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12/08/2019 A Igreja alguma vez já proibiu a leitura da Bíblia?

De onde vem essa acusação, afinal, tão repetida pelos protestantes? É


verdade que a Igreja proibiu, durante um tempo, que os seus fiéis
entrassem em contato com as Sagradas Escrituras?

Uma das acusações mais comuns contra a Igreja Católica é a de que ela teria proibido aos
leigos a leitura das Sagradas Escrituras. Acusação infundada, pois, o que sempre se deu foi
uma orientação no sentido de que os textos bíblicos fossem lidos sob a assistência do
Magistério. Portanto, são posturas bem diferentes.

Historicamente, durante o primeiro milênio consolidou-se na Igreja a salutar prática da


lectio divina, ou seja, da leitura orante da Sagrada Escritura. Ela era praticada pelo clero,
mas foi estendida também aos leigos. A lectio divina foi de tão grande importância que o
Catecismo destaca:

"A Igreja exorta todos os fiéis cristãos, com veemência e de modo peculiar... a que
pela frequente leitura das divinas Escrituras aprendam a eminente ciência de Jesus
Cristo... Lembre-se, porém, de que a leitura da sagrada Escritura deve ser
acompanhada pela oração, a fim de que se estabeleça o colóquio entre Deus e o
homem; pois a Ele falamos quando rezamos. A Ele ouvimos quando lemos os
divinos oráculos.
Os padres espirituais, (...) resumem assim as disposições do coração alimentado
pela Palavra de Deus na oração: 'Procurai pela leitura, e encontrareis meditando,
batei orando, e vos será aberto pela contemplação." (CIC 2653-2654)

Essa disposição sofreu um duro golpe no início do século XII, na França, com o surgimento
da heresia cátara. Tal heresia foi uma mistura de outros pensamentos heréticos,
principalmente maniqueísta e gnóstico. Em sua obra "A Igreja das Catedrais e das
Cruzadas", Daniel-Rops explica o cerne da heresia dizendo:

"O essencial continua sendo o dualismo. No mundo tal como vemos, debatem-se
dois princípios: Perfeito e Imperfeito, Absoluto e Relativo, Eterno e Temporal, Bem e
Mal, Espírito e Matéria. Por que esta oposição? Porque o mundo é o campo de

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batalha onde lutam dois deuses, o do Bem e do Mal, aqueles que os iranianos
chamavam Hormuz e Ahriman. Sobre a natureza do primeiro, todos estão de acordo:
é infinitamente puro, infinitamente perfeito, infinitamente bom, Espírito na sua
plenitude. Quanto à do segundo, que eles chamam Satanás, Lucibel ou Lúcifer, as
opiniões divergem: uns afirmam que é verdadeiramente outro deus, totalmente
estranho ao deus bom, mas outros concebem-no como uma criatura que o orgulho
lançou na revolta e no mal." (p. 589)

Os cátaros criam em dois deuses e, para eles, o mundo visível seria uma criação do deus
mau, pois é onde existe a matéria (corruptível), portanto, também o pecado. O homem teria
sido criado do nada e Lúcifer teria encerrado nos corpos de barro alguns "espíritos puros".
Jesus teria ensinado a todos que é "preciso renunciar à terra, à carne, à vida, para se poder
voltar a ser um espírito puro e reencontrar a pátria perdida ou céu". (p. 590). Daniel-Rops é
enfático ao dizer que "não é necessário sublinhar até que ponto uma doutrina como esta se
opõe ao cristianismo."

Por crerem que em cada criança nascida "o espírito mau encerra no seu corpo a alma de um
anjo decaído", os catáros eram contrários à maternidade. Para eles, a mulher grávida estava
"possuída" e, por gerar matéria, seria a fonte de todo mal. Por causa disso, matavam-nas e
quando um crime dessa natureza era descoberto, a população, contrária a ele, acabava por
linchar os assassinos.

Os heréticos, como se vê, não eram pessoas pacíficas, mas sim, bastante violentas, capazes
de gerar uma verdadeira convulsão social - o que fizeram de fato -, causando um grande
prejuízo, não só material, mas em vidas humanas. Eles invadiam propriedades, saqueavam,
ateavam fogo e matavam quem se opunha à heresia por eles defendida.

Toda essa celeuma iniciou-se com a leitura e a interpretação das Sagradas Escrituras sem a
assistência do Magistério. Por isso, houve a necessidade de se defender a leitura da Bíblia
conforme ele. O Papa Inocêncio III, na carta denominada "Cum ex iniuncto" aos habitantes
de Metz, datada de 12 de julho de 1199, enfatiza a necessidade do Magistério da Igreja para
explicar a Sagrada Escritura:

"O nosso venerável irmão, o bispo de Metz, nos fez saber com suas cartas que, seja
na diocese, seja na cidade de Metz, uma considerável multidão de leigos e de
mulheres, de certo modo atraída pelo desejo das Escrituras, fez traduzir em língua
francesa os Evangelhos, as cartas de Paulo, o Saltério, os "Moralia in Iob", de
Gregório Magno e diversos outros livros; … assim, porém, aconteceu que em
assembleias secretas os leigos e as mulheres presumem arrotar entre si tais coisas
e pregar uns aos outros, e nem aceitam a companhia daqueles que não se associam
a tais coisas... Alguns dentre eles desdenham até a simplicidade de seus sacerdotes;
e, quando por meio destes lhes é oferecida a palavra salvação, às escondidas
murmuram que eles têm coisa melhor nos seus escritos e que podem disso falar

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com maior sabedoria.


Também se o desejo de entender as divinas Escrituras e o zelo de exortar em
conformidade com estas não mereça repreensão, mas antes, recomendação, tais
porém parecem merecer censura, porque celebram pequenas reuniões próprias,
usurpam para si o ofício da pregação, zombam da simplicidade dos sacerdotes e
recusam a companhia daqueles que não se associam a tais coisas. Deus, de fato,
odeia a tal ponto as obras das trevas que aos Apóstolos recomendou e disse: "Aquilo
que eu vos digo nas trevas, dizei-o na luz, e aquilo que escutais ao pé do ouvido,
pregai-o sobre os tetos" (Mt 10,27); dado com isso a conhecer de modo manifesto que
a pregação evangélica deve ser proposta não em conventículos escondidos, como
fazem os hereges, mas publicamente na Igreja, de acordo com o costume católico...
Os abscônditos mistérios da fé não devem, porém, ser colocados à disposição de
todos sem distinção, dado que não podem ser compreendidos de modo indistinto
por todos, mas somente por aqueles que podem acolhê-los com uma inteligência
crente. Por isso, o Apóstolo diz aos simples: "Como recém-nascidos em Cristo vos
dei leite de beber, não alimento sólido" (1 Cor 3,2)...
De fato, a profundidade da divina Escritura é tão grande que não só os iletrados, mas
também os sábios e os doutores não estão plenamente à altura de perscrutar seu
significado. Por isso a Escritura diz: "Muitos fracassaram no afã de prescrutar" (Sl
64,7). Por isso, naquele tempo foi corretamente estabelecido na lei divina que o
animal que tivesse tocado o monte Sinai fosse apedrejado, para que evidentemente
um simples qualquer ou alguém sem instrução não presuma penetrar na
sublimidade da sagrada Escritura ou pregá-la a outros. Está escrito, de fato: "Não
procures para ti o que te ultrapassa". Por isso diz o Apóstolo: "Não procureis saber
mais do que convém saber, mas saber com sobriedade".
Como de fato são muitos os membros do corpo, mas nem todos os membros têm a
mesma função, assim são muitas as categorias na Igreja, mas nem todas têm o
mesmo encargo, pois segundo o Apóstolo, "a alguns, o Senhor estabeleceu apóstolos,
a outros, profetas, a outros ainda, doutores etc". Sendo pois na Igreja a categoria dos
doutores de certo modo singular, não deve qualquer um de modo indistinto
reivindicar para si o encargo da pregação." (DH 770-771)

Foi também o livre exame das Escrituras que culminou no protestantismo, o qual, de
maneira muito clara, guarda resquícios da heresia cátara. No Concílio de Trento, em 1546, a
Igreja restringiu a leitura das sagradas Escrituras, mas vejamos como o fez e por qual
motivo:

"Além disso, para refrear certos talentos petulantes, estabelece que ninguém,
confiando no próprio juízo, ouse interpretar a Sagrada Escritura, nas matérias de fé e
de moral que pertencem ao edifício da doutrina cristã, distorcendo a Sagrada
Escritura segundo o seu próprio modo de pensar contrário ao sentido que a santa
mãe Igreja, à qual compete julgar do verdadeiro sentido e da interpretação das
sagradas Escrituras, sustentou e sustenta; ou ainda, contra o consenso unânime dos

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Padres, mesmo que tais interpretações não devam vir a ser jamais publicadas." (DH
1507)

Nos dias atuais, esse decreto pode soar como intolerante ou como uma restrição aos direitos
da pessoa. Contudo, analisando este posicionamento da Igreja de forma católica, ou seja,
olhando o todo, é possível perceber a coerência utilizada, pois, como mãe e mestra, é ela
quem deve apontar o caminho seguro que cada filho seu deve trilhar rumo ao céu. Ainda
que para isso tenha de exercer a disciplina.

As Sagradas Escrituras são um dom de Deus para todos, contudo, em meio a correntes
gnósticas, heresias ou interpretações erradas, a Igreja diz: "meus filhos, antes de lerem
Bíblia, sejam católicos; antes de quererem interpretar as Sagradas Escrituras aprendam o
que é a fé da Igreja." O Papa Bento XVI na exortação apostólica Verbum Domini, é bem claro
ao dizer que:

"Outro grande tema surgido durante o Sínodo, sobre o qual quero debruçar-me agora,
é a interpretação da Sagrada Escritura na Igreja. E precisamente a ligação intrínseca
entre Palavra e fé põe em evidência que a autêntica hermenêutica da Bíblia só pode
ser feita na fé eclesial, que tem o seu paradigma no sim de Maria. (...) E São Tomás de
Aquino, mencionando Santo Agostinho, insiste vigorosamente: "A letra do
Evangelho também mata, se faltar a graça interior da fé que cura".
Isto permite-nos assinalar um critério fundamental da hermenêutica bíblica: o lugar
originário da interpretação da Escritura é a vida da Igreja. Esta afirmação não indica
a referência eclesial como um critério extrínseco ao qual se devem submeter os
exegetas, mas é uma exigência da própria realidade das Escrituras e do modo como
se formaram ao longo do tempo. De fato, as tradições de fé formavam o ambiente
vital onde se inseriu a atividade literária dos autores da Sagrada Escritura. Esta
inserção englobava também a participação na vida litúrgica e na atividade externa
das comunidades, no seu mundo espiritual, na sua cultura e nas vicissitudes do seu
destino histórico. Por isso, de modo semelhante, a interpretação da Sagrada
Escritura exige a participação dos exegetas em toda a vida e em toda a fé da
comunidade crente do seu tempo. Por conseguinte, devendo a Sagrada Escritura ser
lida e interpretada com o mesmo Espírito com que foi escrita, é preciso que os
exegetas, os teólogos e todo o Povo de Deus se abeirem dela por aquilo que
realmente é: como Palavra de Deus que Se nos comunica através de palavras
humanas. Trata-se de um dado constante e implícito na própria Bíblia: 'Nenhuma
profecia da Escritura é de interpretação particular, porque jamais uma profecia foi
proferida pela vontade dos homens. Inspirados pelo Espírito Santo é que os homens
santos falaram em nome de Deus'. Aliás, é precisamente a fé da Igreja que
reconheceu na Bíblia a Palavra de Deus; como admiravelmente diz Santo Agostinho,
'não acreditaria no Evangelho se não me movesse a isso a autoridade da Igreja
Católica'. O Espírito Santo, que anima a vida da Igreja, é que torna capaz de
interpretar autenticamente as Escrituras. A Bíblia é o livro da Igreja e, a partir da

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imanência dela na vida eclesial, brota também a sua verdadeira hermenêutica." (VD
29)

A chave de leitura das sagradas Escrituras é Jesus Cristo, na fé transmitida pelos apóstolos,
ou seja, dentro da Igreja. É por isso que a Igreja, como uma mãe zelosa, orienta que as
traduções da Bíblia sejam sempre ornadas com notas de rodapé, justamente orientando o
fiel a ler os textos em consonância com a fé de sempre. O Concílio Vaticano II, em sua
Constituição Dogmática Dei Verbum, também diz que:

"É necessário, por isso, que todos os clérigos e sobretudo os sacerdotes de Cristo e
outros que, como os diáconos e os catequistas, se consagram legitimamente ao
ministério da palavra, mantenham um contato íntimo com as Escrituras, mediante
a leitura assídua e o estudo apurado, a fim de que nenhum deles se torne «pregador
vão e superficial da palavra de Deus. Por não a ouvir de dentro», tendo, como têm, a
obrigação de comunicar aos fiéis que lhes estão confiados as grandíssimas riquezas
da palavra divina, sobretudo na sagrada Liturgia. Do mesmo modo, o sagrado
Concílio exorta com ardor e insistência todos os fiéis, mormente os religiosos, a que
aprendam «a sublime ciência de Jesus Cristo» (Fil. 3,8) com a leitura frequente das
divinas Escrituras, porque «a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo».
Debrucem-se, pois, gostosamente sobre o texto sagrado, quer através da sagrada
Liturgia, rica de palavras divinas, quer pela leitura espiritual, quer por outros meios
que se vão espalhando tão louvavelmente por toda a parte, com a aprovação e
estímulo dos pastores da Igreja. Lembrem-se, porém, que a leitura da Sagrada
Escritura deve ser acompanhada de oração para que seja possível o diálogo entre
Deus e o homem; porque «a Ele falamos, quando rezamos, a Ele ouvimos, quando
lemos os divinos oráculos» (6).
Compete aos sagrados pastores «depositários da doutrina apostólica», ensinar
oportunamente os fiéis que lhes foram confiados no uso reto dos livros divinos, de
modo particular do Novo Testamento, e sobretudo dos Evangelhos. E isto por meio
de traduções dos textos sagrados, que devem ser acompanhadas das explicações
necessárias e verdadeiramente suficientes, para que os filhos da Igreja se
familiarizem dum modo seguro e útil com a Sagrada Escritura, e se penetrem do seu
espírito.
Além disso, façam-se edições da Sagrada Escritura, munidas das convenientes
anotações, para uso também dos não cristãos, e adaptadas às suas condições; e
tanto os pastores de almas como os cristãos de qualquer estado procuram difundi-
las com zelo e prudência." (DV 25)

A Dei Verbum, ainda cumprindo o seu papel de corroborar o ensinamento da Igreja reafirma
que a "Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só depósito sagrado da
palavra de Deus, confiado à Igreja; (...)". E ainda que:

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"o encargo de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita ou contida na


Tradição, foi confiado só ao magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em
nome de Jesus Cristo. Este magistério não está acima da palavra de Deus, mas sim
ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido, enquanto, por mandato
divino e com a assistência do Espírito Santo, a ouve piamente, a guarda
religiosamente e a expõe fielmente, haurindo deste depósito único da fé tudo quanto
propõe à fé como divinamente revelado." (DV 10)

Está, portanto, claro que a Igreja nunca proibiu a leitura dos livros sagrados. O que ela teve
sempre foi o cuidado, o zelo em garantir que a interpretação das Sagradas Escrituras fosse
feita dentro do espirito com que seu autor a inspirou. Por isso é que o Papa Emérito Bento
XVI frisava sempre que a Igreja Católica Apostólica Romana não é a religião de um livro,
mas de uma pessoa: JESUS CRISTO, o qual continua vivo na sua Igreja, nos seus santos ao
longo dos séculos e é esta Igreja que tem a missão de interpretar a Bíblia.

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