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Texto Rafael Salmona

UMA CRÔNICA PARA QUEM NÃO DEVERIA AMAR


Uma crônica pra quem não deveria amar.

[Nova Iorque, maio de 1968]

Introdução

[Uma cadeira e uma mesa, com uma máquina de escrever, no centro do palco, uma iluminação
escura, quase penumbra. Som de chuva ao fundo. Entra James e senta na cadeira.]

James: Eu só quero dizer aos senhores que eu tenho uma última história... Publiquem.

[James começa a dedilhar a máquina de escrever como se estivesse tocando um piano.]

Blackout

Crônica 1 - Como nasce uma história.

[Sons de manifestação. Ao fundo, entra James com uma placa onde se lê “Make love, not
war”]

James: Era 1968. Make love, not war! Fora, americanos: paz no Vietnã! Viva a universidade
popular! Viva a universidade livre! Abaixo a ditadura! Fora, soviéticos: queremos um socialismo
democrático! Nova Iorque, eu era um deles. Pronto para fazer história, pronto para virar
página de destaque como parte da revolução por vir.

- “Desconfiem dos chefes e dos heróis. Desconfiem de todas as pessoas de fora que
tentam impor a vocês suas estruturas. Façam o que tiverem vontade de fazer. Sejam o
que vocês são. Se não sabem o que são, descubram!”

Me disse um hippie. Eram muitos, eu estava rodeado daqueles bichos grilos que fediam como
se não tomassem banho por muito tempo. Eu tinha vontade de levantar um cartaz escrito
“Tomem banho por favor!”, “Fora cuecões!”, “Está fedido pra...” Não é sobre o fedor que eu
queria contar, é que eu me perco nas palavras. Eu estava ali tentando fazer história. Foi o que
meu pai pediu, que eu saísse de casa para ser a história.

Eclodiam manifestações pelos Estados Unidos. Eu poderia ter ido pro Kansas e ter me
manifestado contra a guerra do Vietnã. Claro, não no sentido literal da frase, de manifestar,
mas pensaria comigo mesmo que eu era contra a guerra. “Sejam realistas, exijam o
impossível!” pichado num muro ao som da revolta dos estudantes. Mas que impossível seria
esse? Eu tinha tantas indagações, mas não deixava isso tomar conta de mim, porque eu já
estava ali. Queria que meu pai me visse nas fotos dos jornais.

Veio na minha direção uma multidão de pessoas fugindo da polícia, que chegou atirando para
cima. Eram fogos de liberdade para nós. Foi aí, então, que alguém gritou: “Vamos invadir a
reitoria”. E lá fomos correndo, éramos uma centena, talvez. Chegamos na reitoria e tudo

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estava fechado com funcionários trancados lá dentro. A polícia estava se aproximando para
cercar o prédio.

Eu nem pensei, só vi meu corpo sendo arremessado por mim mesmo, e com o baque senti o
sangue escorrendo com os estilhaços da janela que eu acabara de destruir. Lá de dentro, os
funcionários olhavam amedrontados, e eu gritei “Saiam! Saiam!” Foi... Instinto. Coloquei os
outros estudantes para dentro e, quando finalmente os policiais chegaram... Estávamos
reivindicando a reitoria da universidade de Columbia!

[James tira um charuto e acende, senta na mesa e cruza as pernas, exatamente como na foto
icônica de 1968, onde um garoto aparece nas capas dos jornais na mesma posição que o
personagem. Entra Elliot passando por trás]

Elliot: A diferença é que ele tinha um ar um pouco mais revolucionário. De quem tinha
enfrentado tiros de polícia e estilhaços de vidros. Só que… De verdade. Como homem.

James: Assim? [faz cara mais séria]

Elliot: Você não conseguiu manter o frescor da história. Eram tempos de revolução

Tem aquela parte onde o chefe da polícia entrou junto com os jornalistas na reitoria e nos deu
quatro horas para desocupar pacificamente. Um dos garotos foi pra cima e cuspiu na cara dele.
Assim que ele foi pra cima do garoto, todo mundo rodeou ele. Ou ele seria capa histórica de
uma grande estupidez que faria com aquela arma sendo segurada por suas mãos. Era muita
raiva, mas também ele levou uma bela escarrada na cara. A jornalista tinha a foto do ano. Mas
o bunda mole só saiu sem falar nada.

James: Não teve volta? Digo, não aconteceu nada?

Elliot: Não. A gente desocupou depois da reunião com o reitor. Ele decidiu assumir a pressão
que fizemos e pediu para sair do cargo. Era mais uma vitória.

James: Mas do que isso adiantaria?

Elliot: “A revolução deve ser feita nos homens, antes de ser feita nas coisas”. Primeiro a gente
mexe com os burocratas depois no sistema. É consequência.

[James observa sorrindo para Elliot]

Elliot: Aprende. O sonho é realidade. E estamos fazendo os pesadelos virarem também.

James: Boa.

Elliot: [observando James atentamente] eu te conheço de algum lugar? Digo, eu estou abrindo
conversa com você, mas não nos conhecemos, certo?

James: Certo! É que na verdade eu não vim até aqui para conhecer alguém.

Elliot: No momento em que me viu saindo aos berros da reitoria, veio ao meu encontro, com o
caderno e a caneta, e me perguntou se podia saber o que havia acontecido lá dentro.

James: Exato, mas não disse que queria te conhecer.

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Elliot: Como você quer conhecer uma história sem saber dos personagens?

James: É que a minha curiosidade foca no acontecimento sem necessariamente incluir o


personagem da ação.

Elliot: Você está se enrolando.

James: É... Você faz parte de algum grupo anticapitalista?

Elliot: [rindo] Prazer, Elliot.

James: Você insiste para que eu te conheça, certo?

Elliot: Errado, você que buscou me conhecer. Seu nome?

James: James. Qual é o próximo passo? Digo, vocês vão continuar as manifestações?

Elliot: Fim da guerra do Vietnã.

[Silêncio]

Elliot: Espera, você é um jornalista?

James: Não, sou apenas um curioso. Um pesquisador dessa onda de revoluções estudantis.

Elliot: Essa história que eu te contei é muito boa.

James: Obrigado por ela.

Elliot: Você está roubando ela?

James: Não, é apenas um empréstimo. Embora eu seja o melhor ladrão de histórias de que
esse mundo vai ouvir falar.

Elliot: O que você vai fazer com ela?

[Mudança de luz. Entra em cena o Editor e sai Elliot]

Editor: Essa história é ótima! Temos ação, os fatos são bem narrados. É curta, uma crônica não
finalizada estruturalmente… Mas até que vale dois tijolos na área de cidades.

James: Quando posso começar?

Editor: Quinze dólares por esse texto.

James: Mas, senhor, eu busco um trabalho periódico.

Editor: Não temos vagas.

James: Eu tenho mais histórias!

Editor: Sobre revoluções não temos tanto espaço assim garoto. Estou lhe dando uma chance
por conta da amizade que tenho com sua família. Vinte dólares pelo texto e uma resenha de
algo sobre romance. É disso que preciso. Amor em tempos de guerra fria. Isso vende.

James: As pessoas não gostam de romance nos jornais, senhor.

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Editor: Escreva sobre o que eu te peço, ou saia na rua com a sua história para contar
pessoalmente para as pessoas.

James: Trinta dólares o texto e mais duas resenhas?

Editor: Romance. Entende?

James: Sim, senhor.

Editor: Jovem.

James: Como?

Editor: Jovem, cru, imaturo, algo que esses bichos grilos aí da rua possam apreciar.

James: Tenho algumas boas.

Editor: Você tem até sexta.

James: Não vai se arrepender, senhor.

Editor: Até mais, garoto.

[Editor sai de cena]

James: Revolução, eu te amo!

[Blackout]

Crônica 2 - Avessando

[James em frente à máquina de escrever]

James: Eu tinha uma certa timidez de quem estava vestido ao avesso o tempo inteiro. Parece
coisa de quem queria botar banca na vida. E até queria. Eu não tinha perfil de quem iria pra
rua gritar contra o governo. Eu pensaria em formas corretas de tentar um diálogo. Gritar,
pichar e clamar por liberdade, ao meu ver, não levaria a nada. Mas, ora, “exijam o
impossível¹”. Aquilo era impossível, ao meu ver, aquelas manifestações todas. Mas eles
estavam nas suas razões, é meio contraditório, certo? Sim. É uma pergunta um tanto quanto
retórica. Penso eu que, naquela situação, eu, ali, parado no meio do caos... Como posso dizer?

Elliot: Você pensa demais.

James: [escrevendo] Você pensa demais... Elliot! O que faz aqui?

[pausa]

Elliot: Foi o que eu disse para ele quando ele veio com aquelas perguntas no meio da minha
história. Ele pensava demais.

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James: Ele não era hippie, nem estudante, e eu tenho essa mania de descrever as pessoas
antes de conhecer. Eu acho isso um tanto quanto inspirador!

Elliot: Era um rapaz que sabia o que conquistar. Eu sei o que eu quero, e vou atrás. Descobri
seu endereço e vim atrás do que eu deixei com você. A história.

James: Nossa história vai ser publicada na edição matinal do jornal de amanhã.

Elliot: Bicho, não é a nossa história. É a minha que você roubou, morou [significado: entende]?

James: Vai ser “duca”! Você vai ver. As pessoas vão saber sobre você. Sabe que as palavras
ficam gravadas na história, certo?

Elliot: [lendo o que está escrito no papel da máquina de escrever]. Eu gosto da forma como
você descreve as coisas. É como se você descrevesse as coisas que eu não te disse. Como se
fosse meus olhos. Tem até um pouco do meu coração aqui. O que eu senti.

James: Eu te disse, eu sou ótimo em roubar histórias.

Elliot: Então porque não saiu do primeiro parágrafo dessa outra aqui?

[James puxa a folha da máquina de escrever]

James: Porque não sei falar sobre romance.

Elliot: Vai atrás da patota. Descobre alguma coisa. As ruas estão gritando por amor e
liberdade.

James: Indecência.

Elliot: Liberdade!

James: Eu vi aqueles jovens quase desnudos pedindo essa tal liberdade. Lutar pela revolução
não consiste em tirar as roupas.

[pausa]

Elliot: “Quanto mais amor faço, mais vontade tenho de fazer a revolução”.
James: O quê?
Elliot: Você não gosta de pensar? Pensa sobre o que eu disse. Você não me engana… Sua
roupa, sim, engana os outros. Você não veste o que a sua cabeça é. Me arrisco a dizer isso.

[Telefone toca. Elliot pega para atender e James puxa o telefone dele. Entra Duke]

Duke: Alô

James: James falando.

Duke: Eu sei. É o Duke.

James: Eu sei. Oi, Duke.

Duke: Eu sei que você sabe que sou eu, o Duke.

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James: Duke! O que precisa?

Duke: Meus pais vão a uma convenção, voltam no sábado. Vamos fazer um baile?

James: Meu senhor Deus, Duke? Baile? Isso é tão cafona.

Duke: Achei uns cigarros no sótão, charuto cubano, devem ser dos bons, meu velho guardou
bem. Até sua pistola estava mais fácil de achar.

James: Eu preciso fazer um texto pro Daily.

Duke: Que Daily?

James: O jornal.

Duke: “Putzgrila”! Arrebentou! Darlene, escuta, o Jamie é o novo editor chefe do Daily agora!

[Ouvem-se gritos de comemoração]

James: Duke! É só um bico. Não fui contratado.

Duke: É mentira, Darlene! Foi demitido.

James: Santo Cristo, Duke.

Duke: Vai ser “duca”, Jamie, te espero aqui. Chama as garotas do jornal, aposto que...
[sussurra] elas são maravilhosas, Darlie jamais poderá saber. Preciso desligar... Espera, pode
trazer aquele conhaque do seu velho?

James: Tá bem, Duke, eu levo o conhaque.

[Desliga o telefone e Duke sai de cena]

Elliot: Onde vai ser a festa?

James: Baile [rindo]

Elliot: Não precisa insistir, eu vou ao baile, mas não serei seu par. [rindo]

James: Putz, não é esse tipo de baile. É uma festa na casa do Duke, meu amigo. Ele foi nosso
vizinho durante anos, aí os pais foram trabalhar pro governo e subiram de vida. Foram para
Village Way.

Elliot: Capitalistas?

James: Todos nós temos uma porcentagem capitalista Elliot. Não seja hipócrita!

Elliot: Eu sou aristocrata.

[Os dois riem]

James: O que você veio fazer aqui?

Elliot: Não tinha mais com o que irritar minha velha em casa.

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James: Não tinha nenhuma manifestação de bicho grilo para ir?

Elliot: Também não.

James: Nem parede para pichar?

Elliot: Da 33 até a 107, já marcamos território.

James: Vândalos [rindo]

[Pausa]

Elliot: Já escutou a nova dos Beatles? Eu vi que você curte um pouco de rock, sabe mexer bem
o corpo com o rock, baby?

[Elliot começa a dançar de forma engraçada e se aproxima de James que fica sem graça]

James: Por um momento eu vou mudar meu texto e mudar a cena para minha própria cabeça.
Dentro dela, tem uma voz, que sou eu mesmo, e que precisa urgentemente falar comigo
mesmo.

[Trilha ambiente]

James: Que sensação é essa?

Cabeça do James: Você acabou de conhecê-lo e está deixando que ele invada a sua zona de
conforto de relações.

James: Eu tenho problemas sérios com relações. E agora que tomei conhecimento de que eu
estou conversando sobre mexer o esqueleto... Corpo com alguém que eu conheci há pouco
tempo, isso não vai dar certo!

[Cessa a trilha]

James: Elliot! É que eu preciso buscar a minha tia… minha avó! Na m… missa.

Elliot: “Duca”!

James: Ah... É....

Elliot: Ah, tá! Entendi. Você quer que eu vá?

James: Sim.

Elliot: Mas ela não vai achar ruim?

James: [confuso] Ela quem?

Elliot: Sua avó. Você quer que eu vá buscá-la na missa contigo, certo?

James: NÃO!

Elliot: [assustado] Então estou boiando.

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James: É que… Minha avó é meio arisca, não gosta de estranhos, à primeira vista.

Elliot: Ah, entendi. Tá certo, eu peguei! Só cheguei aqui pra ver a história.

James: A crônica.

Elliot: Isso!

James: Eu vou escrever uma bem melhor amanhã.

Elliot: Adeus, então!

James: Tá bem. A gente se esbarra por aí!

[Elliot sai desconcertado]

James: Enumerar. Primeiro, eu preciso escrever a caceta da crônica! Depois, bem depois, eu
falo sobre o que acabou de acontecer.

Eu tenho várias manias. Mania de perseguição, eu tenho mania de QI desafiado, tenho mania
de dormir com as meias, tenho fobia de abraços apertados, e eu tenho pavor de fazer
amizade. É sobre isso que falaremos em algum momento nessa história. Eu vou chamar esse
momento de ... preciso colocar um nome nos sentimentos e sensações. É uma outra mania
minha... Vou chamar esse momento de… “não consigo pensar em nada agora”.

Crônica 3 – O início de um letterstar

[Duke entra em cena com o telefone em mãos]

Duke: Darlene, coloque um vestido bem bonito, porque hoje vamos comemorar muito. Vamos
chamar a galera do Daily. Jamie é carne nova no pedaço dos editoriais. Temos que aproveitar.
Não chame os Marlons, eles são porcos, vão fazer feio para os nossos convidados. E pensar
que o Jaiminho, aquele rato, no começo só apanhava na escola. E hoje é esse boa pinta,
cafajeste dos editoriais. Aposto que ele vai escrever sobre capitalismo e revolução. É a cara
dele. Essas coisas de bichos grilos. Papai achou que ele fosse virar maricas. Aqueles nerds
trancafiados nos quartos com os óculos fundos de garrafas [risos]. Que tal abrir aquele vinho
da mamãe, Darlie? É para ocasiões especiais. Vou confirmar se o Jamie vai trazer os garrafões
dos jornais, os manda chuvas de lá. Aqueles caras podem nos dar boa vida, anote isso,
Darlene. Você gosta de mim justamente por eu ser esse homem de negócios. Então não vamos
medir esforços! Se o James conseguiu, eu também posso.

[foco na mesa onde está James digitando na máquina e olhando para Duke]

James: O Duke era aquele típico burguês arrogante e sem noção. A gente cresceu juntos,
vizinhos, e nossos pais eram melhores amigos. Inclusive, mantinham boa amizade em tempos
de guerra fria, onde um era aspirante aos modelos governistas russo - no caso, o meu pai, e o

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outro era americano demais pra dizer que algum outro país sairia na frente nessa guerra
armamentista - no caso, o pai dele. Quando eles se mudaram, eu vi o Sr. Guille resmungando
que jamais teria outro amigo como meu pai. Eram tão grudados, que nesse drama todo da
mudança, nem parecia que só estávamos a trinta quilômetros de distância. Mas, enfim…
Voltando ao Duke.

Duke: Isso, volte a me descrever Jamie.

James: Nós éramos amigos, sim. Mas eu tinha a estranha sensação de que ele enviava bilhetes
anônimos pra mim no colegial me chamando de “Zaime Quatro Olhos”. A letra garrafal com a
escrita errada era muito similar à das tarefas de casa dele, que eu pegava pra completar, pra
que ele não ficasse sem nota. Eu fui bem humilhado no colegial. Mas está na Bíblia: “os
humilhados serão exaltados”.

Duke: Eu juro de pés juntos que eu não escreveria “Zaime Quatro Olhos”... Não para fazer
chacota com o Jaiminho... Mas era engraçado como os olhinhos dele viravam azeitonas
comidas por trás daqueles óculos [risos].

James: Ele foi um personagem muito importante em várias histórias minhas. Inclusive estava
destinado a ser de uma importância bem grande mais uma vez.

Crônica 4 – A festa

[trilha sonora de fundo]

Duke: Um segredo para uma boa festa é uma pitada de mulheres bonitas estilo “Cadillac”!
Com o perdão de minha amada Darlie, o flerte vai agitar a noite hoje. Gastei minha mesada em
bebidas e em cigarros para mostrar que eu sou papo firme. Colocamos uns discos pra tocar, e
aí eu te falo que o sucesso está garantido. Os “bonachas” da turma vão se juntar, e a turma
inteira vai cair pra casa. Se eu disser que até Brigitte Bardot vai ficar sabendo da grande festa
da década de Duke, não vou estar me gabando. É coisa séria. Eu levo muito a sério esse
negócio de festejar, é uma arte.

[Começa a dançar como se estivesse com alguém. Dá um giro e mudança de luz]

Duke: Papai, fique calmo! Eu vou ficar atento à segurança de casa[...] Não, mamãe, não vou
chamar ninguém para entrar. E vou deixar sim a Bíblia na porta da sala para Deus me proteger.
Podem viajar em paz.

[Mudança de Luz e mais um giro de Duke]

Duke: Vavá, não vai me esquecer de trazer a Coca para as Cubas Libres. Já tenho tudo
resolvido para servir Hi-Fi se não der certo. As meninas vão ficar no papo firme com a gente.

[Mudança de luz]

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Duke: Mamãe, confia no seu filhotão, tudo vai estar sob controle absoluto. A casa vai
estremecer apenas com as bênçãos do Senhor e das minhas orações. Boa viagem, “mama”!

[trilha de rock, foco em Elliot, que entra em cena]

Elliot: Esse som é um oferecimento de “Rita Lina” [tira um fone de rádio do bolso, sons de
sintonização de rádio]. E agora para a audiência entra no ar a rádio... “É uma brasa”! Olha,
gente, boa tarde, está no ar mais um “É uma brasa”. Eu sou Elliot Macbeth, e juntos nós
faremos a revolução!

[entra trilha como de uma vinheta de rádio]

Elliot: Pegou legal! E pelo corredor, muito movimento, passa gente toda hora no estúdio. Um
boa tarde pra vocês. Tá todo mundo sintonizado na “Brasa”!

[Mais uma trilha de transição vinheta]

Elliot: Na pacata cidade, onde os jovens estão buscando liberdade, igualdade e fraternidade...
Tá chegando bilhete aqui pra gente. A Amelie, do nosso fã clube, diz: “Somos apaixonadas por
você”. E eu também. Olha ali, passando pelo corredor, o Peter! Oi, Peter! E tem mais bilhete
aqui. Tem a Elvia, que quer saber quando vai encontrar um marido. Pois bem... Meu diretor
não deixou eu responder. E chegando mais um bilhete aqui... Intitulado Sr D. “Se você quer
paquerar, beber boas bebidas e está disponível hoje...”

[Volta foco para Duke]

Duke: Você é meu convidado para chegar aqui na minha mansão da Rua Dollie, 567, Leste.

[Mudança de luz, som vai em fade out, entra James]

James: Eu não gosto de festa. Eu odeio festa. E o nome disso que eu estou sentindo é efeito D.
Por que eu disse pro Duke que eu iria nesse lugar? Ainda mais agora que saiu na rádio pirata,
onde... Os jovens. Escutam. A senhora Guillie não vai gostar nada quando revirarem aquela
casa dela. Eu deveria ligar pra ela e falar que os jovens vão tocar fogo na casa dela! Há! Não…
Não deveria. Mas eu queria. Respirei fundo. Contei até três… Eu vou pra festa.

[trilha da festa]

James: Eu cheguei um pouco tarde. Como eu posso provar isso? Dois corpos no chão
[caminhando pelo espaço observando] um está visivelmente urinado. Tem alguém escondido
debaixo da árvore, são duas pessoas que fazem sons estranhos. O barulho aqui de fora está
bem alto. Os vizinhos estão olhando. Eu vou escrever exatamente o que eu vi quando cheguei
naquele lugar.

Elliot: [entrando em cena] LADRÃO!

James: Oi?

Elliot: Salvem os revolucionários, escritores, poetas, dramaturgos… E os ladrões de histórias!

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James: O que você tá fazendo aqui?

Elliot: Lutando contra a cafonice. Observando... A liberdade.

James: Você está bêbado.

Elliot: E bebendo de graça. É o mais importante.

James: O que você está fazendo na casa do Duke? Eu nunca te imaginei aqui.

Elliot: Cadê minha história?

James: Eu vendi.

Elliot: Tá mentindo.

James: É sério.

Elliot: Capitalista.

James: Sobrevivente, eu diria. Sua história é muito boa. Ela precisava ganhar os jornais.

Elliot: Você me deve, então.

James: Talvez.

Elliot: Dança comigo.

James: O que?

Elliot: Você não mexeu o esqueleto comigo. Fugiu. Me paga em dança.

James: Você é um pouco engraçado. Eu não danço.

Elliot: Eu vou contar pro seu jornal que a história é minha e eu não dei autorização pra você
usar.

James: Você não... Como? Você leu a minha história?

Elliot: [rindo] Você me disse que ia roubar, eu só fiquei atento a onde iria aparecer o roubo, Sir
James.

James: [puxando o ar] Gostou?

[Entra Duke]

Duke: Ah! Olha só, o Jaiminho chegou e já está fazendo fã! Jaiminho, vem aqui e me dá um
abraço de urso. Vem, pode vir. A Darlie não vai ficar com ciúmes.

[Duke vai ao encontro de James e o começa a apertar.]

Duke: O Elliot é um rapaz muito bacana, ele é rebelde [rindo] e engraçado e é a voz da
molecada, ele é daquela rádio pirata.

Elliot: Me chama de “Pirata FM”!

Duke: [rindo alto] Esse cara é demais mesmo. Vamos para eu te apresentar umas meninas,
estão loucas para a azaração.

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Elliot: Ducas, eu estou bem. Sou rebelde às causas do coração.

Duke: Isso é só para se fazer de difícil. Aposto que quando vir a Soninha da rua nove, vai cair
aos beijos na hora.

Elliot: [rindo] Se ela for “boazuda”, eu vou, Ducas.

James [rindo]: Duke, onde está a Darlie?

Duke: Eita, bigorna, me esqueci da minha dourada.

James: Dourada?

Duke: É feito ouro bicho, minha deusa, amor fraterno.

[os 3 riem e Duke sai de cena]

Elliot: O Ducas é um goiabão. Engraçado, mas bobão.

James: Vai entrar?

Elliot: Já saí.

James: Então... Nos vemos depois?

Elliot: Minha dança.

James: Eu não danço, Elliot.

Elliot: [Gritando] Aí, rapaziada! Esse aqui é o James, roubador...

[James vai pra cima de Elliot e tampa sua boca]

James: Você vai me foder!

Elliot: Mentira que você falou palavrão? Acho que nem quero mais dançar.

James: Eu danço, se você entrar.

Elliot: Então eu entro, se você beber comigo.

James: Tá, mas acho que antes de eu terminar o primeiro gole você já vai cair bêbado no chão.

Elliot: Ih! Eu não vou mancar. É um desafio? Bicho, eu bebo até amanhecer e ainda fico melhor
que você.

James: Duvido.

Elliot: Pago.

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[Entra música de rock, Elliot e James tiram conhaques do bolsos e começam a virar bebidas.
Duke entra visivelmente mais bêbado e pulando em cima dos dois. Os três começam uma
disputa de dança. Duke aos poucos vai ficando mais lento na cena até cair bêbado no chão.
Elliot puxa James pelo braço e os dois começam a dançar mais juntos. Dança estilo twist.
Música vai finalizando e os dois vão caindo também juntos bêbados.]

Elliot: Aposto que o Dallas…

James: Duke. [soluça]

Elliot: É mesmo? Achei que era Dallas.

James: Você errou o nome dele a noite inteira.

Elliot: Ele nunca deve ter se divertido tanto.

James: Nem eu.

[silêncio e Elliot olha para James]

James: O que foi?

Elliot: Você está muito bêbado.

James [rindo e soluçando ao mesmo tempo]: Mas eu não cheguei no nível do Duke.

Elliot: [rindo] Parabéns. Você pagou minha dívida.

James: Agora vou ficar... [soluço] Ficar rico vendendo a sua história.

Elliot: Você olhou para alguma garota essa noite?

James: Não tive tempo.

Elliot: Todas horrorosas.

James [rindo]: Temos um rebelde exigente, então?

Elliot: Temos um “consentista”. Alguém com consenso suficiente para dizer: ABAIXO AS
HORROROSAS!

James [rindo]: Você é louco... Eu estou [soluço] muito [soluço] bêbado.

Elliot: Ganhei a aposta.

James: Eu não apostei.

Elliot: Desafiou!

James: Você só quer ganhar.

Elliot: A gente cansa de perder na vida.

James: E o que você perdeu?

Elliot: Um amor.

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[Silêncio]

James: Eu acho que eu nunca tive isso.

Elliot: O quê? Amor?

James: É.

Elliot: Não está perdendo nada. É uma merda.

James: Essa é a maior hipocrisia que eu já ouvi. Você, um bicho grilo, hippie, rebelde, liberal,
defensor do amor e da paz.

Elliot: Já se perguntou por que tem dor que se esconde atrás de uma ideologia?

James [silencioso, observando Elliot beber a última dose de conhaque]: Foi difícil?

Elliot: Mais difícil do que perder meu velho na guerra do Vietnã. E olha que eu gostava daquele
velho fodido, mesmo ele sendo um pé no saco. Mas quando ele foi, ele só foi, sem levar nada
meu.

James: Como assim?

Elliot: Quando você perde alguém que ama, vai junto uma parte sua.

James: E como ela era?

Elliot: Não era... Você tem que entender que não era para ser. Não é uma história de final de
filme, é uma história para quem não deveria amar.

[Silêncio]

James: Pela primeira vez eu vi cor nos olhos do Elliot. Na verdade, foi a primeira vez que eu
olhei para ele sem querer roubar as palavras que saiam da sua boca. Aquela palpitação de
quando ele se aproximou tinha voltado. Era um sentimento estranho. Talvez fosse o álcool!

Elliot: Você me deve o desafio.

James: Fiquei sem energia nenhuma para terminar essa noite.

Elliot [rindo]: Você não pode ficar triste, a história é minha.

James: Mas é inevitável, eu sou tão ladrão que roubo até as histórias que eu não queria.

Elliot: Me paga os juros, então.

James: Que juros?

[Elliot olha James, e os dois ficam se olhando por um tempo]

Elliot: Eu vou te dar uma história

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[Elliot se aproxima e beija James. Duke se mexe por um momento e levanta assustado olhando
para o lado contrário dos personagens]

Duke: Comunas! Estão vindo aí… cuidado com os comunas… [cai novamente bêbado no chão]

James: O que foi... [Elliot coloca o dedo na boca interrompendo-o]

[Elliot sai de cena]

James: Eu vou chamar esse momento de... Daisy.

Crônica 5 – Quando se perde um amor.

[ Elliot entra com um microfone em cena. Com calça jeans rasgada, com um casaco deixando o
peito desnudo e descalço. Parece sair de um acampamento hippie.]

Elliot: Peço licença a todos os envolvidos, boa noite a todos. Eu, um rebelde sem causa…
Mentira. Eu sou contra tudo e contra todos que não façam o coração vibrar. Eu tenho fogo nos
olhos e flores nas mãos. Eu oro pelo submarino amarelo, eu clamo por Dylan. E a ele eu
metralho essas palavras.

[ Trilha instrumental - Make You Feel My Love BOB DYLAN]

Elliot: Eu, um libertino do amor, soldado da paz, fui brutalmente atingido. “Eu poderia te
oferecer um caloroso abraço, para fazer você sentir... Quando a noite escurece, e as estrelas
aparecem... Não há ninguém para secar suas lágrimas. Mas eu poderia te segurar por um
milhão de anos para fazer você sentir… Eu sei que você ainda não se decidiu, mas saiba que eu
nunca lhe faria mal. Eu sei disso desde que nos conhecemos. Em minha mente, não há dúvidas,
eu sei o lugar onde você pertence”

[Levanta os braços aos céus interrompendo o discurso]

Elliot: O Elliot só queria provar para si mesmo que ele podia provar algo a alguém. Ele rasgou
sua primeira roupa e ganhou a rua quando seu pai, um bêbado louco, ameaçou bater nele,
depois que viu umas revistas suspeitas no fundo do armário. Mas que coisa, não? Logo no
fundo do armário, onde o rapaz jamais esteve. “Os jovens fazem amor, os velhos fazem gestos
obscenos.” Sejam bem vindos à Era de Aquário!

[Batidas de marchas por cima do instrumental da música]

Elliot: “Só a verdade é revolucionária.”

Soldado: [voz da coxia] Policial aponta cassetete a rapaz em Berlim!

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Elliot: “Decreto o estado de felicidade permanente.”

Soldado: [entrando em cena com uma flor apontada para Elliot] “Tu, camarada! Tu, que eu
desconhecia por detrás das turbulências. Tu, amordaçado, amedrontado, asfixiado, vem! Fala
conosco”.

Elliot: [apontando o microfone para soldado] “Nenhuma liberdade aos inimigos da liberdade.”
Aumenta o som das botas em marcha. Lá vem o amor diante do caos.

Soldado: “Houve um pai autoritário que reprimiu as crianças, deixando-as mudas.”

Elliot: Eles marcham contra nossos corpos.

Soldado: Seus corpos nos pertencem! Avante capitalismo, poder contra a minoria! Abaixo a
pederastia! Atirem!

[Batidas interrompem e apenas a trilha instrumental]

Elliot: “Eu passaria fome, eu ficaria triste e deprimido


Eu iria me arrastando avenida abaixo
Não há nada que eu não faria
Para fazer você sentir o meu amor”

Soldado: Eram muitos na praça. Jogavam pedras. Tínhamos medo de machucar alguém, ou nos
machucar. O capitão deu o sinal, e nós avançamos… Para matar. Baque no chão.

Elliot: Furo dentro do meu peito.

Soldado: Um tiro acidental.

Elliot: Meus braços desprenderam do corpo.

Soldado: Um jovem. É o que disseram.

[Entra trilha sonora. Elliot se aproxima lentamente do soldado, retirado da mão dele a flor, que
estava sendo empunhada como uma arma. Elliot cheira a rosa e a entrega de volta ao soldado,
que recebe de cabeça baixa, antes de sair correndo do palco, como se tivesse vergonha do que
estava prestes a fazer. Elliot se volta novamente para a plateia]

Elliot: Eu sei o lugar onde você pertence. O nome era...

Crônica 6 – O que muda quando tudo muda?

[Foco em James que aparece em cena enquanto Fade in em Elliot]

James: Miss Daisy.

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[Editor vai entrando em cena]

Editor: James Edward Lavoy... Essa história vai estampar a página dois! Era disso que eu estava
falando, rapaz. Uma verdadeira crônica nesses tempos de guerra fria. Está aprovadíssima!

James: Sério?

Editor: Miss Daisy vai fazer nossas vendas alavancarem. Não tenho dúvidas. Já vejo as
chamadas nas ruas. Esses jovens baderneiros vão finalmente ler algo que preste.

James: Não é para tanto, senhor...

Editor: Escreva um segundo!

James: Mas já? Não é melhor que esperemos que saia o primeiro e depois falamos sobre o
segundo?

Editor: Loucura. Não tenho tempo para isso. Tempo é dinheiro.

James: E por falar nisso, como ficamos?

Editor: Mas já? Não é melhor que esperemos que saia o primeiro e depois falamos sobre o
segundo?

James: É... [confuso]

Editor: Tá bom, passe na recepção e peça para Jane lhe fazer um cheque. Vamos publicar! Já!
Quero já!

[Editor sai de cena e Duke vem cruzando o palco em sintonia com o jornal nas mãos]

Duke: “E seus cabelos me lembravam as ondas do mar, tinha sol nos seus olhos, e minhas
mãos queriam afundar na areia do seu corpo. Ela no meio da multidão, e eu no meio do caos
que era estar ali, diante do desconhecido. Os gritos de guerra foram selados pela paz dos seus
passos vindo até mim.” Eu estou em prantos, Jaiminho do céu! Você vai pegar todas as
belezuras que quiser a partir de agora. Inveja tenho eu, de não ter escrito isso! O máximo que
eu escrevi na vida foi: “Darlie, meu anjo, seus caracóis de cabelos são lentos como lesmas
vindo me encontrar”. [rindo] É demais, né, Jaiminho?

James: Obrigado Duke, você é ótimo.

Duke: Vamos comemorar sua primeira publicação no Daily. Eu pago o conhaque e os charutos,
vamos pegar os melhores de todos.

James: Não precisa, Duke, eu fico feliz com os agradecimentos.

Duke: Te cale, homem, um Duke de verdade é um homem de palavra. Vou avisar a Darlie que
hoje teremos um clube dos homens de comemoração ao nosso poeta.

James: Eu não tenho escolha, não é mesmo?

Duke: Nem sei do que fala, se arrume, que eu passo pra te buscar às cinco!

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[Duke vai saindo de cena animado]

James: Nossa... Um momento de silêncio, obrigado!

[James vai posicionando sua mesa com a máquina de escrever e senta na cadeira e apenas fica
observando por um momento em silêncio]

James: “Como você se sente, Sir James?” Ah, muito... Confuso, obrigado. “Nos fale mais dessa
confusão”. Eu acho que, neste exato momento, eu conversaria por horas com Shakespeare
para entender aquela célebre frase: “ser ou não ser, eis a questão.” Talvez, na cabeça de um
criador, lá no íntimo dela, as coisas estejam definidas. Digo, não confusas. E no corpo desse
criador há um rascunho, o coração sempre é a cabeça, mas o corpo é um... Apêndice. É um
bônus. E meu corpo nesse momento se sente numa construção de algo que ele não pode
explicar, mas que ele sente, a falta... O que é que está acontecendo comigo?

[Começa a escrever várias coisas na máquina e à medida que for escrevendo vai pegando os
papéis e jogando fora. A ação é repetida por algum tempo até que, numa explosão de
sentimentos, ele interrompe. Levanta e vai recolhendo os papéis amassados no chão. Pega um
pedaço do papel e começa a ler]

James: “Foi aí que eu me vi pensando nas palavras de Daisy, de que, quando perdemos um
amor, é como se fosse embora junto uma parte nossa. É um reset natural da vida. Nem toda
fase de um jogo pode ser passada de primeira. Ela, mesmo quando longe, insistia em dar voz à
minha cabeça. Quando me via naquele quarto, tudo que eu tinha era da cor dos seus olhos. E o
sol lá fora na janela era... Certeza do que sentia.”

[Guarda o papel]

James: Ele me beijou. É porque ele estava bêbado. Mas aquilo não era um beijo de quem
estava bêbado. Racionalmente ele é assim, beija as pessoas. Ele é um riponga, que luta por
causas perdidas e prega o amor livre. É isso e ponto! Mas e por que ele me disse que queria
me dar uma história? Que tipo de história seria essa? Ei! Eu não sou um… viadinho. Para, estou
ficando doido, estou perdendo horas falando comigo mesmo, e esse diálogo, digo, monólogo,
não vai me levar a nada. Nenhum lugar. A não ser aquela boca quente, macia e... Meu Deus, o
que eu estou falando? “A interpretação é o que dói, não o ato em si” (Aaron Beck)

[Silêncio e sai de cena]

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Crônica 7 – Guerra Fria.

[Duke caminhando de um lado para o outro, observando os papéis em uma das mãos, na outra
segurando um charuto]

Duke: Não, isso não pode estar acontecendo, Darlene. Isso é muito obscuro de entender. Essas
contas. Meus pais não iriam esconder isso de mim. Eu sou o Dukão deles. Aposto que você
está fazendo isso pra me desafiar a paciência. Escute, não me faça aborrecer. Depois eu olho
isso. Esses papéis mentem. O correio veio enganado. Eles erram.

[Coloca os papéis no bolso e para de frente por um tempo apenas fumando charuto.]

Duke: Meus pais se divorciaram. Eu achei que era só uma viagem prolongada. Eu sou um
trouxa mesmo.

[Um jornal é lançado em cena e Duke vai pegar]

Duke: Não se fazem mais entregadores de jornais como antigamente. É capaz de uma hora
acertar minha cabeça com essas entregas. Bundas frouxas mesmo.

[Abre o jornal e se depara com a crônica de James no Jornal Daily]

Duke: “A revolução do teu nome na minha guerra pessoal” Uma crônica de James Edward
Lavoy. Texto número quatro. Texto número quatro? O James já lançou isso tudo? Nossa. Uma
coluna como essa nesse jornal…

[Som de telefone discando e chamadas até James atender, personagem aparece no palco]

James: Alô?

Duke: É o Duke, James.

James: Ah. Oi, Duke. Tudo...

Duke: Quatro crônicas no Daily e você só me mostrou a primeira? O que está acontecendo,
Jaiminho?

James: É… Por que eu teria que te mostrar, Duke? Não entendi.

Duke: Porque eu sou seu melhor amigo e sempre dou aval sobre seus textos!

James: Duke... Está tudo bem?

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Duke: Está tudo péssimo, James. Meus pais estão divorciados.

James: Como assim? Eles não estavam viajando?

Duke: ÉÉÉ! Está vendo, Darlie? Eu não sou tão burro assim, até o Jaiminho também achou que
eles só estavam viajando.

James: Duke, meu amigo, que péssima notícia. Como você está reagindo com tudo isso? Como
foi?

Duke: Não quero falar disso, Jaiminho. Meu peito está em prantos. Escreva sobre isso! “Meu
peito está fragmentado por dois corações divorciados.” Vai vender mais que as histórias de
amor da Miss Daisy.

James: Duke...

Duke: E além disso, vem essa traição sua. Como pode? Eu te pedi para me indicar a algum
cargo no jornal e você escreve três crônicas além da que aprovamos juntos? Está com medo
que eu peça dinheiro, seu pão duro? Eu não preciso. E digo mais, tem alguns rascunhos aqui e
eu vou queimá-los.

James: Acho que você está confundindo um pouco as coisas, Duke. Nunca combinamos ou
tivemos essa relação de aprovar textos meus juntos. Você sabe disso.

Duke: Traidor! Meu pai que lhe indicou.

James: Mas não foi ele que fez o trabalho! Duke, é melhor desligar essa ligação, você não está
bem. Desculpa pela grosseria mas é que eu também tenho passado por algumas coisas.

Duke: Pouco me importa, você sempre foi assim mesmo. Sua família sempre se aproveitou da
minha!

[Telefone desliga e James sai de cena]

Duke: Vou dizer que fui eu que desliguei. Que afronta! Eu sempre defendi aquele quatro olhos,
minha vontade era de ter deixado o Kyle ter amassado a cabeça dele no colegial. Mamãe
sempre disse que iriam me invejar. Como pode? Me sinto traído. Não, Darlene, não estou
exagerando, me senti bofeteado na face! Aposto que ele não quer dividir a fama ou o dinheiro
comigo. Logo eu, que sempre ajudei aquele bunda mole! É um papo furado que não me cabe
mais. Estou fora de mim! Alguém me segura, que eu vou beber todo o conhaque dessa casa!
Pare já, Darlene. Saia da frente antes que eu me aborreça mais!

[Duke acende o charuto mais uma vez e vai tirando do bolso um cantil]

Duke: Eu acho que, no fundo, o Duke sempre soube que sua vida era fantasia em dose extra.
Seus pais trocavam o afeto pelo dinheiro, e a solidão brincava com ele desde cedo. Era uma
junção perigosa, autodestrutiva. O Duke era uma bomba relógio. [Bebe conhaque] A cada gole
desse conhaque entrando no corpo dele, era mais fogo que ele queria cuspir. A verdade era

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que o que doía no ego do rapaz era a vontade de ser o amigo. E o James era um dos únicos
amigos, e o único que sabia a verdade sobre a Darlene.

[Duke apaga o charuto, pega o jornal mais uma vez e amassa o mesmo]

Duke: Darlene... Pode tirar a mesa, eu não vou jantar hoje... Pode tirar o final de semana de
folga, não vou precisar de você. Vou dar uma volta, boa noite.

[Duke tira com o microfone da rádio em mãos]

Duke: Atenção! Isso mesmo, atenção. A rádio pirata acaba de ser pirateada por mim,
autointitulado Senhor D., o rei das paixões ardentes e dos corações pegando fogo! E hoje nós
vamos convidar você para ser minha nova paixão...

[Entra Elliot]

Elliot: Duke? Você está ficando maluco? Você entrou no ar?

Duke: estava no ar? Achei que só estava ensaiando. Santo Cristo, Elli, me perdoe. Mas tenho
certeza que vai ser sua melhor audiência.

Elliot(rindo): você é muito malucão mesmo. Posso saber o motivo dessa visita inesperada?

Duke: Eu vim ver se Jaiminho estava aqui.

Elliot: E por que ele estaria aqui?

Duke: Ah, você sabe, ele adora ser amigo dos populares.

Elliot: Mas eu sou um bicho grilo. Nada de popular.

Duke: Eu aposto que você deve pegar todas as belezuras dessa cidade. Certo?

Elliot: Errado!

Duke: Duvido! Ainda mais com essa voz.

Elliot: O que tem minha voz?

Duke: (rindo): e esse cabelo? Aposto que as meninas ficam maluquinhas!

Elliot (rindo): você tá realmente maluco. Até parece (joga cabelos brincando com Duke).

[Os dois ficam rindo até que Duke se aproxima e beija Elliot, que se afasta e fica sem reação].

Elliot: Duke? Você é…

Duke: Ah... brincadeira! Era só uma brincadeira para zoar com a sua cara. Você devia ter visto.
Foi muito engraçado. Você é ótimo, Elliot! Darlie precisa muito conhecer você. Bom, eu preciso
ir embora.
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[Duke vai saindo de cena enquanto uma trilha inicia]

Crônica 8 – “(...) Quanto mais faço a revolução, mais tenho vontade de fazer amor.”

[Uma voz na rádio vai noticiando]

Radialista: “É proibido proibir” Gritavam os estudantes no meio do caos. A França


vivenciou hoje uma revolta estudantil jamais vista na história. A capital Francesa foi
tomada pelo subterrâneo da sociedade, um verdadeiro campo minado. Carros foram
danificados e houve confronto direto com policiais.” (...)

[Mudança de estação de rádio]

Radialista: “Maio de 1968, Paris viveu uma onda de protestos que movimentaram nove
milhões de pessoas. A origem veio de uma série de conflitos entre estudantes e
autoridades da Universidade de Paris. Alunos foram ameaçados de expulsão e isso foi
combustível para os jovens ganharem força num protesto reprimido pela polícia
francesa, a violência foi tamanha que nos dias seguintes as ruas do país viraram
verdadeiros campos de guerra...”

[Mudança de estação de rádio. Vinheta e dois atores entram em cena fazendo as vozes]

Narrador: Era um dia chuvoso na cidade de Toille. Um céu ora reluzido por relâmpagos,
ora num imenso escuro. E de uma das casas, uma vela acendia a janela solitária de frente
para uma praça. O rapaz, cansado, por trás da janela, olhava para a lua, escondida em
algum lugar por trás das nuvens.

Solitário: Eu sei que está aí em algum lugar.

Narrador: Disse o rapaz.

Solitário: Essas lágrimas que derruba do céu são para que possa colocar meu barco no
teu oceano e ir te buscar. Eu sei que está aí em algum lugar.

[James entra com um copo em mãos]

James: Ah pelo amor de Santo Cristo, o que se passa com essa rádio?

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Narrador: O solitário agora apaixonado, se recusava por muito tempo a aceitar os
sintomas que lhe passavam no corpo. O calor, a sensibilidade e a irritação.

James: Quem escreveu isso?

Narrador: A chuva por um momento cessou e ali adiante um pequeno feixe de luz clareou
o solitário.

Solitário: Quanto não te vejo me remexo, quando posso vê-lo o que habita em mim
adormece. Qual segredo, que não você, esconde de mim? Que remédio é esse que me
faz (...)

[James se irrita e desliga o rádio]

James: Meus ouvidos agradecem. Quase vomitei golfinhos e passarinhos azuis com olhos
cintilantes. Sim, estou irritado e falando sozinho mais uma vez. Queria estar em Paris,
ganhando as ruas, fazendo histórias, e não me apodrecendo nesses contos de romance que
me enlouquecem. Queria ver sangue, policia me batendo, hippies usando drogas, presidentes
caindo, mas tudo que eu vejo são beijos, abraços, sorrisos, letras de amor, o Ellio... Elliot?

[Elliot entra em cena e os dois paralisam]

James: Já fazia um tempo que eu não via aquele rosto. Em alguns momentos eu até me via me
esforçando para lembrar da voz, da qual que eu tanto fugia. Evitava até ouvir a rádio pirata
dele.

Elliot: Eu tô há seis semanas sem ver essa pessoa. Muito ocupado eu estava, lógico... Que é
mentira. Fiquei com vergonha da mancada que eu dei.

James: Oi.

Elliot: Oi, Senhor Cronista Famoso do Daily. Saiu da primeira, né? Não se fala outra coisa. Miss
Daisy.

James [rindo]: Modéstia à parte, eu mereço.

Elliot: É? E o prêmio da Humildade do Ano já saiu e não foi pra você, né?

James: Essa história me tirou muito. Então eu merecia. E é uma ponte para chegar aonde eu
quero.

Elliot: E onde é?

James: Quero escrever um livro de contos sobre a vida.

Elliot: Que vida?

James: A… Vida. Da rua. "A poesia está na rua", já diria o poeta.

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Elliot: Parabéns, queria ser mais visionário assim às vezes.

James: E o que te falta?

Elliot: Acho que vencer a guerra primeiro.

James: Bom... Difícil, né? Por que você não se apresenta pro Vietnã? Aí, chegando lá, faz uma
revolução e acaba com tudo.

Elliot [rindo]: Ótimo plano. Mas eu não falo só desse tipo de guerra. Falo das minhas próprias,
pessoais.

James: Ah, essas guerras vêm, vão e voltam. Só esperam o cessar fogo cair.

Elliot: Tem razão... Bom, eu vim aqui te pedir desculpas pelo nosso último encontro. Eu acho
que tinha ultrapassado o nível alcoólico permitido para evitar vergonhas alheias.

James: Todo mundo bebeu muito, né? Mas pra falar a verdade não sei porque pede desculpas.
Eu nem lembro direito. Só lembro que estávamos rindo muito do Duke.

Elliot: E como ele está?

James: De birra. Sem falar comigo. Tá passando por uns maus bocados também. Os pais se
divorciaram. Eu não tenho muita sensibilidade para lidar com essas coisas de relações.

Elliot: Papo firme? Essa história de relação é para fugir da responsabilidade de se sentir
responsável por alguém. Seja familiar, amigo ou namoro.

James: Papo furado. Você não sabe. Transtornos sociais existem para contar história!

Elliot: Porque não pede desculpas pro Duke?

James: Porque eu não fiz mal a ele.

Elliot: Porque não vai atrás para explicar?

James: Elliot, você veio me ensinar sobre relações?

[Silêncio]

Elliot: Sir James, você me intriga. Tem razão, eu não vim aqui para te ensinar sobre relações.
Na verdade, eu tenho um presente para você. Quem sabe não te abre a cabeça.

James: O que é? [Desconfiando] Espera. Você não trouxe um LSD, né?

Elliot: [rindo] Não. É outra coisa, mas quase acertou.

James: Sério?

Elliot: Na verdade eu chamo de passagem para Marte.

James: É alguma coisa que a polícia pode nos prender?

Elliot: Onde ficou aquele ladrão de histórias, “duca”, tremendão, que topava tudo?

James: Acho que eu não conheci essa pessoa.

Elliot: Topa? Uma passagem para Marte?


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James: Tem volta?

Elliot: Você que escolhe.

James: Eu vou fechar as janelas de casa.

Elliot: E aproveita e chama os bombeiros.

James: Por que eu tenho que chamar bombeiro?

Elliot: Eu estou de papo furado contigo, cara.

[Elliot tira um cigarro de maconha do bolso e acende]

Elliot: [depois de fumar] Sua vez, ladrão.

James: É só fumar?

Elliot: Não, coloca debaixo da língua e espera queimar. [Rindo]

James: Você é muito idiota. [Coloca o cigarro na boca, espera um tempo, tosse e fuma mais
uma vez]

Elliot: Vou colocar uma música.

James: Olha, passagem na primeira classe, então. Com direito a música.

Elliot: E a uma ótima companhia.

[Trilha sonora, em som ambiente]

James: A minha. [rindo]

Elliot: Como é isso? Com as palavras?

James: Escrever?

Elliot: É

James: É uma forma de comunicar o que eu não consigo. Ou seja... Muita coisa. Eu falo sério
quando digo que não tenho muita sensibilidade quando abro a boca. O contrário de quando
escrevo. São duas pessoas dentro de mim.

Elliot: E elas querem o mesmo?

James: Elas querem quase tudo. Mas eu gosto mais do meu “eu máquina de escrever”.

Elliot: Eu conheço a Miss Daisy?

James: [um trago mais lento no cigarro] De certa forma, sim.

Elliot: E como vocês se conheceram?

James: É um programa de entrevistas agora?

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Elliot: É. Um interrogatório na verdade. Para você entrar em terras marcianas, precisa tomar
um choque de verdade.

James: Pode crer… [rindo] Daisy é a grande paixão de uma das minhas histórias favoritas.

Elliot: Ah-há! Então não existe uma Daisy.

James: Ah-há! Existe sim. Ela é tudo que o grande Gatsby queria. Já leu? É meu livro favorito.
Ela é apaixonada por uma visão financeira de alguém no qual o Gatsby se transforma para ser
aceito por ela. Os amores materiais e imateriais.

Elliot: Então tudo é ficção?

James: Não. É uma adaptação. Posso te contar um segredo?

Elliot: Eu preciso me esconder da polícia?

James: [rindo] De certa forma sim, rapaz! Eu escrevo textos para quem não deveria amar.

[Silêncio]

Elliot: Uma crônica para quem não deveria amar?

James: Isso.

Elliot: Acho que você está chapado.

James: Acho que já cheguei em Marte, e eu estou adorando. Aqui não se pode mais mentir.

Elliot [rindo]: Se você pudesse contar uma história agora, roubaria ela de alguém?

James: Eu daria uma, minha.

Elliot: Sobre qual história Sir James Lavoy escreveria?

[James vai até a máquina de escrever com o cigarro e começa a escrever]

James: Eu escreveria sobre como seus sapatos e meias ficaram espalhados pelo meu quarto.

Elliot: Sério?

James [digitando]: Sobre como a sua mão deslizou pelo zíper da calça, abrindo ela.

[Elliot olha surpreso para James, que retribui, os dois se olham por um longo momento, até que
James vai tirando os sapatos, as meias e abrindo o zíper da calça]

Elliot: A calça foi ficando pelo caminho, e a camisa também. [Tira a camisa]

James: Seu peito estava completamente nu.

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Elliot: Elliot estava de cueca.

James: Daisy estava de cueca, reluzindo como a luz da lua. Parecia pintura. Pintura das minhas
letras. Seu corpo era perfeito, exceto pelo pequeno detalhe de estar longe das minhas mãos.

Elliot: [se aproximando de James]: Como essa história continua?

[James se levanta e vai se aproximando de Elliot]

James: Reticências.

[Elliot se aproxima de James e lhe dá um beijo enquanto suas mãos vão tocando o corpo e
tirando a roupa dele. As mãos dos dois parecem deslizar, como numa dança. Os dois vão se
beijando, saindo aos poucos de cena, foco acesso na mesa com a máquina de escrever. Quando
a cena estiver vazia, Duke vai entrando no foco da máquina e se aproximando do texto que
estava escrito.]

Duke: Meu Deus... James.

[Blackout]

Crônica 9 – “As paredes têm ouvidos, seus ouvidos têm paredes”

[Duke está sentado atônito de frente para a máquina de escrever. Editor vai entrando em cena]

Editor: Meu caro rapaz, essa é uma alegação muito séria.

Duke: Senhor, eu estou atônito, e olha que eu sempre quis usar essa palavra. Eu vi com esses
olhos.

Editor: E presumo que veio até mim...

Duke: Miss Daisy é uma farsa. É um conto homossexual.

Editor Daisy é um...

Duke: Elliot. Um homem.

Editor: Embora eu ache isso uma lástima e preocupante, o público não precisa saber. Alguém
mais sabe disso?

Duke: Veja, meu caro senhor, as notícias são como os jornais, são entregues de casa em casa
em poucas horas. E se o jornal for acusado de propagar textos com doutrinas transviadas? E se

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o James estiver a um passo de utilizar esse canal de comunicação para ajudar na publicidade
desses ritos que os hippies defendem?

Editor: Me parece que há uma divergência entre os fatos Duke. Esse rapaz veio parar no meu
jornal por indicação do seu pai, sob sua aprovação...

Duke: Sabe que meu pai injetou muito dinheiro aqui dentro, né?

Editor: Duke... Isso não está acontecendo. São coisas da sua cabeça... Eu sei o que aconteceu
recentemente com seus pais. E esse hálito… É álcool? Conhaque, presumo?

Duke: Me embebedei para esquecer o que vi.

Editor: Pois é. Vou mandar um táxi levar você até em casa. Durma e conversamos logo que
estiver melhor.

Duke: Você acha que eu estou mentindo, certo?

Editor: Acho que você precisa descansar. Podemos até falar sobre um estágio assim que
estiver melhor.

Duke: Eu quero o espaço do James!

Editor: Eu vou entender como uma lástima que sua relação com o James tenha chegado nesse
nível, meu rapaz.

Duke: [tirando o cantil e bebendo] Aquele traidor, bicha, desgraçado! Aposto que sabia que
meus pais estavam separados também!

Editor [tirando o papel das mãos de Duke]: Seus pais não precisam de outro problema, rapaz!
Eu acho melhor você ir embora.

[Vai tentando retirar Duke, quase a força, e assim que consegue retorna a cena. Som de
telefone discando e Editor parado a frente.]

Editor: Alô? Senhor... Temos um problema.

[Vai saindo de cena enquanto James vai entrando, usando apenas pijamas. Trilha sonora -
Don't Let Me Down- Beatles. James entra desconcertado, fingindo não ver Elliot, que entra
logo atrás]

Elliot: Bom dia, James? [os dois se olham]

James: Eu... Estou um pouco tímido com a situação.

Elliot: Não me pareceu nada tímido ontem.

James: Não vamos falar disso.

Elliot: Sua primeira vez?

James: Eu nunca... Eu não sou...

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Elliot: Ser humano?

James: Gay.

Elliot: [rindo] Você beijou um corpo, não o sexo.

James: Eu acho que ainda não entendo disso. [rindo sem graça]

Elliot: Eu sabia que você ia me beijar no dia que te vi no meio da multidão com aquele
caderno. Estava escrito “Quero beijar um rapaz.”

James: Ah, cala a boca! Elliot… Posso te pedir um favor? Não vamos comentar sobre isso com
ninguém, tá?

Elliot: Por quê?

James: O lance no Jornal, tenho receio de que...

[O telefone começa a tocar, interrompendo James, que vai atender]

James: Alô? Quem fala? Senhor... Nossa, bom dia também! Há alguma coisa errada, chefe? Ele
o quê?!

[James revira os papéis em cima de sua mesa, procurando algo]

James: Ok… Sim, Senhor. Estarei lá. [desliga o telefone]

Elliot: O que aconteceu?

James [indo até a máquina de escrever]: O Duke.

Elliot: O que aconteceu com ele?

James [sério]: Ele viu a gente.

Elliot: Como?

James: Não sei.

Elliot: Quem era no telefone?

James: O Duke levou meu rascunho que estava aqui. Ele esteve aqui, deve ter visto a gente... E
foi até o jornal, falou com o editor.

Elliot: Mas por que ele faria isso?

James: Não sei ... Ele está irritado comigo.

Elliot: Mas... E aí?

James: Eu não sei, Elliot. Me chamaram para ir lá.

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Elliot: Bem, é sua vida pessoal. Eles não têm muito o que dizer sobre isso.

James: Não, Elliot. É minha vida inteira, entende? É a Miss Daisy, é tudo que eu tenho de
pretensão, são meus pais, é a porra de um reconhecimento pelo que eu escrevo, é você!

Elliot: James, calma, não precisa levar tudo tão a sério.

James: Levar tão a sério?! Não precisa levar tão a sério para você, que não tem pretensão de
ser alguém! Eu não fico nas ruas brincando de guerrear!

Elliot: Brincando de guerrear? É isso que você pensa sobre mim?

James: Desculpa, não era isso…

Elliot: James… Aquela “guerra” onde você me conheceu parecia uma brincadeira para você?
Enquanto você tem “pretensão” pelo seu ego, eu luto diariamente pelos direitos de quem é
massacrado pela capital. É uma luta ideológica para que um dia, quem sabe, quando souberem
que você beijou um rapaz, te ajude a não ser violentado na rua! E se você pode escrever o que
você escreve hoje em dia, sobre revoluções e amores, é porque lá atrás alguém brincou de
fazer “guerra”! Ótimo dia, James, vou te dar o tempo de se tornar mais babaca ainda!

[Elliot sai de cena]

Crônica 10 – Adeus Miss Daisy

[Rádio sintonizando enquanto Editor entra em cena com um charuto e o jornal na mão. Senta e
fica por um tempo lendo o jornal. Várias estações da rádio vão surgindo]

Estação: A União Soviética foi acusada de esconder arsenal nuclear pelos EUA.

(...)

“A mais nova dos Beatles”

(...)

“O acordo com os trabalhadores foi essencial para o fim da greve”

(...)

“Há uma multidão em frente à Praça. Há relatos de tiros e bombas por parte da Polícia.
Nenhuma informação sobre feridos ainda.”

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Editor: Que tempos, senhores. Que tempos! Sejam bem vindos. Me chamo Edward Mikkelsen.
Como sabem, sou editor-chefe do Daily há anos, e sempre colaboramos com o avanço da
informação de crises e informações confidenciais às autoridades. Por isso, convoquei os
senhores para essa reunião.

[Volta a sentar]

Edward: Bom, algo me preocupa. Durante a semana fomos notificados pelo Governo sobre a
necessidade de passar informações que possam levar aos espiões soviéticos. Nós sabemos que
a iminência de guerra é real. Mas e se, por exemplo, os soviéticos estiverem por trás dessas
greves, passeatas, revoluções? Isso divide a sociedade. Ou também pode ser um disfarce para
avançarmos nas evoluções de nossas defesas, lógico. Enfim, resumindo, nós queremos sempre
poder passar informações valiosas para o Governo...

[Olha atentamente como se falassem com ele]

Edward Certo... Bom. Tem algo a mais. Nós sabemos que... Com essa onda hippie, os desvios
sexuais... Bem, como posso dizer? Foram… intensificados. E eu recebi uma denúncia que, de
certa forma, procede.

[Foco de luz e entra Duke]

Duke: Senhor... Eu peguei o James aos beijos e toques com um revolucionista. Inclusive, ele
tem uma rádio pirata, deve passar informações aos espiões soviéticos.

(...)

Duke: Senhor, eu estou atônito, e olha que eu sempre quis usar essa palavra. Eu vi com esses
olhos.

(...)

Duke: Miss Daisy é uma farsa. É um conto homossexual.

(...)

Duke: Elliot! Um homem!

[Foco se apaga e Duke sai]

Eduard: Jamais desconfiei que pudesse haver essa ligação entre nosso cronista e esse possível
terrorista. Mas achei de bom modo que soubessem que essa informação veio até mim. Nesse
documento que entreguei aos senhores, estão todos os dados, endereços, tudo que tenho.

[Sons de marcha, luz vai apagando e Edward saindo de cena, palco quase na penumbra, sons
de multidão, tiros, gritaria.]

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Estação: Há uma onda de protestos pelo País

(...)

“Uma morte foi confirmada”

(...)

“Dezenas de feridos”.

(...)

“A polícia prendeu 34 pessoas acusadas de incitar a violência e dano ao patrimônio público”

[Duke, James e Edward entram na penumbra enquanto os sons da multidão continuam. Os três
atores ficam parados no centro, dando apenas voz às personagens]

Duke: Darlie, nós vamos nos mudar!

Edward: É com pesar que não posso deixar que continue...

James: Senhor, calma. Eu posso explicar.

Duke: Fui promovido.

Edward: Já temos um substituto e, como o sucesso é grande, entraremos com outra história
no Lugar.

Duke: Miss Darlie.

James: Isso não pode estar acontecendo.

Edward: Não podemos respeitar esse tipo de comportamento, podemos ser acusados de
desviantes.

James: Isso é patético.

Duke: Meus pais vão ficar honrados.

Edward: Lamentamos.

Duke: Lamento por ele.

James: O que você fez?!

[Som de tiro e blackout. Chuva ao fundo. Entra James e senta na cadeira.]

James: Eu só quero dizer aos senhores que eu tenho uma última história... Publiquem.

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[James começa a dedilhar a máquina de escrever como se estivesse tocando um piano. Trilha
sonora da década de 60 ecoa na cena Os movimentos são quase coreografados, como se fosse
uma dança entre o texto a ser escrito e o personagem. Entra Elliot num foco de luz]

Elliot: Eu nunca me apaixonei por um elefante, nem por um punhado de pássaros. Eu não
abracei os cachorros da rua e muito menos gostei de uma bicicleta. Não aprendi a gostar de
pessoas, animais ou coisas que me fizessem vibrar a vida. Eu acho que o amor não se aprende.
É como grito contido no peito, uma hora sai. Eu bato forte aqui dentro de mim para sair por ti
o que nunca aprendi.

James: Ele tinha o peito forte, punho em mãos… E tinha mais uma luta pela frente. Era, mal
sabíamos...

Elliot: A última vez.

[Som de tiro, Elliot tira uma rosa do bolso e coloca na cabeça.]

Elliot: Eu tenho flores na cabeça, mas elas jorram sangue.

[Foco de Elliot vai se apagando. Som de multidão vai ecoando]

James: Não existe revolução sem dor. E a dor que cabe em mim é o suficiente para florescer o
que eu não tinha.

- “Desconfiem dos chefes e dos heróis. Desconfiem de todas as pessoas de fora que
tentam impor a vocês suas estruturas. Façam o que tenham vontade de fazer. Sejam o
que vocês são. Se não sabem o que são, descubram.”

[James termina de escrever na máquina, tira o papel, retira do bolso uma rosa e a coloca no
peito. Blackout]

FIM

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