalternizados é o mesmo.

A cidade do colonizado, a cidade indígena, a cidade negra, o


bairro árabe, é um lugar de má fama, povoado por homens
também de má fama. Ali, nasce-se em qualquer lado, de
qualquer maneira. Morre-se em qualquer parte e não se sabe
nunca de quê. É um mundo sem intervalos, os homens estão
uns sobre os outros, as cabanas dispõem-se do mesmo modo.
A cidade do colonizado é uma cidade esfomeada, por falta
de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do
colonizado é uma cidade agachada, de joelhos, a chafurdar. É
uma cidade de negros, uma cidade de ruminantes (FANON,
1961, p. 34).

O passado do Porto do Rio é negro. Não é absurdo dizer


que a revitalização proposta pelo poder público visava torná-lo
branco. Por isso, a primeira ação foi esvaziá-lo – acabar com a

29
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

vida que brotava dos imóveis antes abandonados, dos antigos


casarios e das áreas de comércio popular. O processo de requa-
lificação urbana implementado no porto des-revitaliza e segre-
ga, porque escolhe quem pode se estabelecer no local. A cidade
deixa de ser de todos para ser de alguns, isto é, daqueles que
podem pagar por ela ou daqueles que podem ajudar na trans-
formação do espaço. Um caso emblemático é o da antiga Fábrica
Bhering, no Santo Cristo, onde estão instalados 52 ateliês e 21
empresas de “profissionais criativos”, descrição utilizada por eles
quando sofreram uma ameaça de despejo. Mas, após mobiliza-
ção, a Prefeitura do Rio de Janeiro determinou o tombamento e
a desapropriação do imóvel, garantindo a permanência no ende-
reço. A Ocupação Quilombo das Guerreiras não teve a mesma
sorte. Teçá também aponta para a “armadilha da revitalização”
e os processos de enquadramento da memória que esse discurso
promove.

Tipo, 2010, mais ou menos, já havia essa grande proposta da


tal revitalização da Zona Portuária, que a gente não entendia
de onde eles tiraram esse nome de revitalizar um local que
já tinha vida. É uma coisa que tem que ser questionada até
os dias de hoje: esse nome ‘revitalização da zona portuária’.
Como se não tivesse história a zona portuária (Depoimento
de Teçá, 07/08/2016).

Alcir segue a argumentação de Teçá. A ocupação promove


revitalização, ela transforma o lugar.

[Antes da Quilombo, a Francisco Bicalho] Eu via um lugar,


assim, feio. Era de passagem, mas eu via Rua Rodrigues
Alves um lugar muito esquisito, abandonado, sujo, de mau
aspecto realmente.
E a Quilombo das Guerreiras era até um ponto onde as
pessoas, de certa forma, encontravam apoio. Por não ter nada
no lugar, até muitas vezes muitas pessoas procuravam ir ao
banheiro. Até a própria questão da segurança, nós fazíamos
um papel também, a nossa presença ali. Desempenhava
um papel de segurança devido realmente ao abandono
do centro da cidade, principalmente naquela região ali, a

30
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

zona portuária. Foi se degradando de uma forma proposital


(depoimento de Alcir, 18/04/2017)

Kauane aponta que o projeto de “revitalização” das áreas


centrais existe há mais de 30 anos e que com a Copa do Mundo
e as Olimpíadas foi uma oportunidade para tirá-lo do papel, con-
tudo, ela denuncia que ao invés da Secretaria de Patrimônio da
União (SPU) destinar seus imóveis para moradia popular, não foi
essa iniciativa, muito pelo contrário, destinou imóveis públicos
para o capital.

Porto do esquecimento

A “nova zona portuária” – com museus, aquário, boulervard,


roda gigante – precisava se desfazer de tudo que lembrasse seus
tempos antigos – arcaico, fora da lei, negro, como os barracões
de escola de samba infantis e do grupo de acesso, camelódromos,
zonas de prostituição, habitações irregulares. E mais, manipula
uma falsa ideia de preservação da memória local com a criação
de “mercados da memória”, que passam pela museificação; nesse
período foram construídos o Museu de Arte do Rio (MAR) e o
Museu do Amanhã. Museus vazios de sentido, nos escombros da
história e memória da região. Tornando modos de vida em fol-
clore, tornando a luta por moradia objeto de museu. Um proces-
so de memorialização do espetáculo e do consumo. As relações
de solidariedade, coletividade e trocas experimentadas por toda
região por coletividades negras são sufocadas, entretanto, para
forjar legitimidade usurpam antigos signos e os remodelam. En-
tão, o que era possibilidade de pertença vira farsa. Esse processo
promove um apagamento da história, memória e das relações
vividas naquele lugar. As imagens de apelação são tão fortes, que
a gente acaba se esquecendo de como as coisas um dia já foram:

Eu não consigo mais lembrar. Incrível isso. Eu não consigo


lembrar da rodoviária antiga. Por exemplo, eu até posso
lembrar da rodoviária antiga, porque eu me lembro, há uns
15 anos atrás, que fui levar minha mãe na rodoviária, que
ela foi para Cachoeiro de Itapemirim, foi de ônibus, ela e

31
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

meu pai, e eu tirei uma foto na frente da rodoviária. Mas, aí,


engraçado, tudo bem, eu tenho essa foto guardada lá. Mas,
aí depois, gente, como é que pode? Alguém me perguntou
lá na cidade: ‘Como era a rodoviária, porque eu não estou
conseguindo me lembrar?’. Aí eu fui puxar pela memória e
não consegui lembrar. Mas, depois, agora, por esses dias, me
veio novamente à memória, porque a rodoviária era muito
próxima do Quilombo. Então, como a rodoviária tinha luz,
o que que a gente fazia? A gente levava laptop para carregar
lá, celular para carregar lá, a gente usava o banheiro de lá,
às vezes, então, tinha essa proximidade, porque aí me veio,
mais ou menos, mas, não veio tudo, mas, veio, mais ou
menos, como era anteriormente a rodoviária. Incrível, né,
isso? Essas coisas se colocam justamente para você entrar
nesse processo de esquecimento. De não pertencimento
mesmo. Aí, você acaba esquecendo mesmo, é proposital
(depoimento de Teçá, 07/08/2016).

Teçá chama atenção para a intencionalidade da estraté-


gia. “Eles conseguem manipular você de tal forma que você
não tem mais lembranças. Desses espaços, como era a Praça
Mauá, que eu também não me lembro” (Depoimento de Teçá,
07/08/2016). Para Kauane, o “mais chocante” desse processo são
os museus construídos na região que contribuem para o “apaga-
mento de memória” (depoimento da Kauane, 18/04/2017). Um
contrassenso.

Todo esse processo de maquiação de obras do Rio de Janeiro


é para mostrar um Rio de Janeiro que não existe, um Rio de
Janeiro genocida, um Rio de Janeiro que não conta com a
população que construiu essa cidade, um Rio de Janeiro que
expulsa essa população, um Rio de Janeiro para o turismo,
e um Rio de Janeiro que daqui a pouco, não vai ser muito
tempo, daqui a pouco vai estar fadado a novas ocupações,
porque isso que me dá esperança, que uma cidade fantasma
é uma cidade turística. O turismo ele tem seus picos, de
ida e vinda, então os prédios continuam desocupados, ou
seja, o que me dá esperança é isso, você tira é casarão azul,
uma ocupação que só de crianças tinha 90, só de mulheres
grávidas 30, você despeja aquelas pessoas, e tá lá o casarão

32
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

azul fechado, você tira Ocupação Zumbi dos Palmares com


um coletivo de mais de mil pessoas e tá lá, Venezuela fechada,
você tira Quilombo e mesmo as pessoas que moravam
atrás da Quilombo e tá lá, a Quilombo fechada, você tira
Machado de Assis e tá lá Machado de Assis fechada, qual
a resposta que essa população vai dar? Essa população não
conhece outra resposta, a resposta é ocupar de novo sempre,
a resposta é tomar, tomar o que é nosso que tá ali fechado
(depoimento da Kauane, 18/04/2017).

“Não adianta construir um museu lindo em cima daquilo


(...) As pessoas sabem, minha esperança é essa, as pessoas sabem
e vão cobrar sua história”, afirma Kauane (depoimento da Kaua-
ne, 18/04/2017). A história do porto, com suas lutas e disputas,
marcam não só as pessoas, marcam o território e criam uma
identidade comum para todos aqueles que partilham da mesma
memória. O processo de revitalização da zona portuária tenta
enterrar a memória para construir uma nova história.

Então, vem esse rolo compressor chamado Porto Maravilha,


Porto Novo, Revitalização da Zona Portuária, CDURP e passa
por cima de tudo e de todos, em nome, naturalmente, do
capital, desse processo insano, doentio de gentrificação da
cidade, você acaba interferindo diretamente na vida dessas
pessoas, que vivem nessas áreas, levando essas pessoas a
abandonarem suas casas e irem morar em outros locais, não
porque elas querem, mas pelo encarecimento do entorno
dela. Ela não se vê moradora dessa nova área (depoimento
de Teçá, 07/08/2016).
Hoje em dia, o que está acontecendo é um processo de
gentrificação – como falei antes –, um processo cruel de despejo
daquelas pessoas que vivem nessa área e não tem onde morar,
e está aí essa grande manifestação que é pertinente, que é o
direito à moradia, mas, continua sendo negada, continuam
inúmeros imóveis nessa região vazios, sem cumprir nenhum
tipo de função social (depoimento de Teçá, 07/08/2016).

Teçá retoma o debate sobre a cidade a partir da perspecti-


va da luta por moradia. Os moradores da Ocupação Quilombo
das Guerreiras desenvolveram uma forma própria de habitar na

33
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

cidade e transformá-la, mas os interesses do capital na cidade


mercantil, colonial, ainda conseguem sobressair às iniciativas do
povo de recondução da sua própria história, e, para isso, o Esta-
do se utiliza de ilegalidades. Um jogo sujo contra os verdadeiros
fazedores da cidade.
Fanon (1961, p. 34) descreve a cidade do colono como uma
cidade sólida, toda de pedra e ferro. Uma cidade de brancos, de
estrangeiros. A cidade do capital carrega as mesmas caracterís-
ticas. Quem anda pela região do Porto do Rio de Janeiro vê por
toda parte construções de ferro, prédios enormes espelhados,
tampando todo o horizonte. Pessoas de todo mundo desembar-
cando dos navios ancorados no porto, caminhando pela Praça
Mauá. Para a cidade do capital não cabem nesses prédios, nessas
ruas e com essas outras pessoas, aqueles que vivem [viviam] e
trabalham [trabalhavam] naquele local. A eles é negado até usu-
fruir do mesmo espaço.
Mesmo com espaços vazios, abandonados e pessoas precisan-
do de moradia, nada disso é motivador para a adoção de projetos
de habitação social na zona portuária pelo poder público. É mais
interessante, para eles, deixar esses espaços vazios, para a especu-
lação. Por isso, iniciativas autônomas ligadas a uma práxis dos mo-
vimentos sociais e com o compromisso do resgate e manutenção
da memória do povo negro, comprometida na efetivação do seu
próprio direito fundamental à moradia e à cidade é combatida. A
Ocupação Quilombo das Guerreiras não é só rechaçada por ser
considerada um grupo de ação direta radical contra-hegemônica,
mas por expor a contradição nos projetos urbanísticos.
Araci me confidenciou que até evitava passar perto do imó-
vel onde era a Ocupação Quilombo das Guerreiras, “eu tenho
muita mágoa disso, mágoa porque a gente não saiu por vontade,
a gente foi obrigado a sair, tenho muita mágoa, mas eu tenho
saudade. Mas eu evito de passar para não ter lembranças” (De-
poimento de Araci, 19/03/2017). O relato dela evidencia o lado
mais perverso da violência sofrida e as memórias são silenciadas.
Abdias do Nascimento (1980, p. 21) diz que nós, os negros, temos
sido forçados a esquecer nossa história e a nossa condição por
um tempo demasiadamente longo. Alcir me contou que por pre-
servação também não passa na porta da antiga ocupação.

34
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

Ao contrário deles, eu passo constantemente por prédios


que já foram ocupados, mas hoje estão vazios, com portas ci-
mentadas, janelas arrancadas. Em um deles, o muro externo
virou espaço para arte urbana, sem nenhuma referência à luta
travada por habitação naquele local. Pierre Nora (1993) destaca
que os processos de mundialização, massificação e midiatização
causaram o desmoronamento da memória. A nossa história é o
produto do passado construído pela nossa sociedade, que como
nela o racismo é estruturante, não há esforços para preservar
a memória dos grupos “minoritários”. Estamos condenados ao
esquecimento. A história como é hoje é a deslegitimação do pas-
sado vivido. É necessário compreender as estratégias utilizadas
pelas forças que nos exploram, oprimem, alienam e nos conde-
nam ao esquecimento.
Ao povo negro e empobrecido é negado o direito de ter
direito; essas estratégias adotadas pelo poder público também
promovem o embranquecimento da região, através de reformas
urbanas e da expulsão de quem lá vive, assim. Uma disputa ra-
cial-espacial. Essa foi a forma que eu encontrei de explicar as
questões que envolviam a Ocupação Quilombo das Guerreiras,
que dão origem àquele coletivo e às forças que o destruíram.
Contudo, é preciso destacar o que fica, a organização da Qui-
lombo das Guerreiras produziu espaços de diálogo, elaborou
uma forma própria de organização, instaurando um processo de
formação de um novo sujeito coletivo, com práticas baseadas no
cooperativismo, no apoio mútuo e voltado para a reconstrução
da sua própria história.
Walter Benjamin (2012, p. 221), no texto “O Narrador – Con-
siderações sobre a obra de Nikolai Leskov”, diz que narrar é in-
tercambiar experiências, e destaca: [a narrativa] “não está inte-
ressada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada, como uma
informação ou um relatório imprime-se na narrativa a marca do
narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso”. A narrativa é
a memória e a experiência. Nesse percurso narrativo, os morado-
res da Quilombo das Guerreiras demonstraram, a partir da sua
intervenção, como transformaram a cidade. Para mim, a região
portuária é a recordação de um tempo vivido, que revivo todas as
vezes que cruzo seus lugares. Não sei até quando isso vai durar.

35
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

Referências
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36
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

PENNA, Mariana Affonso. Socialistas libertários e lutas sociais no Rio de Ja-


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VEIRA, Reinaldo José de. (Org.) A cidade e o negro no Brasil: cidadania e terri-
tório. São Paulo: Alameda, 2013.

37
Jornal Fala Roça: construindo vozes
da favela da Rocinha

Cristina Pedroza de Faria12


Michel Silva13
Michele Paula da Silva14

Introdução

Este texto15 é fruto de dois esforços simultâneos. De um


lado, propomos uma leitura sobre um recorte específico prove-
niente dos dados de um estudo de doutorado16, realizado entre
12
Formada em Jornalismo (UFRJ), especialista em Fotografia como Instrumento de
Pesquisa nas Ciências Sociais (UCAM), mestre em Sociologia e Antropologia (PPGSA/
UFRJ) e doutora em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ). É fotógrafa, pesquisadora,
educadora e coordenadora de projetos situados nas interseções entre comunicação,
imagem e Direitos Humanos. Atuou em programas socioculturais em favelas do Rio
de Janeiro por cerca de dez anos e lecionou fotografia em cursos de graduação e
pós-graduação. Assina trabalhos profissionais de fotografia como Kita Pedroza.
13
Formado em Jornalismo pela PUC-Rio. Nascido e criado na favela da Rocinha,
no Rio de Janeiro. Cofundador, editor e repórter do jornal Fala Roça. Trabalhou
com memória e fotografia no Instituto Moreira Salles, foi apurador na Record
TV-Rio e correspondente do jornal inglês The Guardian, atuando na cobertura do
legado dos Jogos Olímpicos para as favelas cariocas. Cofundou o Favela em Pauta,
especializado em pautas sobre favelas.
14
Formada em Publicidade e Propaganda pela UniverCidade. Cofundadora e
coordenadora do jornal Fala Roça. Participou do programa de intercâmbio do
International Center For Journalists (ICFJ) de 2019, nos EUA, representando o
Brasil. Coordenou a comunicação do Instituto de Estudos da Religião (ISER) em
2020. Presta serviços como UX Designer e oferece consultorias de marketing e
comunicação estratégica para empresas.
15
Agradecemos: aos moradores e moradoras da favela da Rocinha pelas trocas
de saberes e aprendizados; pela contribuição valiosa com as mídias da favela; por
compartilharem suas ricas histórias de vida, por suas existências e resistências;
à Clarice Rios, pelos diálogos esclarecedores sobre o tema deste texto e leituras
atenciosas dos nossos escritos.
16
Pesquisa de doutorado realizada por Cristina Pedroza de Faria na Pós-Graduação
em Ciências Sociais (PPCIS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Resultou na tese “A cidade por entre as páginas do jornal Fala Roça: sobre fazer
comunicação ‘de favela’ e formas de ser jovem na Rocinha” (2020). Agradecimentos
especiais à Márcia da Silva Pereira Leite, pela orientação, e ao Cidades – Núcleo de
Pesquisa Urbana, do PPCIS, pela acolhida sempre afetuosa.

38
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

2014 e 2018, acerca do processo de comunicação do jornal Fala


Roça, veículo produzido por jovens cariocas oriundos(as) da Ro-
cinha, conhecida favela localizada na zona sul da cidade do Rio
de Janeiro. Criado em 2012 e em atividade até os dias atuais, o
jornal circula em meio impresso, além de estar presente em pla-
taformas digitais, produzindo tanto informações de moradores
da Rocinha para moradores, quanto “uma comunicação da fave-
la para todos”17. De outro lado, surgiu a disposição de construir
um olhar compartilhado, entre jornalistas responsáveis pela rea-
lização do Fala Roça e a proponente da pesquisa inicial, sobre a
atividade específica da distribuição do impresso – um dos prin-
cipais momentos da construção da forma de se comunicar dessa
mídia e da sua relação com leitores e leitoras da favela.
O exercício da escrita conjunta nos possibilitou refletir, com
mais atenção, sobre essa dinâmica da entrega do periódico, rea-
lizada morro adentro, desde a sua primeira edição (lançada em
maio de 2013), pelos próprios comunicadores que produziam
as reportagens. A mesma prática foi também acompanhada no
âmbito do estudo etnográfico mencionado, mais precisamente,
abarcando cinco edições lançadas entre 2014 e 2016 – de um
total de dez números publicados até abril de 2021. Em resumo,
tornou-se mais aguda a percepção de que o processo de comuni-
cação desse jornal não se encerrava com o fechamento de cada
edição, mas que outra etapa (não menos importante) – do encon-
tro presencial com quem iria receber aquelas palavras – ainda
estava por vir. Apesar de nos remetermos a um período recente,
mas anterior, nossa análise também leva em conta a época já
afetada pela pandemia do coronavírus, com consequências sem
precedentes para regiões de favelas e periferias brasileiras. Nes-
sas circunstâncias, organizações locais de mídia se tornaram ain-
da mais fundamentais, contexto em que o Fala Roça retomou a

17
O Fala Roça circula em meio impresso (com meta bimensal) e está presente
nas seguintes plataformas na Internet: website (falaroca.com); Instagram (@
jornalfalaroca), Facebook (Jornal Fala Roça), Twitter (JornaFalaRoca) e Youtube
(jornal Fala Roça). Neste artigo, o Fala Roça será referido também por meio da
sigla FR. No impresso, define-se como um jornal “destinado aos moradores da
Rocinha e feito por moradores da comunidade” (1ª edição, de maio de 2013). Em
seu site, apresenta-se como “Uma comunicação da favela para todos” (https://
falaroca.com/nossa-historia/).

39
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

publicação da versão impressa, criando novas estratégias para


alcançar os leitores de forma segura. Forte indício, dentre mui-
tos outros, de que as populações das favelas seguem resistindo
e lutando por direitos, também por meio dos seus veículos de
comunicação, em meio às adversidades.
O ato da entrega dos exemplares pela favela nos levou a
atentar para a dinâmica de construção de uma voz coletiva da
Rocinha que se fazia nos momentos de distribuição dessa mídia
local. Falar por si e criar as próprias representações da favela é
parte fundamental do discurso do Fala Roça – veremos a seguir.
A partir das situações analisadas, propomos refletir sobre o su-
jeito coletivo que integra o “nós”, moradores da Rocinha – do
qual fazem parte comunicadores(as) locais e seus leitores(as) –,
como um sujeito complexo, heterogêneo, que não é conhecido,
de antemão, em toda a sua densidade. A intenção é entender
esse sujeito coletivo não de forma naturalizada, como se fosse
uma voz única, sem matizes internas, mas, sim, como uma ideia
de coletividade construída em várias etapas. A distribuição do
jornal pode ser entendida como parte delas, um elemento ativo
e importante na construção da imaginação dessa coletividade.
O objetivo do presente artigo, portanto, é refletir sobre o ato
da entrega do Fala Roça pelos caminhos internos da Rocinha18,
quando acontece o encontro face a face entre comunicadores,
crias da favela, que produzem o jornal, e seus leitores, também
moradores locais. Experiências vivenciadas durante as ocasiões
da entrega ensejaram a compreensão de que esses momentos
constituem parte relevante e singular da sua maneira (embo-
ra não a única) de comunicar, de construir a própria forma de
realizar a comunicação jornalística na favela de onde são oriun-
dos. Em última instância, de exercer o direito à comunicação19.
18
A população da Rocinha corresponde a algo em torno de 150 a 200 mil pessoas,
de acordo com moradores locais. O último Censo do IBGE (de 2010), possivelmente
defasado, aponta a Rocinha como a favela com maior contingente demográfico
do Brasil, com 69.161 habitantes. Já o Censo PAC Domiciliar (encomendado pelo
governo do Estado do Rio de Janeiro, em 2009) contabilizou 98.319 residentes na
mesma favela.
19
Trecho do artigo 19º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todo
ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a
liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar receber e transmitir
informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.

40
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

Sendo assim, a distribuição do jornal configura um elemento de


especial importância na construção da comunicação autodefini-
da como comunitária feita pelo Fala Roça, da apropriação dessa
prática e da possibilidade da sua concretização – de acordo com
o contexto contemporâneo específico e situado onde se insere.
Argumentamos no seguinte sentido: são comuns estudos so-
bre práticas de comunicação oriundas de espaços de periferias e
favelas com o objetivo de refletir sobre o universo do conteúdo e
da produção da informação20. Além disso, frequentemente, pes-
quisas partem de classificações definidas de antemão sobre tais
práticas e nem sempre levam em conta sentidos que os comuni-
cadores dão às suas próprias práticas. Ao mesmo tempo, outros
aspectos não costumam ganhar relevo nessas análises, como as
sociabilidades relativas ao ato de comunicar que não passam ne-
cessariamente pela produção do conteúdo em si. A distribuição
do Fala Roça evidenciou, empiricamente, que outra dinâmica
contribuía para construir uma forma própria de comunicação
(sem desconhecer a importância do que é dito no jornal). Essa
dinâmica se relacionava com a maneira como as pessoas se re-
conheciam, nas relações interpessoais, como parte da mesma
coletividade, da mesma experiência. O que não significa pres-
supor o jornal como criador de uma instância comunitária em
si, ou mesmo de uma comunidade e, portanto, sendo-lhe ante-
rior. Compreendemos as práticas de comunicação citadas como
ações sociais situadas em contextos específicos que as singulari-
zam e lhes conferem características diferenciadas entre si. Gru-
pos e comunicadores utilizam maneiras de se autorreconhecer
que entendemos serem categorias de discurso coletivo, por eles

Disponível em: https://nacoesunidas.org/artigo-19-direito-a-liberdade-de-


opiniao-e-expressao/. Acesso: em abril/2021.
20
Esse dado se baseia em percepções empíricas dos autores do artigo e em um
levantamento bibliográfico de trabalhos acadêmicos sobre os temas mídia/
comunicação comunitária, popular e alternativa (FARIA, 2020) feito em bases
digitais de cursos de pós-graduação de três universidades públicas do Rio de
Janeiro (UFRJ, UERJ e UFF) e uma faculdade privada (Fundação Getúlio Vargas).
O total foram 9 cursos de pós-graduação (nas áreas de Comunicação, História e
Ciências Sociais), onde foram encontrados 35 trabalhos, sendo 26 de Comunicação;
7 de História e 2 de Ciências Sociais. A maioria desses trabalhos investiga temas
relacionados ao universo das informações produzidas e não a outros elementos
que singularizam as iniciativas de comunicação.

41
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

apropriadas (no sentido de tornar próprio), adquirindo particula-


ridades de acordo com seus contextos heterogêneos de existência.
Reconhecemos o acúmulo do campo amplo de pesquisas
sobre temas como comunicação comunitária e afins, com a con-
tribuição de diversos autores – dentre eles, Paiva (2003; 2007);
Peruzzo (2009), Miani (2010), Marcondes Filho (1986). Pretende-
mos, com este trabalho, acrescentar perspectivas pouco explora-
das, partindo do ponto de vista de um grupo realizador de mídia
da Rocinha. Desejamos enfatizar que o processo de distribuição
enfocado é, ao mesmo tempo, uma maneira específica de cons-
truir comunicação pelo Fala Roça e um processo de elaboração
de uma vivência do que é fazer parte de uma comunidade. Tra-
ta-se de um momento de atualização dessa experiência e que a
coloca em evidência. A construção desse sujeito coletivo é evi-
denciada em interações, cheias de sutilezas, entre moradores(as)
ocorridas durante as caminhadas de entrega dessa mídia pela fa-
vela. Não é a única forma de construir esse “nós”, mas é significa-
tiva no seu contexto específico. Como procuramos demonstrar,
nessas ocasiões há o reconhecimento de características comuns
(em vivências de celebrações festivas, problemas de infraestru-
tura, violência armada, dentre outras), além das descobertas de
diferenças (pertencimentos religiosos, condições socioeconômi-
cas etc.) que também compõem as experiências de vida de cada
um(a) no território. As etapas tradicionais de realização de um
veículo informativo impresso – produção, circulação e consumo
– nesse caso, não compõem uma sequência meramente técnica
de tarefas. Após a produção do jornal, ainda é preciso realizar a
entrega dos exemplares pela favela. E não de qualquer jeito.
Buscamos nos aproximar de uma perspectiva teórica que
ajudasse a iluminar essas questões empíricas. Já tínhamos per-
cebido que o processo de distribuição dava pistas para entender
que, nesses momentos, havia algo mais em jogo, para além da
produção da informação e antes da sua recepção propriamente
dita. Encontramos afinidades entre a dinâmica presente nesse
contexto e a dinâmica de uma performance, conforme vem sen-
do teorizada pela antropologia da performance. Na performance,
assim como na distribuição do jornal, há algum tipo de públi-
co envolvido (no caso em questão, os leitores do jornal) que os

42
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

realizadores desejam engajar, chamando atenção ao que querem


comunicar. Em ambos os casos, esse engajamento resulta na pro-
dução e reprodução de laços sociais, constituindo uma via inte-
ressante para a análise da vida social. Por fim, nesses momentos,
articula-se experiência subjetiva com práticas e representações
socialmente compartilhadas, ensejando a construção de sentidos
relativos ao mundo social.
Quanto aos instrumentos metodológicos nos quais a pro-
dução deste texto se apoia, foram selecionados dados coletados
a partir do estudo que originou a tese de doutorado de Cristina
P. Faria sobre o processo de comunicação do jornal Fala Roça
(FARIA, 2020) e de relatos descritivo-analíticos da experiência
de participação na (e organização da) distribuição da sua versão
impressa, feitos por Michel Silva e Michele Silva, cofundadores
e coordenadores do FR 21. Os dados aqui incluídos são prove-
nientes, especificamente, de entrevistas de história de vida com
integrantes do jornal22, do uso da fotografia como ferramenta
de pesquisa (GURAN, 2011) e do trabalho de campo etnográfi-
co, condensado em diários de campo. O estudo inicial teve di-
mensão colaborativa, principalmente por meio da documenta-
ção fotográfica23 da entrega do periódico pela Rocinha. Esses

21
Michel Silva (nascido em 1993) e Michele Silva (nascida em 1989) participaram
da fundação do Fala Roça (em 2012) e, desde então, atuam no periódico em
funções de gestão, reportagem e produção geral de conteúdo. São irmãos (junto
de Monique Silva), filhos de Dona Josita, paraibana, e Seu Paulo, mineiro, casal
de migrantes que foi morar na Rocinha na década de 1980. Nascidos e criados na
favela, ambos iniciaram o envolvimento em atividades de comunicação ainda na
adolescência e foram a primeira geração da família a alcançar o ensino superior.
Formaram-se em Comunicação Social – Michel com habilitação em Jornalismo e
Michele em Publicidade e Propaganda.
22
Os três principais interlocutores da pesquisa que originou a tese “A cidade por
entre as páginas do jornal Fala Roça: sobre fazer comunicação ‘de favela’ e formas
de ser jovem na Rocinha” foram Beatriz Calado, Michel Silva e Michele Silva. Com
eles, foram realizadas as entrevistas de história de vida do estudo, além de outras
entrevistas. Jovens “crias” da Rocinha, os três produziam conteúdo para o Fala
Roça, na época da pesquisa, e acumulavam outras tarefas relativas ao periódico.
Beatriz não teve disponibilidade para participar da redação deste artigo, por
questões de trabalho.
23
Fotógrafa e cientista social, Cristina (nascida em 1973) propôs fotografar a
entrega do jornal nos momentos iniciais do contato com a equipe do Fala Roça.
Feitos em comum acordo e doados para os comunicadores, os registros visuais
dessas ocasiões passaram a ser usados em seus materiais do jornal e a constituir
uma certa memória desses tempos do veículo. Os usos feitos indicam terem sido

43
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

materiais abrangem, sobretudo, as oito primeiras edições im-


pressas do Fala Roça (de 2013 a 2016).
O presente texto está organizado da seguinte forma: ini-
cialmente, apresentamos o jornal Fala Roça, de forma sucinta, e
um breve cenário a respeito da favela da Rocinha, na época da
existência do jornal. Para tanto, tomamos como base o material
documental do impresso. Em seguida, descrevemos a dinâmica
da distribuição, tomando como referências principais os relatos
descritivos escritos por Michel e Michele. Por fim, sintetizamos
a argumentação teórica relativa a determinadas abordagens do
conceito de performance na Antropologia, em paralelo com refle-
xões sobre aspectos da distribuição do impresso pela Rocinha.
Quanto à composição das autorias neste texto, acima de tudo,
ressaltamos o caráter exploratório dessa experiência para nós três.
Seu intuito maior foi de estender a possibilidade de produção de
conhecimento, de forma compartilhada, para além da etapa da
pesquisa de campo, trazendo-a também para a escrita de seus re-
sultados e, consequentemente, para o reconhecimento formal dos
interlocutores de pesquisa como autores do saber que contribuem,
decisivamente, para construir. Entretanto, nesse processo, inscreve-
ram-se desafios, como a disponibilidade de tempo necessária para
leituras e trocas que envolvem a elaboração de textos acadêmicos.
Alguns de nós tiveram maior, outros menor disponibilidade. Todos
nos envolvemos nas discussões sobre o foco deste artigo e contri-
buímos para a elaboração do seu conteúdo. Os trechos cujos nomes
de autores específicos estão assinalados são os relatos mencionados
sobre a distribuição do Fala Roça, utilizados como fonte de análise,
escritos por Michele e Michel; portanto, estes são de sua exclusiva
autoria. Quanto ao restante do texto, foi debatido entre os três au-
tores e objeto de trocas, idas e vindas de suas diferentes versões.
Cristina buscou referências teóricas que acrescentassem reflexões à
experiência empírica analisada e compartilhou-as.
A produção de textos em coautoria, ou em busca de um
formato dialógico entre pesquisadores e sujeitos participantes de

agregados aspectos êmicos (referentes ao olhar do grupo sobre si) às representações


fotográficas construídas pela pesquisadora, tornando-as compartilhadas, em
alguma medida. Essas imagens foram usadas como parte da metodologia do
estudo.

44
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

estudos de Ciências Humanas, faz parte de um amplo debate


teórico-metodológico já abordado por diversos autores (CLIF-
FORD, 2002; CLIFFORD e MARCUS, 2016; BAUMANN e BRI-
GS, 2006; SHOSTAK, 1981; dentre outros). No âmbito da antro-
pologia, essas preocupações ocorrem especialmente no contexto
das considerações autorreflexivas que alteraram rumos da disci-
plina, a partir dos anos 1960. Conforme Clifford, “se a etnogra-
fia é parte do que Roy Wagner (1980) chama de ‘a invenção da
cultura’, sua atividade é plural e além do controle de qualquer
indivíduo” (2002, p. 54). Porém, tais autores reiteram que, diante
da necessária “invasão” da etnografia pela heteroglossia (idem),
colocam-se desafios diversos relativos à construção da “autoria
plural”. Nesse sentido, acreditamos ter dado um primeiro passo
conjunto. Por limitação de espaço, no presente artigo não po-
deremos nos deter no tema amplo e complexo da autoria com-
partilhada, ensejado por essa experiência específica. Esperamos
abordá-lo em futuras oportunidades.

Fala Roça e Rocinha: entrelaçados


O ‘Fala’ é uma forma de ampliar vozes. O ‘Roça’ remete à
memória local, quando a Rocinha era uma grande fazenda. Após
o loteamento ter sido embargado pela administração federal, as
terras foram ocupadas por pessoas em busca de moradia. Assim,
batizamos o Fala Roça24 .

Não é de hoje que veículos de comunicação de diferentes


formatos são criados por moradores de regiões consideradas
periféricas do Rio de Janeiro, buscando amplificar suas vozes
e direitos (MOREL, 1986) – considerando a história de mais de
100 anos das regiões de favelas da cidade (VALLADARES, 2005,
dentre outros autores). De certa forma, essa ideia se expressa
na citação acima, reproduzindo um trecho da apresentação do
Fala Roça na sua página na Internet. Outro aspecto presente é
o reconhecimento da importância da história e das memórias

24
Trecho da apresentação do Fala Roça em sua página na Internet. Disponível em:
falaroca.com/nossa-historia/. Acessado em: 02/04/2021.

45
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

locais. Os próprios meios de comunicação locais são suportes


de registro dessas memórias (FIRMINO, 2017). Um mapeamen-
to exploratório recente de mídias oriundas da Rocinha (FARIA,
2020) registrou 16 iniciativas de comunicação em atividade (em
2014-18), além de dez já extintas. O FR faz parte desse cenário
de veículos de informação em funcionamento na Rocinha – é um
dos poucos em circulação em meio impresso.
São escassos os levantamentos de mídias atuantes em fave-
las e periferias do Rio de Janeiro, por motivos como a sobrevida
curta dos veículos e períodos de instabilidade que atravessam,
por dificuldades em obter recursos. Nesse sentido, não é demais
ressaltar o estudo pioneiro de Marco Morel, “Jornalismo popular
nas favelas cariocas” (1986), sobre jornais impressos existentes,
na década de 1980, em favelas da zona sul do Rio. Dentre as
pesquisas mais recentes25, um mapeamento de veículos de comu-
nicação “presentes em favelas e espaços populares da Região Me-
tropolitana do Rio de Janeiro” registrou, em 2012, 104 veículos,
sendo Rocinha e Maré as regiões de favelas com maior número
de meios de comunicação26 (ANSEL; SILVA, 2012). Em 2014, a
pesquisa Direito à Comunicação e Justiça Racial ampliou esse
banco de dados, encontrando 118 veículos “alternativos/comu-
nitários/populares” (BRAGA; ANSEL; MOISES, 2014). Apesar
de necessitarem de atualização, esses dados já indicam tratar-
se de um universo rico e dinâmico, relativo a diferentes áreas e
suportes de comunicação. É preciso reconhecer, no entanto, as
dificuldades crônicas, em tempos passados e recentes, que mar-
cam a realização de atividades de comunicação nesses contextos
– como enfatizam os jornalistas do FR, neste texto, além de ou-
tros(as) autores(as) e comunicadores(as) – dentre eles(as), Mar-
tins (2018) e Souza (2018). Ainda assim, há iniciativas de comu-
nicação popular que perduram, conforme demonstrou Claudia

25
Outra iniciativa que reúne dados sobre mídias comunitárias e afins é o Mapa
da Comunicação Comunitária, “plataforma de georreferenciamento que reúne
veículos de comunicação comunitária do Brasil”. Ainda em construção, registra
39 veículos de mídia. Disponível em: http://mapa.datalabe.org/. Acesso em
10/04/21.
26
Ver CHAGAS, 2009; CARVALHO, 2012; SOUZA, 2011; SOUZA, 2018;
MARTINS, 2018 para análises sobre mídias da região de favelas da Rocinha
e Maré.

46
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

Giannotti (2016), ressaltando tratar-se de “histórias de resistên-


cia nas favelas cariocas”. Dentre essas experiências27, está o Fala
Roça, com nove anos de história.
O jornal Fala Roça foi criado por um grupo de jovens mora-
dores(as) da Rocinha, em 2012, com idades entre 19 e 21 anos,
a partir da participação em um programa social destinado a jo-
vens de favelas e periferias, a Agência de Redes para Juventude.
Realizada por uma ONG, destinava-se a estimular jovens a cria-
rem projetos para os seus locais de moradia, por meio de uma
metodologia específica28. O jornal surgiu inicialmente voltado
para a versão impressa, pois vivências do cotidiano da Rocinha
trouxeram para os jovens envolvidos no processo de criação da
mídia o entendimento de que, mesmo diante da ampla difusão
da comunicação online, ainda era importante insistir na produ-
ção de um meio impresso de informação na favela. Conforme
entrevista de história de vida de Michel Silva, dentre os fatores
que os sensibilizaram estava o acesso desigual à Internet (SORJ,
2008), reproduzido dentro da favela, e a maior familiaridade de
gerações mais antigas com o suporte em papel. Em seguida, fo-
ram criadas as plataformas do FR na Internet (site e perfis nas
redes sociais online).
As manchetes das capas do impresso, em geral, tratam de
questões sociais que dizem respeito ao coletivo dos moradores.
O intuito de citá-las é percebê-las como uma forma de contex-
tualizar, mesmo brevemente, o ambiente da Rocinha a partir da
representação local do Fala Roça. Edição nº 1 (2013): “Rocinha
no ar. Comunidade da Rocinha se prepara para receber o seu
teleférico”; nº 2 (2013): “Sem escolha. Prefeitura do Rio modifica
trajeto de vans na Rocinha e Vidigal e ocasiona transtornos no
cotidiano de usuários e moradores”; nº 3 (2014): “Cadê o Amaril-
do”; nº 4 (2014): “Supervalorização. O aumento do custo de vida
na Rocinha”; nº 5 (2015): “Lixo acumulado a céu aberto pode
causar doenças aos moradores. Casos mais comuns registrados
27
Optamos por não mencionar outras iniciativas de mídia para não correr o
risco de citar algumas e deixar outras de fora. Maiores informações podem ser
encontradas nos materiais bibliográficos citados.
28
Apresentação da Agência de Redes para Juventude em sua página na Internet.
Disponível em: agenciarj.org. Acesso em 02/04/21. Sobre o processo de criação do
Fala Roça, ver FARIA, 2020.

47
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

são infecções de pele e hepatite A”; nº 6 (2015): “Rio antigo: a fa-


zenda Quebra Cangalha e a origem da Rocinha. Barracos come-
çam a subir o morro no início dos anos 50”; nº 7 (2015): “Casal
abre empresa de bolos após perder o emprego e conquista clien-
tela. Allan e Bárbara decidiram investir no ramo da alimentação
vendendo bolos de pote”; nº 8 (2016): “O que a Olimpíada deixou
para o Rio e a Rocinha? Veja a opinião de moradores”29.
Podemos considerar que essa mídia se tornou lugar de en-
contro entre as trajetórias juvenis dos seus realizadores e condi-
ções sociais específicas que provocaram efeitos sobre a sua exis-
tência – alguns deles foram o universo das políticas públicas para
jovens, a inclusão/exclusão digital e a militarização, no contexto
da favela. Os irmãos Michele e Michel têm sido os comunicado-
res com mais tempo de permanência no jornal – participaram
do processo de fundação e continuam atuando em funções de
reportagem, edição e coordenação. Quanto ao restante da equi-
pe30, uma certa fluidez tem feito parte da sua configuração, de-
vido a fatores diversos; dentre eles, contingências relacionadas
aos projetos de vida dos participantes, a intensa demanda de de-
dicação ao jornal e a instabilidade de recursos para manutenção
da mídia.
As trajetórias de muitos jovens que passaram pelo jornal
têm em comum esforços familiares voltados para a garantia dos
estudos e o acesso ao ensino superior. Segundo Vera Telles, as
“trajetórias operam como prismas pelos quais o mundo urbano
vai ganhando forma em suas diferentes modulações” (2010, p.
25). Atentar para os circuitos e experiências das novas gerações
“nos dá as pistas para tentar uma outra descrição do mundo
social” (idem). Esses jornalistas fazem parte da primeira geração
da família a alcançar a faculdade – assim como outros jornalis-
tas da mesma geração, oriundos da mesma favela. Enfrentando

29
As versões digitalizadas do jornal impresso podem ser acessadas em: https://
falaroca.com/edicoes-impressas/.
30
Um grupo de seis jovens fez parte da criação do Fala Roça, nas oficinas da Agência
de Redes, em 2012. Houve alterações na equipe até 2014, quando Beatriz Calado,
Michel Silva e Michele Silva se tornaram responsáveis pela produção de conteúdo
e tarefas de coordenação do jornal. Monique Silva e Tainara Lima se dedicaram
a funções administrativas e de produção. A partir de 2019, a equipe passou por
novas alterações, com a saída de alguns integrantes e a incorporação de outros.

48
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

percalços, concluíram os estudos escolares e a graduação em Co-


municação Social, entre o fim dos anos 1990 e a primeira década
dos anos 2000. Nos casos de Michel e Michele, ambos tiveram
experiências prévias com comunicação: desde a adolescência,
atuavam em atividades relacionadas a rádio e Internet na favela.
Em 2011, criaram o Viva Rocinha, veículo de informação na In-
ternet, cujo perfil na rede social Facebook chegou a ter mais de
20 mil seguidores31.
O surgimento do Fala Roça ocorreu em 2012, ano da ins-
talação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na Rocinha.
Iniciada em 2008, sob responsabilidade do governo do Estado
do Rio de Janeiro, essa política de segurança pública permanece
em atividade, apesar de seguir “instável, com um conjunto de
crises”, conforme Marielle Franco já apontava em 2014 (2014, p.
126). A implantação das UPPs (em que a atuação de forças poli-
ciais e militares se tornou predominante), sobretudo em regiões
de favelas e consideradas periféricas, sinalizou a opção de conti-
nuar a concentrar nesses lugares a ‘“guerra’ como forma estatal
de gerenciamento da vida e dos conflitos” (LEITE, 2014 apud
ROCHA, 2018). Além disso, as áreas metropolitanas do Rio de
Janeiro contempladas com UPPs favelas foram principalmente as
localizadas nos perímetros onde se realizariam grandes eventos
esportivos, como os de 2014 e 2016 (Copa do Mundo de Fute-
bol e Olimpíadas). A “pacificação” (como se tornou conhecida a
atuação das UPPs) vem sendo entendida, a partir de diversos es-
tudos (ver FARIAS et al., 2018; LEITE, FARIAS, 2018; ROCHA,
2018; CARVALHO, ROCHA, 2018, dentre outros), como um dos
“dispositivos” da militarização que compõem uma forma espe-
cífica de governar, voltada para o controle das populações (em
geral, pobres) moradoras dessas regiões32. A chegada e perma-
31
O perfil Jornal Fala Roça, no Facebook possui pouco mais de 16 mil seguidores.
As análises de métricas de redes sociais são complexas, demandando elementos
de contextualização, dentre diversos aspectos. Portanto, seria inadequado fazer
uma comparação apenas entre números de seguidores do Viva Rocinha e do Fala
Roça, sem levar em conta, por exemplo, a presença (ou não) das mídias em outros
espaços online e características de acesso relativas a uma rede social, em diferentes
épocas.
32
Gizele Martins e Renata Souza analisaram efeitos da militarização, como a
censura e autocensura, sobre meios de comunicação no conjunto de favelas da
Maré. Ver MARTINS, 2018 e SOUZA, 2018.

49
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

nência das UPPs em espaços de favelas ensejou uma dinâmica


complexa, mobilizando políticas estatais voltadas para jovens
locais, junto a ações e discursos de ONGs e outros agentes dire-
cionados a essa faixa etária. De um lado, foram reforçados de-
terminados estereótipos pejorativos sobre esse (chamado) públi-
co-alvo; de outro, jovens moradores se apropriaram de projetos
sociais à sua maneira e ressignificaram seus discursos (SOUZA,
2018; NOVAES, 2019).
Na Rocinha, podemos destacar efeitos da militarização espe-
cialmente no período entre 2012 e 2019, aproximadamente, que
abrange o tempo de existência do FR, e tomamos como parâmetro
consequências experimentadas por esse jornal (também concernen-
tes ao conjunto da população local). Dois deles foram as mortes
de moradores que haviam sido fotografados durante a entrega do
jornal, ao receber seus exemplares – conforme narram os relatos
anteriores. O primeiro deles foi Amarildo Dias de Souza, cujo de-
saparecimento (em 07/2013), se tornou símbolo da luta contra a
violência policial nas manifestações de 2013, no Brasil, e teve reper-
cussão internacional. O caso foi estampado na capa da terceira edi-
ção do Fala Roça (em 02/2014), gerando outras consequências para
o jornal: intimidações e medo. Este último – o medo – ocasionou
ainda outro efeito: ter contribuído para a paralização da publicação
do impresso, interrompida entre meados de 2016 e 2019.
Apesar de não ter sido o único motivo, o receio de distribuir
o jornal pela favela atravessou o período entre setembro de 2017,
quando se iniciaram conflitos armados de grandes proporções
na favela, e fim de 2018, quando terminou a Intervenção Federal
decretada na área da Segurança Pública do Estado do Rio de
Janeiro (cuja duração total foi de fevereiro a dezembro de 2018).
Nesse período, houve número recorde de operações policiais na
Rocinha e dezenas de vítimas33, dentre elas (em março de 2018),
um senhor fotografado durante a distribuição do oitavo número
do jornal (em agosto de 2016), conhecido como “Seu Marechal”,
quando consertava eletrodomésticos em uma das ruas na parte
baixa da Rocinha.
33
A esse respeito, ver texto publicado no Observatório da Intervenção, pelo jornalista
Edu Carvalho, da Rocinha. Disponível em: http://www.observatoriodaintervencao.
com.br/os-numeros-que-me-atingem/.

50
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

As formas como o jornal vem se definindo, ao longo da


sua trajetória, estão relacionadas à sua maneira de comunicar,
bem como aos seus objetivos, conectados com o cotidiano da
favela. Não há apenas uma, mas um conjunto de expressões usa-
das e que também ajudam a entender como a ação dinâmica da
comunicação – voltada para a informação – vem sendo apropria-
da, transformada, redefinida de acordo com as experiências de
cada edição publicada. No suporte impresso, o FR se identifica
com a ideia de “comunicação comunitária”, concretizada em um
veículo “destinado aos moradores da Rocinha e feito por mora-
dores da comunidade”, conforme narrou Michele, em matéria
publicada na primeira edição (em 2013). Na página atual do veí-
culo na Internet, apresenta-se como “Uma comunicação da fa-
vela para todos”. Já Michel, referiu-se à comunicação “de favela”
para buscar definir a prática do Fala Roça (em suas entrevistas
de história de vida). Para ele, essa expressão remete à produção
de informação no cotidiano da Rocinha, mas também à reivin-
dicação da produção de conhecimento sobre a favela a partir do
próprio território. Para a composição deste artigo, nossa atenção
se volta, especialmente, para o suporte impresso do FR, uma vez
que é ele que circula e chega às mãos e olhos dos leitores durante
a distribuição pela Rocinha. Nessas ocasiões de maior proximi-
dade física (assim como na arquitetura da própria favela), a prio-
ridade é a comunicação interna, entre moradores(as). Da favela
para a favela.

Distribuição do jornal: a construção do “nós”


de mão em mão

“Vai um jornalzinho? É o Fala Roça, o jornal da Rocinha”


Por Michel Silva

Toda edição impressa do Fala Roça é uma edição para co-


memorar, porque não é fácil produzir jornalismo na favela. Mais
desafiador do que isso é o momento da entrega. Afinal, para
quem vamos entregar a pequena tiragem de um jornal só com
notícias da Rocinha, onde moradores estão mais acostumados

51
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

a ter acesso aos jornais da mídia hegemônica e ao impresso fei-


to pela Igreja Universal do Reino de Deus34? Com o passar dos
anos, estratégias de distribuição nas localidades da Rocinha fo-
ram sendo testadas com o objetivo de alcançar mais moradores,
principalmente aqueles que não têm acesso à informação do que
acontece na favela.
Em consenso, há oito anos começamos a distribuir o jornal
a partir da parte alta do morro até as localidades mais baixas. É
no ato da distribuição que novas pautas e ideias são recolhidas
por nós, os produtores da informação. Mas não é de um jeito
grosso, de perguntar diretamente ao morador. É necessário ter
sensibilidade humana para ouvir os moradores e perceber as ne-
cessidades da favela. Perguntar ao morador somente se necessá-
rio. Mas, em muitas entregas de jornais, essa troca de informa-
ções acontece normalmente.
Há situações em que moradores e comerciantes pedem uma
quantidade maior de jornal para deixar na região. Foi assim
que percebemos que não adianta só descer o morro entregando
exemplares de porta em porta. É necessário ter pontos fixos para
as pessoas pegarem também. No entanto, isso não é vantajoso,
pois se o jornal tem uma tiragem irregular, os moradores vão
esquecer que o jornal existe. Vão lembrar apenas do jornal da
igreja entregue por seus fiéis. Resta à versão digital manter essas
pessoas informadas para não cairmos no esquecimento. Impor-
tante manter presença digital. Difícil é fazer decorar nosso nome.
Fala Roça. Nome que foi criado com base na memória e história
da Rocinha que, antigamente, era uma fazenda, uma roça. Mas
quem lembra disso em tempos de modernidade líquida?
Lembrei das aulas de publicidade e propaganda que assisti
durante minha graduação em Jornalismo. Aquela coisa de slogan.
Nunca tivemos oficialmente, mas sempre pensei em alguns. Du-
rante as entregas de exemplares no morro, tenho uma tática de
abordagem para pegar a atenção do morador, porque não basta
34 O jornal Folha Universal é um veículo impresso produzido pela Igreja Universal do
Reino de Deus, com objetivo de ser uma “ferramenta de evangelização”, conforme
sua página na Internet (https://sites.universal.org). O noticiário é abrangente, não
se restringindo apenas a assuntos religiosos. O impresso é distribuído nos cultos
da igreja e, por integrantes da igreja, em diversas localidades do país, notadamente
em bairros populares.

52
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

só entregar e sair andando. Eu chego cumprimentando, fazendo


alguma brincadeira e falo: “Vai um jornalzinho? É o Fala Roça, o
jornal da Rocinha. Só com notícias da Rocinha. Pega um aí e me
diz o que acha”. Nesse ato, costumo investir de 10 a 15 minutos. Fa-
lam tanto em presença digital que esquecem da presença humana.
Com o tempo, passamos a instalar totens em pontos da fa-
vela. Uma estrutura de ferro de 1,5 metro de altura, com três
pequenas prateleiras para deixar o jornal disponível para os mo-
radores pegarem. Uma vez fui levar um totem em uma localida-
de no alto da Rocinha e fiquei entalado em um beco de 80 centí-
metros. Só consegui sair porque tiramos um pouco do reboco da
parede da casa de uma senhora. Perrengues acontecem. Já fugi
de cachorros, de tiroteio, de chuva. Mas nunca desisti de levar
informação até as pessoas. Já entreguei milhares de exemplares
sozinho. Às vezes, até melhor do que distribuir em grupo porque
vou parando, falando com as pessoas, subo e desço o morro.
Porém, é ótimo ter uma equipe. Os outros jornais de favelas
acabaram por falta de equipe, sem grana, sem patrocínio.
Recentemente, a pandemia de Covid-19 exigiu distância das
pessoas. De lá para cá, fizemos duas edições impressas. Não dis-
tribuímos de porta em porta e nem demos exemplares nas ruas
e becos. Optamos por deixar bolos em dezenas de pontos fixos.
A receptividade tem sido boa. Pensei que as pessoas tinham es-
quecido da gente. Mas não esqueceram não. As coisas marcam
a gente. E quando o conteúdo é bom, aí é que marca mesmo.
Mesmo com uma tiragem de 5.000 exemplares, é visível a impor-
tância de um jornal de favela. Meu sonho é aumentar a tiragem
e o número de páginas. Ainda temos muitas histórias para publi-
car no impresso. Quem diz que o impresso já morreu não sabe o
que é comunicação social.

Ver o jornal chegar nas mãos de quem vai ler, e como


essas pessoas vão receber isso, é muito interessante.
Por Michele Silva

A entrega de jornal é um dos pilares do Fala Roça. Nela


acontece o que, na minha experiência, é a parte mais valiosa de

53
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

todo o processo de produção: a interação face a face com a fave-


la, quando o que levamos semanas produzindo chega ao leitor.
Ao pensarmos as pautas, temos em mente uma ideia, estrutura-
mos as matérias, pesquisamos, conversamos com pessoas.
Ver o jornal chegar nas mãos de quem vai ler e como
essas pessoas vão receber isso é muito interessante. Esse movi-
mento é o que abre as portas para um diálogo e, muitas vezes,
traz assuntos que acabam virando pauta também e é um ciclo
que vai se alimentando. Por vezes, as pessoas batem o olho nas
imagens da capa e, ainda que sem ler o que está escrito, fazem
comentários. Em uma das entregas da quinta edição, um se-
nhor a quem eu entreguei um jornal disse: “Meus vizinhos são
todos porcos”. A imagem era de uma mulher andando ao lado
de uma lixeira transbordando, na Rua 1, localizada na parte
alta da Rocinha.
Ao longo dos anos, construímos uma espécie de “melho-
res práticas” sobre o processo de entrega, tudo baseado nessa
vivência. Evitamos, por exemplo, simplesmente dar o jornal para
quem estiver indo ou vindo com pressa. Preferimos abordar pes-
soas que estejam em momentos mais relaxados, na porta de casa,
em um comércio, bar ou mesmo na rua. A chance de ela intera-
gir, ler, dar atenção para nós é muito maior. Já vimos situações
em que voltamos pelo mesmo caminho e o jornal estava jogado
no chão, provavelmente por alguém que pegou enquanto estava
andando e não queria ter recebido. Queremos evitar esses casos.
É comum que nos confundam com a Folha Universal. Nos
anos iniciais da nossa produção isso acontecia mais. Costumá-
vamos nos aproximar das pessoas já dizendo que esse jornal era
feito por nós, jovens da Rocinha. Nosso jeito de vestir é bem mais
despojado e menos conservador que o dos membros da Igreja
Universal. Mesmo com as meninas indo de short curto nas en-
tregas, ainda existia a necessidade de deixar claro quem somos.
Andar pela favela de beco em beco sempre trazia para o grupo a
oportunidade de passar em lugares que, mesmo tendo sido cria-
dos na Rocinha, nunca havíamos passado antes. A favela guarda
nuances diferentes de estilos de vida, de pobreza, de situações
que não dá para generalizar. Em uma caminhada, você sai da fa-
mosa e movimentada Estrada da Gávea e, de repente, chega em

54
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

um beco que talvez nem quem mora nele saiba o nome, onde não
bate luz do sol e as paredes das casas são de tábua, o chão é de
barro. Já dá para imaginar a condição das pessoas e casas nessas
áreas. É sempre um choque, sempre uma lição.
Quando saímos para as entregas, temos uma rota predefi-
nida, mas nunca sabemos o que, de fato, vai acontecer. Em uma
das primeiras andanças da primeira edição, estávamos muito fe-
lizes com o lançamento do jornal e fotografamos tudo que tinha
pela frente. Um senhor carregando um sofá num beco da Rua 2,
parte alta da favela, nos viu, parou, colocou o sofá no chão. Ele
pegou o jornal e eu tirei uma foto dele mostrando a capa. Fiz o
mesmo com quase todo mundo que me deu atenção naquele dia,
mas esse rosto ficaria marcado. Esse homem desapareceu sema-
nas depois e era tio de uma amiga e voluntária do jornal. Aquele
foi possivelmente um dos seus últimos registros fotográficos em
vida. Ele era o Amarildo de Souza.
Em outra experiência de entrega, no ano de 2015, no Labo-
riaux (uma das localidades mais altas da Rocinha) 35, reparamos
que um grupo de pessoas reunidas olhava a mesma página do
impresso, rindo e fazendo brincadeiras. Chegamos perto para
ver o que era. Os moradores haviam se reconhecido em uma
imagem da década de 1990 que estampava uma coluna do Museu
Sankofa Memória e História da Rocinha36, sobre uma tradição
de carnaval praticada naquela localidade, onde os homens costu-
mavam se vestir de mulher. Com o passar dos anos, algumas pes-
soas se mudaram, outras morreram, mas três delas ainda viviam

35
O Laboriaux (ou Vila Laboriaux) é um dos sub-bairros da Rocinha. Conforme
Maria Izabel Carvalho, moradora local, doutora em Serviço Social, essas localidades
internas da favela constituem “as Rocinhas”, aludindo ao fato de serem lugares
heterogêneos e histórias próprias. O Plano de Desenvolvimento Sustentável da
Rocinha (realizado no âmbito dos estudos técnicos do PAC 1, em 2011) aponta
a existência de 25 sub-bairros (CARVALHO, 2016, p. 79). Em sua dissertação,
Maria Izabel descreve relatos de moradores sobre cada localidade. A ocupação do
terreno íngreme do Laboriaux começou nos anos 1970 e se expandiu a partir de
1981, mediante a construção de casas pela prefeitura, visando realocar moradores
da parte baixa da favela (idem, p. 81).
36
O Museu Sankofa Memória e História da Rocinha é uma iniciativa comunitária
que reúne registros sobre história, memória e a vida na Rocinha. Durante algumas
edições do Fala Roça impresso, o museu teve uma coluna voltada para temas
relativos à memória local. Até o momento, não tem sede fixa e suas ações acontecem
de forma itinerante ou online. Para maiores informações, ver FIRMINO, 2017.

55
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

na mesma vizinhança. Nesse dia, tudo por acaso, conversamos


muito sobre a vida deles, o que mudou e ouvimos outras tantas
histórias mais. Ficamos de voltar para registrar tudo e publicar;
esse retorno nunca aconteceu. Os encontros com o Amarildo e
com esses rapazes da foto antiga provavelmente não teriam acon-
tecido se a entrega do jornal acontecesse de outro jeito. Estar
perto das pessoas para ouvir, ver, fotografar se mostrou um dos
grandes diferenciais do nosso trabalho.
Não tive a oportunidade de presenciar as impressões das pes-
soas sobre as duas últimas edições. Elas foram produzidas durante
a pandemia e, seguindo as recomendações de isolamento social,
não saímos para fazer as entregas como de costume. Questiona-
mos se valeria a pena voltar a produzir o impresso em tempos
de restrição de circulação e chegamos à conclusão de que, nesse
cenário, a dúvida não poderia ser em produzir ou não, mas como
fazer isso chegar na casa das pessoas. Com tanta desinformação,
ter jornal na rua é mais do que importante, é necessário.
Para essas duas edições foram pensadas entregas de acordo
com o momento. Em setembro de 2020, os jornais da nona edi-
ção do Fala Roça chegaram na casa das pessoas de uma forma
que nunca havíamos pensado antes. Estávamos distribuindo ces-
tas básicas e kits de higiene pessoal e limpeza há meses. No total,
foram mais de 12 mil cestas distribuídas com a ajuda de 35 orga-
nizações locais parceiras. Percebemos que, embora a equipe esti-
vesse trabalhando de casa e não pudesse circular como de costu-
me, estávamos indiretamente nas casas das 7.800 famílias aten-
didas pela ação de doação de alimentos. Sendo assim, mudamos
o meio, mas chegamos no mesmo lugar: a casa do povo. Após a
impressão, agendamos o frete dos jornais direto para a empresa
fornecedora de cestas e eles colocaram um jornal dentro de cada
kit montado. Apelidamos essa ação de “arroz, feijão e jornal”.
Já na décima edição, de março de 2021, houve uma integração
com as redes sociais para decidir onde não poderia faltar jornal.
Pedimos aos nossos seguidores no Facebook e Instagram que
nos mandassem indicações de possíveis pontos de retirada de
jornal. Recebemos dezenas de comentários. Essa foi uma forma
simples, mas que convidava as pessoas a fazer parte do processo
da entrega. Uma rede de locais foi mapeada e incluiu pontos de

56
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

mototáxi, unidades de saúde, pequenos comerciantes locais, res-


taurantes, ONG’s e coletivos parceiros. Disponibilizamos a lista
nas redes sociais e, assim, pela segunda vez, a distribuição acon-
teceu sem que entregássemos um por um, de casa em casa.

A distribuição do Fala Roça como performance


São imensos os esforços para produzir o conteúdo do im-
presso que os comunicadores levam nas mãos, caminhando da
parte alta à baixa do morro, buscando outras mãos que os rece-
bam e sintam o ímpeto de os levarem aos olhos para lê-lo. Por si
só os esforços de semanas produzindo as matérias não garantem
que será lido; portanto, é preciso criar estratégias de distribui-
ção para capturar a atenção dos moradores – levando em conta
fatores como a tiragem reduzida, de 5.000 exemplares, e os inte-
resses já capturados pela mídia de massa, preocupações cotidia-
nas e disputas pontuais. Neste último caso, conforme ressaltam
as narrativas acima, é preciso disputar espaço com outro jornal
já presente nas casas de boa parte dos habitantes da favela: a Fo-
lha Universal. Distribuído por fiéis da Igreja Universal do Reino
de Deus, é o impresso que possivelmente tem maior penetração
local, aliando pertencimento religioso à difusão de informação.
Ou seja, o Fala Roça se trata de uma prática de comunicação que
não se esgota na mera transmissão de mensagens, mas é uma prá-
tica social situada, que incorpora outros elementos relevantes.
As cenas da distribuição do Fala Roça descritas anterior-
mente podem ser entendidas como experiências que contribuem
para a construção de uma voz coletiva, por meio do jornal. Um
componente importante dessa construção, nesse caso, é a possi-
bilidade de as pessoas se verem nas páginas do impresso de uma
forma mais diversificada; não como pertencentes a um lugar
associado à criminalidade, como frequentemente acontece nos
veículos da grande imprensa (RAMOS; PAIVA, 2007). Mas como
o FR consegue produzir essa diversidade de representações sem
cair em clichês e preconcepções acerca da experiência comum
de se viver na favela, no caso, a Rocinha? E por que é tão impor-
tante atentar para essas experiências?

57
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

Aqui pensamos ser interessante trazer uma comparação do


evento da distribuição do jornal com ideias relativas à noção de
performance, conforme seu entendimento no campo da antropo-
logia da performance e, mais especificamente, da contribuição de
Victor Turner, que dedicou boa parte do seu trabalho aos estu-
dos de rituais e à antropologia da performance. O que nos leva a
propor pensar a distribuição dessa forma é, antes de tudo, o fato
de performances, no sentido descrito por Turner, serem eventos
em que uma determinada coletividade atualiza e reproduz os
laços sociais que fazem dela uma coletividade específica, distinta
de outras. E isso não está dado de antemão, mas atualiza-se em
práticas recorrentes e subjetivamente significativas para os ato-
res sociais envolvidos. No evento da entrega do Fala Roça, laços
sociais e sentidos são atualizados em práticas, dizeres e situações
que fazem parte da interação com os leitores. Sentir-se como par-
te da mesma voz “da favela”, desse sujeito coletivo, ocorre em cer-
tas práticas e experiências, na maior parte das vezes, corriquei-
ras e quase imperceptíveis – ou seja, são processuais, no sentido
de acontecerem de forma reiterada, de repetirem-se. E o que a
distribuição do jornal faz (simplificando bastante) é colocar essas
experiências em evidência.
Turner estabeleceu um diálogo interdisciplinar, aproxi-
mando-se de áreas como linguística, filosofia e teatro, que o
influenciaram na definição das principais características da an-
tropologia da performance. Aqui, desejamos chamar atenção para
duas delas: a concepção de um caráter processual da vida social
e a centralidade da experiência nos estudos sobre performance.
Mas por que a distribuição do jornal é uma prática privilegiada
para acessar a realidade social da favela ou, como temos fala-
do aqui, a “voz da favela”? Antes de tudo porque essa realida-
de não é determinada por uma estrutura imutável e inflexível.
Como aponta Sally Moore, “a ordem social não é determinada,
sendo as categorias, portanto, flexíveis e manipuláveis” (ALVES,
2005, p. 8). As experiências previamente compartilhadas entre
os moradores da Rocinha – incluindo saberes e modos de com-
preender o seu entorno – e revisitadas no ato da entrega do pe-
riódico são a matéria e a liga da vida social da favela. Justo por
isso são “flexíveis e manipuláveis”, não estáticas. O conceito de

58
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

drama social, embora tradicionalmente associado a situações de


conflito e ruptura social, aqui pode ser útil por outro aspecto
que diz respeito a essa ideia. Conforme aponta Cavalcanti (2012,
p. 9), esse conceito atraiu o interesse de Clifford Geertz pela
densidade da metáfora do drama, proveniente das artes cênicas,
para a compreensão da “dimensão processual da vida social”, na
visão de Turner: “Essa noção permitiu integrar, desde sua formu-
lação, a experiência subjetiva à dinâmica da ação social e relativi-
zou desse modo as determinações das posições socioestruturais
para a compreensão do sentido da conduta dos atores”.
Assim como em uma performance, os produtores do jornal pro-
curam engajar os leitores durante a distribuição. Para tal, acessam
seu próprio repertório de experiências da vida na favela e os sentidos
que elas carregam, convidam seus interlocutores a se identificarem
com elas, e moldam seus gestos e falas de acordo com uma gramática
própria, que faz sentido, à sua comunidade. Por exemplo, no caso das
falas, cabe lembrar do slogan, mencionado por Michel, como tática
para chamar a atenção do morador, porque, em suas palavras, “não
basta só entregar e sair andando. Eu chego cumprimentando, fazen-
do alguma brincadeira e falo: ‘Vai um jornalzinho? É o Fala Roça,
o jornal da Rocinha. Só com notícias da Rocinha. Pega um aí e me
diz o que acha’”. Esse exemplo é relevante por ser um convite a uma
interação – que pode se reduzir ao slogan, ou não. Ou seja, ao invés
de entregar o jornal e ir embora, a ideia é “puxar papo” com os
leitores ao falar isso.
Outra situação foi a foto de uma cena em que a moradora
passava em meio ao lixo37, publicada em uma matéria na capa do
jornal. A imagem, colorida, que ocupava boa parte da página,
estimulou outro morador a se engajar com a cena corriqueira,
que causa indignação na favela e que ele também já vivenciou,
independentemente de concordar ou não. Ou seja, nesses casos,
há algum elemento que convida à interação e à identificação.
Quanto aos gestos, podemos pensar na forma de ves-
tir das entregadoras, usando roupas que as diferenciam dos

37
A respeito da destinação do lixo na Rocinha, ver: CARVALHO, Maria Izabel de.
“A favela da Rocinha e a destinação inadequada de lixo: entendendo os meandros
da questão”. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, 2016.

59
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

entregadores da Folha Universal, fiéis da IURD. Aqui há o uso de


uma gramática gestual comum aos moradores, que tem intuito
não de afastar os adeptos da igreja, mas de se aproximar de for-
ma diferenciada, sinalizando que há espaço para a diversidade de
pertencimentos religiosos dentro do coletivo de moradores. Os
comunicadores buscam penetrar no terreno da atenção dos leito-
res evangélicos, sinalizando outro pertencimento – nesse caso, à
favela. Trazer notícias da Rocinha constitui, de fato, um diferen-
cial entre esses jornais, uma vez que o Fala Roça é especializado
em notícias da Rocinha, coisa que a Folha Universal não tem.
A função do ritual, segundo Turner, pode ser remetida a essa
situação, uma vez que se volta para a construção e reafirmação
da sociedade, do coletivo, das regras, do que é permitido e do
pertencimento.
A centralidade da experiência foi apontada por Esther Jean
Langdon como uma característica importante na teoria da per-
formance. Segundo essa autora, um dos principais aspectos da
performance é trazer a experiência para o primeiro plano (LANG-
DON, 2006). Preocupações de Turner se voltam para a dimensão
experiencial da ação simbólica como uma dimensão crítica da
(re)produção da cultura. Conforme Manica e Rios (2017, p. 129),
a transição para uma “antropologia da experiência” implica na
preocupação em como os atores “dão significado às suas transa-
ções e interações”.
Pensar a experiência como central no evento da distribuição
remete a diferentes formas usadas pelos jornalistas para tornar
o impresso mais visível durante essa atividade de entrega pela
Rocinha. Por exemplo, aproxima-se do que Michele chama de
desenvolver “as melhores práticas”, com o objetivo de conseguir
que o jornal seja efetivamente lido e não vá parar no lixo. Bus-
cam chamar atenção para o jornal, torná-lo visível, diferenciado,
durante a distribuição. Ao mesmo tempo, tenta perceber a re-
ceptividade dos moradores. Com base na “vivência”, na hora da
entrega, continua Michele, que, junto com outros integrantes da
mídia foram notando jeitos que davam mais certo e outros “erra-
do” para criar atitudes de valorização de cada exemplar. Fazem
parte dessas estratégias evitar dar o jornal “para quem estiver
indo ou vindo com pressa”; abordar pessoas “em momentos mais

60
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

relaxados, na porta de casa, em um comércio, bar ou mesmo na


rua”. Dessa forma, aumentam as chances de “interagir, ler, dar
atenção, tanto para nós, quanto para o jornal”. Michel, que em
geral organiza as entregas, enfatiza que diversas estratégias vêm
sendo testadas e passaram a priorizar moradores que “não têm
acesso à informação do que acontece na favela”. Além disso, ou-
tra estratégia é fazer a entrega “de cima para baixo” do morro,
iniciando na parte alta do morro e ir descendo. Quanto a ir so-
zinho ou em grupo, é preciso saber as vantagens e desvantagens
desses formatos para tomar partido de cada um, na tarefa de
cativar os leitores.
Outra situação de engajamento do público com a mídia, du-
rante a distribuição do impresso, lembrada pelos comunicado-
res é o episódio do reconhecimento de moradores em uma foto,
da década de 1990, publicada na coluna do jornal dedicada à
memória local. Experiências pessoais compartilhadas se torna-
ram centrais no cultivo do sentimento de pertença a um coletivo.
Nesse caso, os moradores se olharam e se reconheceram numa
determinada experiência retratada na fotografia de uma celebra-
ção de carnaval na favela. Registros fotográficos e impressos são
uma forma de materialização de uma memória, de uma vivência
de um coletivo. Funcionam de forma diferente da Internet, onde
os registros são mais fugazes. O jornal é também registro de
uma memória coletiva, que passou a ter relação com os eventos
de entrega. Fazem parte dela as fotos de Amarildo e do “Seu
Marechal”, que morreram tempos depois de serem fotografados
durante a distribuição. De alguma forma, a memória de Ama-
rildo foi atualizada no seu registro feito pelo jornal e depois pu-
blicado na primeira página, conforme salientou Michele. Essas
imagens dizem: “Nós existimos”. Dão visibilidade. Trazem para
o primeiro plano pessoas das favelas com seu valor e dignidade
– como vidas que importam. Moradores, ao se reconhecerem,
reconhecem suas presenças. As fotos de pessoas que morreram e
aparecem no jornal são reconhecidas também como presenças,
mesmo que ausentes.
A distribuição também proporcionou o encontro dos co-
municadores com lugares que lhes eram desconhecidos na Ro-
cinha, em geral, na parte alta do morro. Locais de mais difícil

61
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

acesso, onde as condições de vida são mais precárias. Chegar


junto com o jornal se tornou uma forma de dialogar com essas
partes da população mais desprovidas de serviços, acessos, infor-
mações. Evidenciaram-se diversidades socioeconômicas também
incluídas no “nós”. Percorrer esses e outros locais tornou-se uma
forma diferenciada de saber o que os moradores gostariam de
ver no jornal. Dessa maneira, muitas pautas foram “recolhidas”
durante a entrega dos exemplares. Assim, a distribuição também
contribui para modificar o conteúdo do periódico. Conforme
Michel: “É no ato da distribuição que novas pautas e ideias são
recolhidas por nós, os produtores da informação”. Ele comple-
menta que essa coleta de informação não é de qualquer jeito. “É
necessário ter sensibilidade humana para ouvir os moradores e
perceber as necessidades da favela”. Mais uma vez, a experiência
ganha destaque. Por fim, nos tempos da pandemia, outras estra-
tégias estão sendo elaboradas para fazer o Fala Roça chegar aos
moradores, baseadas na experiência e no cuidado, como bem
detalha o relato de Michele Silva.

Considerações finais

Ao nosso ver, algumas razões demonstram a relevância de


olhar especialmente para os momentos da entrega do impresso,
sem desconsiderar o conteúdo publicado. Dentre as principais,
há o reconhecimento de se tratar de uma estratégia (de media-
ção, criação de laços sociais e busca pelo engajamento no conteú-
do) que traduz uma vivência já acumulada por jovens comunica-
dores da Rocinha, tanto influenciada por tradições discursivas
locais, quanto alimentadora de memórias e saberes provenien-
tes do chão das favelas, acrescentando suas novas contribuições.
Para compreender, com mais apuro, do que se trata a sabedoria
de lidar com a produção contemporânea de informação nesses
contextos, é necessário ouvir as vozes de jornalistas locais, além
de reconhecer o seu valor profissional em qualquer contexto. A
importância da etapa da distribuição no processo de comunica-
ção do FR é destacada por Michel Silva e Michele Silva – editores
e repórteres desse jornal – nos relatos específicos sobre o tema

62
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

que seguem adiante. “Não é fácil produzir jornalismo na favela”,


porém, “mais desafiador do que isso é o momento da entrega”,
ressalta Michel em referência aos exemplares impressos. “A en-
trega de jornal é um dos pilares do Fala Roça”, Michele resume.
O interessante da distribuição, nesse caso, é que transbor-
da, extrapola o jornal em si e, ao mesmo tempo, atravessa toda a
produção do veículo, pois afeta as pautas e o modo de escrevê-las.
Acima de tudo, é uma dimensão ignorada que passa despercebi-
da, por exemplo, nas abordagens das pesquisas. O modo como
a mensagem do jornal é transmitida também importa; notamos
que remete a experiências compartilhadas, alimentadas pelas sa-
bedorias do cotidiano da Rocinha. A entrega do jornal, de mão
em mão pelos realizadores aos seus potenciais leitores, pode criar
formas de relação e laços, por meio de interações, que atualizam a
vida social e contribuem para a construção de uma voz coletiva da
favela. Suscita a possibilidade de imaginar uma identidade coletiva
de uma comunidade, um “nós” – nos termos de Benedict Ander-
son (2008). Tal prática complexifica a ideia do “nós”, moradores
da Rocinha, uma vez que o conjunto da população da favela possui
pontos em comum, mas também diferenças. É heterogêneo. Não
corresponde a nenhum estereótipo, seja no sentido pejorativo,
que desqualifica o conjunto da população da favela, ou no sentido
idealizado de que, ao serem sujeitos de direitos, todos se veriam
de forma semelhante. Ao contrário, os moradores são constituídos
por diferentes características, complexas, densas. Algo mais fugaz,
menos correspondente a categorias preestabelecidas. Entendemos
ser a imaginação desse coletivo um processo mais sutil, delicado,
no um a um, construído no dia a dia.

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66
“Minhas armas são a caneta e a retórica”:
Tânia Maria Sales e a atuação contra
os grupos de extermínio da Baixada
Fluminense

Francisco Onorato38

Introdução

O artigo a seguir nos introduz às memórias de violência na


Baixada Fluminense com um olhar focal em Duque de Caxias.
Alguns acontecimentos criminais e também políticos entre os
anos 1990 e 2000 permeiam as ações dos promotores públicos da
4ª Vara Criminal do Fórum de Duque de Caxias, mas especifica-
mente às ações da promotora Tânia Maria Moreira.
Importante colocar que a hipótese que se estabelece no tex-
to é de que não houve interesse, por parte de agentes públicos de
alguns setores do Estado, de que fosse dada continuidade às in-
vestigações sobre os grupos de extermínio. Com isso, ficou preju-
dicada especificamente a atuação da doutora Tânia Maria Salles
Moreira na 4ª Vara Criminal de Duque de Caxias. Mantendo-se
a percepção de impunidade e consequentemente os altos índices
de crimes de letalidade violenta.
A metodologia trabalhada no texto tem inicialmente funda-
mentação nas memórias do livro Chacinas e Falcatruas escrito por
Tânia Maria Salles Moreira, nas entrevistas com os personagens
do livro e nas fontes atribuidas às documentações catalogadas.
Os autores citados na pesquisa fundamentam e cooperam
através de suas obras com o debate proposto. Para análise e con-
siderações, juntam-se ainda conceituações sobre memória, vio-
lência, justiça e temas correlatos.

Mestre em Educação, Comunicação e Cultura pelo Programa de Pós-Graduação em


38

Educação, Comunicação e Cultura em Periferias Urbanas (PPGRCC/FEBF/UERJ).

67
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

Certeau (1994, p. 189), afirma que “a memória é o anti-mu-


seu”. Esta colocação contextualiza a tentativa da presente pesqui-
sa no resgate das memórias sobre o tema pesquisado. Por claro,
há que se perceber a temporalidade no acontecimento dos fatos,
diante das narrativas atuais ou aos documentos de registros à
época, bem como seu distanciamento entre si, o fato, e o tempo
presente.
Rousso (1998, p. 93-101), considera que “a memória é uma
reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma re-
presentação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele
do indivíduo somente, mas do indivíduo inserido num contexto
familiar, social, nacional”. As entrevistas materializam essa afir-
mação de Henry Rousso, principalmente o contexto familiar por
seu peso afetivo rememora uma contextualização de caráter ím-
par, algumas vezes divergente do fato, mas na maioria das vezes
um maximizador e potencializador da narrativa. Tal fenômeno
precisa da devida atenção do pesquisador a fim de que os objeti-
vos finais não percam ou que se disvirtue a intergridade da busca
da hipótese.
Pollak (apud AMOROSO, 2015, p. 18) comenta sobre “a exis-
tência de memórias subterrâneas em contraposição à memória
oficial”. E segue comentando a necessidade de interpretação do
silêncio. Os espaços aparentemente vazios da pesquisa remetem
a uma possibilidade real de amadurecimento das narrativas.
Entre uma narrativa e outra, entre um documento analisado e
outro, as “memórias subterrâneas” supracitadas evidenciam-se e
enrriquecem a pesquisa. Para este apontamento, é importante
considerar que os levantamentos de dados até aqui têm de fato,
em suas lacunas, aflorado a contextualização necessária à pesqui-
sa no que tange ao entrelaçamento desses dados.
A percepção da história oral mostra-se fundamental para
a compreensão dos fatos narrados pelos entrevisdados na pes-
quisa, bem como o adequado acolhimento das diferentes visões
sobre um mesmo asunto.

Porque o conhecimento do passado dito ‘objetivo’ não basta


para explicar o presente, sendo preciso acrescentar-lhe
o conhecimento de percepção presente do passado. Esse

68
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

‘presente do passado’ é precisamente a memória, e o estudo


acadêmico dessa última permite melhor compreender a
identidade que ela tem por função estruturar (FRANK
ROBERT, 1992, p. 67, apud VERENA ALBERTI, 2004, p. 40).

Tânia Maria Salles Moreira

Tânia Maria Salles Moreira foi promotora em Duque de


Caxias no final dos anos 1980 e durante os anos 199039. Enfren-
tou os grupos de extermínio de maneira firme e corajosa no mu-
nicípio. Os resquícios de uma política comprometida com o cri-
me e um Judiciário permissivo e omisso permaneciam ali desde
os tempos de Tenório Cavalcante40. Constantemente ameaçada
de morte, Tânia Maria contou com recomendação da Anistia In-
ternacional, e recebeu escolta pessoal, a fim de que conseguisse
conduzir as demandas processuais de acusação aos grupos de
extermínio. Mas não foi nada fácil; segundo ela, os acusados es-
tariam inseridos em todos os Poderes, inclusive no Judiciário,
dando plantão no Fórum de Duque de Caxias, intimidando as
testemunhas. Além disso, havia indícios de que o próprio magis-
trado à ocasião teria envolvimento com o poder paralelo. Essas
memórias são da própria Tânia Maria, sua retórica sobre um pas-
sado com evidente carga emocional. No decorrer da pesquisa são
feitas comparações com outras fontes que levam às discussões
sobre a retórica de Tânia Maria, o que é importante quando en-
tende-se que a memória é a vida, sempre carregada por grupos
vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à
dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas
deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipula-
ções, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações
(NORA, 1993, p. 9).

39
As informações sobre a promotora Tânia Maria foram retiradas principalmente
de seu livro Chacinas e Falcatruas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
40
Tenório Cavalcante foi um advogado e político atuante em Duque de Caxias,
conhecido por portar uma metralhadora a qual chamava de “Lurdinha”, e também
por utilizar uma capa preta que lhe rendeu a alcunha de “homem da capa preta”.

69
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

A promotora Tânia Maria conta em seu livro que ao chegar


em Caxias, entrou em contato com líderes comunitários para
tentar superar a lei do silêncio41, pois ninguém aceitava depor nos
processos contra grupos de extermínio. No dia 20 de abril, numa
reunião na Catedral de Santo Antônio, ela ouviu acusações for-
mais de relações entre o Poder Judiciário local e os chamados ex-
terminadores. Pouco depois, a promotora verificou que um núme-
ro expressivo de pessoas envolvidas com grupos de extermínio
foi credenciado como oficial de justiça ad hoc pelos vários juízos,
embora a maioria não trabalhasse efetivamente nessa função.
O caso mais notório é o de João Pedro Bueno, conhecido
como “Pedro Capeta”, apontado na Comarca e pela polícia como
suspeito de chefiar um grupo de extermínio. Ele foi nomeado ofi-
cial de justiça ad hoc do juízo da 4ª Vara Criminal de Duque de
Caxias pelo então titular Luiz Cezar de Aguiar Bittencourt, poste-
riormente presidente do Tribunal de Alçada Criminal do estado.
Em 16 de junho de 1988, “Pedro Capeta” foi preso em companhia
de seu filho Jorge Alberto Neves Bueno e de outras pessoas quan-
do iniciavam mais um crime de extermínio na Baixada.
Todo esse imbróglio de ilegalidade que Tânia Maria encon-
trou, contrastou com a Caxias perpetuada em sua memória. Im-
portante frisar que por vezes a memória romantiza o passado,
sendo dessa forma necessário um olhar mais amplo à pesquisa.
Tânia Relata que quando menina ir à feira de Caxias era
uma viagem dos sonhos, aquela cidade era um lugar onde amava
estar. Para lá iam todos os nordestinos que vieram morar no Rio
e a feira simbolizava um breve retorno às origens. Lá podia-se
encontrar de tudo que não era encontrado no comércio do Rio
de Janeiro, coisas que só se recebia pelos Correios ou que eram
entregues pelos parentes que vinham visitar a família.

Andávamos pelos corredores formados pelas centenas de


barracas, descíamos ruas e íamos encontrar Carlitos, um
baiano de risadas largas que vendia panelas, moringas e
potes de barro, além de folhas as mais diversas com cheiros
maravilhosos. Voltávamos ao início da caminhada onde,
quase na praça, encontrávamos o maior requinte da feira:
41
Imposição do poder paralelo local.

70
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

Conceição de Ogum. Era uma baiana a caráter, de saias


rodadas enfeitadas com muitas rendas e muitas fitas que
tinha uma banca enorme e deliciosa. Tudo de Conceição
era gostoso. Comíamos vatapá, caruru, sarapatel, moquecas
encantadoras, maniçoba, acarajés maravilhosos, frigideiras
divinais, cocadas brancas e pretas ao gosto do freguês
(MOREIRA, 2003, p. 57).

O relato, seja ele biográfico ou autobiográfico, como o do in-


vestigado que se entrega ao investigador, propõe acontecimentos
que, sem terem se desenrolado sempre em sua estrita sucessão
cronológica (quem já coligiu histórias de vida sabe que os inves-
tigados perdem sempre o fio da estrita sucessão do calendário),
tendem ou pretendem organizar-se em sequências ordenadas se-
gundo relações inteligíveis (BOURDIEU, 1986).
As memórias de Tânia Maria permeadas de suas afetivida-
des construíram uma Caxias repleta de ludicidade. Sua escrita
romantiza uma empoeirada e quente Caxias, de praça de chão
avermelhado de barro onde ficavam estacionados muitos cami-
nhões, com redes coloridas esticadas, e que a receberia como
servidora pública mais tarde, como paladina para uns e desafeto
para outros. Em suas lembranças estavam as imagens assistidas
na TV de Tenório jogando Flávio Cavalcante42 na piscina, o mes-
mo que viu passar perto de sua casa em Guadalupe, bairro onde
morou até sua morte. Mas o romantismo da memória nada teria
a ver com a realidade do enfrentamento aos grupos de extermí-
nio. Podemos estar, assim, diante da ilusão retórica abordada
por Bourdieu (1986, p. 185).
Em contraponto à essa memória específica de Tânia Maria
sobre episódios como o assistido na TV, Tenório Cavalcanti, ao
ser questionado sobre sua fortuna em uma entrevista concedida
a TV-Rio, afirmou que não apenas os flagelados de Caxias, mas
42
Flávio Cavalcante foi um repórter da TV Tupi que provocou Tenório em uma
reportagem. Este, por sua vez, afirmou que só daria resposta à provocação
em entrevista na sua residência em Duque de Caxias. Flávio concordou e foi à
entrevista. Ao desembarcar com a equipe e instalar todos os equipamentos no
local combinado, Tenório trancou a porta de entrada. Em determinado momento,
portando uma arma, Tenório mandou que Flávio se jogasse dentro da piscina.
Flávio tentou argumentar, mas não teve jeito. O fato ocorreu com transmissão ao
vivo pela televisão.

71
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

também do Distrito Federal, procuravam amparo na sua casa


quando ocorria alguma calamidade; dizia que sua casa era suntuo-
sa, com piscina, largos salões, muitos cômodos. Aquele seria, en-
tão, em sua visão, além de um espaço privado, também um espaço
público quando demandado (ARAUJO DE SOUZA, 2012, p. 87).
As ameças eram reais, os assassinatos eram próximos e
constantes, as balas tinham endereço e, por incrível que pare-
ça, percorriam os corredores do Judiciário, discricionariamente
entregues pelo Judiciário. As famílias suplicavam e aguardavam
por justiça. Tânia Maria, juntamente com Carla Maria, sua irmã
e assistente, acolheram famílias inteiras que sonhavam com o
único consolo que lhes restava após terem a vida de seus entes
ceifadas pelos grupos de extermínio. Encontravam a doutora Tâ-
nia Maria, mas também encontravam a máquina burocrática e
corporativista do Estado.
Os relatos de Tânia dão conta de que o reconhecimento do
poder público viria somente após as manifestações de entidades
de Direitos Humanos estrangeiros. Ainda assim havia que se en-
frentar o corporativismo entranhado da máquina estatal.

Memórias de Carla Maria

Carla Maria Salles Moreira é irmã de Tânia Maria, e foi sua


assistente junto às Comarcas de Nova Iguaçú e Duque de Caxias;
ao todo foram 16 anos juntas, dia a dia. Tal qual Tânia Maria e
Maria Cristina, a terceira irmã, Carla também foi praticamen-
te criada em uma delegacia por influência de seu pai, senhor
Alexandre, escrivão de polícia que levava as três filhas para o
trabalho. Ex-combatente, senhor Alexandre veio da Bahia para o
Rio de Janeiro para servir à Marinha, passando em concurso da
Polícial Civil posteriormente. A mãe, Margarida Salles Moreira,
nascida em Santo Amaro da Purificação, Bahia, é descrita como
uma pessoa maravilhosa, grande cooperadora e defensora da fa-
mília e amigos, largou tudo e acompanhou o marido.
Após a morte dos pais, a família continuou unida. Tânia
Maria ajudou as irmãs e pagava bons colégios para seis crianças,
mesmo não tendo tido filhos.

72
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

Não é porque eu tô falando da minha irmã não, uma pessoa


super justa, sabe? Trabalhou, estudou, quer dizer, estudou,
trabalhou. Fez teatro um tempo, sabia dessa? Que ela fez
teatro? Ela fez teatro... Aí teve um dia que Alexandre falou
assim: ‘Minha filha, eu gastei dinheiro contigo pra você se
formar, pra você trabalhar e o teatro não tá dando certo, então
você resolve’. O que Tânia Maria fez? Resolveu trabalhar,
porque ela conhecia Alexandre também, não é? E trabalhou,
advogou, fez o primeiro concurso pro MP, não passou,
passou no segundo e que ela disse até hoje, diria, te garanto
que ela diria até hoje, vê como é que eu falo, parece que ela
tá presente, que ela só passou nesse concurso, porque foi o
único concurso que a prova oral não era desclassificatória,
era...Como é que chama? Era classificatória. Então ela passou
por causa disso, se não ela não passava, que a prova oral
do MP antigamente era horrível, e foi o único concurso que
passou aquela quantidade de gente, cento e quarenta e sete,
né? Tânia Maria fala, falava, ‘eles se arrependem até hoje de
ter passado aqueles malucos todos’. Que teve a mudança no
Ministério Público com o concurso deles, teve uma mudança
grande dentro do Ministério Público que eles vieram com
a corda toda, querendo trabalhar, querendo trabalhar... E
foi a loucura total. E... Não sei, ela tinha aquele negócio de
Baixada Fluminense, ela gostava de trabalhar na Baixada
Fluminense que nós fomos criados também, aos domingos,
ir pra Caxias, pra feira de Caxias. Só que a Tânia morreu,
infelizmente, teve uma morte horrorosa. E ela gostava de
trabalhar na Baixada e achava um absurdo o que acontecia
na Baixada, matavam muito, brincando, as pessoas matavam
muito ali e continuam matando até hoje (Entrevista de Carla
Maria Salles, em 28/03/2018).

Tânia Maria superou um primeiro câncer quando ainda era


promotora. Mas não resistiu à mesma doença num período em
que já era procuradora e lecionava no Centro Universitário Au-
gusto Mota (UNISUAM). Entre os episódios que antecederam o
falecimento de Tânia, está o comentário de César PM, detento
em Frei Caneca que, segundo Carla Maria, falou para a então
promotora que sua mãe e irmã viviam para fazerem faxina, e
que, com esse dinheiro, além de ajudar na casa, faziam macumba

73
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

para que Tânia Maria morresse. Ele disse que “se ela não morresse
de tiro, morreria de alguma outra coisa”. Situações como essa, de
ameaça implícita ou velada, são pontuadas no decorrer da pes-
quisa.
Carla relata uma visita que fizeram a Bangu quando ainda
estavam lotadas na 4ª Vara Criminal do Fórum de Duque de
Caxias. Grávida de oito meses, acompanhou a promotora ao que
ela chamava de “visita aos meus meninos”, uns três detentos que
ela mesma tinha encaminhado pra lá. Foram então para o presí-
dio de Bangu para saberem como era o funcionamento. Relata
que, já no presídio, subiam a escadinha da guarita e de lá dava
para ver tudo. Já na Frei Caneca, teriam ido acompanhadas de
seus dois seguranças. Os presos eram todos soltos, não ficavam
em celas, ficavam nas galerias. Ao passarem para visitarem os
policiais militares (PMs) detidos, acontecia um jogo com juiz e
bandeirinha. Quando viram a Tânia Maria, ficaram um olhando
para a cara do outro como quem pergunta “o que essa maluca
está fazendo aqui?”.
Na ocasião de “Tião da Mineira”, Carla Maria relata terem
saído de casa às 11 horas da noite em direção ao hospital. Por
conta de um tiro no dedo, ele teria que tomar benzetacil. Pediu a
Tânia que não deixasse os médicos aplicarem a injeção. Segundo
Carla, esse mesmo homem que chorava no hospital, somente em
um processo levou 54 anos de pena, “matou muito”.
Segundo matéria do Jornal do Brasil “Policial acusado de ex-
termínio” (15/01/91, p. 5), “Tião da Mineira” participou da mor-
te de um homem branco, com 25 anos presumíveis, que levou
dois tiros na cabeça no interior de um ônibus da linha Hospital
Infantil-Centenário no final tarde do dia 4 de abril. Houve um
tiroteio no ônibus, na Rua Professor Henrique Ferreira Gomes,
no centro de Caxias. “Tião da Mineira” foi preso pouco adiante,
na Rua Pedro Correia, com um revólver calibre 38 na cintura e
um ferimento a bala. “Tião” foi agarrado pelos integrantes da
Patamo 52.0141, que patrulhavam a área logo depois de have-
rem tomado conhecimento do tiroteio no ônibus. Os policiais
só viram que ele estava ferido ao apresentarem o preso na 50ª
DP. Por isso, “Tião” nem chegou a prestar depoimento, sendo
levado para o Hospital Geral Duque de Caxias e em seguida

74
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

transferido para o Hospital Getúlio Vargas, onde ficou sob cus-


tódia da Polícia Militar.
Ele não foi reconhecido pelo motorista do coletivo, Claudio
Lopes Perdigão, e muito menos pelo cobrador, Francisco de Assis
dos Santos, ambos de 26 anos. O motorista disse que só ouviu a
fuzilaria dentro do veículo e se abaixou embaixo do volante e en-
cobriu a cabeça. O tiroteio ocorreu no ônibus KJ-2461, da viação
Vera Cruz. À ocasião, o delegado Jaime de Lima confirmou que
“Tião da Mineira” estaria sendo acusado por várias execuções.
No dia 9 de abril o delegado Carlos Alberto Barcellos, se-
cretário executivo da Comissão Especial, expediu o Ofício Nº
334/90 à 4ª Vara Criminal de Duque de Caxias solicitando que o
inquérito 248/90 fosse juntado ao 249/90, visando a unificação
das investigações relacionadas aos vários crimes dos quais “Tião
da Mineira” teria participado. Juntando esses à ficha de antece-
dentes criminais constando anotações na 59ª Delegacia Policial
(DP), 60ª DP e Comissão Especial. Em 13 de maio de 1990, a
promotora Tânia Maria Salles ofereceu denúncia contra “Tião
da Mineira”, requereu o recebimento e a consequente instaura-
ção da ação penal e, na sequência, a condenação do réu. O caso
de “Tião da Mineira” foi um entre os vários trabalhados pela
promotora Tânia. Seu enfrentamento às forças preestabelecidas
estava apenas por começar.
As ameaças de morte se intensificaram e por pressão da mí-
dia e setores ligados aos Direitos Humanos, como a Anistia Inter-
nacional, o governo estadual cedeu escolta para Tânia e Carla.
No auge dos acontecimentos na 4ª Vara Criminal, houve uma in-
vasão na casa vizinha à residência da promotora, em Guadalupe.
Então a preocupação de Tânia não era mais somente com ela,
era com a família. As crianças não saíam, tudo era desesperador,
tanto que a pressão arterial de Carla vivia nas alturas. O senti-
mento opressivo era constante. Quando Tânia saiu de Duque de
Caxias, ela dispensou a segurança, pois achava que não precisa-
ria, mas o clima não mudou:

a casa vivia cheia, de repente somem? Ou você escutar...,


outro dia eu escutei, um amigo dela, amigo, amigo, bate
no peito, minha amiga! Aí surgiu a história, por que você

75
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

não veio no enterro? Não, eu fui no enterro, não, minto,


chegaram umas seis pessoas, o cara chegou se apresentou
eu sou fulano de tal, eu fui no enterro da tua irmã, não falei
contigo porque não tive oportunidade, falei: ‘ah, tá certo;’
aí perguntaram pra esse amigo, você não veio por quê? ‘Ah
não, ela não morreu de tiro, se ela tivesse morrido de tiro’.
Morrer de doença não vai dar ibope, de tiro podia dar, isso
dói, não dói? ‘Eu não queria ver ela assim do jeito que ela
estava, ela não morreu de tiro’. Falei: ‘Ah! Se tivesse morrido
de tiro você teria vindo?’ (Entrevista de Carla Maria Salles
em 28/03/2018).

Carla acredita que o estopim para a segunda doença de


Tânia Maria teria sido um procedimento de lipoaspiração. Este
mesmo procedimento foi apontado como inadequado por al-
guns médicos e também pela família, mas Tânia insistia em fa-
zer. Complicações surgiram após a operação, o que evoluiu até
levá-la a óbito. Carla Maria lamenta, e diz que se tivesse a menor
ideia, proibiria a irmã de fazer o procedimento cirúrgico.
Questionada sobre sua satisfação sobre o trabalho desen-
volvido junto à irmã, Carla Maria diz que é maravilhoso ver nos
olhos das pessoas com agradecimento. “Obrigado, doutora”, é
o que diziam. Quando acabava um júri, o cara era condenado,
era um “obrigado doutora”. Quando via-se júri de matador, e
abriam-se as sete cédulas... hoje em dia não abrem mais. Anti-
gamente o placar era 5 a 2, condenação. “Você pegava júri de
matador, 7 a 0 era um prazer que ela e eu tínhamos, era um
prazer”, relata Carla Maria. Carla ainda lembra que teve um júri
com um sobrevivente que levou um tiro na coluna, não andava,
todo troncho. Era seu Ivo. Júri da Tânia era a coisa mais linda de
se ver, porque ela não chamava ninguém de bandido, safado, de
nada, ela só se referia aos réus dela como “senhor”, ela tinha todo
respeito, não era baixaria o júri dela, completa Carla (depoimen-
to de 28/03/2018).
Tudo leva a crer que o relato de vida tende a aproximar-se
do modelo oficial da apresentação oficial de si, carteira de iden-
tidade, ficha de estado civil, curriculum vitae, biografia oficial,
bem como da filosofia da identidade que o sustenta, quanto mais

76
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

nos aproximamos dos interrogatórios oficiais das investigações


oficiais, cujo limite é a investigação judiciária ou policial, afastan-
do-se ao mesmo tempo das trocas íntimas entre familiares e da
lógica da confidência que prevalece nesses mercados protegidos.
As leis que regem a produção dos discursos na relação entre um
habitus e um mercado se aplicam a essa forma particular de ex-
pressão que é o discurso sobre si (BOURDIEU, 1986 p. 69-72).

Do “anjo literário” à Chacinas e Falcatruas

Chacinas e Falcatruas é uma memória imprescindível à com-


preensão biográfica de Tânia Maria, à sustentação hipotética dos
impasses e dificuldades enfrentados por ela ante a promotoria
da 4ª Vara Criminal de Duque de Caxias, e ao cruzamento dos
inúmeros fatos descritos no livro que remetem a documentos en-
contrados na pesquisa. Vários episódios compõem a narrativa
de um cenário complexo diante da violência que se manifestava
à época a partir das ações dos grupos de extermínio. Segundo
Rousso (apud AMOROSO, 2014, p. 19), “memória seria uma for-
ma de designar o passado não de maneira objetiva e racional,
mas visando a sua manutenção no presente de forma viva, atra-
vés de uma ligação marcada por fortes cores emotivas e, por ve-
zes, subjetivas”.
Descrito por Tânia Maria como seu “anjo literário”, João Al-
meida, hoje com 80 anos, chegou ao Brasil em 1955 vindo de
Portugal, deixando lá a família. Começou a trabalhar com livros
jurídicos tornando-se muito bem quisto por advogados, promo-
tores, juízes e desembargadores. Iniciou uma livraria no mesmo
prédio da Universidade Cândido Mendes, onde também formou-
se em Direito em 1978. Abriu a Editora Lumen Juris, ampliando
assim seu relacionamento com vários juristas e principalmente
com os estudantes. A primeira loja foi na Rua da Assembléia, 38.
A seguir, veio a loja da Rua da Assembleia 10, onde lá permanece
até hoje. Todos os dias, sem falta, o senhor João está lá, afirma
que o desenvolvimento da editora tem altos e baixos, e por isso
precisa ficar atento a tudo que ocorre no meio jurídico. Além dis-
so, a maior das motivações e o que o estimula à assiduidade aos

77
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

80 anos é o relacionamento com os estudantes, a quem atribui a


evolução da editora.
O senhor João diz ter conhecido Tânia Maria enquanto ela
estudava na Cândido Mendes. Tornaram-se grandes amigos.
Descreve-a como preparada e inteligente. No entanto, faltavam-
lhe recursos para estudar. Tânia perguntou a ele se podia lhe
emprestar alguns livros e ele prontamente atendeu.

Não, Tânia, pode pegar livro aí a hora que você quiser e se não
devolver não tem problema, fica por isso mesmo. Ela era uma
menina inteligente e eu sabia que ela ia mais dia menos dia ia
explodir no Direito, não deu outra, foi promotora pública, é isso
aí. Nós conversávamos muito, e nós tínhamos muito contato
um com o outro, éramos amigos, né? Ela se abria pra mim, eu
me abria pra ela e a gente era muito amigo, muito amigo, aí
quando eu dei conta, ela era promotora de justiça pois era uma
menina preparada e eu sabia que ia dar ao ministério público,
aos juízes, sabia que podia uma coisa dessas, era questão de
tempo (Entrevista com João Almeida em 26/02/2018).

Mais tarde, o livro Chacinas e Falcatruas se contextualizaria


diante do desenrolar da carreira de Tânia. Ou seja, a necessidade
da existência do livro viabilizou-se com o histórico de relaciona-
mento com o dono da Editora Lumen Juris. Senhor João comen-
ta que sempre a influenciou e incentivou em vários momentos
de sua vida. Em determinado dia, Tânia comentou que estava
escrevendo um livro, sendo este acolhido pela editora, seguindo
até a segunda edição. Afirma que se Tânia estivesse viva, o livro
já estaria na 12ª edição, pois foi um sucesso espetacular, tendo
sido muito vendido. Pondera que, quando a pessoa morre, sendo
o autor de prestígio ou não, a venda cai.
A afirmação do senhor João Almeida relacionando a queda
de vendas dos livros de Tânia Maria após sua morte, pode ser re-
lativizada. O efeito contrário percebe-se com diversos outros au-
tores, que após sua morte tiveram, ao contrário do que afirmou,
um crescimento significativo na venda dos livros publicados em
vida. A proximidade do senhor João Almeida com Tânia Maria,
e sua evidente admiração por ela podem provocar romantiza-
ções às memórias por ele relatadas.

78
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

Segundo o senhor João, a Tânia tinha condições de escrever


qualquer outro livro dentro da área dela, que era a criminal, pois
ela gostava muito. No entanto, o seu livro é mais pessoal porque
ela se envolvia com as pessoas e porque tinha histórias para con-
tar. Via-se naquele período que ela tinha convicção absoluta do
que estava escrevendo, afirmou, completando que ela era uma
pessoa espetacular, incorruptível, tinha muita pena das pessoas,
e não tinha coisa que desse jeito aos argumentos e verdades que
ela tinha [...] Era muito conhecida por ter posições firmes, com-
pletou João Almeida.
Tânia Maria, por conta desse temperamento contundente,
sofreu muitos processos administrativos. O senhor João comenta
que isso pode acontecer com qualquer um com as posições e
argumentos dela, com as convicções fortes que ela tinha. Des-
perta a atenção de muitos colegas invejosos, muitas pessoas não
gostam. No entando, ela fazia tudo com muita naturalidade, não
tinha problema algum que a derrubasse, mas a inveja existe em
qualquer atividade, e evidentimente no dela, o Ministério Pú-
blico. Era uma promotora e foi à procuradora. E com projeção
nacional.
Assim como outros entrevistados, o senhor João obviamente
em sua fala nutre admiração por Tânia Maria. Dessa forma, uma
Tânia Maria se constrói em cada memória relatada. Uma visão,
ainda que similar a outras visões, se torna singular a partir do
vínculo entre o entrevistado e o sujeito da pesquisa em questão.
No caso, o senhor João Almeida expressa durante sua entrevista
uma visão paternal sobre Tânia Maria.
João Almeida continua relatando que Tânia tinha uma pai-
xão, o Ministério Público de Caxias. Ela sabia que existiam mui-
tas irregularidades nesse município e ela sempre se firmou em
defender os pobres e os necessitados. Muita gente não gostava
disso e por isso a criticavam, mas ela saía de tudo com a consciên-
cia tranquila, de maneira que não tinha o que a prejudicasse. O
senhor João, por diversas vezes, alertou Tânia sobre o risco que
corria em Caxias.

Ela gostava muito daquilo, ela vinha aqui na livraria, eu


sempre comentava com ela: ‘Tânia, cuidado’, porque eu sabia

79
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

o que acontecia lá. ‘Cuidado, abre teu olho’, ‘evita a criar


polêmicas’, mas as polêmicas que ela criava eram polêmicas
do povo, a favor do povo, entendeu? Ela não era... Aquilo, a
consciência dela era... Ela queria defender o povo, que era
o povo era... Marginalizado, entendeu? E ela estava ali pra
isso, e eu até pensei um dia: ‘Ô Tânia, eu tenho a impressão
que tu ainda vai ser prefeita de Caxias’ (Entrevista com João
Almeida em 26/02/2018).

Algo peculiar acontecia em Duque de Caxias, segundo o


senhor João: ninguém queria ser promotor na Vara Criminal de
lá. Era comum buscarem colocações na Vara Familiar ou Civil,
não na Criminal. No entanto, Tânia aceitou. Seu trabalho gerou
enorme repercussão, publicações diárias nos jornais, a ponto de
ela aparecer na livraria acompanhada de três ou quatro seguran-
ças. Assunto foi o que não faltou para que ela escrevesse o livro,
completou João Almeida em seu depoimento.
Essa complexidade relatada pelo senhor João sobre o imbro-
glio laboral de Tânia Maria na 4ª Vara Criminal de Duque de
Caxias ensejou publicidade diante das investidas da promotora
contra os grupos de extermínio. Em contrapartida, diante de
tais investidas, reações dos investigados começaram a se cons-
truir. Ameaças veladas e atendados contra a vida são relatados
por Tânia Maria. E, diante da morosidade do poder público em
proporcionar proteção aos trabalhos exercidos, um outro vín-
culo se solidifica à ocasião, o de Tânia Maria com os Direitos
Humanos.

Os Direitos Humanos

Em abril de 1991, ao sair do gabinete do secretário de polí-


cia, Carlos Magno de Nazareth Cerqueira, Tânia Maria declarou
o seguinte: “Eles só vão sossegar quando me matarem”43 . Seis
meses antes, ela tinha denunciado o envolvimento de juízes com
grupos de extermínio de menores na Baixada Fluminense. Por
conta disso estaria recebendo ameaças de morte. Entidades de

43
Afirmação colhida no depoimento de Ivanir dos Santos em 04/06/2018.

80
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

defesa dos direitos humanos de diversos países – Espanha, Ca-


nadá, França, Suécia, Finlândia, Alemanha, Itália e Japão – en-
viaram dezenas de cartas ao Ministério da Justiça e à Secretaria
de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, pedindo que o caso
não fosse esquecido ( Jornal do Brasil, “Polícia Militar protege pro-
motora”, 27/04/91, p. 3).
Muito atuante nas questõess de direitos humanos em Duque
de Caxias, especialmente Campos Elíseos e toda área do 2º Dis-
trito, o Frei Evaristo Pascoal Spengler foi presidente do Centro
de Defesa dos Direitos Humanos na região. Juntamente com o
Bispo Dom Mauro Moreli, foram ouvidos em 25 de junho de
1991 pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assem-
bleia Legislativa, que apurava a matança de menores no estado.
Confirmaram, sem citar nomes, a existência de grupos de exter-
mínio na Baixada Fluminense. E apresentaram dados do próprio
Centro de Defesa dos Direitos Humanos que davam conta que
“dos 4.611 homicídios de menores registrados entre 1988 e 1990
no Brasil, 1.231 ocorreram no Rio, e destes, pelo menos a metade
ocorreu na Baixada Fluminense”. Segundo Dom Mauro, as auto-
ridades judiciárias, executivas, legislativas e policiais de Caxias e
de outros municípios da Baixada não faziam nada para reverter
a situação. E quando não se omitiam deixando impunes os atores
desses crimes e não apresentando projetos, trabalhavam contra
aqueles que denunciavam os assassinatos ( Jornal do Brasil, “Bispo
confirma matança de crianças na Baixada”, 26/06/91, p. 5).

O ex-deputado federal Messias Soares, eleito em Caxias,


escreveu na semana passada num jornal local, que não existe
essa história de grupo de extermínio. O que não existe é
efeito sem causa. As mortes acontecem em número crescente
e é óbvio que há uma estrutura montada por trás disso.
Pessoas e grupos adotaram uma versão atualizada da Lei de
Segurança Nacional criada pela ditadura militar. Naquela
época o inimigo do Estado era o povo e os maiores absurdos
eram cometidos em nome dessa segurança.

Tânia Maria aproximou-se do Centro de Defesa dos direitos


Humanos, e em Caxias a representação maior estava justamente

81
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

em Dom Mauro Moreli e Frei Evaristo Spengler. Em Chacinas e


Falcatruas, Tânia relata seu primeiro contato com o Movimen-
to Negro Organizado do Rio de Janeiro, passando então a um
engajamento, ainda que em nível de mera colaboradora com en-
tidades como o Centro Nacional de Africanidade e Resistência
Afro-Brasileira, tendo isso proporcionado um trânsito no cha-
mado movimento social.
As memórias de Tânia não enfatizam de maneira contun-
dente as questões raciais. As percepções se limitam ao contexto
social englobado por minorias, e que demandavam suporte do
poder público diante de suas necessidades. Os entrevistados da
pesquisa não pontuaram questões raciais como problematização
de suas memórias. Não obstante, de forma isolada, a própria Tâ-
nia Maria em seu livro, esclarecendo sobre seu perfil rebelde em
embates com seus superiores, relata exagerar com um juíz, di-
zendo-lhe não ser sua negrinha de recados.

Depois de algumas frases ríspidas saí do gabinete do juiz


dizendo que alí não estava para ouvir desaforos e exagerei
ao dizer-lhe no melhor sentido baiano: ‘Não sou sua negrinha
de recados para ser maltratada’. Era tudo que ele estava
esperando que eu fizesse para dar-me voz de prisão e mandar
chamar o delegado da área para prender-me por desacato
a autoridade. A situação era de tal absurdo jurídico que
acalmei-me e comecei a divertir-me com o acontecimento.
(MOREIRA, 2003, p. 45).

Após um encontro com o Frei Evaristo Spengler, Tânia con-


seguiu uma primeira reunião com os líderes comunitários locais,
realizada no salão da Igreja Santo Antonio. Apresentou-lhes en-
tão a proposta de trabalho conjunto e a primeira reação foi a per-
gunta acerca do porquê da parceria se os principais apontados
como integrantes de grupos de extermínio eram frequentadores
da 4ª Vara Criminal.
No Centro de Articulação de Pessoas Marginalizadas
(CEAP), Tânia Maria encontrou Ivanir dos Santos, negro de ori-
gem pobre, nascido em favela, ex-interno da Fundação Nacio-
nal do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), saindo de lá somente

82
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

com 20 anos. Ivanir dos Santos iniciou então sua trajetória de


luta pelos direitos humanos fundando a associação dos ex-alunos
da FUNABEM com outros companheiros. Trabalhou a questão
dos grupos de extermínio fazendo o primeiro relatório a tratar
do tema. Também desenvolveu trabalhos sobre intolerância reli-
giosa, populações faveladas, criando em seguida a CEAP, tendo
como primeiros casos de acompanhamento as chacinas de Nova
Jerusalém, Acari, Vigário Geral e Candelária. Também militou
pelo Partido dos Trabalhadores, como candidato a deputado es-
tadual, federal e vice-prefeito, até a academia, onde apresentou
tese de doutorado recentemente.
Ivanir relata ter conhecido Tânia Maria através de Jayro Pe-
reira nos trabalhos contra a intolerância religiosa. Segundo ele,
Tânia era ekedi de candomblé44, muito militante e muito simples
para alguém que carregava o título de promotora de justiça. Era
determinada e consciente de sua religiosidade e dos direitos hu-
manos. Tânia Maria e Tim Lopes tiveram um papel fundamental
à época nas questões dos grupos de extermínio. Vários jorna-
listas que hoje estão na grande mídia vêm desse período, um
pessoal que trabalhava na sucursal do jornal O Dia na Baixada
Fluminense.
O primeiro caso de grande repercussão foi a chacina de
Nova Jerusalém45. Em seguida, Acari e Candelária, estes dois
fora da jurisdição da Tânia Maria. Ironicamente, na mesma data
em que ocorria uma apuração de denúncias sobre atrocidades
contra menores em uma Comissão Parlamentar de Inquéritos
dos deputados em Brasília, seis crianças eram vítimas de uma
chacina em um bairro muito pobre de Duque de Caxias, Nova
Jerusalém. Com júri e Tânia Maria à frente da acusação, um dos
acusados, Luiz Carlos de Vargas Faneli, o “Cabeludo”, pegou 89
anos de pena.

44
Cargo feminino de grande importância no candomblé.
45
Em 14/11/1991, seis crianças com idades entre 9 e 16 anos foram assassinadas
na Favela de Nova Jerusalém na Baixada Fluminense.

83
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

Doutora Tânia e a Comissão Especial

Alves (1998, p. 156) relata que “no primeiro governo de


Leonel Brizola (1983-1986), a criação da Comissão Especial para
apurar os crimes atribuídos aos grupos de extermínio na Baixa-
da, em 1983, representou uma significativa mudança de postura
política frente ao problema da violência na região”. Mais tarde,
os jornais da época noticiavam um levantamento feito pela Co-
missão Especial apontando vários envolvidos com grupos de ex-
termínio na Baixada. O detetive Ayres do Nascimento foi um dos
responsáveis por esse relatório.

...eu sei que, não só eles informavam a Tânia, porque ela era
voltada para questões da Baixada, como, se não me engano,
um policial morreu, foi assassinado, um dos policiais na época
foi assassinado por conta disso e a Tânia passou a atuar baseada
nessa comissão; agora, é uma comissão, é a primeira tentativa
do estado, de fato, de tomar uma medida de coibir esse tipo
de crime no governo Brizola; era um governo que, como dizia
que, tinha uma política de segurança, que tinha que tratar
negro e favelado como cidadão, por isso que houve grande
ameaça de tentar ligar questão de direitos humanos à proteção
de bandido, isso era, inclusive, uma coisa pra fazer, não só as
entidades que lutavam pelos direitos humanos, mas para atingir
o governo do Brizola na época, o próprio Brizola, mas isso era
uma reação de setores conservadores da polícia, maus policiais
por assim dizer, com grupos de extermínio na sua ofensiva na
grande mídia. Isso passou a existir, mas eu não conheço uma
iniciativa positiva do ponto de vista, pelo menos uma atitude
que o governo tomou, mas eu não conheço o relatório; deu
até curiosidade de ver o relatório, mas, que foi uma medida...
que até hoje você não vê uma medida parecida como essa, você
não tem, chegar na delegacia especializada, que investiga, mas
naquele momento foi, mas eu me lembro que um policial foi
assassinado, que participava dessa comissão; depois ela foi
extinta (Entrevista de Ivanir dos Santos em 04/06/2018).

Em 13 de abril de 1990, foi divulgada “A lista dos carrascos”.


Com chefia do delegado Eide Trindade de Lima, uma relação

84
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

de acusados foi exposta para toda mídia e população fluminen-


se. Foram identificados 15 grupos de extermínio e apontados 50
nomes de suspeitos. As áreas com os nomes das localidades, e
os grupos com os nomes dos acusados, vários deles com identi-
ficação como integrantes da Polícia Militar do Estado do Rio de
Janeiro (PMERJ). A matéria continua dizendo que: “Quase todos
os 15 grupos de extermínio que constam do relatório encaminhado ao
Secretário de Polícia Civil, Hélio Saboya são chefiados por integrantes
da Polícia Militar” (grifos meus) ( Jornal do Brasil, “A lista dos car-
rascos”, 13/04/90, p. 3).
Em 21 de junho de 1991, o delegado Pedro Paulo de Abreu,
da 60ª DP (Duque de Caxias), em depoimento à CPI da Câmara
que investigava a matança de menores no Rio de Janeiro, acusou
a Polícia Federal de relaxamento por não investigar a denúncia
de que empresas de vigilância privadas mantinham em seus qua-
dros integrantes de grupos de extermínio. Segundo ele, essas
empresas não possuíam alvará de funcionamento, mas mesmo
assim nenhuma delas foi interditada. O delegado confirmou a
denúncia da promotora Tânia Maria Salles, feita à CPI na se-
mana anterior, contra três empresas, revelando que o dono de
uma delas, o ex-cabo PM Jorge Oliveira de Souza, o “De Souza”,
respondia a vários processos por homicídios.
A empresa Seguro Jeans, à época sediada em São João do
Meriti, tinha 60 empregados, a maioria composta por homens
expulsos das polícias civil e militar por envolvimento com cri-
mes. Um dos empregados conhecidos como “Killer”, e que res-
pondia pela firma na ausência de “De Souza”, era procurado por
quase todas as delegacias da Baixada Fluminense por assaltos e
homicídios. “De Souza”, certa vez, fez subir aos céus da Baixada
um balão que carregava a seguinte inscrição: “A JUSTIÇA SOU
EU – DE SOUZA” (MOREIRA, 2003, p. 35).
Tânia Maria também havia denunciado como participantes
de grupos de extermínio funcionários da empresa de vigilância
SOS Serviços Gerais Ltda. E a Associação de Guardas Noturnos
de Duque de Caxias. Pedro Paulo relata que a Guarda Noturna
possuía cerca de 200 vigilantes, quase todos sem preparo e, o que
era mais grave, com passagens pela polícia. O delegado ainda
alertou para a conivência dos comerciantes de Duque de Caxias,

85
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

salientando que na absolvição, Pedro Nunes (“Pedro Capeta”)


saiu do Tribunal de Justiça carregado por alguns comerciantes
que compravam sua proteção ( Jornal do Brasil, “Delegado aponta
descaso da PF com matança” 21/06/91, p. 5).
As investigações da Comissão Especial encontraram uma
parceira à altura na Comarca de Duque de Caxias. Tânia Ma-
ria, mesmo com ameaças de morte, escolta deficitária, burocra-
cias processuais e um aparente “fogo amigo” no próprio Fórum
de Caxias, permanecia firme no propósito de oferecimento de
denúncia aos acusados. Ainda da lista divulgada pela Comissão
Especial, anota-se Celso Silva Pereira (“Pereira”), seu registro de
antecedentes criminais Nº 6.810.433-0, com preenchimento do
Serviço de Homicídios da Baixada, continha anotações na 59ª
DP pelos artigos 180, 19, e 76 do Código Penal (CP); na Divisão
de Repressão e Combate ao Crime Organizado (DRCO) pelo ar-
tigo 159 §1º CP; 60ª DP artigo 121 e 14 do CP, e artigo 148 do CP.
Denunciado pela Comissão Especial e pela doutora Tânia Maria
em 1991, Pereira foi acusado da morte de dois PMs e de integrar
um grupo de extermínio. Solidificava-se cada vez mais a atribui-
ção de membro do Ministério Público que cabia à doutora Tânia
Maria enquanto lotada na 4ª Vara Criminal de Duque de Caxias.
Importante o posicionamento jurídico que em seu ordena-
mento confere ao Parquet46 autonomia para as ações investigati-
vas dos agentes públicos. E, nos casos em tela correlacionam-se a
movimentos coordenados pelos denunciados e condenados que,
mormente, por conta própria, de maneira legal ou ilegal, através
de defensores ou não, iniciam processos de desqualificação da-
quele que acusa, visando mitigar o peso da acusação em si.
Preso por policiais da Delegacia de Homicídios da Baixa-
da, “Pereira” não esboçou reação ao ser detido na Rua Manoel
Correa, 317, no Bairro de Andrade Araújo, Belford Roxo. Por
quase 24 horas ele manteve a mulher, Mônica Mello Vital e a
filha do casal, Rafaela, prisioneiras. Os policiais da Homicídios
chegaram ao local depois que Vânia Mello Vital, irmã de Môni-
ca, denunciou o crime e informou o endereço de “Pereira” à 59ª
DP de Duque de Caxias. O histórico criminal de “Pereira” dava
46
Parquet, em Direito, diz respeito aos membros do Ministério Público. Seu uso é
frequente em sentenças e despachos.

86
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

conta de que ele integrava um grupo de extermínio no bairro


Califórnia, em Duque de Caxias, e mantinha contato com trafi-
cantes do Morro da Mineira, no Catumbi, “Paulinho Dedo Ner-
voso”, “Neguinho”, “Tião”, “Flavinho” e “Boca Pereira”. Além
disso, segundo a polícia, “Pereira” trabalhou durante dois anos
como segurança do banqueiro do jogo de bicho, Aldemiro Paes
Garcia, o “Miro” (documentação catalogada na pesquisa – Pron-
tuário de Investigados pela Comissão Especial de Polícia Civil).
O Jornal do Brasil – “Acusado do extermínio de menor de
rua preso em Duque de Caxias” (16/01/91, p. 5) – dava conta
de que o futuro secretário estadual de Segurança, Nilo Batista,
pretendia dissolver a Comissão Especial da Polícia Civil. Seguia
o informe de que não seria porque considerasse esse assunto de
menor importância e sim porque pretendia dar maior dimensão
ao trabalho. Nilo Batista pretendia recriar, dentro do Departa-
mento de Polícia Especializada, a Divisão de Defesa da Vida, que
contaria entre outros recursos com pessoal aparelhado e treina-
do especialmente para investigar esse tipo de crime. Para Nilo,
a ação dos grupos de extermínio era “um problema sistêmico” e
exigia da polícia um órgão com centenas de homens e com muito
equipamento, atuando em caráter permanente.
Essa descrição reflete disputas internas aparentemente co-
muns aos governos de situação. O que possibilita, portanto, a or-
dem social em um sistema que se constrói a partir da explicação
dos conflitos de interesses individualizados, em franca oposição,
gerando a construção coletiva de regras explícitas, de aplicação
literal ou universal, e que se constitui em legitimação de sua or-
dem jurídica, em que a concepção de igualdade é formal (KANT
DE LIMA, 1999, p. 26).
Nilo Batista dizia que extermínio era uma coisa só, fosse
de adultos ou de crianças. E assim deveria ser combatido como
um todo e permanentemente. Informou à imprensa à época que
queria policiais especializados trabalhando naquele órgão, que
centralizaria todas as informações sobre as ações dos grupos de
extermínio. Segundo ele, as delegacias regionais fariam as inves-
tigações preliminares. E, no momento em que ficasse caracteri-
zada a ação de grupos de extermínio, as informações deveriam
ser enviadas para aquele órgão. A Divisão de Defesa da Vida foi

87
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

criada pelo próprio Nilo Batista, no governo de Leonel Brizola,


e extinta logo depois da posse de Moreira Franco.
Hannah Arendt (2004, p. 25-32) afirma que todas as insti-
tuições políticas são manifestações e materializações do poder;
estratificam-se e deterioram-se logo que o poder vivo do povo
cessa de apoiá-las... o poder não precisa de justificativas, sendo
inerente à própria existência das comunidades políticas; mas
precisa de legitimidade.

Tergiversar Político ou Judiciário?

Um misto de dificuldades e virar de costas por parte de al-


guns membros dos Poderes Executivo e Judiciário vinha à tona
principalmente em momentos em que Tânia Maria avançava em
processos e investigações. Quando esteve à frente da 79ª Zona
Eleitoral de Duque de Caxias, por exemplo, Tânia recebeu uma
denúncia da juíza Lúcia Maria Miguel da Silva com o seguinte
texto “Encaminho a V. Ex.ª uma cédula onde, estranhamente
não foram impressos os nomes dos senhores candidatos à Prefei-
tura de Duque de Caxias, mas onde foi escrito o nome de um dos
candidatos manualmente. No aguardo de providências cabíveis,
subscrevo-me”. A cédula manuscrita estava em nome do candida-
to Messias Soares, nº. 12, e no verso as assinaturas do presidente
e dois mesários da seção. Segundo Tânia Maria, àquela época
havia várias denúncias de fraudes eleitorais (documentação cata-
logada – Carta manuscrita do Tribunal Regional Eleitoral com
suspeita de fraude nas eleições na 79ª Zona Eleitoral Duque de
Caxias).
As articulações entre os grupos de extermínio e alguns
políticos também eram evidentes nas investigações do Minis-
tério Público. A exemplo disto, constatou-se Valter da Rocha
Quitério, o “Televisão”, integrante de grupos de extermínio,
preso em flagrante por porte ilegal de arma de fogo em 7 de
outubro de 1989, no interior do bar Duas Gerações, situado na
Rua Delgado de Carvalho, esquina com Rua 8 – Vila São José,
Pantanal, Duque de Caxias. “Televisão” fazia indicações para o
vice-líder do PTB na Câmara Municipal de Duque de Caxias,

88
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

Sérgio da Silva, candidato a vereador em 1988 (documentação


catalogada – Prontuário dos Investigados pela Comissão Espe-
cial da Polícia Civil).
Os embates de Tânia Maria com os políticos de Caxias fo-
ram de conhecimento público. O caso mais emblemático envol-
veu o ex-prefeito José Camilo Zito. Em 25 de novembro de 1993
o Ministério Público enviou solicitação de custódia temporária
de Zito. O pedido foi lastreado no depoimento prestado por Sa-
darx Floriano da Silva, dando conta de que fora informado por
um vizinho que pessoas teriam estado em sua residência com o
objetivo de levar o macabro recado de que a qualquer momento
ele seria morto. Sadarx era um dos empregados do finado Ary
Vieira Martins, vítima de homicídio praticado no município e
ensejador da ação penal nº 10.518. Sadarx denunciou em juízo
a existência de desentendimentos envolvendo o falecido Ary e
Zito. Acrescenta-se a isso o fato de que Sadarx reconheceu um
dos autores do homicídio de Ary Vieira Martins. O Ministério
Público então solicitou ao juízo o acolhimento da representação
formulada pela autoridade policial contra José Camilo dos Santos
Filho. O curioso é que Zito foi eleito na mesma tarde do enterro
de Ary Vieira Martins (documentação catalogada – Ofício do
Ministério Público da 4º Vara Criminal à autoridade judicial).
José Claudio Souza Alves (2005 p. 8), analisa o entendimento
do desenrolar político precedente ao supracitado embate de Tânia
Maria e Zito. Afirma que a Baixada assistiu à chegada dos mata-
dores ao poder na justificativa totalitária do “bandido bom é ban-
dido morto”. Segundo José Claudio, a deterioração da segurança
pavimentava o sucesso eleitoral dos que a partir do voto lavavam
sua cidadania nas urnas e consagravam-se como personalidades
políticas, numa repetição da história de Tenório Cavalcanti.
Tânia Maria registra que, ao início do governo Marcello
Alencar, dizia-se em Duque de Caxias que a sua segurança seria
desativada a pedido do então deputado estadual e réu, Zito. Es-
palhava-se pela cidade a informação de que Tânia Maria estaria
prestes a ser removida compulsoriamente pelo governador.

Uma vez ela veio falar com um governador da época que


era o Marcello Alencar, e ela saiu do palácio e foi conversar

89
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

comigo, e era sobre um político importante da cidade, que


ia ser candidato e a Tânia me dizia que se ele... se eu não me
engano na época ele tinha imunidade quando ele se elegeu,
e a Tânia dizia que se ele fosse candidato, ele perderia a
imunidade, e ela ia mandar prendê-lo. Então, o governador
chamou ela, ela foi conversar comigo logo depois da
audiência; ela me falou sobre isso, sobre esse episódio e
disse que o governador, inclusive, de forma sutil, disse o
seguinte pra ela, ‘Não, esse aí, ele já tá mais calmo, acho
que é bom a senhora deixar isso pra lá, porque ele pode
voltar a ficar nervoso[...]”. Aí, curiosamente, tempos depois
a Tânia foi promovida, caiu pro alto, pra tirar ela daquela
Vara; ela foi, então, promovida à procuradora. É um caso
muito engraçado nesse sentido, que a única forma de tirar
ela da Vara, que ela era titular da Vara, era promovendo. E
foi assim que politicamente houve o arranjo pra que ela não
prendesse esse personagem (Entrevista de Ivanir dos Santos
em 04/06/2018).

A hipótese de ingerência política se reforça nas declarações


do livro quanto às percepções de Tânia Maria sobre sua perma-
nência como titular da 4ª Vara Criminal de Duque de Caxias,
e também nos relatos de Ivanir dos Santos quando recebeu a
visita de Tânia assim que ela saiu de uma reunião com o então
governador Marcello Alencar. Ivanir não dá nome ao causador
da trama que ensejaria a saída de Tânia de Caxias, mas as mo-
vimentações políticas à época reforçam a ideia. Eram notórios
e escandalosos os embates entre o Ministério Público de Caxias
através de Tânia Maria e o recém-eleito deputado estadual José
Camilo Zito. Das coalizões partidárias desde vereador, Zito se
consolidou no PSDB, com fortíssima representação e poderio po-
lítico no município. Do outro lado, no governo estadual, estava
Marcello Alencar, também do PSDB, após ter passado por rup-
tura com Leonel Brizola e o PDT. É o próprio Marcello Alencar
que faz insinuações à promotora Tânia dizendo que “ele já tá
mais calmo, acho que é bom a senhora deixar isso pra lá, porque
ele pode voltar a ficar nervoso”47. Esse perfil de quem estaria
mais calmo à época, mencionado pelo governador, só se encaixa
47
Afirmação colhida no depoimento de Ivanir dos Santos em 04/06/2018.

90
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

em José Camilo Zito, desafeto declarado da promotora. Poucos


meses mais tarde, Tânia “cai pro alto” como diz Ivanir, uma vez
que discricionariamente só perderia sua titularidade na 4ª Vara
Criminal se fosse promovida à procuradora. E assim foi.
Dentro de sua própria casa, o Judiciário, o cenário não pa-
recia mais ameno que o político. Uma matéria do Jornal do Bra-
sil dava conta de que o Tribunal de Justiça iria examinar outro
caso de magistrado sob suspeita de envolvimento com grupos de
extermínio responsáveis por frequentes execuções sumárias no
Estado do Rio. Um mês depois de dois escândalos envolvendo
juízes em Macaé, o tribunal receberia, na data de 19 de agos-
to de 1989, um relatório de 29 páginas acusando o juiz Rubens
Medeiros, ex- titular da 4ª Vara Criminal de Duque de Caxias,
de estar ligado a integrantes de esquadrões da morte que agiam
no município ( Jornal do Brasil, “Juiz estuda caso de matador”,
18/08/90, p. 5).
O documento foi escrito pelos promotores Tânia Maria
Salles Moreira e David Borensztajn, que se impressionaram com
o fato de o número de ações penais e julgamentos realizados
em Caxias ser muito inferior ao de Comarcas “menos violentas”
do estado. A simples leitura do relatório que seria encaminhado
aos desembargadores pelo então juiz titular da 4ª Vara Criminal,
Eduardo Guimarães Pessoa, revelava a suspeita pelos promoto-
res do envolvimento de Rubens Medeiros.
Em mais uma situação inusitada verifica-se a instabilidade
ética do Judiciário à época. Em entrevista ao Jornal do Brasil –
“Em defesa das crianças ameaçadas” (10/12/91, p. 4) –, Tânia
Maria afirmou que Flávio Nogueira “Jiló” acusado de assassinato
de Cleiton Ricardo Pereira Dias, de 14 anos, citado no relatório
de denúncias do ex-coordenador regional do Movimento Nacio-
nal dos Meninos e Meninas de Rua, Volmer do Nascimento, es-
tava com prisão preventiva decretada, mas ainda não havia sido
encontrado pela polícia. Segundo Tânia, em janeiro de 1989,
por ironia, a então juíza de Menores Gisela de Lima e Silva Ros-
si contratou o segurança, já suspeito em vários assassinatos de
crianças, justamente como comissário de Menores de Duque de
Caxias. A contratação de “Jiló” para o cargo de oficial de justiça
ad hoc foi anulada ainda em abril de 1989 pela juíza Lúcia Maria.

91
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

As perspectivas do parágrafo anterior remetem mais uma


vez à compreensão de que os fatores históricos são essencialmen-
te contributivos à análise do cenário de violência preestabelecido
em Duque de Caxias e Baixada Fluminense. É imprescindível a
consideração social, política, geográfica, etnográfica e outras que
estão justamente nos recortes e memórias apresentados ao longo
do tempo. A exemplo, o descaso do poder público fomenta ao
longo dos anos as mazelas sofridas por essa região. O potencial
industrial que se estabeleceu no 2º Distrito de Duque de Caxias
no início da década de 1960 deveria ser suficiente para aportar
todo o município, no entanto, aproximadamente 60 anos depois,
a Refinaria de Duque de Caxias não tem colaborado para tirar o
município das piores colocações nos índices de letalidade violen-
ta no estado e no país, sem tratar aqui do Índice de Desenvolvi-
mento Humano (IDH).
Gonçalves, Amoroso & Brum (2014, p. 210) trazem uma re-
flexão acerca da violência que se estabelece especificamente nos
anos 1969 e 1970, no auge do período repressivo militar. Com
respeito aos processos de remoções, reproduzem que elas incor-
poraram elementos arbitrários, resultando em violência e pri-
sões políticas. Não obstante o foco desses autores para o artigo
específico ser direcionado às questões de favelas, absorve-se em
um sentido mais amplo o apontamento da potencialidade resul-
tante em violência identificada nas arbitrariedades históricas. A
própria figura mítica de Tenório lançou mão de arbitrariedades
na busca de seus anseios políticos. A doação de um perfil popu-
lista não foi suficiente para encobrir os rastros de utilização de
força violenta e também letal. As áreas periféricas e conflagradas
de Duque de Caxias e Baixada Fluminense, carregam em si os
estigmas de gerações anteriores.
Michel Misse (2006, p. 207) apud Lenin Pires (2010, p. 344)
analisa que quando determinados atores se apropriam do uso
legítimo da força pertencente ao Estado para atender interesses
próprios ou particulares, ocorre a transformação de um bem ou
um serviço em uma mercadoria política.
Tânia Maria chamava os detentos ex-policiais para os quais
tinha pedido prisão, de “meus meninos”. Irônico diante do ódio
e ameaças por ela sofridos constantemente. Não é fácil tarefa

92
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

determinar em pesquisa um agente específico sobre quem pese


a responsabilidade total referente às dificuldades enfrentadas
por Tânia Maria em sua missão contra os grupos de extermínio.
Constatam-se figuras públicas e agentes dos três Poderes que,
em momentos distintos, transparecem diante dos testemunhos
e documentos o perfil antagonista na história de Tânia Maria
Salles Moreira.

Dessas constantes visitas de policiais e suas consequências,


restou-me a seguinte dicotomia: parte das duas polícias me
odeia, porque diz que eu persigo policial. Por outro lado,
parte do chamado ‘mundo jurídico’ diz que protejo policial.
Dificil agradar ao ser humano, mas não vim ao mundo para
agradar a quem quer que seja (MOREIRA, 2003 p. 139).

Tânia Maria, enquanto estava na 79ª Zona Eleitoral, rece-


benu denúncia da então juiza Lúcia Maria Miguel da Silva Lima
que, em papel timbrado do Tribunal Regional Eleitoral do Rio
de Janeiro, de próprio punho redigiu a denúncia, assinando-a
ao final.

Exma. Sra. Promotora de Justiça da 79ª Zona Eleitoral.


Prezada senhora. Encaminho para V. Exª uma cédula onde,
estranhamente, não foram impressos os nomes dos Srs.
candidatos à Prefeitura de Duque de Caxias. Mas onde foi
escrito o nome do candidato manualmente. No aguardo das
providência cabíveis. Subscrevo-me. Atenciosamente. Lúcia
Maria Miguel da Silva Lima, Juiz de Direito.

Figura 1 – Cédula adulterada, catalogada (enviada pela juíza Lucia


Maria Miguel da Silva Lima para Tânia Maria Salles)

Fonte: acervo dos familiares de Tânia Maria Salles Moreira.

93
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

Verifica-se então, na pesquisa, que as relações de poder


tendo como carro-chefe o cenário político potencializaram
as tentativas de refreamento das ações de Tânia Maria Salles
diante da 4ª Vara Criminal de Duque de Caxias. Como se
observou também, vários são os vículos que apontam às tenta-
tivas de grupos de extermínio de se associarem a outros gru-
pos, quer fosse para fortalecimento de suas ações ou até mes-
mo para um projeto de poder que começava a se perceber nas
décadas de 1980 e 1990. Àquela época, teria sido percebido
no Estado do Rio de Janeiro um cenário de grande anomalia
institucional. As Câmaras Municipais e a Assembleia Legis-
lativa compunham em seus quadros tanto acusados quanto
condenados na esfera criminal. Algumas acusações eram por
assassinato, como registrou-se na pesquisa.
Tânia Maria Salles conhecia esse cenário muito bem. Des-
de criança seu pai a forjara para o conhecimento jurídico,
conduzindo-a diariamente para seu trabalho, que era na car-
ceragem de uma delegacia. Décadas mais tarde, os absurdos
registrados na 59ª DP de Duque de Caxias, não a espantariam.
Ao contrário, os testemunhos dos entrevistados da pesquisa
revelaram um pulsar quase febril por fazer-se justiça a um
povo tão sofrido como o da Baixada Flumninense, especial-
mente Duque de Caxias e seus distritos.
O art. 2º da Constituição de 1988 nos alerta que os Po-
deres da União são independentes e harmônicos entre si. Ou
seja, Executivo, Legislativo e Judiciário, agindo harmonica-
mente e ao mesmo tempo exercendo sua independência. O
período pesquisado trouxe o peso e compromisso das institui-
ções e da população com uma nova Carta Magna. Entretanto,
o oportunismo associado ao mau-caratismo e às mazelas so-
ciais percebíveis, conduziu o interesse de uma boa parcela dos
integrantes de grupos paralelos ao estado, a buscarem estar
sob a égide de um dos Poderes, onde encontrariam imunida-
de, foro privilegiado, e a possibilidade inconteste de perpetua-
rem seus projetos de poder

94
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

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95
A política habitacional no Reino Unido:
pelo direito de morar e viver

Ciro Andrade da Silva 48

Introdução

Por meio de uma pesquisa bibliográfica, mas também dos


documentos das leis de habitação, Housing Act, implementadas
no Reino Unido, seguidas de entrevistas com usuários e técnicos
da área de moradia social, o presente texto49 tem o objetivo de
descrever e de interpretar as principais mudanças de finalidade
da política de moradia social, sobretudo no que diz respeito às
unidades construídas com destino ao aluguel social durante o
apogeu do Estado de Bem-Estar Social – que ocorreu entre o pós
Segunda Guerra Mundial e o final dos anos de 1970. O texto visa
compreender o processo de transferência para o setor privado
dessa política de moradia que é referência no mundo. O progra-
ma chamado direito Right To Buy, de cunho neoliberal, imple-
mentado com a ascensão do Partido Conservador de Margaret
Thatcher desde 1979, impulsionou esse movimento.
Após a crise de 2008, o governo britânico apresentou várias
medidas de austeridade, o que afetou o investimento das gestões
municipais no que restou do parque de habitação pública, consi-
derado deteriorado desde o final dos anos 1990. Por outro lado,
o governo apresentou um novo programa de compra de casas,

48
Doutor e pós-doutor em Serviço Social – PUC-Rio. Professor da Universidade
Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).
49
Este texto é fruto de uma pesquisa realizada durante o estágio pós-doutoral
realizado entre o Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-Rio e a
Universidade de Leeds, na Inglaterra. Tratou-se, especificamente, de uma parceria
articulada por meio do esforço da coordenação do Laboratório de Estudos
Urbanos e Socioambientais (LEUS). A estadia como pesquisador-visitante ocorreu
no período de julho de 2019 e janeiro de 2020 e teve como anfitriã a professora
Sara Gonzales, da Escola de Geografia na Universidade de Leeds, com a supervisão
de Rafael Soares Gonçalves, da PUC-Rio.

96
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

o Help To Buy, cujo acesso se dá somente pelo setor privado. A


partir de entrevistas aos usuários da moradia social e agentes
públicos50 analisa-se a política de moradia, em face das medidas
de retirada de investimentos públicos por sucessivos governos de
direita. Consideram-se vários os desafios atuais postos à crise
de moradia social no Reino Unido, pois reporta uma política
bastante residual e destinada somente àqueles segmentos mais
vulneráveis da população, perdendo, então, o caráter de univer-
salidade que, no passado, foi referência mundial.

1.Repercussões da provisão de moradia social no Reino


Unido, um dos modelos mais diversificados do mundo
As cidades do Reino Unido começam sua expansão no de-
correr do século XIX, quando grande parte dos trabalhadores
se aglomeram nas cidades em busca das crescentes vagas de em-
prego geradas pelo processo de industrialização. Naquela altura,
conforme elaboração da UWE Bristol (2008), não havia nenhum
tipo de facilidade para aquisição de casa própria, sendo comum
o aluguel por construtores privados. Essas casas, na maioria das
vezes, não eram planejadas, por isso grande parte da classe tra-
balhadora alugava casas desses senhorios, desde um pequeno
quarto até uma residência familiar.
O início do século XIX é um período de apogeu do libera-
lismo que orientava todos os tipos de relação social, não sendo
comum qualquer intervenção do Estado no âmbito da habitação
social, como hipoteca ou empréstimo para aquisição de moradia.
Na verdade, a intervenção do Estado não era comum em nenhu-
ma relação social, política ou econômica, tendo em vista que o
liberalismo sempre negou a questão social e, consequentemente,
o seu enfrentamento.
Nesse sentido, como demonstrado em UWE Bristol (2008),
apenas as pessoas com grande poder aquisitivo tinham acesso
à casa própria, ficando a classe trabalhadora à mercê dos alu-
guéis caros e da má qualidade das habitações oferecidas pelos
senhorios. No decorrer do século XIX, o problema da habitação

50
As entrevistas foram realizadas durante o período de estágio pós-doutoral na
cidade de Leeds no período de julho de 2019 e janeiro de 2020.

97
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

de má qualidade e em condições insalubres foi aumentando na


mesma proporção do crescimento das cidades britânicas. Havia,
inclusive, nas partes pobres da cidade, habitações anti-higiênicas
e sem luz natural. À altura, as piores condições de habitação na
Grã-Bretanha foram encontradas em Londres, Glasgow e Liver-
pool (UWE -BRISTOL, 2008).
Engels (2008), em uma publicação baseada em relatos que
obteve à época de sua estadia em Manchester, o coração da Re-
volução Industrial, relata as condições de pauperismo em que vi-
viam os trabalhadores. O autor afirmou que em cidades como Li-
verpool e Manchester havia uma mortalidade imensa por coque-
luche, varíola, sarampo e escarlatina. Sendo quatro vezes maior a
mortandade nas cidades, se comparada às áreas rurais vizinhas.
Em uma outra publicação, ao retratar o mesmo período, Engels
(2015) aponta que as condições de habitação da classe trabalha-
dora na Inglaterra eram as mais precárias possíveis, sendo suas
casas insalubres, em ruas escuras sem pavimentação, residências
mal ventiladas, sem acesso à água, apresentando péssimas con-
dições sanitárias. Os mesmos apontamentos são demonstrados
no capítulo que descreve a lei geral da acumulação capitalista de
Marx (1996).
Como apontado em UWE-Bristol (2008), no final do século
XIX, o governo começa a aprovar leis para melhorar e demolir
as áreas impróprias para habitação; um dos diplomas mais im-
portantes foi publicado em 1890, a chamada Housing For The
Working Classes Act. Ressalta-se que, até o início do século XX,
todas as intervenções dos governos foram, sobretudo, em torno
de demolições de locais insalubres. De fato, a intervenção públi-
ca de provisão da habitação, no Reino Unido, deu-se somente a
partir do término da Primeira Guerra Mundial.
No início do século XX, o aluguel privado era a principal
forma de acesso à moradia, o que está em conformidade com
Rolnik (2015) ao dizer que a primeira lei de planejamento de
1909, conhecida por Housing and Town Planning foi uma das
medidas iniciais que contou com recursos públicos para a cons-
trução de casas, além de ter descentralizado a autoridade do pla-
nejamento urbano. Cabe lembrar que tais políticas estavam sob
a responsabilidade do Ministério da Saúde à época.

98
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

Entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial foram vários


os diplomas publicados a fim de garantir maior intervenção do
Estado no provimento à habitação. O destaque em 1919 foi a
Planning Law, lançada para destinar recursos na habitação, mas
foi também uma legislação que ficou responsável por transferir
poderes e responsabilidades às autoridades locais no que diz res-
peito ao financiamento de casas. A partir de informações conti-
das em UWE Bristol (2008), é possível afirmar que a Planning
Law de 1919 pode ser considerada um divisor de águas no que
tange à provisão de moradias pelas autoridades locais (Council).
Os councils foram colocados na linha de frente da construção de
habitação e tiveram poder para planejar os programas habitacio-
nais do período pós-guerra. As casas produzidas nesse período
foram de alta qualidade, principalmente para aqueles segmentos
de melhores condições financeiras, não tendo uma solução para
os segmentos mais pobres que ainda sofriam com o alto custo
dos aluguéis.
Rolnik (2015), no tocante à sequência do avanço no provi-
mento da habitação durante o século XX, registra que a promul-
gação da Lei de Habitação de 1923, Housing Act, propôs a redu-
ção dos subsídios para o setor público de aluguel e incentivou a
política de ofertas de unidades habitacionais. A Wheatley Act,
de 1924, garantiu aos councils um programa de construção de
habitação contínua por um período de 15 anos, com o objetivo
de construir casas a serem alugadas a pessoas de classes mais bai-
xas. Houve, nesse momento, uma pressão para diminuir o tama-
nho das casas, já que se tratava de um longo período destinado à
construção de novas residências (UWE Bristol, 2008).
Na sequência, a Lei de Habitação de 1930 implementou
uma série de medidas com a pretensão de remover favelas (slums)
e derrubar habitações precárias. Nesses termos, para Rolnik
(2015) tratou-se de medidas que detivessem o estigma das cama-
das mais pobres da população. Essas áreas de favela, segundo
consta em UWE Bristol (2008), existiam na maioria das gran-
des cidades, e no período das construções de casas para esses
segmentos da classe trabalhadora não houve uma preocupação
com o abastecimento adequado de água ou com a entrada de
luz solar nas casas. Até 1933, a orientação do Comitê Central

99
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

da Habitação, ligado ao governo central, era que as autoridades


locais concentrassem esforços na demolição das áreas insalubres
(slums), em prol da construção de moradias municipais designa-
das ao aluguel de baixo custo para pessoas de menor renda. Na
altura, estima-se que em Bristol, no Sudeste da Inglaterra, foram
substituídas 5.000 moradias impróprias. Porém, historicamente,
cabe registrar que com os impactos da crise econômica de 1929
no Reino Unido, os avanços na garantia da política de moradia
sobressaem após o fim da Segunda Guerra Mundial.
Ressalta-se que, em 1929, a Grande Depressão, ou derroca-
da da Bolsa de Valores de Nova Iorque, levou ao colapso do ca-
pitalismo, bem como do liberalismo econômico, tendo sido reco-
nhecida como uma crise de superprodução e especulação finan-
ceira, com forte recessão econômica que atingiu o capitalismo
internacional. Uma das soluções pensadas para esse momento
foram os princípios do economista inglês John Maynard Keynes,
com a chamada teoria keynesiana, que defendia medidas públi-
cas de recuperação da economia com a presença do Estado na
economia e na política social.
Há, então, uma expansão do Estado de Bem-Estar por 40
anos, com intervenção pública na área econômica, para regu-
lamentar as atividades produtivas e assegurar a geração de ri-
quezas materiais junto à diminuição das desigualdades sociais.
Aliado ao fordismo, o Welfare State constituiu-se como uma série
de políticas estatais e investimentos governamentais com o fim
de cobrir riscos sociais como o desemprego, a velhice, a doen-
ça, entre outros. Assim, foram criados no Estado alguns serviços
com a finalidade de garantir à população condições adequadas
de moradia, saúde, educação e previdência.
É notável que, após o término da Segunda Guerra Mundial,
houve maior expansão dos investimentos em políticas públicas e
sobretudo na política de habitação. Importa registrar que duran-
te a Segunda Guerra Mundial o Reino Unido enfrentou uma es-
cassez muito grande de moradia, tendo em vista que milhares de
casas foram perdidas com os bombardeios e outras seriamente
danificadas. Estimou-se que 750 mil novas casas fossem necessá-
rias na Inglaterra e no país de Gales para fornecer acomodação
a todas as famílias (UWE BRISTOL, 2008).

100
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

Valença (2001) analisou o sistema britânico de provisão de


habitação durante a expansão do Welfare State. Para o autor, tra-
ta-se de um dos mais diversificados, justos e completos sistemas no
mundo, talvez só comparado ao sistema sueco. O autor (2001, p.
71) mostrou que o sistema de provisão habitacional, que permane-
ceu após as ações relacionadas à reconstrução pós Segunda Guer-
ra Mundial, tinha em termos gerais, as seguintes características:

a) Um mercado privado que contava com financiamento


das Building Societies e com subsídios do governo sobre
os juros pagos pelo comprador.
b) As Building Societies eram entidades financeiras sem
fins lucrativos, que tinham exclusividade na operação
das contas de poupanças (retail saving) e do mercado de
financiamento habitacional.
c) O governo central repassava para os governos locais
(Council) na forma de grants (fundo perdido ou gastos
orçamentários), recursos para a construção de habita-
ções sociais para aluguel.
d) As habitações sociais para aluguel também conta-
vam com recursos para sua manutenção e eram
administradas pelos councils.
e) Os aluguéis eram baixíssimos, com segurança nos con-
tratos, seguro-desemprego, e outras garantias.
f) O governo também ofereceu subsídio para possibilitar o
locatário de baixa renda, em face dos custos com aluguel
tanto no setor público quanto no privado.
g) O governo ofereceu subsídio para a compra de casa pró-
pria na forma de isenção total ou parcial dos juros sobre
o financiamento.
h) O governo ofereceu outros subsídios para a manutenção
e reparos de habitações degradadas ou de valor históri-
co-cultural.

Nesse sentido, em síntese às contribuições de Valen-


ça (2001), pode-se afirmar que o Reino Unido conseguiu ao

101
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

longo dos anos, sobretudo entre a década de 1940 até o final dos
anos 1970, implementar um vasto programa de construção de
habitação social para arrendamento, em resposta à destruição
do parque habitacional durante a guerra. No ano de 1946, em
consonância com Rolnik (2015), o Estado ampliou os subsídios
para a construção de council housing (conjuntos habitacionais
construídos pelas autoridades locais). Na sequência, em 1947, a
Lei de Planejamento da Cidade e do Campo (Town and Country
Plan Act) ampliou os recursos no âmbito da infraestrutura das
cidades. Já a Lei de Habitação de 1949, Housing Act, autorizava
aos municípios a construção de moradia à população como um
todo, incluindo a classe trabalhadora, os mais pobres e a melho-
ria em propriedades privadas.
Estima-se que 1,5 milhão de casas foram construídas pelas
autoridades locais (Council) para fins de aluguel social (UWE
Bristol, 2008). Isso durante a gestão de Clement Atle, do Partido
Trabalhista (1945-1951), e do segundo mandato da gestão do pri-
meiro-ministro Winston Churchill (1951-1955), que incentivou a
construção de casas pré-fabricadas e deslocou toda a indústria
nacional para a construção dessas casas.
Estima-se também a passagem de 10%, em 1938, para 26%,
em 1961, de ocupação de casas públicas destinadas ao aluguel
social. Até o final de 1970, os aluguéis sociais atenderam a uma
grande quantidade de pessoas que alugavam casas por via das
prefeituras (City Council). Esse avanço no âmbito do investimen-
to na construção de casas públicas para aluguel sofrerá modifica-
ções com a ascensão de Margareth Tatcher, em 1979, em respos-
ta à crise do fordismo, conforme será visto na sequência.

O direito de compra Right to Buy na


Era Thatcher, privatização e redução dos gastos
públicos na habitação
As crises que ocorreram na década de 1970 apresentaram
um baixo crescimento econômico e o aumento do desempre-
go em nível mundial. Tratava-se da estagflação, ou seja, uma
combinação de estagnação econômica com a alta da inflação,

102
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

colocando em risco o fordismo com a crise de superprodução e a


acumulação de grandes estoques. Para Taylor-Gooby (1991), pro-
fessor da Universidade de Kent (UK), a experiência da Grã-Bre-
tanha é de particular interesse. A rejeição do neokeynesianismo
fica realçada pela volta, em 1979, de um governo conservador de
direita e as suas sucessivas reeleições, com uma maioria parla-
mentar ainda mais substancial, em 1983 e 1987. O professor afir-
ma que o declínio dos gastos sociais no Reino Unido, depois da
crise econômica internacional dos anos 1970, foi mais acentuado
do que na maioria dos países membros da Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Ao refletir sobre a política social da “nova direita” no Reino
Unido, o professor Taylor aponta que o resultado dessa filosofia,
em termos políticos concretos, é um desejo de reduzir o papel do
Estado na área do Bem-Estar Social, cortando os gastos e os im-
postos e transferindo os serviços para o setor privado. Verifica-se
que na esfera em que o mercado não pode atuar por não haver
demanda efetiva, as organizações filantrópicas particulares, sob
o livre controle dos indivíduos, substituem a ação do Estado.
Esses princípios neoliberais podem ser traduzidos em qua-
tro objetivos políticos, de acordo com Taylor-Gooby (1991, p.
172): a) cortar gastos – os serviços previdenciários constituem
cerca de 70% dos gastos do Estado e são básicos para qualquer
plano de redução tributária; b) ampliar o escopo do setor priva-
do, a fim de melhorar as opções e retirar a carga do governo; c)
destinar aos pobres os gastos estatais remanescentes, passando
para serviços universais e seletivos; d) reduzir a tributação para
liberar as empresas, melhorar as opções e apoiar as atividades
privadas e voluntárias enquanto substitutas dos serviços previ-
denciários estatais.
Valença (2001), no mesmo caminho da análise anterior,
também pontua que esse momento econômico foi propício para
a ascensão política da primeira-ministra do Partido Conserva-
dor, Margaret Thatcher, em 1979,

Thatcher operou reformas profundas na economia e Welfare


State britânico, reestruturado no pós-guerra, quebrando
com o princípio universalista que regia a atuação do Estado

103
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

Britânico até então e adotando com vigor o princípio


de Estado Mínimo, de beneficiamento do indivíduo
‘consumidor’ em contrapartida à provisão coletivizada de
bens sociais (VALENÇA 2001, p. 69).

Na sequência de sua análise, o autor lembra que Thatcher


operou com reformas na política habitacional, sendo a mais sig-
nificante a conhecida Lei de Habitação de 1980, Housing Act,
que instituiu o direito de compra Right to Buy. Nessa mudan-
ça, os inquilinos das unidades habitacionais de locação social
adquiriram o direito de comprar o imóvel. Somente na década
de 1980, estima-se que 2 milhões de moradias de aluguel social
foram transferidas das autoridades locais (councils) para mãos
privadas por meio do tal esquema.
A Lei de Habitação de 1980, Housing Act, foi considerada
um divisor de águas para as autoridades locais (City Council),
pois permitiu que os inquilinos da habitação social, qualificados
para a aquisição, comprassem as casas públicas. O número de ca-
sas sob a gestão dos City Councils diminuiu consideravelmente.
Em Londres, por exemplo, eram gerenciadas 840 mil unidades
em 1984, e passou a gerir aproximadamente 500 mil no final do
século XX (UWE BRISTOL, 2008).
A maioria das moradias vendidas pelo Right to Buy eram
casas e não apartamentos, o que reduziu a oferta de casas para
famílias, alterando o perfil de estoques de moradia no país in-
teiro. Somente na década entre 1980 e 1990, estima -se que 1
milhão de casas foram vendidas no período (UWE BRISTOL,
2008). À época, o Comitê Central da Habitação, sob o comando
do governo central, impôs restrições de gastos e não permitiu
que as autoridades locais destinassem recursos para a constru-
ção de moradias sociais. O Reino Unido teve praticamente 50
anos ininterruptos de construção de habitação social; as autori-
dades locais viram o estoque de casas cair.
No início da década de 1980, no período em que regeu o
esquema Right to Buy, foram aplicados descontos de até 60 %
do preço de mercado. Como demonstrado por UWE BRISTOL
(2008), as boas casas podiam ser compradas por volta de £10.000,
cotadas em 2008, ano da publicação do documento, por volta de

104
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

£150.000. Isso significa dizer que, para muitas pessoas que tiveram
acesso ao dinheiro para comprar casas, foi um grande negócio,
um grande benefício. Para além do Right to Buy, segundo Valença
(2001), a reforma imposta por Thatcher no setor de moradias obri-
gou os councils a aumentar as taxas de aluguel, fazendo também
uma reforma financeira, que permitiu aos bancos comerciais ope-
rações no mercado habitacional com financiamento de até 100%.
Uma outra mudança foi a que permitiu ao mercado privado atuar
no aluguel. Também foi criada a Housing Corporation para finan-
ciar por intermédio de recursos de fundo perdido em operações
das associações habitacionais uma espécie de entidade sem fins
lucrativos com operação no mercado de aluguel misto, ou seja,
com recursos públicos e privados. Note-se que esse projeto de des-
monte do Estado e transferência de suas responsabilidades para
o terceiro setor é uma forte característica do programa neoliberal
arquitetado e implementado por Thatcher.
Taylor-Gooby (1991) discorre que essa Lei de Moradia de
1988, que instituiu o Right to Buy, estimula as autoridades mu-
nicipais a transferirem a responsabilidade para os proprietários
particulares ou às associações de moradia e encoraja as associa-
ções a procurarem financiamento no setor privado (reduzindo
de 90% para 50% a proporção do custo de novas construções
disponíveis por empréstimos governamentais), e a liberarem a
ocupação das casas particulares e daquelas pertencentes a asso-
ciações.
Nessas duas primeiras décadas dos anos 2000, as autorida-
des locais argumentam que possuem uma baixa quantidade de
casas de aluguel social em estoque, sendo necessário programas
de reformas e manutenção dessas casas. Estima-se que, com a
interrupção de recursos para a construção de novas unidades,
há City Councils em situação de endividamento. A habitação so-
cial council housing torna-se cada vez uma posse mais residual,
sendo, na atualidade, possível habitação disponível para pessoas
muito pobres, sem abrigo e pessoas que não têm outra forma
de alojamento. A universidade UWE Bristol (2008) estima que
atualmente o setor de aluguel representa 20% do estoque habita-
cional, o que leva a crer que a habitação social diminuiu bastante
com as políticas neoliberais.

105
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

Rolnik (2015) chama atenção para a atuação das associações


Housing Act que passaram a operar na política de moradia so-
cial. Segundo a autora, a lei de habitação (Housing Act) de 1988,
regulamentou essas associações como não governamentais, tra-
tando-se de uma estratégia de redução dos gastos públicos e ao
mesmo tempo transferindo a responsabilidade estatal. Nesse
sentido, grande parte do estoque das moradias que não foram
compradas pelo programa Rigth to Buy foram transferidas para
a responsabilidade das associações de habitação, em detrimento
do enfraquecimento dos City Councils.
Richmond (2014) alerta que, embora o esquema Rigth to Buy
tenha sido pensado para promover a casa própria, uma grande pro-
porção dos apartamentos vendidos pelo programa acabou sendo
comprada por proprietários privados que agora os alugam por valor
superior ao da habitação social, o que, segundo o autor, o setor priva-
do comprou para investimento, ou seja, ganho de dinheiro com ha-
bitação privada. Na sequência, analisou outra consequência, que foi
o processo de financeirização da habitação e o aumento dos preços
feito pelos proprietários. Em 1986, com a desregulamentação do se-
tor financeiro, também conhecido como “big bang”, precipitou uma
financeirização progressiva da economia britânica e “os bancos e
outras instituições financeiras começaram a usar as moradias como
um destino seguro e rentável para a especulação através da presta-
ção de hipotecas (mortgage lending)” (RICHMOND, 2014, p. 2).
Para Taylor-Gooby (1991), todo o processo de privatização
ocorrido no Reino Unido não consistia simplesmente na retra-
ção do Estado ou na liberação da livre empresa, como a retó-
rica muitas vezes dá a entender. Essa privatização é mais bem
compreendida como um redirecionamento da intervenção do
Estado, através da busca dos objetivos de bem-estar por outros
meios. Taylor-Gooby (1991, p. 182) acredita que o objetivo do
bem-estar conformado com o programa da “nova direita”, em
resumo, “consiste em reduzir a intervenção estatal tanto nas do-
tações diretas como na tributação, expandir o setor privado, di-
recionar os serviços estatais restantes para os mais necessitados
e apoiar-se no setor privado e no filantrópico”.
Em síntese, durante o século XX, a política da moradia so-
cial na Inglaterra foi do apogeu ao retrocesso, guardando para o

106
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

século XXI vários desafios ou a continuidade de retrocessos, ain-


da mais se considerarmos ares de crise econômica intercorridos
no início do século. Richmond (2014) relata que a crise de 2008
afetou principalmente os segmentos mais vulneráveis da popula-
ção em níveis mundiais. No caso da Inglaterra, que assumiu uma
política de austeridade, o Estado tem diminuído cada vez mais
sua atuação na área social e vem minimizando os benefícios para
a população.
Rolnik (2015) aponta que após a crise de 2008 o setor de
locação privada tem crescido muito, e salientou que, de 1981 a
2012, o número de famílias locatárias no setor privado pratica-
mente dobrou, passou de 1,9 milhão para 3,8 milhões; isso au-
mentou muito o número de despejos de inquilinos, em caso de
não poder arcar com o aumento livre dos preços. Estima-se que
26% da população de rua teve origem no despejo por falta de pa-
gamento do aluguel privado. A pesquisadora destaca ainda que
os ataques ao Estado de Bem-Estar Social não para, haja vista
uma lei chamada Welfare Reform Law, adotada como parte das
medidas de austeridade e, consequentemente, tem rebatimentos
no direito à moradia adequada.
Logo após a crise, o Parlamento apresentou um orçamento
com cortes de 11% para ser gasto de 2010 a 2014; houve o con-
gelamento dos salários dos funcionários públicos de 2010 a 2018
e 1 milhão de empregos públicos extintos. Em 2012, havia na
Grã-Bretanha 13 milhões de pessoas vivendo em situação de po-
breza, sendo que 6,7 milhões vêm de famílias de trabalhadores.
Outra medida é o imposto do quarto, Bedroom Tax: esta
medida reduz o recebimento dos benefícios habitacionais com
base no número de dormitórios no imóvel e de membros na com-
posição familiar. De acordo com a nova regra, um inquilino de
habitação social tem direito a ocupar uma casa contendo um
dormitório para cada adulto solteiro ou casal. Uma criança deve
compartilhar o quarto com outra criança de 0 a 16 anos de idade
do mesmo sexo, ou independente de sexo, desde que seja abaixo
de 10 anos de idade.
Em síntese, para o século XXI, ainda são vários os desafios
postos, principalmente para aqueles que fazem uso da política
de habitação, quer seja como inquilino de habitação social, quer

107
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

seja como proprietário do Help to Buy, o novo programa de aqui-


sição de casas via mercado privado, conforme será mostrado a
seguir.

Entre inquilinos e proprietários: as estratégias


de moradia no Reino Unido na visão de seus
usuários.
Nessa linha de compreensão dos efeitos das políticas de
moradia social no Reino Unido, importa dizer que, com a crise
econômica de 2008, muitos países implementaram medidas de
austeridade. O Reino Unido aderiu à onda mundial de cortes de
recursos para os serviços públicos, medidas severas na moradia
que atingiram municípios com pouca capacidade de manter ao
seu já degradado e diminuído estoque de moradia social. Mas,
por outro lado, o governo inglês lançou, em 2013, o programa
intitulado ajuda para comprar Help to Buy, que trata-se de um
programa controlado pela banca inglesa e totalmente voltado
para o mercado privado.
Assim, foi possível compreender um pouco dessa realidade
a partir das entrevistas realizadas no período da estadia na cida-
de de Leeds, no Norte da Inglaterra. As entrevistas foram reali-
zadas entre julho de 2019 e janeiro de 2020, período no qual se
cumpria o estágio de pós-doutorado, na Universidade de Leeds,
por meio de uma parceria, como mencionado anteriormente.
Foram realizadas cinco entrevistas, sendo uma delas coleti-
va com dois servidores públicos, officers da Prefeitura de Leeds,
Leeds City Council, responsáveis pelo setor de locação da habi-
tação social, Social Housing; dois inquilinos da habitação social,
Council Housing; dois moradores que compraram a casa pelo
programa Help to Buy. Após apresentar a identificação enquan-
to pesquisador-visitante ligado à Universidade de Leeds, reali-
zou-se presencialmente o agendamento para conversar com dois
agentes oficiais do setor de habitação social, Social Housing, da
autoridade municipal de Leeds, o Leeds City Council.
No momento da entrevista, ambos foram convidados por
mim para relatar sobre os caminhos e regras gerais para a

108
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

locação de moradia na modalidade social. Os entrevistados fo-


ram avisados que as questões explicadas seriam dados gerais e
públicos, “que não cabia análises de cunho mais sociológico so-
bre a questão”. Foi explicado que existe uma orientação comum
do governo central, porém cada cidade tem suas orientações
próprias, sendo, portanto, a diferença centrada na demanda por
moradia em cada prefeitura, City Council, além da quantidade
de associações sem fins lucrativos, associadas ao City Council, ou
dependerá da quantidade de casas que estão disponíveis para tal
modalidade.
A respeito das etapas para se ter acesso a uma casa públi-
ca, foi falado que o primeiro passo é se candidatar via Internet.
Caso o usuário não tenha acesso à Internet, basta procurar uma
biblioteca pública e fazer a solicitação, desse e de outros serviços
ofertados pela autoridade local. Após a aplicação, o Departamen-
to de Habitação dará uma previsão da resposta, deixando claro
quanto tempo será preciso aguardar a depender do grau de prio-
ridade que pode ser A, B, C, D etc.
Quando questionado sobre os critérios mais comuns, foi
informado que os casos considerados prioritários são os das fa-
mílias desalojadas, ou que possuem um membro familiar com
doença grave, desabilitado e/ou criança menor de 5 anos. Men-
cionou, ainda, que caso a situação da família se altere, o comu-
nicado deve chegar na aplicação para que o setor possa mudar o
grau de prioridade e ofertar a casa disponível.
Observa-se que o repertório do “risco” é mobilizado, ainda
que não nesses termos, apresentando um discurso em que o Es-
tado pretende “proteger” os que não se encaixam no mercado.
Sendo assim, tal prioridade/critérios de seleção define uma pro-
teção social liberal, focalizada e residual. De outro modo, no-
ta-se, nesse discurso oficial, que há uma forma de obscurecer a
pretensa universalidade, que nunca será; trata-se do padrão da
política habitacional neoliberal.
Conforme mencionado, ao contatar um usuário, o Departa-
mento de Habitação lhe dá um curto espaço de tempo para acei-
tar ou não a casa oferecida, e, caso não seja aceita pelo usuário,
ele volta para a lista de espera ou concorre a outras casas. Mas é
orientado a todos que não a aceitam sobre a implicação em uma

109
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

posição abaixo na lista anterior. Ao que parece, as residências


disponíveis na suposta lista de espera não caminham juntas, pois
mostram que não consideram o tamanho da família, dinâmicas
familiares e sua localização.
Sobre a forma de administração dessa modalidade de alu-
guel de casas públicas, foi explicada a existência de um contrato,
com todas as normas e regras da propriedade, porém as regras
vão se diferenciar de acordo com a modalidade ou com a qualifi-
cação do aplicador, que pode variar entre inquilino introdutório,
flexível, fixo ou seguro e até mesmo na modalidade aluguel em
conjunto. Em síntese, essas modalidades podem ser explicadas
da seguinte forma:

– O aluguel introdutório é uma espécie de prova para o


aplicador, pois pode se tornar um inquilino seguro após
12 meses, porém existem casos em que é necessária a
prorrogação da condição de introdutório por mais seis
meses, já que o City Council pode não se sentir seguro.
Por ser considerado um tipo de aluguel provisório, o in-
quilino não pode fazer melhorias, trocar de propriedade
com outro inquilino ou fazer oferta de compra do imóvel
junto ao City Council.
– Aqueles que se tornaram um inquilino flexível são os ca-
sos em que as famílias já fazem uso do contrato pelo tem-
po limite da modalidade, cinco anos. Após esse período,
ele torna-se um inquilino fixo ou seguro. Mas, a critério
da autoridade municipal, ou é ofertado um novo contrato
ou o contrato é encerrado. Uma vez encerrado o contrato,
o inquilino deve procurar um aluguel na iniciativa priva-
da.
– Ao se tornar um inquilino fixo ou seguro, pode-se alugar
quartos, porém é “absolutamente” proibida a sublocação,
pois é considerado quase um crime contra a autoridade
local. O locatário pode trocar de casa com outro inquili-
no dentro da mesma cidade e ofertar a compra do imóvel,
além de poder fazer melhorias com autorização do City
Council. Observa-se que o City Council, ou Setor de Habi-

110
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

tação, já prevê que o inquilino vai precisar complementar


a renda para garantir o pagamento do aluguel, sublocan-
do um dos quartos da casa.
– Nos casos da modalidade aluguel em conjunto – também
chamado de casa compartilhada –, todos os inquilinos
têm seu contrato separado, podendo habitar casais e, em
caso de separação e, caso não haja acordo, é comum acio-
narem o tribunal para resolver quem ficará com o con-
trato. Quando questionados em quais casos é comum o
encerramento do contrato de aluguel social, foi explicado
que são vários os motivos de encerramento, sendo os mais
comuns as famílias que compram a casa via City Council,
os que alugam moradia no mercado privado e os que mu-
dam de cidade por razões de troca de emprego. Existem
situações em que o inquilino é expulso quando ele des-
cumpre os termos do contrato.

Essa troca de emprego mencionada é algo bastante comum


no Reino Unido, já que as pessoas recebem seu pagamento sema-
nalmente. Vale lembrar que, após as reformas neoliberais, houve
uma desregulamentação do mercado de trabalho naquele país,
permitindo que as regras sejam ditadas entre o empregador e
o empregado. Em termos gerais, os agentes deixam claro que o
City Council tem responsabilidades a serem cumpridas que são
de orientação do governo central, por exemplo, a questão da es-
trutura da moradia (paredes, teto, telhado e janelas), aparelhos
de gás e eletricidade. O City Council dispõe de prazos específi-
cos para observar a manutenção além de sempre se comunicar
antecipadamente com o inquilino sobre possíveis intervenções.
Parecia haver interesse dos técnicos da municipalidade de
Leeds no atendimento aos usuários, ainda que suas respostas
fossem mais institucionais, que assemelhavam-se às gravadas nos
manuais pelos quais estudam para dar orientação à população.
Sentia-se neles o interesse de tentar resolver, dentro dos limites
institucionais, o problema das pessoas. Havia também uma preo-
cupação com a degradação dos parques habitacionais destinados
ao aluguel social. Após realizar entrevistas com os funcionários

111
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

públicos, indicando, assim, um discurso oficial, seguindo as nor-


mativas dos documentos elaborados pelo governo central, que
podem ser administradas pelas autoridades locais, buscou-se
analisar a experiência de moradores.
Sendo assim, uma outra experiência muito interessante foi
o contato com usuários do aluguel social, aqui no texto chama-
dos de inquilinos, pelo fato de pagarem mensalmente o aluguel
social ao City Council. A inquilina A é uma mulher, mãe de três
filhos menores, que, após seu casamento, há aproximadamente
10 anos, mudou-se para Leeds em busca de emprego. Sempre
viveu em casas de aluguel de agência privada, porém, recen-
temente, ao ficar desempregada, obrigou-se a procurar o City
Council e aplicar o pedido de uma casa de aluguel social. Ela,
há aproximadamente um ano, vive apenas com três filhos; já o
marido saiu de casa, por motivos não relatados. O contato com
a entrevistada foi por intermédio de uma portuguesa nascida
em Angola conhecida na estadia em Leeds, e que gentilmente
fez contato para que a inquilina fosse recebida em sua casa e
concedesse a entrevista. A inquilina A reside em uma casa aluga-
da pelo City Council. Mencionou que antes pagava quase £600
mensais e disse que antes morava com o esposo, que a ajudava no
pagamento do aluguel. Atualmente, mora com os três filhos em
uma casa, pagando em torno de £280 mensais. Segundo a inqui-
lina A: “Trata-se de uma casa de dois quartos, uma sala de estar,
uma cozinha, um banheiro e um pequeno jardim. Me mudei no
dia 28 de outubro de 2016”.
Perguntada como foi o processo de aplicação para a casa
pública, ela disse que foi um pouco demorado, pois na ocasião
da candidatura estava desempregada e acrescentou: “Quem está
trabalhando eles dão a casa mais rápido. (...) Eu tinha um tra-
balho ‘part-time’ que não cobria as custas mensais das despesas
totais, que inclui aluguel, água, luz e o Council Tax51”. Trata -se
de uma taxa paga para a rainha ou a manutenção da estrada.
É importante dizer que ela não teve mais condições de pagar
aluguel de agência privada, e foi aí que decidiu fazer a aplicação
51
Council Tax: criado pela Local Government Finance Act 1992, trata-se de um
imposto municipal de tributação local usado em todo Reino Unido. Esse é um
imposto sobre a propriedade nacional.

112
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

para um casa de habitação social, porém, segundo a entrevistada


A, “demoraram um ano e meio para me dar a resposta”.
Quando a entrevistada menciona que a residência é cedida
de forma mais rápida para aqueles que trabalham, parece que
o Council Tax está preocupado se o inquilino realmente arcará
com as taxas. Segundo Faleiros (2009, p. 50),

o Estado liberal não visa, somente, ‘compensar’ os grupos


ou os indivíduos fracos no mercado, para que eles possam
usufruir das vantagens do mercado, mas também compensar
os ‘riscos individuais’, provenientes do desenvolvimento
industrial, do assalariado e do mercado. O maior risco, na
visão liberal, é a interrupção ou perda da renda.

Perguntada sobre o processo, a inquilina disse que ao apli-


car diretamente no City Council, e esperado o tempo necessá-
rio, recebeu um invite number, que se trata de um número de
prioridade para dizer o quanto você está elegível. Ponderou: “Na
altura eu só tinha direito à casa de dois quartos, pois só tinha
um filho; hoje tenho três”. Perguntada acerca do que poderia
lhe acontecer, caso ficasse desempregada, citou a possibilidade
do house benefit que declara “pode me ajudar a pagar a renda”.
Sobre o que pensa do aluguel social, respondeu que “as casas
de aluguel social têm o preço mais acessível e assim consegue se
organizar melhor”. Relatou “quando eu alugava em uma agência
privada, 80 % do meu salário era usado para pagar aluguel, luz,
gás e Council Tax”.
O segundo entrevistado, o inquilino B, é um homem casa-
do, tem duas filhas e é um homem refugiado da guerra da Síria,
que entrou no Reino Unido em 2017. Durante a guerra da Síria,
conseguiu que sua esposa de nacionalidade marroquina fosse
para o Marrocos com suas duas filhas, enquanto viveu duran-
te meses no campo de refugiados em Calais, “Selva de Calais”,
na França, à espera de uma oportunidade de atravessar para o
Reino Unido. Contou que durante os quase 30 dias em que es-
teve em Calais enfrentou frio, falta de higiene e viu muita vio-
lência. Na primeira oportunidade, entrou no Reino Unido pelo
Canal da Mancha, escondido em um caminhão. Ao chegar na

113
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

Inglaterra foi apoiado por grupos voluntários e, logo que possí-


vel, foi para o Marrocos e buscou sua esposa e filhas, escolhendo
viver na cidade de Leeds. Sendo assim, vive lá desde 2017, e no
final daquele ano passou a viver em um flat de aluguel social.
Trata-se de um apartamento localizado no centro de Leeds, em
uma boa localização no centro da cidade, exatamente situado
em frente ao Leeds City College, uma universidade que oferece
cursos técnicos e superiores mais voltados para a área de Exatas.
O entrevistador conheceu o entrevistado no MDA College, em
Leeds, onde frequentaram a sala do curso de aperfeiçoamento
de inglês. Ao saber da pesquisa realizada, o inquilino B disponi-
bilizou-se a dar entrevista, que foi realizada em sua habitação.
O entrevistado contou que paga ao City Council a quan-
tia de £250 pelo aluguel social de um flat de dois dormitórios,
algo que giraria em torno de £600 a £650, caso fosse pagar em
uma agência privada, levando-se em consideração a localização.
Contou que o City Council é dono de várias unidades habitacio-
nais do edifício onde reside. Trata-se de um edifício com aproxi-
madamente 20 anos de construção, sendo 14 andares com dois
elevadores. Verbalizou que teve prioridade no atendimento ao
aluguel social por se tratar de um refugiado e ter duas filhas
menores de idade, e que, à época, trabalhava como entregador
de delivery e usava a motocicleta da empresa. Após dois anos de
trabalho duro, declarou que comprou um carro e que agora faz
todo tipo de entrega e que pode ganhar um salário melhor. Nes-
ses dois anos que reside na casa pública, pontuou que paga com
assiduidade as taxas e cumpre todas as regras que o City Council
vier a impor. Relatou que quando chegou ao Reino Unido, conse-
guiu a documentação provisória de refugiado e que aguarda no
tribunal a documentação permanente.
Após entrevistar usuários do aluguel social, os proprietários
do programa Help to Buy foram consultados. Por se tratar de um
programa voltado para a compra de casas, é necessário saber,
por parte desses novos proprietários, o porquê optar pelo mer-
cado privado e não pelo City Council para a compra de imóveis.
O esquema Help to Buy propõe uma ajuda para depósito de 10%
do valor do imóvel, já que no Reino Unido é obrigatória essa
oferta. Pelo esquema, esse auxílio de 10% pode ser usado para

114
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

pagamento da taxa da escritura stamp duty, despesa que usual-


mente fica em 3% do valor do imóvel. Em uma hipótese de uma
casa custar £200 mil, o interessado deve dar entrada de £20 mil
e £ 6.000 para cobrir o preço da escritura.
A proprietária C foi assim qualificada por não se tratar de
uma inquilina de habitação social. Trata-se de uma mulher ingle-
sa de 27 anos, solteira e trabalhadora do comércio em shopping
center. Ela é originária de uma pequena vila próxima a New Cast-
le, na parte Nordeste da Inglaterra; mudou-se para Leeds em
2014 e até 2017 viveu com os pais em um outro bairro da cidade.
Em 2017, comprou uma casa no esquema “Help to Buy”, e foi en-
tão que começou a hospedar estudantes pela plataforma Airbnb,
o que lhe rende mensalmente pelo menos metade da prestação
mensal. O entrevistador conheceu a proprietária em ocasião de
sua hospedagem via Airbnb por 10 dias no ano de 2019 em sua
propriedade no bairro Wortley.
A proprietária C relatou que sempre pagou aluguel por
uma agência privada e disse nunca ter tentado alugar via City
Council, pois acha muito difícil conseguir e geralmente demo-
ram muito para dar a resposta. A respeito do financiamento,
verbalizou que utilizou o esquema Help to Pay, sendo que foi a
um banco comum receber orientação. Mencionou que possuía
5% do valor do imóvel em sua conta de poupança, já que os ban-
cos no Reino Unido incentivam que o cliente faça depósitos com
intenção de comprar uma casa.
A proprietária destacou ainda o seguinte: “Os outros 5%
recebi do ‘Help to Pay’ já que preciso de 10% para ter acesso à
hipoteca. Quando foi perguntada qual a razão de ter escolhido
o Help to Pay, mencionou que pensou em esperar juntar mais
dinheiro, porém pagava aluguel e decidiu comprar logo. Ela afir-
mou, ainda: “No momento eu penso que minha escolha foi a
melhor de todas”. Perguntada se pensou em comprar uma casa
do City Council, a entrevistada relatou que nunca havia pensado,
já que “eu teria que me inscrever e ter que esperar o andamento
da lista; eu nunca tentei e nem gostaria de tomar esse caminho”.
Perguntada sobre o que a motivou, a proprietária respon-
deu que: “Quando você recorre à prefeitura, eles querem ter o
controle da sua vida e isso é um dos motivos que eu não gostaria

115
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

de passar por esse tipo de situação”. Sobre a localidade, disse que


a boa qualidade dos transportes públicos, bem como das esco-
las do bairro e supermercados próximos foram importantes na
hora da escolha. Sobre os valores a pagar, relatou que paga £700
mensais e a casa custou £110 mil: “Algumas pessoas costumam
fazer em 25 anos, mas eu preferi fazer em 30, por isso minha
prestação é um pouco mais baixa, mas preferi assim já que só
tenho 27 anos”.
Ao ser perguntada a respeito do que poderia ocorrer caso
ficasse desempregada, disse que só pode ficar sem pagar a casa
no máximo dois meses, do contrário o banco toma a casa, ou, às
vezes, tomam coisas caras da casa tipo o carro ou a TV para co-
brir as parcelas em aberto, porém depois tomam a casa: “No meu
caso eu gastei bastante para melhorar a cozinha e na decoração
da casa, mas o banco não quer saber”.
A proprietária D é uma mulher casada e possui dois filhos.
Reside no bairro Wortley, em Leeds, portanto vizinha da pro-
prietária C e sua colega de trabalho. A ideia da entrevista surgiu
da própria vizinha, já que a proprietária também comprou a casa
por meio do esquema Help to Buy. Essa proprietária relatou que
é casada há quase oito anos, sendo que ela e seu esposo possuem
emprego fixo, e possuem um casal de filhos menores.
Aproveitou a oportunidade da entrevista para compartilhar
que antes de se casar vivia com os pais e após o casamento foram
morar de aluguel em um flat alugado via agência privada. Com
o surgimento do programa Help to Buy e toda a propaganda
que o banco, em que é correntista, incentivava que seus clientes
poupassem para comprar a casa, e não havendo a possibilidade
de juntar dinheiro via depósito em poupança, preferiram tomar
emprestado 20% do valor do imóvel junto à agência. Trata-se do
Help to Buy na modalidade Equity Loan, ou seja, ela acordou
um empréstimo particular de 20% do valor do imóvel na própria
agência bancária, recebeu 5% do Help to Buy sendo necessário
ter solicitado uma hipoteca de 75% restantes.
A entrevistada disse ter comprado a casa por £120 mil, pois
já recebeu o imóvel com uma cozinha ampla. Verbalizou estar feliz
com a aquisição. Ao ser questionada se procurou casa junto ao City
Council, respondeu que nunca passou pela ideia, pois sabe que é

116
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

extremamente difícil se encaixar no perfil que a municipalidade


atende. Alegou que “não quer os officer em sua porta todo tempo”.
As entrevistas apontam trajetórias pessoais e residenciais di-
ferenciadas, mas elas indicam um mesmo processo sobre os quais
os moradores estiveram submetidos, transformando-os em meros
consumidores. Nota-se que a crise de 2009 afetou principalmente os
segmentos mais vulneráveis da população em níveis mundiais. No
caso da Inglaterra, que assumiu uma política de austeridade, o Es-
tado tem diminuído cada vez mais sua atuação na área social e vem
diminuindo os benefícios para a população (RICHMOND, 2014).

Considerações

O Reino Unido conseguiu implementar durante os anos do


Welfare State um modelo jamais visto de moradia destinado ao
aluguel social. O que se viu posteriormente, com a ascensão do
neoliberalismo dos governos de direita, foi um ataque aos direi-
tos dos trabalhadores, sucateamento das políticas públicas, priva-
tização dos serviços públicos e transferência da responsabilidade
estatal para a esfera privada, bem como para associações não go-
vernamentais. Do mesmo modo, no campo da habitação, houve
o desmantelamento e sucateamento do parque habitacional que
estava sob o controle e responsabilidade das autoridades locais.
Mesmo residual, se vê como a intervenção do Estado é im-
portante ainda que se oferte proteção a um público vulnerabiliza-
do de trabalhadores, como os ofertados apenas para debilitados,
ou população em situação de rua. No caso do refugiado sírio, foi
nítido e estampado na face de sua família o quão foi importante.
Também no caso da mulher com três filhos, abandonada pelo
marido, é nítido no rosto de seus filhos a importância de morar
naquela casa perto da escola. Considera-se que mesmo residual-
mente, a política ainda garante um atendimento preciso, mesmo
com parte do estoque deteriorado e com graves problemas de
estrutura, e o quão importante é essa cobertura naqueles quatro
países que formam o Reino Unido.
Considera-se que as pessoas que compraram as casas pelo
Help to Buy se sentem mais seguras na condição de donas,

117
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

mesmo entendendo a seguinte lógica: “Se você quer comprar


casa comece a poupar, e se você não tem uma casa é porque
você não soube poupar”, jargão liberal clássico. Isso é um pou-
co da lógica do Help to Buy na atualidade; os bancos privados
fazem todo um marketing em cima dos clientes para poupar
os 5% e posteriormente partir para a hipoteca. Entende-se
que as pessoas que procuram casas para comprar não buscam
as residências do City Council, pois sabem que estão degrada-
das, e que não houve nos últimos anos recursos para manuten-
ção do parque. Parece que se esperou sucatear para vender, e
passar a impressão que o Estado não dá certo administrando
aluguel de um parque habitacional.
Considera-se que, mesmo com esse problema da residua-
lidade, iniciou-se um atendimento nas demandas com habi-
tação social. As unidades que restam foram pensadas e rela-
cionadas aos serviços públicos, como escolas, postos de saúde
do sistema de saúde inglês, o National Health Service (NHS),
bibliotecas públicas que funcionam 24 horas, integração entre
o transporte público e a ligação de trem a todos os municípios
do país.
Por fim, espera-se que os movimentos dos trabalhadores
que tentam se organizar, possam um dia retomar políticas de
moradia que garantam a sociabilidade da população do Rei-
no Unido e que isso sirva de modelo para o mundo e para
os países da América Latina. Que venham do Reino Unido
modelos de referência mundial, assim como foi o modelo de
moradia social nos tempos do Bem-Estar Social e do Relatório
Beveridge.

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120
O Trabalho Técnico Social: a
reconfiguração neoliberal do trabalho
social na urbanização de favelas

Kevin Kermoal52

Introdução

O trabalho social nos programas de urbanização de fave-


las, implementados no contexto da Política Nacional de Habita-
ção (PNH), foi formulado pelo Ministério das Cidades (MC) em
2004, com os seguintes objetivos:

Viabilizar o exercício da participação cidadã e promover


a melhoria de qualidade de vida das famílias beneficiadas
pelo projeto, mediante trabalho educativo, favorecendo a
organização da população, a educação sanitária e ambiental,
a gestão comunitária e o desenvolvimento de ações que, de
acordo com as necessidades das famílias, facilitem seu acesso
ao trabalho e melhoria da renda familiar (MINISTÉRIO
DAS CIDADES, 2007, p. 3).

O aparato regulatório elaborado pelo MC e a sua operacio-


nalização através da implementação de programas de urbaniza-
ção de favelas pretendem concretizar as conquistas da Reforma
Urbana, como a função social da propriedade, a inclusão social
e a gestão participativa e, assim, ocupar o vácuo institucional
deixado no campo da política habitacional pelo governo federal,
desde o desmantelamento das instituições do regime militar. De

52
Doutorando em Ciências Políticas e Sociais da Université Libre de Bruxelles
(ULB) e do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio, pesquisador do Centre
d’Études de la Vie Politique (CEVIPOL), do Centro AmericaS (MSH-ULB) e do
Laboratório de Estudos Urbanos e Socioambientais (LEUS), bolsista do Fonds
National de la Recherche Scientifique (Aspirant F.R.S – FNRS). E-mail: Kevin.
Kermoal@ulb.be

121
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

fato, nos anos 1990, os programas de urbanização de favelas fo-


ram conduzidos por parcerias entre organismos internacionais e
governos infranacionais, na forma de empréstimos condiciona-
dos ao enquadramento da administração pública, no padrão de
intervenção definido pela globalização neoliberal.
O padrão de trabalho social adotado no âmbito nacional se
insere num contexto mais amplo da crítica neoliberal às estru-
turas do Estado de Bem-Estar keynesiano, que aponta para as
disfunções nos modos de governar, e que preconiza uma racio-
nalização e tecnificação do setor público, através da introdução
de lógicas oriundas do setor privado. De fato, a instrumentação
do chamado “Trabalho Técnico Social” (TTS), em busca do cum-
primento dos princípios de eficiência, eficácia e transparência,
para garantir uma boa governança, revela a dimensão político-i-
deológica neoliberal que sustenta o processo de regulação.
Assim, o objeto deste artigo é a compreensão dos impactos
da introdução das lógicas de gestão oriundas do mercado, no
marco regulatório do MC, sobre o trabalho social na urbaniza-
ção de favelas. Em 2007, o governo federal lançou o Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC) para promover o desenvolvi-
mento econômico a partir da potencialização dos investimentos
públicos e da criação de um ambiente atrativo para investimen-
tos privados, que contém um eixo de Urbanização de Assenta-
mentos Precários (PAC-UAP). No desenho do PAC, os governos
municipais e estaduais são responsáveis pela formulação e exe-
cução de projetos, em respeito ao quadro normativo formulado
pelo MC, e com o acompanhamento e a fiscalização da Caixa
Econômica Federal (CAIXA). Além da análise dos documentos
que compõem o quadro normativo e operacional do trabalho
social, mobilizamos dados oriundos de pesquisas conduzidas so-
bre o trabalho social no PAC da Rocinha e o PAC do Complexo
do Alemão, chamado PAC Social, implementado pelo Estado do
Rio de Janeiro.
Em primeiro lugar, abordamos o aparente paradoxo entre
a afirmação do Estado e a sua relegação, promovida pela crítica
neoliberal. A reconfiguração no exercício do poder, sustentado
pelo discurso da governança, defende que, em vez da retirada
do Estado, o neoliberalismo mobiliza ativamente as instituições

122
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

estatais para reconfigurar as relações entre o Estado e o mer-


cado, na perspectiva de tornar a ação pública mais eficiente e
de criar condições favoráveis às lógicas de mercado. Contudo,
abordaremos a reconfiguração do trabalho social pelas forças
da globalização, em direção da sua racionalização e tecnificação
dentro do arranjo regulatório do MC, como um mecanismo de
modernização neoliberal da política social segundo lógicas de
mercado.
Em segundo lugar, mobilizamos os aportes das teorias dos
instrumentos de ação pública e da governamentalidade, para en-
tender os impactos da instrumentação do trabalho social a partir
da imposição de um modelo gerencial moldado por orientações
de racionalização técnica e da garantia de um processo de boa
governança. Os meta-instrumentos de regulação formulados
pelo MC estabelecem um padrão de intervenção que acrescenta
a importância das tecnologias de “governo a distância” para di-
rigir o trabalho social dentro dos programas implementados no
quadro fragmentado e descentralizado da governança urbana.

O Trabalho Técnico Social e a regulação


neoliberal
Até os anos 1960, o Serviço Social foi baseado no neoto-
mismo e na visão moralista da Igreja sobre a questão social,
estampilhado com uma abordagem humanista e conservadora
(YAZBEK, 2009), e depois da guerra, pelas teorias norte-ame-
ricanas decorrentes da psicologia e da sociologia positivista e
funcionalista, que participaram da instrumentalização e tecnifi-
cação do Serviço Social, sustentadas pela concepção de autono-
mia e neutralidade científica (GOMES, 2015). O “arranjo teórico
doutrinário” do Serviço Social é o resultado da combinação do
discurso humanista cristão e da cientificidade técnica, típica da
teoria social positivista, reafirmando a tendência do pensamento
conservador (IAMAMOTO, 1992, p. 21).
Paralelamente à sua atuação, no campo da habitação, de
acompanhamento da política de remoção durante o período
militar, a década de 1960 é marcada pela emergência da crítica

123
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

ao modelo de industrialização por substituição de importação, e


das novas configurações de expansão capitalista e de desenvol-
vimento excludente e subordinado. Organiza-se um movimento
de renovação do Serviço Social, aos níveis teórico, metodológico,
operativo e político, na construção de um projeto comprometido
com as demandas das classes subalternas cristalizadas nos movi-
mentos sociais emergentes (YAZBEK, 2009, p. 8).
O processo de reconstrução acadêmica, profissional e social
é sustentado por uma perspectiva de liberdade e justiça social, e
de “uma ação de cunho socioeducativo na prestação de serviços
sociais viabilizando o acesso aos direitos e aos meios de exer-
cê-los” (IAMAMOTO, 2006, p. 6). Os profissionais reavaliam o
seu papel no desenvolvimento das comunidades, incentivando
a organização das camadas populares para reivindicar o aten-
dimento às suas demandas e passando a atuar em parceria com
os movimentos sociais, com a aplicação de “uma base técnico-
cientifica às atividades de ajuda, à filantropia”, ou seja, de uma
“tecnificação da filantropia” que acelera o processo de profissio-
nalização do Serviço Social (IAMAMOTO, 2006, p. 12).
A efetiva interlocução da teoria social marxista com a pro-
fissão, como matriz teórica-metodológica, se consolida nos anos
1980 e 1990 no processo de regulamentação profissional (YA-
ZBEK, 2009; NETTO, 1996). Busca-se a ruptura com o conser-
vadorismo tradicional, nos campos dos valores, da ética e da
política, e a formulação de uma base normativa que define as
competências, atribuições, deveres e direitos do assistente social,
dentro de um marco humanista (IAMAMOTO, 2006, p. 24-25).
Ao mesmo tempo, critérios de gestão empresarial e gerencial,
como o custo/benefício, a terceirização e a produtividade foram
incorporados nas organizações estatais e passaram a orientar a
execução do trabalho social nas políticas públicas, num movi-
mento de privatização e mercantilização dos serviços sociais (IA-
MAMOTO, 2006, p. 16).
O profissional passa a ocupar espaços variados (nos Pode-
res Executivo, Judiciário e Legislativo; empresas privadas; orga-
nizações da sociedade civil sem fins lucrativos...), munidos de
racionalidades e funções diferentes (IAMAMOTO, 2009, p. 24).
Apesar do movimento de ruptura com o conservadorismo, o

124
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

Serviço Social é marcado por um movimento contraditório, com


a difusão do neoliberalismo através das agências internacionais,
que dá sinais de um “revigoramento de uma reação (neo) conser-
vadora aberta e/ou disfarçada em aparências que a dissimulam
(…) apoiada nos lastros da produção pós-moderna e sua negação
da sociedade de classes” (IAMAMOTO, 2009, p. 9).
O espaço deixado pela redução do papel do Estado federal
nos anos 1990 foi ocupado por políticas públicas na base de par-
cerias entre municípios e agências multilaterais, que financiam
e direcionam programas de urbanização integrada, através de
empréstimos internacionais, em prol de uma agenda afirmativa
de reconfiguração institucional. O mercado do trabalho social
é flexibilizado, ONGs e empresas passando a ocupar esse papel
nos programas habitacionais, numa relação contratual e pontual,
limitada ao escopo do projeto, deixando o enfoque assistencia-
lista e renomeado como “Trabalho Técnico Social” (IRIGOYEN,
2018). A estrutura e os princípios norteadores, as funções, a divi-
são operacional e temporal, a metodologia de acompanhamento,
os procedimentos de repasse da metodologia de Trabalho Téc-
nico Social, formulados pelo MC, reproduzem o padrão de in-
tervenção e a perspectiva técnico-operacional difundidos pelos
organismos internacionais na década de 1990.
No contexto neoliberal da governança urbana, as disfun-
ções nos modos de governar foram apontados como fator da
expansão da pobreza urbana nas periferias dos países em de-
senvolvimento, relativizando o impacto estrutural da globaliza-
ção e das políticas de reajuste (ARANTES, 2006). A ineficiência
da administração pode ser resolvida através da boa governança,
uma mobilização bottom-up e uma capacitação top-down (JESSOP,
2002). Rejeitando as estruturas do intervencionismo do Estado
fordista/keynesiano e a hierarquização do poder, o neolibera-
lismo promove um poder decentralizado, na forma de parcerias
entre governos locais e coalizões engajadas no crescimento eco-
nômico (JOUVE, 2007).
No entanto, não significa a retirada do Estado, mas a re-
configuração das suas relações com o mercado, através da mobi-
lização ativa das instituições, para promover arranjos regulató-
rios favoráveis a este último (BRENNER & THEODORE, 2005).

125
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

Trata-se de uma inflexão, do roll-back neoliberalism da era Tha-


tcher-Reagan, que visa à ruptura com o capitalismo social-de-
mocrata, para a fase de roll-out do neoliberalismo, que busca a
reconstrução do estado capitalista em bases empreendedoras e a
remodelação das relações entre o setor privado e o setor público
(PECK & TICKELL, 2002, apud ROSSI & VANOLO, 2015, p. 6).
As forças materiais e discursivas da globalização incentiva-
ram a interação entre espacialidades locais e globais, modelando
os processos de governança urbana como políticas locais de glo-
balização (SWYNGEDOUW, 1992). Além de políticas macroe-
conômicas, agências multilaterais promoveram a capacitação e
a mobilização local em parceria com atores privados e ONGs
(JOUVE, 2007), marcando uma aparente passagem do governo
à governança (HARVEY, 1989). Arantes (2006) identifica uma
primeira etapa de transição de um modelo estatista a um modelo
de políticas públicas de mercado, dominado por uma doutrina
de recuperação total dos custos ( full-cost recovery), a uma segunda
etapa marcada pela transposição de gestão empresarial à gestão
da cidade (ARANTES, 2006, p. 68-69).

‘Banir a política da cidade competitiva e pacificada’ é


um projeto no qual a ‘eliminação da esfera pública local,
transformada em espaço de exercício de um projeto
empresarial (...), conduz à destruição da cidade como
espaço da política, como lugar de construção da cidadania’
(VAINER, 2000, p. 98 apud ARANTES, 2006, p. 68-69).

Trata-se da proscrição da política e da negação da polis, de


um poder estável liberado dos vícios da política, caracterizada
por conflitos, incerteza e falta de controle, em linha com os prin-
cípios de boa governança, e a reconfiguração das autoridades
locais em estruturas administrativas modeladas para respon-
der aos interesses do capital, através da difusão de métodos e
técnicas de gestão, em prol do desembaraçamento da política e
de qualquer compromisso com a democracia real (ARANTES,
2006, p. 69).
Nos estudos urbanos, a governança define um processo que
opera “um reequilíbrio no exercício do poder urbano, a priori

126
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

ao detrimento do Estado e das instituições urbanas (eleitos e tec-


nocracias locais), e ao benefício dos atores da sociedade civil”
(JOUVE, 2007, p. 388). É declinada para estimular uma reforma
do Estado, visando à racionalização, novas formas de parceria
com o setor privado, e novos instrumentos de gestão pública,
especialmente indicadores de performance, controle dos serviços
e uma cultura de resultados operacionalizados por instrumentos
de observação (STOKER, 1998; JOUVE, 2007). A introdução da
“governança corporativa” busca a difusão de “métodos e técnicas
de gestão e fazer o setor público menor e mais eficaz” (PRICE,
1991, p. 9, apud ARANTES, 2006, p. 68).
O projeto político de modernização dos países em desenvol-
vimento baseia-se na lógica gerencial que sustenta a governança
(JOUVE, 2007), ou, como o coloca Clarke, as ideias neoliberais
são implementadas através da “cola organizacional” do gerencia-
lismo (CLARKE, 2004 apud HARLOW et al., 2013, p. 538). O
desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social provocou uma
crise de legitimidade e a reconfiguração, de cunho gerencial, da
estrutura do serviço social, atrelada aos princípios de economia,
eficácia e eficiência, produzindo o que Harris chama de “negó-
cio de trabalho social” (HARRIS, 2002, p. 46). A introdução de
uma “racionalidade quase-capitalista” é distinta da forma capi-
talista “pura”, dado que o financiamento de Estado, o quadro
regulatório e a responsabilidade política, sustentam os arranjos
de “quase-mercado gerencializado” para o trabalho social (HAR-
RIS, 2002, p. 57).
A gerencialização impacta o lado da oferta através da corpo-
ratização e da privatização, afetando as políticas sociais e a auto-
ridade moral do trabalho social (HARRIS, 2003). O impacto da
mercantilização, do lado da demanda, promove o individualismo
em lugar do coletivismo e o consumerismo neoliberal em lugar do
assistencialismo, impactando a identidade do profissional inserido
numa relação consumerista (WALLACE & PEASE, 2011). A mer-
cantilização participa da competição patrocinada da provisão de
Assistência Social, e da introdução de mercados internos das or-
ganizações públicas, como meio de imitar as relações do mercado,
num “quase-mercado” que define as relações “mercantilizadas”
segundo a lógica consumerista (ROGOWSKI, 2011, p. 158-159).

127
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

O processo de gerencialização prioriza a performatividade


(evidence-based practice) como método racional de controlar a per-
formance do trabalho social, por meio de instrumentos de moni-
toramento e avaliação (HARLOW et al., 2012). O gerencialismo
é considerado como um modelo traduzível em outros contextos,
sustentado por uma visão reducionista de controle sobre o espa-
ço profissional, os consumidores e os processos. A profusão de
instrumentos de participação e de eficiência no uso dos recursos
contribui para o processo de racionalização técnica e da promo-
ção de um bom clima de negócios (ARANTES, 2006, p. 69). Os
princípios de eficiência, previsibilidade e controle impactam o
trabalho social em várias dimensões: o papel, a identidade, as
funções, o conhecimento prático, as competências e as relações
profissionais. Ao mesmo tempo que é atravessado pelo novo mo-
delo consumerista de fornecimento de serviço, ele passa a au-
mentar a sua atuação no campo informacional (PARTON, 2008),
e é “desintelectualizado” em prol de um foco nas competências,
afetando assim o mercado de trabalho e o potencial crítico-e-
mancipatório da profissão (WALLACE & PEASE, 2011).
O início dos anos 2000 é marcado pela formulação de ins-
trumentos de tipo regulatório, produzidos pelo MC para orien-
tar a Política Nacional de Habitação (PNH), alimentados, de
um lado, pelos avanços da Reforma Urbana, que ficaram conge-
lados após a declaração da Constituição, e, de outro lado, pelas
influências dos padrões difundidos pelas agências internacio-
nais nos anos 1990. É formulada, nesse período, uma combi-
nação de diretivas e padrões uniformizados que confere uma
base jurídica e normativa ao trabalho social nos programas de
urbanização de favelas. A tese da PNH para a Habitação de In-
teresse Social, com a formulação do Estatuto da Cidade (2001),
a criação do Ministério das Cidades (2003) e a produção de um
aparato de regulação sustenta a combinação de ações visando
à ampliação do mercado privado no atendimento da demanda
das classes médias e da população de baixa renda, da chama-
da Habitação de Interesse Social (MARICATO, 2005, p. 1). O
Trabalho Técnico Social se torna uma “aposta estratégica” no
acompanhamento das obras físicas e busca a viabilização do
exercício da participação cidadã e a melhoria da qualidade de

128
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

vida, com um conjunto de ações voltadas à mobilização e orga-


nização comunitária, saúde e educação ambiental, e geração de
trabalho e renda.
A CAIXA, através do Caderno de Orientação Técnico do
Trabalho Social (COTS), elabora as diretrizes de formulação,
execução, monitoramento e avaliação do Projeto de Trabalho
Técnico Social (PTTS), instrumento de operacionalização do
projeto social formulado pelo agente executor. De forma resu-
mida, são considerados no COTS, a viabilidade do empreendi-
mento, formas de reprogramação contratual, ações previstas
nas diferentes etapas do projeto, orientando processos de en-
caminhamento de prestações de contas através dos relatórios
e planilhas de custos, e dos formulários de operacionalização
fornecidos. De acordo com Pimentel (2012), o MC diz “que
tem que ser feito”, numa abordagem normativa do trabalho
social, enquanto a CAIXA indica “como fazer”, ao cuidar da
organização, orientação e direção do trabalho (PIMENTEL,
2012, p. 18).
Foge do escopo do presente artigo a análise da estrutura ins-
titucional e operacional do PAC Social, que envolve um arranjo
complexo de instituições e atores públicos e privados inseridos
em relações de poder institucionalizadas e informais, hierarqui-
zadas e não hierarquizadas53. Contudo, destacamos que nos ca-
sos da Rocinha e do Complexo do Alemão o TTS foi realizado
por uma empresa privada, terceirizada pelos consórcios licitados
pelo Estado do Rio de Janeiro. A possibilidade de terceirização
da formulação e da execução do PTTS está prevista pelo MC.
Criou-se, assim, uma estrutura complexa de inter-relação na for-
mulação, execução, coordenação e no monitoramento do traba-
lho social: a empresa agindo como formulador e executor do
projeto, com a coordenação, o acompanhamento e a fiscalização
do Estado; o consórcio atuando também, em alguns casos, como
no Complexo do Alemão, no monitoramento e a coordenação
do trabalho social executado pela empresa prestadora de servi-
ço, através do seu próprio setor de trabalho social. Neste último
caso, a equipe do Trabalho Técnico Social do Canteiro Social,
53
Sobre a estrutura organizacional e operacional do PAC Social, ver (OLIVEIRA,
2011; TRINDADE, 2012; PATRÍCIO, 2017).

129
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

formado pela empresa executora, trabalhou sob a coordenação


técnica da equipe de TTS do consórcio, o conjunto do trabalho
social sendo coordenado pela ETTS do governo.

A instrumentação do trabalho social como


reconfiguração da arte de governar
A noção de governamentalidade ajuda a entender a trans-
formação das formas de exercício do poder estimulada pela
racionalização e a tecnificação neoliberal, como um “governo
a distância”, que transpõe as técnicas do setor privado ao setor
público através de instrumentos de regulação (SIBILLE, 2006).
A reestruturação das técnicas de governo e o fim do Estado de
Bem-Estar Social deslocam a competência regulatória do Es-
tado ao indivíduo “responsável” e “racional”, numa forma de
“empreendedorização” (entrepreneurialization) da vida, substi-
tuindo mecanismos rígidos de regulação por técnicas de autor-
regulação (LEMKE, 2001, p. 202). O neoliberalismo seria uma
“arte de governar”, orientando a expansão da forma econômica
do capitalismo na sociedade, mediante processos de individua-
lização e autoempreendedorismo (ROSSI & VANOLO, 2015).
Implica uma intervenção direta por meio de um “aparato es-
tatal empoderado e especializado”, e técnicas indiretas de go-
verno, de controle dos indivíduos e de desresponsabilização do
Estado, organizando a transferência de responsabilidade para
os indivíduos, na transição do governo à governamentalidade
(LEMKE, 2001, p. 201).
Apesar das suas inserções em estratégias conceituais dife-
rentes, especialmente relativo às questões de soberania e de mu-
dança, é possível alinhar a governança e a governamentalidade a
partir dos instrumentos de regulação a distância, característicos
da transformação neoliberal nos modos de governo (SIIBILLE,
2006). Tal como a governança não significa, na literatura mo-
bilizada, uma retirada do Estado, porém sua reconfiguração, a
governamentalidade se concentra sobre a transformação das for-
mas de exercício do poder: o que está em jogo não são somente
as questões funcionalistas de solução de problemas ou da busca

130
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

de tecnologias eficazes, porém são as modalidades concretas


de exercício do poder, ou seja, as estruturas de dominação no
sentido weberiano (LASCOUMES & SIMARD, 2011, p. 5).
A partir dos trabalhos realizados nas ciências de gestão e a
sua aplicação no campo da administração pública, o instrumen-
to de ação pública é definido como “um dispositivo técnico com
uma vocação genérica, portador de uma concepção concreta da
relação política/sociedade e sustentado por uma concepção da
regulação” (LASCOUMES, 2004, p. 7). A crítica do funciona-
lismo defende que os instrumentos não são inertes, nem neu-
tros, nem mera técnica, porém produzem efeitos independentes
dos objetivos declarados e induzem a uma representação e uma
problematização específica dos seus objetos. A instrumentação
considera “o conjunto de problemas colocados pela seleção e o
uso das ferramentas (...) que possibilitam materializar e pôr em
prática a ação governamental” (LASCOUMES & LE GALÈS,
2004, p. 12). Cada instrumento é uma forma condensada de go-
vernamentalidade, de saber sobre exercício do poder social. A
instrumentação é então uma atividade governamental específi-
ca, sustentada por teorias das relações políticas e sociais, e um
indicador dos problemas de regulação a serem resolvidos pela
ação pública (LASCOUMES, 2004, p. 10).
No marco da governança, os instrumentos procedimentais,
que exercem uma regulação indireta e supostamente menos vin-
culativa, são priorizados em lugar dos instrumentos substantivos
(SIBILLE, 2006, p. 3) para regular a distância, e articulam dois
mecanismos: uma orientação ex ante, definida como a capaci-
dade de incitar os atores a atuar segundo os seus desejos; um
controle ex post que media a atividade dos atores e a compara
com os resultados esperados (SIBILLE, 2006, p. 4). Na literatu-
ra da governamentalidade, o Estado não é um ator individual e
unitário, fonte autônoma de poder, porém é o resultado de um
conjunto de regimes de governamentalidade e, por isso, convém
observá-lo a partir das práticas, das tecnologias e da instrumen-
tação que compõem a sua materialidade (LASCOUMES & LE
GALÈS, 2007).
A base da governamentalidade é o saber, em lugar da lei ou
da força, alcançado pelo que Foucault chama de “mecanismos

131
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

de segurança” que buscam garantir uma segurança sobre o am-


biente dos homens com o intuito de reduzir a incerteza do futuro
através da antecipação dos processos sociais e naturais (SIBIL-
LE, 2006, p. 11). Assim, esses mecanismos podem ser entendidos
como “mecanismos de saber”, encarnados por instrumentos de
informação que buscam fornecer um saber sobre o estado pre-
sente do objeto a ser governado para antecipar e agir sobre o seu
futuro (SIBILLE, 2006, p. 12). A informação é essencial para a
orientação da política: é “necessário saber o que era para ser go-
vernado e governar à luz desse saber” (ROSE et al., 2006, p. 87).
A primeira fase do TTS é o diagnóstico, composto por ins-
trumentos censitários (domiciliar, empresarial, das organizações
comunitárias), considerado como o marco zero do projeto e
complementado pela consideração das dinâmicas sociais e de-
mandas locais levantadas a partir de reuniões com “lideranças” e
organizações comunitárias. Nem a preocupação por dados qua-
litativos e quantitativos na construção de um saber para orientar
a administração das favelas, nem o papel dos assistentes sociais
na construção desse saber é algo novo. Aliás, vale lembrar que
tiveram um papel estratégico na produção de saber, pela sua in-
serção nas favelas e a “entrada garantida na casa dos pobres”, a
partir da sua inclusão na função pública durante o governo Var-
gas (VALLADARES, 2000, p. 22). Porém, a fase de coleta de in-
formação prévia na orientação do TTS e na justificação de cada
atividade desenvolvida dentro do projeto é direcionada tanto à
construção de um saber para governar os beneficiários, quanto à
orientação dos objetivos dos profissionais.
A fase de diagnóstico orienta a metodologia e as atividades
a serem implementadas no território: a partir dele, são formula-
dos objetivos gerais e específicos, expressos por metas enquanto
expressão temporal, qualitativa e quantitativa de cada objetivo, e
delimitando as ações a serem implementadas para cumpri-las. O
TTS define indicadores de resultados que possibilitam a verifica-
ção do cumprimento das metas e a avaliação durante e após o pro-
jeto. A metodologia é organizada por cronogramas que definem
a sequência das atividades, a duração e a sincronização, de forma
lógica, racional e gradual, para o alcance dos objetivos. Os cus-
tos e o orçamento detalhado das atividades, incluindo os recursos

132
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

humanos, serviços de terceiros, e recursos materiais, são formula-


dos num cronograma de desembolso, vinculado ao cronograma
de atividades, visando acompanhar a evolução financeira do pro-
grama. Os instrumentos de sistematização e registro possibilitam
a observação e medição do acompanhamento, bem como a ava-
liação das performances do trabalho (atas, formulários de registro,
cadernos de campo, foros etc.). A formulação de metas, cronogra-
mas e roteiros, e a importância do monitoramento e da avaliação
participam de uma orientação por paradigmas de performativida-
de e de boa governança, articulados por uma linguagem gerencial.
A preocupação com a temporalidade, a conformidade proces-
sual, o registro das atividades, a avaliação padronizada e a medição
de produtividade, reunidos num pensamento caracterizado pela
aversão ao risco, são características da gerencialização, que impacta
as competências, o saber e as práticas do trabalho social (HYSLOP,
2018). As tarefas são divididas e fragmentadas para possibilitar o
cálculo e o controle da alocação de recursos exatos necessários ao
fornecimento do serviço, orientando os trabalhadores a seguirem
instruções formalizadas pelos instrumentos regulamentares e ope-
racionalizadores de cada tarefa (RITZER, 2011). A performativida-
de é o critério dominante de avaliação do saber (PARTON, 2008),
os indicadores de performance sendo um tipo particular de instru-
mento, central para a reestruturação dos Estados (LE GALES, 2016,
p. 509). A medição da performance é um dos símbolos da transfor-
mação da governança e da disciplinarização do Estado pelas me-
didas, métricas e os indicadores importados do setor privado, pro-
duzindo o que Le Galès chama de “estado performativo” (p. 508).
A prática baseada na prova (evidence-based practice) como motor da
performatividade é um método racional de controlar o trabalho
social, facilitando o exercício de gestão a distância, típico da agenda
gerencial (HARLOW et al., 2013, p. 544). Essa prática questiona a
construção e as dimensões epistemológicas do trabalho social, dis-
putado pela racionalização científica do gerencialismo: “Uma for-
ma de contaminação cruzada aconteceu na qual o cientismo de um
reforça a despolitização do outro” (BUTLER & PUGH, 2004, p. 63,
apud HARLOW et al., 2013, p. 544).
O TTS deve “viabilizar o processo permanente e constan-
te de informação da população sobre o desenvolvimento do

133
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

projeto, a transparência sendo um elemento essencial na cons-


trução do processo participativo e na relação de confiança entre
técnicos e população” (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2007, p.
4). A função informativa contribui com um padrão de partici-
pação baseado na prestação de serviço ao beneficiário, numa
relação consumerista e na legitimação da ação coletiva. Essa in-
terpretação reducionista da participação, como instrumento pe-
dagógico, viabilizador ou legitimador, “retira desses espaços as
perspectivas de luta” (PIMENTEL, p. 30).
A proximidade posicional na interlocução com a popula-
ção, reforçada pela presença de um canteiro social de atendi-
mento na favela e da contratação de moradores, concedem ao
trabalho social uma posição estratégica na legitimação e na ma-
nutenção do processo. Na sua relação particular entre governo,
empresas e população, o trabalho social é atravessado por inú-
meros conflitos e opera reajustes permanentes, seu papel sendo
reconfigurado numa lógica de reação e de adaptação, limitando
as suas funções críticas e emancipatórias ao benefício de um pa-
pel de viabilização do empreendimento. Ele combina instrumen-
tos informativos e comunicativos para viabilizar e legitimar a
intervenção, e a manutenção de um equilíbrio cognitivo, dando
coerência e inteligibilidade a uma série de ações fragmentadas
e a um projeto em mutação permanente. A comunicação dos
dados produzidos sobre as atividades, o bom cumprimento do
processo e do cronograma, das ações realizadas, e a construção
narrativa do projeto ocupam um papel importante nas arenas de
participação e nas atividades de capacitação e de educação, num
processo de reflexividade permanente do trabalho social sobre
as suas ações, para legitimar o processo.
Nesse exercício participativo, a boa governança desempenha
um papel fundamental em três níveis de legitimação do projeto:
primeiro, no que diz respeito às condições de entrada, a legitimi-
dade pelos procedimentos (input legitimacy), marcada nos casos
estudados por uma crise de confiança no Estado e enfrentada por
meio dos mecanismos participativos da fase de diagnóstico. Em se-
guida, o trabalho social desempenha um papel na legitimidade do
processo (throughput legitimacy), que diz respeito à transparência
e à sua boa conduta; em terceiro lugar, o trabalho social, através

134
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

do material comunicativo e da narrativa produzida, pode incidir


numa legitimidade baseada nos resultados e servir à difusão das
práticas (output legitimacy) 54.
O controle das atividades das empresas executoras requer
uma capacidade de tratamento das informações através dos ins-
trumentos de monitoramento (SIBILLE, 2006 p. 17). A obses-
são do controle e a aversão à incerteza concedem uma atenção
particular ao campo da informação e dos instrumentos infor-
mativos na prática dos trabalhadores sociais, incluindo a coleta,
a organização, o armazenamento, a representação e a difusão.
Contudo, as intervenções do PAC Favelas são caracterizadas por
um caráter imprevisível, devido a fatores endógenos da favela e
às relações de poder, à distância cognitiva da parte dos técnicos,
ao processo burocrático da CAIXA, entre outros aspectos.
O monitoramento e a avaliação do cumprimento de metas e
cronogramas são operacionalizados através de instrumentos de
controle, que organizam a delegação dos serviços públicos pelo
Estado (SIBILLE, 2006). O controle deve ser realizado durante
todo o processo, considerando sempre a visão da comunidade,
numa gestão transparente e compartilhada. Além do acompa-
nhamento no território, o monitoramento é operacionalizado
principalmente através dos Relatórios Periódicos de Acompa-
nhamento, anexados por documentos de registro e sistematiza-
ção das atividades realizadas durante o mês. No final do projeto,
a empresa terceirizada deve realizar um relatório final e elaborar
uma matriz de indicadores de avaliação baseada na Matriz de
Indicadores fornecida pelo MC.
As estratégias de controle são articuladas por uma lógica
de condicionalidade: a liberação dos recursos destinados, tanto
ao projeto de obras quanto ao projeto técnico-social, depende
da validação dos relatórios entregados pela equipe do trabalho
social à CAIXA. O mesmo princípio de condicionalidade rege
a avaliação pós-ocupação, mediada pela Matriz de Indicadores.
O contrato é cumprido só após a avaliação de pós-ocupação, e
caso ela demostrar que o trabalho social não produziu os resul-
tados previstos, deve ser prosseguido com recursos próprios do
54
Sobre a input, throughput, e output legitimacy, ver (DURAN, 2009; SCHARPF,
2009; SCMIDT, 2013).

135
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

contratante. A condicionalidade, prevista nos instrumentos de


monitoramento e nas metodologias de avaliação da CAIXA, im-
pactou as práticas e competências do trabalho social, e cristalizou
conflitos entre os atores, tornando-se uma questão estratégica.
Na “relação entre o social e as obras”, os dois pilares do pro-
grama, o trabalho social ocupa uma posição de subordinação,
por motivos contratuais, setoriais, econômicos, políticos e ideoló-
gicos, entre outros, que se manifestam também no nível interpes-
soal, nas relações entre os trabalhadores sociais e os responsáveis
das obras. Além do mais, as empresas construtoras não tinham
a “cultura” do trabalho em favelas, nem da metodologia de tra-
balho social elaborada no marco da PNH. Nesse contexto, a con-
dicionalidade fomentou uma forma de legitimidade no início do
processo, embora minimamente, na sua dimensão procedural e
obrigatória, diante da relutância das construtoras em considerar
o TTS como um pilar essencial do programa.
Num segundo momento, os instrumentos de monitoramen-
to, desenhados para o controle ex post das atividades, se tornaram
um mecanismo de orientação ex ante do trabalho social. Os rela-
tórios de medição, por exemplo, converteram-se num instrumen-
to estratégico cristalizando os conflitos entre obras e trabalho
social. A dependência à frente de obras, a natureza incremental
do projeto, os erros causados por vícios ou falta de diagnóstico,
as inflexões nos acordos entre a governança local e supralocal,
entre outros fatores, impuseram uma dinâmica de adaptação e
reatividade, na absorção das externalidades de um projeto em
mudança permanente.
Os maiores conflitos focalizam no avanço diferenciado das
obras e do trabalho social, especialmente em casos de reassen-
tamentos. Os cronogramas impõem uma linearidade e supõem
a sincronização dos cronogramas das obras e do trabalho social,
assim, os objetivos do cronograma viram os norteadores do traba-
lho para não atrasar o avanço do projeto. Relativo ao conteúdo, o
relatório deve conciliar os acontecimentos do campo com o filtro
dos critérios impostos pela CAIXA, o que impede a inclusão das
variáveis incontroláveis típicas de um projeto de natureza altamen-
te cambiante. Os relatórios passam então por vários filtros e mo-
dificações, conforme a relação de coordenação e monitoramento

136
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

hierarquizada entre as equipes do trabalho social da empresa exe-


cutora, do consórcio e do Estado. Os trabalhadores responsáveis
pela redação, o monitoramento e o encaminhamento dos relató-
rios, passam a incorporar os critérios de validação e a constituir
uma expertise na redação de relatórios e no alinhamento entre a
realidade do campo e os critérios da CAIXA.
As competências dos trabalhadores engajados nas ativida-
des de monitoramento são ditadas pela capacidade de entrar em
conformidade com os critérios de avaliação da CAIXA, forçan-
do-os a integrar os instrumentos regulatórios como “bíblias” (o
PTTS para o gerente do TS, o COTS para o coordenador ou
fiscalizador do governo do Estado ou do consórcio, responsável
por fazer a ponte com a CAIXA). Tais instrumentos orientam a
prática do trabalho social, limitando a sua autonomia, em linha
com a racionalidade técnica e despolitizada, promovendo uma
função de viabilização do empreendimento. A separação entre
os meios e os objetivos das práticas organizacionais limita a au-
tonomia e o poder emancipatório do trabalho social através da
priorização do processo e do cumprimento das regras estabeleci-
das pelos instrumentos regulatórios.
A introdução das lógicas consumeristas e mercantis leva a
um outro mecanismo de controle na gestão a distância do traba-
lho social: a estandardização. Essas lógicas levam a considerar o
trabalho social como um objeto em si: O PTTS é concebido pela
CAIXA como uma “tecnologia social entendida como produtos,
técnicas e/ou metodologias reaplicáveis, desenvolvidas na intera-
ção com a comunidade e que representam efetivas soluções de
transformação social” (COTS, 2009, artigo 3.1), ou seja, como
um produto, numa apropriação da linguagem empresarial.
A terceirização e a mercantilização do trabalho social refor-
çam a tendência das administrações locais em buscarem receitas
políticas prontas, devido às pressões crescentes sobre o tempo de
resposta política, e a sua inserção no mercado competitivo. Com
a interconexão e competitividade da economia capitalista globa-
lizada, a velocidade e a intensidade das mudanças socioeconômi-
cas e espaciais pressionam as administrações locais para acelerar
a implementação de projetos de desenvolvimento urbano (ROS-
SI, 2015). As elites locais são incentivadas a privilegiar soluções

137
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

disponíveis, que reduzem o tempo e facilitem a implementação,


limitando ainda a contestação popular, comparado com estraté-
gias formuladas localmente (PECK & TICKELL, 2002).
O quadro normativo, assim como as lógicas de marketing
urbano que articulam a difusão de “práticas bem-sucedidas”,
participam do processo de difusão para outras administrações,
seja nacional ou internacionalmente. O trabalho social, enquan-
to objeto tecnológico de gestão da ação pública, se insere na
competição organizada pelo neoliberalismo através do “quase-
mercado”, que articula administrações públicas aos modelos de
intervenção mercantilizados.
O MC e a própria CAIXA participam dessa difusão, através
da formulação e difusão de instrumentos de comunicação susten-
tados pelo saber acumulado, da organização ou financiamento de
eventos de difusão e atividades de capacitação, ou, no caso do PAC
Social, da sua premiação entre as “melhores práticas em Gestão Lo-
cal” pela CAIXA. A participação dos atores do trabalho social em
eventos de difusão da metodologia e dos seus resultados, tanto no
Brasil quanto no exterior, também colabora com o processo de cir-
culação das ideias e das práticas. Observamos aqui uma dimensão
paradoxal da competição, peça central do neoliberalismo, no con-
texto da competição interurbana. Atuando como “poder coercitivo
externo” (HARVEY; 1989, p. 10), os governos locais são incitados a
implementar uma ação pública inovadora, numa postura de dife-
renciação, porém o mimetismo e a reprodução de “práticas bem-
sucedidas” acabam alimentando um regime de estandardização.
Enquanto as lógicas de gestão são naturalizadas pelo corpo
do trabalho social e passam a orientar as suas práticas, como
no caso do monitoramento, a consolidação desse corpo alimen-
ta a reprodução e a difusão dessas mesmas práticas. O quadro
estandardizado possibilita uma mobilidade importante e despo-
litizada do corpo profissional. A capacidade de entrar em con-
formidade com critérios burocráticos e operacionais de gestão
são valorizados em detrimento das competências tradicionais do
assistente social. É possível observar, por exemplo, o aproveita-
mento de recursos humanos e profissionais acumulados durante
esse período, em outros municípios ou empresas, ou sendo re-
contratadas por administrações de orientação política diversa.

138
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

A estandardização, nesse sentido, funciona como um meca-


nismo de orientação, que possibilita a difusão das prioridades e
objetivos definidos pelo Estado, e pode então ser compreendido
como um instrumento de governo a distância (SIBILLE, 2006).
O processo de estandardização das representações e práticas
norteadoras do trabalho social na urbanização de favelas, conso-
lidado pelos metainstrumentos normativos elaborados pelo MC
e pela CAIXA, contribui, segundo Ferguson e Lavalette (2006), à
desqualificação (deskilling) da profissão, orientada à reprodução
regulada de práticas estandardizadas.

Conclusão

A intervenção na regulamentação do trabalho social no


campo habitacional, no contexto de neoliberalização urbana dos
anos 1990, pode causar uma sensação paradoxal: como apontam
Brenner e Theodore, “as medidas econômicas, sociais e políti-
cas perseguidas para apoiar o projeto neoliberal parecem geral-
mente estar envolvendo um aumento paradoxal da intervenção”
(BRENNER & THEODORE, 2005, p. 4). A fase de roll-out do
neoliberalismo, após uma primeira fase caracterizada por uma
racionalidade incondicionalmente desreguladora, toma uma for-
ma mais positiva na reconstrução do Estado capitalista e na re-
configuração inovadora das relações entre o Estado e o mercado
(PECK & TICKELL, 2002, apud ROSSI & VANOLO, 2015, p. 6).
Para o ideário neoliberal, trata-se de uma fase transicional para
que o Estado possa cumprir, em seguida, um papel de manuten-
ção das condições de viabilização da expansão da economia de
mercado liberal e de uma sociedade civil autogovernável.
A regulação no nível nacional contribui, em primeiro lugar,
com a introdução das lógicas de mercado na gestão da políti-
ca social pública, através da integração do modelo de trabalho
social formulado pelo BID nos anos 1990; e em segundo lugar,
para a sua apropriação, estandardização e difusão através do
quadro institucionalizado, das “práticas bem-sucedidas” e da so-
cialização dos trabalhadores sociais, cuja naturalização do novo
quadro é facilitado pela flexibilização do trabalho social. A força

139
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

do neoliberalismo, segundo Brenner e Theodore (2005), funda-


menta-se na sua flexibilidade e a sua capacidade de adaptação a
diferentes contextos históricos e geográficos e regimes regulató-
rios distintos, criando “caminhos” de neoliberalização (BREN-
NER & THEODORE, 2005).
Os modos de governança e de gestão dos serviços públicos
incentivam a separação entre os meios e os objetivos das práticas
organizacionais. A priorização do “processo” e do “cumprimento”
superam o espaço disponível para a “iniciativa” e o “ julgamen-
to pessoal” (ROGOWSKI, 2011). A obsessão pela manutenção do
processo e da boa governança, inserida nas relações de poder que
orientam estratégias diferentes, condena o trabalho social a uma
postura reativa e de adaptação permanente. As exigências de in-
formação e transparência e a concepção de uma participação legi-
timadora e pedagógica afirmam um tipo de relação consumerista
baseada na prestação de serviço. O monitoramento, desenhado
como um mecanismo de controle, passa a orientar as práticas e
as competências dos trabalhadores, que devem seguir os critérios
impostos pela CAIXA. Se a racionalização técnica e a construção
de um quadro regulamentar, através de meta-instrumentos de
coordenação, implicam a reprodução controlada das práticas e a
sua despolitização, a mercantilização do trabalho social também
participa da estandardização como mecanismo de orientação da
ação pública, através do jogo da competição neoliberal, oscilando
entre diferenciação e estandardização.

O trabalho social não é passivo, refém, ou mera “vítima” do


neoliberalismo. Ele atua como agente da sua reprodução
através da sua adaptação, da socialização dos trabalhadores
e da difusão dos modos de gestão que enquadram a sua
prática. No entanto, a resistência, a confrontação e o
questionamento são elementos fundamentais do trabalho
social (SINGH & COWDEN, 2009), e se manifestam, embora
não de forma organizacional, pela ação dos trabalhadores
no nível individual:
O neoliberalismo pode ser interrompido e disturbado através
das possibilidades fornecidas pela apreciação professional.
Não precisa de uma resistência em grande escala através de
protestos anticapitalistas ou antiglobalização, mas sim atos

140
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

de rebelião por trabalhadores individuais que desafiam e


reinterpretam os discursos e os procedimentos gerencialistas
(WALLACE & PEASE, 2011, p. 139).

O discurso de resiliência enraizado na prática cotidiana é


inevitavelmente fonte de resistência à imposição neoliberal do
desenho e da prática das políticas públicas. Para muitos traba-
lhadores, a orientação econômica da política de desenvolvimen-
to social e os seus impactos nas práticas cotidianas do trabalho
social entram em dissonância com a essência do trabalho. Essa
resistência passa por “alianças” com usuários, no nível individual
ou organizacional, baseadas na sua posição privilegiada e a es-
sência do seu engajamento, para combater o “quase-mercado”
(WALLACE & PEASE, 2011). Entretanto, a dependência à con-
juntura econômica e política, com o atrelamento do TTS à urba-
nização de favelas, diretamente dependente do Estado federal e
do mercado, e a institucionalização das práticas e dos referen-
ciais neoliberais, dos quais o TTS mesmo participa, dificultam
a organização da crítica e participam da erosão das suas expres-
sões e do espaço livre para a resistência.

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144
A Companhia Progresso Industrial do
Brasil: a formação de uma communitas
capitalista no sertão carioca (1888-1919) 55

Paulo Cesar dos Reis56

A reflexão que estabeleço entrepassa pelo processo consti-


tutivo do território de Bangu a partir de suas dimensões econô-
mica, política e cultural no antigo sertão carioca, que, ao longo
dos anos se transformou na região suburbana. As terras que per-
tenciam à fazenda do Bangu são o ponto inicial de uma reflexão
que busca as relações entre uma experiência urbanística e fabril
com o projeto de modernização conservadora do Estado Nacio-
nal. Assim sendo, faço um estudo de caso, entendendo que há
diversas experiências fabris que são concomitantes, contudo, não
possuem as mesmas características da Companhia Progresso In-
dustrial do Brasil (CPIB) 57, que foram determinantes para o es-
tabelecimento desta reflexão que se tornará clara no desenrolar
deste artigo.
O conceito de subúrbio que utilizo está balizado nas refle-
xões de Fernandes (2011) acerca do processo histórico e cultu-
ral de constituição da cidade. Esse autor trabalha com a ideia
de subúrbio carioca cunhada por Soares (1990) 58, estabelecendo
sua origem entre a segunda metade do século XIX e a primei-
ra metade do século XX, ao observar as discrepâncias entre o
significado histórico e geográfico da palavra subúrbio e a reali-
dade. Para além do viés geográfico, a própria formação cultural
e social da cidade criou uma dinâmica própria e estruturou o
55
Este texto faz parte da tese de doutorado defendida em 2020 no Instituto de
Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ).
56
Mestre em História Social pela UFF e doutor em Planejamento Urbano e
Regional pelo IPPUR/UFRJ.
57
Popularmente conhecida como Fábrica Bangu.
58
SOARES, Maria T. S. (1958-1959). “Divisões principais e limites externos do
Grande Rio de Janeiro”. In: Anais da Associação dos Geógrafos Brasileiros, vol.
XII. São Paulo: A.G.B, 1960.

145
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

conceito: bairros que se urbanizaram ao longo das linhas férreas


e contando com a instalação de indústrias.
Fernandes acrescenta ainda o rapto ideológico do conceito59.
Na segunda metade do século XIX, subúrbio era o lugar idílico
das chácaras, das casas de veraneio da elite brasileira e dos pa-
lácios da família real – a casa de Inhaúma de Carlota Joaquina
ou a antiga fazenda jesuítica em Santa Cruz, onde localizava-se o
palácio de verão de D. João VI.
No início do século XX, com as linhas férreas para transpor-
te de passageiros já consolidadas, criou-se um facilitador para a
migração da população proletária para toda essa região, incluin-
do a communitas capitalista banguense. Cumpre lembrar que
houve uma desarticulação da produção agrícola que redundou
no loteamento das antigas fazendas e na própria constituição das
fábricas que contribuíram para o aumento do fluxo migratório.
A partir desses acontecimentos e com a perspectiva da Primeira
República em desconstruir os lugares símbolos do Império, o
subúrbio passou a significar o lugar do proletariado e da fábrica,
isto é, a periferia da cidade. Para Fernandes, assim se justifica o
rapto ideológico.
Para a presente reflexão, trabalho com o recorte cronoló-
gico balizado entre 1888 e 1919 para caracterizar a ideia cen-
tral. Naqueles 31 anos iniciais da Fábrica Bangu, observa-se a
transformação de uma territorialidade rural em urbana e fabril,
contudo, sem a perda das relações do mandonismo, dirigismo e
hierarquização do ethos senhorial, que foi mantido pelos donos
do poder ou classe dominante.
Cumpre explicitar que esse projeto conservador de Estado
foi hegemonicamente executado pela elite senhorial fluminense,
que se consolidou como classe dominante, exercendo um tipo de
dominus tardio60 nessas terras.

59
A expressão rapto ideológico utilizada pelo autor teria sido baseada em BAKHTIM,
Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Editora Hucitec (1981),
segundo o qual as mudanças de significado dos conceitos no tempo se dão a partir
do componente ideológico ou do discurso.
60
Dominus do lat. Nominativo masculino singular. Senhor, patrão, dono. Palavra
usada durante o Império Romano e a Idade Média para referir-se a senhor de uma
casa, de um lugar. Nobre com plenos poderes sobre pessoas, terras e riquezas.
Domínio, lugar da ação coercitiva do dominus. Dominus dei: poder divino. Dominus

146
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

Assim sendo, há a necessidade de fazermos uma pequena


descrição histórica das origens da CPIB, utilizando o conceito de
“fábrica fazenda” de Oliveira (2006) 61, que abordou a questão a
partir de uma estratégia do capital industrial para a instalação
de uma fábrica moderna em uma região rural e, de certa for-
ma, periférica da cidade Rio. Acrescento a questão da constitui-
ção complexa da renda da companhia para salvaguarda da taxa
de lucro fixada no estatuto, como meio de atração do capital
mercantil para esse empreendimento de “vulto”.
A ideia de autossuficiência da CPIB na produção de merca-
dorias à reprodução humana traz um sentido diferente da lógica
de indústria vigente. Para além da vila operária e das benesses
culturais e de lazer para os operários da fábrica.
Cumpre ainda pontuar que o balizamento cronológico está
posto entre o período de constituição da communitas capitalista
banguense até o fim da gestão do diretor da fábrica, João Ferrer,
que trouxe uma modernização nas relações sociais e culturais
para os operários da CPIB. Esse período foi um marco da políti-
ca fabril associada ao projeto de modernização conservadora do
Estado Nacional.

pater: poder patriarcal. Refiro-me aqui ao exercício mais amplo de poder que
abarca pessoas, terras e riquezas em geral. Poder próximo ao do suserano medieval
e correlato ao poder senhorial.
61
Utilizou como demarcador de tempo e transformações no campo do
Planejamento Urbano da região de Bangu, duas das três tipologias cunhadas por
Marcio Pinon de Oliveira (2006) para determinar as fases da CPIB e da constituição
do bairro de Bangu: “Fábrica-Fazenda” e “Cidade-Fábrica”. Essas duas tipologias
demonstram bem a consonância entre o projeto da CPIB e o ideal da modernização
conservadora. A “Fábrica-Fazenda” refere-se ao período de montagem da CPIB e da
ordenação do espaço para a acomodação da estrutura fabril a partir de uma lógica
de autossuficiência do processo produtivo e do atendimento às demandas sociais e
de subsistência dos operários da fábrica. Na “Cidade-Fábrica” abandona-se a ideia
da autossuficiência pelo fortalecimento do núcleo urbano-fabril e pela realização
de melhorias de infraestrutura, como saneamento básico, da vila operária.

147
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

1. A Companhia Progresso Industrial do Brasil:


Breves notas de uma aventura no sertão carioca
(1888-1919)
Essa “aventura” pelo sertão carioca, no longo século XIX
brasileiro, possui um fio condutor que me impulsionou a realizar
uma reflexão que se inicia em 1888, ano da Abolição da Escra-
vatura, e do início da criação do que se pretendia ser a maior e
mais moderna fábrica de tecidos do Brasil.
Em meados daquele ano conturbado, o engenheiro anglo-
-brasileiro Henrique Morgan Snell se reuniu com diversos em-
presários da praça do Rio de Janeiro para “vender” uma ideia
que nasceu na Inglaterra a partir da observação das mais moder-
nas fábricas de tecidos do mundo62.
Com esse ideal, Snell trouxe para o Rio de Janeiro algo que
poderia mudar os rumos da produção têxtil nestas terras e que
geraria lucros estrondosos, aproximando o Brasil das maiores
nações capitalistas. “O fim da companhia é estabelecer, nas ime-
diações d’esta cidade, uma grande fábrica para fiação e tecidos
finos d’algodão, como sejam: morins, chitas, etc.” (Gazeta de Notí-
cias do Rio de Janeiro – GNRJ, 10.10.1888).
Nesse espaço de tempo, de alguns meses, entre as conversas
de Snell com um grupo de banqueiros e a aprovação do estatuto
e ratificação da diretoria da CPIB, entre novembro de 1888 e
janeiro de 1889, vivia-se uma conjuntura conturbada que já apon-
tava para um desgaste do Império e seus símbolos.
A Abolição da Escravidão, por exemplo, é um fato que está
ligado a uma cadeia de acontecimentos anteriores e posteriores
que levaram ao fim do regime de governo dos Bragança, como
é fartamente documentado pela historiografia crítica do Brasil
(HOLANDA, 1945; LOBO, 1989; MATTOS, 1987; LINHARES;
1990; CARVALHO, 1991).
Nesse “entrerregimes” de governo, o Brasil, e em especial
a cidade do Rio de Janeiro, viveram momentos difíceis. Cumpre

62
Snell possuía uma empresa de engenharia na capital Inglesa – De Morgan Snell
& Co.

148
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

citar a política econômica do encilhamento63 e o golpe de Estado,


seguido da ditadura florianista, que encerrou a participação dos
militares na aurora republicana (1889-1894). Além das revoltas
populares, que aconteceram nos primeiros anos do novo regi-
me de governo, como as da Armada e de Canudos,64 ambas em
1893, ano da inauguração da Fábrica Bangu. Nessa conjuntura
conturbada, sinteticamente descrita, inicia-se a aventura da CPIB
no sertão carioca.
Segundo o historiador Fernando Farias (1999) 65, quatro
banqueiros acolheram as ideias de Snell e tornaram-se os incor-
poradores desse empreendimento, iniciando a organização da
CPIB. Representando o Banco Internacional do Brasil (BIB) 66,
Francisco de Figueiredo e Manuel Salgado Zenha. Representan-
do o Banco Rural e Hypothecario (BRH), Comendador Estevão
José da Silva e Manuel Antônio da Costa Pereira.
Destaco aqui dois dos quatro banqueiros que, segundo Oli-
veira (2006), foram os principais incorporadores desse empreen-
dimento de vulto.

[Snell encontrou] pela frente dois banqueiros, o Conde de


Figueiredo e o Barão de Salgado Zenha, ligados na sua origem
ao capital mercantil que, após examinarem as plantas da
fábrica, acompanhadas do cálculo de custos e despesas de
fabricação e demonstração de lucro provável sobre o capital
empregado, resolveram bancar a ideia do projeto fabril e tomar
a iniciativa da fundação da companhia (OLIVEIRA, 2006).

63
Política econômica realizada no governo de Deodoro da Fonseca, tendo como
ministro da fazenda Rui Barbosa. Essa política se referendou no aumento da
emissão de papel moeda para melhorar a liquidez monetária. Gerou uma inflação
que ocasionou a primeira crise econômica da República.
64
O arraial de Canudos foi fundado em 1893 e resistiu até 1897 às incursões do
Exército brasileiro. O conflito em si começou em 1896. Canudos, em seu auge,
contou com uma população de cerca de 25 mil pessoas.
65
FARIA, Fernando Antônio. “Companhia Progresso Industrial do Brasil: empresa
e empreendedores”. In: História Revista – Revista da Faculdade de História e do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás (vol.
4, n. 1 e 2). Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 1999.
66
Banco Internacional do Brasil, fundado em 1º de dezembro de 1886, com capital
autorizado de 20:000$000 (vinte mil contos). Em 1889, era presidente Visconde
de Figueiredo e vice-presidente Conselheiro Salgado Zenha. Secretário: Manuel
Moreira da Fonseca. Dentre os primeiros acionistas o BIB era o que possuía maior
número de ações, 3.243. Cf. FARIAS. 1999, p. 48.

149
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

Esses dois incorporadores da fábrica, Francisco de Figueire-


do (1843-1917) e Manuel Salgado Zenha (1837-1894), eram filhos
de portugueses e figuras de proa no cenário econômico e políti-
co da cidade do Rio.
Francisco de Figueiredo nasceu no Rio de Janeiro em 1843;
seu pai, Comendador José Antônio de Figueiredo Júnior, foi um
importante comerciante dessa praça mercantil, além de benemé-
rito filantropo, como se atesta em diversas atividades de carida-
de para com os mais pobres da cidade Rio.
O Conde de Figueiredo possui uma trajetória empresarial
de grande sucesso e influência política, pois:

(...) em 1879 tornou-se presidente da Companhia Nacional de


Paquetes a Vapor e, por seus préstimos na seca que atingiu o
Ceará, recebeu o título de visconde de Figueiredo por decreto
imperial de 10 de julho daquele ano. Foi presidente do Banco
do Brasil e fundador de dois outros bancos, ambos no Rio
de Janeiro: o Banco Internacional do Brasil, criado em 1886,
e o Banco Nacional do Brasil, fundado em 1889. Também
por decreto imperial, em 31 de outubro de 1889 foi elevado
a Conde de Figueiredo. Já no período republicano, exerceu o
mandato de deputado pelo Distrito Federal, de 3 de maio de
1891 a 31 de dezembro de 1893 (DPRRJ, 2014, p. 469).

É valido salientar que o Conde de Figueiredo foi também


presidente do Centro Comercial do Rio de Janeiro e tesourei-
ro da Santa Casa de Misericórdia (Almanak Laemmert, 1905, p.
2.313).
Cumpre ainda frisar que Figueiredo esteve envolvido no ne-
gócio de construção de moradia popular e operária no Rio de
Janeiro. Isso pode ser observado na tabela organizada por Eulá-
lia Lobo das pessoas e empresas que conseguiram do Estado a
concessão do privilégio para construção de moradia operária no
Rio de Janeiro entre 1872 e 1906 (LOBO, 1989, p. 55).
Manuel Salgado Zenha nasceu em Portugal e migrou ain-
da criança para o Brasil. Teve brilhante carreira nos negócios,
inicialmente no comércio, sendo sócio das firmas comerciais:
João José dos Reis & Cia., Rio, How, Zenha & Silveira, por mais
de 20 anos e, posteriormente da Zenha & Silveira. Igualmente

150
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

importante67, o Barão de Salgado Zenha presidiu as primeiras


assembleias da CPIB, além de ter sido um dos maiores acionistas
(pessoa física) dessa promissora companhia.
Percebem-se nessas breves colocações que Figueiredo e Ze-
nha eram dois homens de grande cabedal financeiro e político,
conquistaram títulos de nobreza no Brasil e em Portugal por es-
forço próprio, isto é, não herdaram seus títulos. Demonstraram
assim um grau de influência e ligação ao projeto de moderni-
zação conservadora do Estado Nacional brasileiro. A partir do
interesse que os dois tiveram nesse negócio de “vulto”, torna-se
clara a importância da CPIB no cenário industrial da cidade do
Rio de Janeiro.
No dia 21 de novembro, portanto nove dias após o lança-
mento, as ações haviam sido totalmente negociadas, como relata
a nota publicada na mesma Gazeta de Notícias: “Ficou ontem com-
pletamente subscrito o capital da Companhia Progresso Indus-
trial do Brasil” (GNRJ, 22.10.1888, p. 3).
A chave para o sucesso que provocou essa rápida venda das
ações da CPIB encontrava-se, em parte, no projeto apresentado
por Snell, que detalhava os custos e a alta capacidade de lucro,
somados à confiança que os incorporadores transmitiam aos em-
presários da praça do Rio de Janeiro.

67
Manuel Salgado Zenha foi vice-presidente do Banco Internacional do Brasil
(BIB), e chegou à presidência do Banco Nacional Brasileiro (BNB), fundado em
1889. Presidiu a Companhia de Fiação e Tecido Confiança Industrial (CFTCI),
que iniciou sua produção em 1887 (GNRJ, 06.03.1887, p. 1). Salgado Zenha foi
agraciado, ainda, com o título de barão em 20 de julho de 1889, em fins do Império
do Brasil. Contudo, o Rei de Portugal D. Carlos I, a 3 de dezembro de 1891, o
agraciou com o título de 1º Barão de Salgado Zenha. Obteve também os títulos de
Oficial da Imperial Ordem da Rosa (Brasil) e Comendador e Grão-Cruz da Ordem
de Nossa Senhora da Conceição da Vila Viçosa (Portugal). Cf. ZUQUETE, Afonso
Eduardo Martins (Dir.) Nobreza de Portugal e do Brasil. Editorial Enciclopédia, 2.
ed., Lisboa, 1989, volume terceiro, p. 650.

151
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

Tabela 1 – Quadro de acionistas da CPIB 1889


Origens do capital
Num.
Nº de ações
Origem acionistas absoluto %
%
(absoluto)

Comércio em geral
40 31,50 5.560 37,07
(exceto tecidos e café)

Comércio de café 10 7,87 1.275 8,50


Comércio de tecidos 6 4,72 375 2,50
Bancos e banqueiros 9 7,09 4.418 29,46
Indústrias e industriais 5 3,94 320 2,13
Capitalistas e
7 5,51 705 4,70
Proprietários
Profissionais liberais 17 13,39 950 9,31
Total 127 100 15.000 100
Fonte: Pinon, 2002.

Constata-se, a partir dos dados levantados, que a maior par-


te do capital que constituiu o primeiro quadro de acionistas da
CPIB não estava vinculado diretamente às empresas ou bancos
estrangeiros. Apenas 8,5% das ações, 10 acionistas, estavam
ligados ao comércio de café, influenciando muito pouco nas
decisões acerca dos rumos da CPIB.
O capital formador da CPIB e, portanto, a sua primeira dire-
toria, se constituiu a partir do perfil desses acionistas, que trou-
xeram um pensamento econômico que se ligava ao novo ethos
capitalista fluminense, visto serem esses primeiros acionistas os
atores sociais da praça mercantil carioca.
Reforça assim a ideia de um tipo novo de organização em-
presarial ou cultura empresarial no Brasil, cujos incorporadores
são empresários ligados ao capital financeiro, isto é, banqueiros
com uma diversidade de ramos de ação tais como: especulação
imobiliária e construção civil.
Realizou-se, por conseguinte, o movimento capitalista
de recondução do capital agrícola68 para setores novos e mais

68
A partir dos anos de 1860, a cafeicultura do Vale do Paraíba entrou em decadência,
liberando capitais para novos investimentos. O capital agrícola do café fluminense
foi realocado nos novos empreendimentos industriais como o caso da CPIB, que

152
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

dinâmicos (indústria), que revitalizaram as relações econômicas


nesse jogo das trocas. Essa liquidez permitiu o surgimento de fá-
bricas por várias regiões da cidade Rio e em algumas províncias
próximas como Niterói, São Gonçalo, Magé e Petrópolis, como
se observa na Tabela 2.
Segundo Lobo, era comum nesse período a participação de
bancos ou banqueiros nesses empreendimentos como acionistas
ou, até mesmo, compondo a diretoria, como forma de garantia
da solidez financeira desse tipo de negócio de grande volume de
capitais. Para o caso da CPIB, foi além, pois o capital bancário
era o incorporador e organizador, como afirmaram Farias (1999)
e Oliveira (2006).
Assim, a CPIB inaugura, juntamente com a Confiança In-
dustrial, um novo estilo de empresa capitalista no setor têxtil, a
iniciar pelos nomes dessas duas companhias que refletiam bem o
rumo dos ventos industrialistas que sopravam no Rio de Janeiro
na época. A Confiança Industrial foi a primeira grande empresa
têxtil no Rio de Janeiro a ser fundada como sociedade anônima,
sendo a CPIB a segunda (OLIVEIRA, 2006).
O pensamento industrial fluminense, a partir da Associa-
ção Industrial do Rio de Janeiro (AIRJ), impôs um padrão de
acumulação capitalista com uma nova organização do trabalho
e um novo desenvolvimento técnico, que precisaram superar as
condições “tradicionais” ou conservadoras de produção.
Destarte, a ordem urbana vigente precisava se adaptar ao
novo momento, criando as condições objetivas para novas expe-
riências nesse campo, como o caso da Vila Operária de Bangu,
que não foi a primeira da cidade Rio. Por certo, o processo de sua
constituição foi singular e revelador de um novo momento que se
abriu para o debate das transformações urbanas neste chão que
se transformou radicalmente, naquele longo século XIX.
Abreu e Lobo teceram o longo caminho para o estabele-
cimento de habitações populares, com padronização higiênica
para os operários dessas novas fábricas, que trouxeram novas
tecnologias para o ordenamento da cidade Rio. Numa conjuntu-
ra de fortalecimento da ideia do “planejamento” urbano, a partir

teve entre seus quadros acionistas de duas instituições bancárias, BRH e BIB.

153
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

da ordenação física da cidade, tendo como preocupação maior


a higiene da urbe diante das recorrentes epidemias de doenças
vindas da falta de assepsia (CHALHOUB, 1996), tornou-se im-
portante pensar os espaços da cidade a partir de uma racionali-
dade diferente.
As habitações para operários e para os pobres tornaram-se
um negócio com rentabilidade, que se comprova na quantidade
de pedidos de pessoas e companhias para a exploração desse
ramo da construção civil (LOBO, 1989).
Cumpre destacar que o BRH, por exemplo, foi um dos in-
corporadores da Companhia Evoneas Fluminense em 1872, junto
com o conhecido “empreiteiro” Américo de Castro. Essa empre-
sa estava diretamente envolvida no debate acerca da construção
de moradia popular e operária, sendo uma das maiores constru-
toras desse tipo de habitação na cidade Rio (LOBO, 1989, p. 55).
A primeira diretoria da CPIB era formada por empresários
com experiência nesse ramo da construção de habitações popu-
lares e operárias, além do trato com os negócios fundiários. Faz-
se proeminente destacar que entre as atribuições iniciais dessa
diretoria estava a contratação de uma empresa para a escolha
do local para a implantação e construção física desse complexo
empreendimento.
Para essa tarefa, contratou-se a firma de engenharia De
Morgan Snell & Co., para efetuar a escolha do lugar da cons-
trução da fábrica e de sua vila operária, como está colocado no
estatuto da CPIB como atribuição da diretoria:

1º – Organizar e fundar, nas proximidades desta Corte, uma


fábrica para explorar a indústria de preparar, fiar, tingir e
estampar algodão ou outros materiais têxteis, adquirindo,
para este fim, os mais aperfeiçoados maquinismos, e quanto
for necessário ao aperfeiçoamento desta especialidade fabril.
2º - Edificar, em terrenos seus, apropriadas e higiênicas
habitações para serem alugadas a operários em serviço da
Companhia (CPIB, Est., 1889, p. 3-4).

Fica evidente, nessas duas atribuições da diretoria, tanto


as finalidades da fábrica e o compromisso do investimento na

154
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

compra dos mais “aperfeiçoados maquinismos” para a produção


de tecidos de alta qualidade, quanto a questão da habitação dos
operários, dando-lhes conforto, segurança e tranquilidade, em
consonância ao discurso do higienismo, presente na cidade Rio
há algumas décadas, como se pode atestar a partir da historio-
grafia especializada (ABREU, 1987; LOBO, 1989; BENCHIMOL,
1992; CHALHOUB, 1996; SILVA, 2012; AZEVEDO, 2016).
A escolha do sítio para a edificação da fábrica passou dire-
tamente pelo crivo da diretoria que, na pessoa de seu primeiro
secretário, influenciou diretamente nessa escolha. Como levan-
tado anteriormente, esses homens possuíam um cabedal de co-
nhecimento acerca do mercado imobiliário carioca que possibi-
litou uma visão mais ampliada das condições objetivas para a
montagem desse empreendimento de “vulto”. Reforçando assim
a questão levantada por Harvey, da importância para a reflexão
acerca dos lugares do trabalho e da moradia dos operários como
fundamentais para o entendimento do processo de organização
do capitalismo industrial.
Tratando-se de uma região periférica do capitalismo, essa
ação empresarial torna-se mais importante para a compreensão
dessa mudança de século, governo e matriz de trabalho. Mesmo
que o processo não tenha atingido sua plenitude, o movimento
de mudança permanece como uma fonte de reflexão para o en-
tendimento do Projeto Nacional de Estado que se constrói na-
quele longo século XIX brasileiro.
Para entendermos esse movimento do capital financeiro e
mercantil, far-se-á necessário o estabelecimento dos princípios
constitutivos dessa territorialidade, que foi escolhida para dar
vazão ao discurso da Modernização Conservadora dos capitalis-
tas da cidade Rio.
A região de Bangu não foi escolhida por obra do acaso, e
sim a partir de determinadas condições objetivas que reforçam o
projeto “civilizacional” da CPIB em estabelecer uma communitas
capitalista neste entrelugar da cidade Rio.

155
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

Imagem 1 – Operários na Olaria, 1892

Fonte: arquivo privado de Antenor Ferreira, 1892. Autor não identificado.

O engenheiro e idealizador da fábrica, Henrique Morgan


Snell, saiu a campo em busca da área ideal para deitar as raízes
da maior e mais moderna fábrica têxtil do Brasil. A primeira
escolha foi uma antiga chácara que pertenceu ao Duque de Caxias
na região da Tijuca, mais precisamente na atual Rua Conde de
Bonfim. Esta área foi prontamente descartada pela diretoria da
CPIB, pois, além de dificuldades logísticas, havia o problema da
escassez de água na cidade Rio. Por ser um empreendimento de
“vulto”, que consumiria cerca de 2 milhões de litros de água por
dia, a fábrica não poderia depender do fornecimento público
desse elemento escasso69.
Por determinação do primeiro secretário da CPIB, An-
tonio Xavier Carneiro70, buscou-se uma nova área no sertão

69
Para mais detalhes acerca da questão da água na Cidade Rio: cf. TRINDADE,
Alexandro Dantas. André Rebouças: da Engenharia Civil à Engenharia Social. Tese
de doutorado, UNICAMP, 2004.
70
Foi agraciado com o título de comendador. Foi também secretário da Companhia
de Fiação e Tecidos Confiança Industrial, além de pertencer ao Conselho de
Acionistas da Companhia de Tecelagem e Fiação Corcovado.

156
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

carioca, no caminho da Estrada de Santa Cruz, que era cortada


pela Estrada de Ferro Dom Pedro II (EFDPII). A fazenda do Ban-
gu cumpriu perfeitamente as exigências que tal empreendimen-
to necessitava. Ao lado da linha férrea, terras com preços baixos,
abundância de água e população escassa.
Como podemos observar através das análises descritivas do
lugar realizadas por Silva (1985) e Oliveira (1992), a Fazenda do
Bangu e sua hinterlândia foi o espaço que conseguiu agregar
todas as características necessárias para a materialização desse
empreendimento de grande “vulto”. A diretoria da CPIB tratou
logo de enviar Snell, que chegou a região e tudo mudou ou quase
tudo. Estabelecidas as vantagens geográficas, logísticas, hidráuli-
cas, sociais e econômicas oferecidas, a CPIB adquiriu de Manoel
Miguel Martins e outros tantos proprietários os 36 mil hectares
iniciais que deram origem a esse complexo empreendimento.
Segundo Oliveira (2006), essas terras foram compradas pela
quantia de Rs. 132:137$910 (Cento e trinta e dois Contos e cento
e trinta e sete mil e novecentos e dez Réis). Foram adquiridas as
Fazendas do Bangu e do Retiro, além dos Sítios do Agostinho e
dos Amaraes, pertencentes à Fazenda do Guandu do Sena, per-
fazendo uma grande área contígua com abundantes mananciais
de água e de terra fértil. A CPIB continuou com essa política de
compra de terras até o início do século XX, chegando a quase 40
mil hectares (SILVA, 1985).
A extensão da propriedade da CPIB se alongava da Serra do
Mendanha à Serra do Bangu, os principais mananciais de água
estavam nessas duas serras, como pode ser visto no mapa abaixo.
A escolha dessa área foi pautada por essas facilidades, que con-
tribuíram diretamente para o sucesso desse empreendimento.

157
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

Imagem 2 – Mapa das áreas compradas pela CPIB (1889-1919).


Organização Márcio Piñon de Oliveira.

Fontes: arquivo da CPIB e arquivo particular de Manuel Rodrigues de Moura.

Nota-se que a aquisição de tão volumosa porção de terra foi


muito além da proteção dos mananciais de água que, em prin-
cípio, justificou essa compra. Essas águas em abundância foram
importantes para o funcionamento da futura fábrica e instalação
dessa communitas fabril.
Cumpre ainda destacar que Antônio Xavier Carneiro era
dono de uma empresa de compra e venda de fazendas junta-
mente com seu irmão, Joaquim Xavier Carneiro, como se atesta
em nota publicada na Gazeta de Notícias em 1882, no dia 17 de
março, onde se faz referência à firma Xavier Carneiro & C. Esta

158
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

mesma empresa foi liquidada em 1891, segundo noticiado no Al-


manak Laemmert (1891, p. 803).
Essa assertiva atesta, até certo ponto, o envolvimento e co-
nhecimento de Antônio Xavier do mercado fundiário cario-
ca, que reforça a ideia da escolha dessas terras da Bangu para
além da edificação da fábrica e da vila operária. O projeto dos
incorporadores extravasou a ideia original ao adquirir, no ser-
tão carioca, o quantitativo de terras que totalizou quase 40 mil
hectares.
Havia, portanto, um sentido de reserva de valor nessa ope-
ração fundiária para vendas futuras em um território rural que
seria ocupado, organizado e urbanizado. Inicialmente, essas
terras foram usadas como garantia para empréstimos realiza-
dos na capitalização dos recursos da CPIB e, posteriormente,
loteadas e alugadas para os operários da fábrica e moradores da
região, além de grandes loteamentos que foram adquiridos pelo
Estado. Chegou-se a formar uma imobiliária para administrar
tão volumosa quantidade de terras (SILVA, 1989).
Essa operação empresarial traz questões que extravasam a
simples produção fabril ao criar condições objetivas para a for-
mação de um bairro operário privado que, em sentido amplo,
podemos chamar de communitas capitalista, ao proporcionar um
modo de vida sui generis na cidade Rio, que atraiu uma massa de
pessoas de renda baixa para uma região promissora sob o ponto
de vista econômico e social.
Isto posto, pode-se afirmar que o projeto inicial desenhado
por Snell foi ampliado e modificado: de uma simples fábrica pas-
sou-se a um complexo econômico que extravasou os limites da
produção têxtil. Oliveira (2006) cunhou esse momento e projeto
de “fábrica fazenda”, pois nesse solo rural deveria ser erguida
uma verdadeira urbe, com todas as suas benesses e problemas.
Essa ideia torna-se plausível a partir da observação da pro-
blemática que envolve a cidade Rio nesse período, como descre-
veram diversos estudiosos dessa questão. Desses estudiosos, des-
tacadamente Abreu (1987), ao colocar o processo de expansão da
cidade que crescia em termos de população, sem oferecer uma
infraestrutura que comportasse tal crescimento com o mínimo
de qualidade, principalmente nas regiões mais pobres.

159
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

Em linha próxima, Chalhoub (1990), Benchimol (1992), Azeve-


do (2016) entre outros, trazem as questões relativas à insalubridade
da cidade e as necessidades reais colocadas para o Estado (muni-
cipalidade e federal), diante das transformações urbanas que se
operaram na cidade a partir de novas perspectivas do urbanismo,
engenharia e medicina.
Por conseguinte, a CPIB foi uma experiência que merece ser
refletida à luz das transformações que estão em curso na cidade
Rio e no Brasil, com fortes influências do capitalismo inglês e
estadunidense. Não apenas uma nova matriz industrial está pre-
sente nesse processo; a própria mentalidade capitalista adentra
nas mentes e nas perspectivas culturais e filosóficas dessas pes-
soas que habitam essas terras tropicais. Sem deixar de lado as
permanências da cultura mandonista e dirigista das oligarquias
que hegemonizam o poder, permanecendo cristalizadas nos apa-
relhos de Estado ao dominarem a política e a economia através
de uma rede de anéis burocráticos de poder.

Referências
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162
A produção do espaço na metrópole do Rio
de Janeiro: a disputa histórica pela água no
Jardim Catarina, São Gonçalo

Marcos Thimoteo Dominguez71


Marize Bastos da Cunha72

Introdução

Desde a década de 1990, e ao longo das primeiras décadas


do século XXI de forma mais acirrada, o debate sobre a privati-
zação dos serviços de abastecimento de água e saneamento tem
constado no centro da agenda política do Estado do Rio de Janei-
ro, sendo a CEDAE, empresa pública estadual, se tornando alvo
de disputas por parte de agentes de mercado (Estado do Rio de
Janeiro, 2020). Nas periferias, por outro lado, intensificam-se os
mecanismos territoriais sobre o controle do acesso e distribuição
da água, inclusive com a presença de grupos paramilitares por
meio da venda de galões d’água e carros-pipas (ALVES, 2019).
Neste artigo, refletimos sobre esse tema a partir de uma
longa e diversificada experiência no bairro do Jardim Catarina,
loteamento da periferia urbana da Região Metropolitana do Rio
de Janeiro (RMRJ), situado em São Gonçalo.
As questões aqui apresentadas remontam ao trabalho de
um dos autores como assessor de um centro comunitário em
uma ONG, a partir do qual surgiram algumas inquietações: as

71
Doutor em Estudos Urbanos pelo CPDOC/FGV-RJ. É pesquisador colaborador
do Laboratório de Estudos e Projetos Urbanos e Regionais (LEPUR/UFABC-
SP) e atua no projeto “A Covid-19 como situação limite: experiências e memória
histórica na produção de conhecimentos em saúde com favelas do RJ” (Fiocruz).
72
Doutora em Educação pela UFF. É pesquisadora do Departamento de Endemias
Samuel Pessoa, atua no Laboratório Territorial de Manguinhos (LTM/Fiocruz)
e como docente no Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da ENSP.
Coordena o projeto “A Covid-19 como situação limite: experiências e memória
histórica na produção de conhecimentos em saúde com favelas do RJ”.

163
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

diversas temporalidades das ações de agentes sociais diferencia-


dos, isto é, o tempo para profissionais de instituições externas ao
território é distinto da temporalidade dos moradores do bairro,
referenciada pela sua condição e experiência de vida, e a urgên-
cia de algumas de suas necessidades sociais (CUNHA, FRIGOT-
TO, 2010). Assim como as reivindicações locais nem sempre são
semelhantes aos projetos propostos por instituições de fora do
bairro ou por políticas públicas.
Tais questões foram o ponto de partida da pesquisa de mestra-
do acadêmico, tendo realizado o mapeamento das práticas popula-
res de enfrentamento de problemas urbanos de caráter estrutural,
tais como inexistência de saneamento básico, precariedade habita-
cional e vulnerabilidade a eventos extremos como enchentes e inun-
dações (DOMINGUEZ, 2011). Posteriormente, diante da comple-
xidade social e histórica trazida pela constituição do território de
Jardim Catarina, buscamos compreender, em nova pesquisa, o pro-
cesso de produção do espaço urbano da periferia metropolitana, a
partir dos atravessamentos gerados pelas disputas locais e regionais
em torno do acesso à água no loteamento (DOMINGUEZ, 2018).
Nesse percurso, aprofundou-se a percepção de que o Jardim
Catarina, além de ser marcado por uma grande heterogeneida-
de, constituiu-se como uma espécie de terreno minado, onde as
lutas políticas são fundamentalmente atravessadas por uma teia
de relações de poder local, que, por sua vez, estão articuladas às
engrenagens inscritas nas organizações da RMRJ. Esse é o caso
da água, que desde o início revelou-se um desafio a todo traba-
lho de investigação, considerando a trama de poder inscrita na
rede social e política em torno do fornecimento e controle da
água em Jardim Catarina.
Assim, pesquisar a água não é apenas um desafio. É fre-
quentemente perigoso, o que explica a pouca visibilidade da re-
ferida rede e o silêncio por parte de muitos moradores a respeito
do problema. Poderíamos dizer mesmo que os cuidados em tor-
no da questão da água, em localidades como Jardim Catarina,
têm proporção semelhante ao silenciamento quanto ao tema da
violência.
No entanto, as observações em campo nos indicaram que,
a despeito dos silêncios e interdições, a água tornou-se um

164
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

elemento tão central que era possível pesquisar a constituição


do Jardim Catarina através do tema do saneamento. Além de
representar um bem vital para a reprodução das famílias que
ali se instalaram e vivem, a água configurou-se como um vetor
importante para a própria organização socioespacial do bair-
ro. No centro da ocupação e crescimento do loteamento, ela
tornou-se um dos principais vetores, que fomenta até os dias de
hoje as relações de poder local, suas representações e as dispu-
tas no território.
Neste artigo, buscamos refletir sobre essa trama política
que se configura no Jardim Catarina, concebendo o problema
da água como um observatório privilegiado para identificar ele-
mentos constituintes do espaço urbano e dos conflitos forjados
historicamente nas periferias metropolitanas. Ao mesmo tempo,
enfocamos as experiências e estratégias dos moradores no âm-
bito do problema histórico da água que os atinge cotidianamen-
te. Pensamos que nesse caso as respostas configuram aquilo que
Martins (1989; 1993) chamou de “dupla consciência”, ou seja,
um duplo código que regula a fala de populações que passaram
por processos de opressão, e que se constitui como estratégia de
sobrevivência e uma arma de luta, pois põem juntos o afirmar e o
negar, o obedecer e o desobedecer. Muitas vezes se materializa numa
linguagem do silêncio que fala mais do que qualquer outra coisa
e que coloca desafios metodológicos ao pesquisador.

O mapa conceitual e metodológico da pesquisa

Em nossa pesquisa recuperamos o processo de ocupação do


Jardim Catarina a partir da dialética lefebvriana (LEFEBVRE,
2013), pautada nas contradições entre os espaços de reprodução
e a reprodução do espaço. Lefebvre, ao definir o espaço como
produto social, inclui não apenas a perspectiva histórica, resul-
tante da dialética entre temporalidades e espacialidades, mas a
própria práxis. Assim, a relação espaço/tempo deve ser tratada
como elemento fundamental da prática social.
Na leitura do autor, o espaço percebido seria, no contexto
da cidade, a relação do sujeito com a materialidade das coisas

165
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

que estruturam o próprio urbano, e que se forja a partir do es-


paço do poder hegemônico, do projeto capitalista de cidade, das
representações do espaço, do Estado. Esse espaço concebido, dos
experts da cidade, da estética das elites, é o espaço dominante
numa sociedade e num modo de produção de momento históri-
co determinado. Lefebvre, assim, descreve as dimensões da pro-
dução do espaço ao mesmo tempo individual e social, ou seja,
que denotam processos ativos individuais e coletivos. Para ele,
a prática social envolve um conjunto de sentidos, sensibilidades
perceptíveis do espaço.
Ao nosso ver, a política urbana no Jardim Catarina foi for-
jada pelas contradições que envolvem as relações de controle so-
bre o acesso à água e a execução de políticas e programas de
saneamento na RMRJ. Nas margens urbanas, a partir do espaço
do vivido, é possível compreender como problemas complexos
articulam as diferentes escalas de reprodução da vida na cidade.
Nas periferias urbanas, esse espaço percebido, onde as
contradições socioespaciais e a dialética entre escalas espaciais
conformam o contexto histórico das relações entre lugares da
cidade, insurgem territórios. Lugares em que os sujeitos coleti-
vos desenvolvem inovações tecnológicas e espaciais eficazes no
enfrentamento de problemas estruturais urbanos. Mesmo no es-
paço marginal, da vulnerabilidade, há a possibilidade de recons-
tituição de projetos de vida.
No Jardim Catarina as práticas populares em torno do abas-
tecimento de água – suas dimensões políticas e históricas – su-
peram a perspectiva profundamente tecnicista e desarticulada
do setor de saneamento no que tange à dinâmica da vida nos
territórios urbanos (HELLER, 2015). Na periferia da RMRJ há
uma relação vital entre reprodução social do espaço e o acesso à
água. Mas que, atualmente, costuma ser tratada muito pela lógi-
ca privatista dos serviços públicos. A água, como bem menciona
Erik Swyngedouw (2013), é um bem coletivo articulado em redes
hidrossociais de difícil controle territorial, fato por si só produ-
tor de tensão e disputas.
O trabalho de campo realizado durante seis anos – dividi-
dos em duas etapas: 2009/2010 e 2014/2017 – permitiu, além de
apresentar problemas e soluções a respeito da oferta de serviços

166
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

públicos essenciais, descortinar um ambiente político costurado


historicamente, organizado por distintas formas de regulação e
controle sobre o acesso ao saneamento, mas também, garanti-
dor de possibilidade de luta cotidiana pela água. Como resultado
central, as experiências e narrativas locais, registradas ao longo
da pesquisa, contribuíram para a construção de uma espécie de
cartografia da água, ou seja, uma representação socioespacial
das sobreposições entre práticas populares e intervenções urba-
nas por parte dos agentes estatais e econômicos da cidade.
A proposta investigou aquilo que é marginal no âmbito das
políticas de infraestrutura urbana e o que acredita ser fundamen-
tal para a compreensão do processo histórico de produção do es-
paço urbano: as relações e os acordos políticos entre atores sociais
da periferia e agentes do Estado, centrais para entender as lutas
cotidianas pela reprodução da vida nas periferias metropolitanas.
Essas redes de relações, que conforme já nos apresentou Eduardo
Marques (1998) em sua tese sobre a política do saneamento no
Estado do Rio de Janeiro, são constituídas por permeabilidades
entre as diversas redes locais/municipais de poder, as empresas
do mercado de obras públicas e os principais programas de sanea-
mento realizados na RMRJ nas últimas décadas.
A partir dessa análise sociológica e histórica em torno das
disputas pelo acesso à água foi possível mapear conflitos cotidia-
nos, como estabelecer elos interpretativos entre diferentes esca-
las de análise a respeito do saneamento urbano e a cidade como
espaço de contradições (SWYNGEDOUW, HEYNEN, 2003).
Por meio de narrativas extraídas de entrevistas com moradores,
foram identificadas estratégias locais relacionadas ao processo
de ocupação do loteamento ao longo dos anos. Personagens ca-
rismáticos como “Seu Moraes” e “Betinho da Água” ganharam
destaque.
Histórias, estas, até certo ponto comuns na política das peri-
ferias, contornadas por meio das experiências populares e pers-
pectivas locais, ajudando a compreender o entrelaçamento entre
diferentes temas do cotidiano urbano como saneamento, habi-
tação e trabalho, por exemplo. Ainda, foram levantados regis-
tros históricos na imprensa de maneira a recolher informações
relativas ao avanço do mercado imobiliário e ao surgimento das

167
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

demandas por serviços de saneamento em São Gonçalo (SG) no


século XX, especialmente a partir da década de 1950. Os classi-
ficados do jornal O Fluminense73, disponibilizados por meio da
plataforma digital da Biblioteca Nacional, nutriram essa tarefa.
Para a produção de uma base territorial da água, utilizamos
tanto dados espaciais (FUNDAÇÃO CEPERJ, 2018) como os tra-
çados territoriais expressos pela percepção dos moradores em
relação às infraestruturas de saneamento local e às estratégias
populares de acesso à água. As ações da Companhia Estadual
de Água e Esgoto do Rio de Janeiro (CEDAE) foram mapeadas
por intermédio de entrevistas com moradores e lideranças comu-
nitárias, documentos oficiais, depoimentos em reportagens de
jornais e sítios eletrônicos da empresa e demais órgãos públicos.
Mesmo tratando-se de um espaço claro de disputa, o campo
político da água é atravessado por diferentes acordos, relações
de poder distintas. Sua tradução pode ser realizada frontalmente
por meio de uma reivindicação de grupos locais, mas, ao mesmo
tempo, pode vir cheia de receios e silêncios por parte dos mo-
radores. Por se tratar de um tema tenso e que envolve conflito,
todos os entrevistados e instituições locais contaram com o sigilo
do nome preservado. As citações utilizam-se de nomes fictícios,
de forma a garantir a segurança dos participantes da pesquisa.
Os critérios de seleção dos participantes na pesquisa levaram em
consideração: a idade; o tempo de permanência no loteamento;
a localidade em que mora; além da participação de lideranças
políticas e de agentes públicos com atuação nos diferentes cam-
pos da política de São Gonçalo.
Ao final do presente trabalho será apresentado o “Mapa da
Água do Jardim Catarina”, resultado de um exercício metodo-
lógico que disponibiliza uma síntese histórica envolvendo dife-
rentes temporalidades presentes na distribuição dos serviços e
de equipamentos públicos de saneamento na RMRJ. Dispositivos
locais de distribuição de água, entre eles “gatilhos” (ligações in-

73
O Fluminense foi fundado em 1878 e é considerado o terceiro periódico mais
antigo do Brasil. Desde então retrata e cobre os acontecimentos diários da região
localizada ao leste da Baía de Guanabara, atualmente formada pelos municípios de
Niterói, São Gonçalo, Maricá e Itaboraí. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.
br/hemeroteca-digital/, recuperado em 12 de dezembro, 2018.

168
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

formais) nas linhas da companhia estadual de saneamento (CE-


DAE); pontos de instalação de hidrantes para o abastecimento
de carros-pipa (ou “pipeiros”); e as manobras da rede de distri-
buição foram alguns dos elementos levantados e utilizados na
análise socioespacial do loteamento. Em um território plural,
realizou-se um recorte a fim de retratar interpretações do tem-
po e do espaço confrontantes em termos de percepções sobre a
reprodução da vida e sobre as lutas cotidianas na periferia da
RMRJ.

O Jardim Catarina

O Jardim Catarina é um dos bairros mais populosos do mu-


nicípio de São Gonçalo, segundo município mais populoso do
Estado do Rio de Janeiro, de acordo com os dados do último
censo (IBGE, 2010). As dimensões do loteamento e a sua organi-
zação espacial se confundem com a própria formação do espaço
urbano do município. Trata-se de uma cidade plana, extensa,
de ruas estreitas e cortadas por grandes vias de integração re-
gional. O perfil urbano espraiado, a característica ambiental e
topográfica de baixada e a ocupação baseada na autoconstrução
pressionam o sistema de infraestrutura de saneamento básico,
demandando investimentos estruturais, aumento de cobertura e
políticas permanentes de acesso da população ao abastecimento
de água.

Figura 1 – RMRJ e localização atual do Jardim Catarina


em São Gonçalo

Fonte: elaboração própria a partir de Fundação CEPERJ (2018).

169
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

Para quem caminha pelas ruas do loteamento surge a ima-


gem de um bairro popular, com muitas pessoas circulando, trân-
sito intenso, lojas abertas e esquinas cheias. Numa mesma qua-
dra é possível notar diferentes tipos de construção: casebres sem
acabamento ao lado de casas com dois, até três pavimentos bem
estruturados e com calçamento alinhado. Da mesma forma, há
vias pavimentadas, com boa cobertura de saneamento, enquanto
na rua ao lado, faltam asfaltamento, calçadas e canaletas.
No caso da cobertura da rede de água é possível perceber
diferenças internas em termos de acesso ao serviço de sanea-
mento. Existe uma distribuição desigual do atendimento, onde
localidades centrais74 possuem boa cobertura, podendo chegar
inclusive a 100% dos domicílios ligados à rede geral. Enquanto
isso, nas áreas mais periféricas do Jardim Catarina75, a cobertura
dificilmente alcança 50% de domicílios (IBGE, 2010).
As causas que levaram a essa organização desigual do ser-
viço de abastecimento de água resultam de um conjunto de re-
lações postas em andamento pelos mais variados atores sociais
em seus movimentos de disputa por espaço urbano na cidade.
Nesse caso, a vida cotidiana congrega não apenas os passos dos
moradores e a presença ou não de algum tipo de serviço público,
como saneamento. Mas funciona como meio de mediação entre
as ações das instituições da cidade (e seus agentes) e as práticas
sociais dos moradores.
De acordo com os relatos de moradores mais antigos, mui-
tos lotes, mesmo já contendo proprietários, demoraram anos até
serem de fato ocupados ou revendidos. Em entrevista a essa pes-
quisa, Juca Basílio (70 anos), antigo morador e marinheiro da
reserva, que até os anos 1960 vivia na cidade do Rio de Janeiro,
confirmou que mesmo ao adquirir um terreno no Jardim Cata-
rina, não pretendia morar em São Gonçalo. A compra ocorreu

74
No presente artigo, serão consideradas “localidades centrais” aquelas de maior
infraestrutura de saneamento, mais antigas e próximas ao centro comercial do
município no bairro de Alcântara, vizinho do Jardim Catarina.
75
Para os objetivos do presente artigo, serão consideradas localidades periféricas
aquelas de recente ocupação e posicionadas distantes do centro comercial de São
Gonçalo. Elas geralmente ocupam áreas vulneráveis em termos ambientais. Tais
com: áreas de baixada e alagáveis, próximas a vias expressas e sem infraestrutura
urbana adequada.

170
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

por conta de uma carta de crédito que a Marinha disponibilizava


aos seus membros. “Eu morava no Rio [...]. Comprei um terreno
aqui por causa da associação de marinheiros. Eles tinham uma
carta de crédito e me ofereceram. Depois que comprei o lote, eu
nunca tinha ido conferir”.
Juca Basílio relata que na década de 1970 ele foi afastado
das Forças Armadas devido às suas atividades políticas no sindi-
cato dos marinheiros. Lidando com problemas financeiros, deci-
diu deixar o aluguel na cidade do Rio e se viu obrigado a mudar
para o loteamento em São Gonçalo: “Depois que me mudei, vi
que a terra era toda alagada [...]. Acabei trocando o lote por ou-
tro de pior localização, mas a grana que sobrou serviu para dar
entrada na minha casa”.
Na passagem são descritos alguns pontos comuns relativos
à prática de loteamentos, onde as formas de aquisição, de venda
e de moradia conviviam com a precariedade da infraestrutura
local. De acordo com a fala, essa chegada teve que lidar com a
má localização e a condição encharcada do lote. A compra de um
novo terreno, negociado localmente, permitiu a ele um pequeno
saldo, o que garantiu recursos para a construção da casa própria.
Histórias e trajetórias distintas se encontraram no Jardim
Catarina. Há o caso da família de Roberta (57 anos), que afir-
mou ter saído do Rio de Janeiro após o processo de remoção das
favelas da capital a partir dos anos 1960: “Meu pai comprou um
lote no Catarina em 1959. Comprou sem saber a posição dele
[...]. Na época, a gente vivia no Cosme Velho, na zona sul do Rio”.
De acordo com Roberta, eles já possuíam lote no Jardim Ca-
tarina, mas viviam de aluguel na comunidade carioca do Cerro
Corá. Com o surgimento dos programas de remoção do governo
Carlos Lacerda, eles tiveram que abandonar suas casas, e seguir
em direção ao Jardim Catarina.
Ao chegar ao loteamento, assim como Juca Basílio, a família
de Roberta se deparou com um lote mal localizado, distante da
“pista” e sem presença de luz.

‘O único ônibus passava só no outro loteamento... À noite não


dava pra enxergar nada’. A solução encontrada foi começar
a pagar aluguel numa casa de um cômodo, já construída ao

171
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

lado do lote adquirido. ‘A gente chegou e teve que morar de


aluguel. Meu pai chegou a construir uma casa... Quando ela
ficou pronta, ele logo vendeu... Com o dinheiro, a gente deu
entrada numa outra casa, mais perto da pista’.

A história se repete. Muitos moradores compraram lotes sem


saber o que encontrariam, ou devido ao tempo de construção da
casa os novos habitantes foram obrigados a buscar soluções ime-
diatas, como ingressar via aluguel. Da mesma forma, ressalta-se a
prática da compra de um lote como uma forma de investimento
familiar. A casa construída em lote menos valorizado serviu para
dar entrada em outro, porém mais bem posicionado.
Muitos foram os registros nesta pesquisa que indicaram o
movimento e a necessidade de mudança de moradia (ou lote)
dentro do próprio loteamento ao longo do tempo. A verdade é
que dez anos após o lançamento, em 1953, o Jardim Catarina
começava a formar um mercado imobiliário dinâmico. Com o
aumento da demanda por habitação popular na década de 1970
(ABREU, 1987), aqueles moradores e comerciantes locais que
possuíam mais de um imóvel ou lote passaram a gerar receita
complementar por meio da revenda ou do aluguel. Não apenas
as grandes imobiliárias, mas os próprios atores locais passaram a
buscar novas fontes de renda por meio da revenda, repartição do
terreno ou aluguel de pequenas frações, cômodos ou casas. Es-
tando em dia com as parcelas do financiamento, o indivíduo teve
a chance de se capitalizar e agir no mercado imobiliário interno.
Um desses casos emblemáticos bastante citado na pesquisa
é o “Seu Moraes”. Tratado como uma liderança histórica do Jar-
dim Catarina, sua figura está atrelada à mobilidade e à atuação
na política de São Gonçalo.
De acordo com as entrevistas com moradores mais antigos
do bairro, “Seu Moraes” trabalhou como corretor de imóveis
para a Jardim Catarina S.A., primeira proprietária do loteamen-
to. Posteriormente adquiriu alguns lotes e abriu a primeira loja
de material de construção na localidade, além de uma pequena
corretora. Ajudou a financiar e incentivou novas ocupações em
áreas até então não demarcadas; contribuiu com a instalação
de pequenas redes alternativas de água e as puxadas de energia

172
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

elétrica para novas quadras e ruas. A fala de Ana Clara (62 anos)
relata parte dessa história: ‘“O Seu Moraes’ foi o primeiro pre-
sidente da associação aqui no Catarina, costumava já naquela
época trazer uns políticos pra gente pedir as coisas [...]. Uma vez
veio o Lavoura e o Roberto da Silveira76. Teve gente que pediu
água, emprego”.
A imagem do “Seu Moraes” retrata bem o processo de lotea-
mento da periferia da RMRJ no século XX: lideranças comunitá-
rias, articulados a políticos tradicionais da região, promoviam a
ocupação dos lotes, mediando reivindicações locais e serviços ur-
banos básicos. O comércio de terras, mesmo diante da escassez
de recursos e de serviços urbanos básicos, abriu oportunidades
de negócios e permitiu integrar à metrópole diversos projetos de
vida dos novos habitantes.
A prática do loteamento tornou-se uma estratégia socioe-
conômica das famílias e do trabalhador urbano. Para Santos
(1985), o loteamento teria se tornado um instrumento necessá-
rio ao novo modelo de desenvolvimento urbano no Brasil, em
que a legislação e a ação estatal eram garantidoras do funciona-
mento de um sistema “autônomo” de urbanização que ganhava
força nas periferias das metrópoles brasileiras. Se por um lado
o Jardim Catarina não contava com financiamento público para
a construção de moradias e urbanização de ruas, por outro, o
comércio de lotes não precisou lidar com uma máquina estatal
impessoal e burocratizada.
Com o tempo, o formato original do parcelamento de ter-
ra se transformou numa conjunção de outros loteamentos, que
constituíram localidades diversas com características particula-
res. Essas particularidades podem ser verificadas por intermé-
dio dos distintos padrões de construção, da condição geral de
infraestrutura urbana em cada localidade do bairro, da presença
ou não de serviços públicos e seus mecanismos locais de regula-
ção e controle.

76
Joaquim Lavoura foi eleito três vezes prefeito de São Gonçalo. O primeiro
mandato ocorreu em 1954; Roberto da Silveira, após ser deputado, chegou ao
cargo de governador do antigo Estado do Rio de Janeiro, em 1959. Até a fusão de
1975, o Estado do Rio de Janeiro não contava com a cidade do Rio de Janeiro, na
época, antigo Estado da Guanabara.

173
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

Atualmente, os moradores reconhecem inúmeros territó-


rios que formam o conjunto socioespacial do bairro. A pesquisa
nos apresentou primeiro uma divisão espacial de maior escala
que, de certa forma, representa as duas principais fases de maior
comercialização de lotes. O primeiro e mais antigo loteamento
é denominado “Catarina Velho”, quando os primeiros terrenos
foram comercializados nos anos 1960 pela loteadora Jardim Ca-
tarina S.A. O segundo loteamento de maior proporção geográ-
fica é conhecido como “Catarina Novo”, que representa uma se-
gunda fase de comercialização e ocupação do bairro, cujo início
podemos registrar entre as décadas de 1970 e 1980.
Além do Catarina Velho e Novo, outras localidades foram
surgindo, gerando complexidade em termos de ocupação urba-
na do loteamento e do município. Em Dominguez (2018), esses
territórios, além de identificados, tiveram suas histórias de for-
mação exploradas e detalhadas, articulando as divisões territo-
riais locais com o processo mais amplo de produção do espaço
urbano da RMRJ. De qualquer forma, a título de ilustração, na
figura seguinte são apresentadas algumas das principais e mais
citadas localidades do bairro, entendendo que suas fronteiras
nem sempre são claras, cabendo aos atores locais, no cotidiano,
estabelecer as normas de regulação e de uso desses lugares.
Figura 2 – Mapa com as localidades do Jardim Catarina

Legenda: figura produzida pelo autor a partir do Google Maps, ano 2010; e entrevistas
com moradores do bairro. Fonte: Dominguez (2011).

174
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

Essas localidades funcionam como aquilo que Marcos Al-


vito (2001) chamou de “pontos nodais de interação”, baseados
em relações locais de parentesco e vizinhança, e fundamentais
para organizar espacialmente os moradores da periferia. A ideia
de destacar a existência desses lugares é alertar para o fato de
que os processos de produção do espaço urbano e as formas de
regulação sobre a água resultaram da dialética entre as diferen-
tes forças sociais locais e as práticas institucionais das estruturas
supralocais, estatais e não estatais da cidade.
Esse arranjo político e socioespacial permite compreender
como o Estado opera por meio dessas estruturas territoriais nas
periferias metropolitanas e como as localidades, “a partir das
suas relações mantidas com esta ordem mais abrangente” (ALVITO,
2001, p. 184), também resistem e se contrapõem às injustiças so-
ciais em termos da distribuição do abastecimento na RMRJ. Ou
seja, as relações políticas que envolvem as disputas por serviços
públicos urbanos abarcam tanto elementos e condicionantes de
ordem local, baseados em grande parte na experiência histórica
de quem vive no lugar; como são sensíveis às mudanças de con-
junturas econômicas e políticas no movimento de formação mais
amplo das metrópoles.

As tramas políticas do abastecimento de água


no Jardim Catarina
A segunda maior Estação de Tratamento de Água (ETA)
da RMRJ, a ETA Imunana-Laranjal, está localizada dentro dos
limites geográficos do loteamento do Jardim Catarina. A esta-
ção, que é responsável pelo abastecimento dos municípios de
Niterói, São Gonçalo, Itaboraí e Maricá, fica às margens da Ro-
dovia Amaral Peixoto (RJ-104), via expressa que conecta a RMRJ
ao interior do Estado do Rio de Janeiro. Contraditoriamente,
desde sua criação, o bairro convive com o fornecimento precário
de água, com uma cobertura intermitente ou inexistente em di-
versas ruas e quadras.
Os serviços de abastecimento sempre foram realizados por
meio da prática de manobra, termo utilizado para descrever o

175
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

atendimento alternado do sistema, com a companhia realizando


o abastecimento parcial e apenas em dias específicos. A rede exis-
tente que atende o bairro é formada por pequenas ramificações
criadas pela própria companhia a partir da adutora principal
que leva água de São Gonçalo para o município de Niterói. As
linhas secundárias ao sistema central da ETA Imunana-Laranjal
são executadas e controladas por agentes locais da companhia.
Veremos que o problema de abastecimento no Jardim Ca-
tarina não é um problema necessariamente de origem técnica,
mas de caráter político e social, cercado por disputas e mecanis-
mos de controle territorial. Afinal, o que explica um dos maiores
bairros de São Gonçalo não possuir um atendimento efetivo em
termos de abastecimento de água, considerando a proximidade
com a ETA, localizada dentro dos seus limites?
No caso das metrópoles brasileiras, as disputas pela água na
periferia foram intensificadas nos últimos 40 anos, contradito-
riamente, período de ampliação da cobertura e dos investimen-
tos financeiros em abastecimento na RMRJ (MARQUES, 1998;
BRITTO, QUNITSLR, 2019). Nesse contexto, termos como “ga-
tilhos” e “pipeiros” ganham centralidade por funcionarem como
categorias analíticas que permitem transpor os limites territo-
riais do loteamento em direção à compreensão das contradições
urbanas relacionadas à implementação das políticas de sanea-
mento nas cidades.
Desde 1975, ano de criação da CEDAE, há na Rua 01 do bairro
um hidrante com água provinda diretamente da ETA, que funciona
como ponto de distribuição para caminhões tanques ou “pipeiros”,
termo utilizado por moradores ao se referirem aos proprietários
de carros-pipa. Diversos entrevistados levantaram contradições
envolvendo o comércio de água por caminhões e a precarização
do saneamento em São Gonçalo. De acordo com o morador João
Paulo (45 anos), a CEDAE não cobra água dos “pipeiros”. E afirma
ainda que as interrupções do atendimento por parte da companhia
acabam por favorecer a venda de caminhões d’água. Devido a es-
sas obras que ocorreram no interior do bairro, o abastecimento de
água ficou deficiente. Por quê? Para ajudar os “pipeiros”?
Um ponto importante levantado nas entrevistas refere-se à
atuação de um funcionário da CEDAE, que passaria a atuar na

176
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

mediação entre a prestação do atendimento por parte da em-


presa e a operacionalização do hidrante da Rua 01. Alguns mo-
radores disseram que o agente facilitava a distribuição de água
aos “pipeiros”. Outros afirmaram que o desejo do funcionário
era criar sua própria frota de caminhões, se beneficiando de sua
posição dentro da estrutura estatal. Outros ainda alegaram que
na verdade ele buscava obter para si força e apoio político por ter
pretensões eleitorais.
De qualquer forma, na realidade, o personagem foi acumu-
lando poder sobre o controle do comércio de água no município,
principalmente em loteamentos como o Jardim Catarina. Além
da água, o agente passou a oferecer também outros serviços de
saneamento como atividades de drenagem e pavimentação de
ruas. Costumava conseguir na prefeitura retroescavadeiras para
dragar rios e valões após dias de chuvas. Tornou-se conhecido
e uma figura contraditória: para alguns, uma pessoa solidária,
para outros, um político que se promovia a partir da desgraça
dos moradores.
Na sua primeira candidatura a vereador de São Gonçalo,
o “Betinho da Água”, nome adquirido na política da cidade e
que logo virou slogan de campanha, passou a financiar a cons-
trução de cisternas para moradores e centros comunitários, cai-
xas d’água e até mesmo poços artesianos. Em alguns momentos
chegou a entrar em conflito com outras lideranças e instituições
locais, como a própria Associação de Moradores do Jardim Ca-
tarina, criada em 1982 por “Seu Moraes”, que o acusava de atuar
de forma assistencialista. Em outros momentos, agiu como me-
diador, fazendo-se de porta-voz da população local junto ao aten-
dimento da própria CEDAE.
O comércio de carros-pipa passou a controlar parte da dis-
tribuição de água não apenas no Jardim Catarina, mas em outras
áreas de São Gonçalo formadas quase integralmente por loteamen-
tos precários. A influência política do “Betinho da Água” fez com
que ele passasse a frequentar palanques de prefeitos e candidatos
a deputado. Sua bandeira de campanha era enfrentar o problema
da precarização do saneamento em São Gonçalo. Curiosamente, a
mesma precarização que favorecia o comércio de carros-pipa e o
atendimento assistencialista por parte de políticos locais.

177
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

A política da água começava a se organizar sobre esse con-


junto de contradições, cujas formas de mediação envolviam
diferentes níveis e escalas de decisão, mas sempre apropriadas
pelas esferas locais de poder. O processo de abertura política e
eleitoral no início da década de 1980, por sua vez, impulsionou
ainda mais as relações entre instâncias locais e grupos políticos
com pretensões eleitorais (ALVES, 2003). Na década de 1980,
houve uma tentativa por parte do governo do Estado de ampliar
o sistema de abastecimento de água no Jardim Catarina. Obras
foram realizadas no loteamento, primeiramente nas ocupações
mais antigas, principalmente na localidade do “Catarina Velho”.
Novamente, porém, a rede instalada seguiu a mesma ordem
técnica: prevaleceu o caráter secundário das ramificações da
CEDAE, tornando-se uma prática contínua por parte da estatal,
que diante da precariedade dos serviços e da falta de recursos
econômicos passou a intensificar o uso de redes precárias como
estratégia de oferta de água no bairro.
Somente com o Programa Estadual de Despoluição da Baía
de Guanabara (PDBG), lançado em 1996, foi construída a pri-
meira linha direta de água da ETA Imunana-Laranjal para Jar-
dim Catarina. No entanto, a nova rede alcançava apenas algu-
mas quadras nas proximidades da ETA, dentro da localidade do
Catarina Novo. O abastecimento permanecia ausente em diver-
sas ruas do loteamento. O serviço continuava funcionando por
meio de manobras, alternando os dias de distribuição entre o
Catarina Velho e o Novo. Nas áreas periféricas o único acesso à
água permanecia sendo ou por meio da compra de pipas d’água
ou pelo uso de ligações alternativas (“gatilhos”) na rede oficial.
O que nos interessa nesse contexto é demonstrar como o Jar-
dim Catarina, mesmo com infraestrutura urbana precarizada e de-
sigual, vai se tornando uma centralidade em termos de disputa e de
relações de poder em torno da água na RMRJ. Da mesma forma,
começa a ficar claro que os moradores, por sua vez, passam a viver
numa condição de limite, limite esse cuja experiência vai se tornan-
do algo permanente. Tal condição ficará mais clara no item seguin-
te, em que veremos como a reprodução do espaço na periferia é
atravessada pela questão dos conflitos em torno da água e como os
territórios foram se reconstruindo por meio dessas disputas.

178
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

O mapa da água e a constituição de espaços


de poder na periferia da RMRJ
A primeira adutora de água que atravessou o Jardim
Catarina foi uma linha em direção à Ilha de Paquetá, na Baía de
Guanabara. A partir da narrativa de moradores é possível ilus-
trar algumas das práticas locais e relações políticas estabelecidas
como estratégia para o acesso e consumo de água:

Teve uma vez que o ‘Seu Moraes’, que já foi candidato aqui
no bairro, ganhou uns canos de um amigo deputado. Sabe
o que ele fez? Abriu um buraco e puxou água para toda esta
parte aqui do Catarina. Diante desse quadro de falta d’água
os moradores passaram a retirá-la da nova tubulação por
meio de gatilhos na rede pública oficial. Isso aqui virou uma
verdadeira colcha de retalhos (Alzira Santos, 50 anos).

Pelo que foi narrado, esse processo contava com a ajuda de


políticos e comerciantes locais, que além de financiar essa prática,
tentavam adquirir capital político para si na disputa por cargos
públicos e mandatos. A figura de “Seu Moraes” novamente ressur-
ge na memória dos entrevistados. A moradora Suzane (65 anos)
relembra que durante uma reunião com gestores e engenheiros da
CEDAE, quando a empresa informou a retirada de diversos “gati-
lhos” da rede, “Seu Moraes” chegou a fazer uma série de questio-
namentos: “E a Cedae está vindo atrás recolocando e legalizando
as casas?”. Após a negativa do gestor, o agente contesta: “Então
não adianta nada, né. Porque logo depois o morador vai colocar o
gatilho de novo”. E mesmo nos casos em que a casa estava ligada
à rede oficial, o abastecimento era precarizado. Hoje, o morador
não tem água encanada, mas tem uma dívida absurda na empresa.
Muita gente tem hidrômetro, mas não tem água.
O serviço incompleto e o padrão de descontinuidade da co-
bertura de água estão incorporados nas falas das pessoas que
demonstraram compreender o quadro de precariedade do sa-
neamento no Jardim Catarina e o conjunto de relações políti-
cas e práticas sociais que isso envolve. Os moradores entendem
também ser necessário adotar estratégias de enfrentamento do

179
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

problema, mesmo que isso signifique transitar entre as frontei-


ras do legal e do ilegal. Aquilo que Martins (1989; 1993) chamou
de “a dupla consciência”, ou seja, um entendimento local do con-
junto de relações de poder, dos limites e das possibilidades reais
de atuação nas periferias urbanas. “Se você tem a água que passa
na sua rua e você não pode utilizar, é complicado. E aí os mora-
dores começaram a furar, a fazer ligações” (moradora Suzane).
A CEDAE possui vários registros e válvulas instaladas nas re-
des secundárias do bairro. Esse arranjo técnico-espacial permite
um maior controle sobre a distribuição por parte da empresa: “Eles
(CEDAE) têm vários registros e válvulas nas tubulações por dentro
do bairro [...]. Tem um na Rua 36, no Catarina Novo, tem outro na
rua Ouro Fino, que controla o Velho” (João Paulo, 45 anos).
Há um emaranhado de cruzamentos formados por localida-
des, linhas de abastecimento, válvulas de bloqueio e os gatilhos
na rede da CEDAE, que formam um sistema complexo e difuso.
Dependendo da localidade onde vive, o morador terá que criar
distintas estratégias para acessar um elemento vital à reprodução
social que é a água. Nesse sentido, o “gatilho” torna-se prática de
resistência frente à precarização da vida na cidade.
Os “gatilhos” são um elo entre a dinâmica histórica de
ocupação do loteamento e a limitada presença dos serviços públicos
de saneamento no bairro. O Estado, pelo que vimos, também tem
sua ação reconfigurada nesse contexto. A chegada de um programa
de saneamento (ex: PDBG); a implementação de obras públicas
(ex: extensão das linhas secundários e instalações de válvulas de
bloqueios); o atendimento alternado de ruas e localidades; e a
atuação de agentes locais (ex: “Betinho da Água”) são exemplos de
um Estado que também atua marginalmente. Num ambiente em
disputa, trata-se de mecanismos de controle territorial. Por outro
lado, como vimos nas falas, essa condição de margem permite o sur-
gimento de fraturas no espaço (DAS, POOLE, 2008), por onde a
atuação e a resistência do morador se fazem presentes.
Como resultado da análise desses diferentes processos, ini-
ciamos um exercício metodológico de elaboração de uma síntese
histórica que seja capaz de representar espacialmente esse cam-
po de poder e controle. Queremos assim apresentar o Mapa da
Água do Jardim Catarina. É possível observar na figura a seguir

180
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

a localização estratégica dos “gatilhos” exatamente nos limites da


cobertura oficial da CEDAE, o que abre a possibilidade de exten-
são dessa rede às demais partes do loteamento. Nota-se, também,
a presença de válvulas de bloqueio da estatal que proporcionam
interrupção controlada da distribuição do abastecimento.
O mapa permite visualizar a posição de cada localidade do
Jardim Catarina e sua relação socioespacial diante da infraestru-
tura de saneamento local. Entendemos que há uma sobreposição
temporal, exemplificada por distintas etapas de intervenção públi-
ca e de execução descontínuas de práticas locais de enfrentamento
do problema do abastecimento. Contudo, insistimos na tentativa
de refletir sobre esses encontros, entre espacialidades e tempora-
lidades. Nossa ideia é territorializar a imbricação formada pela
presença física de estruturas (rede de água, válvulas, hidrante da
Rua 01), pela ação cotidiana e pela experiência dos moradores
(“gatilhos”) e a configuração socioespacial do próprio loteamento,
que se articula à organização urbana da cidade (divisão entre lo-
teamentos, presença de vias de integração, a localização da ETA).

Figura 3 – O Mapa da Água do Jardim Catarina.

Legenda: figura produzida pelo autor a partir da imagem aerofotogramétrica da RMRJ,


escala 1:2.00077. Entrevistas com moradores do bairro. Fonte: Dominguez, 2018.

77
As bases cartográficas foram disponibilizadas pela Fundação Centro de Estudos,
Estatísticas e Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro (Fundação CEPERJ, 2018), e

181
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

“Seu Moraes”, “Betinho da Água” são personagens cruciais


para compreender os impactos da política do saneamento na ci-
dade e na RMRJ. A contradição entre a dinâmica dos lugares e
a ação estatal ganha materialidade por intermédio da ação des-
ses múltiplos agentes sociais. Nas margens a “fronteira se amplia
conforme se redefine a relação entre o Estado e a sociedade [...],
num contrato que evoca uma horizontalidade que não traduz o
posicionamento desigual” (CUNHA; FRIGOTTO, 2010, p. 815)
entres agentes sociais e instituições estatais.
Ao mesmo tempo, essa posição de fronteira, por meio da
ação e interação entre agentes sociais, possui a capacidade de
expor e desnudar um Estado cuja ação também é marginal, que
por meio de uma desregulamentação regulada dos mecanismos
de controle condiciona sua presença à precariedade da vida nas
periferias urbanas. Por outro lado, sem essa condição margi-
nal, as instituições estatais e de mercado estariam submetidas a
permanentes crises sociais e à impossibilidade de execução de
programas governamentais.
Com efeito, as representações dominantes do espaço che-
gam ao território do Jardim Catarina, tornando possível uma
certa naturalização da precariedade do serviço de abastecimento
de água e de seu controle por parte de agentes sociais que vêm
acumulando poder local. Contudo, no espaço do vivido, os mora-
dores criam estratégias e estabelecem meios de apropriação dos
recursos urbanos.
Nas margens da cidade o desafio é identificar as diferen-
tes concepções relacionadas às normas e às condutas existentes.
Para compreendê-las é preciso seguir sentido analítico inverso,
ou seja, não apenas pautar-se nas estruturas do Estado, sua má-
quina, sua burocracia para definir o que ocorre nos territórios
urbanos, mas construir um ponto de vista a partir dos lugares,
dos atores que ali transitam e percorrem diferentes escalas, su-
perando a separação artificial entre imposições legais e extrale-
gais. Essas discussões evidenciam os canais que percorrem os
territórios e as relações políticas entre os mais diversos atores do
campo social, onde o Estado, inclusive, passa a ser representado
pela Diretoria Executiva Câmara Metropolitana, grupo técnico vinculado à vice-
governadoria do Estado do Rio de Janeiro.

182
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

por agentes que possuem a capacidade de transitar por esses ca-


nais marginais.
Esse quadro complexo não se reduz a uma percepção de
confronto entre classes sociais ou uma eterna luta entre os lotea-
mentos periféricos e as áreas centrais da cidade. Na verdade, es-
tá-se diante de contradições não resolvidas, de necessidades não
atendidas por completo, mas que encontram saída por meio da
prática social. Afinal, “no vivido, a práxis é contraditória” (MAR-
TINS, 1996, p. 122), e é assim que a história se faz.

Considerações finais

Atualmente, os debates sobre o controle, o direito e o acesso


à água vêm sendo tratados nos mais diversos fóruns nacionais e
internacionais. Esse tema, de certa forma, é causa e consequên-
cia de uma radical crise política e socioambiental vivenciada hoje
no mundo. A água passa a ser tratada como mercadoria, que os
agentes financeiros desejam transformar em commodities globais,
extraindo a partir de seu monopólio e comercialização lucros
financeiros (KLINK, SOUZA, 2017).
Esse tipo de abordagem possibilita tanto entender a própria
configuração do Estado como, ao mesmo tempo, seus contínuos
processos de reconfiguração nas periferias metropolitanas. Confor-
me nos ensina Veena Das, a possibilidade de utilização da expressão
“margens” contribui justamente para desmistificar a ideia de que
nesses territórios o Estado perderia poder, enfrentando uma au-
sência de controle, quando na verdade esse poder é ressignificado.
O artigo buscou analisar como é o processo de reprodução
do espaço urbano da periferia a partir dos atravessamentos e das
disputas pela água. O “problema” água foi apresentado como
parte integrante do processo de ocupação e de transformação da
própria RMRJ. Ao longo das décadas, água e poder tornaram-se
elementos entrelaçados, sendo o loteamento (e as periferias) a
base espacial e temporal da sociabilidade entre moradores, gru-
pos políticos locais e agentes estatais.
A população do Jardim Catarina passou a agir dentro dos li-
mites impostos pela estrutura desigual da cidade e da oferta dos

183
Mauro Amoroso, Mario Brum, Rafael Soares Gonçalves (Orgs.)

serviços públicos de saneamento, cuja ação apoiou-se na expe-


riência histórica do morador em relação à escassez de água e nas
relações políticas construídas nos territórios. Diferentemente da
racionalidade tecnocrática do setor de saneamento, que suben-
tende uma condição de precariedade da população da periferia
e a permanente necessidade de investimentos para aumentar a
oferta de cobertura de saneamento, essa nova percepção sobre
o tema permite questionar, inclusive, a passividade dos atores
locais diante do quadro de precariedade dos serviços públicos.
No caso da água, seu acesso não pode ser interpretado uni-
camente pela presença ou não de infraestrutura urbana na perife-
ria metropolitana. O método aplicado neste trabalho descortinou
o Mapa das Águas do Jardim Catarina, uma forma de visualizar
como as políticas produzidas nas margens da cidade marcam os
territórios urbanos. Além disso, identificou estratégias de controle
sobre a água, que se tornou capital valioso no arranjo de forças
políticas e na própria produção do espaço da cidade.
A prática do “gatilho”, por exemplo, mais do que uma ca-
tegoria de análise que sistematiza as estratégias dos moradores,
acabou por representar a expressão concreta das relações políti-
cas envolvendo a máquina estatal e a população. Sem essa articu-
lação, construída sobre arranjos locais, mas que respondem tam-
bém à política estadual, é provável que muitos moradores não
tivessem tido nenhum tipo de acesso ao abastecimento de água.
É provável que a cidade, ela mesma, não teria se reproduzido.
Essa configuração política, injusta do ponto de vista da de-
mocratização do serviço de saneamento, expõe um conjunto de
práticas construídas e acionadas no cotidiano que trazem pos-
sibilidades mínimas de ganhos, contrapartidas e estratégias de
permanência das camadas populares na RMRJ.
Se no cenário político e econômico atual está sendo discu-
tida a privatização dos serviços urbanos, então quais seriam os
impactos do encolhimento da regulação estatal e da transferên-
cia do monopólio público do saneamento à gestão privada? Pa-
rece-nos que no centro desse campo de disputa, moldado nas
margens da metrópole, o Estado vive um momento em que suas
prerrogativas de poder estão sendo suspensas por parte dos im-
pulsos da privatização. Essa condição retira do Estado o poder

184
Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

de estabelecer as regras que abrem ou bloqueiam as possibilida-


des de ação dos atores sociais na cidade.
Nesse sentido, nos parece mais realista pensar que diante
desse quadro, o controle sobre a água, a partir da entrada de
grandes capitais privados, tende justamente a legitimar regula-
ções e normas territoriais tidas como ilegais e coercitivas nas
margens urbanas, institucionalizando-as e cristalizando relações
desiguais no que tange ao acesso e ao controle sobre a água. Afi-
nal, é possível acreditar na criação de mecanismos políticos que
permitam à periferia acionar formas coletivas de vigilância sobre
os serviços e sobre a gestão privada do saneamento?
Diante dessa incerteza, as propostas atuais que preveem a
entrada intensiva de capital privado no setor de saneamento pú-
blico possivelmente estabelecerão uma nova correlação de forças
ainda não medida em torno das disputas pela água na RMRJ.
Nas periferias, as tradicionais mediações e as formas de enfren-
tamento das contradições urbanas deverão ser atravessadas e re-
formuladas, funcionando como novos vetores de transformação
da política e do espaço urbano.

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água e esgotamento sanitário e dos serviços complementares dos municípios
do Estado do Rio de Janeiro. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Diário Oficial, 2020.

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Olhares contemporâneos sobre os bairros populares: Rio de Janeiro

SANTOS, Carlos Nelson F. Loteamentos na periferia metropolitana. Revista


de Administração Municipal, jan.-mar., p. 22-30, 1985.
SWYNGEDOUW, Erik. Águas revoltas: a economia política dos serviços pú-
blicos essenciais. In: HELLER, L.; ESTEBAN, J. C. (Orgs.). Política pública e
gestão de serviços de saneamento. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, p. 76-97, 2013.
SWYNGEDOUW, Erik; HEYNEN, Nikolas C. Urban Political Ecology, Justice
and the Politics of Scale. Antipode, October, n. 35(5), p. 898-918, 2003.

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Sobre os organizadores:

MAURO AMOROSO
Licenciado, bacharel e mestre em História pela Universidade Federal
Fluminense (UFF), doutor em História, Política e Bens Culturais pelo
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil da Fundação Getúlio Vargas (Cpdoc/FGV) com estágio de pós-
doutorado no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universi-
dade de São Paulo (USP). Professor adjunto da Faculdade de Educação
da Baixada Fluminense da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(FEBF/UERJ), do mestrado profissional em Ensino de História (pro-
fhistoria/UERJ) e do Programa de Pós-graduação em Cultura e Ter-
ritorialidades (PPCULT/UFF). Pesquisador do INCT Proprietas, Jo-
vem Cientista do Nosso Estado (JCNE/Faperj) e Procientista (UERJ/
Faperj). Coordenador do Programa de Estudos sobre Cultura Urbana,
Arte e Audiovisual na Periferia (PROCURA na Periferia). Autor de
Caminhos do lembrar: a construção e os usos políticos da memória no mor-
ro do Borel (Ponteio, 2015), artigos sobre favelas, representações, usos
políticos da memória e segurança pública, e um dos organizadores da
coletânea Pensando as favelas cariocas (Pallas/PUC-Rio, 2021).

MARIO BRUM
Professor de Teoria e Ensino de História da UERJ, possuindo mestrado
e doutorado em História pela UFF. Realizou Estágio de Pós-Doutorado
em Planejamento Urbano pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Ur-
bano e Regional (Ippur/UFRJ) e em Educação pela UERJ. É autor do
livro Cidade Alta (Ponteio, 2012), um dos organizadores da coletânea
Pensando as favelas cariocas (Pallas/PUC-Rio, 2021) e de artigos e capítu-
los sobre questões urbanas, memória e Ensino de História. É pesquisa-
dor associado ao INCT/Proprietas, ao Imam/UFRJ e ao Leddes/UERJ.

RAFAEL SOARES GONÇALVES


Advogado e historiador. Doutor em História pela Universidade de Pa-
ris VII e pós-doutor em Antropologia pela École des Hautes Études
en Sciences Sociales (EHESS). Professor Associado do Departamen-
to de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio),
coordenador do Laboratório de Estudos Urbanos e Socioambientais
(LEUS) e pesquisador do INCT Proprietas. É Cientista do Nosso Es-
tado pela FAPERJ e Pesquisador de Produtividade do CNPq. Autor
do livro Favelas do Rio de Janeiro. História e Direito (Editoras PUC-Rio
e Pallas, 2013), de artigos sobre história urbana com ênfase sobre
informalidade urbana e as favelas cariocas, e um dos organizadores
da coletânea Pensando as favelas cariocas (Pallas/PUC-Rio, 2021).

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Esta obra foi impressa em processo digital
na Trio Gráfica para a Letra Capital Editora.
Utilizou-se o papel Polén Soft 80g/m².
e a fonte ITC New Baskerville corpo 11 com entrelinha 14.
Rio de Janeiro, 2021.

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