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DADOS

DE ODINRIGHT
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ISALTINO GOMES COELHO FILHO

nosso .
Um estudo contextualizado da Epístola de Tiago

CONTEMPORÂNEO

2a Edição

Todos os direitos reservados. Copyright © 1987 da Junta de Educação


Religiosa e Publicações, para a língua portuguesa.

225.917

C672t Coelho Filho, Isaltino Gomes

Tiago, nosso contemporâneo: um estudo conte.xtualizado da


epístola de Tiago. — 2? ed. Rio de Janeiro: Junta de Educação
Religiosa e Publicações, 1990. 160 p.

1. Tiago, epístola de — Comentários. I. Título.

Capa de Queila Mallet

Código para pedidos: 21.641

Junta de Educação Religiosa e Publicações


da Convenção Batista Brasileira

Caixa Postal 320 — CEP: 20001

Rua Silva Vale, 781 — CEP: 21370

Rio de Janeiro, RJ, Brasil

3.000/1990
Impresso em gráficas próprias

DEDICATÓRIA

Aos colegas da turma de formandos de 1971, pelo STBSB: Ângelo Samuel de


Oliveira, Antônio Joaquim Matos Galvão, Antônio Mangefeste, Balbino Alves
Ferreira, Daniel de Souza Oliveira, David Pandino Filho, Dejamir Rocha
Marendaz, Dio-nísio Fleitas Maidana, Edivaldo Alves Batista, Eduardo
Azevedo de Carvalho, Eimaldo Alves Vieira, Eldie Francioni de Abreu Lima,
Elias Werneck, Fernando Portela Cordeiro, Genésio Pereira, Guinther
Harpmann, Hélio Schwartz Lima, Jacir Kaezer, Jair Soares, João Brito da Costa
Nogueira, João Pereira da Costa, Joaquim de Paula Rosa, José César Monteiro
de Queiroz, José do Nascimento, Júlio César Chenu Ayala, Levi Barbosa,
Lourival André do Nascimento, Misael Leandro dos Santos, Mood Vieira
Moutinho, Nelson da Silva Melo, Niltho Francisco Curty, Oswaldo Ferreira
Bonfim, Rubens Schreiber, Sinval dos Santos, Temístocles Antônio Sacramento,
Uilas Moreira da Silva, Zacarias de Aguiar Severa, Almir Rosa, Ana Maria
Guedes Ferreira, Gladys Vargas de Chenu, Ivo Augusto Seitz, Lucy Maciel
Silva, Marilene Brasil, Naida Victo-ria Hartmann.

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

"A Epístola de Tiago, uma das primeiras obras — se não a primeira — do Novo
Testamento, não diminuiu sua importância ao longo dos séculos. Sua mensagem
para nós, nos dias de um cristianismo superficial e acomodado ao mundo
contemporâneo, é tão urgente como foi no primeiro século.

0 autor deste comentário, Pastor Isaltino Gomes Coelho Filho, meu colega na
educação ministerial e meu ex-pastor na igreja local, demonstra seu amor para
com o Senhor Jesus Cristo e sua submissão à Bíblia pela qual Deus se revelou.
Através desse servo de Deus, no púlpito e na sala de aula, as Escrituras tornam-
se vivas e relevantes.

Para mim, é um grande privilégio apresentar este livro e seu autor aos
interessados na mensagem contemporânea da Epístola de Tiago. E com ele,
desejo que o estudo do mesmo nos torne "cumpridores da palavra” (Tiago 1:22).

Dewey Mulholland Reitor da Faculdade Teológica Batista de Brasília

PREFÁCIO

A Epístola de Tiago tem me intrigado e ao mesmo tempo desafiado, desde os


tempos de estudante em seminário. Quando recebi a informação de ter Lutero a
ela se oposto, chamando-a de "epístola de palha”, termo que designava pouco
valor, a curiosidade surgiu. É possível entender que preocupado em afirmar a
doutrina da salvação pela graça, por meio da fé, o grande reformador não se
sentisse muito entusiasmado com Tiago. Afinal, o escritor bíblico não trata de
assuntos como salvação, igreja, Espírito Santo, vida no além, etc. Quem
buscar em Tiago ensinos teológicos ou doutrinários como encontramos, por
exemplo, em Romanos, por certo não os achará. Não são estas as preocupações
da epístola.

Apesar de tais omissões, Tiago é de extrema importância para os cristãos de


hoje. Parece-me que em nossos dias estamos nos preocupando com assuntos de
pouca relevância para a igreja, assuntos que não são vitais. Enquanto isso,
aspectos extremamente necessários estão sendo esquecidos na nossa vivência
cristã. Creio também que as maiores dificuldades que o cristianismo enfrenta não
estão do lado de fora da igreja. Inimigos como o secularismo, o comunismo, o
modernismo teológico e outros, embora perigosos, não são invencíveis. 0 poder
de Deus é infinitamente superior ao poderio de tais adversários. Mas, o maior de
todos os antagonistas do evangelho está dentro da igreja: o evangelho não
vivido. Cristãos que não vivem a sua fé e que dão mau testemunho. Quantos
escândalos são provocados! Intrigas, invejas, maledicências, rancores, vaidade e
maldade estão presentes nas igrejas e comunidades cristãs. Como há discórdia
entre os seguidores de Jesus Cristo! Tiago trata do que

necessitamos: conduta correta, bom uso das palavras, honestidade no trato e


integridade de caráter.

Pode ser que Tiago nos surja como um livro pouco agradável. Acostumados com
a ênfase de nossas igrejas, espiritualizamos em demasia a fé cristã,
internalizando-a por completo, esquecidos de que a nova vida em Cristo nos
coloca diante de uma nova proposta de vida. Por vezes, gostamos muito das
promessas da Bíblia e bem pouco das exortações e correções que ela nos
faz. Mas, precisamos da "epístola de palha”. E como precisamos! Se levarmos a
sério o conteúdo de tão esquecida carta, muitos problemas em nosso meio serão
sanados e o impacto que causaremos no mundo será extraordinário.

Feitas estas considerações, caminhemos pela Epístola de Tiago. Na nossa


jornada, será muito fácil observarmos os erros que nossos irmãos cometem.
Fujamos dessa tentação. Não será uma atitude sábia proceder de tal maneira.
Devemos estudar Tiago analisando o que deve ser mudado em nossa vida.
Assim, seremos grandemente beneficiados em várias áreas da nossa existência. 0
verdadeiro seguidor de Jesus Cristo sempre há de desejar ser melhor. Buscará a
correção para ser aperfeiçoado. Por isso, leiamos Tiago no desejo de aprender.

AGRADECIMENTOS
Quem É Tiago?
Apresentação e Cumprimento
Como um Cristão Encara as Crises
A Busca de Sabedoria
Gloriar-se em Quê?
A Questão da Tentação
O Que É Bom Vem de Deus
A Ira e o Mau Temperamento
Vivendo a Palavra
A Verdadeira Religião
O Pecado da Acepção de Pessoas
Fé Contra Obras ou Fé e Obras?
A Língua — Bênção ou Maldição?
Os Dois Tipos de Sabedoria
A Origem das Contendas
O Que Ê a Vossa Vida?
Advertência aos Ricos
Exortação à Perseverança
A Oração na Vida da Igreja
à Guisa de Epílogo
O Desafio de Tiago
NOTAS
AGRADECIMENTOS

À Professora Alair Batista Pinto, pelo excelente auxílio quanto à estruturação do


trabalho.

Ao irmão Amós Batista de Souza, aluno da Faculdade Teológica Batista de


Brasília, pela disposição no trabalho de datilografia dos originais.
Quem É Tiago?

Um dos primeiros problemas em nosso estudo é exatamente descobrir quem é o


Tiago que escreveu a epístola que leva o seu nome. Correspondente a Jacó no
Velho Testamento, Tiago era nome respeitadíssimo, e por isso comum entre os
judeus. A epístola, propriamente, fornece escassas informações sobre seu autor.
"Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” (1:1) é tudo o que ele diz a
respeito de si mesmo. Quem é esse homem?

Barclay1 relaciona cinco homens chamados de Tiago no Novo Testamento.


Sigamos a pista de cada um deles.

0 primeiro Tiago é o pai de um dos doze apóstolos de Jesus, chamado Judas, não
o Iscariotes. Lemos em Lucas 6:16 sobre este Tiago: "Judas, filho de Tiago; e
Judas Iscariotes, que veio a ser o traidor.” 0 versículo não só diferencia os dois
Judas como mostra que um deles era filho de um homem chamado Tiago.

0 segundo Tiago é um dos discípulos, filho de um homem chamado Alfeu.


Mateus 10:3 e Lucas 6:15 fazem referência a "Tiago, filho de Alfeu”. Era irmão
do evangelista Mateus. Em Mateus 9:9, o cobrador de impostos chamado por
Jesus para segui-lo é nominado Mateus. Em Marcos 2:14, o mesmo homem
é chamado de Levi e se diz que era filho de Alfeu. A dedução é clara: Mateus e
Levi são a mesma pessoa, tendo por pai um homem chamado Alfeu e um irmão
por nome Tiago.

0 terceiro Tiago é denominado de "Tiago, o menor” em Marcos 15:40. 0 termo


grego no versículo é mikroü, e foi traduzido por "menor”. Pode significar
"pequeno”, designando sua baixa estatura, ou "Júnior”, ou "Filho”, como nos
casos de tantos pais que gostam de colocar seus nomes nos filhos. Sobre esse
homem sabe-se pouco e não é muito provável que ele tivesse a projeção para
escrever algo para as comunidades cristãs da época. Um homem que escrevesse
um livro que veio a se fixar no cânon, logrando aceitação das igrejas daquele
tempo, deveria ser uma pessoa mais conhecida.

O quarto Tiago é aquele sobre quem temos mais informações. Era irmão de João
e filho de Zebedeu, tendo sido ambos apóstolos de Jesus. "Tiago, filho de
Zebedeu, e João, seu irmão” (Mat. 10:2). Todas as referências feitas a ele,
nos Evangelhos, colocam-no junto com o irmão. Sempre são mencionados em
conjunto. Até o fim do século XVII, a Igreja Católica na Espanha o considerava
como sendo autor da epístola, teoria hoje abandonada. E pouco provável que
tenha sido ele quem escreveu a carta. Em Atos 12:2 lemos a respeito de
uma decisão tomada por Herodes: "E matou à espada Tiago, irmão de João.” Foi
o primeiro dos doze apóstolos a sofrer o martírio, provavelmente no início dos
anos 40 de nossa era. A posição da Igreja Católica espanhola é explicável: o
santo patrono do país é São Tiago de Compostela, que foi equivocadamente
associado com o filho de Zebedeu. Era natural que a igreja desejasse que seu
patrono fosse o autor de um dos livros do Novo Testamento. Mas, seu martírio
ocorreu cedo demais para que isto pudesse ter acontecido.

Por último, temos Tiago, chamado por Paulo de "irmão do Senhor” (Gál. 1:19).
Sabemos que Jesus possuía um irmão com esse nome. Lemos em Mateus 3:55:
"Não é este o filho do carpinteiro? E não se chama sua mãe Maria, e seus irmãos
Tiago, José, Simãoe Judas?” Em Marcos 13:21 lemos: "Quando os seus ouviram
isso, saíram para o prender; porque diziam: Ele está fora de si.” Esse irmão do
Salvador era, portanto, incrédulo. 0 evangelista João nos informa que "nem seus
irmãos criam nele” (João 7:5). Mas, quando chegamos ao livro dos Atos
dos Apóstolos, encontramos uma surpreendente mudança. Os irmãos de Jesus
estão entre os crentes de Jerusalém, perseverando em oração (At. 1:14). 0 que
teria acontecido? Como se converteram os irmãos de Jesus e, particularmente,
Tiago?

Em I Coríntios 15:7 se diz que Jesus apareceu ressuscitado a Tiago. E muito


provável que esse Tiago tenha sido o irmão

carnal do Senhor, que então se converteu. Diz Leon Morris: "A maioria acha que
é Tiago, irmão do Senhor, e que foi essa aparição que o levou à conversão, e por
sua instrumentalidade, à dos seus irmãos.2 Geoffrey Wilson segue a mesma linha
de pensamento.3 The Broadman Bible Commentary nos diz o seguinte: "Das
diversas pessoas chamadas Tiago no Novo Testamento, o Tiago conhecido como
o irmão do Senhor tem sido tradicionalmente considerado como o autor da
epístola.”4 Temos também o testemunho do historiador Flávio Josefo: "Anano,
um dos que de nós falamos agora, era homem ousado e empreendedor, da seita
dos saduceus, que, como dissemos, são os mais severos de todos os judeus e os
mais rigorosos nos julgamentos. Ele aproveitou o tempo da morte de Festo,
e Albino ainda não tinha chegado, para reunir em conselho, diante do qual fez
comparecer Tiago, irmão de Jesus, chamado Cristo, e alguns outros; acusou-os
de terem desobedecido às leis e os condenou ao apedrejamento.”5 Pelas pessoas
citadas (Anano, Festo e Albino), concluímos que o martírio desse Tiago sucedeu
em 62, data que o torna o mais possível autor da epístola.

Outras informações do Novo Testamento nos fazem saber que esse Tiago era
casado, como lemos em I Coríntios 9:5, e desfrutava de grande conceito na
igreja primitiva. Paulo o chamou de "apóstolo” (Gál. 1:19), e embora ele não
fosse um dos doze, recebeu o título por se ter tornado o líder mais acatado no
cristianismo iniciante. Deduzimos isso de sua participação no concilio registrado
em Atos 15, quando suas palavras foram totalmente acatadas. Quando Pedro foi
libertado da prisão (At. 12) logo mandou que se anunciasse o fato a Tiago
(versículo 17). Sobre tal passagem é oportuno o comentário de rodapé da
Bíblia de Jerusalém: "Tiago, sem outra especificação, designa-se o 'irmão do
Senhor’. Desde a época da primeira visita de Paulo a Jerusalém, (Gál. 1:19),
talvez em 36 (At. 9:1), Tiago é o chefe do grupo 'hebreu’ dos cristãos de
Jerusalém. Governará a igreja-mãe após a partida de Pedro (At. 15:13; 21:28; I
Cor. 15:7). A Epístola de Tiago apresenta-se como obra sua.” Não deixa de ser
interessante constatar que, até mesmo entre alguns círculos católicos, há
identificação do autor da epístola com o meio-irmão de nosso Salvador.

Poderá alguém presumir que seja desnecessária e até julgar maçante essa
preocupação com a identificação do autor, mas as informações recolhidas são de
grande valor. Estaremos estu-

dando o livro de um homem que eonheceu Jesus de forma muito mais pessoal
que os outros escritores. Os dois dormiram sob o mesmo teto c cresceram juntos.
Mais tarde, Tiago deve ter visto quão diferente era seu irmão. Discordou dele,
julgou-o louco, até. Que temperamento esquisito! Que comportamento estranho!
Por fim, Tiago acabou colocando sua vida a serviço de Jesus. Para que isso
acontecesse, sem dúvida algo de revolucionário aconteceu em sua vida.
Considerar que Tiago, autor da epístola, é o Tiago irmão do Senhor, parece-nos
um forte argumento para crer na divindade de Jesus Cristo e no poder de
sua ressurreição. Vidas foram radicalmente transformadas.

Tiago tinha um lugar de destaque na igreja primitiva. Diz o grande patrício Rui
Barbosa: "Os que buscam vincular a Pedro a soberania do papa começam
esquecendo a primeira manifestação coletiva da igreja cristã, o Concilio de
Jerusalém, tipo necessário de todos os outros, no qual a preponderância
da definição do ponto controvertido coube, não ao apelidado príncipe dos
apóstolos, mas a Tiago, bispo da cidade, irmão do Senhor.”6 Evidentemente não
estamos dizendo que Tiago foi papa ou tinha a supremacia sobre os demais
líderes da igreja. A declaração de nosso culto patrício vem apenas confirmar
o prestígio de Tiago e a consciência de ser ele irmão de Jesus.
Apresentação e Cumprimento

Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo, às doze tribos da Dispersão,


saúde. (1:1)

Se aceitarmos o autor da Epístola de Tiago como sendo o irmão do Senhor, já


encontramos aqui um traço positivo de seu caráter. Ele não se vale do grau de
parentesco, alegando mais importância por ser irmão do Senhor. Não reivindica
primazia sobre os demais líderes. 0 triste hábito do nepotismo ou patronato é
inexistente aqui. Ele se intitula "servo”. 0 termo grego é bem conhecido, doâlos,
cuja idéia principal é de "escravo”. Ele não é chefe. E servidor de Deus e do
Senhor Jesus Cristo.

E pena que a consciência de "servo” esteja se esvaindo entre os cristãos. Alguns


são senhores de suas igrejas. Outros, de suas denominações. Muitas instituições
evangélicas são governadas em estilo monárquico, com a voz do líder sendo
inquestionável. Ocasiões há, também, em que a comunidade cristã não é
vista como uma oportunidade para servir aos irmãos, a Deus e ao mundo, mas
para compensar frustrações emocionais. 0 indivíduo é inexpressivo na vida
secular, mas encontra na igreja oportunidades para se projetar e impor sua
vontade a outros, inclusive a pessoas de posição secular superior à sua.
Na comunidade, então, o indivíduo compensa sua inexpressividade. 0 seu
serviço é mero carreirismo, e não serviço cristão.

Precisamos voltar a nos ver como servos. Sem busca de aplausos, de poder e de
prestígio. Tiago não se intitula de nada mais que servo. Em uma igreja onde fui
pregar, certa ocasião, o apresentador pediu-me todos os meus títulos e funções,
para "fazer uma apresentação bombástica”. É isso que queremos mostrar ao
mundo? Por que o orgulho invadiu nossos arraiais?

A carta é endereçada "às doze tribos da Dispersão”. Em João 7:35, os judeus se


indagaram se, porventura, Jesus iria para a

"Dispersão”. 0 que é isto?

"0 termo 'Dispersão’ (em grego diasporá) pode denotar ou os judeus espalhados
pelo mundo não-judaico (como em João 7:35), ou aos lugares nos quais eles
passaram a residir (como em Judite 5:19).”7
0 autor diz claramente "doze tribos”. Ora, dez tribos se perderam em 722 AC,
com a ida de Israel, o Reino do Norte, para o cativeiro assírio. As outras duas,
que formavam Judá, o Reino do Sul, foram levadas para a Babilônia em 587 AC.
De lá regressaram em 537 AC. A quem se aplica o termo "doze”?

Assim se expressa grande autoridade, tanto em Novo Testamento quanto em


Velho Testamento: "É provável que o autor esteja usando uma forma simbólica
de palavras que encontramos, freqüentemente, no Novo Testamento. A igreja
cria que era o verdadeiro Israel, composta de várias comunidades dispersas,
como centros de luz no mundo de trevas. Não se pode entender as doze tribos no
sentido literal, pois as antigas divisões tribais de Israel já haviam desaparecido
havia séculos. 0 termo significa, apenas, que o novo Israel corresponde ao
antigo, e que sua carta foi dirigida à igreja na sua totalidade.”8

Aceitamos esta argumentação, em parte. 0 autor está se dirigindo


especificamente a cristãos dispersos, presentes em vários lugares, ficando
implícito alcançar "a igreja na sua totalidade”. Dirige-se mais restritamente a
cristãos que vieram do judaísmo. Afinal, ele era o líder do partido hebreu
no cristianismo nascente (reveja a nota de rodapé da Bíblia de Jerusalém, citada
na página 17). Assim entendem autores como Taylor, Davidson, Hort e outros
mais. Entendem que o termo se refere a cristãos que vieram do judaísmo. Carrol,
inclusive, faz um belo paralelo entre a dispersão dos judeus e a dispersão dos
cristãos. Desde o dia de Pentecostes que cristãos de origem judaica começaram a
se espalhar pelo mundo. Mais tarde, quando os cristãos começaram a ser
perseguidos, mais se espalharam pelo mundo. Era também uma dispersão.9

0 fato mais importante, porém, é que, inspirado pelo Espírito Santo, o autor
aconselha os cristãos de sua época e, por extensão, a nós, cristãos que os
sucedemos, mostrando-nos princípios vivenciais para um cristianismo autêntico.

0 estilo do autor é bastante parecido com o do Sermão do Monte. Eis o que nos
diz Taylor: "E o Sermão da Montanha entre as Epístolas. É o escrito mais
judaico do Novo Testamento. Mateus, Hebreus, Apocalipse e Judas, todos têm
mais do elemento distintivamente cristão. Se, porém, eliminarmos duas ou três
passagens que se referem a Cristo, a epístola inteira tem lugar no cânon do Velho
Testamento, tão bem quanto cabe no Novo Testamento.”10 Comparemos duas
citações de Tiago corn o Sermão do Monte, para exemplificar: "Irmãos, não
faleis mal um dos outros. Quem fala mal de um irmão, e julga a seu irmão, fala
mal da lei, e julga a lei; ora, se julgas a lei, não és observador da lei, mas juiz”
(4:11). Em Mateus 7:1 encontramos conceito semelhante: "Não julgueis, para
que não sejais julgados.” Lemos em Tiago 5:12 as seguintes palavras:
"Mas, sobretudo, meus irmãos, não jureis, nem pelo céu, nem pela terra, nem
façais qualquer outro juramento; seja, porém, o vosso sim, sim, e o vosso não,
não, para não cairdes em condenação.” Em Mateus 5:34-37 lemos o seguinte:
"Eu, porém, vos digo que de maneira nenhuma jureis; nem pelo céu, porque é
o trono de Deus; nem pela terra, porque é o escabelo de seus pés; nem por
Jerusalém, porque é a cidade do grande Rei; nem jureis pela tua cabeça, porque
não podes tornar um só cabelo branco ou preto. Seja, porém, o vosso falar: Sim,
sim; não, não; pois o que passa daí vem do Maligno.”

Muitos dos conceitos encontrados em Tiago são também encontrados, algumas


vezes, em outras palavras, no livro de Provérbios. Isto não é de estranhar. 0 tema
visado por ambos os livros é o procedimento correto de um filho de Deus.
Alguns estudiosos do Novo Testamento, inclusive, denominam a Epístola de
Tiago de "Provérbios do Novo Testamento”.

Todas estas considerações nos conduzem a um ponto: a preocupação do autor é


ética, e não teológica. Em sua carta ele não se ocupa da crucificação,
ressurreição, ascensão, segunda vinda de Cristo, etc. Sua linha de pensamento
segue o tempo todo em uma direção: como um cristão deve se comportar. Tiago
não é místico nem está preocupado com os mistérios do além. Sua preocupação é
com o aqui e agora. Ele deseja mostrar que a vida cristã tem parâmetros. 0 que
caracteriza um cristão

não é sua indumentária, nem seu corte de cabelo, tampouco palavras técnicas por
cujo rigor lingüístico chegamos a brigar. 0 que caracteriza um cristão é a
qualidade da sua vida pessoal. E por onde vamos andar agora.
Como um Cristão Encara as Crises

Meus irmãos, tende por motivo de grande gozo o passardes por várias
provações, sabendo que a aprovação da vossa fé produz a perseverança; e a
perseverança tenha sua obra perfeita, para que sejais perfeitos e completos, não
faltando em coisa alguma. (1:2-4)

Por que o homem bom sofre? Esta questão tem desafiado as mentes mais argutas
e os corações mais piedosos. 0 drama de Jó trata desse tema, o sofrimento de um
homem bom e puro. 0 profeta Habacuque também entrou em profunda crise
espiritual e existencial, porque via a injustiça aprofundar-se, o homem desonesto
e iníquo prosperar e o homem decente e trabalhador ser oprimido e esmagado. A
questão é tão séria que tem levado alguns a perderem a fé na providência divina,
desviando-se assim do evangelho. No Salmo 73, Asafe preocupou-se com
o mesmo problema. Chegou, inclusive, a pensar em abandonar a Deus. Ele
pensava: Melhor ser injusto do que justo. Talvez a questão se resuma com mais
simplicidade na pergunta de um menino numa classe de Escola Bíblica: "Por que
Deus não mata o Diabo a pauladas e acaba com o problema?”

Dificilmente poderemos responder à questão do sofrimento do justo. Na


realidade, este não é o nosso propósito aqui. E preciso registrar algo, no entanto:
os cristãos têm crises pessoais, e muitas vezes crises violentas.

Prolifera em nossos dias uma pregação falsa em nossas igrejas e que assim
ensina: Siga a Cristo e seus problemas se acabarão.

Muitas pessoas dão crédito a tal ensinamento, envolvem-se com Cristo, passam
por tribulações e se desorientam por completo. Ouvi esta oração em um
programa radiofônico evangélico: "Senhor, abençoa o teu povo, multiplicando o
dinheiro de suas carteiras.” Isto não é o evangelho. E superstição. É confundir
o evangelho com magia. Seguir a Cristo não é ter um seguro contra os
problemas. Os cristãos têm problemas. E como têm!

"Tende por motivo de grande gozo o passardes por várias provações.” 0 que
Tiago quis dizer com sentir-se alegre em meio às provações? A Bíblia na
Linguagem de Hoje traduz este versículo assim: "Sintam-se felizes quando
passarem por todo tipo de aflições.” Como pode a aflição trazer felicidade?
Nosso estilo de vida está todo orientado para o prazer. Tudo que produza prazer
deve ser tentado. Nossa sociedade é hedonista e colocou o prazer como o bem
máximo a ser alcançado. Tudo o que é desagradável deve ser evitado. Há, em
certo sentido, um paralelo dos dias em que vivemos com a sociedade mostrada
em O Admirável Mundo Novo, de Huxley: as asperezas e dificuldades devem ser
evitadas. Ser feliz, eis a aspiração máxima de todos nós! Os livros com títulos
prometendo a apresentação de um segredo infalível, ensinando como viver
de maneira agradável, sempre vendem bem. Assim, não fica muito interessante
receber os problemas com alegria. Na realidade, não ter problemas é que é bom.

A ótica de Tiago é realmente extraordinária. "A aprovação da vossa fé produz a


perseverança.” A Bíblia na Linguagem de Hoje traduz o versículo assim:
"Quando sua fé vence essas provações, ela produz perseverança.” Pense bem:
"Quando sua fé vence...” As dificuldades existem para serem vencidas.
É possível vencê-las, não no poder da carne, mas no poder do Espírito, na força
da fé. É nas provações que o caráter se enrijece e se torna mais forte. Quando
houve o conflito militar entre a Argentina e a Inglaterra, pela posse das Ilhas
Malvinas, culminando com a vitória inglesa, um analista de
política internacional apresentou, entre as muitas razões da vitória inglesa, esta:
Os ingleses têm tradição de guerra e de lutas. Há séculos que eles estão lutando
em algum lugar. Estão acostumados a guerrear. Seus soldados não eram
inexperientes, mas sim profissionais, homens traquejados.

Boa lição para nós, esta! As dificuldades vencidas nos fortalecem, para que
enfrentemos outras que surjam, com mais capacidade e confiança.

"Produz a perseverança”. As versões mais antigas traduzem perseverança como


"paciência”. A palavra grega usada é hypomoné, que significa "ação de
perseverar, sofrer, suportar calma e heroicamente”. Não é, no entanto, uma
atitude passiva. Pelo contrário, é uma atitude dinâmica. Procuremos
compreender o seu sentido. Hypomoné era uma palavra pouco usada no grego
clássico, aplicada ao período de duração de um trabalho cansativo que alguém
desempenhou sob pressão. Usava-se também essa palavra para adjetivar uma
planta que, mesmo sob condições ambientais desfavoráveis, conseguia viver. 0
verbo derivado de hypomoné xeio a significar "suportar, resistir”, em vista desses
sentidos.

Em Tiago 1:3, a palavra "perseverança” é usada em conexão com a fé, sendo um


produto da fé ativa. Somente a fé pode produzir perseverança. Isto porque
perseverança não é o estoi-cismo humano, a manifestação de um caráter
indômito por questão de temperamento. Perseverança não é também a
manifestação de derrotismo, do tipo "deixa estar para ver como é que fica”.
Tampouco é um fatalismo resignado. Hypomoné é aquela virtude que faz um
homem continuar avançando, mesmo sob golpes. E a fé provada que produz
hypomoné. Quando enfrentamos uma crise e a superamos, tornamos nosso
caráter mais perseverante.

"Para que sejais perfeitos e completos, não faltando em coisa alguma”. 0 termo
"perfeitos” merece explicação. Não significa uma ausência de defeitos. A palavra
grega usada é téleioi, plural de téleios, que pode apresentar vários sentidos:
perfeito, adulto, maduro, plenamente desenvolvido. Nos papiros antigos,
esse termo era usado para designar a maioridade civil das pessoas, que se
tornavam, assim, responsáveis. Era usado também para frutos maduros e para
mercadorias em boas condições ou completas. Esta explicação permite-nos
entender as exortações bíblicas a que sejamos perfeitos, principalmente a de
Jesus em Mateus 5:48, que diz: "Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o
vosso Pai celestial.” Há um nível de perfeição, de maturidade, para Deus, a
absoluta. Há também um nível para nós. Evidentemente não se diz que devemos
ser como Deus, mas que devemos alcançar o nível que de nós se espera.
Entendemos, então, que na medida em que vamos vencendo as provações
e fortalecemos a nossa fé, vamos nos tornando adultos espirituais.

Fugir das lutas não conduz à maturidade. Desviar-se ou ignorar os problemas,


também não. Mas, enfrentá-los e vencê-

los, isto sim, conduz a um estado de adultos, tanto espiritual quanto


emocionalmente.

"Não faltando em coisa alguma”. A Bíblia na Linguagem de ‘Hoje verte esta


expressão como: "sem faltar nada”. Este é um aspecto desafiador. Por que tantos
cristãos vivem, hoje, vidas incompletas, onde falta tanto? Porque o enfoque da
vida cristã está errado. Muitos há que foram atraídos para o evangelho por causa
das bênçãos que ele pode dar-lhes, por causa do que podem receber de Cristo.
Na realidade, isto não está de todo errado. Mas, o trágico é quando a vida cristã
não é vista como uma luta, como um engajar-se com Cristo, e sim como
fuga. Como conseqüência, temos muito de um cristianismo piegas, meloso, de
gente que transformou a igreja em um gueto onde se pode esconder do mundo e
se refugiar das dificuldades. Oculta-se assim o verdadeiro cristianismo, que é
forte, desafiador de estruturas de um mundo decadente, onde o cristão é, não
um pedinte, mas um herói, um lutador, um agente transformador de uma
sociedade corrompida. A preocupação maior de um seguidor de Cristo não é
esconder-se do mal, mas combatê-lo, onde quer que ele se encontre. Nosso
Senhor manifestou-se para destruir as obras do Diabo. (I João 3:8).

0 "sem faltar nada” não é, evidentemente, uma promessa ou uma exortação cujo
escopo se limita à realização material. 0 cristianismo surgiu exatamente entre a
classe social meno: favorecida. Entre os destinatários de Tiago havia um
grande contingente de pobres. Uma pessoa firme em Cristo, enfrentando suas
crises pessoais e vencendo-as, tornar-se-á cada vez mais uma pessoa equilibrada
e segura, a quem não faltará ânimo para enfrentar as dificuldades da vida, sem
desespero.

Aprendemos que o evangelho não é para se viver choramingando pelos cantos,


lamuriando os problemas, constantemente derrotado, com tropeços aqui e acolá.
Não é também um par de muletas para se arrastar pela vida, nem ainda um
narcótico para amenizar as dificuldades que enfrentamos. 0 evangelho é
um chamado para a maturidade, para lutar, para vencer e para crescer. E quando
um servo de Cristo compreende o que Tiago quer dizer, descobre que a cada
batalha vencida em sua vida está mais fortalecido em seu caráter. Fracos e
indecisos nunca entraram para a história. 0 que caracteriza os heróis da fé
em Hebreus 11 é exatamente sua coragem em permanecerem firmes, como quem
vê aquele que é invisível (Heb. 11:27). 0 cristão não pode viver como um
derrotado. Por isso, se você tem

problemas e sofre, não entregue os pontos. Enfrente suas dificuldades com fé no


Senhor. Nas lutas travadas está a firmeza. As dificuldades e os sofrimentos
fazem parte da vida. Não podemos impedi-los de desabarem sobre nós. Mas,
superá-los é descobrir a beleza da vida e crescer emocionalmente como cristão.
A Busca de Sabedoria

Ora, se algum de vós tem falta de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá
liberalmente e não censura, e ser-lhe-á dada. Peça-a, porém, com fé, não
duvidando; pois aquele que duvida é semelhante à onda do mar, que é sublevada
pelo vento. Não pense tal homem que receberá do Senhor alguma coisa,
homem vacilante que é, e inconstante em todos os seus caminhos. (1:5-8)

A sabedoria era a forma de conhecimento mais apreciada entre os hebreus.


Livros como os de Provérbios, Eclesiastes, Jó, Sabedoria e Eclesiástico (não
temos os dois últimos como inspirados, bem assim os judeus também não os
consideravam, embora os respeitassem) eram tidos em alta conta. Eram
livros que apresentavam os princípios divinos para a vida ajustada. E viver
corretamente era uma das grandes aspirações dos homens piedosos de Israel. "A
sabedoria é a coisa principal; adquire, pois, a sabedoria; sim, com tudo o que
possuis adquire conhecimento” (Prov. 4:7). Valia a pena investir tudo na
aquisição da sabedoria. Um dos alvos do judeu do Velho Testamento era
ser sábio, ter o conhecimento correto.

0 que significa exatamente sabedoria? Evitemos confundi-la com cultura. Esta é


a forma de expressão de um grupo, de uma sociedade. A maneira de uma pessoa
se vestir, sua alimentação, a faixa de vocabulário dentro do seu idioma que ela
utiliza, seus hábitos, enfim, formam a sua cultura. Suas práticas e tradições são
cultura. E isto não ^sabedoria. Também devemos evitar identificá-la com
instrução acadêmica, produto da educação escolar. Há bacharéis, mestres e
doutores que possuem senso

escasso, deixando de manifestar qualquer ato de sabedoria. Há gente de bom


nível acadêmico, mas de vida um tanto desastrada.

Tendo visto esparsamente o que a sabedoria não é, caminhemos para identificá-


la. Entre os gregos se desenvolveu o tipo de pensamento que denominamos
filosofia. Embora houvesse a filosofia moral, em boa parte o pensamento grego
era especulativo: De que se constitui o mundo? De onde surgiu o universo? Qual
a relação entre as idéias e o mundo real? 0 pensamento desenvolvido pelos
hebreus não foi especulativo. Sempre foi moral, crendo num Deus pessoal que se
revelara e se manifestara aos homens, mostrando seu querer. Não havia
preocupações com o universo e sim com a vida: Como viver bem?
Como descobrir o sentido da vida e aproveitá-la ao mesmo tempo em que se
agradava a Deus? 0 filósofo hebreu procurava responder a estas perguntas. Era
chamado de hakham, e não lidava com a especulação, mas sim com a
observação e a revelação divina.

0 termo hebraico para sabedoria é hokhma. Não era propriamente uma filosofia.
Era uma preocupação correta de como se deve viver. Seu caráter era prático e
funcional, nunca abstrato ou teórico. Não se alcançava com a idade, como se
apenas observar a vida e tirar conclusões bastasse para possuí-la. "Sou mais
entendido do que os velhos, porque tenho guardado os teus preceitos” (Sal.
119:100). O salmista declara ter mais sabedoria do que os de mais idade. Estes,
teoricamente, tendo vivido mais, teriam acumulado o que chamamos de
"experiência de vida” e saberiam mais que ele. Mas, o salmista tem mais
entendimento (aqui, sinônimo de sabedoria) porque guarda os preceitos
do Senhor. Isto nos leva a entender que a sabedoria está com Deus. Ele é a fonte
de sabedoria. Esta é a linha de pensamento adotada por Tiago: "Ora, se algum de
vós tem falta de sabedoria, peça-a a Deus...” (1:5).

A sabedoria devia ser buscada com toda intensidade possível: "A sabedoria é a
coisa principal; adquire, pois, a sabedoria; sim, com tudo o que possuis adquire o
conhecimento” (Prov. 4:7). Sendo o equivalente à verdade, tudo deveria ser
investido nela. "Compra a verdade, e não a vendas; sim, a sabedoria, a disciplina
e o entendimento” (Prov. 23:23). Em ambos os versículos citados, temos o uso
do paralelismo, um recurso da poesia hebraica e também sua característica
maior. É a prática de contrabalançar um pensamento ou frase por outro que
tenha aproximadamente o mesmo sentido ou o mesmo número de palavras. No
texto de Provérbios 23:23, por exemplo, o que está

escrito é: "Compra a verdade, e não a vendas; sim, (compra) a «c^edoria, a


disciplina e o entendimento." Ê um paralelismo sinônimo, assim chamado
quando os dois pensamentos são sinônimos, sendo que há dois tipos: o sinônimo
idêntico e o sinônimo semelhante. 0 texto citado é um paralelismo
sinônimo idêntico, ou seja, nos dois pensamentos se diz a mesma coisa. Assim
sendo, "verdade” e "sabedoria, disciplina e entendimento” têm o mesmo sentido.
Provérbios 4:7 também nos traz um paralelismo sinônimo idêntico, o que nos
leva a identificar "sabedoria” e "conhecimento” como a mesma coisa. È na busca
destas virtudes que a vida deve ser empregada.

"Peça-a a Deus” (1:5). A ausência de sabedoria deve ser motivo de oração. A


sabedoria é um dom divino. Vem do Senhor. Por isso, o título que Johnstone, em
sua obra The Epistle of James, dá ao texto de Tiago 1:5-8, é bem expressivo: "A
Sabedoria Através da Oração”. Deus quer que seus filhos sejam sábios, que
tenham orientação correta para esta vida. O crente que não sabe viver
corretamente deve pedir a ajuda de Deus. Ele supre as deficiências do vosso
viver.

A oração, portanto, é uma das maneiras de se alcançar a hokhma. Há outra


maneira que a Escritura apresenta. Já vimos no Salmo 119:100 que o salmista era
mais sábio que os de idade avançada porque guardava os "preceitos” (a palavra)
de Deus. A sabedoria vem também pelo estudar e guardar os ensinos de Deus.
Isto não quer dizer que a simples leitura da Bíblia nos tornará um hakham. A.W.
Tozer, um santo profeta deste século, muito nos fala de pessoas ensinadas pela
Palavra, mas não ensinadas pelo Espírito. Pode parecer um contra-senso, mas
o que o conhecido escritor deseja é estabelecer uma diferença entre o
conhecimento meramente intelectual e informativo que uma pessoa pode
adquirir das Escrituras e o conhecimento da Bíblia que o Espírito Santo
transmite (e é oportuno nos recordarmos que, à luz de João 14:26, é o Espírito
quem ensina a Palavra aos cristãos). É necessário ler, com fome, e aplicar à vida
o que foi lido, buscando corrigir-se.

"Com fé, não duvidando” (1:6). A verdadeira oração exige fé, sem vacilações.
"Sem fé é impossível agradar a Deus", diz-nos Hebreus 11:6. É conselho de
Deus que seus filhos aceitem as suas recomendações, em nada duvidando:
"Estando Pedro ainda a meditar sobre a visão, o Espírito lhe disse: Eis que dois
homens te procuram. Levanta-te, pois, desce e vai com eles, nada duvidando;
porque eu tos enviei” (At. 10:19, 20).

0 homem que duvida é como a onda do mar. É agitado de um lado para outro,
nunca encontrando paradeiro. E uma figura de inconstância que o autor bíblico
aqui nos apresenta. A dúvida produz inquietação e instabilidade. Não deve ser
assim o cristão.

Qual a melhor época para se buscar a sabedoria? "Eu amo aos que me amam, e
os que diligentemente me buscam me acharão” (Prov. 8:17). Uma outra versão
traz: ”E os que de madrugada me buscam me acharão.” Exortando seus ouvintes
a orarem de madrugada, certo pregador utilizou este versículo para justificar sua
tese segundo a qual Deus amava os madrugadores na oração. Segundo ele, Deus
amava o que o amava e se dava a conhecer aos que o buscavam em oração, de
madrugada. A explicação foge ao sentido do texto e ao próprio contexto
bíblico. Afinal, Deus ama até mesmo quem o odeia: "Deus amou o mundo...”
(João 3:16), o mesmo mundo que rejeitou seu amor e crucificou seu Filho. E
também é muita precipitação declarar que para encontrar a Deus é necessário
orar de madrugada. A Bíblia não ensina isto. E não é isto que a passagem citada
está ensinando.

No texto, não é Deus quem está falando. É a sabedoria. "A vós, ó homens,
clamo; e a minha voz se dirige aos filhos dos homens... Eu, a sabedoria, habito
com a prudência, e possuo o conhecimento e a discrição” (Prov. 8:4,12). A
sabedoria, ela sim, ama quem a ama e se dá a quem a procura. Quem a desejar,
encontrá-la-á. E os que a procuram de madrugada (cedo, na sua vida) a acharão.

Em 1611, Erasmo de Rotterdam escreveu, em latim, sua famosa obra Encomium


Moriae (0 Elogio da Loucura). Satirizando a sociedade de sua época, Erasmo
personificou a loucura como uma mulher de longas orelhas, ornadas de
guizos, fazendo um discurso (é nesse sentido que se emprega a palavra "elogio”)
onde se ridiculariza as discussões tolas e sem sentido dos gramáticos, as querelas
dos matemáticos e as estéreis e cansativas arengas dos teólogos. Erasmo zomba
também dos astrólogos e dos crédulos que os ouvem e mostra que a loucura
é quem tem razão. Ela é mais sensata que os gramáticos, matemáticos, teólogos e
astrólogos. Pois bem, em Provérbios 8 temos o elogio da sabedoria. Ela é
personificada e faz um elogio (um discurso) sobre seus negócios na terra, e
exorta os homens a segui-la. Não se preocupa em zombar dos errados, tampouco
se vale do sarcasmo e da ironia para agredir seus discordantes. Seu

propósito é que todos ouçam seu chamado, busquem conhecê-la e se definam


por ela. Existe na Bíblia, portanto, uma chamada aos homens para que sejam
sábios. E um pouco mais dessa exortação será analisado no trecho de 3:13-18 —
os dois tipos de sabedoria.

A razão pela qual podemos pedir sabedoria, na consciência de que a


receberemos, está na bondade de Deus. Ele é bondoso e derrama sabedoria sobre
os seus filhos. Seu amor para conosco não se resume à nossa salvação. Ele nos
oferece a possibilidade de uma vida real. Tampouco nos salvou ele para nos
deixar no tempo e no espaço, sem um contexto histórico para vivermos. Sua
bondade não é algo místico que só provaremos depois da cessação da vida física.
Ela funciona aqui e agora. Ê sua bondade que permite aos crentes encontrarem
condições para uma vida madura, exibindo sabedoria no cotidiano. 0
grande ensino de Tiago neste trecho é que podemos viver bem, na terra. Não é
necessário, como tantos cristãos fazem, viver de mal com a vida, sempre
emburrados, entregando o mundo para os incrédulos e se refugiando no além.
Deus pode ensinar-nos como viver na terra.

"Mas se alguém tem falta de sabedoria, peça-a a Deus, e ele dará, porque é
generoso, e dá com bondade a todos.”
Gloriar-se em Quê?

Mas o irmão de condição humilde glorie-se na sua exaltação, e o rico no seu


abatimento; porque ele passará como a flor da erva. Pois o sol se levanta em
seu ardor e faz secar a erva; e sua flor cai e a beleza do seu aspecto perece;
assim murchará também o rico em seus caminhos. (1:9-11)

A ERAB (Edição Revista e Atualizada no Brasil) da SBB, dá o seguinte título ao


presente trecho: "As Circunstâncias Terrenas São Transitórias”. 0 título mostra
que quem o formulou teve uma boa visão do assunto. Outro título bem adequado
e que poderia ser aplicado aqui é: "A Atitude Humana Para com as Possessões
Materiais”. As duas idéias se harmonizam na discussão objetiva aqui
empreendida por Tiago. A maior parte dos proble^ mas enfrentados pelos
cristãos diz respeito ao mundo material. É muito justo que em nossas pregações
acentuemos as verdades do além, mas, por vezes, concedemos ênfase
desmesurada a esses assuntos e descuramos do mundo material. Não é raro
encontrarmos um cristão pouco à vontade com o mundo material, o mundo real,
já que recebe ensinos mais sobre o mundo espiritual, que é um mundo ideal.

Como devemos relacionar-nos com o mundo concreto, com as coisas? Ter


posses, ser rico, é pecaminoso? Sendo que determinadas correntes teológicas
contemporâneas fazem exaltação do pobre e ameaçam o rico, será a pobreza uma
virtude?

Por outro lado, a moderna maquinaria publicitária coloca o sentido da vida nas
riquezas. A televisão e as revistas, com suas cores, mostram que a pessoa bem-
sucedida é aquela que tem o

carro do ano, cheque especial, tem lancha marítima, veste a esquisita moda
lançada pelas empresas de costura, etc. Este é o pano de fundo da publicidade
que nos esmaga com suas técnicas bem elaboradas: a realização está no ter
coisas. Estará certa tal ótica? Ter coisas é o bem supremo? Qual é a relação
correta entre o homem e os bens? Todas estas questões podem ser enfocadas aqui
e respondidas à luz de Tiago.

”0 irmão de condição humilde” e "o rico”. 0 que significam estes termos? Qual o
sentido das expressões antitéticas na epístola? Faz parte do estilo de Tiago
estabelecer contrastes entre as duas classes sociais retratadas. Em 2:6, ele mostra
o rico oprimindo o pobre. Em 5:6, ele declara que a política de exploração do
pobre pelo rico leva os trabalhadores à fome e à morte. Evitemos espiritualizar
os termos. Pobre aqui é o homem desprovido de bens materiais. E rico é o
homem bem provido de bens. Os capítulos 4:13-16 e 5:1-6 não deixam margem
de dúvidas quanto ao sentido que, nesta epístola, é dado aos termos. Tiago está
nos falando do pobre e do rico em relação à situação econômica.

Antes de considerarmos as recomendações dirigidas a essas duas classes, torna-


se oportuno registrar que as figuras de contrastes, empregando elementos
antitéticos, são muito comuns na poesia hebraica e na literatura de sabedoria. Os
Salmos 1 e 73, por exemplo, estabelecem as diferenças entre o justo e o ímpio,
dois tipos opostos. No Salmo 40:2, o salmista estava "num charco de lodo”
(Versão Revisada da IBB) ou "tremedal de lama” (ERAB) e o Senhor firmou os
seus pés "sobre uma rocha”. Muitos dos provérbios bíblicos são antitéticos,
usando termos como "escarnecedores” e "humildes” (Prov. 3:34); "filho sábio” e
"filho insensato” (Prov. 10:1), "multidão de palavras” e "refreia os seus lábios”
(Prov. 10:19). Estes são alguns dos muitos exemplos. O Senhor Jesus se valeu
desse recurso, na sua magistral conclusão do Sermão do Monte, com a casa
sobre a rocha e a casa sobre a areia, bem como na parábola do fariseu e do
publicano. Como a preocupação da literatura de sabedoria é o estabelecimento
de princípios de boa conduta, para o que, necessariamente se deve mostrar a má
conduta, o estilo mais condizente é exatamente este.

Por três vezes Tiago critica os ricos. No capítulo 2, é porque eles oprimem os
crentes (v. 6, 7). Aqui, o termo "rico” se aplica aos incrédulos. No capítulo 5, é
porque oprimem os pobres (v. 4) e por presumirem que o sentido da vida reside
na posse de

riquezas (v. 5). Aqui, também, parece que o termo está sendo aplicado a pessoas
de fora da igreja. A terceira crítica é no texto em tela.

Não padece dúvidas que o pobre, aqui, é um cristão: "o irmão de condição
humilde”. E o rico? É um cristão ou um incrédulo? Nos dois casos anteriores, a
probabilidade quase que total é que não sejam da igreja. Em 2:6, 7, pelo menos,
isso é bem claro. Sendo a Epístola de Tiago um livro que se assemelha à
literatura sapiencial do Velho Testamento, bem pode ser que o autor emprega o
termo no mesmo sentido em que os Salmos usam "justo” e "ímpio”. Neste caso,
o pobre seria sempre um cristão, e o rico, sempre um incrédulo, inclusive no
texto em foco.
Na realidade, o mais importante é o seguinte: Qual a recomendação bíblica para
o pobre, no tocante à sua pobreza? Qual a recomendação bíblica para o rico, no
tocante à sua riqueza? Podemos perder o sentido do estudo bíblico quando
fixamos a nossa atenção no que não é essencial, brigando pelos acessórios e
esquecendo-nos assim do fundamental. Fixemo-nos nisto: Quais os conselhos do
"servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo”?

A Versão Revisada da Imprensa Bíblica Brasileira traduz: "0 irmão de condição


humilde glorie-se na sua exaltação.” A ERAB traduz "exaltação” por
"dignidade”. Aqui está onde o irmão deve gloriar-se: na sua "exaltação”, ou no
dar lugar à sua "dignidade”. Primeiro ressalte-se o fato que o irmão humilde não
deve desprezar-se por ser pobre. Não deve envergonhar-se dessa situação, nem
julgar que é uma pessoa de terceira ou última categoria. Depois, ressalte-se que
ele deve gloriar-se. 0 verbo "glorie-se” tem o sentido de: "Regozije-se com
confiança.” (E o grego kaúchesis). Na sua pobreza, o irmão humilde tem algo
com que regozijar-se: sua "dignidade”. Aqui temos o substantivo grego hypsei
— altura, posição elevada, exaltação. Da sua raiz vem hypsistos, usado para
"Altíssimo”, aquele que está acima dos homens, não pelo que tem, mas pelo que
é. Alguns presumem que a glória é a identificação com o Altíssimo, ou seja, a
glória do pobre é ser crente — filho do Altíssimo. Esta idéia não cabe no
contexto. Registro-a, porém, como interpretação que tem defensores, mas é só
interpretação. Não podemos crer que ao pobre só reste a fé como
alternativa, num esquema tipo: "rico fica com dinheiro, pobre fica com religião”.
A Bíblia de Jerusalém, por exemplo, favorece esta posição com uma nota de
rodapé que diz: "Os ricos não

participam da exaltação dos pequeninos a não ser que se humilhem com eles.” Já
a Bíblia na Linguagem de Hoje dá um sentido totalmente econômico: o pobre
exulte quando ficar rico, e o rico exulte quando ficar pobre.

A glória do pobre é o seu caráter, aquilo que ele é, na sua natureza moral e
espiritual. 0 Novo Testamento Vivo parafraseou bem: ”0 cristão què não goza de
muito prestígio neste mundo deve sentir-se alegre, pois ele é grande aos olhos
do Senhor.” A glória do Altíssimo é pelo que ele é e não pelo que ele tem. Assim
é a glória do crente pobre. Não pense que é inferior. Não aceite o padrão do
mundo que julga as pessoas por aquilo que elas possuem. Deus julga o homem
por aquilo que ele é. Tiago vem combater a ilusão contemporânea, segundo a
qual a realização está no ter. Engano, puro engano. A realização está no ser. Diz
Provérbios 22:1: ”0 bom nome vale mais do que muita riqueza; ser estimado é
melhor do que ter prata e ouro” (BLH). Ao invés de se envergonhar de ser pobre,
mantenha o tesouro da dignidade. A busca de bens, por quaisquer que sejam os
meios, tem arruinado nossa sociedade. "Seja bem-sucedido economicamente,
custe o que custar! Lance mão de todos os meios! Roube, fraude, minta, seja
desleal, faça tudo o que puder, mas seja rico!” Esta é a filosofia que parece
nortear o mundo de hoje. Nós, cristãos, precisamos ser coerentes com a nossa fé,
mesmo correndo o risco de sermos chamados de "ultrapassados”. Devemos
sustentar nossos princípios. E melhor ser um pobre honesto e em paz com a
consciência e com Deus do que ser um rico desonesto e não ter paz e glória
moral. Isto não significa que todo rico é desonesto. Significa, sim, e precisamos
reafirmar isto em alto e bom som, que a honra deve ser preferida à desonra,
mesmo que esta traga riquezas e aquela, pobreza. Os cristãos precisamos
reafirmar bem alto a superioridade dos valores morais e espirituais à nossa
geração, que vive engolfada num materialismo pragmático.

"0 rico no seu abatimento”, ou "insignificância” (ERAB). 0 rico também deve


gloriar-se, mas não nas suas riquezas. "Abatimento” é tapeinósei, o dativo
singular de tapeínosis, que significa "baixeza, humildade, humilhação”. 0 verbo
relacionado com este substantivo é lapeinóo, que tem como um de seus sentidos
ajustar-se a um nível econômico mais baixo, conformar-se a uma nova situação
financeira. E "saber viver na pobreza”. Isto explica o sentido totalmente
econômico que a Bíblia na Linguagem de Hoje deu em sua tradução.

Pode ser também que o "abatimento” seja uma atitude espiritual — o que não
significa a espiritualização da passagem. 0 adjetivo tapeinós, que tem a mesma
raiz de tapeínosis, e inclusive um dos seus significados (humilde), no
pensamento secular era usado como "pobre, desprezado”. Mais tarde,
seu emprego no pensamento cristão veio a ser no sentido de "manso, pobre de
espírito” (não é, no entanto, o termo que surge nas Bem-Aventuranças sobre o
manso e o pobre de espírito). Se caminharmos por esta linha de interpretação,
a recomendação ao rico é que ele não se glorie nas riquezas, mas numa atitude
espiritual de quebrantamento. Já vimos que "gloriar-se” é "regozijar-se com
confiança”. Que o rico se regozije confiantemente, não no seu poder econômico,
mas num quebrantamento diante de Deus. Aqui é que está a sua segurança. Da
mesma forma, o pobre não deve buscar riquezas a qualquer preço, mas sim,
preservar a sua dignidade. A discussão de Tiago seguiria, então, neste rumo: as
circunstâncias terrenas são transitórias, não são o valor último. 0 pobre não deve
direcionar toda a sua vida em melhorar de situação, mesmo que à custa de sua
dignidade, derrubando a sua glória. Já o rico, não deve confiar nas suas riquezas,
como se estas fossem um deus que o garantisse no momento de aflição
espiritual. Que sua glória seja a humildade em reconhecer que não é
poderoso, pois como ensina o versículo 11, os bens materiais se esvaem.

"Ppis o sol se levanta em seu ardor e faz secar a erva.” 0 texto nos remete ao
livro do profeta Isaías, no capítulo 40:6-8. No início do capítulo, exatamente o
início de uma nova seção no livro, o profeta traz uma mensagem de consolação
ao Judá cativo na Babilônia. Seu tempo de escravidão está completado. Os
eLivross voltarão para sua terra pelo caminho do deserto entre Babilônia e
Palestina, conduzidos pelo Senhor. Os versículos 6-8 tratam da imutabilidade da
Palavra de Deus em contraposição ao poder humano. "O povo é erva." Refere-se
à humanidade, mais particularmente aos caldeus, cujo momento histórico estava
passando e, como a erva, secando. Era assim com Babilônia, o grande reino
caldeu. Estava secando. Mas a palavra de Deus permanece para sempre. Ela
anunciou a ida para o cativeiro e agora anuncia a saída. Os caldeus tinham
um formidável poderio. Basta lembrar que na estátua de Daniel 2 o maior dos
impérios mundiais é o caldeu. Os outros que o sucederam foram inferiores. Mas
a poderosa Babilônia ia passar, enquanto a palavra de Deus ia permanecer.
Quando o hálito do Senhor alcançasse a erva, esta murcharia. Em Isaías 40:7, o

"hálito” é o hebraico ruah, que tanto significa "vento” como "espírito”. Segundo
os comentaristas mais reputados, ruah é empregado aqui no sentido de "vento”,
o vento quente e seco, vindo do deserto, o chamado siroco. Quando o sol quente
da Palestina tinha seu calor empurrado pelo siroco, a vegetação secava. Lemos
sobre os efeitos desse vento em Ezequiel 17:10: "Mas, estando plantado,
prosperará? Não se secará de todo, quando a tocar o vento oriental? Nas aréolas
onde cresceu se secará.” "Vento oriental” é outra denominação do siroco, já que
ele vinha do oriente, através do deserto.

Assim é o homem. Ei-lo na sua imponência, manifestando grande poder. Mas,


assim como o siroco acaba com a transitória beleza da flor, o toque divino
extingue o poderio humano. "Vi um ímpio cheio de prepotência, e a espalhar-se
como a árvore verde na terra natal. Mas eu passei, e ele já não era; procurei-o,
mas não pode ser encontrado” (Sal. 37:35, 36). A erva seca é reduzida a nada.

"Assim murchará também o rico. èm seus caminhos”. Se a confiança do rico


estiver depositada nos bens materiais, ele murchará. Secará. Será reduzido a
nada. A glória do rico não deve ser a sua riqueza material. Ela é frágil, apesar de
seu aparente poder. Dois exemplos opostos no Novo Testamento mostram isto.
Um é o jovem rico que, sendo desafiado a optar entre suas riquezas e o seguir a
Jesus, optou pelas riquezas. Amava-as mais. Mas saiu triste. Ficou com tudo,
mas sem Cristo. Assim, estava sem nada. O outro exemplo é o de
Zaqueu. Compreendeu que a amizade de Cristo valia mais que suas riquezas, e
preferiu desfazer-se da parte delas, dando-lhes função social, e seguir ao mestre.
É mostrado como um homem que se realizou.

O parecer de Tiago sobre o nosso posicionamento diante das riquezas é de


grande relevância para os nossos dias. A posse de bens materiais não é o mais
alto valor. Importa afirmar, sejamos pobres ou sejamos ricos, que os valores
espirituais são eternos, e o desenvolvimento dos valores morais agrada a Deus.
Mais importanW que ter coisas é ser. Viver corretamente, como Deus deseja.
Recordemos as palavras do Senhor a Samuel, sobre o porquê da rejeição de Saul:
"Não atentes para a sua aparência, nem para a grandeza da sua estatura, porque
eu o rejeitei; porque o Senhor não vê como vê o homem, pois o homem
olha para o que está diante dos olhos, porém o Senhor olha para o coração” (I
Sam. 16:7).
A Questão da Tentação

Bem-aventurado o homem que suporta a provação; porque, depois de aprovado,


receberá a coroa da vida, que o Senhor prometeu aos que o amam. Ninguém,
sendo tentado, diga: Sou tentado por Deus: porque Deus não pode ser tentado
pelo mal e ele a ninguém tenta. Cada um, porém, é tentado quando atraído e
engodado pela sua própria concupiscência; então, a concupiscência, havendo
concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, sendo consumado, gera a morte.
(1:12-15)

A discussão de Tiago agora é a respeito da origem do pecado na esfera da vida


humana. Como sempre, o autor é prático e não se perde em discussões sobre a
origem do pecado. Preocupa-se em mostrar como este surge na vida humana e
conduz os homens à prática do mal.

De início, Tiago nos traz uma bem-aventurança para os que suportam a


provação. "Bem-aventurado o homem que suporta a provação” (v. 12). Esta é
uma das duas bem-aventuranças da epístola (a outra se localiza em 1:25). É
dirigida aos que suportam a provação. Makários é o termo grego para "btftn-
aventurado”, sendo a mesma palavra que Mateus utiliza no Sermão do Monte.
Significa "feliz, bendito”, e aplica-se ao homem digno de felicitações e
admiração, possuidor de um verdadeiro bem-estar. 0 que suporta a provação é
uma pessoa nestas condições. "Suporta” é hypoménei (sofre calma e
heroicamente). 0 crente que suporta com firmeza a provação é um bem-
aventurado, uma pessoa digna de felicitações e admiração.

Esse crente "receberá a coroa da vida”. É a mesma promessa de Apocalipse 2:10,


onde a fidelidade dos esmirnianos, mesmo que à custa da morte, lhes daria a
coroa da vida. "Coroa” é stéphanos que se usa para a grinalda do atleta vitorioso,
para a coroa do vencedor dos jogos e também para o galardão dos fiéis. (Para
"coroa real” geralmente o grego usa diádema.) É o reconhecimento da vitória
daquele que suporta com firmeza a provação. É a recompensa que "o Senhor
prometeu aos que o amam”. Tiago fala em provação e tentação. Na mente dele
há uma preocupação em mostrar que, se as provações trazem um benefício, o da
recompensa pelo próprio Senhor, não se deve pensar que as tentações também
são trazidas pelo Senhor.

A culpa da tentação não pode ser atribuída a Deus. "Ele a ninguém tenta”. As
versões bíblicas mais antigas trazem, em Gênesis 22:1, a expressão: "E
aconteceu, depois destas coisas, que tentou Deus a Abraão...” A tradução mais
correta para '/tentou” é "provou” ou "testou”. A Versão Revisada da IBB, «e
Acordo com os Melhores Ttextos em Hebraico e Grego, traz /jf'provou”.
Literalmente, o ternfo hebraico é nasa, que significa "testar, provar”. Uma
palavra derivada desta veio a ser massa, termo utilizado para testar a qualidade
de um metal, como o ouro, por exemplo, e descobrir, assim, seu grau de pureza
e valor. Acertadamente, as versões modernas, mais afeitas à língua original,
trazem "Deus provou a Abraão”.

"Deus não pode ser tentado pelo mal”. Ocasionalmente, alguém pergunta se
Deus, que tudo pode, pode também pecar. O pecado é uma impossibilidade
moral em Deus. De uma pessoa muito santa se diz que ela é incapaz de praticar a
maldade. Na realidade, não o é. Ninguém é incapaz da prática do mal, pois todos
somos pecadores. Mas, quanto mais acentuada é a qualidade moral de uma
pessoa, mais julgamos ser ela incapaz de qualquer atitude maldosa. Ora, a
santidade de Deus não é relativa. E santidade absoluta. O mal é uma
impossibilidade para Deus. Disse o profeta Habacuque: "Tu... és tão puro
de olhos que não podes ver o mal” (Hab. 1:13). O mal é uma impossibilidade
para Deus, não que ele queira cometê-lo e não possa, mas no sentido de que sua
absoluta santidade é incompatível com tudo que se choca com seu caráter santo.
Sendo Deus tão oposto ao mal e ao pecado, ninguém pode colocar sobre Deus a
culpa das tentações nas quais a pessoa está envolvida.

"Deus... a ninguém tenta.” O caso específico e muito particular de Abraão, já


referido, não pode ser tornado como um

padrão. O contexto nos desautoriza a assim proceder. A declaração de Tiago é


que Deus não deseja a queda de ninguém. O verbo grego empregado por Tiago
para "tentar” é peirázo, que significa, entre outros sentidos: "tento, solícito a
pecar”. É daqui que vem o termo peirazón, usado para o Tentador. Então, que
fique bem claro que entre Tiago e o texto de Gênesis 22:1 não há uma
contradição. Estão tratando de termos diferentes. Deus não deseja nenhum de
seus servos caindo em tentação.

Há, porém, um fato que não podemos deixar de considerar. A tentação é real.
Como surge? Creio na existência pessoal do Diabo, mas mesmo correndo o risco
de ser considerado como irreverente, permitam-me uma expressão. Sobre os
ombros do Diabo têm sido colocadas muitas culpas que são nossas, voluntária e
decididamente nossas. 0 indivíduo aguarda uma oportunidade para errar, busca e
força ocasião para pecar e depois diz: "0 Diabo me tentou e eu caí.” Tiago diz:
"Cada um, porém, é tentado quando atraído e engodado pela sua
própria concupiscência.” "Concupiscência” é um desses termos que lemos,
repetimos e desconhecemos. Significa "desejo intenso, ardente”. Não é algo
momentâneo. Surge depois de acalentado, de ser alimentado. Esse desejo, sendo
muito forte, tolerado e estimulado, impele-nos para o pecado. Somos atraídos.
0 termo "engodado” é de pescaria. Seu sentido é facilmente identificado por
pescadores. Deleazómenos é o termo grego. E a isca que o pescador utiliza para
encobrir o anzol e atrair o peixe. É bonita, atraente, mas por baixo dela está a
morte. E assim o pecado. Ele nunca se apresenta feio e destruidor, mas
sempre agradável. Somos, então, engodados e levados para o mal.

A concupiscência é a mãe do pecado. "A concupiscência, havendo concebido, dá


à luz o pecado”. Tiago está seguindo a mesma linha de raciocínio de Jesus. Ah!
se não fosse Lutero tão afobado! Tiago aceita a análise de Jesus, em
contraposição à teologia dos fariseus. 0 mal procede do interior do homem.
Este não é vítima dos astros nem produto do meio. Não é um manancial de
virtudes e pureza, como algumas correntes filosóficas e psicológicas querem
fazer crer. 0 homem pensa, sente, quer, toma decisões, é um ser responsável. São
os maus desejos do seu interior que o levam ao pecado. A força determinante
não é nada mais que interior. Foi isso que Jesus ensinou quando reinterpretou a
lei de Moisés. Esta proibia matar: "Não mata-rás” (Ex. 20:13), Jesus, porem diz:
"... todo aquele que se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e quem lhe

disser: Tolo, será réu do fogo do inferno” (Mat. 5:22). Se a lei inosaiea proibia o
assassinato, Jesus proibiu o ódio. E o ódio que produz o assassinato. Da mesma
forma, a lei mosaica proibia o adultério: "Não adulterarás” (Êx. 20:14). Jesus
disse: "Eu, porém, vos digo que todo aquele que olhar para uma mulher para a
cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela” (Mal. 5:28). O Senhor
Jesus não proibiu apenas o ato, foi mais fundo, foi às intenções. Sua exortação é
uma exigência para a pureza moral do coração. Ê o pensamento que gera o ato.
Assim traduz A Bíblia na Linguagem de Hoje: "Então, estes desejos fazem
nascer o pecado, e o pecado, quando já está maduro, produz a morte.”

Posso não matar uma pessoa, com receio das conseqüências, com medo de
perder minha reputação, mas odeio tal pessoa com todas as minhas forças. Que
virtude houve? Nenhuma! Não fiz o mal simplesmente por medo e não por amor
ao bem. O problema está na mente, no coração. Se eu tivesse garantias de que,
assassinando aquele meu desafeto, teria total impunidade, será que não o
mataria? Não lhe desejo mal, que não faço por contigências? Por isso,
reconhecendo que a sede das decisões está na mente, Paulo recomenda: "Buscai
as coisas que são de cima...” (Col. 3:1). Uma pessoa cuja leitura principal sejam
revistas pornográficas, não poderá ter uma mente pura. Se o assunto predileto de
alguém é imoralidade, não se pode presumir que venha a ter uma vida limpa. As
más conversas corrompem os bons costumes. Por causa disso, àlguém declarou:
"Você se torna o que você pensa.” A isto, pode-se ajuntar outra frase: "Você se
torna o que você lê.”

Os pensamentos determinam as ações e os sentimentos. Pensemos coisas boas e


as possibilidades de fazermos o bem serão maiores. Encha-se alguém de lixo, e
tudo que produzirá será lixo...

"Semeias um pensamento, colhes um ato.

Semeias um ato, colhes um hábito.

Semeias um hábito, colhes um caráter. f)

Semeias um caráter, colhes um destino.”

Chega-se ao destino final da pessoa, mas tudo começa com força dos
pensamentos acumulados. O que está você semeando em sua mente? Encha-se
de decência e dignidade, e você será decente e nobre. Encha-se de amargura, e
você será um indivíduo insuportável para os outros, além de arruinar a
sua própria vida. Por isso é que lemos em Provérbios 4:23: "Tenha

cuidado com o que você pensa, pois sua vida é dirigida pelos seus pensamentos”
(A Bíblia na Linguagem de Hoje).

Examine sua própria vida. Reavalie sua concepção de vida, seus pensamentos,
sua forma de ver e julgar o mundo. O filósofo Sócrates declarou: "A vida que
não é examinada não é digna de ser vivida.” Veja bem o que você está pensando.
Sobre os outros, sobre si mesmo, sobre a vida. Ordene seus pensamentos de
forma correta.
O Que É Bom Vem de Deus

Não vos enganeis, meus amados irmãos. Toda boa dádiva e todo dom perfeito
vêm do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra
de variação. Segundo a sua própria vontade, ele nos gerou pela palavra da
verdade, para que fôssemos como que primícias das suas criaturas. (1:16-18)

A expressão "não vos enganeis” é repetida algumas vezes no Novo Testamento.


Cabe-lhe uma função estilística, no conjunto da redação. Via de regra, refere-se
ao assunto tratado imediatamente antes do seu aparecimento e introduz um novo
assunto, servindo de ponte entre os dois. "Não vos enganeis” liga um assunto já
comentado a outro que se há de comentar e que é um desdobramento do anterior.
E um elemento de ligação entre duas idéias. Temos um bom exemplo dessa
estrutura em Gálatas 6:7. Observando bem este texto, ver-se-á que os versículos
1 a 6 tratam do espírito de mansidão que deve haver nas relações eclesiásticas,
sobre o levar as cargas uns dos outros e o cuidado com a maneira de pensar a
respeito de si mesmo. 0 versículo 7 faz uma ligação, serve de ponte, entre a
solidariedade que os crentes devem se prestar ao mesmo tempo que evitam a
arrogância, e a idéia posterior que trata sobre a colheita conseqüente de nossa
semeadura.

"Não vos enganeis” liga, em Tiago, duas idéias. Não se enganem, pensando que
o pecado vem de Deus (v. 13), pois dele só vem o bem, tanto que "ele nos gerou
pela palavra da verdade” (v. 18), e a partir do versículo 21 temos a
apresentação do que seja a "palavra da verdade”.

Nosso ponto de partida, portanto, deve ser o versículo 13. Não nos enganemos,
pensando que Deus nos conduz ao mal. Não nos desculpemos dos nossos
pecados, colocando a culpa em Deus. Ele não tenta a ninguém. Dele só vem o
que é bom e nunca o mal.

"Meus amados irmãos”. Apesar da advertência a ser feita, o tom é carinhoso. 0


escritor repreende sem ira, mas até com ternura. Uma lição que devemos
aprender aqui com Tiago é que a repreensão não é, necessariamente, briga com
alguém. Tampouco o uso de linguagem afável é indicativo de conivência com o
erro. Muitos dos polemistas de hoje parecem mais extravasar a sua ira do que
desejar afirmar algo que, a seus olhos, parece correto. São iracundos na sua
argumentação.
"Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto”. "Alto” é empregado aqui
como substituição para "Deus”. Embora várias vezes Tiago use o nome de Deus
na sua carta, era prática comum aos hebreus substituírem o nome divino por
outra forma de expressão. Em Lucas 6:20, a bem-aventurança aos pobres lhes
promete "o reino de Deus”. Lucas é um gentio escrevendo para gentios (veja-se
Lucas 1:3). Em Mateus, a mesma bem-aventurança aos pobres lhes promete o
"reino dos céus”. O evangelista Mateus é um judeu escrevendo para um público
de formação judaica; por isso substitui "Deus” por "céus”.

Além de o termo "alto” ser um sinônimo de Deus, outra consideração deve ser
feita sobre o mesmo. Ele mostra a transcendência de Deus. Ele é o que está lá em
cima, em contraposição aos homens, que estão cá embaixo. Essa transcendência
não deve ser entendida num sentido metafísico, mas sim, moral. Há uma
diferença entre Deus e os homens. Em João 8:23, por exemplo, encontramos as
seguintes palavras de Jesus: "Vós sois de baixo, eu sou de cima; vós sois deste
mundo, eu não sou deste mundo.” Há uma diferença entre Jesus e
seus opositores. Eles são de baixo, e ele é lá de cima, do alto. A diferença moral,
portanto, é acentuada pelo termo "alto”.

"Boa dádiva... dom perfeito”. "Dádiva” é o grego dósis e "dom” é dórema.


Ambos os termos são derivados de dídomi, que significa "dou, concedo,
ofereço”. Parece mais uma repetição para enfatizar o argumento, uma forma de
expressar, do que propriamente duas realidades distintas. 0 ensino de
Tiago,é» que Deus dá boas coisas ao seu povo. Tudo o que é bom vem de Deus.
Dele não nos vem o mal, a tentação. Vem o bem, que é descrito no versículo 18.

"Descendo do Pai das luzes”. Mais uma vez o nome divino é substituído por um
equivalente. No texto ora analisado parece mais uma questão de estilo literário
em que o escritor deseja evitar repetições do que uma questão teológica. Aqui,
Deus é o "Pai das luzes”. 0 dom vem dele, descendo, para nós. Uma conclusão
lógica, já que ele é lá do alto e nós somos cá de baixo.

A figura de Deus como luz é comum, tanto no Velho quanto no Novo


Testamento. "0 Senhor é a minha luz e a minha salvação...”, nos diz o Salmo
27:1. Em I João 1:5 lemos que "Deus é luz”. 0 Salvador também aplicou a si a
significativa figura: "Eu sou a luz do mundo; quem me segue, de modo algum
andará em trevas, mas terá a luz da vida” (João 8:12). Mas, Tiago ultrapassa a
metáfora. Na realidade, o sentido aplicado por Tiago é até diferente. Ele não
declara que Deus é luz, mas "Pai das luzes”. A linguagem é alusiva a Deus
como Criador dos luminosos, ensino que fica patente em Gênesis 1:14-18. Ele é
Pai do que existe de mais elevado na criação, os astros. Estes se localizam muito
acima dos homens. Mas, quem os criou é maior do que eles e está acima deles,
por ser "o Pai das luzes”.

A linguagem cosmológica é confirmada pelo final do versículo 17: "em quem


não há mudança nem sombra de variação”. 0 Pai é imutável. Faça-se, porém,
uma observação necessária: Não confundamos imutabilidade com imobilidade
ou fixismo; Deus não muda seu caráter e sua essência, mas age de
maneiras diferentes de como agiu no passado. Ele não está preso a esquemas.
Não há nele sombra de variação. Até os astros mudam. Os contemporâneos de
Tiago não estavam familiarizados com muitos dos conceitos atuais de
astronomia, mas viam as luzes do firmamento cintilarem, viam o sol nascer e
se pôr, tendo o seu brilho diminuído durante o dia, viam as fases da lua. As luzes
do firmamento mudavam, mas o Pai que os criou não muda nunca. É sempre o
mesmo. A ERAB, ao invés de dizer "não há mudança”, traduziu "não pode haver
mudança”. A Bíblia da Vozes manteve o sentido cosmológico ao verter assim:
"Em quem não há mudança nem sombra de eclipse”. Ele nunca muda, é a
afirmação de Tiago. Sempre é bom. Nunca deixará de ser bom e de dar boas
coisas aos seus filhos.

Não é suficiente, porém, dizer que "toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do
alto”. Qual é a evidência desta declaração? 0 que tem Tiago para apresentar
como prova de sua afirmativa? A resposta está no versículo 18: "Segundo a sua
própria

vontade, ele nos gerou pela palavra da verdade...”. É o novo nascimento: "ele
nos gerou”.

Antes de se comentar o novo nascimento é oportuno observar que foi "segundo a


sua própria vontade” que ele agiu. A salvação é produto do querer de Deus. É a
sua vontade e o seu amor para conosco que estão como elementos motivadores
da nossa salvação. Não encontramos na Bíblia um Deus relutante aos apelos de
um homem desesperado por uma salvação que lhe é negada. Desde o Éden
encontramos um Deus que procura e um homem que se esconde. Deus quer o
nosso bem. Foi o seu querer, a sua vontade, que o levou a salvar-nos.

Pelo seu querer, Deus "nos gerou”. 0 texto grego traz apekyesen, do verbo
apokyéo, que significa literalmente "dou à luz” e é derivado de kyo (ou kyéó),
cujo sentido é "estou grávida”. A idéia de 1:18 é bastante curiosa. No processo
de novo nascimento do cristão, Deus reúne em si tanto as funções masculinas
como as femininas: "ele nos deu à luz”. Ele nos fez nascer espiritualmente
porque assim o desejou.

Como fomos gerados? Qual o processo pelo qual se deu a gravidez e o parto do
cristão? "Ele nos gerou pela palavra da verdade”. O meio para a nossa geração
foi "a palavra da verdade”. A mesma idéia encontramos em I Pedro 1:23,
que diz: "tendo nascido, não de semente corruptível, mas de incorruptível, pela
palavra de Deus, a qual vive e permanece”. Os termos variam, mas a idéia é a
mesma. Em Tiago, temos "palavra da verdade”. Verdade é um conceito muito
presente nos escritos de sabedoria. Em Pedro temos "semente... incorruptível...
palavra de Deus, a qual vive e permanece”. 0 que é "palavra da verdade” e
"palavra de Deus”? É evidente que os dois escritores não estavam se referindo ao
conjunto de livros que denominamos Bíblia. As expressões se referem ao
conjunto da revelação de Deus aos homens e que se completou com a vinda de
Jesus Cristo, o clímax da revelação. A idéia de Cristo como o ápice da revelação
é bem sustentada pelo autor de Hebreus, principalmente Hebreus 1:1,2. Este
conjunto é chamado por Tiago de "lei da liberdade” em 1:25 e 2:12 e de
"lei real” em 2:8. A revelação completa de Deus ao homem traz a indicação de
como se tornar livre.

Deus nos fez nascer pela palavra da verdade, "para que fôssemos como que
primícias das suas criaturas”. "Primícias” significa "primeiros”. Os cristãos,
nascidos pela palavra, são os primeiros? E isto significa que há outros? Quem
são os segundos?

Não é nesta linha de raciocínio que deve caminhar a nossa argumentação. As


primícias eram o princípio da colheita que se oferecia a Deus. Deviam sempre
ser o princípio, porque este é o fundamento da mordomia: Deus deve ter
prioridade. A Deus não se dá o resto nem o que sobeja. Assim sendo, os
primeiros frutos eram consagrados a Deus, dados a ele. 0 livro de Levítico trata
exatamente dos regulamentos sacerdotais, incluindo as ofertas ao Senhor. E
termina tratando justamente das coisas consagradas ao Senhor. Diz então o texto
de Levítico 27:28, 29: "Todavia, nenhuma coisa consagrada ao Senhor
por alguém, daquilo que possui, seja homem, ou animal, ou campo de sua
possessão, será vendida nem será remida; toda coisa consagrada será santíssima
ao Senhor. Nenhuma pessoa que dentre os homens for devotada será resgatada;
certamente será morta”. 0 que a Deus fosse oferecido, seria dele, irremissivel-
mente dele. 0 texto de Deuteronômio 26:1-11 trata do oferecimento das
primícias. Dadas a Deus, passavam a ser dele.

Cristo nos resgatou do poder do Inimigo e nos deu ao Pai. Somos propriedade
divina. Não pertencemos mais ao poder das trevas. Somos de Deus. E não somos
um presente dado de forma irrefletida e recebido de má vontade. Foi o querer de
Deus que operou o processo de nosso novo nascimento. E foi sua
revelação consumada em Jesus Cristo, numa sintonia entre as pessoas
da divindade, que nos gerou. Por isso, tudo o que temos de bom, a começar da
salvação e da comunhão, vem-nos de Deus. Ele nos ama e nos dá o que é bom.
A Ira e o Mau Temperamento

Sabei isto, meus amados irmãos; Todo homem seja pronto para ouvir, tardio
para falar e tardio para se irar. Porque a ira do homem não opera a justiça de
Deus. Pelo que, despojando-vos de toda sorte de imundícia e de todo vestígio do
mal, recebei com mansidão a palavra em vós implantada, a qual é
poderosa para salvar as vossas almas. (1:19-21)

0 assunto que Tiago agora passa a desenvolver ocupa lugar especial em sua linha
de raciocínio. Evidentemente, isto não significa que até agora ele tratou de
banalidades e passado este assunto voltará a tratar de assuntos banais. "Sabei
isto” é uma forma de expressão que reclama importância para o que vai ser dito.
Ele deseja toda a atenção de seus leitores, pois é fundamental para a vida deles o
que vai ser dito.

A advertência de Tiago é a respeito do uso da palavra; sobre a ira e o


temperamento descontrolado. 0 vocabulário do cristão deve ser condizente com
o caráter do Salvador, e esse caráter do Salvador deve ser assimilado pelo
cristão. 0 homem espiritual deve saber se controlar, tanto verbal quanto
emocionalmente.

"Pronto para ouvir”. A palavra "pronto”, no grego, é velha conhecida nossa. E


taxys, que significa, literalmente, rápido. 0 veículo de aluguel chamado táxi é
um transporte rápido. Quem está com pressa para um determinado compromisso
não vai esperar por um ônibus. Apressa-se num táxi. Deve haver rapidez do
cristão em ouvir. Falar, todos nós sabemos. Qualquer pessoa com capacidade
para ouvir, entender e decodi-

ficar os sons que recebe pode reproduzi-los. Gostamos de falar. Aí estão as


camisetas com legendas, algumas banais, e os adesivos para automóveis. Cada
um quer divulgar sua mensagem. E natural o nosso desejo de tentar comunicar o
que achamos importante. Mas, e ouvir? Temos interesse em ouvir? Foi por isso
que um humorista disse: "A psicanálise não resolve, mas é cara, porque o
analista cobra para fazer o que os outros não querem fazer: ouvir.” Esta
observação reflete o quão pouco se valoriza o ouvir em nossos dias. Tiago nos
exorta a sermos rápidos em ouvir o ponto de vista alheio. Com que
incrível facilidade tendemos para a intolerância! Aliás, este é um risco que as
pessoas que lidam com religião correm. Elas já sabem a verdade, já conhecem
Deus e suas realidades. Estas coisas lhes são tão familiares! Ouvir o que mais?
Que os outros a ouçam, já que elas estão certas! 0 diálogo se torna um discurso
de mão única.

A Bíblia nos registra muitas orações tocantes, sendo que algumas formuladas em
momentos de desespero. Mas, sem dúvida, uma das mais sábias foi formulada
pelo menino Samuel: "Fala, Senhor...”

A palavra que Deus mais usa, tanto no Velho quanto no Novo Testamento, é
exatamente esta: "Ouve”. Não será que grande parte de nossos problemas reside
exatamente no fato de não sabermos ouvir? Muitas dificuldades de nosso
temperamento não se devem à nossa incapacidade de diálogo, de conhecer
as razões alheias? Já sabemos tudo, temos a verdade e não queremos ouvir!
Queremos falar.

"Tardio para falar”. 0 sentido da palavra "tardio” traz curiosas peculiaridades. 0


termo grego é bradys. É o mesmo termo para "estúpido”, denotando uma pessoa
com dificuldades intelectuais para compreender logo de início o que lhe foi dito
e necessita, portanto, de reflexão. É esta a idéia de Tiago: refletir para falar. Não
falar de imediato. E preciso saber a hora de falar e também saber o que falar.
Quem muito fala, muito erra. Vários problemas surgem no meio da Igreja de
Cristo exatamente por falta de obediência a este conselho. Fala-se antes de
pensar. Fala-se antes de orar. Fala-se sem medir as conseqüências que advirão.
Por isso, lê-se em Provérbios 10:19 que "na multidão de palavras não falta
transgressão; mas o que refreia os seus lábios é prudente”. Ainda em Provérbios
se lê: "O coração do justo medita no que há de responder; mas a boca dos ímpios
derrama coisas más” (Prov. 15:28). Devemos tomar

muito cuidado com nossas palavras. Elas podem levantar uma vida ou, então,
destruir uma pessoa. Há um sábio provérbio inglês que, traduzido, assim nos diz:
"Tu és senhor da palavra não dita; a palavra dita é teu senhor.” Enquanto não se
profere a declaração, as palavras estão sob domínio. Proferida a sentença, a
pessoa está presa ao que disse.

"Tardio para se irar”. Novamente bradys. Mais uma vez Tiago mostra algo que
deve ser feito com reflexos lentos, com certa dificuldade em fazer a ira entrar em
ação. Com muita propriedade, Provérbios 16:32 assim
diz: Melhor é o longâ-
nimo do que o valente; e o que domina o seu espírito do que o que toma uma
cidade.” A maior demonstração de força, segundo a Bíblia, está no autodomínio,
e não no domínio sobre os outros.

Sobre a ira, há ainda alguns aspectos que devem ser considerados.

Primeiro: A irá é proibida aos crentes. "Mas eu lhes digo que qualquer um que
ficar com raiva de seu irmão será julgado. Quem disser a seu irmão: 'Você não
vale nada’, será julgado pelo tribunal. E quem chamar seu irmão de idiota, estará
em perigo de ir para o fogo do inferno ’. (Mat. 5:22 — BLH). 0 cultivo de
sentimentos negativos contra um irmão é vedado ao seguidor de Jesus Cristo.

Segundo'. A ira não é um sentimento digno de estar no coração de um crente.


"Abandonem toda amargura, ódio e raiva. Nada de gritaria, insultos e maldade”
(Ef. 4:31 — BLH). Lemos também em Colossenses 3:8: "Mas agora deixem
tudo isto: a raiva, a paixão e os sentimentos de ódio. E que nenhum insulto ou
conversa indecente saia da boca de vocês.”

Terceiro: A ira é obra da carne, da natureza não regenerada. Em Gálatas 5:19, 20,
lemos o seguinte: "São bem conhecidas as coisas que a natureza produz: a
imoralidade, a impureza, as ações indecentes, adoração de ídolos e as feitiçarias.
As pessoas ficam inimigas, brigam, ficam com raiva e se tornam ciumentas e
ambiciosas. Separam-se em partidos e grupos” (BLH). A ira e a dissensão estão
ao mesmo nível da idolatria e da feitiçaria.

Quarto-. A ira não traz benefício para ninguém. Nem para quem a cultiva. Aliás,
faz mais mal a quem a cultiva do que a quem é objeto dela. Agasalhar ira no
íntimo é como colocar ácido corrosivo num recipiente não tratado. Se uma
pessoa odeia outra, esta odiada continuará a comer, a beber e a dormir

normalmente, levando a vida em rotina. Mas, o odiador, cada vez que vir o
objeto de sua ira se sentirá mal. Muitas doenças nervosas são conseqüências de
sentimentos destrutivos acalentados contra outros.

Quinto-. A ira e a crueldade andam juntas. Esta é uma das mais fortes razões
pelas quais o servo de Jesus deve fugir da ira. Ela induz à crueldade. A beira da
morte, Jacó amaldiçoou Simeão e Levi por causa da raiva e da maldade de
ambos: "Maldito o seu furor, porque era forte! Maldita a sua ira, porque era
cruel!” (Gên. 49:7). A atitude violenta de Simeão e Levi (conheça a história em
Gênesis 34:25-31) num momento de ira, privou-os de maiores bênçãos e fê-los
receber a maldição do pai.

Sexto-. A ira não deve ser nem acalentada por um cristão. Efésios 4:26 nos deixa
a seguinte recomendação: "Se você ficar com raiva, não deixe que isso o faça
pecar, e não fique com raiva o dia todo” (BLH). Há um sentimento momentâneo
diante de determinadas circunstâncias, que não nos deixam pensar direito. Mas,
acalentar a ira, deixar o sol se pôr sobre ela (ou seja, ruminá-la o dia todo) é
errado. Não deve ser acalentada, porque além de errada é inútil: "A ira do
homem não opera a justiça de Deus.” Nossos sentimentos não obrigarão Deus a
agir desta ou daquela maneira. A Bíblia na Linguagem de Hoje verte assim a
passagem: "Porque a raiva humana não produz o que Deus aprova.” Os frutos da
raiva não são aprovados por Deus.

Deus fez uma pergunta a Jonas: "E razoável essa tua ira?” (Jon. 4:9). Mais que
retórica, a pergunta é de extrema profundidade: De que adianta a ira? É, ao
menos, razoável?

Estamos estudando Tiago. Por que as citações de outros livros? Por duas razões:
A primeira é que a Bíblia é uma unidade. Todo o seu ensino caminha junto. Todo
o seu ensino segue junto, não se contradizendo. Ela não é uma colcha
de retalhos, com idéias bonitas, mas dispersas e díspares, cada uma de cor
diferente, de um feitio ou de outro tecido. É uma perfeita harmonia. 0 que Tiago
ensina, o restante da Bíblia confirma, e o que a Bíblia ensina, Tiago confirma. A
segunda questão é que desejamos mostrar que Tiago não é uma epístola de
palha, posto que muitos dos seus conceitos estão presentes por toda a Escritura.

No entanto, a questão mais importante é esta: Como superar a ira? Sei que não
devo me irar, mas constantemente o faço. Como

posso superar esse pecado? 0 versículo 21 dá a resposta: "Pelo que, despojando-


vos de toda sorte de imundícia e de todo vestígio do mal, recebei com mansidão
a palavra em vós implantada, a qual é poderosa para salvar as vossas
almas.” Prestemos atenção ao verbo "despojando-vos”. 0 grego original é
apothémenoi, cuja idéia é "remover, afastar”. A preposição apó nos orienta mais
na compreensão da palavra. E algo que vem de dentro para fora. A idéia é tirar
de nós a impureza, a imundícia e a maldade. Uma boa figura, pois o termo
era comumente usado para a troca de roupa suja; para a pessoa que vai trocar de
roupa. Não é algo que lhe é posto em cima, mas que, pelo contrário, parte dela.
Ela vai se trocar, vai tirar uma roupa velha e suja. 0 cristão mudou de roupa.
Deixou as imundícias do traje antigo. Na sua vida se cumpriu o
conselho paulino: "A noite é passada, e o dia é chegado. Dispamo-nos, pois, das
obras das trevas, e vistamo-nos das armas da luz” (Rom. 13:12).

A expresão "pelo que” nos remete ao versículo anterior. Mostra-nos que a roupa
suja do cristão era a ira (assunto anterior). Ele deve tirá-la.

Tirar a ira de dentro de si, porém, é insuficiente. É preciso colocar um


substitutivo em seu lugar. "Recebei com mansidão a palavra em vós
implantada”, ensina o versículo 21. A ira volta muito cedo. É uma emoção, e as
emoções, via de regra, são muito fortes para que a simples racionalização as
elimine. Jesus contou a história do homem possuído por um espírito maligno. 0
espírito foi expulso, mas nada foi colocado no lugar que por ele era ocupado.
Então, ele voltou com mais sete, e, assim, o estado posterior desse homem
tornou-se pior que o anterior. Tiago exorta-nos a tirarmos a roupa suja do
passado (e a ira é roupa suja) e colocar a Palavra de Deus no seu lugar.
"Recebei com mansidão a palavra em vós implantada”. Outra boa tradução para
"implantada” é "enxertada”. É um implante, um enxerto no tronco original, para
que os frutos sejam melhores. Tudo que posso produzir é apenas frutos
maus, inclusive a ira e o descontrole verbal. Mas, quando implanto ou enxerto a
palavra de Deus em mim, então, posso produzir bons frutos.

Como posso acabar com meu temperamento carnal e irascível, com as minhas
inclinações para a ira e dissensões? De mim mesmo não posso. Mas, quando
deixo que as palavras do Senhor sejam guardadas dentro de mim e que brotem
do meu íntimo, então meu caráter muda. Uma das oportunas lições de Tiago é

que a Palavra de Deus, aplicada em nossas vidas, há de mudar nossa maneira de


ser.

O segredo para vencer a ira e o mau temperamento está aqui: ter a Palavra de
Deus enxertada no coração. "Escondi a tua palavra no meu coração, para não
pecar contra ti’’ (Sal. 119:11).

Há tempos atrás, no seminário onde estudei, um especialista em mordomia cristã


esteve ministrando estudos sobre contribuição financeira. A guisa de brincadeira,
ao encerrar sua palavra, disse que muitos membros das igrejas não
contribuíam por culpa das próprias igrejas. Geralmente, usamos uma beca branca
como vestimenta do batizando. As becas não possuem bolsos para os batizandos
colocarem a carteira. Batiza-se a pessoa, mas o seu dinheiro não. O dinheiro fica
sem identificar-se com Cristo. 0 então reitor do seminário, Dr. João Filson
Soren, respondeu que passaria a batizar crentes com a boca aberta, para batizar
também suas línguas, pois muitos crentes também não têm seu falar identificado
com Cristo. Controlar as palavras é uma característica do servo de Cristo.
Necessitamos de línguas "batizadas”.

A outra característica distintiva de um crente é saber ouvir. Eis um trecho de bela


prosa poética do francês Michel Quoist, intitulada "Telefone”:

"Pronto. Desliguei. Mas, por que terá telefonado?

Ah! Sim, Senhor... eu já me lembro.

È que falei demais e bem pouco escutei.

Perdão, Senhor, recitei um monólogo e não dialoguei.

Impus minha opinião e não troquei idéias.

Por não ter escutado, eu não aprendi. 13

Por não ter escutado, nada levei comigo.”

A poesia continua, mas este trecho é suficiente para nosso raciocínio. Quanto
perdemos por não saber ouvir! Não será que até mesmo parte da
improdutividade de nossos esforços evan-gelísticos é exatamente porque
falamos, falamos, e pouco ouvimos? Sabemos quais são as aspirações das
pessoas, o que pensam, o que sentem, o que almejam? Ou apenas lhes
despejamos palavras em cima, porque temos a verdade e são elas bárbaros
espirituais que devem nos ouvir? Nossa evangelização é autoritária e impessoal.

Por fim, vimos que o forte não é o guerreiro, mas o que doma o seu
temperamento. Para o mundo que não conhece a Deus e

não possui o esclarecimento de sua palavra, forte é o truculento, o sanguinário e


sem controle. Para a Bíblia, o homem verdadeiramente forte é aquele que
domina a si mesmo. Somos fortes segundo o mundo ou fortes segundo Deus?
Vivendo a Palavra

E sede cumpridores da palavra e não somente ouvintes, enganando-vos a vós


mesmos. Pois se alguém é ouvinte da palavra e não cumpridor, é semelhante a
um homem que contempla no espelho o seu rosto natural; porque se contempla
a si mesmo e vai-se, e logo se esquece de como era. Entretanto aquele que
atenta bem para a lei perfeita, a da liberdade, e nela persevera, não sendo
ouvinte esquecido, mas executor da obra, este será bem-aventurado no que fizer.
(1:22-25)

Em análise anterior já vimos que a Palavra de Deus deve ser enxertada para
produzir bons frutos na vida da pessoa. A discussão é sobre a produção de um
caráter cristão pela implantação da palavra divina na vida. A questão continua a
ser desenvolvida agora. Tiago emprega três figuras para designar a Palavra.

A primeira figura está no versículo 18: "Ele nos gerou pela palavra da verdade”.
Fomos tornados novas criaturas por um ato divino, mas o instrumento utilizado
foi a Palavra: "pela palavra da verdade”. A Palavra de Deus tem o poder de
nos tornar novas criaturas. Ela é o gérmen da nova vida.

A segunda figura encontramos no versículo 21. Ela é o enxerto que, implantado


no tronco de nossa vida, pode melhorar a qualidade dos frutos. Melhor dizendo,
ela pode produzir frutos em nós que de outra maneira não conseguiríamos
produzir. É bom que se note a ênfase que Tiago dá à Palavra de Deus para
moldar e corrigir a vida dos seguidores de Jesus Cristo.

No versículo 23 encontramos a terceira figura. A palavra é espelho. Todos


sabemos da utilidade de um espelho. E também sabemos de suas limitações. Em
termos de utilidade, o espelho reflete a imagem que somos. Mostra-nos como
estamos. Assim é a Palavra de Deus. Ela nos mostra o que somos e como
estamos. Em um de seus sermões, Billy Graham definiu muito bem esta questão
ao dizer que "o homem é precisamente o que a Bíblia diz que ele é”.14 Em
termos de limitação, o espelho, por si só, não muda nossa fisionomia, como
muitos gostaríamos. Eu me sentiria feliz se olhando para o espelho ele pudesse
me tornar mais bonito, mais atlético, mais jovem. Infelizmente, ele registra
apenas o que eu sou. A simples leitura da Bíblia não é um ato mágico que
mudará as pessoas. Indicará suas deficiências, confrontando-as com a vontade de
Deus para suas vidas, e as pessoas, sabendo de suas deficiências, poderão
corrigi-las.

Estas três figuras mostram que os ouvintes de Tiago sabiam do valor das
Escrituras. Sem dúvida, todos nós também estamos convencidos do valor da
Palavra divina. Mas, o alvo principal do autor bíblico não é discutir o valor da
Palavra. E, sim, mostrar o que ela pode fazer na vida das pessoas. A partir daqui,
ele mostra dois tipos de ouvintes, conforme o posicionamento das pessoas diante
da Palavra.

Há o tipo de ouvinte que se limita a ouvir. "Se alguém é ouvinte da palavra e não
cumpridor, é semelhante a um homem que contempla no espelho o seu rosto
natural; porque se contempla a si mesmo e vai-se, e logo se esquece de como
era” (v. 23). Aqui, a palavra é espelho. Os espelhos no tempo de Tiago eram de
bronze polido e não eram encontradiços, como é possível hoje ver em todas as
casas. Para os contemporâneos de Tiago, a comparação era bem expressiva. Não
se tinha em mente, com muita facilidade, os contornos do próprio rosto.
A pessoa não se olhava ao espelho todos os dias. Olho-me em um espelho para
ver se o cabelo está corretamente penteado ou se o laço da gravata está correto
ou torto. A moça olha-se para ver se sua pintura está de acordo com seu gosto. 0
espelho nos mostrará como estamos. Nele, veremos o que deve ser mudado.

Com isso podemos dizer que o cristianismo não deve ser um mero dever social.
Deve ser um relacionamento vivencial, profundamente preocupado com a
personalidade integral do cristão, buscando levá-lo a uma qualidade de vida cada
vez melhor aos olhos de Deus.

0 mero ouvinte vê as falhas por corrigir, mas não se incomoda e as esquece. Esse
não é o procedimento adequado. 0 conheci-

mento que temos de Deus e de sua santidade deve levar-nos também à santidade.
Deus não espera de nós que sejamos enciclopédias bíblicas ambulantes, mas
santos. Sem receio de laborar em erro, declaro que a maior necessidade da Igreja
de Cristo em nossos dias é de santos. Não estou usando o termo "santo” no
sentido costumeiro, ou seja, que todos os salvos, por serem separados para Deus,
são santos. Creio nisso. Mas, não é esta a conotação que dou à palavra aqui.
"Santo” como agora emprego, é o cristão que leva uma vida tão perto de Deus
que impressiona o mundo com seu caráter. Um escritor de aguda visão espiritual
nos deixou preciosos conceitos sobre este assunto ao refletir sobre a carência de
santos em nosso meio. Uma de suas declarações é esta: "Não estamos
produzindo santos.”15 Depois, ao falar dos santos (que todos os cristãos são), diz
ele: "Santos não santos são a tragédia do cristianismo.”16 A grande preocupação
do citado escritor, A. W. Tozer é com a falta de santidade dos cristãos: "Os
nossos modelos são homens de negócios bem-sucedidos, atletas famosos e
personalidades teatrais. Realizamos nossas atividades religiosas segundo os
métodos do anunciante moderno.”17 Sem dúvida, precisamos de santos
autênticos. E isto acontecerá na medida em que os seguidores de Jesus Cristo
acatarem mais a Palavra de Deus em suas vidas.

Em contrapartida, há a classe do executor da obra: "aquele que atenta bem... não


sendo ouvinte esquecido, mas executor da obra, este será bem-aventurado no que
fizer”. É prometido aqui uma bem-aventurança em tudo àquele que é obediente
à Palavra. A expressão "atenta bem” nos traz a idéia de uma pessoa debruçada
sobre a Palavra de Deus, examinando-a com muita atenção. Não é um leitor
fortuito, banal, desinteressado, daqueles cuja preocupação é terminar a leitura no
menor tempo possível. E o leitor lento, acurado no que examina. Ele
verifica cuidadosamente os ensinamentos da Escritura. É um examinador.

Tiago chama o evangelho de "lei perfeita”. É completo. Está terminado. Não há


mais nada para se acrescentar a ele. 0 autor de Hebreus começa sua obra
declarando: "Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas
maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias a nós nos falou pelo Filho,
a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por quem fez o mundo” (Heb.
1:1, 2). 0 evangelho, a revelação de Jesus Cristo, é a última palavra de Deus.
Esta "lei perfeita” que é a revelação de Jesus é chamada de "lei da liberdade”. Há
uma

concordância aqui entre Tiago e Paulo, porque, em Gálatas 4, o apóstolo aos


gentios apresenta a lei judaica como algo que escraviza e mostra que a liberdade
plena é trazida pelo evangelho de Jesus. A lei escravizava o homem a regrinhas
e preceitos (infelizmente, alguns neojudaizantes em nossas igrejas querem
transformar o ensino de Jesus em regrinhas também), mas o evangelho concede
a liberdade total. Obedecer à Palavra é encontrar o caminho da liberdade do
pecado e caminhar na trilha das bênçãos de Deus. É ser adulto e livre.

Uma das maiores bem-aventuranças de Jesus foi exatamente para os que


obedecem à Palavra. Quando uma mulher, num arroubo entusiástico (o primeiro
gérmen da mariolatria de que temos registro) exclamou: "Bem-aventurado o
ventre que te trouxe e os seios em que te amamentaste”, ele
respondeu calmamente: "Antes bem-aventurados são os que ouvem a palavra de
Deus, e a observam” (Luc. 11:27,28). Em minha interpretação, entendo que ao
crente vale mais ser obediente à Palavra do que a Maria ter trazido Jesus ao
mundo.

Esta segunda classe ouve e pratica a palavra. Mas, pratica exatamente o quê? 0
contexto do capítulo nos mostra que o que atenta para a palavra e a cumpre,
assim o faz em três aspectos: controle da língua, compaixão pelos necessitados e
vida santa.

Poucas vezes estivemos tão próximos do farisaísmo como agora. Como se


traçam regrinhas sem sentido para os cristãos! Em alguns grupos, o paletó
masculino (porque um crente sem paletó é inadmissível, para muitos) não pode
ter abertura atrás, o cabelo precisa ter determinado tipo de corte, há
eletrodomésticos que se pode ter e outros que não se pode ter, etc. Há igrejas que
proíbem o uso de tênis e sapatos de lona para ingresso no templo. Ser cristão é
guardar essas minúcias sem sentido? Como alguns crentes se orgulham de suas
virtudes, de não possuírem este ou aquele vício que o mundo perdido e
depravado, que olhamos com desdém e reprovação, possui! Transformamos
a igreja num gueto, onde cidadãos respeitáveis aos seus próprios olhos, pelo
cumprimento de regras que eles mesmos fizeram, refugiam-se e sentem-se
felizes. Consideramo-nos gente boa, gente de respeitabilidade, bons cidadãos,
cumpridores de nossos deveres, embora insensíveis ao mundo sofredor.

Não caiamos no erro de pensar que seguir Jesus significa isto. Uma vida
respeitável e com ausência de vícios faz parte do caráter cristão, mas não é isso o
cristianismo. Muitas pessoas levam vidas respeitáveis e privadas de vícios, mas
não são

cristãs. 0 cristianismo é essencialmente vida, vida com Deus que se reflete no


relacionamento com os homens. E a vida cristã, aqui, manifesta-se nos aspectos
citados: controle da língua, compaixão pelos necessitados e vida santa.
Cuidaremos mais deles no próximo capítulo.
A Verdadeira Religião

Se alguém cuida ser religioso e não refreia a sua língua, mas engana o seu
coração, a sua religião é vã. A religião pura e imaculada diante de nosso Deus e
Pai é esta: Visitar os órfãos e as viúvas nas suas aflições e guardar-se isento da
corrupção do mundo. (1:26, 27)

As versões bíblicas mais antigas começam no versículo 27 com a expressão "a


religião verdadeira”. Podemos pensar em religião em termos de corpo
doutrinário ou de seita. A palavra grega threskeía traz o significado de "culto,
reverência formulada em atos rituais”. Não se trata, portanto, de um corpo
de doutrinas, mas de uma postura adequada diante de Deus. Como o Senhor
espera que seja a vida de seus servos? Uma vida a ser avaliada pelo que eles
dizem, por palavras? Ou envolvendo atos? Qual a forma verdadeira do culto que
agrada a Deus?

Tiago parte do princípio segundo o qual uma pessoa pode pensar que está
agradando a Deus, fazendo tudo com sinceridade, mas não o está agradando
realmente. "Se alguém cuida ser religioso e não refreia a sua língua, mas engana
o seu coração...” A primeira manifestação de uma adoração sincera é a língua
refreada. Quantos "santos fofoqueiros”! E quantas "santas faladeiras”! Lembram
o trecho da cantata Vida, do Coral Jovem de São Paulo:

"Henriqueta Morais é a tal.

Sempre fala que é crente leal.

Linguaruda proverbial,

Domingueira ela é sim.”

0 verdadeiro cristão controla a sua língua. "Não te precipites com a tua boca,
nem o teu coração se apresse a pronunciar palavra alguma na presença de Deus;
porque Deus está no céu, e tu estás sobre a terra; portanto sejam poucas as tuas
palavras” (Ecl. 5:2). Isto tem faltado a muitos dos seguidores de Jesus Cristo:
sobriedade no falar, piedade no relacionamento com o mundo e austeridade nas
palavras. Infelizmente, alguém definiu acertadamente a malediência como sendo
o "divertimento predileto dos cristãos”.18 É triste que a ironia seja verdadeira.
No Velho Testamento, o termo hebraico para palavra é dabar. E bem mais do
que um som articulado. Dabar é a extensão da personalidade de quem fala. 0
judeu entendia que o que uma pessoa fala ela é. 0 caráter de uma pessoa fica
explícito em suas palavras. Com o servo de Cristo também deve ser assim: a
sua palavra é a extensão da sua personalidade cristã. Ele não aumenta, ele não
difama, ele não sente prazer em passar para a frente notícias desagradáveis, não
exulta com infâmias.

Tiago continua: "A religião pura e imaculada diante de nosso Deus e Pai é esta:
Visitar os órfãos e as viúvas nas suas aflições e guardar-se isento da corrupção
do mundo.” Tiago nos incomoda... E tão agradável estar na igreja cantando,
orando, ouvindo as promessas de nosso Deus. "Que culto maravilhoso! Seria
capaz de passar a noite toda na igreja!” É uma expressão que já ouvimos mais de
uma vez. Talvez até mesmo a tenhamos pronunciado. Mas, Tiago não apregoa
uma religião mística, de contemplação, que a tantos adoradores fez bem, mas
que, na realidade, não prova muita coisa. "Visitar os órfãos e as viúvas nas suas
aflições”. É manifestar simpatia e solidariedade aos que sofrem, aos que estão
necessitados. Existe um estaticismo entre nós que nos faz ver as pessoas como
almas por salvar e não como pessoas reais, concretas. As pessoas têm
necessidades reais materiais. "Visitar” é episképtomai, cuja idéia é: "visito
para socorrer”. Nãoé aquela visita para uma oração "desencargo de consciência”,
tipo "Deus a abençoe na sua necessidade, minha irmã”. E uma ida para prover às
necessidades da pessoa. A religião pura e sem mácula é ajudar os necessitados.
Os adjetivos "pura” e "imaculada” são alusivos aos sacrifícios judaicos do Velho
Testamento, que deviam ser de animais puros e sem manchas. Era o tipo de
oferta que agradava a Deus. A oferta que agrada realmente a Deus é socorrer os
necessitados.

O órfão e a viúva eram as pessoas mais necessitadas economicamente, no


judaísmo. Sem o chefe da família para manter o

lar e prover o sustento da casa, a situação era aflitiva. Cabia, então, aos irmãos
na fé prover o sustento dos carentes. Aliás, este é o pano de fundo em Atos,
capítulo 6, no momento da escolha dos sete para servirem às mesas.

Há tempos, ouvi uma explicação da parábola do bom sarna-ritano colocada


nestes termos: 0 homem caído era o pecador, o caminho era a vida por onde
transitamos, o sacerdote era a religião e o levita era a lei. 0 samaritano era Cristo,
aquele que socorre o pecador. 0 explicador da passagem valeu-se de
uma alegoria de Wyclif19 que gostava muito de espiritualizar o evangelho. A
espiritualização tem raízes históricas no judaísmo rabínico, mas entre os cristãos
o seu impulso se dá com a dificuldade dos cristãos em aceitarem o mundo
material, caindo num gnosticismo herético. 0 expoente máximo da
conceituação do material como indigno é Agostinho. Para ele, apenas
o espiritual tinha valor. Comer, por exemplo, era uma necessidade a ser tolerada.
Diz-se que à hora das refeições, Agostinho costumava dizer: "Está na hora de
alimentar o animal.” Muitos cristãos bem intencionados têm caído no erro de ver
o mundo material como inferior e apenas a alma como digna. Não é de admirar
que, como conseqüência lógica, a visão do mundo material seja tão
negligenciada entre nós. Para que cuidar do corpo, se o que vale é a alma? E,
convenhamos, falar é bem mais fácil do que desembolsar bens e dinheiro para
ajudar os outros. Por isso, a característica maior do movimento evangélico
contemporâneo é a palavra e o não interesse pelo homem integral. Recordemos
que Deus criou o mundo material e o considerou como muito bom (Gên. 1:31).

Por que temos tanto receio em reconhecer na Bíblia o que está lá? A parábola do
bom samaritano não ensina nada além do que diz: o seguidor de Jesus Cristo
deve fazer o bem e socorrer os necessitados. Espiritualizar a passagem, dando-
lhe um sentido que Cristo não quis dar, é violentar a Bíblia, é fazê-la dizer o
que nós queremos que ela diga, ao invés de dizermos o que ela diz. Ê fazer
"eisegese”, pôr no texto, ao invés de fazer exegese — tirar do texto. 0 cristão
deve sentir compaixão pelos que sofrem. Lemos em Atos 10:38 que Deus ungiu
Jesus "com o Espírito Santo e com poder; o qual andou por toda parte, fazendo o
bem e curando todos os oprimidos do Diabo, porque Deus era com ele”. Jesus de
Nazaré andou fazendo o bem.

Contava um crente, com muita satisfação, do acontecido em sua igreja. Uma


pessoa carente, sem se alimentar a si e a sua

família adequadamente havia dias, procurou a igreja e pediu comida. A resposta,


por incrível que pareça, resposta que encheu a quem contava o fato de satisfação,
foi esta: "Aqui, nós salvamos almas. Se você quer comida, procure os católicos e
os espíritas. Eles é que fazem essas coisas. Quando quiser salvar a sua alma,
então nos procure.” Lamentável!

0 versículo 27 não tem uma linha apenas horizontal. Há também uma dimensão
moral: "guardar-se isento da corrupção do mundo”. 0 cristão deve guardar-se do
mal. Já se disse que a Bíblia é uma unidade e não uma colcha de retalhos. Estes
dois aspectos que surgem em Tiago 1:27 estão em Miquéias 6:8: "Ele te
declarou, ó homem, o que é bom; e que é o que o Senhor pede de ti, senão que
pratiques a justiça e ames a benevolência, e andes humildemente com o teu
Deus?” Tanto no Velho quanto no Novo Testamento, a verdadeira religião
apresenta duas linhas, uma vertical e a outra, horizontal. Uma, para cima,
na direção de Deus, e a outra, para os lados, na direção dos homens. "Mundo” é
um sistema de valores organizados contra Deus, como algumas vezes Edom, no
Velho Testamento. Em Tiago, ou se é amigo de Deus ou amigo do mundo (2:23 e
4:4 principalmente). 0 escritor nos mostra uma religião em termos de optar por
Deus e fazer o bem. Ambas as idéias são necessárias ao conjunto. A religião que
trata apenas das realidades espirituais, encarando o homem como uma entidade
descarnada, não é muito proveitosa. 0 homem não existe apenas em um
contexto vertical. Vive em grupo. Vive num contexto horizontal. Mas, ao mesmo
tempo, reconheçamos que o ativismo social sem uma pureza de vida é inócuo. A
tentação de poder é muito grande. A força da corrupção não pode ser
minimizada. Guardar-se da corrupção do mundo e ter uma vida limpa e santa
diante de Deus é extremamente necessário.

Os dois conceitos de 1:27 não podem se dissociar. Bondade e santidade devem


andar juntas. Um homem bom que não seja santo, quando as tentações do poder
se avolumarem, logo deixará de ser bom. As pressões do mal serão muito fortes
sobre ele. Um homem santo que não pratique a bondade manifesta, sem dúvida,
grande incoerência. A santidade não pode ser uma manifestação fisionômica ou a
exibição de um semblante adocicado, mas sim uma atitude para com Deus que,
inevitavelmente, se refletirá nas atitudes para com os homens. São de Jesus,
afinal, as palavras: "Pelos seus frutos os conhecereis” (Mat. 7:16). Santidade e
insensibilidade não devem caminhar pari passu.

 luz de tudo isto, podemos concluir nossas considerações sobre a conduta


correta diante de Deus com duas indagações. Primeira: William Barclay nos fala
de um poliglota que dominava com fluência sete idiomas e sabia guardar silêncio
em todos eles.20 Não precisamos ser poliglotas, mas sabemos guardar silêncio,
no nosso idioma, quando de nós tal se espera? Sabemos controlar o fluxo de
palavras? Segunda: Pensamos que Deus se agrada de cânticos e orações apenas,
e, por isso, a manifestação de amor e interesse pelas pessoas é secundário? Não é
isto que Tiago defende. "A religião pura e imaculada diante de nosso Deus e Pai
é esta: Visitar os órfãos e viúvas nas suas aflições e guardar-se isento da
corrupção do mundo.”
O Pecado da Acepção de Pessoas

Meus irmãos, não tenhais a fé em nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor da glória,
em acepção de pessoas. Porque, se entrar na vossa reunião algum homem com
anel de ouro no dedo e traje esplêndido, e entrar também algum pobre com traje
sórdido, e atentares para o que vem com traje esplêndido e lhe disserdes: Senta-
te aqui num lugar de honra; e disserdes ao pobre: Fica aí em pé, ou senta-te
abaixo do escabelo dos meus pés, não fazeis, porventura, distinção entre vós
mesmos e não vos tornais juizes movidos de maus pensamentos? Ouvi, meus
amados irmãos. Não escolheu Deus os que são pobres quanto ao mundo
para fazê-los ricos na fé e herdeiros do reino que prometeu aos que o amam?
Mas vós desonrastes o pobre. Porventura não são os ricos os que vos oprimem e
os que vos arrastam aos tribunais? Não blasfemam eles o bom nome pelo qual
sois chamados? Todavia, se estais cumprindo a lei real segundo a
escritura: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo, fazeis bem. Mas se fazeis
acepção de pessoas, cometeis pecado, sendo por isso condenados pela lei como
transgressores. Pois qualquer que guardar toda a lei, mas tropeçar em um só
ponto, tem-se tornado culpado de todos. Porque o mesmo que disse:
Não adulterarás, também disse: Não matarás. Ora, se não cometes adultério,
mas és homicida, te hás tornado transgressor da lei. Falai de tal maneira e de
tal maneira procedei, como havendo de ser julgados pela lei da liberdade.
Porque o juízo será sem misericórdia para aquele que não usou de misericórdia;
a misericórdia triunfa sobre o juízo. (2:1-13)

A questão fundamenta] da primeira parte do capítulo 2 de Tiago é esta: Um


seguidor de Cristo não pode fazer acepção de pessoas. E, sejamos honestos, nem
sempre obedecemos a esta orientação. 0 racismo, o regionalismo, o machismo, a
separação por níveis culturais ou econômicos sempre estão presentes em nosso
meio. Não podemos tratar as pessoas de maneira diferente só pela sua situação
financeira. Tiago diz que dar prioridade aos ricos só pelo fato de serem ricos é
pecado. Privilegiar uma classe social é pecado. "Não fazeis, porventura,
distinção entre vós mesmos e não vos tornais juizes movidos de maus
pensamentos?” Não se pode fazer acepção de pessoas na igreja. A ilustração é
bem clara: "Se entrar em vossa reunião...” 0 termo grego para o local de reunião
é synagogué, de onde vem "sinagoga”, o lugar da reunião comunitária.

Distinguir com honras as pessoas mais importantes é uma tentação gravíssima


para a igreja de Cristo. Não pretendo ser beligerante, mas devo registrar um fato.
Minha consciência de profeta não me permite silenciar. Há alguns anos atrás,
no chamado "milagre econômico brasileiro”, como havia políticos ocupando os
púlpitos de igrejas, de congressos, e de retiros! Alguns, até mesmo não crentes.
Mas, outros eram nossos irmãos na fé. Creio, por não ter motivo nenhum para
duvidar disso, que eram bons crentes, servos sinceros de Deus. Mas, o fato é que
estavam sendo colocados como oradores por serem políticos. É evidente que
nada tenho de pessoal contra eles, mas estávamos querendo dar ao mundo uma
demonstração de poder e força. Ninguém colocou um gari, por mais santo que
fosse, como orador. Afinal, que impacto causa um coletor de lixo
como pregador? Era muito mais uma tentativa para mostrar a
nossa representatividade social do que o desejo de escolher um bom orador.

Em campanha de evangelização realizada algum tempo atrás no país, os


testemunhos dados pela televisão e pelas revistas foram de crentes jogadores de
futebol, de voleibol, empresários e políticos. Todos de excelente reputação cristã,
presumo. Senão não teriam sido escolhidos. Mas, parece-nos problemático
quando a igreja não mais causa impacto no mundo com os santos homens e
mulheres de Deus, cujo testemunho e cuja santidade impressionam tanto que
calam fundo no coração do próprio incrédulo.

No interior de São Paulo, próximo a uma cidade onde pastoreei, havia um pastor
de outra denominação evangélica.

Homem simples, sem erudição secular e que não manifestava muita elegância na
forma de vestir. Mas, os próprios incrédulos o respeitavam e diziam: "Lá vai o
santo dos protestantes.” 0 seu caráter impressionava. 0 triste é que nossos
modelos para impactar o mundo sem Cristo são pessoas que
alcançaram notoriedade em suas carreiras e que exatamente por isso tiveram a
escolha. Não será isso uma espiritualidade mundana, do tipo: "Vejam, temos
conosco gente importante que não é bitolada como vocês pensam que os crentes
são e que conseguiram sucesso na vida”?

Não estará o poder do Espírito Santo sendo substituído pelo planejamento de


mercado e pelas modestas técnicas publicitárias? Consideramos mesmo a igreja
como agência de Deus, onde o homem é confrontado com a Palavra e chamado
para organizar sua vida à luz das exigências de Deus, ou uma instituição
religiosa com um programa de ação, movida pelo executivismo humano? A
igreja é agência de Deus ou instituição humana?
Tiago trata especificamente da adulação aos poderosos. Nos
( versículos 2 a 4 em foco, ele mostra um homem rico, com anéis

de ouro, bem vestido, entrando no templo. Entra também um pobre com roupas
velhas. 0 tratamento aos dois é diferenciado. Isto acontece ainda hoje. Um
político que entra em uma igreja é saudado com efusividade: "Está conosco o Dr.
Fulano de Tal, deputado por tal lugar, o que nos honra muito.” Quando se realiza
um "culto cívico” (?), surge o prefeito e é logo guindado ao púlpito para saudar
os crentes. 0 pretexto é sempre o mesmo: a frasezinha solta em Romanos 13:7:
"A quem honra, honra”.

Não é honra nem privilégio para a igreja receber a visita do Dr. Fulano ou do
Prof. Sicrano. Quando pararemos com nosso complexo de inferioridade e com a
adulação? Todas as pessoas são iguais aos olhos de Deus, pelo seu valor
intrínseco. A igreja não é um clube cuja grandeza é medida pelo nível social de
seus freqüentadores. E honra é para esses homens terem oportunidade de ouvir a
Palavra de Deus. Privilégio inaudito é o desses homens em ouvirem falar que
Deus os ama e quer salvá-los de seus pecados.

Deus não precisa de tênue glória humana para a prosperidade de sua obra.
Tampouco carece a igreja de auxílios humanos com motivações espúrias para
triunfar. Nós não devemos adular. Não podemos ter dois evangelhos. Um, para
dizer ao pobre que ele deve arrepender-se de seus pecados, senão vai para o
inferno,

e outro, para dizer ao rico que nos sensibilizamos com sua visita e que ela nos
enche de satisfação. Dizemos que o "bicheiro” é criminoso porque explora o
jogo do bicho, que é ilegal e traz a corrupção. Mas, silenciamos quando vemos o
país paulatina-mente transformado em vasto cassino, com loterias
esportivas, estaduais, federais e loto. Ao promover a jogatina, o governo é tão
pecador quanto o bicheiro. A legalidade não tira a imoralidade. 0 fato de algo ser
legal não o torna moral. As leis humanas são leis humanas, apenas. Pecado é
pecado, no grande e no pequeno.

Tiago passa a mostrar o critério de Deus. E diferente do critério humano. Os


homens escolhem os ricos. Deus escolheu os pobres. "Não escolheu Deus os que
são pobres quanto ao mundo para fazê-los ricos?” Mas sejamos cuidadosos na
interpretação. Não há no texto qualquer indício de que Deus rejeitou os ricos
ou é contra eles. Tampouco defende o texto a idéia de que a riqueza é pecado e a
pobreza é virtude. Deus escolheu os pobres para "fazê-los ricos na fé e herdeiros
do reino que prometeu aos que o amam”. A riqueza material dá uma falsa
sensação de segurança. Temos até casos de pessoas que, sendo pobres,
eram muito fiéis a Deus, mas que, enriquecendo, dele se esqueceram. Os pobres
são mais abertos à graça de Deus, mais acessíveis ao chamado da graça. Não foi
ao grande Herodes, na pompa do seu luxuoso palácio, que os anjos anunciaram o
nascimento do Rei dos judeus. Foi aos pastores, gente humilde que
guardava rebanhos no campo. E com que alegria eles receberam as novas! A
expressão "foram, pois, a toda a pressa” (Luc. 2:16), segundo Summers,
significa literalmente: "pulando cercas”.21 A pressa era tamanha que não tiveram
tempo de procurar a estrada. Os pobres receberam alegremente a notícia de que
há alguém que se interessa por eles e que, apesar de sua
insignificância econômica, eles não estão desamparados. E também, para
um engajamento com Deus, o pobre tem menos coisas a deixar.

Por isso, no versículo 6 do texto em foco, Tiago mostra que a bajulação é


indevida. Não prega o ódio contra os ricos. Não se alinha ele com algumas
correntes teológicas contemporâneas que sacralizaram o pobre, tornando-o
objeto exclusivo do favor de Deus, voltando-se contra os mais aquinhoados
economicamente, como se estes fossem os únicos culpados de todos os males do
mundo. Tiago não é teólogo da libertação e tampouco um apologista da luta de
classe adornada com roupagem cristã. As possessões materiais não são
demoníacas, nem a pobreza é

uma virtude teologal. 0 pecado não está na posse de coisas, mas na maneira
como as conseguimos e no uso que fazemos delas.

"Não são os ricos os que vos oprimem?” Os ricos estavam oprimindo a igreja,
vista como comunidade suspeita. Então, cortejando-os a igreja poderia encontrar
um modus vivendi pacífico. Precisamos lembrar que a igreja de Cristo não
pode viver fazendo concessões. Há um excelente livro de Peter Berger, intitulado
Um Rumor de Anjos.22 Nele, o conhecido sociólogo mostra como o mundo
sagrado, e particularmente o cristianismo, foi confrontado por correntes de
pensamentos antagônicas e, no choque de idéias, terminou fazendo várias
concessões. No princípio, em pleno esplendor, o mundo sagrado nos trazia
o ruído da voz de Deus, o barulho de toda a corte celestial, o anúncio dos
arautos. Mas, hoje, acuado pelo secularismo, de concessões em concessões, o
cristianismo se desfigurou e se ouve apenas um leve ruído de asas de anjos, daí o
título da obra. Temos hoje um cristianismo pálido e aguado que a
poucos impressiona. Sejamos honestos e falemos a verdade: Olhando para a
vidinha descolorida que a maior parte dos membros de nossas igrejas leva,
alguém se sentirá atraído para nossa fé? A voz de Deus o povo ainda leva a
sério, mas o rumor de asas de anjos, que diferença faz? Quem o considera?

A igreja de Cristo precisa ser séria, sem concessões. Sem adulações. "A igreja
não está no mundo para fazer relações públicas, mas para entregar um
ultimato.”23

Tiago parte para uma conclusão de seu arrazoado falando de duas leis que regem
a vida do crente. Elas se encontram nos versículos 6 a 13. São as leis do amor e
da liberdade. A lei do amor é chamada de "lei real” ou "Lei do Reino” (BLH). A
vida na esfera do amor deve ser o nível da vida dos cristãos. No pensamento
grego, o amor era estético e contemplativo. Para nós, cuja cultura foi em grande
parte moldada pelos gregos, amor é isso. Perdemo-nos em devaneios, em
suspiros e ais. Amar é sentir um frio na barriga quando vemos a pessoa amada.

Havia uma jovem que se julgava poetisa. Escreveu algumas de suas poesias e as
levou até um editor para que esse as examinasse. Ele leu todas as coisas que a
moça havia produzido e então lhe perguntou: "Minha filha, o que é o
amor?” Suspirando, toda lânguida, ela respondeu: "Ah!, o amor é os raios
coruscantes do astro-rei atravessando as foliáceas e pisoteando a gramínea! 0
amor é uma gota de orvalho rorejando sobre a pétala da flor!”, e continuou com
suas declarações

absolutamente vazias. Por fim, o editor a interrompeu e disse-lhe: ''Chega, minha


filha! Vou lhe dizer o que é o amor. Amor é você passar a noite à cabeceira da
cama da pessoa amada que arde em febre, sem sentir isso um fardo. Amor é você
sair de debaixo de dois cobertores numa noite fria para atender a criança que
chora. Amor é você colocar o ombro sob a carga que a pessoa amada carrega e
partilhar o peso sem reclamar e sem lançar isso em rosto!”

Na Bíblia, o amor nunca é sentir. E fazer. 0 amor não é contemplativo, mas


dinâmico. ''Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho...” ''Deus
prova o seu amor para conosco em que Cristo morreu por nós...” É por isso que
João, o ancião, diz: ''Meus filhinhos, nosso amor não deve ser somente de
palavras e de conversas. Deve ser um amor verdadeiro, que se mostra por meio
de ações” (I João 3:18, BLH). 0 amor não é sentimento estético. 0 amor é ação
dadivosa.
É o amor que deve nortear o relacionamento da igreja com as pessoas, e não o
dinheiro que as pessoas têm. A igreja não é uma meretriz que ama quem tem
mais bens. E uma comunidade cuja origem está em Deus e que ama as pessoas
porque o Deus da igreja é amor.

Tiago fala agora da outra lei, a lei da liberdade: ”... pela lei da liberdade”. A lei
do amor, mostrou ele, é o nível de vida em que os cristãos devem viver. A lei da
liberdade é o nome que ele dá ao evangelho. É nas boas-novas do amor de Deus
na pessoa de Jesus de Nazaré que encontramos liberdade. "Se, pois, o Filho vos
libertar, verdadeiramente sereis livres” (João 8:36). 0 cristão é a pessoa que
encontrou a liberdade em Cristo. "Para a liberdade Cristo nos libertou...” (Gál.
5:1). Tiago é coerente com Paulo, aqui. Em Gálatas 4, Paulo mostra que a lei
escraviza o homem, mas o evangelho liberta. Vivendo liberto pelo evangelho,
livre do jugo do pecado e do poder das trevas, o cristão encontra condições para
se relacionar em amor com os demais membros de uma comunidade e até
mesmo fora dela. Adicionar regrinhas ao evangelho é um erro grave. É tornar o
crente um escravo de preceitos humanos. Mas, também é um erro sério o espírito
de amargura, de crítica e de seitas competitivas, cada uma alardeando ser melhor
que a outra, como encontramos hoje em dia. Tiago nos mostra que liberdade e
amor devem estar juntos. Não fomos tornados livres para viver ao sabor
dos instintos, mas para amar a Deus, o que a nossa natureza não permitia, e amar
aos outros, o que também nos era difícil. As

duas leis aqui mostradas por Tiago orientam o crente para viver livre do domínio
do pecado e com capacidade para um relacionamento positivo com o próximo.

O ensino de Tiago pode ser bem exposto em frases curtas e definidas: A igreja
não faz acepção de pessoas. Não privilegia pessoas por situação econômica,
social, cultural ou racial. Não odeia classes. A igreja ama as pessoas e vive como
alguém que Cristo libertou do poder das trevas e que ao poder das trevas
não deseja voltar.

Ao encerrarmos as considerações deste capítulo, é oportuno recordarmos Tiago


2:13: "Porque o juízo será sem misericórdia para aquele que não usou de
misericórdia...” Associemo-lo com Marcos 4:24, que diz: "Atendei ao que ouvis.
Com a medida com que medis vos medirão a vós, e ainda vos acrescentará.”

Não se encontre em nós o pecado da acepção de pessoas, Deus não nos trata
assim.
Fé Contra Obras ou Fé e Obras?

Que proveito há, meus irmãos, se alguém disser que tem fé e não tiver obras?
Porventura essa fé pode salvá-lo? Se um irmão ou irmã estiverem nus e tiverem
falta de mantimento cotidiano, e algum de vós lhes disser: Ide em paz, aquentai-
vos e fartai-vos, e não lhes derdes as coisas necessárias para o corpo, que
proveito há nisso? Assim também a fé, se não tiver obras, é morta em si mesma.
Mas dirá alguém: Tu tens fé, e eu tenho obras; mostra-me a tua fé sem as obras,
e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras. Crês tu que Deus é um só?
Fazes bem; os demônios também o creem, e estremecem. Mas queres saber,
ó homem vão, que a fé sem as obras é estéril? Porventura não foi pelas obras
que nosso pai Abraão foi justificado quando ofereceu sobre o altar seu filho
Isaque? Vês que a fé cooperou com as suas obras, e que pelas obras a fé foi
aperfeiçoada; e se cumpriu a escritura que diz: E creu Abraão a Deus, e isso lhe
foi imputado como justiça, e foi chamado amigo de Deus. Vedes então que
é pelas obras que o homem é justificado, e não somente pela fé. E de igual modo
não foi a meretriz Raabe também justificada pelas obras, quando acolheu os
espias, e os fez sair por outro caminho?Porque, assim como o corpo sem o
espírito está morto, assim também a fé sem obras é morta. (2:14-26).

Tratamos agora de um dos mais antigos dilemas do cristianismo: Fé ou obras


para a justificação? No ramo protestante-evangélico, a justificação vem pela
graça, por meio da fé. No ramo católico, a justificação vem pelas obras,
administradas pela igreja. E uma das preocupações maiores de Tiago é

exatamente o farisaísmo cristão, a mentalidade que começava a se firmar no seio


das comunidades de Cristo.

0 cristianismo estava se tornando, para alguns, um mero sentimento, apenas


emoções. A fé vivencial exibida na prática de uma religião autenticada por atos
estava se esvaindo. Parece-me, em certo sentido, com nossos dias: 0 mais
importante é sentir, experimentar sensações e fazer afirmações de fé.
No movimento evangélico de hoje é muito grande a ênfase no experiencialismo
e nas afirmações ortodoxas de um determinado credo. 0 cristianismo se
disfigurou, tornando-se matéria de sentimentos e de afirmações que se tornam
mero assentimento intelectual. Não é mais vida. Exibir a fé em obras não tem
sido exigido em nossas igrejas.
0 cristianismo é bem mais que regras, é bem mais que visual e liturgia. É
essencialmente vida, uma qualidade de vida outra, produto de um encontro com
Cristo. Devemos ao teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer o conceito de "graça
barata”. Muitos hoje tem transformado o evangelho em "graça barata”, numa
mensagem de um Deus bonachão, tipo Papai Noel, que só faz oferecimentos,
deseja todo mundo feliz, risonho, sem que quaisquer exigências sejam feitas. Por
incrível que pareça, livros com títulos como Como Orar e Conseguir Que Deus
Faça o Que Você Deseja são encontrados. Isso é graça barata.. É o cristianismo
leviano, de alegria e riso afivelados no rosto, como uma festa que se inicia com o
princípio do culto e segue até o fim, com artificialidades deprimentes. Mas, o
fruto de uma vida que marque o mundo não é enxergado. 0 mundo hoje não
sofre os efeitos da igreja de Cristo.

Tiago insiste na necessidade de viver a Palavra. E mostra, então, dois tipos de fé.
Uma, inútil, é a que não vive a Palavra. A outra, que a vive, é a fé útil. Vai
buscar dois vultos do Velho

Testamento para exemplificar: Abraão e Raabe, os tipos da fé verdadeira.

A fé inútil é retratada por Tiago nos versículos de 14 a 20 do texto em foco. A fé


não pode ser mero sentimento. "Se um irmão ou irmã estiverem nus e tiverem
falta de mantimento cotidiano, e algum de vós lhes disser: Ide em paz, aquentai-
vos e fartai-vos; e não lhes derdes as coisas necessárias para o corpo, que
proveito há nisso?”

Em uma de suas peças, intitulada As Mãos Sujas, Jean-Paul Sartre faz um de


seus personagens dizer a outro: "Prefiro amizade severa a um amor fútil.” Existe
muito amor fútil em

nosso meio. A pessoa é cortês, mas não é prestativa. Por amor, Tiago entende
prestação de auxílio, ação. No que tem razão. Amor não pode ser apenas uma
expressão de piedade no semblante. Para Tiago, a verdadeira fé está numa
manifestação concreta por alguém. Não adianta dizer "que Deus o
abençoe” (BLH). Ajudar os necessitados da igreja não é algo para Deus fazer. E
para a própria igreja fazer. No judaísmo, dar esmolas era uma das práticas mais
elevadas e respeitadas. 0 livro de Eclesiástico (não canônico, e que não deve ser
confundido com o Eclesiastes) diz assim: "A água apaga a chama, a
esmola expia os pecados” (Ecl. 3:30, BJ). Não é isso que Tiago está dizendo.
Não se trata de auxiliar os outros para subornar Deus, comprando seu perdão. E
o contrário: Quem provou o amor de Deus, deve ajudar seu irmão.

A questão central que Tiago discute aqui é esta: A fé se mostra pelas obras. Não
são as obras que produzem fé ou favor de Deus. A fé dissociada de ação é inútil.
"Seu tolo! Você quer saber de uma coisa? A fé sem boas ações não vale nada” (v.
20, BLH). Nos versículos 18 e 19, Tiago levanta uma questão sobre o conteúdo
da fé judaica. A doutrina mais preciosa do judaísmo era a unicidade de Deus.
Vivendo no meio de nações politeístas que criam em vários deuses, o judeu se
distinguia por crer em um só Deus, e fazia disso um tesouro teológico. E
comum, no Velho Testamento, a expressão denominada shemá: "Ouve, ó Israel,
o Senhor teu Deus é o único Senhor...” Quando discutiu com um escriba sobre
qual o principal de todos os mandamentos, Jesus iniciou sua resposta com a
clássica profissão de fé judaica: "Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único
Senhor!” (Mar. 12:29). Este era o ponto mais alto da doutrina judaica. Mas Tiago
apela: Até os demônios crêem e tremem de medo. O endemoninhado gadareno
(Luc. 8), prostrou-se diante de Jesus e gritou: "Que tenho eu contigo, Jesus,
Filho do Deus Altíssimo?” Crer na unicidade de Deus, crer no seu poder e
aceitar que Jesus é Filho de Deus é uma profissão de fé assumida até
pelos demônios.

Ortodoxia significa "doutrina correta”. Ter doutrina correta é muito importante e


necessário. Mas, a palavra que expressa a necessidade maior da igreja hoje é
ortopraxia, que significa "conduta correta”. A conduta condizente com a fé, eis o
de que necessitamos.

Algumas correntes filosóficas supunham que o simples conhecimento da


verdade automaticamente levaria à sua prática.

Jesus não ensinou isso. O mero conhecimento intelectual da verdade da fé é


insuficiente. O Salvador declarou: "Nem todo o que me chama Senhor, Senhor,
entrará no reino do céu, mas somente aquele que faz a vontade do meu Pai que
está no céu.

Quando aquele dia chegar, muitos vão dizer: Senhor, Senhor, em teu nome
anunciamos a mensagem de Deus, e pelo nome do Senhor expulsamos muitos
demônios e fizemos muitos milagres!

Então eu responderei: Nunca os conheci. Saiam de perto de mim, vocês que só


fazem maldade!” (Mat. 7:21-23. BLH).
Expulsar os demônios não é prova nem mesmo de salvação. Há perdidos
efetuando milagres e expulsando demônios! Quanto r

mais presumir que um mero assentimento intelectual sobre doutrinas tem algum
valor. E se fizermos a leitura de Mateus 25:31-46 com honestidade, sem
tentarmos dar ao texto outro sentido que não seja o que está ali, confirmaremos
Tiago: 0 cristianismo exige boas obras. Não é apenas cantar, bater palmas e orar.
Estas coisas não são a essência do cristianismo.

A fé que se enclausura, que não leva a pessoa a se abrir para os outros, a dar de
si, é inútil. A fé deve levar-nos a um sentimento genuíno de amor pelos irmãos e
pelos necessitados.

Não deve ser uma atitude demagógica para convertê-los, um tipo de amor que
seria um meio para um fim último. Uma tese de John Stott — A Compaixão de
Jesus — é elucidativa quanto a este aspecto, no trecho em que ele trata da atitude
do bom samaritano para com o pecador caído na beira da estrada:

"Assim que o samaritano ata as suas feridas, leva-o a um albergue, cuida dele,
paga ao hospedeiro para que continue atendendo-o e compromete-se a pagar
qualquer outro gasto que demande o tratamento. A única coisa que o samaritano
não faz é evangelizá-lo! Põe óleo e vinho nas feridas, mas não enche os bolsos
do judeu com folhetos,”24 Isto quer dizer que a nossa fé deve se evidenciar em
amor por aquilo que as pessoas são: imagem e semelhança de Deus. Pelo seu
valor intrínseco, e não por oportunismo.

Philippe Maury conta-nos a história de uma jovem universitária que lhe


expressou sua frustração por não conseguir falar de Cristo à sua companheira de
quarto. Conversando com a moça,

Maury descobriu que ela não se interessava verdadeiramente pela sua colega.
Nunca se esforçara para entendê-la, saber de seus alvos, planos e problemas. Via
apenas uma oportunidade de transmitir uma mensagem. Diz então o teólogo: "Aí
está um exemplo de um dos erros mais freqüentes que praticamos: Não

queremos admitir que nos devíamos preocupar não apenas com Jesus Cristo e
nossa fidelidade para com ele. Redescobrimos nesse plano a dualidade e a
unidade profunda do sumário da Lei: Não existe o amor a Deus sem o amor ao
próximo, e não se pode amar o próximo sem lhe falar de Deus.”25
Lamentavelmente, por vezes, vemos as pessoas como números que
devemos conquistar para Cristo. Desvalorizamos o homem e coisificamos as
pessoas.

A fé autêntica surge nos versículos 21-26. Tiago não é discursivo.


Objetivamente, vai se valer de dois vultos do Velho Testamento para provar sua
teoria. 0 primeiro vulto é Abraão, o chamado "pai da fé”. Aparentemente, existe
uma contradição irreconciliável entre Tiago e Paulo, ao tratarem da justificação
de Abraão. "Não foi pelas obras que nosso pai Abraão foi justificado?”, pergunta
Tiago. Em Romanos 4:1-3, Paulo deixa bem claro que Abraão foi justificado
pela fé. Para Tiago, a justificação de Abraão foi pelo que ele fez: dispôs-se
a oferecer seu filho Isaque. Para Paulo, ele foi justificado porque creu em Deus.

Como é possível entender essa aparente discordância? Uma das regras de


interpretação da Bíblia nos ensina que é necessário saber o propósito do autor do
texto estudado, o que se propunha a dizer e para quem dizia. Paulo é um teólogo.
Sua carta à igreja em Roma é um tratado teológico onde se discute o que
é necessário para a salvação. Tiago é um pastor que elabora um tratado ético.
Sua discussão é sobre o comportamento dos crentes, como estes devem proceder,
posto que são salvos. Estão analisando de perspectivas absolutamente diferentes.
Paulo ensina teologia. Tiago ensina ética. 0 que Paulo está ensinando aos
romanos é isto: Para o novo nascimento, para a conversão, as obras não têm
valor. Só a fé é válida para produzi-los. O que Tiago está dizendo é o seguinte:
Após a conversão, a fé sozinha não tem valor. 0 versículo 22 nos diz muito bem:
"Sua fé se tornou perfeita por meio das suas ações” (BLH). As obras de Abraão
aperfeiçoaram, ou seja, completaram sua fé.

Insistir nos aparentes antagonismos entre Tiago e Paulo é não reconhecer a


diferença de contexto e a diferença de propósito entre os dois autores.

Após citar Abraão, Tiago apresenta outro vulto do Velho Testamento: Raabe.
São dois exemplos, aos olhos humanos, opostos: o pai da fé e uma meretriz que
creu. Em Hebreus 11:31, ela é colocada como heroína da fé. Na galeria desses
heróis,

apenas ela e Sara, a esposa de Abraão, são citadas nominalmente (Heb. 11:35
fala de "mulheres”, sem nominá-las). A história de Raabe é bem conhecida e,
para efeitos de recordação, o leitor deve tomar a Bíblia e ler os capítulos 2 e 6 de
Josué. Mais tarde, a figura dessa mulher assumiu grande importância
no judaísmo. Os rabinos consideravam motivo de orgulho poderem provar que
eram descendentes dela. Por isso que o evangelista Mateus, que escreveu seu
Evangelho visando alcançar os judeus, faz o registro: "a Salmom nasceu, de
Raabe, Booz” (Mat. 1:5). Raabe está como ancestral do rei Davi e do Senhor
Jesus. Assim Mateus mostra para os judeus, que valorizavam a ex-meretriz, que
o Messias veio dela.

O que fez Raabe, exatamente? Como podemos ler em Josué, capítulo 2, ela
escondeu os espiões hebreus que foram enviados a Jericó. Foi então sua obra que
a salvou? Não! Sua obra foi conseqüência de sua fé. Eis a declaração de fé por
ela formulada aos espiões, sobre o Deus de Israel: "... o Senhor vosso Deus
é Deus em cima no céu e embaixo na terra” (Jos. 2:11). Tamanha declaração de
fé é a mesma de Moisés, em Deuteronômio 4:39: "Pelo que hoje deves saber e
considerar no teu coração que só o Senhor é Deus, em cima no céu e embaixo na
terra; não há nenhum outro.” Raabe creu em Deus, na sua unicidade, no
seu poder, e por isso agiu. Por esta razão, A Bíblia na Linguagem de Hoje verte
assim Tiago 2:25: "... ela foi aprovada por Deus por causa da sua ação”. Quando
uma pessoa crê, ela age. Sua fé a leva a um envolvimento com Deus e não a uma
alienante fuga mística e contemplativa em que a pessoa se ensimesma. A
fé autêntica produz fruto e não claustro. Produz envolvimento e não gueto. Viver
cantando corinhos dentro do templo não é a ação mais produtiva do cristão.

Tiago termina com uma bela figura. Deus criou primeiro o corpo do homem,
mas enquanto o espírito não veio habitar no corpo, este não valia muito. Estava
sem vida. A vida veio pelo espírito. Quando o Senhor soprou o fôlego de vida no
corpo do homem, este foi tornado alma vivente. Antes, tinha toda a aparência.
Olhamos para uma vida de fé onde as obras não são presentes. Tudo está certo,
tudo está nos seus devidos lugares, mas ela é tão viva quanto um cadáver. Ou
seja, está morta.

Abraão creu e porque creu, agiu. Foi chamado por Deus de "meu amigo”. Lemos
em Isaías: "Mas tu, ó Israel, servo meu, tu Jacó, a quem escolhi, descendência de
Abraão, meu amigo”

(Is. 41:8). Sem dúvida, um elogio maior do que este não pode haver. Crer e não
agir é ser como um defunto espiritual, como um corpo sem vida. Quem é você:
um corpo sem vida ou um amigo de Deus?
A Língua — Bênção ou Maldição?

Meus irmãos, não sejais muitos de vós mestres, sabendo que receberemos um
juízo mais severo. Pois todos tropeçamos em muitas coisas. Se alguém não
tropeça em palavra, esse é homem perfeito, e capaz de refrear também o seu
corpo. Ora, se pomos freios na boca dos cavalos, para que nos obedeçam,
então conseguimos dirigir todo o seu corpo. Vede também os navios que, embora
tão grandes e levados por impetuosos ventos, com um pequenino leme se voltam
para onde quer o impulso do timoneiro. Assim também a língua é um pequeno
membro, e se gaba de grandes coisas. Vede quão grande bosque um tão pequeno
fogo incendeia. A língua também é um fogo; sim, a língua, qual mundo de
iniqüidade, colocada entre os nossos membros, contamina todo o corpo, e
inflama o curso da natureza, sendo por sua vez inflamada pelo inferno. Pois
toda espécie tanto de feras, como de aves, tanto de répteis como de animais do
mar, se doma, e tem sido domada pelo gênero humano; mas a língua, nenhum
homem a pode domar. E um mal irrefreável; está cheia de peçonha mortal. Com
ela bendizemos ao Senhor e Pai, e com ela amaldiçoamos os homens, feitos à
semelhança de Deus. Da mesma boca procede bênção e maldição. Não convém,
meus irmãos, que se faça assim. Porventura a fonte deita da mesma abertura
água doce e água amargosa? Meus irmãos, pode acaso uma figueira
produzir azeitonas, ou uma videira jigos? Nem tampouco pode uma fonte de
água salgada dar água doce. (3:1-12)

"Meus irmãos”. Assim Tiago começa o capítulo 1 (v. 2) de sua epístola. Assim
também começou o capítulo 2. Agora

começa o capítulo 3. Cada vez que muda o rumo do assunto, assim procede e
introduz um novo problema que aborda com muita felicidade. Nem sempre, no
entanto, "meus irmãos” introduz um novo assunto. Ao iniciar a conclusão do
livro, voltará ao termo (5:7). Assim é que temos agora um novo tema. A
importância do que trata ele agora não diminuiu com o tempo. Pelo contrário,
até. Sem exagero, podemos dizer que, nos dias de hoje, uma das maiores
necessidades dos cristãos está exatamente em cuidar daquilo que falam. Como
há mexericos, invencionices, palavras levianas e mal ponderadas em nosso meio!
É triste que a igreja que deveria se mostrar ao mundo como um exemplo de
relações interpessoais seja uma comunidade, muitas vezes, com relações internas
tão precárias que chega a assustar. Não são poucas as vezes em que o mundo
exibe mais sinceridade no relacionamento e honestidade no falar do que os
crentes.

As palavras que proferimos podem ser bênção ou maldição, palavras que


edificam ou palavras que arrasam. E contra esta dupla possibilidade que o
escritor sagrado nos adverte. Ele começa com um conselho: "Não sejais muitos
de vós mestres, sabendo que receberemos um juízo mais servero.” Ora,
ser mestre é um dom do próprio Cristo: "E ele deu uns como... mestres” (Ef.
4:11). Lemos também em I Coríntios: "E a uns pôs Deus na igreja,
primeiramente apóstolos, em segundo lugar profetas, em terceiro mestres...”
(12:28). 0 "mestre” foi estabelecido pelo próprio Pai e é superado apenas por
"apóstolos” e "profetas” e precede dons que muitos hoje supervalorizam como
efetuar milagres, curas e línguas. Em Romanos 12:7, aquele que ensina (o
"mestre”) recebeu um conselho: "se é ensinar, haja dedicação ao ensino”. Por
que, então, o conselho na negativa — "não sejais muitos de vós mestres”?

A primeira resposta surge no versículo 1 mesmo: "... receberemos um juízo mais


severo”. Inicialmente, entra em discussão o ônus da liderança. Quanto pesa ser
líder! Por que almejamos liderar? Amor à proeminência? Desejo de ser visto e
acatado? Ou um anseio sincero de pesquisar e repartir as verdades de Deus? É
lamentável constatar a existência de membros de igrejas que se aborrecem por
não possuírem um cargo ou por não serem eleitos para o desempenho de funções
de liderança na comunidade cristã a que pertencem. É necessário ter um cargo
para servir a Deus? 0 cargo é uma necessidade para conferir dignidade
eclesiástica a quem o exerce?

0 fardo do líder é pesado., Além das responsabilidades inerentes ao cargo ou à


função que desempenha, há também o fato de que Deus requererá mais dele: ”...
receberemos um juízo mais severo”. 0 mestre, nas comunidades cristãs
primitivas, era aquele que ensinava a Palavra ao povo de Deus.
Corresponderia hoje ao pregador expositivo ou ao professor da Escola
Bíblica Dominical. Parece que nos dias de Tiago alguns ambicionavam a função
sem nutrir qualquer senso de responsabilidade, tão-somente movidos pela
vaidade ou desejo de promoção, sem amor ao povo que deviam ensinar e sem
reverência à verdade que deviam repartir. Aquele que ensina, está usando da
palavra para comunicar verdades de Deus. Deve ter cautela dupla: primeiro
porque é mestre, e segundo porque está usando a palavra que pode levar à vida
ou à morte.

A segunda resposta está no versículo 2: "Pois todos tropeçamos em muitas


coisas”. Todos tropeçam ^e o mestre não é exceção. Por estar à frente e com
missão de tamanha relevância, talvez seja ele uma das pessoas mais visadas.
"Todos tropeçamos”, diz Tiago. Para falar, basta que se abra a boca e se articule
sons concatenados, formando palavras. Podemos nos vingar, rebaixando alguém
cuja posição nos incomoda, e espalhar maledicências sobre a vida a heia. E tudo
isso, justificando nossas palavras, racionalizando tudo o que fazemos. É
difícil não tropeçar no que proferimos. A advertência de Jesus deve sempre
ressoar em nossos corações: "Porque pelas tuas palavras serás justificado, e pelas
tuas palavras serás condenado” (Mat. 12:37).

Consideradas as razões do perigo de ser mestre e de se valer constantemente da


palavra, Tiago passa a apresentar a necessidade de controle da língua. Para tal
vai se valer cTe" duas comparações que sabiamente emprega. A primeira,
encontrada no versículo 3, trata dos freios que se põem à boca dos cavalos.
O cavalo é um animal de grande força física, mas é dominado por um
instrumento pequeno, a rédea. A segunda está no versículo 4 e mostra como um
grande navio, mesmo batido por fortes ventos, obedece ao leme manobrado pelo
timoneiro. As duas ilustrações apresentam um ponto comum: o pequeno controla
o grande, a parte controla o todo. Dominar a língua (o pequeno e aparte) é
controlar a vida (o grande e o todo). 0 que acontece a um cavalo sem as rédeas?
Torna-se um destruidor. 0 que sucede a um barco sem leme? E destruído. 0
controle da língua, da mesma forma, evita uma vida destrutiva e autodestruidora.

0 raciocínio de Tiago obedece ao sistema oriental de pensamento, o que talvez


nos cause algumas dificuldades para entendê-lo. Como ocidentais, primeiro
mostraríamos o valor da língua, e depois por que controlá-la. Ele não. Primeiro
mostrou que devemos controlá-la e depois é que passa a mostrar o seu valor.
Nossa argumentação é crescente (do menos importante para o mais importante).
A dele é decrescente (do mais importante para o menos importante).

Tiago ilustra o poder da palavra com quatro figuras: fogo (v. 6), mal irrefreável
(v. 8), fonte (v. 11 e 12), e árvores (v. 12). A língua é o fogo destruidor que brota
de pequena fagulha. Uma pequena palavra pode suscitar longa contenda. Tiago
reflete sobre isso. 0 homem pode domar tudo. "Pois toda espécie, tanto de feras
como de aves, tanto de répteis como de animais do mar, de doma, e tem sido
domada pelo gênero humano” (v. 7). Não há animais que o homem não consiga
domar. Ele encanta serpentes, adestra cães para truques, domestica o felino
selvagem, como vemos nos circos, e até treina a vida aquática, como no caso dos
golfinhos. Outros animais, como o cavalo e o boi, são por ele usados para o
trabalho doméstico, em sítios e fazendas. Vivesse hoje e Tiago poderia estender
seus argumentos: 0 homem domina sobre os animais, sobre a natureza (embora
sofra a ação desta, o homem ergue barragens, desvia rios e pode provocar chuvas
artificiais, por exemplo) e começa a estender seu domínio para fora da terra, na
direção do espaço. Porém, a língua continua indomada: ”... mas a língua,
nenhum homem a pode domar” (v. 8).

Algumas vezes não nos damos conta dos grandes estragos que os "inocentes”
comentários ou "colocações sem muita importância” que fazemos podem
alcançar com resultados. "Há três coisas que não regressam: a flecha lançada, a
palavra falada e a oportunidade perdida. Uma vez pronunciada a palavra, não
há maneira de fazê-la regressar. Nada é tão difiéil de suFocar como um rumor;
nada há tão difícil de cicatrizar como os efeitos de uma história maligna e
ociosa. Lembre-se o homem que, uma vez dita a palavra, esta foge do seu
controle. Portanto, pense bem antes de falar porque, mesmo que não possa fazer
a palavra voltar, terá que responder pela palavra pronunciada.”

Aprendemos também que não pode haver duplicidade na palavra do cristão. 0


neologismo de George Orwell em sua obra 1984, o "duplipensar”, não faz parte
do estilo de vida do seguidor de Jesus Cristo. São bem claros os versículos 11 e
12:

"Porventura a fonte deita da mesma abertura água doce e água amargosa? Meus
irmãos, pode acaso uma figueira produzir azeitonas, ou uma videira figos? Nem
tampouco pode uma fonte de água salgada dar água doce.”

São três os exemplos que Tiago emprega para ilustrar a verdade que deseja
transmitir. Era este o método utilizado pelos rabinos para ilustrar seu ensino: três
ilustrações para cada verdade. E oportuno recordar que Tiago está escrevendo
para cristãos provenientes do judaísmo e, por isso mesmo, acostumados com a
forma de ensino dos rabinos. Não é de estranhar que sua didática seja rabínica.

A primeira ilustração é a fonte que jorra água. "Porventura a fonte deita da


mesma abertura água doce e água amargosa?” (v. 11). Uma fonte não pode
produzir dois tipos de água, doce e amarga. Da mesma maneira, a língua de um
cristão não pode produzir dois tipos de palavras, a de bênção e a de
maldição. Observe-se que Tiago não diz que a fonte deve produzir água doce
(que pelo contexto nos parece ser a boa palavra). Pode produzir água amarga (a
má palavra). 0 que Tiago diz é que a fonte produz apenas um tipo de água. Ou
doce ou amarga. Da mesma forma como não se deve esperar palavras
inconvenientes na boca de um cristão, não é de admirar que na boca de um
homem que não seja temente a Deus haja palavras que não sejam
edificantes. Cada fonte produz um tipo de água. Um é o falar do cristão. Outro-é
n falar do não-cristão.

A segunda ilustração empregada por Tiago é a da árvore que produz frutos


segundo a sua espécie. "Pode acaso uma figueira produzir azeitonas, ou uma
videira figos?” (v. 12). A figueira produz figos e a videira produz uvas. A
declaração é acaciana. Mas, há profunda reflexão por trás dela. Cada árvore
produz frutos segundo a sua espécie, de acordo com a sua natureza. Novamente
somos chamados a refletir que não deve haver duplicidade de frutos em nosso
viver. Produza, então, o cristão o fruto que dele se espera.

A terceira ilustração se assemelha à primeira, mas apresenta uma variação: "Nem


tampouco pode uma fonte de água salgada dar água doce” (v. 12). Uma fonte
que só produza água amarga não é errada em si mesma. Pode ser uma fonte
medicinal, por exemplo, produzindo águas sulfurosas. Esta ilustração difere
da primeira em um ponto: Naquela, a fonte só jorra uma qualidade de água,
potável ou não potável. Não importa qual seja, mas uma só. E genérica, porque
trata de ambas as possibilidades.

Tanto faz produzir água doce ou salgada, desde que só produza uma. Esta aqui é
específica: A fonte salgada não produz água doce. A maior necessidade daquela
região era água potável, boa para beber. A fonte salgada (usemo-la aqui para
tipificar o falar do homem não regenerado) não pode produzir boa
palavra. Quem deve produzir esta é o servo de Jesus. É ele quem tem a palavra
que dessedenta o mundo. Poderíamos então parafrasear Jesus, quando exortou os
discípulos a não omitirem o brilho da sua luz: "Se a fonte de água potável que há
em ti produzir água não potável, que grande desastre será!”

É de nós, portanto, que o mundo pode ouvir boas palavras, palavras que
dessedentam, que consolam, que vivificam. Se não tivermos uma palavra de
esperança, uma palavra honesta e decente para este mundo, de quem ele a
ouvirá?

Voltamos, então, ao versículo 10: "Não convém, meus irmãos, que se faça
assim.” O que não convém? Não é conveniente que tenhamos palavras para
bendizer ao Senhor e amaldiçoar aos homens, que são imagem e semelhança de
Deus (v. 9). Quem adora a Deus não pode amaldiçoar o seu próximo. Deus está
no próximo e este é imagem e semelhança do divino. Voltamos, assim, à tese que
domina o livro de Tiago: Adoração e conduta devem caminhar juntas. Meu
procedimento para com o próximo será a projeção fiel do meu verdadeiro
relacionamento com o Senhor, que as palavras fingidas não conseguirão
mascarar de forma alguma.

Esclareça-se que Tiago não prega o silêncio, tampouco o claustro. O que ele
deseja não é que os cristãos se refugiem no monasticismo, mas sim que
controlem a sua língua.

"Os rabinos judeus usavam esta figura: 'A vida e a morte estão nas mãos da
língua.’ Por acaso a língua tem mãos? Não mas assim como a mão mata, assim
também a língua. A mão mata de perto, porém, a língua é como uma flecha que
mata à distância. Uma flecha mata a quarenta ou a cinqüenta passos, porém, da
língua se diz no Salmo 73:9 que 'Põem a sua boca contra os céus, e a sua língua
percorre a terra’. Passeia por toda a terra e alcança os céus. Este é o grande
perigo da língua. Um homem atacado pode defender-se do golpe porque o
atacante está na sua presença. Mas, pode-se pronunciar uma palavra maliciosa
ou repetir uma calúnia sobre outro que nem sequer se conhece e que se encontra
a milhares de quilômetros de distância e, mesmo assim, causar-lhe extremo
dano. O extraordinário alcance que a língua tem é o seu maior perigo.”27

Devemos ter muito cuidado com as palavras que emitimos a vida alheia.
Podemos destruir uma vida por uma palavra leviana ou pouco responsável.

Um comentário sobre a Epístola de Tiago, ao tratar do trecho compreendido


entre 3:9-12, deu-lhe o seguinte título: "Hinos e Mexericos da Mesma Boca?” 8
A esta pergunta, respondamos com um sonoro NAO. De nossas bocas não saia
mexerico, a palavra que mata. Saia só o louvor, que é a palavra que vivifica.
Os Dois Tipos de Sabedoria

Quem dentre vós é sábio e entendido? Mostre pelo seu bom procedimento as
suas obras em mansidão de sabedoria. Mas, se tendes amargo ciúme e
sentimento faccioso em vosso coração, não vos glorieis, nem mintais contra a
verdade. Essa não é a sabedoria que vem do alto, mas é terrena, animal e
diabólica. Porque onde há ciúme e sentimento faccioso, aí há confusão e toda
obra má. Mas a sabedoria que vem do alto é, primeiramente, pura, depois
pacífica, moderada, tratável, cheia de misericórdia e de bons frutos, sem
parcialidade, e sem hipocrisia. Ora, o fruto da justiça semeia-se em paz para
aqueles que promovem a paz. (3:13-18).

0 assunto agora é sabedoria. E um tema típico da literatura hebraica. Três livros


do Velho Testamento se enquadram na categoria de "livros de sabedoria”: Jó,
Provérbios e Eclesiastes. A sabedoria (hokhma, no hebraico) é sempre prática,
sempre vivencial, e nunca especulativa. Sua finalidade era capacitar o homem
para viver corretamente. Havia em Israel uma classe de pessoas, os hakham
(sábios) que se dedicavam à sabedoria e sua ministração ao povo.

Sendo vivencial e não especulativa, a sabedoria se focalizava nas pessoas, e em


como aplicar à vida as verdades de Deus (tido como a fonte de sabedoria). "Com
Deus está a sabedoria e a força” (Jó 12:13). E conseguiram bons frutos e vida
abençoada.

A busca da sabedoria era natural para o hebreu. Ser sábio era uma aspiração
latente na alma hebraica. "Quem dentre vós é

sábio e entendido?”, pergunta Tiago. Seus leitores eram pessoas que almejavam
a hokhma. Tê-la-iam alcançado? Já eram hakham? "Mostre”, diz ele.

Como mostrar? Não por discursos, pois a sabedoria não é erudição. E vida!
"Mostre... as suas obras” (v. 13). Se as obras são positivas, muito bem. Se não
são a sabedoria é terrena, animal e diabólica.

Tiago mostra que há dois tipos de conduta possível a um cristão. Uma é


inspirada por Deus: "a sabedoria que vem do alto” (v. 17). A outra é "terrena” (v.
15). 0 contraste é bem delineado. "Do alto” é expressão que também
encontramos em Tiago 1:17: "Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do
alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra de
variação.” A sabedoria que vem do alto desce de Deus. Está num plano superior
ao homem. A outra sabedoria é "terrena”, vem da terra, está no mesmo plano do
homem. Esta era a diferença entre Jesus e seus opositores. "Vós sois de baixo, eu
sou de cima; vós sois deste mundo, eu não sou deste mundo” (João 8:23). Jesus
estava num plano superior ao de seus opositores. Um seguidor de Jesus deve ter
uma sabedoria em plano superior, também, à sabedoria do mundo.

Além de terrena, a sabedoria do mundo é "animal” (v. 15). Isto não significa
brutalidade ou falta de boas maneiras, e sim que ela é dos instintos, pois o termo
grego aqui usado é psyché. Seu primeiro sentimento é "alma, a vida, a pessoa”,
mas denota também o instinto natural. 0 cristão não pode agir na base de "fazer o
que estiver no coração”. Muitas pessoas julgam que esta é uma boa medida,
quando em dificuldades: "0 que estiver no coração, isso farei.”

Esta atitude é ingênua, porque presume que todos os nossos sentimentos são
inatamente bons. E não é assim. 0 simples fato de algo estar em nosso coração
(sentimentos) não é indicativo de sua validade. "Enganoso é o coração, mais do
que todas as coisas, e perverso; quem o poderá conhecer?” (Jer. 17:9). Acautele-
se aquele que diz: "0 que o Senhor puser no meu coração, isso farei.” Tal atitude,
longe de mostrar piedade, pode ser uma posição de fraqueza. Evitando tomar
decisões, a pessoa vai procrastinando o que deve fazer. Os sentimentos, também,
estão muito próximos dos instintos. Nem um nem outro (sentimento e instinto)
podem ser padrão para conduta. Devem ser medidos pela Palavra de Deus.

A sabedoria do mundo é também "diabólica”. Aparentemente, há uma


contradição aqui. A sabedoria (representada no texto grego pela palavra sophíà)
é sempre de Deus. "0 temor do Senhor é o princípio do conhecimento” (Prov.
1:7). "Com Deus está a sabedoria e a força” (Jó 12:13). Como pode haver
uma sabedoria diabólica?

0 termo sabedoria tinha o sentido de um estilo de vida, uma determinada opção


de vida. Os judeus criam que uma pessoa podia ser possessa por demônios e
proferir palavras e tomar atitudes contrárias às de Deus, dele blasfemando. "Não
dizemos com razão que és samaritano, e que tens demônio?” (João 8:48). Na sua
cegueira espiritual, os fariseus criam que Jesus era um endemoninhado e até
mesmo o acusaram de ter pacto com o maioral dos demônios (Mat. 12:44).
Mesmo sendo errada a ótica dos fariseus, fica bem claro que os judeus criam na
possibilidade de o demônio inspirar as pessoas a tomarem determinadas atitudes.
0 evangelista João explica a tresloucada traição de Judas porque "entrou nele
Satanás” (João 13:27). Da mesma forma, a orientação demoníaca pode ser dada
à vida de pessoas que seguirem os instintos e a orientação terrena.

Os frutos da sabedoria terrena são exibidos no versículo 14. "Amargo ciúme” é o


primeiro. A ERAB traduz "inveja amargurada”. Quanto deste fruto nocivo é
encontrado em nossas igrejas! A inveja do progresso de um irmão ou seu
crescimento dentro da comunidade eclesiástica, por exemplo. A inveja da nova
liderança que emerge. Na vida do rei Saul encontramos a manifestação de ciúme
e inveja. Quando Saul chegou com seu exército e Davi retornava da batalha
contra os filisteus, as mulheres de Israel saíram ao seu encontro, cantando:
"Saul feriu os seus milhares, porém Davi os seus dez milhares.” Saul ficou
indignado. 0 ciúme invadiu seu coração. "Dez milhares atribuíram a Davi, e a
mim somente milhares; que lhe falta, senão o reino?” A partir de então, Saul
passou a ver Davi com outros olhos (I Sam. 18:6-9).

A história, porém, não cessa aqui. A inveja nutrida por Saul continuou e seu
término foi com conseqüências desastrosas. É bem elucidativo que o autor
bíblico, ao narrar o episódio, tenha acrescentado imediatamente o evento
sucedido no dia seguinte: "No dia seguinte o espírito maligno da parte de Deus
se apoderou de Saul... tinha na mão uma lança” (v. 10). E tentou matar a Davi. A
seqüência é impressionante. Do ciúme à raiva, pouco demorou. Da raiva à
tentativa de assassinato. E com tudo

isso, o temor: "Saul, pois, temia a Davi, porque o Senhor era com Davi e se tinha
retirado dele” (v. 12). A partir daqui, a personalidade de Saul esta em acentuada
desintegração. De desatino em desatino, o primeiro rei irá destruir sua
própria vida. Aprenderemos com sua experiência, se formos sensatos, que
cultivar inveja ou ciúme é desintegrar a própria vida. A maior vítima da inveja é
o invejoso. Ele se desestrutura emocionalmente e se incapacita diante de Deus.

Outro fruto da sabedoria terrena é "sentimento faccioso”. 0 espirito de facção no


seio da comunidade cristã é de inspiração diabólica. Com que facilidade surgem
grupos e partidos em nossas igrejas. Muitas vezes, uma comunidade local se
fraciona por "dá-cá-aquela-palha”, por questiúnculas sem qualquer valor. Que
tristeza!

Deus sabia que a vaidade humana seria um grande obstáculo para o avanço de
sua obra neste mundo. Os escritores bíblicos enfrentaram problemas de
partidarismo dentro das igrejas primitivas, combateram-nos e nos deixaram
princípios espirituais que não podem ser olvidados.

Paulo censurou as facções na igreja de Corinto: "Rogo-vos, irmãos, em nome de


nosso Senhor Jesus Cristo, que sejais concordes no falar, e que não haja
dissensões entre vós; antes sejais unidos no mesmo pensamento e no mesmo
parecer” (I Cor. 1:10). Havia quatro grupos dentro da igreja e Paulo censurou os
quatro, até mesmo o grupo que dizia representá-lo: "Será que Cristo está
dividido? Foi Paulo crucificado por amor de vós? Ou fostes vós batizados em
nome de Paulo?” (I Cor. 1:13). Em Romanos 12:16, o apóstolo exorta aos
cristãos: "Sede unânimes entre vós...” Lemos também em Filipenses 2:1-3,
o seguinte: "Portanto, se há alguma exortação em Cristo, se alguma consolação
de amor, se alguma comunhão do Espírito, se alguns entranháveis afetos e
compaixões, completai o meu gozo, para que tenhais o mesmo modo de pensar,
tendo o mesmo amor, o mesmo ânimo, pensando a mesma coisa; nada façais por
contenda ou por vangloria, mas com humildade cada um considere os outros
superiores a si mesmo.”

É claro que sendo a igreja uma comunidade tão heterogênea, as diferenças de


opinião serão grandes. Numa mesma igreja se encontrarão uma pessoa com
formação educacional superior e outra de poucos estudos acadêmicos, um jovem
citadino e uma pessoa idosa vinda de zona rural, pessoas de regiões geográficas

com características culturais distintas uma das outras. Como exigir uma só
opinião?

"Rogo a Evódia, e rogo a Síntique, que sintam o mesmo no Senhor” (Fil. 4:2).
Nossas diferenças persistem e nos levarão a posturas diferentes. Uma das glórias
da igreja de Cristo, inclusive, é exatamente esta, a de reunir as mais diversas
pessoas em um só corpo. Mas, no Senhor, a igreja deve ser unânime.
A unanimidade foi a característica dos primeiros cristãos. A igreja de Jerusalém
se caracterizava por este sentimento. "Todos estes perseveravam unanimemente
em oração...” (At. 1:14). "Ao cumprir-se o dia de Pentecostes, estavam todos
reunidos no mesmo lugar” (At. 2:1). "Da multidão dos que criam, era um só o
coração e uma só a alma” (At. 4:32). Havia um profundo senso de unanimidade
dentro da igreja. Em Atos 5, Ananias e Safira quebraram a unanimidade.
Mentiram, desejando notoriedade, buscando aparecer mais que os outros. A
punição foi a morte. Deus cobrou a quebra da unanimidade.
Ouvi uma pessoa comentar com outra: "0 meu velho homem veio à tona e eu lhe
disse poucas e boas.” Havia uma nota de exultação na forma de falar da pessoa.
Ela estava orgulhosa do ressurgimento da carnalidade em sua vida. Tiago diz: "...
não vos glorieis, nem mintais contra a verdade” (v. 14). É ir contra a verdade tal
tipo de procedimento contencioso. A sabedoria que produz frutos de dissensão é
"terrena, animal e diabólica”. E conclui Tiago: "Porque onde há ciúme e
sentimento faccioso, aí há confusão e toda má obra” (v. 16).

A partir do versículo 17 surge a descrição da "sabedoria que vem do alto”,


apenas referida anteriormente.

A sabedoria do alto é "primeiramente, pura”. 0 termo grego aqui empregado para


a palavra "pura” é agné. Geralmente está associada com a purificação
cerimonial. Em João 11:55 encontramos o verbo "purificarem” (agnísosin). Em
Atos 21:26, o termo "purificação” é agnismoü. A purificação cerimonial era uma
exigência do judaísmo para agradar a Deus. Uma pessoa impura não podia se
aproximar dele. Não o agradava. A sabedoria do alto é cerimonialmente pura,
não está contaminada pelas imundícias que desagradam a Deus. Só assim
pode agradar a Deus.

"Depois pacífica”. Onde o Senhor está, há paz. A sabedoria diabólica produz


"confusão e toda má obra”. 0 termo eiréne (paz) designa um estado de ordem, de
segurança e isenção de

ódios. Uma pessoa dominada pela sabedoria de Deus projetará isto no seu
relacionamento com as outras.

"Moderada”. 0 termo nos sugere moderação, equilíbrio, gentileza, lhaneza.É uma


forma de autêntico cavalheirismo. 0 grego traz a palavra epieikés, que já era
largamente usada nos tratados gregos de ética. "... Expressa a 'moderação
que reconhece aqueles aspectos impraticáveis que abrem brechas na lei formal’.
É a palavra que reconhece haver ocasiões nas quais um acerto legal pode vir a
ser um erro moral. Aristóteles discute epieíkeia em sua Ética a Nicômaco. Diz
que epieíkeia é o que é justo e algumas vezes é até melhor que a justiça, pois
corrige a lei quando esta se torna deficiente por causa de sua generalidade.
Compara o homem epieikés com o indivíduo akribodí-kaios. Este último é o
homem que defende obstinadamente o menor de seus direitos segundo a lei. 0
homem epieikés sabe que há ocasiões quando uma coisa pode estar
absolutamente justificada e, no entanto, ser absolutamente errada do ponto de
vista moral. Este homem sabe discernir quando ultrapassar a lei, pois entre as
forças que o compelem, sabe distinguir qual é superior à da própria lei. Conhece
o momento em que apegar-se ferrenha-mente a seus direitos seria
inquestionavelmente legal, mas, também indiscutivelmente pouco cristão.”29
Epieikés, portanto, é ir além da lei na busca do melhor. Recorda José, que
sendo justo e não querendo infamar Maria, resolveu deixá-la secretamente. Não
buscou os seus direitos.

"Moderada” é seguida por "tratável”. São termos diferentes, embora caminhem


na mesma direção. Apresentam, de forma geral, o mesmo conteúdo. Há pessoas
que não são tra-táveis. Confundem fraqueza com falta de educação (que não são,
necessariamente, sinônimos), são agressivas, maldosas, rancorosas. A defesa da
fé e da ortodoxia, por exemplo, algumas vezes é travada com tamanha
truculência verbal que acaba sendo um desserviço à obra. Ao invés de defender,
desmoraliza o evangelho. A violência verbal e os ataques pouco polidos que
se faz para defender posições assumidas por evangélicos tornam-se motivo de
escândalo e vergonha. Cristãos coléricos, irados contra discordantes de sua
opinião, constituem-se um contra-senso. É o amor à verdade ou o ego ferido que
prevalece? A sabedoria do alto não é truculenta. Não leva a agir de
forma intratável.

"Cheia de misericórdia” é outra característica apresentada por nosso escritor. A


palavra aqui usada (éleos) significa "com-

paixão, piedade para com os desgraçados”. Éleos é tanto um sentimento divino


quanto humano. Implica profundo interesse pelos que sofrem. Uma pessoa que
tenha a sabedoria do alto terá real interesse pelas pessoas, há de se condoer
dos miseráveis. A insensibilidade para com o sofrimento alheio não é próprio de
quem provou na sua vida a éleos de Deus.

"Cheia de misericórdia e de bons frutos” tem sido interpretado por alguns como
uma redundância: os frutos que a misericórdia produz. No entanto, pode ser mais
amplo. Não basta a misericórdia. Além dela, bons frutos devem ser
apresentados. Isto se coaduna com o espírito da epístola, pois ao pregar uma
religião prática, Tiago pede frutos que a autentiquem. Os frutos são as evidências
da religião.

A sabedoria do alto é "sem parcialidade”. Onde ela está presente não há


preferências por pessoas em detrimento de outras. A questão da acepção de
pessoas que foi tratada no capítulo 2 ressurge aqui. Lá, havia preferência pelos
ricos, privilegiando-os com honrarias. Aqui, o contexto é genérico. Qualquer
tipo de preferência não é, por certo, de inspiração divina. Quando na igreja há
atitude de favoritismo, está havendo pecado. Melhor formação acadêmica, mais
bens materiais, maior contribuição e outros quesitos nunca devem ser
motivos para alguém ser privilegiado na igreja. Um currículo eclesiástico deve
ser medido pelo caráter cristão exibido pela pessoa, e não pelos seus títulos
acadêmicos e posição econômica.

Exatamente por tudo isto, a sabedoria do alto é "sem hipocrisia”. 0 termo


empregado merece atenção especial. "No grego clássico, o significado principal
de hypokrités é 'o que responde’. 0 verbo hypokrínesthai significa 'responder’. A
partir de seu primeiro significado, hypokrités foi evoluindo e adquirindo
progressivamente outros sentidos, a saber: (a) Intérprete ou expositor de sonhos.
Quando Luciano diz a seu auditório que teve um sonho que o converteu em
escritor, diz que deveriam estar pensando: 'Sem dúvida, não nos
considera oneíron hypokrités, intérprete de sonhos’ (Somnium 17). (b) Orador.
Certo crítico dizia que Demóstenes era um excepcional e talentoso hypokrités.
(c) Recitador ou declamador de poesias. Numa época em que não havia livros,
os cantores ambulantes que recitavam poemas e epopéias eram hypokrités. (d)
Ator. Uma peça teatral consta geralmente de perguntas e respostas e um ator
pode ser descrito como hypokrités, um respondedor. Pois bem, precisamente este
último significado deu a acepção

pejorativa de hypokrites, ou seja, um 'fingidor' 'comediante', 'quem representa


um papel’, 'um ato teatral’.”30 Como conseqüência desta evolução, o vocábulo
passou a ser definido nos seguintes termos: "Hypokrités é a pessoa que se dedica
a representar bondade de tal maneira que merece ser chamada de 'bondade
teatral’. E a pessoa que procura fazer com que todos vejam a esmola que dá
(Mat. 6:16). É o indivíduo cuja bondade não busca agradar a Deus, mas aos
homens. E o indivíduo que não diz 'A Deus seja a glória’, mas 'A mim seja o
crédito’.” 31

Observemos que das características da sabedoria divina, três são encontradas nas
bem-aventuranças de Jesus: "Pura”: ''Bem-aventurados os puros de coração”.
"Pacífica”: "Bem-aventurados os pacificadores”. "Cheia de misericórdia": "Bem-
aventurados os misericordiosos”.

Ao estabelecer as características do cidadão do reino no Sermão do Monte, Jesus


proferiu as nove bem-aventuranças. Três delas se projetam na sabedoria divina,
inspirada por Deus. Não apenas vemos a semelhança entre Tiago e o Sermão
do Monte, mas uma vez mais se ratifica a unidade da Bíblia em seus conceitos.
Um cidadão do reino de Jesus terá a sabedoria que vem do alto. E o texto
termina lembrando a sétima bem-aven-turança: "Ora, o fruto da justiça semeia-se
em paz para aqueles que promovem a paz” (v. 18). Não é para os que amam a
paz, mas para os que a promovem. Como a bem-aventurança: "Bem-aventurados
os pacificadores”, e não os pacifistas. Não basta querer ou amar a paz. E
necessário promovê-la.

"0 contraste entre as duas classes de sabedoria é muito bem assinalado. Uma é de
cima e a outra é terrena. Uma está cheia de misericórdia e bons frutos, sem
mudança, sem hipocrisia; a outra é dos sentidos, carnal e diabólica. Contrastam-
se também os frutos. Uma produz a paz e outra produz contendas. Este contraste
entre as duas deve ser lido sempre que haja divisões, maledicência e rivalidade
na igreja.”32

Qual é a sabedoria que está dominando a nossa vida? Qual é a sabedoria que
rege nossa igreja?
A Origem das Contendas

Donde vêm as guerras e contendas entre vós? Porventura vêm disto, dos vossos
deleites, que nos vossos membros guerreiam? Cobiçais e nada tendes; logo
matais. Invejais e não podeis alcançar; logo combateis e fazeis guerras. Nada
tendes, porque não pedis. Pedis e não recebeis, porque pedis mal, para
o gastardes em vossos deleites. Infiéis, não sabeis que a amizade do mundo é
inimizade contra Deus? Portanto qualquer que quiser ser amigo do mundo
constitui-se inimigo de Deus. Ou pensais que em vão diz a Escritura: O Espírito
que ele fez habitar em nós anseia por nós até o ciúme? Todavia, dá maior graça.
Portanto diz: Deus resiste aos soberbos; dá, porém, graça aos humildes.
Sujeitai-vos, pois, a Deus; mas resisti ao Diabo, e ele fugirá de vós. Chegai-vos
para Deus, e ele se chegará para vós. Limpai as mãos, pecadores; e vós de
espírito vacilante, purificai os corações. Senti as vossas misérias, lamentai e
chorai; torne-se o vosso riso em pranto, e a vossa alegria em tristeza. Humilhai-
vos perante o Senhor, e ele vos exaltará. (4:1-10)

Por vezes, temos idealizado as igrejas primitivas como se fossem comunidades


perfeitas, autênticos pedaços do céu na terra. Tanto é assim que uma frase que já
se tornou comum em nosso meio é: "Precisamos imitar a igreja primitiva.” As
igrejas contemporâneas são mostradas como vacilantes e as primitivas são
mostradas como modelo de perfeição. Estará certa tal formulação?

Aquelas igrejas viveram a revelação. Isto é fundamental para nós. Muitos dos
problemas que hoje enfrentamos foram analisa-

dos e solucionados à luz de uma revelação que se processava. No entanto, não


caiamos no equívoco em que muitos cristãos bem intencionados têm caído ao
suporem as igrejas de hoje como fracas, mundanas, em contraposição às puras e
santas igrejas do primeiro século. Esta é uma visão demasiado falsa e injusta.

Esta visão comete um equívoco em não levar em conta a luta e o desejo de


muitos cristãos sinceros, tementes a Deus, que, vivendo nos nossos dias em uma
sociedade muito mais complexa que a do primeiro século, querem agradar ao
Senhor. "A igreja primitiva não tinha rádio, nem televisão, nem sistema
de satélites para comunicação, e crescia!” — bradava um pregador avivalista. É
uma verdade irretorquível. Mas, também é verdade que a igreja contemporânea
não tem os meios de comunicação em suas mãos. Ter alguns programas de rádio
e televisão não é "ter rádio, televisão e satélites para comunicação”.
Raciocinemos de outra forma: 0 Diabo, naquele tempo, não tinha os modernos
meios de comunicação para o processo de massificação da sociedade que
empreende hoje. É ele, como "príncipe deste mundo”, que orienta novelas,
filmes, anúncios, etc. Vivemos numa sociedade muito mais intrincada que a
dos primeiros cristãos, sob fogo cerrado do inimigo em várias áreas de nossa
vida.

Outro equívoco dessa visão falsa é presumir o cristianismo de ontem como


perfeito e nossos antecessores como santos impecáveis. Esta não é a verdade.
Boa parte do Novo Testamento foi escrita exatamente para solucionar problemas
das igrejas, sendo que algumas, como a de Corinto, por exemplo, com uma
saúde pior que as nossas. Encontramos nas cartas de Paulo indícios dos pecados
em Corinto: adultério com madrasta, carne sacrificada aos ídolos, partidarismo,
negação da ressurreição de Cristo e dos mortos, bebedeira na Ceia do Senhor,
etc.

É o caso do presente texto em Tiago: problemas de contendas na igreja: "Donde


vêm as guerras e contendas entre vós?” (v. 1). Dentro das comunidades cristãs
daquela época havia "guerras e contendas”. Alguns intérpretes, talvez por
idealizarem a igreja primitiva como perfeita, entendem que Tiago fala das
guerras no mundo, dos conflitos armados, já que não poderia haver "guerras”
dentro da igreja. Não parece que Tiago tivesse uma visão tão universal das
nações de sua época. E seu contexto é eclesiástico. Ele escreveu para cristãos, e
não para a liderança mundial de sua época. Os destinatários do autor são as
igrejas na dispersão (1:1) e não os representantes das nações da ONU.

"Guerras” no grego original é pólemoi, de onde nos vem o termo polêmica, que
significa "discussão, controvérsia”. "Contendas” é máchai, que significa,
também, "brigas corporais”. As duas palavras mostram que havia hostilidades no
seio das comunidades cristãs da época. Assim como temos hoje. Há divisões,
rixas e competições na igreja de Cristo, infelizmente. Como chega a acontecer
isto? Por que é assim?

"Donde vêm as guerras e contendas?” E a resposta de Tiago é imediata: "Dos


vossos deleites, que nos vossos membros guerreiam.” "Deleites”, no grego,
hedonôn. Daqui temos hedonismo, a concepção de vida segundo a qual o prazer
é a finalidade, o bem supremo da vida. É a glorificação dos sentidos. Os deleites
(hedonôn) estão na "carne”, no homem interior. A lucidez de Tiago é grande: A
força dos prazeres que operam na nossa vida produz o clima de beligerância
encontrado em muitas igrejas. Trocando em miúdos, o espírito de contendas
entre os cristãos é produto da carnalidade humana, da carne trabalhada pelo
intenso desejo de prazer, de satisfação. E o homem dominado pela carne (v. 1)
que produz problemas na igreja. Tiago o contrapõe ao homem sujeito a Deus (v.
7), que põe o Diabo em fuga.

"Cobiçai e nada tendes”. Desejar melhores condições de vida não é errado. E


uma legítima aspiração humana. Mas, "cobiçar” aqui não é uma aspiração
legítima. A conseqüência dos verbos no versículo 2 esclarece bem: cobiçar,
matar, invejar, combater, fazer guerras. Não são desejos inspirados por
Deus. São inspirados por hedoné, — deleite, prazer. 0 "matais” não nos deve
levar a presumir que havia assassinatos naquelas igrejas. A figura empregada
pelo autor bíblico é a de uma guerra (a mesma figura que empregamos hoje), e
numa guerra o derramamento de sangue é inevitável. 0 espírito de contenda
em uma igreja é semelhante ao de contendas entre pessoas e nações. E a natureza
carnal do homem que as produz.

"Invejais, e não podeis alcançar”. 0 termo "invejais” é zelôute, de zelóo (arder


em ciúme). Zelóo é a raiz de "zelote” (aquele que arde de devoção, de fervor),
palavra que veio a significar também o homem zeloso pela lei (como Paulo
se declara em Atos 22:3) como o revolucionário político apaixonado pela idéia
de libertação do jugo estrangeiro, como Judas, o galileu, no ano 6 (conforme
Atos 5:37). Arder de ciúmes pelas posses alheias a nada leva, a não ser lutar e
guerrear (v. 2).

"Nada tendes, porque não pedis” é uma declaração óbvia, mas a sua continuação
é alerta contra as orações malbaratadas.

"Não recebeis, porque pedis mal, para o gastardes em vossos deleites.” O ensino
de Jesus sobre a oração do sermão do monte (Mat. 7:7,8) é em termos absolutos.
"Todo o que pede, recebe.” Tiago o relativiza. Bendita seja a Palavra de Deus!
Ela se interpreta e se complementa. Se tudo o que pedíssemos fosse atendido por
Deus, seriamos infelizes. Muito do que pedimos não é o melhor. E, também,
oração não é obrigar Deus a fazer o que queremos. Pedimos muitas vezes e não
recebemos porque pedimos mal. São os deleites, os prazeres, que nos levam a
pedir mal, de forma desfocada da vontade divina. Uma excelente citação de
Calvino sobre o assunto, no texto em tela, ajuda-nos: "Queriam fazer de Deus o
ministro de suas próprias concupis-cências.”33 Muitos há que gostariam de usar
Deus para seus propósitos, que não são muito edificantes. Outro
comentarista bíblico, Alford, diz-nos a respeito: "0 sentido geral é: Se realmente
orássemos corretamente, esse senso de contínua sede por coisas mundanas em
maior quantidade não existiria: todas as vossas necessidades apropriadas seriam
supridas; e aqueles desejos impróprios, que geram guerras e contendas entre
vós, desapareceriam. Pediríeis, e pediríeis bem, e
conseqüentemente, obteríeis.”34

Os valores daqueles cristãos deveriam ser outros. Estavam, como a igreja de


Laodicéia, apaixonados por valores mundanos, mas absolutamente
desinteressados pelos valores que, aos olhos de Deus, realmente contam.

Nos versículos 4 e 5, Tiago clama contra o amor ao mundo. Importa lembrar


aqui que "mundo” não é as pessoas. "Deus amou o mundo...” (João 3:16). Temos
um sentido moral no termo: um sistema de valores humanos pervertidos e
organizados contra Deus, como "Babilônia”, por exemplo. Não é possível amar a
Deus e ao conjunto de valores que se opõe a ele. Assim Tiago reclama: "Infiéis,
não sabeis que a amizade do mundo é inimizade contra Deus?”

"Infiéis” traz literalmente o sentido de "adúlteras” (feminino, designando as


pessoas que deveriam ser consorciadas com Deus e o traíram). A figura de
adultério para configurar a infidelidade espiritual vem do Velho Testamento. Iavé
desposou Israel, quando do Êxodo. A proteção (da parte de Deus) e a submissão
(da parte de Israel), elementos presentes na união conjugal, estavam assumidos
pelas partes. Com a busca de outras divindades, Israel adulterou. Quebrou sua
palavra. Jeremias é muito preciso: "Deveras, como a mulher se aparta

aleivosamente do seu marido, assim aleivosamente te houvestes comigo, ó casa


de Israel, diz o Senhor” (Jer. 3:20). A figura de casamento também está presente
no Novo Testamento: ”... pois vos desposei com um só Esposo, Cristo, para vos
apresentar a ele como virgem pura” (II Cor. 11:2). Nas prescrições para marido e
mulher em Efésios 5:23-33, Cristo e a Igreja são exemplo nupcial para o casal. A
figura é bem elaborada: amor, dedicação e fidelidade.

O cristão deu seu coração a Jesus Cristo. Apaixonou-se por ele. Amar o mundo é
adulterar contra Cristo, é dividir o amor que lhe foi prometido. Isto não é
possível!
O próprio amor cristão pode ser desfocado e vir a ser tão pernicioso quanto o
amor ao mundo. "Amar o mundo é dar o nosso coração ao materialismo, à
ambição ou ainda a coisas muito boas e válidas mas que assumem importância
maior que o nosso Criador. O amor à pregação do evangelho pode ser amor ao
mundo, se gostamos de fazer pelo destaque que daí nos advém. O amor à nossa
casa de oração pode ser amor ao mundo, se estamos tão ocupados com a
aparência do lugar que não pomos em primeiro lugar a preocupação de louvar e
servir ao Senhor, que é a razão primordial para a existência de tal coisa.”35 O
orgulho eclesiástico e o orgulho denominacional são amor ao mundo, porque são
amor desfocado. O foco do nosso amor deve ser o Senhor. Tiago não nos deixa
meio-termo: o amigo do mundo é inimigo de Deus. O homem não precisa
ser inimigo de Deus. Ele se torna assim porque quer. No capítulo 2:23, Tiago nos
fala de um homem que veio a ser "amigo de Deus”. Por que ser inimigo de Deus,
então?

0 versículo 5 traz aparentes dificuldades quanto ao sentido e quanto à sua


origem. Quem é o sujeito da sentença? É "Espírito” ou "espírito”? Onde a
Escritura afirma isso, já que não se encontra tal citação no Velho Testamento?

Alguns presumem que "Escritura” seria referência a algum livro que Tiago
respeitava muito e que não estava no cânon judaico (praticamente definido no
tempo de Esdras). Outros presumem não ser propriamente uma citação de um
versículo determinado, mas um resumo dos ensinos do Velho Testamento sobre o
ciúme divino. Tal resumo estaria baseado em Êxodo 20:5, 34:14, Deuteronômio
32:16, Zacarias 8:2 e I Coríntios 10:22. Seria, então, o conceito de zelo de Deus,
um conceito bem arraigado na Escritura, o que Tiago está afirmando. É
bem provável que assim seja, pois o versículo 6 é uma citação de

Provérbios 3:34 e complementa o argumento do versículo 5, mostrando que


Tiago faz um arrazoado da idéia.

A outra questão é com respeito a "Espírito” ou "espírito”. Qual dos dois? 0 que
significa o termo? Harrop36 presume ser o espírito redimido do homem.
Johnstone37 pensa ser o Espírito Santo. A interpretação passa a sertão
problemática que se torna quase uma questão de opção. Vejamos algumas
versões bíblicas que nos podem auxiliar na sua compreensão.

A Bíblia na Linguagem de Hoje: "0 espírito que Deus pôs em nós está cheio de
desejos violentos.” E traduz o versículo 6 assim, no seu início: "Porém a ajuda
que Deus dá é ainda mais forte...” Indica "espírito” como o espírito humano,
aquele que Deus soprou no homem (Gên. 2:7). Ele tem desejos violentos para o
pecado, mas conforme o versículo 6, a ajuda que Deus dá é mais forte.

SBB —• Versão Revista e Atualizada: "Ou supondes que em vão afirma a


Escritura: É com ciúme que por nós anseia o Espírito, que ele fez habitar em
nós?”

Matos Soares: "Porventura imaginais que a Escritura diz em vão: 0 Espírito que
habita em vós ama-vos com ciúme?”

Vozes: "Ou pensais que é sem motivo que diz a Escritura: Com amor ciumento
anseia o Espírito que habita em vós?”

A Bíblia de Jerusalém: "Ou julgais que é em vão que a Escritura diz: Com ciúme
ele reclama o espírito que pôs dentro de nós para que em nós fizesse habitação?”

Huberto Rohden: "Acaso pensais que a Escritura diz em vão: Com amor zeloso
anseia Deus pelo espírito que em nós fez habitar?”

Figueiredo: "Acaso imaginais vós que em vão diz a Escritura que o espírito, que
habita em vós, vos ama com ciúme?”

Beneditinos: "Ou imaginais que em vão diz a Escritura: Sois amados até o ciúme
pelo Espírito que habita em vós?”

Comunidade de Taizé: "Ou pensais que a Escritura diz em vão: Com amor
exclusivo ele anseia pelo espírito que em nós fez habitar?”

0 Novo Testamento Vivo: "Ou que acham vocês que as Escrituras querem dizer
quando afirmam que o Espírito Santo, que Deus pôs em nós, vigia sobre nós com
terno ciúme?”

Cartas às Igrejas Novas: "Pensais que aquilo que a Escritura afirma a este
propósito, não passa de mera formalidade? Ou julgais que este espírito é o
Espírito que vive dentro de nós?”

Como se observa, aparecem como possíveis as opiniões tanto de um lado quanto


de outro. Definir com exatidão se torna exercício especulatório. Os
comentaristas se dividem nas interpretações possíveis. A este autor, a linha de
pensamento expressa pela SBB — Versão Revista e Atualizada, Matos
Soares, Vozes, Figueiredo, Beneditinos e Novo Testamento Vivo é a mais
consentânea com o contexto. Mas, não dogmatiza e crê que a questão
fundamental está aqui: Deus não é apático para com o ser humano. Ele nos ama
e deseja ter a primazia em nossa vida. Até hoje, o judeu, em suas orações diárias,
repete a shemá: "Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor”
(Deut. 6:4). É o ponto central da fé israelita: a unicidade de Deus, composta de
quatro palavras hebraicas que traduzidas literalmente nos dão: "Iavé, nosso
Deus, Iavé, Um”. Jesus recitou a shemá como introdução ao grande mandamento
(Mar. 12: 28-31). O cristão não pode dividir seu afeto, dando-o pela metade a
Deus e pela metade a outras coisas. Isto é idolatria. Só há um Deus. Grande
advertência! Amamos a Deus mais que aos nossos bens, mais que as pessoas
com as quais vivemos? Temos, realmente, um só Deus ou formulamos tal
declaração de fé e deslocamos o Senhor para a periferia de nossa vida, dando aos
deuses modernos, como carro, eletrodomésticos, posição social e ideologias, o
primeiro lugar?

"Deus resiste aos soberbos; dá, porém, graça aos humildes” (v. 6) é uma citação
de Provérbios 3:34. Não devemos orgulhar-nos. Está certo. Mas, o que faz esta
declaração aqui? Não estaria deslocada? Qual o sentido de sua colocação neste
lugar?

Presumem alguns que aqui se volta à questão do versículo 4. E a soberba, o


orgulho e o desejo de auto-afirmação sem Deus que levam à amizade pelo
mundo, preterindo o Senhor. A tais pessoas, ele resiste. Não as aceita porque são
amigas do mundo, e logo, suas inimigas. Mas, "dá graça aos humildes”. A
mesma idéia é apresentada em I Pedro 4:5, 6, sendo assim ratificada.

0 deleite pode ser vencido! Não é necessário ser vencido por ele, tendo a vida
frustrada que os versículos 1-3 nos mostram. Tampouco é necessário ser inimigo
de Deus, amando o mundo. Assim é que Tiago introduzirá nova personagem, o
Diabo. Seus agentes já apareceram em 2:19 (os demônios), mas ele surge aqui,
pela primeira vez, no versículo 7. 0 contexto quase exige a

sua presença. Afinal, o escritor sagrado está falando de desejos hedonistas e de


amor para com o mundo. Quem estaria por trás de tudo isto? 0 Diabo é "o
príncipe deste mundo” (João 12:31; 14:30; 16:11). E ele quem instila amor ao
mundo nos corações humanos.
O versículo 7 deve ser visto dentro de uma perspectiva global, e não
fragmentária. Há nele duas frases que não podem ser dissociadas: "Sujeitai-vos,
pois, a Deus; mas resisti ao Diabo...” O alemão Dietrich Bonhoeffer nos legou o
livro Resistência e Submissão. Aqui temos submissão e resistência.
Somos exortados a resistir ao Diabo porque assim fazendo ele fugirá de nós. É
importante, no entanto, observar que "sujeitai-vos, pois, a Deus” precede a
ordem de resistência. Muitos cristãos sinceros têm caído porque lutaram contra o
inimigo sem uma perfeita submissão ao Senhor. Vale dizer, têm resistido ao
Diabo na carne, e têm sido derrotados.

Há dois exemplos bíblicos que nos ajudarão a entender bem o ponto em questão:
o primeiro casal e o Senhor Jesus. Nas duas experiências de tentação,
encontramos uma rendição vergonhosa e uma resistência vitoriosa. No caso da
rendição, não se vê nem resistência nem busca de Deus ou submissão a ele.
Pelo contrário, o questionamento da serpente sobre os motivos de Deus foi bem
aceito. No caso da resistência vitoriosa, encontramos um homem totalmente
confiante e submisso ao Pai. A lição é inequívoca: para resistir com sucesso ao
Diabo é preciso submeter-se a Deus.

A primeira expressão do versículo 8 traz uma aparente dificuldade teológica:


"Chegai-vos para Deus, e ele se chegará para vós.” A idéia imediatamente vinda
ao raciocínio é que nossa atitude produz a ação divina. Se nos chegarmos a
Deus, então, e só então, ele se chegará a nós. Em João 15:16, encontramos idéia
oposta: "Vós não escolhestes a mim mas eu vos escolhi a vós.” A idéia aqui é
que Deus agiu primeiro. De modo semelhante, João 4:10 nos declara: "Nisto está
o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou
a nós, e enviou seu Filho como propiciação pelos nossos pecados.” Novamente a
iniciativa pertence ao Senhor.

Devemos entender que a preocupação de Tiago não é discutir a eleição, em que


Deus age movido pelo seu amor, e tampouco a sua soberania versus a ação
humana que produz o posicionamento divino. "Tiago nos indica que Deus se
permite a si mesmo fazer certa parte e nada mais. Ele estabeleceu limites

para si mesmo quando criou o homem e nunca obriga ninguém a tomar uma
decisão contra a sua própria vontade. Deus fez tudo o que era possível, dando-
nos seu Filho e atuando pelo Espírito Santo. É a isto que o homem tem que
responder. Deve chegar-se a Deus, e quando assim o faz descobre que Deus está
ali, chegando-se a ele.”38 A dificuldade é bem elucidada por esta citação.
Agora, Tiago deixa a questão dos prazeres, do mundo e do Diabo. Seu tema
passa a ser como se aproximar de Deus. Apresenta sentenças curtas, cada uma
contendo uma verdade. Não há uma argumentação continuada, mas, à
semelhança do livro de Provérbios, verdades definidas por parágrafos
isolados uns dos outros.

Como se aproximar de Deus? A segunda parte do versículo 8 e os versículos 9 e


10 tratam exatamente de como se dá a aproximação homem-Deus. Encontramos,
então, a expressão: Limpai as mãos, pecadores; e vós de espírito vacilante,
purificai o coração (v. 8). Lavar as mãos era mais que um costume, era um rito.
Os sacerdotes deviam lavar-se e banhar-se antes de iniciarem o ofício (Êx.
30:19-21; Lev. 16:4). As mãos, tocando em coisas profanas, não poderiam tocar
em objetos sagrados sem a devida purificação. O judeu que fosse ortodoxo
nunca comeria sem antes lavar as mãos. Um dos pontos de atrito entre Jesus e os
fariseus foi exatamente porque os discípulos de Jesus não lavavam as mãos para
comer (Mar. 7:1-5).

Com o tempo, "lavar as mãos” tornou-se mais que um ato de higiene. Passou a
ser uma atitude espiritual, a de despojar-se do imundo, mostrando um desejo de
purificação.

Para nos chegarmos a Deus, precisamos de um espírito de pureza, de um desejo


de santificação, despojando-nos das impurezas. A idéia é reforçada pela
expressão: "purificai o coração”, dirigida aos de "espírito vacilante” ou
"hipócritas” (BLH). "Coração” nos remete ao íntimo da pessoa. Se
"mãos” representa o exterior e nos dá a idéia de ação, "coração” é o interior e
nos dá a idéia das emoções e das efetividades da pessoa. Para uma aproximação
correta de Deus, é preciso uma purificação tanto interna quanto externa, tanto de
sentimentos quanto de atitudes. O que agrada a Deus não é mera exteriori-dade,
mas a coerência entre o fazer e o ser.

O versículo 9 começa com três verbos: sentir, lamentar e chorar. Mostram uma
atitude de quebrantamento. Sentir pelo seu estado espiritual; lamentar-se e chorar
pelos seus pecados.

"Tome-se o vosso riso em pranto” nos mostra que uma correta aproximação de
Deus leva a uma atitude de chorar os pecados. 0 estado de espírito da pessoa
muda. Quem se aproxima de Deus com seriedade não o fará de modo fagueiro,
com espírito folgazão. "A vossa alegria em tristeza” mostra que há uma mudança
emocional no estado de espírito de quem se aproxima de Deus em busca de
santificação. A força do texto se acentua quando descobrimos que "tristeza” é
katéfeian, que nos dá a idéia de "olhar para baixo, para o chão”, numa atitude
de vergonha. E o que temos em Lucas 18:13 com o publicano que não ousava
levantar os olhos para o céu. E impossível buscarmos uma aproximação mais
profunda de Deus sem sentirmos vergonha de nosso estado espiritual. Sua luz
mostrará nossa imundícia e nos levará à vergonha.

Chegamos ao versículo 10: "Humilhai-vos perante o Senhor, e ele vos exaltará.”


O exemplo mais claro e que faz a mais excelente prova dessa passagem é o do
nosso Salvador, como Paulo nos mostra em Filipenses 2:5-11. Ele se esvaziou,
humilhou-se até à morte, e morte de cruz; por isso, "Deus o
exaltou soberanamente, e lhe deu o nome que é sobre todo nome; para que ao
nome de Jesus se dobre todo joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo
da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus
Pai” (v. 9-11). Foi exaltado sobre tudo e todos, mas antes, esvaziou-se. Sim,
"Deus resiste aos soberbos; dá, porém, graça aos humildes”.

O próximo assunto é a falibilidade dos projetos humanos. Entre ele e este ora
tratado, há dois versículos parentéticos que parecem desencaixados, sem
conexão com o que se discute. São os versículos 11 e 12. Foram mencionados no
contexto do capítulo Apresentação e Cumprimento. Mas, eles têm
cabimento aqui. Aos conselhos de como evitar o espírito de contendas
que colocam a igreja em pé de guerra, ajuntam-se os de evitar maledicência
(assunto tratado no capítulo A Verdadeira Religião). Um cristão que fala mal dos
outros está julgando a própria Palavra de Deus, que condena tal atitude.

Encerremos este capítulo lembrando o título do Broadman: "Chamada à


Consagração”. O texto tratado é uma chamada à consagração. E três promessas
são feitas aos que buscam a consagração: 1-) o Diabo fugirá deles; 2-) Deus se
chegará a eles; 3-) Deus os exaltará. São preciosas promessas aos que
se submetem a Deus, humilhando-se diante dele.
O Que Ê a Vossa Vida?

Eia agora, vós que dizeis: Hoje ou amanhã iremos a tal cidade, lá passaremos
um ano, negociaremos e ganharemos. No entanto, não saheis o que sucederá
amanhã. Que é a vossa vida? Sois um vapor que aparece por um pouco, e logo
se desvanece. Em lugar disso, devíeis dizer: Se o Senhor quiser, viveremos
e faremos isto ou aquilo. Mas agora vos jactais das nossas presun-ções; toda
jactância tal como esta é maligna. Aquele, pois, que sabe fazer o bem e não o
faz, comete pecado. (4:13-17)

Na versão aqui utilizada, Versão Revisada da IBB, o texto de Tiago 4:13-17


recebe como título a Falibilidade dos Projetos Humanos, tendo sua ênfase
colocada principalmente na indagação do versículo 14: "Que é a vossa vida?”
Outras versões, como a Bíblia de Jerusalém, ajuntam este trecho com o
capítulo 5, colocando o título Admoestação aos Ricos sobre o versículo 13. Quer
dizer, encerrada a discussão sobre as paixões, o novo tema seria uma exortação
aos ricos, iniciando-se com 4:13 e entrando pelo capítulo 5.

Entenda-se o esquema: 0 trecho agora discutido está voltado contra os


comerciantes, cuja maior preocupação é ganhar dinheiro, e o capítulo 5 começa
se voltando contra os ricos. Em ambos os inícios encontramos a expressão "eia
agora” (4:13 e 5:1), que surge como um desafio.

Não resta dúvidas que a idéia mais forte do texto que agora analisamos é a
imprevisibilidade da vida humana. Como esta é surpreendente! Poderia, por
exemplo, Moisés, no dia da saída

do Egito, após a longa disputa com o faraó, imaginar que ele próprio não estaria
na terra prometida? Poderia Bartimeu, em mais um dia que saiu para esmolar,
imaginar que naquele mesmo dia o Senhor Jesus lhe restituiria a vista e sua vida
seria radicalmente modificada? Quantos de nós fomos também surpreendidos
com o imprevisível!

Pretendem alguns que aqui Tiago não se dirige a cristãos, mas sim a judeus. Que
ele se dirige a cristãos, não há como negar (veja-se comentário sobre
Apresentação e Cumprimento). No entanto, é possível que, ao dirigir-se aos
cristãos, enfatize ele a imprevisibilidade da vida e o desgosto de Deus com os
ricos opressores, encontrados mais entre os judeus. As idéias, então, estariam
aqui como condenação profética aos de fora da igreja e como exortação
pedagógica à própria igreja, ao condenar os de fora. Mas, presumir que ele
mudou de destinatários, de um momento para outro, no meio da carta, sem
anunciar, leva-nos a um perigo: Quando, uma epístola, uma mensagem, é para
nós, e quando não é? O critério será este, aqui empregado por alguns, segundo os
quais não poderia haver opressores na igreja? Parece mais uma tentativa de
evitar um problema moral (opressores no seio da igreja) do que um rigor
exegético.

Tiago reclama de pessoas que fazem plano de locomoção para uma cidade onde
programam passar um determinado tempo e ganhar dinheiro. Planejar a vida e
ganhar dinheiro trabalhando honestamente não é pecado. Pelo contrário, é uma
medida acertada. Planejamento e trabalho são virtudes a cultivar. A questão
fundamental é que Deus foi esquecido, como Tiago menciona no versículo 15:
"Devíeis dizer: Se o Senhor quiser...”

Os judeus, como raça, caracterizaram-se como grandes comerciantes. Na Bíblia,


nós os encontramos como agricultores e pastores de rebanhos. Mas, desde a
dispersão, conforme Josefo nos testemunha, muitos deles se tornaram
comerciantes e banqueiros. A habilidade comercial e a disposição para o
trabalho fizeram dos judeus comerciantes afortunados. Filo escreve sobre judeus
que em Alexandria eram negociantes e donos de navios. Ganhar dinheiro era,
então, uma grande oportunidade para os de raça judia.

Na ocasião do escrito de Tiago o mundo crescia. Muitas cidades estavam sendo


fundadas. Numa povoação que começa a surgir a habilidade comercial tem
amplas oportunidades. E os judeus eram bem acolhidos nas cidades onde
chegavam e logo recebiam a cidadania, pois com eles chegavam o comércio e o

dinheiro. Por isso o planejamento: "Iremos a tal cidade, lá passaremos um ano,


negociaremos e ganharemos.” 0 grande problema era o banimento de Deus nas
decisões humanas.

Um exemplo dessa itinerância dos judeus está com Aqüila e Priscila. Em Atos
18:2, Paulo encontra o casal que viera expulso de Roma, onde exercia o ofício de
fabricantes de tendas. Em Romanos 16:3-5, o casal está de volta a Roma e
inclusive em sua casa se hospeda a igreja cristã.

"No entanto, não sabeis o que sucederá amanhã. Que é a vossa vida?”
Penetrantes palavras! 0 que é a vossa vida? "Acabam-se os nossos anos como
um suspiro... nossa vida... passa rapidamente, e nós voamos” (Sal. 90:9,10).
Estas são declarações de Moisés sobre a fugacidade da vida humana. Sendo a
vida fugaz e incerta, planejá-la sem Deus é insensatez. Em Lucas 12:13-21
temos a parábola do rico insensato. Os bens materiais eram o deus daquele
homem e se constituíam na sua grande paixão. No discurso que ele pronunciou,
não houve lugar para Deus. Só para ele e para as suas coisas: meus frutos,
meus celeiros, meus cereais, meus bens, minha alma. O tu não estava presente.
Só o EU: Farei, farei, derribarei, edificarei, recolherei, direi. Planejou para longo
prazo: "Muitos bens para muitos anos”. Naquela noite, sua alma foi pedida. "Que
é a vossa vida?”

"Vapor” ou "neblina” são os termos que comumente aparecem na resposta à


pergunta de Tiago, sendo que o primeiro é mais fiel ao texto grego. Conhecemos
a figura. A dona-de-casa destampa uma panela, sobe o vapor que dentro dela se
formou e logo se acaba. Que exortação! Muitos de nós vivemos como se nunca
fôssemos morrer! Nunca nos lembramos que aos olhos de Deus somos como um
vapor. Por isso, a recomendação do versículo 15 é oportuna: "Em lugar disso,
devíeis dizer: Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo.”
Nunca devemos deixar Deus fora de nossos planos.

"Se o Senhor quiser.” O comentário bíblico sobre Tiago, escrito por William
Barclay, na sua versão espanhola, traz uma informação que não é encontrada no
original britânico: "Os árabes têm a expressão 'inshaallah’ (se Deus quiser), com
que entremeiam suas conversas; em espanhol, 'inshaallah’ é 'ojalá’.”39 A
informação, que deve ser creditada ao tradutor, leva-nos a considerar que
"inshaallah” veio a produzir "ojalá” (a influência árabe na Espanha é muito forte,
devido ao período de dominação mourisca). Terá o "oxalá” português vindo do

árabe? Parece que sim. Pelo menos eis o que afirma o grande mestre Napoleão
Mendes Almeida no seu Dicionário de Questões Vernáculas: ''Observe-se o que
diz Said Ali: Oxalá, acomoda-mento do árabe en sha allah ('Se Deus quiser’,
'assim Deus queira’) à pronúncia portuguesa, continua a usar-se como expressão
de desejo, embora se tenha apagado a consciência islamítica dessa exclamação.
É fácil notar que essa interjeição se relar;cna etimologicamente com Alá,
tradução árabe de Deus.”40 De qualquer forma, a lição é clara: Aquilo que
os árabes, espanhóis e portugueses conseguem expressar (en sha allah, ojalá e
oxalá) era o que os comerciantes também deveriam expressar!
0 que significa dizer "Se o Senhor quiser”? Isso é suficiente para mostrar a
dependência de Deus? ''Esta é uma advertência saudável, mas ao mesmo tempo
se converteu numa frase rotineira que tem pouco significado para muitos dos que
a usam. Dizemos 'se o Senhor quiser’ mas com demasiada freqüência isto não é
reflexo da condição da nossa mente nem do nosso espírito. A simples repetição
das palavras não é suficiente neste caso, como a repetição da frase 'em nome de
Jesus’ não garante o atendimento de nossa oração.”41 ''Se o Senhor quiser”
deve ser mesmo um desejo sincero e uma disposição autêntica do nosso coração,
para que em nós se cumpra o querer de Deus. Podemos dizer esta expressão?

''Mas agora vos jactais das vossas presunções” (v. 16). Ê traduzido assim em A
Bíblia na Linguagem de Hoje: ''Porém vocês são orgulhosos e vivem se
gabando.” E o orgulho humano que nos leva a presumir que somos suficientes,
que nos bastamos, e por isso podemos prescindir de Deus. Em Deuteronômio
8 há uma candente exortação de Moisés para que o povo não esqueça os
benefícios feitos pelo Senhor. 0 povo não deveria dizer: ''A minha força, e a
fortaleza da minha mão me adquiriram estas riquezas”, mas sim se lembrar do
Senhor, ''porque ele é o que te dá forças para adquirires riquezas...” (v. 17,
18). Orgulhar-se do progresso pessoal sem reconhecer que vem de Deus o poder
e a capacidade para tal, é atitude maligna. Como diz Tiago: ''Toda jactância tal
como esta é maligna.”

0 termo "maligna” aqui é ponerá, de ponerós. Ê o mesmo termo encontrado no


Pai Nosso: "mas livra-nos do mal” (Mat. 6:13). Ponerós tanto pode ser o mal
como a sua personificação, o Maligno. Alguns eruditos, como Goodspeed,
Weymouth e Montgomery, por exemplo, assim traduzem: "livra-nos do

Maligno”. A Bíblia de Jerusalém também opta por esta tradução. 0 ensino que
recebemos é que o orgulho vem do Maligno. E ele quem inspira os homens a se
orgulharem da grandeza do que adquiriram. Cuidado com a auto-suficiência!

De repente, parece que, quebrando a seqüência dos argumentos, Tiago nos diz:
"Aquele, pois, que sabe fazer o bem e não o faz, comete pecado.” Seria uma
sentença solta, desligada de toda a argumentação anterior, não fosse o "pois”. A
frase tem conexão com o que anteriormente foi exposto. Na realidade, o
versículo 17 faz a ponte entre a invectiva contra os comerciantes (14:13-16) e a
invectiva contra os ricos opressores (5:1-6). As pessoas dotadas de mais posses
têm melhores condições de ajudar os necessitados. Os prósperos negociantes do
texto que ora tratamos não o faziam. Omitiam-se. Os ricos negociantes do texto
a seguir, não apenas deixavam de ajudar, mas oprimiam. Omissão e repressão: a
ordem é lógica. A omissão é apenas o início da opressão, porque esta é a
seqüência da insensibilidade que se inicia com a omissão. É o desinteresse pelas
pessoas, a falta de amor e de compaixão cristã pelas criaturas necessitadas que
tornam o coração endurecido.

Aquele que faz da riqueza o objetivo fundamental da sua vida não tem tempo
para Deus. Isto Tiago já nos mostrou. Agora vai além. Tampouco há tempo para
o próximo quando a obsessão é ter coisas.

A única preocupação do elemento passa a ser a preocupação consigo mesmo. Por


isso, com muita propriedade, o teólogo Manson declara que o pecado é a
abolição dos dez mandamentos e a instauração do décimo primeiro: "Tu te
amarás a ti mesmo sobre todas as coisas.”42 Nas duas tábuas da lei,
podemos verificar que há mandamentos referentes a Deus (os quatro primeiros)
e ao próximo (os outros seis). Manson defende que a essência do pecado é o
egoísmo, e ainda que teologicamente se possa discordar deste conceito, há que se
concordar que o homem em pecado rejeita Deus e o próximo e se constitui a
si mesmo como o centro do seu universo. Entendemos por que a omissão é
pecado ao pensarmos nisto.

Como pecado, a omissão será punida por Deus. 0 grande exemplo que nos vem
da Bíblia está na parábola do rico e Lázaro, encontrada em Lucas 16:19-31. 0
rico terminou no inferno. Não apedrejou Lázaro. Não o escorraçou nem o
defrau-dou até levá-lo à mendicância. Nada disso! O rico "apenas” ignorou
Lázaro. 0 texto bíblico nos diz que Lázaro, coberto de

úlceras, foi deixado ao portão do rico. A Edição Revista e Corrigida diz que
Lázaro "jazia”. Interpreta-se, à luz do verbo, que ele era coxo. Seu desejo era
alimentar-se com as migalhas que caíam da mesa do rico. Talvez nem isso
conseguisse, mas este era o seu desejo. Caíam migalhas da mesa do rico,
"não porque este não soubesse comer educadamente. Sabem por que elas caíam?
Porque, na Palestina, as pessoas ricas tinham o costume de molhar o pão para
que com ele lavassem as mãos sujas de comida, já que, não tendo talheres, eles
comiam com as mãos, jogando pedaços de pão molhado debaixo da
mesa... Lázaro era um homem tão fraco que os cães vinham lamber-lhe as
feridas e ele nem sequer tinha forças para espantá-los. E é interessante observar
que ele via os ricos, mas estes não o viam”.43 Sim, o rico só foi ver Lázaro lá no
inferno.
E triste pensar na insensibilidade das igrejas que constroem templos suntuosos,
imponentes catedrais "para a glória de Deus” (tijolos, pedras e vidros fazem
mesmo a glória de Deus?), esquecidas das pessoas que passam necessidades às
suas portas e, por vezes, dentro das suas portas. Que tipo de Deus é este
que, para ser glorificado em um bairro miserável, sem condições
de habitabilidade, sem água e esgoto para o povo, pede um edifício majestoso,
acima do nível das pessoas que ali moram, se Jesus Cristo nos revelou um Deus
cuja glória não está nas paredes, mas nas pessoas? 0 que uma igreja em
condições assim pode comunicar aos seus vizinhos? Quanto de nossa vida
eclesiástica, centrada no templo, é amor a Deus, e quanto é escapismo
dos problemas de um mundo tão necessitado, não apenas no espírito, mas
também no corpo? Escondemo-nos e cantamos: "Somos um pequeno povo mui
feliz.” Não somos culpados, nós mesmos, de grande parte do desinteresse e
desprezo que o mundo tem votado contra a igreja? Que interesse real o
mundo pode sentir da igreja para com ele?

"Pobre também tem alma!”, poderá dizer alguém que discorde dos que se
preocupam com as necessidades materiais do povo. Não há dúvida que pobre
tem alma. Não cairia na infantilidade de negar esta declaração, mesmo porque é
acacia-na. Mas, o que a igreja precisa lembrar é que "rico também tem alma” e
nem sempre está ela dizendo isso aos poderosos. E mais importante ainda: A
igreja precisa lembrar que "pobre também tem corpo”. Parece que isso é que tem
sido esquecido. Que pobre tem alma, as centenas de cultos ao ar livre, nas
favelas, dominicalmente, por este Brasil, estão a nos recordar. Mas, e o bem que
não fazemos? E pecado! Que não se aburguese a igreja

de Cristo e que não passe a viver em função de sua estrutura, de seu programa,
de seu prédio, esquecida das pessoas, que são imagem e semelhança de Deus.

Pobre também tem corpo. Pobre também tem necessidades materiais. Isso Tiago
já nos mostrou. E a partir de agora, dirá aos ricos que eles também têm alma, e
que darão contas a Deus de sua vida.

Quanto a nós, evitemos a omissão. "Aquele, pois, que sabe fazer o bem e não
faz, comete pecado.” Evitemos transformar a nossa fé em ideologia de gueto e
em escapismo histórico.
Advertência aos Ricos

Eia agora, vós ricos, chorai e pranteai, por causa das desgraças que vos
sobrevirão. As vossas riquezas estão apodrecidas, e as vossas vestes estão
roídas pela traça. O vosso ouro e a vossa prata estão enferrujados; e a sua
ferrugem dará testemunho contra vós, e devorará as vossas carnes como fogo.
Entesou-rastes para os últimos dias. Eis que o salário que fraudulentamente
retivestes aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos clama, e os
clamores dos ceifeiros têm chegado aos ouvidos do Senhor dos exércitos.
Deliciosamente vivestes sobre a terra, e vos deleitastes; cevastes os vossos
corações no dia de matança. Condenastes e matastes o justo; ele não vos
resiste. (5:1-6)

0 texto que ora analisamos é uma candente advertência contra as riquezas


adquiridas de forma desonesta, à custa do sofrimento dos outros, bem como
contra a riqueza acumulada, sem qualquer função social. Não é propriamente
uma condenação à riqueza em si. A posse ou carência de bens tem sido
tratada de maneira tão emotiva que a alguns parece que riqueza é pecado.
Repitamos o anteriormente dito: A riqueza em si não é demoníaca e tampouco a
pobreza é uma virtude teologal. Os bens materiais são amorais. A moralidade ou
imoralidade de qualquer bem é um valor humano. Não vem da coisa em si,
mas de nossa relação com ela. A Bíblia não nos diz que "o dinheiro é a raiz de
todos os males”, mas sim que "o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males” (I
Tim. 6:10). Tiago discute agora a relação homem-bens. Como estes foram
adquiridos e às custas de quê.

Na mensagem entregue por Tiago aos ricos não há lugar para arrependimento.
Seu texto se parece com algumas das recrimi-nações proféticas do Velho
Testamento quanto ao rigor na denúncia e no juízo. A estrutura de sua mensagem
é facilmente perceptível. Do versículo 1 até o 3, trata ele do
julgamento, declarando-o. Do versículo 4 ao 6, mostra o porquê do julgamento.
Mais uma vez notamos o estilo oriental de raciocínio: primeiro ele fala do
julgamento e depois da situação que produziu o julgamento. Em nosso
raciocínio, primeiro mostraríamos como a situação está e, depois, o julgamento
como conseqüência. Não é assim que estão montadas as apresentações do plano
de sa'vação que fazemos? Primeiro, mostrar ao pecador que ele é pecador e,
depois, mostrar que ele está condenado pelos seus pecados?44 0 esquema de
Tiago é mostrar que os ricos estão condenados e, depois, então, mostrar que
são pecadores.

A divisão das pessoas em duas classes, pobres e ricos, é uma forma de


argumentação própria do primeiro século cristão. Nos salmos, a divisão é entre
justo e ímpio (veja-se principalmente o Salmo 1). Hoje, fazemos a separação
entre bons e maus ou salvos e perdidos. A divisão pobres e ricos, portanto, tem
um alcance além do meramente econômico e se estende por posturas diante de
Deus. Uma é a postura do justo, e outra, a do ímpio. Uma é a postura do bom, e
outra, a do mau. Uma é a postura do pobre, e outra, a do rico. Não caiamos no
simplismo de reduzir ao nível econômico o alcance dos dois termos, pobres e
ricos. Sua dimensão é mais ampla, alcançando o sentido de alguém com Deus e
alguém sem Deus.

0 texto é incisivo e pode parecer muito duro, mas talvez nossa surpresa diante de
sua objetividade se deva ao fato de termos nos acostumado a ser o mel e não o
sal da terra. 0 sal arde, mas é assim que preserva. A Palavra de Deus arde, mas é
ela que mantém seu reino. Por isso, sem tentar amenizar a linguagem de Tiago,
dando-lhe um sentido que ele não quis dar, aceitemo-la e submetamo-nos a ela.
Não pensemos que a Bíblia só contém promessas espiritualísticas. Ela trata da
vida real e tem palavras duras. "Muito há na Bíblia contrário à opressão social e
política, e até mesmo o pregador do evangelho não pode deixar tais questões
inteiramente de lado. Foi um opróbrio que, entre as igrejas cristãs primitivas, tão
poucos cristãos se opusessem a tão grande mal como a escravatura. E foi um
opróbrio entre as igrejas evangélicas, ao tempo da Alemanha hitlerista, que tão

poucos entre eles se opusessem à maldade que Hitler apre-


„ . í?45

sentava.

"Eia agora”, começa Tiago. A expressão foi usada em 4:13, no mesmo contexto
de condenação do amor às riquezas. Designa a solenidade do que vai ser dito. É
como se Tiago dissesse: "Prestem bastante atenção; o que vou dizer agora é
terrivelmente sério.”

0 que é tão sério assim? Virão desgraças sobre os ricos. Eles se sentem tão
tranqüilos! Estão tão confiantes no seu poder! Festejam e riem. Que chorem e se
lamentem pelo juízo que sobre eles virá.
Eis o juízo descrito no versículo 2: "As vossas riquezas estão apodrecidas, e as
vossas vestes estão roídas pela traça.” A alegria que os ricos manifestam é pelas
riquezas que possuem. Pois bem, elas se esvairão. Estruturar a vida sobre coisas
é um grave perigo. Era o que os ricos vinham fazendo. Perderiam os bens. Como
encontrariam, então, o sentido da vida? "As vossas riquezas estão apodrecidas.”
As riquezas daquela época consistiam, em grande parte, de roupas, alimentos e
dinheiro vivo. A riqueza do insensato da parábola narrada por Jesus em
Lucas 12:13-21 consistia de comida. Derrubou os celeiros e mandou construir
outros maiores para guardar os grãos. Ficou com recursos para muitos anos,
como ele mesmo declarou. José deu a seus irmãos roupas festivas, sendo que a
Benjamim deu ainda trezentas moedas de prata (Gên. 45:22). Sansão prometeu
aos adivinhadores do seu enigma que lhes daria trinta mudas de roupa (Juí.
14:12). Paulo disse que de ninguém cobiçou prata, ouro ou vestes (At. 20:33).
Boa parte das riquezas, portanto, era perecível. Guardavam-se roupas. De
repente, as traças as consumiam ou o fogo as devorava. Que lição! As riquezas
humanas são perecíveis! Lutamos e nos esforçamos para ajuntar bens que podem
ser consumidos de um momento para outro. A sociedade contemporânea tem
feito das riquezas o seu deus. Não devemos admirar-nos da existência fútil que
tantas pessoas levam. Afinal de contas, as coisas não têm poder para preencher o
vazio existencial e espiritual do ser humano.

O que significa a linguagem do versículo 3? "O vosso ouro e a vossa prata estão
enferrujados.” Todos sabemos, como Tiago também devia saber, que o ouro e a
prata não são contaminados pela ferrugem. O sentido não é literal, pois se vê que
a ferrugem há de devorar até mesmo as carnes dos ricos. O escritor bíblico

quer enfatizar a perecibilidade dos bens materiais. Foram colocados, pelos seus
possuidores, como o absoluto das vidas, e são perecíveis. A ferrugem, aqui, é um
símbolo da corrosão. A enfermidade que grassa nos cafezais, tornando-se o
terror dos cafeicultores, chama-se "ferrugem”. Aniquila o arbusto, impedindo-o
de frutificar. 0 juízo de Deus sobre os ricos, adverte Tiago, será acabar com suas
riquezas, deixando-os sem nada. Para quem estruturou a vida sobre os bens
materiais, perdê-los é um grande castigo. Os tesouros foram acumulados "para
os últimos dias”. Esta expressão, para os judeus, aludia aos dias do Messias.
Tiago é um cristão não obstante sua origem judaica. Para aqueles cristãos, a
expressão significa "o juízo final” que eles presumiam vir a suceder em seus
anos. Aliás, todas as gerações de cristãos têm acalentado o desejo de ser a
última geração sobre a terra. A declaração do nosso autor bíblico é que as
riquezas foram acumuladas como testemunhas contra os ricos, no juízo final.
A figura utilizada no versículo 4 é a mesma de Cênesis 4:10. Lá, o sangue de
Abel, derramado sobre a terra, clamava a Deus por vingança. O clamor por
vingança faz parte da literatura judaica e é muito encontrado nos salmos
imprecatórios (veja-se o final do Salmo 137, por exemplo). É a expressão do
desejo de que a verdade seja estabelecida. Em Tiago 5:4, quem está clamando é
o salário dos trabalhadores que foi retido de forma fraudulenta. O Novo
Testamento da Comunidade de Taizé traduziu por "está a bradar bem alto”. E um
clamor que inquieta a Deus. Ele vai julgar os ricos porque estes fraudaram os
salários dos trabalhadores. O versículo é iniciado pela expressão: "Eis que”,
designativa de solenidade e de certeza, de algo imediato. É um juízo certo e
rigoroso que o Senhor há de efetuar. Está declarado e não há como evitá-lo.

Há muitos agravantes ainda, no texto. "Aos trabalhadores” é ergatôn, e é


utilizado para designar os trabalhadores que arrancam seu sustento do seu
trabalho. Eles dependem do produto do seu suor para viver. E "campos” é
choras, entendendo-se por "terras”. Eram grandes campos. O problema
da exploração do "bóia-fria” pelo latifundiário não é recente. Vem desde tempos
imemoriais. Os poderosos fazendeiros retinham o salário dos camponeses,
salário que lhes era necessário para viver.

Ora, as leis trazidas por Moisés tinham profunda conotação social. Assim é que
lemos em Levítico 19:13: "Não oprimirás o

teu próximo, nem o roubarás; a paga do jornaleiro não ficará contigo até pela
manhã.” "Jornaleiro” era o trabalhador que recebia seu pagamento ao fim do dia.
O salário dos homens do campo deveria ser pago diariamente, não podendo ser
retido para o dia seguinte. Os ricos contemporâneos de Tiago retinham o
pagamento. Isto era mesmo que levar os pobres à morte por inanição. 0 Senhor
dos exércitos ouvia o clamor dos injustiçados. Esta é a única vez em que Tiago
chama a Deus de "Senhor dos exércitos" (Iavé Sebaoth, no hebraico). Este era
o nome de Deus relacionado com os poderes celestiais sobre os quais ele
domina. 0 Senhor tão poderoso que controla as hostes celestiais não será detido
por donos de fazenda. Ele é o dono do universo.

0 versículo 5 nos mostra a insensibilidade dos ricos diante do sofrimento dos


pobres. A ERAB assim o verteu: "Tendes vivido regaladamente sobre a terra.
Tendes vivido nos prazeres. Tendes engordado os vossos corações, em dia de
matança.” São três "tendes” ressaltando a busca de prazeres pelos poderosos
da terra, enquanto outros sofrem fome. A insensibilidade para com o sofrimento
é um grave pecado aos olhos de Deus.

Sempre me pareceu que a causa do juízo divino sobre Israel e Judá, no Velho
Testamento, foi a irreligiosidade, a idolatria e a falta de um procedimento
eclesiástico correto. Talvez pela ótica bíblica em que fui criado ou talvez pela
falta de um exame mais acurado. Mas, certa ocasião, ao estudar mais uma vez o
livro de Isaías, surpreendi-me ao constatar que as mais enfáticas reclamações de
Deus contra seu povo não foram motivadas por pecados que podemos chamar de
"religiosos”, como liturgia errada, idolatria, falta de fervor ou falta de contrição.
As maiores reclamações divinas foram ocasionadas por pecados que podemos
chamar de "sociais”, como opressão aos pobres, injustiça para com os órfãos e
viúvas, exploração econômica, corrupção, etc. Entre muitos outros textos que
poderiam ser citados, fiquemos com Isaías 1:17, 23; 3:15; 5:23; 10:1, 2. Há, sim,
pecados "religiosos”, mas o volume de maldições pelos pecados "sociais” é
impressionante. E isso intriga! A Bíblia manifesta uma ardente paixão social!

Como nós, os cristãos, conseguimos transformar o cristianismo num elemento


justificador do status quo injusto? Como conseguimos criar a "ética do bom
funcionário” que funciona como mordaça social, legitimando assim o social
presente? A resposta, embora triste, parece-me esta: A igreja se guetizou.

Transformou-se num grupo alheio à vida real e concreta, espiritualizando todos


os anseios dos homens. Transformou o evangelho em padrão de comportamento,
detendo-se numa microética, uma ética pessoal.

Essa atitude desfigurou o evangelho, que por ser uma chamada à conversão é
exatamente um desafio para efetuarmos mudanças. Mas, na realidade, não nos
importamos muito com mudanças. Desde que não nos molestem e não nos tirem
nossos privilégios, tudo está bem. Oramos agradecendo a Deus a liberdade
religiosa que desfrutamos, e pouco nos incomodamos ao saber que 60% da
população brasileira vivem em estado de fome e de miséria absoluta,46 sem
liberdade para viver com dignidade.

''Deliciosamente vi vestes... vos deleitastes... cevastes os vossos corações no dia


da matança...” Eis três verbos de vida egoísta (v. 5). A eles se juntam mais dois
inícios no versículo 6: "Condenastes” e "matastes” mostram atitudes seqüentes.
Podem designar uma ação penal dos ricos contra os pobres, movendo-lhes
processos para tomarem o que lhes restava (o ato de condenar) e depois,
retirando-lhes o que tinham, matando-os. Facilita esta idéia a compreensão de
que na literatura pseu-depígrafe, reter o salário do pobre é assassiná-lo. Negar
a alguém os meios decentes para sua sobrevivência é condená-lo à morte. Nós,
que sempre estamos a dizer que o empregado crente deve ser o melhor, não
fraudar o patrão e ser honesto em tudo, precisamos dizer aos patrões crentes que
devem ser os melhores patrões, e por que não pagar os melhores
salários? Recordo-me com tristeza de um empregado de um empresário rico que
me disse, certa ocasião: ''Como fulano é crente? Ele nos oprime o mais que pode
aqui na firma!”

''Condenastes e matastes o justo.” Alguns querem ver aqui uma referência a


Jesus, associando a passagem a Atos 3:14, que diz: ''Mas vós negastes o Santo e
o Justo...” Não faz muito sentido pensar que Tiago culpasse os seus
contemporâneos pela morte de Jesus e muito menor sentido faz presumir uma
quebra tão grande da linha de pensamento, tanto no texto presente, como em
toda a carta. Por que Tiago colocaria aqui a condenação de Jesus pelo sinédrio se
em toda a carta não há de sua parte a menor preocupação com aspectos como a
vida, ministério e morte de Jesus? "Justo” parece se referir muito mais ao pobre
que era levado pelos ricos aos tribunais (2:6).

"Ele não vos resiste.” Os pobres não conseguiam oferecer resistência ao poderio
econômico dos ricos. Conforme 2:6, eram

oprimidos e arrastados aos tribunais. A opressão do poder, econômico é uma das


piores formas de aviltamento do ser humano. 0 valor do homem não é mais
intrínseco e sim determinado pela quantidade de dinheiro que ele possui.
A igreja de Cristo não pode compactuar com tal mentalidade. Não é o dinheiro
que torna alguém uma pessoa de valor aos olhos de Deus, e a dignidade do
homem não pode ser condicionada a quanto ele tem nos bancos. Tampouco deve
a igreja presumir que o grande bem deste mundo é a riqueza. Numa época em
que somos tendentes a julgar o potencial de uma igreja pela magnitude de seu
templo e por sua receita financeira, lembremos as palavras de Tiago: "As vossas
riquezas estão apodrecidas...” Firmemo-nos nas palavras de Jesus: "Aconselho-te
que de mim compres ouro refinado no fogo, para que te enriqueças”
(Apoc. 3:18). Busque a igreja a riqueza que vem do Senhor Jesus, e não julgue
as pessoas pelas riquezas deste mundo.
Exortação à Perseverança

Portanto, irmãos, sede paciente até a vinda do Senhor. Eis que o lavrador
espera o precioso fruto da terra, aguardando-o com paciência, até que receba as
primeiras e as últimas chuvas. Sede vós também pacientes: fortalecei os vossos
corações, porque a vinda do Senhor está próxima. Não vos queixeis, irmãos, uns
dos outros, para que não sejais julgados. Eis que o juiz está à porta. Irmãos,
tomai como exemplo de sofrimento e de paciência os profetas que falaram em
nome do Senhor. Eis que chamamos bem-aventurados os que suportaram
aflições. Ouvistes da paciência de Jó, e vistes o fim que o Senhor lhe
deu, porque o Senhor é cheio de misericórdia e compaixão. Mas, sobretudo,
meus irmãos, não jureis, nem pelo céu, nem pela terra, nem façais qualquer
outro juramento; seja, porém, o vosso sim, sim, e o vosso não, não, para não
caírdes em condenação. (5:7-12)

Agora o tom de Tiago é mais paternal, falando ele como pastor que exorta e não
mais como profeta que traz sentenças de condenação. A seção que se iniciou em
4:13 tinha destinatários genéricos: "vós que dizeis”. A que se iniciou em 5:1
tinha destinatários específicos: "vós ricos”. A que se inicia agora também tem
destinatários específicos, mas numa linguagem mais coloquial: "irmãos”. E
novamente o pastor falando.

De que está falando exatamente o pastor? 0 Novo Testamento da Comunidade da


Taizé intitulou este trecho de Perseverança no Sofrimento. A ERAB traz como
título A Necessidade, Bênçãos e Exemplos da Paciência. A Bíblia de Jerusalém
intitulou-o

de A Vinda do Senhor. E a Bíblia da Vozes intitulou-o Esperar a Vinda do


Senhor. A forma como estas versões encaram o texto permite que formemos um
quadro do que será discutido: paciência, perseverança, sofrimento e vinda do
Senhor. "Paci-ciência” e "perseverança”, neste contexto, têm o mesmo
significado. A rigor, temos aqui três assuntos que se amalgamam em um só.
Sofrimento, perseverança e a segunda vinda do Senhor. Os três se encaixam e
nos fazem lembrar o ensino do Senhor Jesus sobre seu retorno. Ele será
precedido por intenso sofrimento dos crentes que deverão perseverar enquanto
aguardam o Senhor. A semelhança do Mestre, Tiago não presume que os dias
finais serão róseos. A vinda do Senhor será antecedida de sofrimento de cristãos.
Incluímos o versículo 12 neste comentário porque o "mas” ressalta a sua ligação
com o que anteriormente foi discutido. Trata-se ainda do falar do cristão, só que
agora em circunstâncias de opressão. A adversativa corrobora o padrão que
ele espera do crente.

Se antes falou aos ricos e aos poderosos, agora Tiago faz questão de designar seu
auditório de "irmãos” (v. 7). Assim ele começou a carta (1:2), assim começou o
capítulo 2 e também o capítulo 3. Cada vez que assim procedeu, estava iniciando
a discussão de um novo assunto. 0 termo reaparece em 4:11, mas não introduz
um novo assunto, e sim um trecho parentético (4:11,12).

Novo assunto surge, então, para os irmãos. A epístola vai chegando ao fim e ele
se preocupa em firmar bem os crentes. "Sede pacientes”, diz ele. 0 termo grego é
makrothymésate, eé um termo especificamente bíblico, não encontrado no
grego clássico. F uma palavra que desina uma virtude que não
era particularmente apreciada pelos gregos: a paciência, a longa-nimidade.
Makrós, "grande, longo”, e thymía, "disposição”, se uniram para formar a
palavra makrothymía, "grande disposição”, de onde deriva o verbo usado por
Tiago. Expressa uma disposição inabalável, um espírito constante que nunca se
abate. 0 exemplo que nos é dado é o do lavrador. Ele aguarda o fruto de seu
trabalho com makrothymía. Seu trabalho é agora da paciência e fé. Já fez o que
dele se esperava ao plantar a semente. Resta-lhe aguardar. Não pode apressar o
crescimento nem precipitar a colheita. Agora não depende dele. Eis uma lição
que não podemos desprezar. 0 progresso do reino de Deus (várias vezes
comparado com o ato de semeadura ou com sementes, por Jesus) não dependa de
nós, no sentido de que não

podemos apressar Deus. Por vezes, nosso zelo e interesse pela obra de Deus
produzem situações curiosas. Recordo-me de um congresso missionário
subordinado ao tema Apressando o Reino de Deus. Por mais que tenhamos ardor
missionário, guardemo-nos de pensar que podemos ditar as horas de Deus.
Nossa tarefa é a semeadura, mas aquele dia e hora pertencem ao Pai e a ninguém
mais.

”0 lavrador espera o precioso fruto da terra.” Esta lição deve levar o crente em
Jesus Cristo a trabalhar com seriedade. Os frutos virão. Isto é certo. Evitemos o
desânimo e a tentação de querer produzir resultados. Esta prerrogativa é de Deus
e de mais ninguém. Não queiramos assumi-la.
"Antes que receba as primeiras e as últimas chuvas.” As primeiras chuvas
serviam para dar umidade à terra estorricada pelo período de estiagem,
favorecendo assim o plantio. Há algo parecido com esta figura na bela Brasília.
E o fenômeno que se chama "chuva do caju”. A região do Distrito Federal passa
por um período de estiagem a partir dos meados de abril. Os meses de maio,
junho e julho transcorrem sob absoluta ausência de chuvas e com a umidade do
ar baixando a menos de 20 por cento. Os belos gramados da cidade fenecem e as
árvores se desfolham. A vida vegetal se retrai. Pouco antes do início
da primavera cai uma chuva torrencial que o candango (termo aqui usado
carinhosamente) denomina de "chuva do caju”. Segundo os lavradores, é ela que
vai proporcionar o florescimento dos cajueiros. Dizem eles que se ela não vier,
não haverá caju.

As últimas chuvas”, já no fim da estação chuvosa na Palestina, servem para o


amadurecimento do que foi plantado. 0 lavrador sabe que há um processo, com
etapas definidas. Tendo plantado, resta-lhe aguardar com confiança e com
serenidade. Com makrothymía.

"Sede vós também pacientes,” Tiago retorna ao versículo 8. Antes, deveriam ser
pacientes "até a vinda do Senhor”. Aqui, "a vinda do Senhor está próxima”.
"Vinda” é parousía, um dos termos teológicos mais preciosos no Novo
Testamento. Um dos seus significados, talvez o primeiro, era o da visita de
um monarca a uma cidade sob seus domínios. Mais tarde passou a designar a
chegada ou a visita de alguém. Paulo, Pedro e João utilizam o termo para
apresentar a aparição do Senhor ressuscitado que virá em glória. O motivo da
perseverança do cristão é que o Senhor Jesus virá em glória e com poder.

"A vinda do Senhor está próxima.” Logo no versículo seguinte diz Tiago que "o
juiz está à porta”. É preciso reconhecer cotn honestidade e sem fazer
malabarismos mentais que os escritores do Novo Testamento esperavam a vinda
de Cristo como,algo próximo. A parousía, para eles, era iminente. 0 fato de/não
se ter concretizado naqueles dias não deve levar-nos L descrer da Escritura,
tampouco presumir que o Senhor n£o vem mais. Ele vem. A Bíblia diz que ele
vem. Alguns presumem que "o juiz está à porta” é uma referência não a Cristo,
mas sim à destruição de Jerusalém, que sucedeu no ano 70 AD/e traria o juízo
divino. E bom recordar que Tiago escreve para a igreja dispersa pelo mundo e
não para cristãos residentes em Jerusalém. Não creio que seja necessário
"ajudarmos” a Bíblia. Parece-me que a questão fundamental da vinda de
Jesus Cristo, mais do que o tempo, é a sua presença física no mundo mais uma
vez, agora para encerrar a história. Nele, Deus se fez homem e entrou no tempo e
no espaço. O tempo terá seu fim quando ele regressar. Nossa história terá o
capítulo final.

Devemos acautelar-nos contra a precipitação de marcarmos datas para a volta de


Cristo. Um infeliz artigo, intitulado "O Alinhamento dos Planetas”, publicado na
revista Palavra da Vida,47 produziu uma longa série de artigos e livros pouco
sérios sobre o tempo do fim. O desejo de estabelecer uma data desse evento vem
de tempos remotos. Inácio, Policarpo, Irineu e Justino presumiam que seus dias
fossem os últimos da humanidade. Não foram, como sabemos. Com base nas
Escrituras, Hipólito marcou a volta de Cristo para o ano 500, isto no
terceiro século. Nova data foi marcada, após a frustração, o ano 1000. O
anabatista Hoffmann marcou a ocasião para 1533. William Miller declarou que
seria ém 1843. Corrigiram-na para 20/10/ 1844 e tudo o que surgiu foi o
adventismo do sétimo dia. Os testemunhas de Jeová, com maior obsessão,
estabeleceram 1914, corrigiram a data para 1975, e agora sua revista
Despertai! assim declara na página 2: "Importantíssimo é que a revista gera
confiança na promessa do Criador sobre uma nova ordem pacífica e segura antes
que a geração que viu os acontecimentos de 1914 EC desapareça.”48 Para quem
entende a fraseologia jeovista, a declaração é esta: Antes que a geração que viu o
ano de 1914 desapareça, teremos o fim de tudo. Na data deste escrito, quem
nasceu em 1914 tem 73 anos. Quantas dessas pessoas haverá dentro de 40 anos?
E se Cristo não vier até esse prazo?

Lembremo-nos de Mateus 24:36: "Daquele dia e hora, porém, 134

ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, senão só o Pai.” Sendo estas
palavras do próprio Salvador, cumpre-nos observá-las e recordar outras: "Bem-
aventurado aquele servo a quem o senhor, quando vier, achar assim fazendo”
(Mat. 24:46). De nós não se espera adivinhação e sim fidelidade.

Tiago recomenda aos leitores: "Fortalecei os vossos corações.” A convicção de


que Cristo vai voltar deve fortalecer nossa fé. Steríxate é a palavra grega para
"fortalecei”, que significa "apoiar algo para estabilizá-lo”. Apoiemos e
estabilizemos nossa fé na certeza de que o Cristo entronizado há de voltar
e colocar o ponto final na história.

No versículo 9 reaparece o termo "irmãos”. 0 tom coloquial e paterno continua.


Uma exortação para que não se queixem uns dos outros. Por que Tiago mudou
de assunto? Não estava tratando das perseguições e da vinda de Cristo? Agora o
assunto é a murmuração. Um dos seus temas anteriores foi exatamente a
opressão contra os crentes. Fica uma oportuna lição. A amargura dos oprimidos
não deve voltar-se contra eles mesmos. As dificuldades da vida e a pressão
contra os filhos de Deus podem criar uma necessidade de se reclamar, como que
num desabafo. Estando o verdadeiro objeto da reclamação distante ou
inacessível, o espírito de reclamação pode ser canalizado para os de casa,
gerando assim a intranqüilidade.

Lembremos que as murmurações de Israel quando de sua peregrinação no


deserto foram todas punidas. Deus pune o espírito de murmuração. Por isso diz
Tiago: "Para que não sejais julgados.” Não nos coloquemos sob juízo por
praticarmos a murmuração.

Um modelo de makrothymía foi mostrado no versículo 7, o lavrador. Um


segundo modelo é agora apresentado: "os profetas que falaram em nome do
Senhor”. Além da perseverança, foram também um exemplo no sofrimento.
Jeremias padeceu pela fidelidade a Deus. Foi contraditado por Hananias,
preso, ameaçado de morte. Amós também foi acusado pelo líder religioso de
Betei, Amazias. Elias foi ameaçado pela rainha Jezabel. Enfrentaram
adversidades, mas se mantiveram firmes e venceram. São colocados como
exemplo para nós. Temos encarado o cristianismo como uma festa ou como uma
religião de fim de semana. Nosso engajamento é superficial e nem
sempre sentimos a oposição do mundo. Ficamos felizes quando o mundo nos
elogia. "Gosto muito desta igreja”, dizia um incrédulo. "Sinto-me bem, ninguém
me molesta aqui.” Alguém declarou

que "o bom sermão é aquele que consola os aflitos e incomoda os acomodados”.
Se a igreja não incomoda o mundo, há algo errado com ela. Os profetas
incomodaram! Jesus incomodou! A oposição e até mesmo o sofrimento fazem
parte do inventário cristão. "Se fósseis do mundo, o mundo amaria o que era
seu; mas, porque não sois do mundo, antes eu vos escolhi do mundo, por isso é
que o mundo vos odeia” (João 15:19). Isto não quer dizer que os cristãos devem
ser beligerantes, sempre reclamosos e criadores de casos. Quer sim dizer que
devem ser fiéis em qualquer circunstância. A fidelidade produzirá a inimizade
do mundo. E não podemos recuar diante das dificuldades. E nessas ocasiões que
a verdadeira fé se manifesta.

0 versículo 11 parece supor que a bem-aventurança pronunciada por Jesus (Mat.


5:11,12) sobre os que sofrem perseguições por causa dele já era bem conhecida.
"Eis que chamamos bem-aventurados os que suportaram aflições”, nos diz ele.
"Bem-aventurados” é makárioi, o mesmo termo que Jesus empregou nas Bem-
Aventuranças de Mateus 5. Mais uma vez, com tão clara associação, Tiago
identifica seus pensamentos com o Sermão do Monte.

Surge o terceiro modelo de makrothymía: Jó. Os leitores são exortados a se


recordarem do seu exemplo. E foi muita sabedoria de Tiago colocar Jó junto com
os profetas. Podemos tomar os profetas como homens de ação e presumir que Jó
foi um homem resignado. Makrothymía não é resignação, tampouco estoicismo.
Muitos sofrem calados, recalcando sua dor, temendo que qualquer manifestação
de sentimento seja vista como falta de fé. Confundem confiança com sofrimento
estóico. Não foi assim a conduta de Jó. Ele chorou, reclamou, discutiu com os
amigos e apregoou sua dor. Não foi passivo. Mas, no meio da dor que o
esmagava, apegou-se a Deus. Questionado pela esposa, que o aconselhava a
blasfemar e suicidar-se, repreendeu-a, chamando-a de louca, como lemos em Jó
2:9,10. O texto termina com estas palavras: "Em tudo isso não pecou Jó
com seus lábios”.

Tiago não ressalta apenas o sofrimento do patriarca. "Vistes o fim que o Senhor
lhe deu” é uma alusão ao estado final de Jó. Em Jó 42:12 lemos: "E assim
abençoou o Senhor o último estado de Jó, mais do que o primeiro.” Deus
recompensa aquele que permanece fiel nas tribulações. Vale a pena perseverar.
Não ficamos abandonados e somos recompensados. A causa disso é porque "o
Senhor é cheio de misericórdia e compaixão”. A frase

é um eco do Salmo 103:8. É por causa dele mesmo, do seu caráter, que ele nos
socorre.

O tópico é encerrado com o versículo 12. Assim como o cristão deve ter um falar
seguro, onde não haja lugar para murmura-ções, não deve ele empenhar
desnecessariamente a palavra. O juramento é proibido. Por que essa preocupação
de Jesus e de Tiago com os juramentos? Era comum, naquela época, uma pessoa
tomar as coisas santas como avalistas de suas palavras, jurando por elas. Por fim,
não importa que mentira alguém dissesse, se estivesse jurando por algo ou
alguém, sua palavra deveria ser acolhida. Um cristão não murmura, Tiago
deixou claro antes. Agora, ressalta outro aspecto. Um cristão não mente. Fala a
verdade, e por isso não precisa tomar avalistas para o que diz. O que melhor
avaliza seu falar é o reconhecimento público de sua lisura com as palavras. É
nítida a semelhança do pensamento de Tiago com Mateus 5:34-37. A ética de
Tiago mostra muita semelhança com a do Sermão do Monte. Tanto Tiago como
seu meio-irmão, nosso Salvador, esperam que nossa conversa seja o melhor
fiador de nossas palavras.

Em qualquer circunstância, a dignidade do cristão deve permanecer. Sob


perseguição, ele é perseverante. Em aflição, ele não murmura. Em qualquer
momento, sua palavra é sadia.
A Oração na Vida da Igreja

Está alguém aflito entre vós? Ore. Está alguém contente? Cante louvores. Está
doente algum de vós? Chame os anciãos da igreja, e estes orem sobre ele,
ungindo-o com óleo em nome do Senhor; e a oração da fé salvará o doente, e o
Senhor o levantará; e, se houver cometido pecados, ser-lhe-ão
perdoados. Confessai, portanto, os vossos pecados uns aos outros, para serdes
curados. A súplica de um justo pode muito na sua atuação. Elias era um homem
sujeito às mesmas paixões que nós, e orou com fervor para que não chovesse, e
por três anos e seis meses não choveu sobre a terra. E orou outra vez e o céu
deu chuva, e a terra produziu o seu fruto. (5:13-18)

Estamos chegando ao fim das argumentações de Tiago. Um livro, como já


vimos, que não se preocupa com complexas questões teológicas nem com as
grandes doutrinas do cristianismo. Mas um livro de grande utilidade, porque
busca traçar uma conduta adequada para os filhos de Deus. Vimos,
inclusive, que alguns estudiosos o denominam de "Provérbios do
Novo Testamento”. São preceitos para a vida aqui.

Um dos primeiros assuntos da Epístola de Tiago é oração (1:5). 0 último assunto


também é oração. Da forma como se inicia, assim a epístola conclui. As
informações daquela época que nos chegaram falam de Tiago como um homem
dedicado à oração. Testemunhas de sua vida disseram que seus joelhos
se calejaram pelos longos períodos dobrados em oração. Não é de se estranhar,
portanto, que os limites do seu livro sejam a oração. 0 autor do livro foi um
homem que orava.

0 trecho em foco se inicia com três perguntas: Há alguém sofrendo? Há alguém


alegre? Há alguém doente? Essas perguntas abrangem três tipos de pessoas: o
sofredor, o feliz e o enfermo. A resposta a cada pergunta é a mesma. 0 que
sofre deve orar. 0 contente deve orar. 0 enfermo deve chamar alguém para orar
por ele. Assim vemos as três ocasiões para oração: na tristeza, na alegria e na
enfermidade. Evidentemente, não se exclui como momento de oração as
ocasiões de normalidade, mas estas circunstâncias específicas são os extremos
da vida (a alegria e o sofrimento, a alegria e a perda da saúde).

''Aflito?... Ore”. Como reagimos no sofrimento? Com mur-muração? Com


desespero? Com inquietação, presumindo que Deus nos abandonou? A
recomendação bíblica é orar, para levar a aflição a Deus. Os momentos de
angústia devem nos impulsionar para junto do Senhor e não nos afastar dele.

''Contente? Cante louvores”. Não pensemos que se trata de fazer um solo vocal,
mas sim de expressar o nosso agradecimento ao Senhor através de cânticos, a
gratidão cantada. Os momentos de alegria são ocasiões para orarmos e
louvarmos ao Senhor. Há aqueles que só se recordam de Deus nas aflições. Não
devemos estranhar se o Senhor lhes permitir grandes tribulações. E a única
maneira de ser lembrado por eles! Aprendamos a louvar e a orar quando tudo
nos vai bem.

As orações do sofredor e do jubiloso são individuais. A pessoa as faz sozinha e


muitas vezes, como nestes casos, por si. Agora Tiago mostrará a oração em
grupo e intercessória.

''Doente?... Chame os anciãos da igreja”. 0 termo grego é presbyteros.


Originalmente designava ''alguém de idade, ancião”. A tradução da SBB, edição
Revista e Atualizada no Brasil, traz ''presbíteros”, aportuguesando o termo. A
Versão Revisada da IBB traz ''anciãos”. Em Atos 2:17, a expressão ''os vossos
anciãos sonharão sonhos” traz presbyteros, no grego. Em I Timóteo 5:1, lemos:
"Não repreendas asperamente o velho.” Novamente é presbyteros a palavra
grega empregada.

Depois, o termo passou a designar pessoas de destaque na comunidade. Isto se


entende por que nas sociedades antigas as pessoas idosas eram respeitadas e
tidas como dignas de honra. Lemos em Provérbios 16:31: ''Coroa de honra são as
cãs, a qual se obtém no caminho da justiça.” Os cabelos brancos eram, pois,
respeitados. Assim, a palavra "ancião” passou a se aplicar aos líderes da
sociedade judaica. Os líderes da sinagoga judaica

eram assim chamados. Como a igreja cristã nascente herdou muito de sua
estrutura das sinagogas, não é de se estranhar que o termo "presbítero” ou
"ancião” viesse a ser designativo de liderança na igreja.

O Novo Testamento identifica os "anciãos” ou "presbíteros” como sendo os


bispos. Em Atos 20:17 lemos que Paulo mandou chamar "os anciãos da igreja”.
No versículo 28, ao dirigir-se aos anciãos, o apóstolo lhes diz: "O Espírito Santo
vos constituiu bispos.” Da mesma forma, em Tito 1:5, o apóstolo recomenda ao
jovem pastor o estabelecimento de anciãos em cada cidade e dá diretrizes do
caráter do ancião, dizendo no versículo 7: "Pois é necessário que o bispo...”
"Bispo” e "presbítero”, portanto, designam a mesma função no
Novo Testamento. As atribuições a eles conferidas são as
mesmas desempenhadas pelos pastores, o que nos leva a entender que bispo,
presbítero e pastor são títulos diferentes, cobrindo áreas diferentes do ministério
do líder humano da igreja.

"Estes orem sobre ele, ungindo-o com óleo em nome do Senhor.” As igrejas
primitivas possuíam vários pastores (ou uma junta de pastores, como dizem
alguns), assemelhando-se ao "ministério colegiado” em prática em algumas
igrejas hoje em dia. Os pastores eram homens dados ao ministério da
oração. "Mas nós perseveraremos na oração e no ministério da palavra” (At.
6:4). O que significa, porem, a unção com óleo?

A Bíblia Vozes traz a seguinte nota de rodapé: "Conforme o Concilio de Trento,


o sacramento da Unção dos Enfermos se identifica com a prática aqui descrita.”
Também católica, embora menos confessional (exceto no que se refere a
Maria), a Bíblia de Jerusalém diz que "a Igreja viu uma forma inicial
do sacramento da Unção dos Enfermos” e declara que o Concilio de Trento
definiu a identificação. É natural que a Igreja de Roma queira basear aqui o
sacramento da Extrema-Unção. Não encontrará outro texto no Novo Testamento
que mais se aproxime da sua prática. Observe-se, porém, que somente no
século XII a doutrina foi "descoberta” e que a ênfase do texto bíblico não é a
preparação para a morte, como presume o sacramento, mas, sim, que "a oração
da fé salvará o doente, e o Senhor o levantará. É de vida que Tiago trata aqui e
não de morte, como a Igreja Romana presume.

"Ungindo-o com óleo”. Há tempos atrás, um pregador anunciava num programa


evangélico de rádio a venda de "óleo santo ungido” para curar os enfermos. A
prática, além de

imoral, por ser o comércio de algo que o próprio anunciante chama de "santo”,
não encontra respaldo no texto em análise. O óleo não é santo. 0 Novo
Testamento não faz qualquer menção a "óleo santo”. Segundo Tiago, não é no
óleo que reside o poder. E na oração: "E a oração da fé salvará o doente”.

Qual é, então, a razão do óleo? Vê-lo como símbolo do Espírito é agredir o estilo
de Tiago, que é direto, simples e sem simbolismo. E ver no óleo uma "unção
espiritual” é incidir no mesmo equívoco, além de tornar truncado o sentido do
texto.

Tiago é um autor prático e trata de questões objetivas. No Oriente, o óleo (ou


azeite) sempre foi visto como possuidor de virtudes terapêuticas, com
propriedades medicinais. Veja-se o que diz Isaías 1:6 sobre a doença de Judá:
"Desde a planta do pé até a cabeça não há nele coisa sã; há só feridas, contusões
e chagas vivas; não foram espremidas, nem atadas, nem amolecidas com óleo.”
A nação estava gravemente lesionada e não fora medicada com óleo.
Recordemos também a parábola do bom samaritano. 0 socorro prestado pelo
samaritano ao assaltado é descrito nestes termos: "E aproximando-se, atou-lhe
as feridas, deitando nelas azeite e vinho” (Luc. 10:34). O óleo surge como
medicamento. Escritores como Filo e Plínio registraram ser o óleo um excelente
remédio, principalmente contra febres. Conforme Galeno, médico grego que
morreu em Roma e autor de importantes descobertas em anatomia, além de
produtor de vários tratados médicos, o óleo era o melhor remédio para combater
a paralisia (provavelmente massagens com óleo).

Tiago usa dois elementos que bem conhecemos para combater as enfermidades:
o remédio (óleo) e a oração. "A oração da fé salvará o doente.” Sem exagerar e
sem torcer o texto para manter uma posição conservadora, é isto o que ele nos
diz. Não há qualquer idéia de um óleo com virtudes espirituais.

Quando orar? Na aflição, na alegria e nas enfermidades. Toda alegria e todo


sofrimento devem transformar-se em oração e cânticos. A angústia de Jonas foi
motivo de oração: "Na minha angústia clamei ao Senhor” (Jon. 2:2). O ventre de
um grande peixe é um lugar pouco comum para orar, mas era onde Jonas
se achava, e de lá, tomado de angústia, o profeta orou. Em contrapartida, Simeão
orou no momento mais emocionante de sua vida, ao tomar o menino Jesus nos
braços: "Agora, Senhor, despedes em paz o teu servo” (Luc. 2:29).

"E a oração da fé salvará o doente”. Esta é a primeira conseqüência possível da


oração pelos enfermos. Diz respeito à cura física. A expressão "salvará” é
perfeitamente entendida neste sentido. Mas, não se deve inferir que Deus
responderá positivamente a todas as orações, curando todas as enfermidades. Isto
praticamente eliminaria a morte do cenário humano. E sabemos, apesar de
crermos que Deus responde às petições, que milhões de pessoas morrem
diariamente por enfermidades. Até mesmo pessoas que crêem piamente na cura
divina morrem de enfermidades. Somente quando a história tiver chegado ao fim
é que o domínio da morte cessará. "Ora, o último inimigo a ser destruído é a
morte” (I Cor. 15:26). Ainda não é chegada a hora de a morte morrer,
infelizmente.

Deus tem poder para sanar qualquer problema de saúde e é poderoso para
arrancar enfermos das garras da morte. Muitos servos de Deus foram agraciados
com esta bênção em sua vida. Mas, ao mesmo tempo, reconheçamos que Deus
não está obrigado aos planos humanos e que, conseqüentemente, a oração não é
uma ordem de serviço que lhe transmitimos.

"E, se houver cometido pecados, ser-lhe-ão perdoados.” Há três alternativas


quanto à compreensão desta declaração. Parece-me que dogmatizar qual é a
correta não é boa atitude. Vejamos o que elas nos dizem. A primeira alternativa é
ver a ligação de causa e efeito entre a enfermidade e o pecado. A enfermidade é
curada e os pecados perdoados, na ordem do texto bíblico. A interpretação é que,
perdoado o pecado, a enfermidade foi debelada (esta não é a ordem do texto
bíblico). E o caso de se ver a doença como conseqüência do pecado. 0 texto vê o
perdão como conseqüência da saúde e não a saúde como resultado do perdão, o
que se deveria esperar. Mas, os que defendem tal posição utilizam o texto de I
Coríntios 11:30, onde Paulo diz que, por causa das desordens na ceia do Senhor,
há enfermos na igreja. Algumas enfermidades têm raízes espirituais. Tiago diz
"e, se houver”. Temos o grego kán, contração de kaí án, cuja tradução é "e se,
também se, mesmo que, ainda que”. As duas primeiras traduções praticamente
eliminam a questão de causa e efeito. As duas últimas mantêm a possibilidade.
Por isso, embora não me pareça correta, respeite-se a posição dos que assim
pretendem, pois muitos deles são eruditos e piedosos.

A segunda alternativa, ainda que uma variante da causa e efeito, é presumir as


enfermidades como de ordem emocional,

ou seja, produzidas pelo sentimento de culpa pelo pecado. Em linhas gerais, é


esta a posição. Uma dificuldade que se levanta contra este posicionamento é
novamente a ordem do texto bíblico. Primeiro, a cura da enfermidade, e só após
esta é que surge a cura espiritual. Para concordar com esta alternativa,
à semelhança da primeira, deveria vir primeiro o perdão dos pecados e depois o
restabelecimento da saúde, já que esta foi afetada por aquele.

A terceira alternativa é ver duas realidades distintas. Teríamos, então, a oração


intercessória para a cura divina sobre as enfermidades físicas e a oração
intercessória para o perdão dos pecados. Não se vê mais uma relação de causa e
efeito.

Estas são possibilidades de interpretação que contam, todas elas, com defensores
bem providos de argumentação. No entanto, o ponto fundamental não é discutir
qual a posição certa e quais as erradas. Na realidade, são mencionadas aqui
de passagem e de forma superficial. 0 mais importante é que os crentes devem
orar uns pelos outros, praticando a intercessão. Enfermidades, problemas, lutas e
fraquezas dos membros de uma comunidade devem ser motivo para oração
intercessória.

0 versículo 16 continua o pensamento exposto no versículo anterior. Prossegue a


relação entre a oração e a cura ("orai uns pelos outros para serdes curados”) e
recebe outro elemento: "confessai, pois, os vossos pecados uns aos outros”. A
questão de oração e cura neste versículo segue as mesmas tendências
das alternativas do versículo 15. Resta agora entender a questão da confissão
mútua. "Confessai, portanto, os vossos pecados uns aos outros.” Intérpretes
católicos querem ver aqui autorização bíblica para a prática da confissão
auricular prestada ao sacerdote romanista. 0 texto imediatamente inviabiliza a
pretensão: "uns aos outros”. Não postula uma classe especial para ouvir
as confissões e tampouco credencia alguém com poderes especiais para perdoar
pecados que lhe forem confessados. "Os católicos romanos têm usado este
versículo como apoio da prática da confissão ao sacerdote. Entretanto, as
palavras de Martinho Lutero são a melhor resposta a isto: Que estranho
confessor! Seu nome é Outros!”49

Não devemos pensar que se trata de confessar todos os nossos pecados a todos
os nossos irmãos. Tal atitude pode trazer mais transtornos que benefícios. Muitos
crentes há sem estrutura, quer espiritual quer emocional, para ouvir os pecados
alheios. Devemos confessar os nossos pecados às pessoas com as quais

erramos, buscando-as, declarando-lhes os mj ........ i .......

cias nos reconciliando. Devemos confessar os m>>»..... |n i ■ ■ I■ • i

irmãos consagrados, sérios e equilibrados, qm' pmlrm mu u m

sem passá-los para a frente. Esses irmãos podn .in ir......11 p.dn

vra de orientação e estímulo para uma vidu r rima ................


Devemos confessar os nossos pecados a irmãos di I...... ......

espiritual, que possam ajudar-nos. Sem duvida, ■■ ......In

pecado ocultado é muito duro para ser carregado I pm ■

engolfados em nossas lutas espirituais, raeiorimiiimn hiu .......

tivamente que não conseguimos enxergar uma saída A Imm a ■ I■

um amigo confiável, que conosco reparta a carga <■ ....... .

é de utilidade ímpar.

"A súplica de um justo pode muito na sua aluaçau " A ha >

está no versículo 16 e parece referir-se à oração iiili irmn......

pedindo perdão pelos pecados do irmão. É de senlido brm i Iam e não carece de
muitas explicações. Ela liga o versículo |f< an exemplo dado nos versículos 17 e
18: "Elias era um limucm sujeito às mesmas paixões que nós.” 0 prolela liahilu
■n,i Ti mostrado como um homem justo, cuja oração leve ela At ia "orou com
fervor para que não chovesse... E orou oulra vr/ e u céu deu chuva...” Mas, ao
mesmo tempo que mniidrsiou autoridade espiritual em sua oração, Elias era
sujeilo a . ui ame. paixões que nós. 0 seu desânimo diante da ameaça de Je/nhel
e uma situação que muitos crentes já experimentaram. (.>u.11 de nós nunca se
sentiu desanimado diante das ameaças ou dus problemas? Se Elias era justo, não
era, no entanto, um supei homem espiritual. Era um homem como nós. E
conlorladm que Tiago nos recorde isso. Olhamos para os grandes vultos
da Bíblia e estabelecemos entre nós e eles uma distância tão guinde que
pensamos que nunca poderemos ser úteis como eles lorimi. Mas, eram criaturas
como nós. Abraão mentiu, Jaeó foi desleal e mentiroso, Davi cobiçou, planejou a
morte de Urias e adulterou, Pedro negou a Jesus Cristo e ele e Paulo tiveram um
momento de discussão. Há falhas dos homens e mulheres de Deus, que a Bíblia,
na sua cristalina honestidade, não oculta. Exigimos que nossos líderes sejam
infalíveis e impecáveis, mostrumo-nos implacáveis com os que erram e somos
intolerantes com os que manifestam suas falhas. Não se dá o caso de sermos
mais exigentes que o próprio Deus?

Eli as desistiu de tudo e chegou a pedir a morte. Mas Deus o levou do desânimo
à vitória. Isso também pode ele fazer conosco. Ele pode arrancar-nos da caverna
da depressão e conduzir-nos ao triunfo. Fracassos e falhas não significam o fim.

Os exemplos dados pela Palavra de Deus são de pessoas que falharam. 0 poder
de Deus se aperfeiçoa nas fraquezas humanas. Graças ao Senhor por isso!

"Justo”, no conceito de Tiago, não é um homem impecável, à prova de falhas.


Elias não era impecável, sem falhas. A exceção de Jesus de Nazaré, homem
algum foi justo. 0 justo é pecador, e se torna até, por vezes, desanimado. Mas é
cristalino aos olhos de Deus, aceita seu chamado para sair do desânimo e se
mostra dependente de Deus. A oração de um crente assim pode muito. Sejamos
como Elias: humanos, com nossas deficiências, mas honestos e dependentes do
Senhor.
à Guisa de Epílogo

Meus irmãos, se alguém dentre vós se desviar da verdade e alguém o converter,


sabei que aquele que fizer converter um pecador do erro do seu caminho salvará
da morte uma alma, e cobrirá uma multidão de pecados. (5:19, 20)

A Epístola de Tiago termina abruptamente. Não há quaisquer saudações


pessoais, não há recomendações a indivíduos nem doxologia. Até o anônimo
livro de Hebreus chega ao término citando pessoas e com saudações. Somente a
Primeira Carta de João termina de modo um pouco parecido com Tiago,
mas também ela conclui com uma declaração afetuosa. Embora terminar uma
carta dessa maneira não fosse um procedimento usual, o estilo significa que o
assunto final é de grande importância. Ê o clímax da argumentação. O que temos
agora é o ápice do discurso de Tiago.

As palavras finais de Tiago são uma exortação para desviar do erro os que se
distanciaram dos caminhos do Senhor.

"Se alguém dentre vós” pode muito bem significar que o possível desviado é
membro da comunidade cristã. O assunto agora é, então, o cristão cujos pés
resvalam para fora da verdade. Como a igreja deve proceder com um de seus
membros que esteja amando o erro ou sendo por ele iludido?

Infelizmente, em muitas igrejas cristãs, quando alguém se distancia da verdade, a


atitude para com ele é excluí-lo e deixá-lo de lado. Há até os que sentem imenso
prazer em "fofocar” a queda de um irmão. ''Você sabe o que aconteceu

com Fulano?” Pessoas ávidas de sensacionalismo e com falta de assunto para


manter conversação edificante sentem imenso prazer em divulgar o fracasso de
um irmão. Muitas vezes, a exclusão é uma atitude que parece mais vingança: ''Já
que ele agiu assim conosco, vamos pô-lo para fora; não é digno de estar em
nosso meio.” Infelizmente, não é infundamentada a declaração de um observador
sobre a igreja cristã: ''A igreja é o únicp exército do mundo que abandona seus
feridos para morrer.” E também o único exército que atira nos seus próprios
soldados.

Não se pense que com isto se pretende anular a disciplina na igreja. Ela é bíblica.
Mas, qual é a razão da disciplina? Vingança? Meramente punição? Ou é para
recuperação, mostrando ao disciplinado seu erro e como deve ele fazer para
sua restauração? Por que disciplinamos? Para manter a pureza da instituição, por
vezes em padrões tão-somente humanos, ou para auxiliar as pessoas? Qual deve
ser o nosso procedimento com os errados?

Temos do apóstolo Paulo a seguinte recomendação: "Irmãos, se um homem


chegar a ser surpreendido em algum delito, vós que sois espirituais corrigi o tal
com espírito de mansidão; e olha por ti mesmo, para que também não sejas
tentado” (Gál. 6:1). 0 mais espiritual deve corrigir com mansidão o mais fraco e,
ao mesmo tempo, cuidar de sua própria saúde espiritual. Ê correção com amor e
não desprezo farisaico a atitude que deve ser tomada para com os errados.

"Desviar” é planethê, do verbo planáo. Significa também "seduzir,


desencaminhar”. Há crentes que se tornam seduzidos pelo Maligno. Quando
virmos um irmão em condições assim, sendo seduzido, tentemos convertê-lo. É
esta a recomendação bíblica. Evitemos, porém, a confusão. Tiago chama tal
pessoa de "pecador” (v. 20) e usa o termo "converter”, o que leva alguns a
presumirem que ele esteja falando do homem não-crente. Surge a confusão
porque iniciou ele o assunto com "alguém dentre vós”. É de crente ou de
incrédulo que ele fala?

Comecemos o esclarecimento com a palavra "pecador”. Um equívoco nosso é


dividir as pessoas em "salvos” e "pecadores”. A classificação é incorreta. Os
salvos também são pecadores. Há pecadores salvos e pecadores perdidos. Esta
classificação é mais adequada. O crente desviado é chamado de "pecador”
com toda justiça. Se não estivesse desviado, também seria um pecador, da
mesma forma. Só por ser crente em Jesus Cristo e membro de uma igreja,
alguém não deixa de ser pecador. O

termo, portanto, não se refere a um perdido sem Cristo, mas a alguém que peca e
que está, no momento, em situação pecaminosa mais acentuada. É usado aqui
para designar o espírito e o estado do crente desviado.

"Converter” é o segundo termo que devemos esclarecer. 0 verbo é epistrépse, de


epistréfo, cujo significado é "voltar para trás”. É o verbo comumente usado para
mostrar a passagem do estado do incrédulo para o estado de crente em Jesus.
Neste sentido é usado em Atos 9:35: "E viram-nos todos os que habitavam em
Lida e Sarona, os quais se converteram ao Senhor.” Mas, não é neste sentido
exclusivo o seu emprego no Novo Testamento. Em Lucas 22:32 lemos as
palavras dirigidas por Jesus a Pedro "... e tu, quando te converteres, fortalece
teus irmãos”. Ê o mesmo verbo, mas não se deve entender que Pedro era um
incrédulo, mas sim que voltaria atrás, voltaria ao estado anterior. Não continuaria
no seu caminho de negação. 0 verbo pode ter outro sentido além do que
chamamos comumente de "conversão de um perdido”.

A idéia que o texto nos dá, portanto, é recuperar alguém da comunidade que se
desviou. E embora o Comentário Broadman diga que Tiago não exorta o crente a
ajudar o desviado (?), é exatamente isto que o texto presume: converter um
crente do erro em que está só pode ser visto como um ato de auxílio e só por este
ato pode se concretizar.

"Salvará da morte uma alma.” 0 pecado traz conseqüências desastrosas para o


homem e acaba por destruí-lo. "Morte” deve ser entendida como mais que a
cessação da vida física (porque todos, sem exceção, passaremos por ela, à luz de
Hebreus 9:27). E todas as conseqüências do pecado, a somatória dos efeitos
do pecado. Quando evitamos que um irmão se distancie de Cristo e mergulhe no
pecado, estamos livrando-o ou recuperando-o (o verbo sósei aqui utilizado para
"salvará” é o mesmo do versículo 15 — "a oração da fé salvará o doente” —
mostrando que pode significar além da salvação, em termos espirituais), de
muitos problemas que surgirão como conseqüência do seu desvio. Afastar-se de
Cristo é chamar sobre si muitas contrariedades.

"E cobrirá uma multidão de pecados.” Pecados de quem? Do crente que


recuperou seu irmão? Trazer um desviado para o Senhor, no judaísmo, era um
ato tão elevado que auferia méritos a quem assim o fizesse. Embora a linguagem
de Tiago nos permita esta interpretação, ela é estranha ao ensino geral do

Novo Testamento sobre a salvação e o perdão dos pecados. É também colidente


com que o próprio Tiago, embora escassa e resumidamente, ensina sobre o
perdão dos pecados. Em 4:8-10, o perdão é concedido a quem se chega a Deus,
purifica as mãos, limpa o coração e sente tristeza pelo pecado. A idéia
de conseguir mérito para ter perdão dos pecados não tem respaldo em lugar
algum das Escrituras. É mais razoável e mais fácil ver desta maneira: a multidão
dos pecados a ser coberta é do desviado que foi trazido de volta. Muitos dos seus
pecados que seriam cometidos na vida distanciada do Senhor foram
evitados com seu retorno. Seu arrependimento, ao regressar para a comunidade
cristã, trouxe-lhe o perdão dos pecados cometidos enquanto desviado, não pela
volta à igreja, mas pelo arrependimento.
Novamente devemos cuidar para que o fundamental não se perca pela ênfase no
circunstancial. O mais importante é o interesse que os cristãos devem manifestar
uns pelos outros, aconselhando, confessando, intercedendo e tentando
recuperar. E bom que Tiago termine sua carta aos cristãos da diáspora exortando-
os à responsabilidade mútua. Hoje, nós, cristãos que vivemos numa diáspora
muito mais ampla e em circunstâncias de pressão de um mundo dominado pelo
Maligno, tendendo ao conforto, ao individualismo e à busca de bem-estar
pessoal, devemos recordar a exortação do irmão do nosso
Senhor: responsabilizemo-nos uns pelos outros e solidarizemo-nos uns com os
outros. Porque somos guardadores do nosso irmão. "Não sendo como Caim” é a
declaração de I João 3:12. Não sejamos como Caim. Amemos e zelemos pelos
irmãos fracos e caídos. Esta é a vontade de Deus para seu povo.
O Desafio de Tiago

"Ã guisa de epílogo” não é a conclusão desta obra, mas a da Epístola de Tiago.
Como dito, o autor bíblico termina seu livro abruptamente, sem bênçãos, sem
saudações pessoais ou despedidas. Sua última palavra, sobre demover um irmão
do erro, é uma espécie de conclusão. Mas, se ali parássemos, nosso término seria
tão abrupto como o da epístola. Alguma coisa mais deve ser dita. Um desafio
para se levar Tiago a sério, aceitando suas proposições. E seu desafio é este:
Nossa vida deve ser controlada pela Palavra de Deus. Temos impulsos
perigosos, temos uma compreensão da vida que nem sempre é correta
e mantemos aspirações nem sempre as mais sadias. 0 pecado permeia todos os
nossos impulsos, tolda a nossa visão e inspira desejos inadequados. A vida cristã
deve ser uma luta séria para termos uma vida controlada por Deus. Por isso, o
desafio de Tiago é reievante para a igreja de Jesus Cristo hoje. Devemos manter
o pecado sob domínio, para uma cosmovisão saudável.

"Quando Cromwell era primeiro-ministro da Inglaterra, foi certa vez a um circo.


Um domador de animais entrou no picadeiro, estalou um chicote e uma imensa
cobra veio rastejando-se e se enroscou no corpo dele. Mas, logo em seguida,
a multidão ali presente fez um silêncio profundo, pois começou a ouvir o estalar
de ossos esmagados. Daí a pouco, o domador estava morto. Ele havia treinado a
serpente durante treze anos. Quando iniciara, ela tinha apenas cerca de vinte
centímetros de comprimento. Nessa ocasião, ele poderia tê-la esmagado entre
o indicador e o polegar. Mas acreditara que tinha o animal sob seu

controle, e julgou-se seguro com ele. Estava totalmente enganado.

"A Palavra de Deus afirma que não somos capazes de manter o pecado sob
controle. Se voluntariamente lhe cedemos espaço, ele exigirá sempre mais, até
afinal nos dominar por inteiro.”50

É exatamente a grande capacidade que o pecado tem de vencer e de arruinar e


escravizar as pessoas, que deve levar-nos a uma radical submissão à Palavra de
Deus. Nela encontramos poder para corrigir, moldar e habilitar para uma vida
correta.

Por isso, um dos mais graves equívocos entre os evangélicos de hoje é supor que
o evangelho é apenas uma religião. Ao não se deter nas realidades do além e
centrar seus ensinos na vida aqui, Tiago nos chama a refletir sobre o fato de que
o evangelho é uma cosmovisão, uma concepção do universo. É ver a vida e
o mundo do ponto de vista de Deus. E o que os alemães chamam de
weltanschauung.

0 desafio de Tiago é para que tenhamos uma compreensão do mundo segundo a


ética de Deus. Será o cristianismo vivido hoje mais uma preservação de ritos e
de estruturas do que uma cosmovisão bíblica? Será a cosmovisão que temos
mais uma concepção denominacional ou igrejeira do que bíblica? A preocupação
maior é com a Bíblia ou com as estruturas que perenizamos e sacralizamos?
Espero que a resposta seja negativa às duas primeiras indagações, e, na terceira,
a preocupação maior seja com a Bíblia, e não com os esquemas humanos
que traçamos. Mas, temo que não seja assim. E extremamente necessário que
vejamos o cristianismo como uma nova visão do mundo, uma visão segundo
Deus, uma cosmovisão bíblica.

Também, se pensarmos na Bíblia como uma grande "caixa de promessas”, de


onde podemos pinçar versículos que nos agradam e que nos fazem bem, não
teremos uma cosmovisão e sim uma microvisão, a visão de grupo. Seremos
prejudicados e não alcançaremos a maturidade cristã suficiente, no nível que
o Senhor nos oferece. A desenfreada busca de felicidade que marca a nossa
civilização tem se infiltrado no cristianismo que praticamos e se mostra presente
até nas pregações, onde "princípios bíblicos” para uma vida feliz são
constantemente apresentados. A questão mais importante para o homem
moderno é como ser feliz. Nessa esteira de pensamento, muito do nosso ensino
tem caminhado, produzindo um autêntico hedonismo cristão. 0 evangelho é
apresentado como um meio para se

alcançar a felicidade, para se ter paz mental <■ segurança rum cional. Uma
espécie de "meditação transcendental cristã”

A preocupação de Tiago é que busquemos uma vida rela aos olhos de Deus. E
esta a necessidade maior do cristão. "O mlanlil clamor por felicidade pode vir a
ser uma verdadeira armadilha. Uma pessoa pode enganar-se facilmente
cultivando corta alegria religiosa, sem uma vida reta correspondente. Ninguém
deve desejar ser feliz, se não desejar ao mesmo tempo ser santo. Deve gastar
seus esforços procurando conhecer e fazer a vontade de Deus, deixando com
Cristo a questão de quanto feliz será.”51 A Bíblia deve ser normativa e corretiva
e não um baú de roupas velhas que reviramos e de onde tiramos o que nos
interessa, descartando-nos do que está fora de moda, segundo nosso conceito.

E outra relevância de Tiago é sua exortação a praticurmos a fé e não apenas a


acalentarmos. Religião (embora muitos não gostem do termo, entendamo-lo no
sentido de Tiago) não é apenas matéria de sentimentos. Tampouco é matéria
apenas de ritos e de liturgia. É, sim, matéria de vida. "Uma vez ouvi
um sacerdote católico romano lamentar a situação doutro sacerdote que fora
atirado a um cárcere na Alemanha nazista e 'proibido de praticar a sua religião'.
Soou estranhamente humorístico na ocasião; mas eu posso entender que uma
religião fundada mormente em observâncias externas pode ser
proibida.”52 Felizmente, o cristianismo não é apenas sentimentos nem
apenas liturgia. E uma entrega a uma pessoa, a Cristo, e conseqüentemente, uma
cosmovisão crística, um estilo de vida à luz da Palavra de Deus. Este é o grande
desafio de Tiago: "E sede cumpridores da palavra, e não somente ouvintes”
(1:22).

Aceitemos o desafio de Tiago!


NOTAS

1. Barclay, William, Santiago, I y II Pedro, Editorial l.a Aurora, 1974, p. 16-


19.

2. Morris, Leon, I Coríntios, Introdução e Comentário, Mundo Cristão/Vida


Nova, 1981, p. 166.

3. Geoffrey, Wilson, I Corinthians, The Banner of Trutli Trust, 1978, p. 216.

4. Allen, Clifton J., Ed. ger., The Broadman Bible Commen-tary, Broadman
Press, 1972, vol. 12, p. 104.

5. Josefo, Flávio, História dos Hebreus, Editora das Américas, sem data, vol.
6, p. 71.

6. Taylor, William, A Epístola de Tiago, Casa Publicadora Batista, 1965, p. 22.

7. Shedd, Russel, O Novo Dicionário da Bíblia, Edições Vida Nova, 1966, vol.
I, p. 431.

8. Crabtree, A. R., Introdução ao Novo Testamento, Casa Publicadora Batista,


1963, p. 315.

9. Carrol-Hale, Santiago, I y II Tesalonicenses, I y II Corin-tios, Casa Bautista


de Publicaciones, 1971, p. 20,21.

10. Taylor, op. cit, p. 21.

11. Cartão colocado sob o vidro de uma mesa no antigo escritório da Casa
Publicadora Batista, na antiga sede da Rua Paulo Fernandes, no Rio de Janeiro.

12. Trueblood, Elton,^ Vida Que Prezamos, Editora Ipanema, sem data, p. 9.

13. Quoist, Michel, Poemas Para Rezar, Livraria Duas Cidades. 1980, p.31.

14. Graham, Billy, Mundo em Chamas, Editora Record, 1966, p. 15

15. Tozer. Q. W., De Deus e o Homem, Mundo Cristão, 1981, p. 31.


16. Ib., ibid, p. 62.

17. Ib., ibid, p. 31.

18. Ridenour, Fritz, Como Ser Cristão sem Ser Religioso, Mundo Cristão,
1976, p. 108.

19. Fosdick, Harry, A Bíblia em Nossa Época, Imprensa Metodista, 1971,


p.105.

20. Barclay, op. cit., p. 71.

21. Summers, Ray, A Vida no Além, JUERP, 1971, p. 128

22. Berger, Peter, Um Rumor de Anjos, Vozes, 1973.

23. Citação em um Sermão de Harold Reimer.

24. Stott, John, Tive Fome, ABU, 1983, p. 28.

25. Maury, Philippe, Evangelização e Política, Editora Loqui, sem data, p. 35.

26. Barclay, op. cit., p. 104-105.

27. Ib., ibid., p. 104.

28. Pallister, Alan, Os Radicais, Núcleo-Centro de Publicações Cristãs Ltda,


1981, p. 82.

29. Barclay, William, Palabras Griegas dei Nuevo Testamento, Casa Bautista
de Publicaciones, 1977, p. 73.

30. Ib., ibid., p. 83.

31. Ib., ibid., p. 83.

32. Rea, Lawrence, Apostila de Aula Sobre Tiago, na FTBB, sem data.

33. Champlin, Russel, O Novo Testamento Interpretado, A Voz Bíblica


Brasileira, sem data, vol. VI, p. 63.
34. Ib., ibid., p. 63.

35. Pallister, op. cit., p. 101.

36. Harrop, Clayton, La Epístola de Tiago, Casa Bautista de Publicaciones,


1971, p. 83.

37. Johnstone, The Epistle of James, The Banner of Truth Trust, 1977, p. 305.

38. Harrop, op. cit., p. 86.

39. Comparar a edição original britânica com a versão em espanhol. Ambas


constam da bibliografia.

40. Almeida, Napoleão Mendes. Dicionário de Questões Vernáculas. São


Paulo, Editora Caminho Suave Ltda, 1981

p. 220

41. Harrop, op. cit., p. 91.

42. Manson, O Ensino de Jesus, ASTE, p. 301.

43. Steuernagel, A Evangelização do Brasil: Uma Tarefa Inacabada, ABU,


1986, p. 151.

44. Conforme esquema de Lima, Delcyr, Doutrina e Prática


da Evangelização, JUERP, 1969, p. 67.

45. Champlin, op. cit., p. 72.

46. Artigo: "Miséria Atinge 60% da População do País”, aponta estudo


publicado na Folha de São Paulo de 09/04/86.

47. Artigo: "O Alinhamento dos Planetas”, publicado na revista Palavra da


Vida, n- 1, 1977, p. 15-24.

48. Revista Despertai\ de 22/08/85, vol. 66, n- 16, declaração no expediente da


revista.

49. Vaughan, Curtis, James — a Study Guide, Zondervan Publishing House, 3-


ed., 1972, p. 120.

50. Lutzer, Erwin, Aprenda a Viver Bem com Deus e com Seus Impulsos
Sexuais, Editora Betânia, 1984, p. 49.

51. Tozer, op. cit., p. 38.

52. Tozer, op. cit., p. 87.

BIBLIOGRAFIA

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THAYER, Joseph Henry. Greek-English Lexicon of The New Testament. 10“ ed.,
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VAUGHAN, Curtis. James. 3- ed. Grand Rapids, Michigan, Zondervan, 1972.


128p.

Parece que em nossos dias estamos nos preocupando com assuntos de pouca
relevância para a igreja... Enquanto isso, aspectos
extremamente necessários estão sendo esquecidos na nossa vivência cristã...

As maiores dificuldades que o cristianismo enfrenta não estão do lado de


fora da igreja. Inimigos como o secularismo, o comunismo, o modernismo
teológico e outros, embora perigosos, não são iiívêncíveis. Mas, o maior de
todos os antagonistas do evangelho está dentro da igreja: o evangelho não
vivido... Tiago trata do que necessitamos: conduta correta, bom uso das
palavras, honestidade no tTato e integridade de caráter. Acostumados com a
ênfase de nossas igrejas, espiritualizamos em demasia a fé cristã,
internalizando-a por completo, esquecidos de que a nova vida em Cristo nos
coloca diante de uma nova proposta de vida... Se levarmos a sério o
conteúdo de tão esquecida carta, muitos problemas em nosso meio serão
sanados e o impacto que causaremos ao mundo será extraordinário!

Do Prefácio do Autor

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