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Um

Homem Chamado Maria



Joaquim Ferreira dos Santos

Editora Objetiva, 2006

Gênero: Biografia

Numeração: rodapé, 187p

Digitalizado e revisto por Virgínia Vendramini

Maio de 2013

Contracapa

Alguns dizem que ele morreu de amor. Pode ser. Além de compositor, cronista,
radialista, homem de TV e jornalista Antônio Maria era um grande sedutor.
Mulato gordo, tratou de desenvolver habilidosa malícia com as palavras
"preciso de duas horas de papo para que as mulheres se esqueçam da minha
cara". E foi assim que encantou todas no Rio glamouroso dos anos 50, um
elenco admirável de belas mulheres, como Danuza Leão — que deixou o marido
Samuel Wainer, dono da Última Hora, para ficar com Maria, um simples
cronista daquele jornal.
Maria escrevia da forma doce e arrebatada como circulava pelas noites de
Copacabana. Ninguém me Ama é apenas uma das músicas famosas em que
exacerbou o romantismo e despudor. Até hoje não se sabe se foi ele quem
ajudou a criar um jeito sambacanção de viver ou se foram aqueles anos,
melancólicos e dourados, que inventaram um homem chamado Maria.

Orelhas

"No melhor dos mundos, Antônio Maria, o menino grande,
ainda estaria vivo, fazendo aquilo que nenhum de seus contemporâneos sabia
fazer melhor: inebriar de charme uma conversa."
Sergio Augusto, O Globo

"Livro costurado com linha de alta qualidade, do qual o leitor só consegue
desprender-se no ponto final."
Moacyr Andrade, Jornal do Brasil

Sua passagem por este mundo foi rápida —
mas intensa, cintilante, romântica. Antônio Maria nos legou crônicas deliciosas,
hoje inscritas no melhor que a literatura brasileira já produziu. Compositor, fez
lindas músicas que ajudaram a criar o que conhecemos como "samba—
canção". Viveu, como seu grande amigo Vinicius de Moraes, em estado de
poesia, o tempo todo voltado para a paixão pelas mulheres. O pano de fundo de
tudo isso é um Rio que não existe mais, pré-bossa nova, de glamour
hollywoodiano. pois Maria, um pernambucano que chegou à cidade para ser
locutor esportivo, acabou se transformando num dos personagens cariocas mais
queridos, emblema de uma época e de um estilo de viver.
Era doce, brejeiro, o poeta frustrado autor de "Ninguém me ama/ Ninguém me
quer" e a quem ninguém chamava de Baudelaire. Era o homem que sabia
escutar as mulheres e seus dramas, um dos melhores papos da cidade, colega de
copo de grandes artistas brasileiros, como Dorival Caymmi, Rubem Braga e Di
Cavalcanti. Com eles atravessava as noites de Copacabana, em boates famosas
como Vogue e Sacha's, onde circulavam políticos, playboys e estrelas do
cinema internacional.
Foi brigão, boêmio. Maria se metia em confusões e delas saía com candura.
Também empolgava os corações femininos, depois das duas regulamentares
horas de conversa, e costumava se esquecer em namoros apaixonados com as
grandes vedetes de sua época. "É muito melhor estar mal acompanhado", disse
em alguma noitada, contrariando o senso comum que preferia a solidão.
Cardisplicente, como também se chamou, morreu do coração — meses depois
da separação de Danuza Leão, com quem viveu quase três anos. Era de noite,
foi em Copacabana.
JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS vem recuperando não apenas a história
da vida de Antônio Maria mas também sua produção literária, e já organizou
duas coletâneas de crônicas e o diário íntimo do jornalista e compositor
pernambucano. Escrito inicialmente para a coleção "Perfis do Rio" com o título
de Noites de, Copacabana, em 1996, Um Homem Chamado Maria foi
totalmente revisto e atualizado por Joaquim. Recebeu também novos capítulos.
Este livro nos convida a conhecer um personagem fascinante através de um dos
textos mais refinados da imprensa brasileira. Joaquim já trabalhou na Veja, O
Dia, Jornal do Brasil e O Globo, onde assina uma coluna diária. Cronista de
alta linhagem, Joaquim lançou recentemente Em Busca do Borogodó Perdido,
pela Objetiva.

JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS

Um homem chamado Maria

OBJETIVA

Copyright © 2005 by Jel Produções
Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA OBJETIVA LTDA.
Rua Cosme Velho, 103 Rio de Janeiro — RJ — CEP: 22241-090
Tel.: (21) 2556-7824 —
Fax: (21) 2556-3322 www.objetiva.com.br

Capa Silvana Mattievich
Fotos de capa e miolo Acervo da família
Revisão
Damião Nascimento
Umberto Figueiredo Pinto
Tereza da Rocha
Editoração Eletrônica
Abreu's System Ltda.

Todos os esforços foram feitos no sentido de identificar os retratados nas fotos
deste livro. Se, porventura, ocorrer alguma omissão quanto a créditos, os
direitos encontram-se reservados aos seus titulares.

S237a

Santos, Joaquim Ferreira dos
Um Homem Chamado Maria / Joaquim Ferreira dos Santos. — Rio de Janeiro :
Objetiva, 2006
187p. ISBN 85-7302-752-5 1. Música - Brasil - História. 2.
Antônio Maria (1921-1964). I. Título CDD 780.981
927

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Disque-Objetiva: (21) 2233-1388

Sumário

As dançarinas do Castelo, 21
O rádio, a TV e a alma azul de Maísa, 33
A raposa de Exupéry baixa na Vogue, 51
Copa by Cadillac, 63
Meus amigos, meus inimigos, 79
Sambacanção cheio de bossa, 105
Romance policial na Hilário de Gouveia, 121
Um cronista na mesa de pista, 131
Espiadinha na gaveta do criado-mudo, 145
O cardisplicente, 153
Danuza, 157
insuportável mau cheiro da memória, 169
Bibliografia, 181
Agradecimentos, 185

Nota da digitalização: As primeiras páginas do livro contêm fotos. O
texto começa apenas na P. 21


As dançarinas do Castelo

Começou a partida e quem está transmitindo pela Rádio Ipanema o sensacional
Fla-Flu do campeonato carioca de 1940 é o locutor Antônio Maria. Ouçam: —
Bola no ataque do Flamengo com Valido, que passa para Zizinho, Zizinho
tabela com Leônidas, recebe de volta, dribla um e chuta. Bola no fotógrafo.
O Rio de Janeiro de 1940 já estava confuso. Demole-se o morro de Santo
Antônio, ampliam-se os jardins da Glória, inventa-se a Esplanada do Castelo.
Muita poeira.
E aquela narração do speaker recém-chegado de Pernambuco não ajudava nada
a clarear as coisas. Os senhores ouvintes levariam ainda muitos jogos para
compreender que "bola no fotógrafo", expressão inventada por Maria, queria
dizer que o atacante simplesmente chutou para fora.
Mas, agora, atenção torcida tricolor porque lá vem o esquadrão de Álvaro
Chaves, o futuro campeão da temporada, em mais um ataque sensacional
perseguido por Araújo de Morais,

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que é como nosso herói foi obrigado pela direção da Ipanema a assinar suas
locuções: — Bola com Romeu Pellicciari, que passa por Domingos da Guia, por
Pichin e chuta. Entrou de guarda-chuva aberto — descrevia Araújo diretamente
do estádio da Gávea, certo de que agora todos entenderiam. Tratava-se de um
gol espetacular, feito com tal facilidade pelo craque que ele se dava ao conforto
daquela proteção. Havia uma tentativa de bossa, mas o sotaque, o chiado da
transmissão, a novidade da coisa, nada ajudava.
Antônio Maria Araújo de Morais estava fazendo 19 anos (nasceu em 17 de
março de 1921) quando chegou ao Rio, em março de 1940, a bordo do ita
Almirante Jaceguai.
A cidade tinha 1.764.411 habitantes. Quase todos cantavam que o passarinho do
relógio estava maluco, achavam que Elvira Pagã era uma uva e fingiam não ver,
no prédio moderninho do MEC, que Carlos Drummond de Andrade e Sérgio
Buarque de Holanda bancavam os antigos e se estapeavam, óculos quebrados,
por causa de um xodó comum.
O vai-da-valsa já era grande. Trêmulo de pinga, Pixinguinha larga a flauta e fica
com o saxofone. Ninguém notou a presença de Antônio Maria. Nessa primeira
partida pelos gramados cariocas, ele chutaria todas as bolas no fotógrafo. Ficou
uns dez meses por aqui. Passou fome. Foi humilhado. Preso.
Todo esse sofrimento aconteceu em parte no Centro da cidade, o cartão boêmio
do Rio com seus cafés cheios de artistas, estações de rádio e dancings de
mulheres mais ou menos lindas. Atrás dos Arcos, a Lapa, onde, queriam alguns
literatos, encenava-se a nossa Montmartre tropical. No lugar de Sartre e Picasso,
Jayme Ovalle e Di Cavalcanti bebiam Pernot numa mesa. Noutra, Rubem Braga
e Rosário Fusco traçavam genebra.
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Disputavam mulatas com malandros numa democracia literótica-racial que em
breve entusiasmaria Stefan Zweig.
Foi no meio desse caldeirão, no apartamento 1.005 do edifício Souza, na
Cinelândia, que Antônio Maria, logo depois de descer do ita, jogou suas malas.
O Rio fervia.
No Cassino da Urca, Carmen Miranda fazia dois shows, preparando-se para
voltar em definitivo aos States. Deixava em alguns otários a impressão de que
estava americanizada.
Mais perto, a 300 metros do Souza, no Café Nice, Francisco Alves tinha ouvido,
cinco anos atrás, o garoto suburbano Orlando Silva, e vaticinado, bidu: "Esse
garoto leva jeito."
O speaker Maria estava louco para entrar em campo e também esbarrar na sorte.
Em seu time corriam outros pernambucanos esperançosos: na cama ao lado, por
exemplo, o compositor Fernando Lobo, que tinha chegado aqui a bordo de uma
bandinha de jazz. Em outra, Abelardo Barbosa, o futuro rei dos auditórios
Chacrinha. Dorival Caymmi também vivia por lá e, segundo Chacrinha em seu
livro de memórias, vendia uísque falsificado para equilibrar o orçamento. No
apartamento ao lado, ficava o pintor Augusto Rodrigues.
Um dia o speaker quase matou o animador de auditórios. Chacrinha estava na
banheira. Bêbado. Semi-submerso. Maria, na privada, lia uma revista com o pé
em cima da barriga do amigo. Maria já tinha 1,80m. Pesava 120 quilos. Também
bêbado. Sem querer, seu peso foi acabando de submergir Chacrinha. Se não
fosse Fernando Lobo abrir a porta repentinamente, e ver a cena — Chacrinha, já
roxo, tentava botar a cabeça para fora da água —, um pernambucano fugido da
seca ia morrer afogado no Rio, vitimado por outro retirante.

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Decadência lamentável. Um vizinho chegou a pegar Fernando Lobo, aquele que
mais tarde escreveria o clássico Chuvas de Verão, tentando lhe roubar uma
prosaica garrafa de leite da porta.
— Qual o seu nome? — exigiu o vizinho diante daquele ladrão típico do neo-
realismo italiano.
— Antônio Maria, senhor — respondeu Lobo.
Miséria absoluta. Só sobreviveram graças às moças do Dancing Avenida, logo
ali na Rio Branco. De madrugada elas roubavam o dancing em café com leite e
sanduíches americanos, cheios de alface, para banquetear Maria e sua trupe de
cabeças chatas. Se não fossem elas, os auditórios não teriam mais tarde gritado
"Tereezzzzzrrrirrrrnhaaa", muito menos Dora seria consagrada a rainha do frevo
e do maracatu. É justo, então, que seus nomes sejam entronizados na História da
Vida Artística Nacional: obrigado Carmem Loura, obrigado Gilda e obrigado
Perácia. Essas deusas desinteressadas simplesmente adoravam a conversa
daquela brigada brancaleone e, em troca, a alimentavam.
Mais: divertiam-na. Quando Fernando, Maria e Chacrinha iam ao dancing,
dançavam com elas e não tinham o cartão picotado. Se não havia picote
registrando danças, o caixa na saída não cobrava nada. Era tudo free. Cortesia da
casa. Grande Perácia.
Na vida real, a tensão internacional em 1940 era imensa com o crescimento do
Reich de Hitler, e por aqui o Estado Novo também dava sua versão para a dança
do ganso.
As estações de rádio no Rio distraíam a população dos perigos que a democracia
corria. Viviam em absoluta euforia. Na locução esportiva, por exemplo, Ary
Barroso havia acabado de se transferir da Rádio Cruzeiro do Sul para a Tupi em
troca do salário de 5 contos
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de réis, o maior de um radialista na época. Seu passe custou 70 contos. A Rádio
Clube do Brasil, da família Byington, imediatamente repicou contratando
Francisco Alves por... 10 contos, num contrato de dois anos. A quantia
espetacular exigiu economia em outros setores, levando à demissão, por
exemplo, do speaker Gagliano Neto.
Essas duas mexidas mobilizaram o pobre Maria. Ary Barroso, além de
compositor, era speaker e já tinha inventado a célebre gaitinha, o primeiro sinal
sonoro das transmissões esportivas, para anunciar um gol. Gagliano Neto, que
transmitiu com exclusividade a Copa do Mundo de 38, era um herói da
profissão. Em meados dos anos 30, os clubes proibiram as transmissões de
jogos pelo rádio com o argumento de que tiravam público dos estádios. Foi aí
que Gagliano começou a transmitir de onde fosse possível assisti-los — e entrou
para a história, por exemplo, um Fla-Flu visto de um galinheiro, e com uma
inacreditável sonoplastia de cacarejos.
Maria, que estava no ar na Ipanema apenas porque o locutor oficial, o célebre
Erik Cerqueira, tentava driblar uma tuberculose, achou que poderia lhe sobrar
alguma oportunidade em meio àquele troca-troca nas rádios. Mas nada.
Definitivamente, as bolas só acertavam o fotógrafo.
A solução — na triste solidão do seu apartamento, com pilhas de revistas O
Cruzeiro improvisadas como pés de cama, tudo absolutamente desanatômico —,
a solução era invejar com carinho o sucesso dos locutores que tinham dado
certo.
Não há vida que me faça mais inveja que a de César Ladeira. Tem automóvel,
toma banho de mar e só almoça às quatro da tarde, no Ponto Elegante. Sentei-me
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com ele, algumas vezes. Come apenas ovos mexidos, para não engordar. Tem
sempre uma mulher no apartamento, cada noite uma diferente. Um dia,, bati à
porta, ele veio atender, desgrenhado, e explicou, fingindo que estava muito sem
jeito:
— Você desculpe, mas tem uma cliente aqui, que veio para a aula de ginástica.
Devia ser uma artista. E da Urca. Desci o elevador encantado.
Nessa primeira vinda ao Rio, Maria sonhava apenas com a profissão de locutor
esportivo. Não havia composto nenhuma música, embora fosse bom em
repentes e arranhasse um piano. Jamais escrevera uma crônica, embora tivesse
tido boas escolas e se safasse num francês comme ci comme ça. Deixou no
Recife os pais, Inocêncio Ferreira de Morais e Diva Araújo de Morais, os três
irmãos, Rodolfo, Maria das Dores e Consuelo. E um punhado de aflições.
Na verdade, tentava o Sul Maravilha com a mesma expectativa de sobrevivência
que arremessa país abaixo qualquer retirante nordestino. Maria havia nascido
rico, mas a falta de dinheiro, que o acompanharia pelo resto da vida, tornara-se
um drama familiar. O pai usineiro, num desastrado lance de especulação com os
preços do açúcar, de repente perdeu tudo.
As usinas moíam cana plantada e colhida a braço negro, trazida de trem, de carro
de boi e costado de burro. Os preços do açúcar oscilavam. Os lances da praça
eram feitos à base de incerteza. Meu pai adivinhou uma alta, comprou o açúcar
que pôde. O preço do saco de 60 quilos chegou a 50, 70, 80, 90, 100 (meu pai
queria mais —110, 120) e, no dia seguinte, desceu para 15. O jeito
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foi vender, porque a maior parte estava derretendo, no calor e na umidade dos
armazéns do cais do porto. Amanhecemos pobres, nossos automóveis foram ser
carros de praça, o veraneio da praia ficou para quando Deus desse bom tempo.
Nunca mais houve bom tempo. E a vinda ao Rio, chamado por Fernando Lobo,
era uma aventura do mesmo tamanho que a de continuar no Recife. Maria
queria continuar irradiando futebol porque fazia esse trabalho com algum
destaque na Rádio Clube de Pernambuco. Não era pouca pretensão. Aquele
tinha sido um dos primeiros gêneros a se solidificar no rádio brasileiro com as
transmissões feitas, no início dos anos 30, pelos paulistas José Siqueira, Nicolau
Tuma e Armando Pamplona. Agora já surgiam as bossas de Ary Barroso, Valdo
Abreu, Geraldo José de Almeida e Oduvaldo Cozzi. Este último logo daria os
contornos definitivos para uma boa transmissão: tinha boa expressão verbal,
bom texto, criatividade (apelidou Danilo de Príncipe, Orlando de Pingo de Ouro
e Nilton Santos de A Enciclopédia do Futebol) e inventaria seus partners para o
grande espetáculo radiofônico do esporte bretão: o repórter de campo, o repórter
atrás do gol e os comentaristas nos intervalos.
Maria, no entanto, não chegou em nenhum momento a entrar para a história dos
locutores brasileiros. Pagou o preço, percebeu-se mais tarde, de estar um pouco
à frente dos seus marcadores, em situação futebolística de impedimento. Os
bordões que seriam marcantes nas décadas seguintes em locutores como Valdir
Amaral ("o relógio marca"), Orlando Batista ("bota no meio, Malcher") ou o
Sílvio Luís ("pelas barbas do profeta"), em 1940, destoavam. Ainda era cedo
para se ouvir que "Domingos da Guia está caindo mais do que Gabinete francês"
ou que "Ademir está passeando mais do que pitomba em boca de
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velho", outras expressões com que Maria marcava suas aparições na Ipanema.
Pena. Uma vida que poderia ter sido e não foi, como diria o também
pernambucano e desiludido Manuel Bandeira.
Queria muito ser poeta e sou speaker esportivo. Speaker esportivo, com sotaque,
e só até o dia em que Erik Cerqueira sarar dos pulmões. Minha situação é difícil.
Tenho que pedir a Deus para que ele fique bom, mesmo sabendo que vou ficar
sem emprego. [..] Na realidade, não há a menor necessidade de futebol. Dá
muita briga.
No jogo Fluminense e Madureira, campo do Fluminense, nas gerais, só havia
duas pessoas e estavam longe uma da outra. Foram-se aproximando,
aproximando, e quando se juntaram, o pau comeu. Assistimos ao espetáculo,
defronte, na arquibancada, sem poder fazer nada. Até que um guarda fosse lá, os
dois perderam quase o sangue todo (que não devia ser muito).
Em 1940, era bacana fumar o cigarro Pour La Noblesse, tomar água gasosa com
hydrolitol para combater a ressaca e principalmente curtir os produtos
americanos que começavam a invadir o país, como as Seleções do Reader's
Digest, o sabonete Lever, os óculos Ray-Ban e muito Brylcream nos cabelos.
Mas nada desse luxo, muito menos os cassinos da Urca, do Copacabana Palace
e de Icaraí, os grandes programas da época, nada disso era para o bico de Maria.
Ele e seus amigos freqüentavam a boemia do Centro. Gostavam dos dancings
Avenida, Brasil e Cruzeiro, porque neles tinham os favores da turma de Perácia.
Circularam rapidamente pelo celebérrimo Café Nice, na Rio Branco, onde está
hoje o edifício Avenida Central. Afinal, custava apenas o preço do

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cafezinho, 100 réis, e dava direito ao incrível desfile de todos os nomes
importantes do rádio, mais a esperança de se descolar algum emprego. Mas
nada. No máximo, ouviram histórias sobre a burrice de Chico Alves, que usava
o local para comprar músicas de sambistas de morro, e que, ao ter lançado um
livro sobre sua vida escrito pelo jornalista Mário Cordeiro, classificou-o, sério,
de "autobiografia", pois "vocês não sabem que eu fui chofer?".
Mas Maria e Fernando Lobo preferiam mesmo diversão em estado bruto —
girls! girls! girls! — e zarpavam para os cabarés da Lapa: o Nanci, Azteca,
Novo México, o Brasil,
o Casanova, o Capela, o Danúbio Azul, o da Leiteria Bol e o Paraíso. Havia
esses cassinos bacanas e os bares mais fétidos. A Lapa era uma promiscuidade
absoluta.
No Café Indígena, por exemplo, misturavam-se os integralistas Plínio Salgado e
San Tiago Dantas com os comunistas Jorge Amado e Portinari. Nos cabarés,
podia-se esbarrar com uma canja de Orlando Silva no Novo México. Na Mem de
Sá, o regional de Claudionor Cruz se revezava no Azteca com músicos da
Orquestra Sinfônica. Logo na esquina, porém, malandros como um tal de
Miguelzinho e o homossexual Madame Satã enfrentavam a polícia na base do
rabo-dearraia e da barbeira, vulgo do aço, da navalha.
Ainda era a Lapa dos cortiços, da memória da febre amarela e dos terreiros de
Tia Ciata. Um caso de saúde pública. Becos escuros, ruelas apertadas, botecos
malcheirosos, sexo pago. Em 1940, o chefe da polícia deu um susto e inibiu por
alguns tempos o entra-e-sai no Mangue, um puteiro glorificado por marinheiros
e quadros de Di Cavalcanti. Começou-se a sanear o Centro de seus gigolôs,
malandros e prostitutas. Mas a oferta na Lapa ainda continuava intensa. Na
pensão Imperial, um rendez-vous de polacas, quem mandava nas cocottes era a
francesa Chouchou. Você sabia? Veio daí a gíria chuchu para se elogiar uma
mulher

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bonita. Ceci, a musa de Noel Rosa, também era da Lapa. Dançava no Apolo aos
16 anos quando o compositor se apaixonou por ela e escreveu A Dama do
Cabaré. Um chuchuzinho.
Uma vez Manuel Bandeira se debruçou, em forma de poema, sobre essas
cocottes da Lapa e versejou, agradecido, dizendo que eram todas filhas de Deus.
Maria olhava aquilo tudo e tirava as lições possíveis. Dependendo da fome,
acabava a noite na modesta zona da Conde Lage e arrebatava uma mulher
qualquer. Custava cerca de 20 mil-réis por cabeça, o mesmo que quatro bifes do
tamanho de um lenço no bilhar Palácio. Que fome matar primeiro?
Deve ser horrível ter-se uma mulher argentina! Não é por nada... mas já que vai
falar espanhol, que seja espanhola de uma vez. No Assírio, por exemplo, quase
todas as mulheres são argentinas. Mesmo que eu tivesse dinheiro, não sairia com
elas. E é preciso ter dinheiro para sair com uma argentina. Muito. Come no
Assírio, depois na Taberna da Glória e, de madrugada, no Soares. Só gente de
Copacabana agüenta com elas. [...] Acendem-se as janelas dos apartamentos na
Esplanada do Castelo.
Ali (dizem) é que moram as mulheres do Dancing Avenida. Devem estar todas
infelizes porque está chovendo. As mulheres assim, de dancing, de cabaré,
quando chove, ficam todas muito tristes. Umas afogam as cabeças nos
travesseiros e choram, debruçadas, convulsivamente, sacudindo o corpo todo.
Quase sempre de peignoir. A solidão de peignoir.
Essas eram, em 1940, as mulheres de Antônio Maria. Mais tarde, deusas de
carne e osso seriam uma realidade desfrutável. Mas, por enquanto, elas eram
vistas assim, a distância, especuladas,

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idealizadas. As que se aproximavam só traziam problemas. Uma delas, ganha
por Maria no trote telefônico, uma das manias que o acompanhariam até o fim
da vida, um dia adentrou o apartamentinho 1.005 do edifício Souza depois de se
ter anunciado ao telefone como um tanto parecida com Bette Davis. Não era,
claro, mas já que estava dentro do apartamento, urgia recebêla com elegância
cinematográfica. A moça, coitada, pediu uísque, algo que jamais havia entrado
ali naquele lar paupérrimo.
Mas Maria já começava a perceber que não se decepciona uma moça jamais.
Foi ao banheiro. Derramou três dedos de álcool num copo com dois dedos do
remédio Anemotrat.
Consultado, Lobo confirmou que aquilo parecia uísque. Bette Davis bebeu de
uma vez. Em seguida, não se sabe se premeditadamente tresloucada ou já sob o
efeito da bomba líquida, ela foi para a janela e começou a gritar: — Socorro,
dois homens roubaram meu relógio e estão querendo me matar.
Vieram a polícia, o dono do apartamento e a ordem para a mudança no dia
seguinte. Maria e-Fernando Lobo despediram-se então do edifício Souza em alto
estilo. Encomendaram 11 almoços na pensão Santa Luzia e pediram ao garçom
que só fosse pegar as marmitas e o dinheiro às duas horas. Costumavam fazer
essas despesas e deixar no nome de Dorival Caymmi. Ao meiodia chamaram
amigos de Pernambuco para o banquete. À uma e meia jogaram as malas num
carro. À uma e 31 estavam se mandando. Sem rumo.
O emprego da Ipanema durou seis meses e acabou em demissão. Maria não
conseguiu mais nada. Morou ainda no edifício Orânia, na Ronald de Carvalho.
(Uma noite, bêbado, com Lobo e o pintor Augusto Rodrigues, fez uma prova de
natação

31
dentro da banheira, os três, e a água terminou no apartamento do síndico e em
despejo imediato.) Sua desastrada passagem pela Cidade Maravilhosa
culminaria, logo em seguida, num apartamento emprestado por Carlos de Lima
Cavalcante, filho do governador de Pernambuco, no edifício Othon, na Viveiros
de Castro com a Duvivier.
Maria, totalmente desocupado, fazia música de improviso nos bares da praia e
conquistava umas moças independentes — "ou pelo menos independentes nos
domingos e feriados" — que em troca de tanta história engraçada ofereciam
feijoadas e passeios de automóvel.
Uma noite, Maria e Lobo lhes ofereceram simpaticamente uma festa. Apareceu
muita gente. A dança da época era o boogiewoogie ou o lambeth walk. Muita
cerveja e animação.
Lá pelas três da madrugada, uma das moças — não, não era a mesma do
edifício Souza — telefonou para o 2° Distrito, deu o endereço e disse que, "Me
socorram!", tinha sido raptada. Maria passou uma noite na prisão. Só foi solto
na manhã seguinte porque um policial identificou no sotaque um conterrâneo.
Já estava de bom tamanho. Era hora de entender os apitos do destino e inventar
uma nova história. No mínimo, voltar ao vestiário, ouvir as instruções do
técnico e tentar uma tática nova para começar o segundo tempo da partida.
Daquele jeito, ia continuar caindo mais do que Gabinete francês.
No mesmo dia em que saiu do distrito, Maria pegou um ita. Já era o início de
1941. Going back to Recife.

32
O rádio, a TV e a alma azul de Maísa

ergunta de Antônio Maria, da produção do programa.

A voz assustadoramente grave, em of: de Oswaldo Sargentelli vinha com eco,
como se fosse uma distorção necessária para que ela chegasse de lá, de alguma
caverna perdida no inferno, até os ouvidos do entrevistado, o para-religioso
Alziro Zarur, uma espécie de Edir Macedo da era do rádio.
— Sr. Alziro Zarur, se Jesus está chamando, por que o senhor não vai logo?
De 1958 até o final de 1961 não havia nada mais agressivo e original na
televisão brasileira do que o Preto no Branco, um programa de entrevistas da
TV Rio, o canal 13. Maria já era uma personalidade carioca e jogava no escrete
— Haroldo Barbosa, David Nasser, Flávio Cavalcanti, Sérgio Porto — que
formulava as questões.
— Sr. Jânio Quadros — tonitroava Sargentelli em mais uma pergunta de Maria
—, é verdade que o senhor ficou estrábico porque tem um olho em Moscou e
outro no capital americano?

33
Depois que saiu do Rio, em 1941, Maria tinha ficado até 1944 no Recife, onde
voltou a trabalhar na Rádio Clube Pernambuco. Casou com Maria Gonçalves
Ferreira, teve dois filhos, Antônio Maria Filho e Rita, e partiu para curta
temporada na Rádio Clube Ceará. A próxima parada seria Salvador, onde
chegou a ser candidato a vereador, como diretor das Emissoras Associadas. De
volta ao Rio desde 1947, o Preto no Branco era apenas mais uma etapa de uma
carreira que, depois do fracasso na Ipanema, revelava-se produtiva e audaciosa.
— Pergunta de Antônio Maria — atacava Sargentelli na semana seguinte. —
Deputado Tenório Cavalcanti (um político de Duque de Caxias que andava
armado de metralhadora), o senhor mata para viver ou vive para matar?
Dirigido pelo jovem Fernando Barbosa Lima e Carlos Alberto Lofler, o Preto no
Branco do final dos anos 50 tinha uma única imagem, a do entrevistado sentado
no banquinho com a câmera fechando em superclose, revelando olhos tensos
sempre à espera da próxima punhalada inquisitorial. Pretendia-se um clima de
policial noir, mais exatamente a cena clássica do interrogatório na delegacia.
Pelo menos uma vez, na entrevista com Ary Barroso, essa rigidez visual foi
quebrada.
— Pergunta de Antônio Maria — começou Sargentelli.
— Um momento — pediu Ary. — Antes me tragam uma vela.
— Mas por que motivo, Ary? — valorizou Sargentelli. — Só falo de defunto
com vela acesa. Nesse momento a câmera deixou o rosto do, compositor de
Aquarela do Brasil e se fixou em seus pés, onde alguém da produção

34
já lhe realizava o pedido galhofeiro. E Sargentelli pôde então ler a pergunta de
Maria: — Ary, por que você copiou vergonhosamente um tango argentino para
fazer a música Foi Ela?
Era tudo ao vivo. Hoje os videoteipes, os tira-teimas e cromaquis são mais
inteligentes. Naquele tempo, a graça de tudo estava no poder das cabeças
especiais, rápidas, charmosas.
Ary e Maria, donos de uma amizade estranha onde cabia o exercício do rancor
mútuo, já haviam feito, durante todo o ano de 1957, um programa de sucesso:
Rio, Eu Gosto de Você, na mesma TV Rio. Foi a estréia de Maria na televisão.
Os dois conversavam abobrinhas, apresentavam números musicais de sucesso e
entrevistavam, com inteligência e agulha fina.
— Está sofrendo muito? — espetou Ary no peito de Tonia Carrero, recém-
separada de Adolfo Celi.
O exercício da maldade em certa noite de Rio, Eu Gosto de Você custou caro a
Antônio Maria. O lacerdismo estava eufórico com a inevitável eleição de seu
líder ao governo do estado e, mesmo sendo um dos mais severos críticos
daquele estilo político, Maria decidiu entrevistar Sandra Cavalcanti, a versão
feminina do Corvo e candidata a deputada.
— Quer dizer, dona Sandra, que a senhora é uma malamada? — provocou
Maria, saboreando a desabonadora expressão que ele próprio havia criado e tinha
caído no gosto popular.
A resposta de Sandra, garantem os espectadores da cena, assegurou-lhe a
eleição.

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— Posso até ser, senhor Maria, mas não fui eu que fiz aquela música Ninguém
me Ama.
Touché. Pano rápido.
O mais engraçado de tudo, porém, era a oportunidade pressentida pelo
patrocinador do programa. Ele tinha de um lado o raquítico Ary, algo em torno
de 60 quilos.
Do outro, o paquidérmico pernambucano de 120 quilos. Era tudo na medida e
nada mais para que o empresário cearense Adolfo Aragão jogasse todas as
fichas da sua Esplanada Roupas no Rio, Eu Gosto de Você. Aragão cunhou um
slogan absolutamente genial — "Seja qual for o seu físico, a Esplanada resolve"
— que Ary e Maria, indicando as próprias silhuetas envolvidas por um terno da
loja, repetiam em coro na maior cara-de-pau.
De casa, quem tivesse aparelho mais sensível, podia ouvir o riso interior de
Maria gargalhando. Ele estava, hum, digamos, pelo menos profissionalmente,
feliz.
O Rio o admirava, tinha muitas solicitações de trabalho, tudo muito diferente do
que sofreu o speaker da Ipanema.
O recomeço tinha sido pela Rádio Tupi, chamado pelo senador Henrique La
Roque, um íntimo de Assis Chateaubriand, para ser diretor artístico. Mas logo
em seguida o mesmo Chatô o convocava para participar, em 20 de janeiro de
1951, da inauguração da TV Tupi do Rio, na Urca. Um dos programas que foi
ao ar naquele dia era escrito por Maria e contou com Jorge Veiga, Dircinha e
Linda Batista, Araci de Almeida, Alvarenga e Ranchinho, Almirante, Dorival
Caymmi, José Vasconcellos e Mazzaropi.
Era a volta por cima da carne-seca. A Rádio Nacional comandava a audiência
corn seus programas de auditório, radioteatro e jornalismo, feitos pelo creme do
creme do broadcasting,

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um abecedário estrelar que ia do A de Ataulfo Alves ao Zde Zezé Gonzaga. A
Tupi vinha em segundo lugar, mas fazia suas graças. Tinha o Rádio Seqüência
G-3, invenção revolucionária de Gilberto Martins (módulos entremeando música
e variedades durante a tarde), a gaitinha do Ary e bons programas de auditório
— entre eles, os humorísticos e musicais de Antônio Maria.
O primeiro programa na Tupi foi o Minha Terra é Assim, uma série de especiais
de meia hora com grandes nomes da música brasileira. No dia 12 de agosto de
1947, ele apresentou Dorival Caymmi, apenas por acaso um dos hóspedes
eventuais das noites de penúria do edifício Souza, que agora também tinha
dado a volta por cima e inventado, entre outras maracangalhas, a baiana para
Carmen Miranda. O programa era patrocinado pelas (atenção fonoaudiólogos!)
Lãs Samz. Em pleno agosto, com a primavera quase na porta, a marca era
anunciada por um slogan que, além de desinteressado no calendário das
estações, ameaçava a integridade física da língua de quem o lia, no caso, o
próprio Maria, também seu redator: O inverno vai [] chegar, lembre-se de que
Sibéria, Solar e Pompéia são algumas das Lãs Samz para tricô e crochê.
Maria comandou vários musicais na Tupi. Mudava o nome do programa, mas na
verdade não havia grandes diferenças formais entre eles. Nenhuma crítica nisso.
A carência dos recursos técnicos não permitia ousadias. Almirante, o grande
criador desse gênero, e também da Tupi, fazia o mesmo: texto formal de
introdução, falava-se às vezes do autor, apresentava-se o intérprete e tome polca.
Em 10 de agosto de 1949, uma quintafeira, às 21h30, vamos encontrar Maria
dirigindo e apresentando O Tempo e a
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Música. Sua voz é rápida, nervosa, e sem qualquer sotaque, embora um Pouco
mais cantada que a de qualquer grande locutor da época, como Paulo Roberto.
O roteiro musical daquele dia foi o seguinte: You Were Meant for Me, com Nilo
Sérgio; Constantinopla, com Almirante; Bolero, com Dircinha Batista; Trimas
Fox, com a Orquestra Carioca; Foi Ela, com Déo; e Canção de Aniversário, com
Nilo Sérgio. Boas canções, sem dúvida, mas nada que se compare à delícia
kitsch do jingle composto por Antônio Maria para seu anunciante, a saudosa
Cinta Moderna: Cantoras: Quem é que não se lembra do estribilho Do tempo
do espartilho? Partiu-se a baleia Quebrou-se a pressão Oh! dona Teresa, aperte
o cordão.
Locutor (Antônio Maria): Hoje ninguém fala em baleia, espartilho ou pressão.
Cantoras: Hoje não é nada disso Toda mulher pode ser uma uva A cinta cai
como uma luva.
Locutor: Mas que cinta, minha filha?
Cantoras: As cintas modernas da Cinta Moderna.
Nesse período Tupi, Maria batia o córner e corria para cabecear. Dirigia o
departamento artístico, fazia musicais,
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humorísticos, jingles e, a imagem futebolística não era à toa, transmitia jogos. O
speaker entrava em campo novamente, não como os outros, é claro. Nessa
temporada nos estádios, já transmitindo diretamente do Maracanã, continuou
com suas expressões curiosas e manias esdrúxulas (se houvesse dois jogadores
com o mesmo nome em campo, dois Paulinhos, por exemplo, chamava um pelo
sobrenome, mesmo que ninguém o reconhecesse assim). Na tentativa de se
diferenciar dos rivais, extrapolou.
Inventou com Ary Barroso a transmissão em dupla. Assim: num Flamengo e
Vasco, por exemplo, Ary irradiava as jogadas do Flamengo. Quando a bola
passava para um jogador do Vasco, Maria assumia o comando. Complicado,
mas era preciso enfrentar as feras da Rádio Nacional, onde Antônio Cordeiro e
Jorge Curi logo fariam coisa semelhante: cada um narrava uma metade do
campo.
Graças, ou desgraças, a esse esquema, coube a Maria transmitir as jogadas do
Uruguai contra o Brasil na trágica final da Copa do Mundo de 1950 e deixar
para a posteridade a gravação do gol de Ghigia. Um documento impressionante:
ouve-se o grito de gol, seco e rápido. Segue-se o silêncio de pasmo no estádio.
Uma enorme pausa na narração.
E a mão de Maria dando uma porrada, ódio puro, na mesa da cabine. Outro
silêncio e a leitura de um anúncio.
Maria ainda transmitiria jogos por mais dois anos, e parou. "Perdi o gosto do
futebol naquele gol do Ghigia", dizia. Na verdade, ele torcia por Ademir
Meneses Futebol Clube. No Recife era Sport, porque o jogador, o inesquecível
Queixada, artilheiro dono de um estilo requintado, jogava lá. Depois, Ademir
veio para o Vasco, e Maria virou cruz-maltino. Ademir estava na Seleção de
1950, o que aumentou a força da porrada na mesa.

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Maria ainda tentou encontrar alguma motivação depois de Ghigia e do fim da
carreira de Ademir, em 1956, e, segundo o radialista Luís Mendes, se
entusiasmou pelo Bangu de Zizinho, do goleiro Oswaldo Topete, do paraguaio
Cabrera e do pontaesquerda Nivio. Mas os uruguaios tinham acabado com o
prazer da coisa. "O futebol virou um emprego e a ida para o estádio, um
caminho tedioso", escreveu Maria, decepcionado. "Duravam séculos os 90
minutos de qualquer partida. Larguei tudo. Envelhecera."
Sua passagem pela Rádio Tupi, no entanto, deixou como marca principal os
humorísticos, numa série de programas que o incluiria entre os redatores
clássicos do gênero no rádio. O mais célebre de todos os programas, nessa fase
na Tupi, foi o Rua da Alegria, toda segunda-feira, às 21h05. O ator Orlando
Drummond garante que foi Maria, num dos quadros do programa, quem
primeiro passou a tratar o Flamengo de Mengo. Era parte de um bordão, aquela
frase que o humorista repete várias vezes para marcar o personagem, de um ator
chamado Germano.
— Mengo, tu é o maior — repetia Germano, que ficou tão marcado pela frase
que, anos depois, quando foi para a Nacional, levou o bordão junto, como se lhe
fosse parte inalienável da personalidade artística.
Por uma daquelas estranhas ironias do destino, Antônio Maria, cardiopata desde
a infância, tinha Rua da Alegria patrocinado pelo remédio Iodalbe, "a sentinela
do coração". No programa do dia 17 de março de 1952, o elenco de humoristas
apresentava Nancy Wanderlei, Hamilton Ferreira, Orlando Drummond, Abel
Pêra, Nádia Maria e Matinhos. Maria, às vezes, contracenava com os atores.
Mas em geral fazia uma introdução para que uma dupla de bêbados, de gays
(Orlando Drummond, que quarenta anos depois faria o seu Peru na Escolinha
do Professor Raimundo, na TV Globo, já era um
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deles), mulheres assanhadas, maridos traídos, caipiras e outros clássicos
populares do gênero tomassem conta do texto. Era um humor ingênuo.
— Você sabe a semelhança e a diferença entre os trens da Central e a moça que
toma carona de desconhecido? — perguntava alguém com voz de capiau. —
Num sei não — respondia outro, mais mocoronga ainda.
— A semelhança é que os dois costumam sair da linha. A diferença é que a
moça que sai da linha mata uma só esperança passageira. E o trem que sai da
linha mata 180 passageiros.
Em pelo menos um quadro Maria brilhava com um texto nonsense, algo
próximo do delírio verbal dos Irmãos Marx. Era quando ele apresentava os dois
maridos, "eles que são a esperança da lavoura, eles que nos afastam do divórcio
para sempre". Entravam em cena os bem casados Matinhos e Abel Pêra para
um disparate verbal que deixava o auditório intrigado, silencioso. Não havia
claque. E como o humor não era óbvio, quase não se conseguiam risos em
resposta. Uma situação que, enfim, só aumentava o absurdo de tudo.
— Sem querer despertar vossa rubro-negra paixão, à latejante esposa que
cochila em vosso ombro sonegar-seia a pão e água se chegasse em casa, depois
da meianoite, sonegar-se-ia?
— Sonegar-se-ia — respondia o outro. — Mas sem querer dizer que pente de
careca é a mão, à vossa nova-iguaçuense madame oscular-se-ia nos pés se
tirasse os sapatos de tênis, oscular-se-ia?
— Oscular-se-ia.

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No final de 1952, graças ao dinheiro que o governo Getúlio Vargas despejou em
troca de apoio político, a Mayrink Veiga partiu sobre a Tupi e lhe arrebatou os
maiores nomes. Antônio Maria, um dos primeiros contratados, assinou por 50
mil cruzeiros, o mais alto salário do rádio no país. Paulo Gracindo, que tinha
ficado dois anos estraçalhando como o Albertinho Limonta da novela O Direito
de Nascer, na Nacional, ganhava menos — e olha que ele ainda apresentava
Emilinha Borba todos os domingos, botava o pato em cima dos calouros e, ironia
das ironias, era o Primo Rico no Balança Mas Não Cai, o revolucionário
humorístico de Max Nunes criado em 1950. Maria comprou logo o seu primeiro
Cadillac. Era o símbolo de status entre os reis do rádio na época. César de
Alencar tinha um. Luís Vassalo, Manuel Barcelos e Heber de Bôscoli, também.
O de Heber de Bôscoli tinha o assento forrado com pele de tigre. À frente deles,
zunia apenas o Rolls-Royce de Victor Costa, o dono da Mayrink.
A grana para a gasolina e as ondas hertzianas de Victor Costa saíram do mesmo
Banco do Brasil que ajudara Samuel Wainer a fazer a Última Hora. A
agropecuária continuava abandonada, mas, em pleno Centro do Rio, chovia na
horta de Maria e amigos. Nancy Wanderley, sua humorista preferida para tipos
nordestinos, passou de 7 para 12
mil cruzeiros. A cantora Ellen de Lima, que em 1956 entraria na Mayrink para
ganhar 3.500, e estava satisfeitíssima, só não podia imaginar que uma cifra tão
mais espetacular esquentasse os bolsos do terno daquele senhor gordo — afinal,
ele calçava alpargatas, um pré-tênis, um verdadeiro chinelo de lona.
Foram dezenas de programas na Mayrink, um contrato que só terminaria no
início dos anos 60, quando o rádio em geral, feito um morto-vivo desses de
filme de terror adolescente, gritava

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desesperado por "cérebros, cérebros". Eles já estavam todos na televisão. Maria
inclusive. Chico Anysio, idem. Enquanto o sonho durou, Maria e Chico, um
novato cearense estreando no Rio, mais Haroldo Barbosa e Sérgio Porto
tornaram a Mayrink dos anos 50 uma opção cult ao stablishment da Nacional.
Junto com Max Nunes eles formariam o grande escrete do humorismo
radiofônico e estabeleceriam a base do humor de televisão até os anos 80.
Logo no início, Maria levou para lá o seu bem-sucedido Rua da Alegria, só que
com o nome — veja se você percebe a malandragem — de Alegria da Rua. Um
dos atores era Zé Trindade, um baixinho com sotaque baiano, feio que dava dó.
Ele eternizou, primeiro na Mayrink e depois nas chanchadas da Atlântida, a
figura do brasileiro esperto, que vencia a má vontade do Criador em lhe dar
beleza física, partindo com uma tremenda lábia para cima das mulheres. Ele
alardeava ter "borogodó".
— Vai lá em casa conhecer o meu cozido — era o bordão que o homenzinho
jogava nelas, levando o auditório ao delírio com a promessa de que, com aquele
andar da cozinha, mais umas décadas à frente até as crianças estariam comendo
surubas, mamonas e outros cozidos mais temperados. — Você vai sentir o
cheiro do nabo, minha filha.
O forte de Maria não era a criação de personagens, como o Homem do Cozido,
de Trindade, e o Erundino, que fez para Chico Anysio no mesmo Alegria da
Rua. Trabalhava mais em cima da piada, do texto, e para isso não precisava
repetir o personagem toda semana. Foram dezenas de programas, como o Teatro
de Comédia, toda quintafeira, com Antônio Carlos e Ema d'Ávila; o
Levertimentos, com Nancy Wanderley; Cássio Muniz, o Cronista e o Mundo (o
de 24 de abril de 1957 foi sobre "

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angústia e como sair dela sem ir ao psicanalista"), Musical Antarctica, Coisas da
Vida, Regra de Três, A Cidade se Diverte.
Maria ainda tinha as músicas para compor, as colunas dos jornais para
preencher, assinou alguns shows na boate Casablanca com Paulo Soledade, e em
1953 chegou a subir toda noite no palco do Night and Day, no edifício Serrador,
no Centro, para apresentar A Mulher é o Diabo, revista de Ary Barroso. Era um
massacre tal que, em 1957, escreveu durante 39 dias um diário íntimo. Precisava
relaxar e cativar o estilo. Num trecho, desabafou: "Este trabalho íntimo talvez
me alivie do desgosto de escrever mal para O Globo e para o rádio."
Da sua carreira de compositor de jingles, para produtos ou políticos, ficaram
poucos registros. Maria não se orgulhava muito dessa ocupação, que
considerava mais uma viração. Mas, mesmo com os pés nas costas, tinha
talento. Ele era, como bom nordestino, repentista, e fez muitos repentes no
estúdio, bastando o anunciante dar a marca da coisa. Em alguns, teve a parceria
do maestro Aldo Taranto e de Geraldo Mendonça. O trabalho que ficou mais
famoso de todos foi, sem dúvida, o do trio maravilhoso Regina.
Eu sou a água-de-cheiro Regina Eu sou o talco Regina Eu sou o sabonete
Regina Nós três, o trio maravilhoso Quer no calor e no frio Com tempo bom
ou chuvoso Somos o trio Regina.
O mais delicado de todos os jingles, no entanto, uma pequena jóia bem ao estilo
das pequenas jóias literárias que Maria publicava nos jornais, foi o do remédio
de ouvido Aurisedina.

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Interpretado com classe espetacular por Dircinha Batista, uma das mais
populares cantoras do elenco da Rádio Nacional nos anos 50, tinha a sonoridade
de um acalanto dos deuses dos sonhos.
Se a criança acordou Doooooorme, dooooorme, filhinha. Tudo calmo ficou
Mamãe tem Aurisedina.
Em seguida, entrava o vozeirão do locutor Luís Orlando: E a criança dormirá
em paz com Aurisedina. Enfim, o pernambucano ralava por muitas atividades
— hoje seria um "multimídia" — e nem sempre tinha tempo suficiente e cabeça
para elaborar, digamos, piadas da própria lavra. Chegou a pegar algumas de
Millôr Fernandes, assinar como suas e depois, com um charme irresistível, pedir
desculpas. Enfim, os dois filhos estavam em casa de boca aberta. Havia
mulheres pela noite a sustentar.
Corria atrás como podia. Na urgência de cumprir prazos, produziu até mesmo
um cambalacho genial ao
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dilapidar um patrimônio alheio. Escutem. Não é um esquete de programa
cômico. Aconteceu e só está virando manchete agora.
No departamento de humorismo da Mayrink, Haroldo Barbosa comentava
entusiasmado com Sérgio Porto e Chico Anysio o novo personagem que havia
bolado, o seu Jacarandá, um funcionário público que arrasava na conquista do
mulherio. Na mesma sala, ao fundo, aparentemente alheio àquilo tudo, Maria
metralhava na máquina de escrever, correndo contra o tempo para aprontar o seu
Programa Antônio Maria, atração das quintas-feiras às 21h30, ou seja, para dali
a algumas poucas horas.

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E Haroldo continuou descrevendo para os colegas, Sérgio e Chico, os detalhes
do personagem. Acabado o papo, ficaram os três pela estação. Sem ter o que
fazer, resolveram dar uma espiada no tal programa de Maria. Foi aí que quase
caíram para trás, quando ouviram o próprio, em pleno microfone da PRA-3,
apresentando uma de suas atrações:
— E agora, prezado ouvinte — anunciava Maria —, um personagem inédito em
nosso programa. Eis que se aproxima o seu Jacarandá, aquele funcionário
público que dá a maior sorte com mulher.
Sem acreditar no que estava acontecendo, Haroldo ouviu Zé Trindade fazer todo
o personagem que ele havia criado. Era incrível, fantástico e extraordinário,
como diria Almirante num programa da mesma Mayrink, mas Maria, na maior
sem-cerimônia, havia-lhe roubado o Jacarandá, com bordão e tudo.
Coisas de humorista, apenas uma anedota da vida real — mais adiante, em uma
de suas brigas de mentirinha, Maria vai insinuar pelo jornal que Haroldo
também pegava piadas alheias. Eles se entendiam. A cena serve principalmente
para mostrar que a organização não era o forte de Maria. Deixava tudo para a
última hora, acreditava que o santo baixaria sempre — e, no desespero, às vezes
roubava o santo do mais próximo. Teve em média três programas por semana,
13 laudas cada um. Não havia computador ou ar-refrigerado, e os santos estavam
sempre saindo para tomar um cafezinho.
Num outro fim de tarde, com o horário do programa se aproximando, lá estava
ele enlouquecido sobre a máquina de escrever, quando entrou uma senhora na
sala e lhe bateu às costas, muito humilde, coitada:

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— Moço, preciso da sua ajuda — disse. — Sou da Campanha contra o Câncer.
No mesmo segundo, sem se virar, continuando o texto que escrevia e tentando
despachar rápido a inconveniente, Maria respondeu: — Pois eu sou a favor.
Foram 15 anos de rádio, programas marcantes e uma inteligência de destaque na
década de ouro do veículo. A dispersão por outras atividades, no entanto,
prejudicou o reconhecimento, com o peso necessário, de seu grande talento.
Renato Murce, o criador de Papel Carbono, a origem dos programas de calouros
no país, escreveu o livro Bastidores do Rádio, uma geral no assunto desde 1922.
Fala de todo mundo, dá até um bom perfil de Moysés Weltman, autor de
Jerônimo, o Herói do Sertão, o que é justo. Mas não cita Maria uma única vez.
Na televisão, nosso herói pegou o início do videoteipe — todos imediatamente
apagados depois de ir ao ar para se gravar em cima algum gol do domingo. Não
ficou nada.
Colaborou muito no humorismo da TV Rio e foi um dos redatores do Noites
Cariocas, atração das sextas-feiras, e do Riso é o Limite, às terças, todos na
virada para a década de 1960. No cast, Vagareza, Sandra Sandré, Luiz Delfino,
Carmem Verônica e muitos cérebros que já tinham abandonado a Mayrink e a
Nacional. Costinha uma vez incluiu num caco a palavra sacanagem. Foi
suspenso pela Censura. Voltou. Falou porrada. Nova suspensão.
Nos bastidores, o pau comia na máquina — e Maria ia desovando laudas, laudas
e laudas. Continuava empregado da
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Mayrink, mas já sem dar muita atenção ao rádio. As laudas eram feitas com
cópia e uma delas ia para a Mayrink, onde outro redator dava tratamento
diferenciado para levar ao ar. Ou seja: a Rio e a Mayrink contavam as mesmas
piadas com um texto diferente. Chico Anysio, outro infatigável fabricante de
laudas, dava o mesmo golpe.
Nessa confusão operacional, os problemas eram inevitáveis. Um deles foi
provocado por Walter Clark, o jovem e todo-poderoso diretor geral da televisão.
Ele achou muito elitizado um texto de Maria para o Noites Cariocas. Pediu que
o refizesse. Maria topou. Clark voltou a achar o negócio ainda muito sofisticado
e inteligente.
Exigiu nova versão. Maria reescreveu, pela terceira vez. Entrou na sala de
Clark, jogou as laudas em cima da mesa e avisou ao patrãozinho que não
aceitaria novas críticas:
— Taí, é o pior que eu posso fazer.
Na história da televisão brasileira, Antônio Maria tem um nicho especial na
galeria dos entrevistadores clássicos, com um estilo diferenciado de seus
principais colegas:
Se Ary Barroso parecia disposto a partir para a briga a qualquer momento com o
entrevistado; Se Silveira Sampaio encantava a fera com ares de lorde inglês; Se
o Homem do Sapato Branco queria saber até onde o ser humano podia ser tão
devasso em sua vida sexual; Se Hebe Camargo curte o tricô de vizinhas de muro;
Se Bruna Lombardi promete aos homens que uma boa resposta pode lhes render
prazeres loucos...

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E se Jô Soares empresta ao papo de qualquer criador de minhocas um verniz de
interesse superior; Antônio Maria era um sedutor.
Acreditava profundamente na força do seu taco: a conversa. Há quem se lembre
até hoje do glorioso dia de 1957 em que entrevistou a cantora Maísa no
Encontro com Antônio Maria, programa que fazia durante toda a semana às 22
horas na TV Rio. Um talk-show ainda sem esse nome besta. Estava gordíssimo,
era uma noite quentíssima, o estúdio sem ar-refrigerado estava abafadíssimo,
Maria suadíssimo, e também era superlativa a paixão que nosso herói parecia
sentir ali, ao vivo, diante de toda a cidade, pela cantora. Um escândalo, um tesão
incontrolável. Cantou-a descaradamente, com elogios aos olhos verdes, roubou a
poesia de Manuel Bandeira e disse que eles eram dois oceanos não pacíficos e
que sua alma — Maria dizia isso meio de brincadeira, pois era uma das
expressões favoritas do produtor do programa Carlos Alberto Lofler, um ser
meio esotérico, leitor de Herman Hesse —, sim, e que sua alma era azul, pois
azul era a cor das pessoas boas.
Os elementos não combinavam. O suor se chocava com o romance das palavras,
e a gordura de Maria mal cabia nos olhos mais arregalados do que nunca da
cantora. Patético.
No final, quem ganhou Maísa foi Lofler.
Outro, ahn, talk-show inesquecível, já no tempo da TV Tupi, onde trabalhou de
62 a 63, foi o Cadeira Giratória, uma produção de Maurício Sherman. Os
entrevistadores eram David Nasser, Maria e Otto Lara Resende. No meio da
roda, a tal cadeira giratória com o entrevistado. Uma noite apareceu por lá o
governador de São Paulo, Ademar de Barros, que ficaria célebre

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por ter uma amante que ele, em código, chamava de Dr. Rui, e por ter tido um
cofre roubado pelos guerrilheiros do fim dos anos 60. O cofre tinha o dinheiro
dos ganhos polêmicos de Sua Excelência. Pois antes que alguém insinuasse
qualquer coisa, foi o próprio Ademar quem sugeriu à produção do programa que
o chamasse de ladrão. Ninguém topou a armação — menos Maria, é claro, que
queria mais fogo no circo.
— O senhor não passa de um reles ladrão — investiu Maria.
Ademar simulou surpresa, mas evidentemente já tinha trazido o discurso de casa
— e atacou: — Meu caro patrício, se é ladrão quem abre hospital com 4 mil
leitos, eu sou ladrão. Se é ladrão quem abre estrada para Campinas, sou ladrão
— etc. etc. etc.
Maria tinha servido de escada para promover o lançamento do "Roubo, mas
faço", uma ousadia política de Ademar que anos mais tarde motivaria políticos a
dizer "Sou louco, mas faço" ou "Sou bêbado, mas faço". Para um apolítico
como ele, era bobagem. Pior deve ter sido perder Maísa.

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A raposa de Exupéry baixa na Vogue

Cena 1
Araci de Almeida e Linda Batista, duas rainhas do rádio, se pegam pelos
cabelos e começam, por motivos que a história não registrou, a se estapear no
meio do salão.
Cena 2
Enciumado pela rejeição de uma vedete do teatro rebolado, Benjamim Vargas,
irmão do presidente Getúlio Vargas, saca o revólver e sai atirando para o teto.
Cena 3
Antônio Maria, com as calças amarradas por um barbante, cumprimenta Didu
de Souza Campos, um dos dez mais elegantes da alta sociedade.
Life is a cabaret, e você está dando os primeiros passos no mais famoso de
todos da história do Rio. Nunca existiu nada como a boate Vogue, na avenida
Princesa Isabel, ponto obrigatório,

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entre 1947 e 1955, para todos aqueles que tinham nome, sobrenome, charme ou
qualquer motivo para ser importante na cidade. Todas as cenas acima
aconteceram lá, mas, como parecem exóticas demais para dar o clima de
sofisticação da coisa, vamos começar de novo.
O mais importante colunista social da cidade, o todo-poderoso Jacinto de
Thormes, vulgo do charmant Maneco Müller, desce os três degraus que
conduzem da porta da rua ao salão da Vogue e, ao ser percebido, imediatamente
o pianista Sacha Rubin começa a dedilhar a introdução de Solitude. Quando
Lourdes Catão chegava, ouviam-se os acordes de Invitation. Beki Klabin,
NeverLet me Go ou Lover. Era o "boa-noite" de Sacha, um austríaco de memória
incrível e uma espécie de mestre-de-cerimônias da Vogue, fazendo abrir, com a
música preferida de cada freguês, um imenso sorriso no rosto das celebridades.
Ninguém atirava no pianista. As mulheres tinham acabado de ser penteadas por
Renauld, do Copacabana Palace. Os homens vestiam ternos do London Taylor's.
Menos Antônio Maria, é claro. Ali era o seu escritório. Batia ponto toda noite.
Tinha diversão e comida. Pegava umas notícias para o jornal, também umas
mulheres. O fato de estar de alpargatas e o colarinho seboso eram detalhes de
somenos. Todos queriam estar ao lado de sua conversa viva, charmosa. Maria
vestia London Taylor's no papo.
A noite da Zona Sul começava a se integrar à vida carioca. E agora era a vez de
Copacabana ser apresentada a uma das estirpes mais folclóricas da cidade, os
boêmios como Maria. A barra na Lapa estava pesada demais, navalhada demais.
A polícia do Estado Novo, com o coronel Etchegoyen à frente, em nome da
moral e dos bons costumes, havia dado uma coça em malandros, prostitutas,
boêmios e gigolôs, misturando tudo no mesmo saco

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de gatos e deixando à míngua, assustados, os grandes cabarés e dancings da
Central, da Mem de Sá e da Cinelândia. Acabou com o lenocínio, esvaziou as
pensões, perseguiu cafetinas, deixou o Mangue a meia-bomba.
A ralé de camisa listrada ficou onde estava. Quem tinha dinheiro e queria se
divertir à noite migrou para Copacabana, com seus hotéis luxuosos, boates na
penumbra, uísque escocês, uma música chorosa, romântica e com couvert, mas
principalmente sem batuque. Não era só uma mudança geográfica. Ficava para
trás uma cidade quase primitiva. Aparecia um estilo de vida charmoso,
cosmopolita, os passos iniciais na direção de uma exuberância comportamental
que o mundo todo aprecia hoje.
Primeiro tinha sido Pereira Passos e suas avenidas de grandes espaços. O Rio
civilizava-se. Agora era Antônio Maria e sua turma do café-society. O Rio
sofistica-se.
O termo foi cunhado pela colunista americana Elza Maxwell e talvez quisesse
comentar, brincando, a mistura do informal, o café, com a grana, o society. Era
o dinheiro tradicional misturando-se com o dinheiro novo, trazido pela guerra. A
família Mayrink Veiga participava do café-society quando, na Vogue, assistia a
Linda Batista cantando o estrondoso sucesso popular de 1951, Vingança, de
Lupicínio Rodrigues.
A guerra tinha acabado havia pouco. Se o mundo todo tinha razão para euforia,
os grã-finos, então, nem se fala: não apenas continuavam vivos como, alguns
pela primeira vez, estavam ricos.
Só essa incrível descontração do café-society pode explicar o que fez em nossa
boate o todo digníssimo futuro procurador da República, Sr. Fábio de Andrade,
neto do ex-presidente Antônio

53
Carlos. No início dos anos 50, se apresentava na Vogue uma cantora francesa de
nome excêntrico, Patachou. Como se não lhe bastasse a estranheza do nome,
quando cantava, ela sentava no colo dos senhores e, pasmem!, lhes cortava as
gravatas com uma tesoura. Foi então que, certa noite, já meio alto, o Dr. Fábio
recebeu em sua mesa a tal senhora. E antes que esta lhe cortasse a gravata, ele
propôs, braguilha aberta, que cortasse o próprio membro viril, fazendo com que
ele aparecesse imediatamente sob as luzes e a estupefação da boate. Fábio
gargalhava. Patachou, porém, em vez de ficar envergonhada, ou ofendida,
fingiu que topava. E apontou a tesoura para a genitália desnuda do doutor.
Fábio, evidentemente célere, recolheu à gaiola o seu bem mais precioso, sob o
delírio debochado de todos os pares do café-society. Mariozinho de Oliveira, da
Turma dos Cafajestes e proprietário em suas retinas fatigadas dessa ousadia de
Patachou, diz que o procurador ficou meses desaparecido.
Baixaria, claro. Deve ter sido por causa dela que, quarenta anos depois, ao fazer
a história brasileira desse século em Aos Trancos e Barrancos, Darcy Ribeiro
resumiu mal-humorado a Vogue em sete palavras: "Famosa casa de farras da
grãfinagem." Darcy, famoso especialista nas farras indígenas do Quarup,
desperdiçou flecha.
Nas trinta mesas da Vogue, misturada àquela decoração de nuances entre o preto
e o grená, tudo ganhava cores charmosas e, no terreno dos costumes,
revolucionárias.
O Rio dos ricos estava deixando a Belle Époque e caindo de boca na sociedade
de consumo. Havia uma certa necessidade de transgressão, de ruptura com o
passado.
Pecado mesmo. A Vogue correspondia, com perfeição, a essas mudanças.
O cantor Jorge Goulart, membro do Partido Comunista, ainda lembrava-se,
décadas depois, que as mesas da Vogue
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cheiravam a dinheiro. Mas não só. Ele fez shows na casa entre 1947 e 1951, e
custou a entender o que era aquilo que alguns fregueses cheiravam dentro de
guardanapos e lenços. Era a maldita cocaína sendo apresentada ao país.
Fernandinho Beira-Mar e os traficantes dos anos 2000 não eram sequer um
brilho nos olhos de papai e mamãe, e já Goulart registrava para a posteridade a
famosa noite em que um rapaz foi ao banheiro, no subsolo da boate, e deixou
sob a guarda da namorada a mesa com a garrafa de champanhe, petiscos e, dose
no detalhe, um guardanapo amarfanhado. A moça, dedicada, balançou o
guardanapo e o dobrou com paciência, achando repugnante aquela poeirada que
voou para tudo que é lado. Coitada. "O sujeito, quando voltou do banheiro,
abandonou a discrição e fez o maior escândalo com ela", lembra Goulart.
Um lamentável piti, mas todos fingiram não notar. E a vida seguiu como
sempre, feliz, até as sete da matina. Benjamim Vargas, garantia Goulart, dava
proteção ao estabelecimento. Na verdade, Bejo era o homem de Vargas na noite
do Rio. Ainda há pouco, no tempo dos cassinos, a pretexto de gratificação,
jogava fichas de madrepérola, no valor de 500 mil-réis, em cima dos músicos
da orquestra. Gargalhava. E, no entanto, o atentado da rua Tonelero ficava a
cerca de quatro quarteirões da Vogue.
Enfim, aquela boate era território livre, com o aval dos poderosos, para o society
cheirar as novas sensações alucinógenas do século XX. Depois de todas aquelas
guerras aborrecidas, bolsas ciclotímicas, cinemas mudos e gravações cheias de
chuviscos da Casa Edson, chegavam finalmente as delícias e perversões da
Revolução Industrial. Era bom aproveitar antes que o marechal Dutra, o
primeiro de uma série de presidentes brasileiros que jamais sorriria, ouvisse os
conselhos da esposa, dona Santinha, e fechasse aquela pouca-vergonha, como
havia feito, em 1946, com os cassinos.

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O clima era de ousadia não só porque Jacinto de Thormes costumava levar à
Vogue seu cachorrinho, Shakespeare, e os garçons serviam os dois com
naturalidade. No dia seguinte, nas páginas de Última Hora, Jacinto relataria com
elegância toda aquela badalação, uma palavrinha nova que transformava o
encontro de jornalistas e grã-finos num frisson quase orgástico. Em Nova York,
Scott Fitzgerald, Truman Capote e Dorothy Parker animavam a burguesia. Aqui,
uma mesa de Maria, Fernando Lobo, Millôr Fernandes, Ary Barroso e Fernando
Ferreira vibrava de inteligência boêmia os mais finos tímpanos.
"Pela primeira vez as grandes famílias estavam dispostas a aparecer em jornal e
num ambiente tão descontraído", avaliava Jacinto-Maneco, o lançador aqui de
um tipo de colunismo social americano, de nariz menos arrebitado. Uma noite,
por exemplo, ele conseguiu tirar de casa dona Maria Cecília Fontes Coutinho,
dona de dois Rolls-Royces, para levá-la a um show de samba na Vogue. Foi a
única vez que a tal senhora, um dos baluartes sociais da época, fez tamanha
extravagância. A-do-rou.
Alguns já tinham tido essa impressão quando Mário Reis, em 1928, gravou,
baixinho, o maxixe O que Vale a Nota sem o Carinho da Mulher; ou quando
Oscar Niemeyer projetou a Pampulha, em 43. Mas agora era definitivo: vivia-se
a modernidade.
"A Vogue é o relógio do dinheiro e das crises", escreveu Maria. Na Central, os
diplomatas dançavam ao redor dos cisnes no lago do Itamarati. Era o poder da
capital do país, mas ainda Belle Époque. Em torno do piano de Sacha e da voz
do crooner Louis Cole pulsava o novo sangue: o sobe-e-desce social, sexo,
prestígio, a fogueira das vaidades — e um evidente espanto diante de mudanças
tão rápidas. Duas décadas antes, caramba!, Copacabana era um areal visitado
apenas por infelizes com
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doenças de pele e a mando de doutores maluquetes, crentes nos milagres do
banho de mar. Em 1910, por exemplo, esses doentes saíam do mar e iam tomar
leite de vaca direto da própria num estábulo da Barata Ribeiro.
Tudo tinha começado quando Otávio Guinle, o dono do Copacabana Palace,
aberto em 1923 — as fotos da época mostram aquele palácio solitário cercado de
tatuís por todos os lados —, contratou, em 1940, o barão austríaco Max Stuckart
para produzir os shows do cassino do hotel. Quando o jogo acabou, Stuckart
achou que era hora de abrir sua própria casa, a Vogue. Apostou todas as fichas
no requinte, importando Sacha e cozinheiros, o principal deles, o russo Gregório
Berezansky, ganhando 4 mil dólares, mais a hospedagem.
Foi o barão quem lançou em nosso paladar já cansado de negritudes feijoativas
o gosto branquinho de um estrogonofe e da galinha à Kiev, modas que, como
todas as outras, foram se vulgarizando e hoje adornam o cardápio de qualquer
meia-bunda.
— Aquele velho ranzinza ensinou o Rio a comer — testemunhou certa vez,
referindo-se a Stuckart, o mais ranzinza de todos os velhinhos cariocas, o urso
Rubem Braga.
Antônio Maria estava de acordo e tinha seu must na cozinha do barão: "Quando
todas essas bibocas de Copacabana fecharem, ficará o picadinho da Vogue."
Foram sete anos douradinhos. Silvio Caldas, no auge da voz, era contratado da
casa. Dolores Duran também, mas só para músicas francesas e americanas. Sim,
a Vogue foi cultura. Noel Rosa tinha morrido em 1937 e nunca mais se falara
nele. Foram as apresentações de Araci de Almeida, cantora de todas as noites
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da Vogue, que o valorizaram em definitivo, provocando novas gravações com
arranjos de Radamés Gnattali. Durante esses shows, os casais dançavam no
círculo redondo no centro do salão. Victor Costa, cheek-to-cheek com alguma
radioatriz da Nacional, tinha certeza de que ao final, seu Rolls-Royce, aquele
mesmo que na Jovem Guarda seria de Erasmo Carlos, estaria intacto na porta.
Não era só Benjamim Vargas que protegia. Ali por 1954 os visigodos já estavam
se aproximando para a invasão das décadas seguintes, mas se autodestruíam lá
entre eles. Uma vez, por exemplo, Antônio Maria saía da Vogue quando viu uma
amostra de que o inferno existencialista eram os outros. Mais exatamente,
aqueles dois pobretões na calçada da Tasca, um restaurante ao lado:
Um malandro estava espancando um débil mental, às vistas de um policial que,
em vez de intervir, palitava os dentes e dava gargalhadas boçais. Senti o sangue
esquentar e vontade de comprar a briga. Ao meu lado, um garçom da Vogue
avisou que aquele era um desordeiro perigoso. Não dei grande importância à
advertência e ia atravessar a rua quando o espancador tirou da cinta uma faca
que não tinha mais tamanho. O moço que estava apanhando fugiu, o policial
achou graça e meu santo aconselhou que eu não fosse de mão abanando na faca
dos outros. Se fosse uns anos atrás, ou meu conjunto intestinal ficaria na calçada
da Tasca ou aquele covardão iria perder todo o seu cartaz de valente.
Pobre brigava com pobre, rico com rico. Brigava-se muito na Vogue também,
segundo o cantor Nelson Gonçalves, o popular Metralha. Mas era meio catch-as-
catch-as-can, as marmeladas

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televisivas da época. Nelson era contratado da MeiaNoite, uma excêntrica boate
armada embaixo de uma tenda árabe no Copacabana Palace, especializada em
desfiles de modelos e, em seguida, cortejo de milionários. Mas quando
encerrava o batente, Nelson se refugiava na civilização ocidental da Vogue. "As
confusões eram armadas pelos rapazes da Turma dos Cafajestes, mas logo
depois estavam todos juntos na mesma mesa, como se nada tivesse acontecido",
relembra o cantor.
Uma das vantagens de brigar na Vogue é que se poupava a célebre bravata do
"Sabe com quem está falando?". Eram os ricos falando, e brigando, com eles
mesmos. E
qual o problema? No dia seguinte, os jornais silenciariam. Os jornalistas eram
servidos todas as noites, e Antônio Maria particularmente adorava, com o
picadinho inventado por Stuckart, aquele com um ovo em cima. No dia seguinte
pagava-se com uma nota no jornal. A tradição entrou para a história da imprensa
como "picadinho-relations", e ainda há, e haverá sempre, quem a pratique,
embora com outros pratos.
Durante toda a primeira metade da década de 50, a coluna "Mesa de Pista",
assinada por Maria em O Globo, foi alimentada com notícias vindas da Vogue.
Algumas, em 1953, colhidas no balcão do living-bar dirigido pela modelo
Danuza Leão. Era tudo muito simpático e feliz. Maria só ficou irritado entre
1952 e 1953, período em que o livro O Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry fez
a cabeça das grãfinas. "Perplexas", "atormentadas", elas puxavam Maria pela
gravata e só falavam na raposa, só queriam comprovar que ela, a tal raposa,
falava. Pelo menos no quilômetro que o cronista freqüentava, entre o
Copacabana Palace e a Vogue, a sociedade não estava preparada para a filosofia
do livro, concluiu Maria. E anos depois desabafou:
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Eu senti o hálito, vi nas résteas de luz da Vogue, a saliva das citações noturnas
de Exupéry. Sempre a raposa. A raposa que falava, e dizia muito, que era
preciso, antes, cativar. Aquelas cento e tantas mulheres desamparadas, a dizer
que era preciso cativar. Cento e tantas mulheres sem pai e sem mãe, o verbo
infinito, degradando minhas intenções, dilacerando meus nervos. Cativar.
Cativar. Cativar. — Você precisa me cativar. A angústia, a insegurança e a
febre terçã, hoje estampadas em certos rostos antigos e fatigados, tristes e
mendigos, são decorrência do lançamento no Brasil de O Pequeno Príncipe.
Degenerescente, como um estrôncio. Mas Saint-Exupéry nada tem a ver com
isso.
A raposa de Exupéry circulou, cativante, no meio de um cast infindável de
personalidades. Nem todos a perceberam, mas eis outros nomes de príncipes e
princesas que estavam por lá naquelas noites: os solteiros mais cobiçados da
lista de Ibrahim Sued em 1953 (Francisco Catão, "prefere as balzaquianas",
Roberto Seabra, "apaixonado pelo turfe", e Carlos Roberto de Aguiar Moreira,
"80 contos de renda fixa"), Maria Amélia Marcondes Ferraz lançando moda, a
Turma dos Cafajestes (Carlinhos Niemeyer fantasiado de Dama da Noite numa
noite-de longos e black-tie). E todas aquelas cadeirudas vedetes que saíam do
Night and Day de Carlos Machado, no Teatro Serrador, na Cinelândia, e iam
relaxar na Vogue — porque, se ninguém era de ferro, muito menos elas, com
aquelas carnes deliciosamente molinhas (a carne dura só entraria em moda nos
aeróbicos anos 80).
Um dia, mais exatamente em 14 de agosto de 1955, uma semana depois da
morte de Carmen Miranda, tudo acabou no
60
estilo de um agosto típico: em tragédia. Um incêndio, que começou de manhã na
cozinha, destruiu rapidamente todos os oito andares do prédio, onde funcionava
também um hotel. Morreram cinco pessoas, entre elas o diretor social da boate,
Valdemar Schiller, e um cantor eventual, Warren Hayes, que, encurralado pelas
chamas, jogou-se do sétimo andar. A cidade sofria um déficit de 100 milhões de
litros diários no seu abastecimento de água, o que, somado à precariedade do
material dos bombeiros cariocas, transformou o prédio da Vogue, em segundos,
de um paraíso típico dos anos 50 num dos seus infernos mais traumáticos.
No dia seguinte, Antônio Maria declarou-se sem condições de escrever sua
"Mesa de Pista". E passou para a redação de O Globo algumas notas sobre os
personagens da tragédia. Despediu-se assim da Vogue:
Não sei com que cabeça escrevo estas notas. Ardem-me os olhos e tremem-me
os dedos. Com a Vogue terminou uma era da vida noturna carioca. Outra virá,
mas será outra, sem a Vogue. Queimou-se o piano que fora de Sacha, mas
ficarão as canções da noite da Vogue: C'est Magnifique, Unforgettable, I've Got
you Under my Skin, Because of Rain..., tantas, na voz de Louis Cole, que hoje
está perdido na rua, aturdido, como um bêbado, como um fantasma. Acabou-se a
Vogue exatamente quando o cornetim dos bombeiros tocou o "fogo extinto".

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Copa by Cadillac

Agora que você já passou uma noite na Vogue, vamos entrar no Cadillac de
Antônio Maria, um conversível preto, e completar o percurso. Vamos dar uma
volta pela noite de Copacabana dos anos 50, com cuidado apenas para não bater
de frente com a Turma dos Cafajestes, um bando de aviadores da Panair e
jovens ricos desocupados.
Eles davam festas com doentes mentais enjaulados no meio do salão, enviavam
caixas com excrementos para aniversariantes, invadiam enterros fazendo
algazarra e brigavam, brigavam por qualquer coisa. O jornalista Ibrahim Sued, o
compositor Paulinho Soledade, o empresário Carlinhos Niemeyer: todos
cafajestes. Maria tinha amigos na turma e os achava simpáticos. Uma vez, numa
festa, fizeram o concurso dos seios mais bonitos. Todas as moças tiraram a blusa
e mostraram os dotes. Ganhou, parece que com méritos, a surpreendente Araci
de Almeida, que de Araca nessa modalidade não tinha nada.
Mas antes de entrar no Cadillac é bom explicar que o carrão foi fundamental na
história de nosso herói. Maria começou a
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década casado com Maria Gonçalves, a Mariinha, mãe de seus dois filhos, na
rua Nina Ribeiro, no Jardim Botânico. Mas, até que aqueles anos dourados
terminassem, morou ainda com a atriz Yolanda Cardoso, na rua Gomes
Carneiro, n° 7, em Ipanema, e com a secretária Ligia Andrade, na avenida
Delfim Moreira, no Leblon. Brigou muito com todas elas e a toda hora saía de
uma casa para outra. Teve em alguns momentos, como diz o jornalista Joel
Silveira, verdadeira vida de cigano. Morou no Hotel Plaza, na Princesa Isabel,
na Gávea e também na Sernambetiba, mas dormia eventualmente na casa de
amigos ou namoradas. Para que sua produção jornalística não falhasse nunca,
carregava dentro do tal Cadillac uma máquina de escrever. Chegou a redigir
algumas crônicas ali dentro mesmo, no meio da rua.
Os beatnicks estavam, a pé, passando a América a limpo. On the road, pé na
estrada, dizia Jack Kerouac. Maria passou Copacabana a limpo, mas de
Cadillac. Também era, ao seu estilo, um outsi der, mas um marginal charmoso,
apesar do desleixo visual, e louco para ser aceito pelo grand monde.
Copacabana era sua aldeia, o laboratório de onde analisava o comportamento do
planeta. Freqüentava da boate Vogue, do barão Stuckart, ao restaurante Cabeça-
Chata, do idem Manezinho Araújo. Nada que era Copacabana lhe era
indiferente. Mas, vamos por partes. Assim, antecipamos o tour. Voltemos.
Você acabou de entrar no Cadillac, o carro da moda e também o único que
poderia abrigar o enorme Maria. Empurre a máquina de escrever para o canto, e
se arrume no banco traseiro. Nosso cicerone era um ótimo motorista e vai
mostrar o seu roteiro noturno de Copacabana, o bairro que conheceu melhor do
que ninguém nos anos 50 e início dos 60, e deixou registrado para a eternidade,
em retratos precisos, emocionados e de enfoque absolutamente particular.

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Já é noite. Sairei pelas ruas, demorarei nos bares, na eterna procura de alguma
coisa que não deve haver.
Costuma-se dizer que o bairro naquela época era uma imensa vila habitada
exclusivamente pela classe média. Os paraíbas e os suburbanos, nossos
visigodos étnicos, já estavam por lá. Mas eram poucos, serviam apenas, como se
fosse num filme da Metro, para dar cor exótica, tropical. O Rio perigoso estava
bem definido: Lapa, Mangue, praça Mauá. Em Copacabana, podia-se andar de
bonde com os destituídos e estes não se achavam agredidos nem com direito a
qualquer rapinagem.
A revista Manchete de 21 de março de 1953 dizia que Copacabana estava
dividida em três grupos: 1) Uma geração acocacolada; 2) Grã-finos de mei'água
(os nouveaux-riches); 3) Pacíficos burgueses. A classe média e os ricos, como
se vê, eram maioria, mandavam.
Havia espaço para curtir civilizadamente a solidão. Ava Gardner, por exemplo,
em 1956, ficou dias e noites no bar do Copacabana Palace bebendo quantidades
industriais de uísque, enquanto pedia ao Copinha, chefe do conjunto musical,
que apenas executasse canções do seu ex-amor Frank Sinatra. Escolhia-se: amar,
sofrer, esquecer, se divertir. Mas tudo em paz. Sérgio Dourado e o Júlio
Bogoricin ainda não tinham enchido aquilo de quitinetes baratas, trazendo atrás
o barulho dos carros, a poluição e o séquito de miseráveis despejados da sorte. A
imprensa, por sua vez, ainda não havia ensinado o brasileiro a sonhar com o dia
em que, conseguida a ascensão social, moraria ali.

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O clima era de que todos se conheciam, se reconheciam cortlo privilegiados, e
assim caminhavam, juntos e felizes, para as sessões do cinema Rian. Na
bilheteria, acreditem, ainda não havia aquela criancinha remelenta te olhando
comprar o ingresso e suspirosa de uma migalha qualquer do troco.
Pois a primeira atração do tour é justamente o nativo de Copacabana. Nosso
guia está explicando que gente é essa nas calçadas na primeira metade da
década de 50.
Ouçam como ele, quase patologicamente rodriguiano, olhava tudo muito
diferente do clichê da Princesinha do Mar: Na calçada preta e branca da praia,
um vai-e-vem de príncipes, ladrões, banqueiros, pederastas, estrangeiros que
puxam cachorros, mulheres de vida fácil ou difícil, vendedores de pipocas,
milionários, cocainômanos, diplomatas, lésbicas, bancários, poetas, políticos,
assassinos e book-makers. Da guarita do Forte do Leme à guarita do Forte de
Copacabana, de sentinela a sentinela, são 121 postes de iluminação, formando o
"colar de pérolas"tantas vezes invocado em sambas e marchinhas. Cada edifício
tem uma média de 50 janelas, por trás das quais se escondem, estatisticamente,
três casos de adultério, cinco de amor avulso e solteiro, seis de casal sem bênção
e dois entre cônjuges que se uniram, legalmente, no padre e no juiz. Por trás das
34 janelas restantes, não acontece nada, mas muita coisa está por acontecer. É só
continuar comprando os jornais e esperar.
As cores eram sombrias, tempos do cansaço do pós-guerra, da náusea sartriana,
da peste de Camus que alertava para a imortalidade do bacilo da besta nazista.
Talvez Maria pressentisse — embora ninguém aposte uma dose de uísque que
ele tivesse lido

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qualquer existencialista — que um dia a peste acordaria os seus ratos e os
mandaria morrer numa cidade feliz. E por que essa cidade não poderia ser
Copacabana?
Era a moda intelectual da época. Pessimismo, um certo mal-estar. Na
continuação do tour, por exemplo, vamos passar na frente do Bob's, no Posto 4.
Foi o primeiro do Brasil, em 1952. Nosso guia, no entanto, simplesmente
desconhecerá o prédio. Sabia que aquilo não era só um cheeseburger. Era um
estilo de vida se apresentando.
Superficial, apressado, sem olho no olho, sem densidade emocional. O clima de
Maria era francês, tristezas na voz de Charles Trenet, homem e mulher puxando
angústia no Deux Magots.
Por falar em bar de charme intelectual, visitaremos agora o Maxim's, um bar de
portas fechadas em uma esquina da avenida Atlântica. No início dos anos 50,
quem sabia das coisas, como Antônio Maria, freqüentava a Vogue e o Maxim's.
Ele carregava os amigos de uma para o outro, às vezes literalmente: — Vamos
dormir no Maxim's que lá é mais barato — foi como sacudiu uma vez o sabiá da
crônica, Rubem Braga, que cochilava jogado num sofá da Vogue.
A noite do Maxim's era feita pelos artistas, que pela primeira vez escolhiam um
ponto de encontro na Zona Sul, já que na década anterior a moda ainda tinha
sido o Centro, com seus dancings e cafés. Batiam ponto por ali Fernando Lobo,
Humberto Teixeira, Ary Barroso, Manuel Barcelos, Dircinha e Linda Batista,
Almirante, Grande Othelo, César Ladeira e muitos outros.
Pernoitava no Maxim's uma nova geração de nordestinos, mas pela primeira vez
eles não desciam ao Sul em busca da carreira nas letras jornalísticas ou literárias.
O Eldorado charmoso

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agora eram o rádio, a engatinhante televisão e as chanchadas da Atlântida, as
grandes luzes do showbiz caboclo. Não era mais Jaime Ovalle e o Exército do
Pará querendo repetir Graciliano Ramos ou outro cabeça-chata bem letrado. Os
novos cearenses queriam dar certo como o conterrâneo, isto é que era o
invejável agora, César de Alencar. Luiz Gonzaga tinha vindo de Pernambuco e
fazia grande sucesso nacional no início da década, enchendo o Rio de baiões,
forrós e assemelhados.
O Maxim's teve vida curta. Começou a desmoronar quando, em meados da
década, o barman Freddy, um gentleman francês que fazia as honras da casa,
largou tudo e se mandou para Paris com uma prostituta ali mesmo da Atlântica.
Em todas as colaborações com os jornais do Rio, Antônio Maria dedicava
grande espaço ao noticiário da noite. E nos anos 50 só fazia noite em
Copacabana e nos bububus e bobobós dos teatros de revista da praça Tiradentes.
O resto era o breu rural dos pirilampos. De vez em quando, muito raro, falava
de suas incursões diurnas.
À tarde, ele costumava dar uma passada nos bares da cidade, onde encontrava
quase sempre a mesma turma: Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino,
Vinicius de Moraes, Silvio Caldas, Lúcio Rangel, Ary Barroso, Fernando Lobo,
Sérgio Porto, Linda Batista, Di Cavalcanti e outros mestres do batepapo. O
roteiro variava: o Vermelhinho, na Araújo Porto Alegre, em frente ao prédio da
Associação Brasileira de Imprensa; o Lidador, na Sete de Setembro; o Pardelas,
na Santa Luzia; e, principalmente, o Vilarino, na Franklin Roosevelt. Esses bares
tinham uma mercearia na porta. Os homens casados encerravam a farra do
uísque levando para a esposa um embrulhinho com alguma fruta ou delicadeza
importada. Ficavam menos culpados e tornavam a patroa mais compreensiva.

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Mas Maria era principalmente um homem da noite. E quanto mais longa ela
fosse, melhor. Certa vez, por volta das três da madrugada, quando alguém
tentava bater em retirada, ele cunhou uma de suas frases célebres:
Fica. A noite é uma criança.
Seus textos na Revista da Semana, na Manchete, em 1953 e 1956, e nos jornais
fazem o mais completo perfil da noite naqueles anos dourados. Os artistas, as
modas, as casas, as comidas. Nada lhe escapou. De 1951 a 1955 escreveu em O
jornal, o carro-chefe dos Diários Associados de Assis Chateaubriand. Tinha 1/4
de página com o nome de, no início, "A Noite é Grande", e depois "O Jornal de
Antônio Maria". De 1955 a 59 escreveu em O Globo a coluna "Mesa de Pista".
Nos anos seguintes, passaria por três jornais, sempre assinando "O Jornal de
Antônio Maria": de 1959 a setembro de 61 em Última Hora (onde fazia também
o "Romance Policial"), de setembro de 1961 a fevereiro de 62 no Diário da
Noite, e de fevereiro de 1962 a outubro de 64, em O Jornal.
Se o nosso tour estivesse sendo feito em 5 de março de 1959 e alguém
perguntasse o inevitável "aonde ir em Copacabana", nosso guia, o mais bem
informado repórter da noite do Rio, teria feito o seguinte roteiro:
O Copacabana Palace vai dar o Cab Caloway a partir de quarta-feira; o Au Bon
Gourmet, Murilinho de Almeida, a comida e a orquestra de Cadinhos; o Sacha's,
a orquestra de Sacha e Cipó; o Fred's, o italiano Teddy Randazzo e a brasileira
Silvinha Teles. Já na quintafeira estréia Ivon Curi e Carminha Mascarenhas. O
Arpège, Waldir Calmon (sócio da casa) e seu conjunto.

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O Texas, que vivia à base de um pequeno conjunto musical, começou a
apresentar pequenas atrações. A primeira foi Nádia Maria, comediante da TV. O
La Bohème, em nova fase, apresenta o Trio Ipacaraí; o Bacará tem Marisa, que
foi crooner do Copa; o Little Club, Dolores Duran; o Cangaceiro, Ted Moreno e
o piano de Ribamar; o Jirau, sob nova orientação, com pequenas atrações que
mudam toda semana; o Club 36 e o Dominó, na mesma base de cantores que se
revezam; o Pi gale, além de Mabel Serrano, números de streap-tease.
O Pam Pam está fechado e o Le Carroussel apresenta algumas dezenas de
mundanas que transformaram a casa num inferninho. O Plaza tem Booker
Pitman e Leni Martins.
O Hi-Fi, discos e comida, ambos dirigidos por Mauricio Lanthos.
Ufa!!!!
Não era o ritmo que se receita — toda noite um cooper do Leme ao Posto 6
para um cardíaco. Pior: um cardíaco orgulhoso. Uma vez, lá pelas seis da manhã,
depois
de cumprir um desses roteiros, Maria saía da última boate com Vinicius de
Moraes, quando cruzaram com um grupo de homens em idade avançada
fazendo ginástica na praia. Julgaram a cena lamentável. Os movimentos, para
quem balançava na água do uísque noturno, pareciam ridículos. Os calções,
pateticamente coloridos. O professor, barrigudo.
— Vamos fazer um pacto — sugeriu Maria, em tom grave. — Juramos neste
momento que jamais participaremos de uma calhordice como a desses sujeitos.
Jamais faremos qualquer esforço físico desnecessário. Topa?

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Diante da aprovação de Vinicius, apertaram-se as mãos, lançaram um novo
olhar para os velhos ginastas e gritaram juvenis: — Seus calhordas! Seus
calhordas!
Os médicos, no entanto, viviam em torno de Maria, aconselhando justamente
aquilo: exercícios físicos, que fizesse regime, controlasse a qualidade da
alimentação, prestasse atenção no colesterol, estava comendo muita gordura,
precisava ter uma vida menos estressante, noites bem-dormidas, menos álcool.
A quantidade de suor que transpirava era impressionante e acusava problemas
com a gordura excessiva. Mas Maria corria justo na contramão das ordens
médicas. E basta dar uma olhada no roteiro gastronômico que ilustrava suas
colunas, dentro do, quanta ironia, subtítulo "Comer e depois viver". No final dos
anos 50, estes eram alguns dos restaurantes mais citados por ele:
1) Se você hoje não tomar parte em feijoada alguma, vá ao Sacha's, coma uma
trincha de carne grelhada e, sendo do seu gosto, peça um vinho francês. Ah, a
nota?
A vida (apesar de pequena) sempre foi maior e mais roubada que as notas das
boates.
2) Em Copacabana hoje seu jantar será no Fado. Vá comer os bolinhos de
bacalhau de Maria Sidônio e ouvir as canções de Toni de Matos.
3) Não faz mal que a gente fale alguns dias seguidos nos mesmos restaurantes.
Mas é preciso que se diga: um dos melhores pratos do Rio é o tutu com porco
assado do Calypso às quartas-feiras.
4) Escolha sua feijoada: Churrascaria do Leme, Chatô, Calypso, Al Buon
Gustaio, Piaf. Todas em Copacabana.

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5) De madrugada coma uma boa carne assada (fatias grossas) no Cervantes. Se
preferir, vá de sanduíche. O Cervantes tem o melhor sanduíche de carne assada
do mundo.
6) As lentilhas com costela de porco do Ariston são deliciosas.
7) Filé lanhado com sal grosso é no Parque Recreio.
8) De madrugada, com o dia claro, vá comer uma galinha frita no Grego, na
Barata Ribeiro. Tem enorme coleção de croquetes gregos.
9) Muita gente não conhece o Chatô porque se trata de um restaurante sem
letreiro na porta. Mas trata-se de uma das casas mais bonitas do Rio. A comida é
gostosíssima.
O frango ao molho curry e o chateaubriand da casa são deliciosos. Bons licores
à sua escolha após o jantar.
10) Bacalhau ao Zé do Pipo é no Corridinho.
Maria foi, para anexar mais um título às suas atividades, um crítico
gastronômico. Os amigos testemunharam vários regimes, todos vencidos por
uma carne de siri no Real, um cozido no Calypso ou um peixe avinagrado no Al
Buon Gustaio. As conseqüências desse desvario de molhos lhe seriam trágicas.
Mas, por outro lado, ficou impossível olhar a história do Rio de Janeiro e seus
costumes na década de 50 sem aproveitar-se de seu paladar insaciável.
O Rio era a capital do Brasil, Copacabana era a capital do Rio. Os melhores
acepipes estavam aqui, e atrás deles as personalidades que podiam pagá-los.
Maria estava colado neles — acepipes e personalidades —, e os três juntos
faziam história. Foi no Bife de

72
Ouro do Copacabana Palace que Carlos Lacerda e um filho do ministro
Oswaldo Aranha trocaram socos e tiros. Maria cobriu bem. Principalmente, foi
um dos freqüentadores do Sacha's, a boate que virou a coqueluche do high-
society, políticos, artistas e jornalistas depois do incêndio da Vogue, em agosto
de 1955. Mas este é um capítulo especial. É a próxima parada do nosso tour.
O Sacha's, de propriedade do barão Lúcio Schiller, ficava na Gustavo Sampaio,
no Leme, na esquina com Nossa Senhora de Copacabana. A decoração, quem
garante é a especialista Carmem Mayrink Veiga, era sofisticadíssima. Havia
mais pose, mais formalidade do que na Vogue. Logo na entrada, em volta da
pista e do piano, ficavam as mesas mais cobiçadas. Lá atrás, no canto do bar, no
caminho da cozinha, numa zona meio escura, ficava a "Sibéria', onde desovavam
os anônimos. Consuelo Leandro, do cast da TV Rio, era uma superatriz de
sucesso e se misturava com Carmem Mayrink Veiga. Ela lembra da voz de
Murilinho de Almeida, o crooner, da elegância dos rapazes, todos de terno,
evidentemente. Garante que a cozinha do Sacha's foi uma revolução na noite do
Rio.
— O estrogonofe da Vogue ficou famoso — relembra —, mas o camarão e a
lagosta do Sacha's levavam ao delírio. Tinha também um filé com batata e
ervilha maravilhoso.
Mas o prato mais especial era um brochete de carne, que o garçom trazia desde
a cozinha pegando fogo. Fazia a gente se sentir uma estrela no meio daquele
grande espetáculo. Uma glória!
Um dos rituais da casa, quem lembra só poderia ser a teatral Bibi Ferreira, era
quando o pianista Sacha, ex-Vogue, e o homenageado no letreiro, colocava o
candelabro de prata, com uma única vela acesa, sobre o piano e traçava um
mapa-múndi da moderna canção romântica internacional. Numa noite ele

73
acompanhava Murilinho em Ninguém me Ama, de Maria, quando o autor em
pessoa, após o número, levantou-se de uma mesa, agradeceu a lembrança da
canção, mas disse que a letra estava errada. E, tomando do microfone, para
delícia do grand monde carioca, cantou: Ninguém me ama Ninguém me quer

Ninguém me chama

De Baudelaire.
Era apenas uma gracinha, claro, mas levava a sofisticada assinatura do grande
cronista. Baudelaire, o autor de Flores do Mal, tinha como tema também a
desdita de viver, a melancolia romântica, as mesmas iguarias de que provava
Maria para sua produção artística, só que aqui acrescida de uma carioquíssima
auto-ironia.
No Sacha's, Maria se movimentava com descontração e foram raras as colunas
publicadas no final dos anos 50 sem uma nota tirada de suas noitadas.
Algumas, estranhíssimas:
O embaixador da Venezuela exibia, no Sacha's, um punhal enorme. Guarda essa
arma, embaixador. Os diplomatas venezuelanos, para nos conquistar, só usaram,
até hoje, o coração. (27 de abril de 1957, "Mesa de Pista", O Globo) Outras,
divertidíssimas:
Numa dessas noites no Sacha's uma senhora casada e um rapaz solteiro
esfregavam seus narizes. Está bem.

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Cada um é dono de seu nariz e o verbo esfregar pode ser conjugado, ou melhor,
praticado onde quer que se encontrem os esfregantes. Mas, numa época em que
o café-society anda tão visado, não seria aconselhável um pouco mais de
comedimento? [...] O atrito nasal é um carinho à moda dos esquimós,
provavelmente muito gostoso, mas que não deve ser praticado em público. Em
recinto fechado, desde que as partes saibam guardar o sigilo eterno da ética do
adultério, vá lá. Enfim, seja o que Deus quiser. A vida é combate que nos bravos
só pode exaltar. (10 de setembro de 1955, "Mesa de Pista", O Globo) Quando a
capital se transferiu para Brasília, o Sacha's foi esvaziando. Antes de fechar,
porém, houve a "guerra dos bichos". Como a atriz Marlene Dietrich tinha
conseguido entrar na casa com sua cadelinha poodle de estimação, os
Cafajestes, liderados por Sérgio Petterzoni, resolveram dar a mesma honra a
uma cabritinha de nome Adarziza. Foi em 1958, o Brasil estava orgulhoso do
segundo lugar de Adalgisa Colombo no concurso Miss Universo.
O porteiro Henrique ainda tentou barrar o grupo:
— Aonde vocês pensam que vão? gritou. — Não sabem que aos sábados é
preciso paletó e gravata?
Não seria por isso. Em poucos minutos, os Cafajestes se reapresentavam na
portaria com Adarziza vestindo a indumentária exigida e entraram. Se Adarziza
não tivesse insistido com os méééééééé, teriam ficado mais tempo lá dentro no
meio da grãfinagem.

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Enfim, a noite ainda é uma criança, mas já está na hora de encerrar o tour. Uma
passada na Fiorentina, no Leme, para ver o pessoal do teatro (olha o crítico
Paulo Francis lá!, olha a Zélia Hoffman!), que acabou de abandonar o Gondola
como ponto de encontro. Uma olhada nos políticos que marcam ponto no
Michel, na rua Fernando Mendes, no Posto 2. E, preparem suas máquinas
fotográficas, nos artistas de rádio, como Silvio Caldas, Elizeth Cardoso e Maísa,
que preferem o Au Bon Gourmet, onde uma refeição em 1959 não sai por
menos de mil cruzeiros — e irrita Antônio Maria, que está achando tudo caro e
agora se bate em defesa do consumidor: No Au Bon Gourmet uma garrafa de
Don Pérignon custa 3 mil cruzeiros. Trata-se do melhor restaurante do Brasil,
mas uma refeição sai por mil ou 2 mil cruzeiros sem as bebidas, o mesmo
acontecendo com o Le Bec Fin. No Sachas, uma porção de faisão custa 700
cruzeiros e a dose de whisky 130. Para termos uma idéia de custos, o dólar está
a 141,30 cruzeiros, uma cadeira numerada do Maracanã, 150, arquibancada, 34,
e o salário de uma garota propaganda de TV em fase de início de carreira é de 4
mil cruzeiros.
Em 1957, o roteiro "kar" (gíria divulgada por Ibrahim Sued para identificar as
coisas da moda, o contrário era "shangai") de Copacabana tinha 36 restaurantes,
quatro teatros, três snack bars, dois clubes e vinte night clubs. Antônio Maria
era um dos sócios proprietários do Clube da Chave, no Posto 6. Cinqüenta
pessoas, quase todas artistas, empresários ou jornalistas, controlavam uma boate
a que tinham acesso apenas os donos das chaves. Mas a noite estava mudando.
Em todo canto ficava mais forte o som da bossa nova, trazendo um público mais
jovem e com outro estilo de vida.

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É hora de entrar no Cadillac e dormir — antes que Maria resolva sair de uma
dessas boates e disputar uma corrida de carro até Petrópolis com Fernando
Chateaubriand, o que aconteceu algumas vezes. Ele acabou de percorrer todas
essas casas noturnas de Copacabana, foi reconhecido em cada uma delas como o
mais espirituoso dos presentes, o melhor papo, seduziu mulheres com uma
conversa que misturava carência, malícia e promessas de entrega total. Um
sucesso irresistível. Mas ele tinha horror daqueles tapinhas nas costas ("Você é
uma flor de pessoa") e, travo amargo depois de tanto uísque, garantia que
"Ninguém tem dez amigos no mundo, muito menos numa só mesa de bar, onde
se comem siris e camarões para disfarçar a realidade de se estarem comendo
uns aos outros".
A gangorra emocional impressionava. De noite eufórico e feliz no meio das
rodas, no dia seguinte Maria podia avaliar a noitada como um punhado de
"horas que deviam ser dormidas e perdem-se em conversas que não levam a
nada". O sentimento trágico da vida o acompanhava o tempo todo. Um estado
entre o melancólico e o reflexivo diante da condição humana. As noites de
Copacabana eram muito simpáticas mas incompetentes em lhe oferecer um
sentido para a vida. A Manchete de 1953 diria que no fim da noite, de volta ao
Cadillac, Maria carregava sentimentos de gosto acocacolado n'alma.
Num dia seguinte desses, ele escreve no jornal:
Do Rio de Janeiro de hoje, se alguém quiser contar histórias dos personagens de
suas noites, irá dizer, a bem da verdade que, com raríssimas exceções, a boemia
foi praticada por gente vazia, sem outra coisa no avesso que não seja vontade de
beber. Devo dizer que em 80% dos casos conheci gente medíocre,
desinteressante, incapaz de

77
seduzir pela conversa ou pelo conjunto de atitudes. De mesa para mesa, em 99%
das vezes, me disseram sempre burrices e, se sustentei conversa, foi por mania
ou hábito de gentileza, heroísmo paciente de que já não sou capaz, de tão
surrado que ando. Vi mulheres extremamente vulgares, cheirando a extrato
francês, vestindo ao jeito francês, comendo, dançando e fumando em francês, no
curso de uma caminhada que, em calão de botequim, chama-se "arrumação':
Beijei muitas mãos com vontade de cuspi-las, disse dúzias de "Muito prazer" a
quem me causava certa repugnância pelo cinismo, pela desonestidade e, mais
que tudo, pelo cheiro de aventura que recendia de suas existências. A sordice
das madrugadas cariocas chegou ao auge.
A noite podia ser uma criança insuportável, mas o estilo era dos grandes,
tamanho Cadillac.

78

Meus amigos, meus inimigos

Araci de Almeida sabia tudo sobre Antônio Maria. Mesmo assim, como gostava
de dizer brincando, continuava gostando dele. Naquele dia, no entanto, o que viu
Araca, a maior intérprete de Noel Rosa, também cognominada a Arquiduquesa
do Encantado, foi demais mesmo para quem já tinha desta vida visto tudo o que
lhe é esdrúxulo, chocante, extraordinário. Nenhum som de xis lhe era estranho,
mas aquilo, xnm, não sei não.
A cantora tinha ido visitar o grande amigo e, ao encontrar a porta apenas
encostada, empurrou-a. Foi então que ela viu, nu, de quatro, traseiro
descomunalmente branco apontando para a porta, o todo digno autor de
Ninguém me Ama. Desculpem, mas é preciso biografar todos os detalhes:
Antônio Maria tentava se auto-aplicar um supositório.
— Graças a Deus, Araci — exultou o célebre compositor. Já tentei todas as
posições e não consegui nada. Me ajuda com esta porcaria aqui.

79
Ser amigo de Antônio Maria, e ele foi um dos personagens mais queridos da
cidade, exigia não só sacrifícios surreais como o de Araci. Ele tinha empatia,
envolvia, uma alegria exuberante. Carlos Heitor Cony, que o conheceu nos anos
60, acha que se Maria um dia tivesse sido mandado cobrir a posse do papa,
voltaria cardeal.
Mas queria atenção, carinho constante, carente profissional típico. A vantagem é
que os inimigos tinham uma vida muito pior. O único problema, às vezes, era
saber em que grupo você estava. De qualquer maneira, os encontros do cronista
com essa gente — meus amigos, meus inimigos — foram sempre muito
divertidos e deixaram as páginas dos jornais ou o folclore do Rio com mais
humor.
Um amigo chega à boate, põe-me as mãos sobre os ombros (ele em pé e eu
sentado) e pergunta: "Meu amigo, eu estou bêbado e com dor-de-cotovelo. Se eu
comer, o que é que passa: o pileque ou a dor-de-cotovelo?" Respondi, fiado em
experiências anteriores: "Quem tem dorde-cotovelo MESMO não come."
São tantas as histórias das suas aventuras — afinal, estamos diante de um
personagem que saía da boate, pegava o Cadillac, um amigo e, de surpresa,
zarpava para São Paulo —, mas tão poucos os livros editados, que fica a
impressão de que, entre a vida e a obra, ele, que não era bobo nem nada,
escolheu a primeira. O "menino grande", como se auto-apelidou numa música,
vivia à altura.
Os grandes personagens da cidade desfilaram nas colunas de Antônio Maria,
uma galeria absolutamente particular das pessoas que, para o bem ou para o mal,
eram importantes, faziam notícia. Entre 1950 e 1964, ele escreveu praticamente
todos os

80
dias nos jornais do Rio, algo próximo de 3 mil crônicas. Era preciso muito
assunto, muita gente inventando moda. Quando não havia nada acontecendo, ele
olhava para o lado e transformava a trivial conversa dos amigos ontem à mesa
numa polaroid sensível: O Rubem Braga é um homem que almoça e janta à base
de carne, arroz e feijão. Não lhe dêem legumes se o chamarem para comer em
casa. Ontem, numa mesa, discutia-se comida (qual a mais nutritiva etc.) e
alguém se lembrou de citar a importância de certos legumes. Braga rebateu de
lá: "Meu caro, legume é negócio de Seleções do Reader's Digest."
Alguns dos famosos dariam uma fatia do sucesso que tiveram para ficar de fora
dos espaços assinados por Maria. Um deles, por exemplo, um inimigo declarado,
foi Flávio Cavalcanti, apresentador de televisão que fazia crítica de discos
quebrando-os. Flávio, que já participava de uma turma antipatizada, cultora do
lacerdismo e com uma levada de direita, caiu na asneira de falar mal de uma
música de Maria. Dono do programa Um Instante, Maestro, Flávio era um
sujeito de lábios finos, com um desenho molenga demais, boquinha pequena
demais. Coitado. Entrou para a história com um implacável (e genial) apelido
cunhado pelo adversário: Boca Júnior.
Mas, antes de bater nos inimigos, precisamos nos despedir de Araci de Almeida,
que, depois de ter sofrido todo aquele desconforto como enfermeira do menino
grande, ainda vai pegar o táxi do Inglês, um chofer da São Francisco Xavier que
a leva toda noite, por 600 cruzeiros, de Copacabana até o subúrbio do
Encantado.
Uma vez Maria e Vinicius de Moraes, os dois sempre correndo atrás da grana
onde ela estivesse, penavam para cumprir um compromisso brutal assumido
com uma agência de publicidade: compor um jingle para o lançamento... de um
regulador feminino. Tinha sido muito mais fácil para Vinicius escrever a
clássica Receita de Mulher, aquela das feias que me desculpem. Maria, por sua
vez, preferia escrever mais três programas para a Mayrink Veiga. Não havia
jeito de o jingle do regulador, desculpem a expressão neste caso, sair. Durante
uma noite inteira experimentaram todo tipo de rimas e refrões. Nada. Até que, ao
amanhecer, apareceu Araci e, como era mulher, os dois acharam que ela daria
uma ajuda, uma palavra de especialista.
— Deixa comigo — concordou Araca.
E, sem pensar muito, tomando emprestada a melodia de O Orvalho Vem
Caindo, de Noel, atacou, cantarolando, sua sugestão para o jingle do regulador:
— O ovário vem caindo... Grande Araca. Pega teu táxi e vai com Deus. Havia
um certo apreço pelo espírito modernista da piada, do não se levar a sério e
curtir a vida com muito riso, pouco siso... e, por que não?, Cesarina Rizzo. A
pianista, dona da fabulosa Vila Rizzo, em São Conrado, tinha acabado de se
separar do marido, o também pianista Jacques Klein. Era linda. Rica.
Inteligente. Devia usar Pond's, certamente. Antônio Maria logo lhe dedicou
atenção especial através de notinhas na coluna e pedidos para entrevistas,
jantares. Cesarina disse não a todas as propostas de Maria. Mas, na mesma
época, graças à intervenção de um amigo comum, o crítico musical Eurico
Nogueira França, pediu

82
para ser entrevistada por Carlos Heitor Cony, do Correio da Manhã. Pra quê?!
Um dia depois de a matéria de Cony ser publicada, três páginas irretocáveis
com direito a uma foto deslumbrante de Cesarina numa roupa justinha, Maria
atacou, ciumentíssimo. Insinuou em sua coluna em ()Jornal que Cony era gay e,
mais ou menos nesses termos, alertou Cesarina: estava perdendo seu tempo
com um cara que não era de nada. Esculhambou Cony e passou a fazer o mesmo
ao vivo, nas mesas de bar.
Carlos Heitor Cony, como outros amigos, sempre percebeu que um dos truques
do charme de Maria era o de se fazer de vítima — afinal, tratava-se do autor de
"Vim de fracasso em fracasso" —, uma vítima muito maior do que era na
realidade. E, homem de formação religiosa, não se aborreceu muito com a
história. Maria era assim mesmo, gostava de fazer o policiamento do que ia pela
vida dos amigos. Mas o tom, entendeu Cony, era de gozação, galhofa. Estava
pronto para outra — e ela veio mais ou menos na mesma época.
De volta de uma viagem a São Paulo, Maria telefonou para Cony: — Carlos
Heitor, Carlos Heitor, você nunca me enganou — começou, no seu estilo
habitual de custar a entrar numa história para ir valorizando o mistério de cada
um de seus detalhes até a grande revelação final.
Maria tinha conhecido na viagem uma mulher linda, apaixonada pela obra de
Cony. Era em meados de 64, e ela estava lendo, sôfrega de emoção, as páginas
de Matéria de Memória, o mais recente lançamento do corajoso editorialista do
Correio da

83
Manhã, o único capaz de enfrentar o golpe militar com palavras na forma certa
— pedradas. Maria, que não por acaso tinha ótimo relacionamento com a Turma
dos Cafajestes de Copacabana, imediatamente apresentou-se como sendo
ninguém mais do que o próprio, em pessoa, sim, Carlos Heitor Cony, às suas
ordens. A mulher, como é típico das apaixonadas, acreditou, suspirosa,
derretida.
Maria, ao telefone, continuou seu relato da aventura com a fã para o "Carlos
Heitor, Carlos Heitor": — Eu pintei um quadro bastante dramático de mim, ou
melhor, de você, Cony. Disse que era um desgraçado, nunca tive sucesso, as
mulheres me abandonam. Ela ficou bem impressionada.
— Mas Maria...
— Fica tranqüilo, Cony, fica tranqüilo porque em seguida nós fomos pra cama.
Ou melhor, você foi pra cama.
E aí?
— E aí foi que aconteceu o problema — gargalhava Maria. — E aí você broxou,
Cony, você broxou.
Até mesmo Vinicius de Moraes, o amigo mais reverenciado nos textos de jornal,
também andou levando suas farpas quando Maria se meteu no duelo com a
bossa nova e viu o poeta na facção inimiga: "Se Vinicius abandonou o primeiro
time da poesia para jogar no juvenil da música foi porque quis", escreveu em
novembro de 1962
em O Jornal.
Mas a mais deliciosa brincadeira que Vinicius sofreu de Maria tinha como
cúmplice a cantora Elizeth Cardoso. Numa

84
noite, na boate Sacha's, ela desabafou com Maria que não agüentava mais o
assédio sexual — a expressão ainda não havia sido inventada pelas feministas,
mas o ato vem das cavernas bíblicas — de Vinicius.
— Todo dia ele vem com esse negócio de que eu sou a mulher da vida dele, que
quer transar comigo — choramingou a Divina. — Eu não quero nada com ele e
ele não se manca.
Maria imediatamente combinou com Elizeth um plano inusitado.
— Da próxima vez que ele aparecer com essa proposta, você vai topar —
ensinou Maria diante do espanto da aluna. — Você vai dizer: "Está bem,
Vinicius, eu dou pra você. Mas tem que ser agora. E tem mais, é pra foder,
ouviu?, pra foder mesmo."
Naquela mesma noite o Poesia, terno apelido que Maria colocou em Vinicius,
apareceu para ser vítima do amigo, a quem, de volta, como era ingênuo!, só
chamava de "o bom Maria".
O Poesia logo chamou sua Divina para um canto e começou toda a velha
abordagem de novo, dizendo que ela era a mulher da vida dele etc. etc. Elizeth,
por sua vez, colocou rapidamente em prática o plano de Maria. Mostrou-se mais
disposta do que das outras vezes, negaceou um pouco, valorizou outro tanto. E
quando finalizou com a voraz aquiescência do "Vamos agora mesmo, mas é pra
foder, ouviu?, pra foder mesmo", percebeu que Vinicius ficara mais branco do
que nunca. O poeta, antes tão firme, agora balbuciava apavorado:
— Ô Elizeth, mas também não é assim, que é isso. Vamos conversar, vamos
tomar um uisquinho.
85
Nunca mais, graças ao fino conhecimento de Maria da fragilidade masculina,
Elizeth foi importunada por Vinicius.
Amigo não era coisa para se guardar, reverente, no lado esquerdo do peito. Era o
melhor parceiro para se divertir pela noite carioca. Pegar, por exemplo, Rubem
Braga na cobertura de Ipanema, e convidar:
— Vamos à Billy?
Era o nome da dona do rendez-vous da rua Alice, onde uma noite Maria e
outros amigos intelectuais viveram a incrível experiência de encontrar o poeta
pernambucano Ascenço Ferreira no meio das moças da casa declamando o seu
célebre "Entra pra dentro Chiquinha/ Neste caminho que tu andas/ Acabas
prostituta". Enquanto as moças aos seus pés, certamente já ensaiadas por outros
encontros, completavam o poema aos gritos de "Deus te ouça, meu pai/ Deus te
ouça".
Com suas brincadeiras Maria conseguia, de alguma forma, se fazer encantador.
Curtiu com a cara do crítico de cinema José Sanz, a quem achava muito
fantasioso nas conversas sobre a vida real, e por isso, brincando com a
sonoridade do sobrenome, o apelidou Science Fiction.
Pintou o sete com Di Cavalcanti, de quem inventava histórias absurdas sempre
que estava sem assunto para os jornais.
Com Millôr Fernandes levou um troco. Logo no início da TV Tupi, da qual foi
um dos fundadores, em 1950, Antônio Maria levou o humorista de O Cruzeiro
para um programa.
Millôr, que sempre achou Maria um tipo de caráter no mínimo polêmico, não
queria. Depois de muita insistência, topou. Só que ao final da primeira pergunta,
virou-se para Maria:

86
— Só respondo se você pagar o que me deve.
O dinheiro foi conseguido ali no estúdio e o programa pôde prosseguir.
O jornalista Joel Silveira, da brigada nordestina na imprensa carioca de meados
do século passado, ao mesmo tempo que morre de ciúme quando alguém
escreve em livro o perfil de Maria, ainda sente pulsações malignas no intestino
quando se lembra de certa tarde em meados dos anos 50. Maria o convidou para
um passeio até Petrópolis, junto com Rubem Braga, João Ribeiro Dantas,
Newton Freitas e uma moça. Era um programa típico do cronista. Encher seu
Cadillac com os amigos e sair por aí. Quando pararam no bar do Alemão,
porém, Maria se aproveitou de um descuido do grupo e colocou laxativo no copo
de todos. Era uma outra brincadeira típica dos seus amigos da Turma dos
Cafajestes. "O passeio acabou, foi um desarranjo geral", lembra-se Joel Silveira.
"Só alguns dias depois é que o Maria confessou tudo."
Dos amigos Maria dizia que era "tudo gente boa, incapaz de pleitear um
cartório, matar um mosquito ou entrar para a polícia, são todos signatários de
promissórias e letras bancárias". Sobre alguns inimigos, ele escreveu: • Jorge
Guinle é do tipo de homem que não gosta especialmente de mulheres. Gosta de
americanas.
• Reportagem de Paris não assinada diz que as fachadas da cidade não eram
lavadas "a 200 anos". Foi fácil descobrir o autor. Que outro repórter teria
autoridade suficiente para suprimir o H do verbo haver e ficar por isso mesmo?
Só o Ibrahim Sued.

87
• De Roma, Norma Bengell diz, em matéria de Fatos e Fotos, que dá festas às
quais comparecem grandes celebridades do cinema e da literatura européia. Mas
não se deixa fotografar em companhia de ninguém. Consentiu apenas em ser
fotografada ao lado do "iluminador de O Belo Antônio ". No mais, ela sozinha
ao lado do seu bichinho de pelúcia. Muito nacionalista. Não se deixa entrevistar
por nenhuma revista estrangeira. Podem correr as francesas, as italianas, todas.
Não está em nenhuma. Só nas brasileiras.
Maria participava daquele grupo, irresistível, dos que preferem perder um amigo
mas nunca a piada. Era mulato, foi visto com várias namoradas negras, mas em
18
de janeiro de 1955, em sua coluna "Mesa de Pista", em O Globo, não resistiu a
fazer graça com uma foto da escultural vedete colored, como se dizia na época,
Nilza Benes, estrela do show Nega Fulô, de Carlos Machado. Como legenda da
foto de Nilza trajando sumaríssimo biquíni, Maria simplesmente escreveu:
"Bela de corpo e de cara, dela se poderia dizer, isso em branco..." Foi quarenta
anos antes do humor politicamente incorreto do Casseta e Planeta. O comentário
não encontra qualquer correspondência com seus atos pela vida. Era pura
molecagem. Mas acabou sendo analisado, com o rigor imaginável, pelo
intelectual negro Guerreiro Ramos no livro A Patologia Social do Homem
Branco. Será que Maria queria dizer: isso em cima de um lençol branco? Ainda
seria patológico?
Com três bons amigos, Maria entrou em rota de colisão por pelo menos uma
vez. Numa delas chegou a ficar ao lado de Flávio Cavalcanti quando este
espinafrou Risque, de Ary Barroso. Maria, que tinha mágoas do compositor
mineiro por causa de suas críticas a Ninguém me Ama, aproveitou a
oportunidade e tirou uma casquinha em O
Globo:

88
Ninguém gosta mais do Ary do que eu. Reconheço-o como sendo o nosso maior
compositor popular... mas compositor de melodias. Suas letras nem sempre são
bonitas.
No Risque, aquela história da "beleza que se esfuma como a brancura da
espuma"; eu sei que podia ser pior, mas não é de bom gosto.
A mais espetacular de todas as brigas públicas de Maria com seus amigos, pois
beirou o absurdo, foi com Fernando Lobo. Era prática entre os compositores
trocar parceria num sinal de cortesia e amizade. Roberto e Erasmo Carlos fazem
isso. Nem todas as músicas assinadas pela dupla são feitas em conjunto, mas
saem assinadas assim. Maria fez o mesmo pacto com Vinicius de Moraes.
Quando Tu Passas por Mim, por exemplo, assinada pelos dois, é só de Vinicius.
A combinação com Lobo — aquele mesmo que o trouxe de Recife e dividiu as
agruras no edifício Souza — não deu certo. Maria escreveu, sozinho, em 1952,
o sambacanção Ninguém me Ama, que viria a ser seu maior sucesso e, amigão,
o assinou com Lobo. Este, por sua vez, em 1954, fez Preconceito, sozinho, e,
tão amigão quanto, retribuiu a gentileza.
Em 1957, porém, quando Ninguém me Ama já estava claramente destinada à
eternidade dos clássicos da MPB e Preconceito não passava de um sambacanção
legal, mas sem a retumbante glória do outro, Maria teve uma briga com Lobo. E
foi aos jornais dizer que tinha feito Ninguém me Ama sozinho. Lobo pediu que
o amigão lhe creditasse pelo menos as vírgulas do samba. Mas Maria nem isso
quis lhe dar.
O Sr. Fernando Lobo jamais me decepcionou. Que feliz seria eu se todos os seus
atos ignominiosos (contra mim)

89
se restringissem a essas questões musicais. Mas o dito trabalha à base de ação
ampla. Devo explicar, todavia, que os versos onde estão as palavras "de fracasso
em fracasso" não são de Fernando. E é fácil de provar, porque a palavra facasso
"está escrita corretamente, isto é, com dois esses (ss). Caso fosse, em verdade,
uma colaboração sua, eu juro que lhe respeitaria as cedilhas (çç) habituais.
Haroldo Barbosa, parceiro de Maria na Mayrink Veiga, também andou se
metendo na briga ao lado de Lobo e ganhou, pelo jornal, a insinuação de que
chupava seus quadros e personagens humorísticos de publicações estrangeiras.
Em poucas linhas, com humor finíssimo, Maria espalha farpas no grande e
indiscutível homem de rádio. Maria também estava cansado de saber da
grandeza de Haroldo. Mas era hora de briga. E poucos foram tão bons, no soco
ou na pena, como ele. Começa com um jab, detona um upper, até o demolidor
cruzado de direita.
O Sr. Haroldo Barbosa [...] trata-se de um homem ocupadíssimo. Trabalhamos
séculos na mesma sala. Para dar conta das versões brasileiras que escreve (são
tantas) é obrigado a trabalhar com um Dicionário de Rimas ao seu lado. Para dar
conta dos inúmeros programas de rádio e TV,, que tão brilhantemente produz,
não dispõe de um minuto sequer, entre as horas que gasta pesquisando
humorismo. Seu tempo não chega mesmo para ler todas as obras americanas de
humorismo radiofônico. Tem que se limitar às publicações de Coronet e do One
Thousand Jokes.
Era um homem movido a emoção. Foi na exaltação desses sentimentos —
derramando-se espaçoso na curtição dos amigos
90
("Deixa, Caymmi, que me orgulhe e me sinta mais gente pela ventura de contigo
ter andado, de mãos dadas, por caminhos duros ou macios, em horas de riso ou
de tristeza") É ripando os inimigos — que Maria alcançou alguns dos seus
momentos mais expressivos na imprensa. Fez talvez a melhor coluna de Gente
do seu tempo. E antecipou o colunismo social moderno, fazendo um pequeno
jornal dentro do jornal, se interessando por todo tipo de assunto e tratando-os
com um estilo agudamente pessoal.
Zózimo Barroso do Amaral assinaria suas gotas literárias de fina ironia.
Na virada para os anos 60 ele escolheu, em dois grupos, os adversários mais
fortes a enfrentar. Abaixo a bossa nova! E abaixo os políticos municipais! Teve
amigos nos dois grupos, Vinicius no primeiro e Adalgisa Nery no segundo. Mas,
como já vimos, seu charme pessoal, sua conversa irresistível administravam
possíveis ferimentos no orgulho do próximo. A ida para a Última Hora, em
1959, tomando contato com o jornalismo agressivo de Samuel Wainer, fez com
que Maria exercitasse nas páginas da imprensa um estilo mais ferozmente
amargo e crítico, um dos seus encantos nas mesas de bar.
No dia 21 de novembro de 1962, a mesma data em que significativamente
Maria operava as amígdalas, os cantores murmurantes da bossa nova
fracassavam no famoso show do Carnegie Hall, em Nova York. A cirurgia foi
boa, o fracasso, excelente. Era o momento de revidar os ataques que recebia do
grupo, principalmente de Ronaldo Bôscoli, que percorria a cidade debochando
do seu estilo musical, da sua cor, da sua adiposidade suarenta e da sua
performance sexual ("As mulheres largam os maridos para ficar com o Maria
porque com ele têm dois orgasmos", pilheriava o autor de Lobo Bobo: "Quando
ele está por cima e quando ele sai de cima"). Maria detestava Bôscoli também
por motivos extramusicais. Há quem diga que o bossa-nova, que por sinal
adorava colecionar
91
inimigos, havia namorado Nara Leão, irmã de Danuza Leão, mulher de Maria
no início dos anos 60, e não havia sido muito correto na relação. Outros querem
que tudo começou na disputa — eram dois grandes conquistadores — por uma
dessas mulheres que depois dão nome a furacão no Caribe.
Mas, enfim, como estava sendo dito, as vaias do Carnegie Hall em Tom, Sergio
Mendes, Milton Banana, João Gilberto e outros deixaram eufórica a pena do
autor de Ninguém me Ama, a música que a bossa nova mais detestava: [...] Pior
ainda seria se os americanos entendessem as letras da bossa nova. A letra do
Pato. A letra do Barquinho. A letra do Obalalá. Se entendessem, assim que o
cantor acabasse de cantar, encostariam uma ambulância da Justiça sanitária e
levariam o intérprete. Motivo: falta total de expressão humana. Mas isto não
justifica que Tom Jobim, resolvendo bancar a Catherina Valente, cantasse em
inglês. Estava louco. Para resumir, deve dizer-se que a bossa nova não faz o
menor sucesso no Brasil e não fará em lugar nenhum do mundo. A não ser que
se transforme em dança e substitua imediatamente o twist. A bossa nova em seu
intimismo, isto é, em sua chatice, não consegue sequer abalar o prestígio de
Nelson Gonçalves e Orlando Dias.
No "Jornal de Antônio Maria", do dia 28 de novembro de 1962, ele tripudiava
ainda sobre o fato de que o único sucesso da noite do Carnegie Hall foi Luís
Bonfá tocando Manhã de Carnaval, de Maria e do próprio Bonfá. Era um artigo
eufórico. Maria mandava os garotos voltarem para sua insignificância nacional
("as letras da bossa nova são tão ruins quanto as do repertório do Cauby, com a
diferença de que as do Cauby fazem sentido"),

92
dizia que o Itamarati não podia pagar passagem para quem se chamava Chico
Fim de Noite ou Serginho Mendes, e escalava mais um para inimigo: Deixem
que os estrangeiros cantem a bossa nova como quiserem. Nos Estados Unidos,
ninguém jamais reclamou contra os foxes aqui cantados pelo Dick Farney.
Não era um estilo muito comum nas páginas dos suplementos culturais, uma
invenção recente, de 1955, do Jornal do Brasil, com o Caderno B. Rolavam
sangue, um mordaz senso crítico e uma absoluta sem-cerimônia em dizer o que
se pensava.
Suas Excelências, os deputados do antigo estado da Guanabara, também
sentiram o cipó de aroeira no lombo quando Maria resolveu fazer reportagens
sobre a Constituinte em janeiro de 1961. Em seu "Jornal de Antônio Maria",
meia página da Última Hora, cabia tudo. Os cariocas chamavam a reunião dos
deputados de A Gaiola de Ouro.
Hoje seria A Gaiola das Loucas. Maria dispensava a clicheria da esquerda.
Pegava seus adversários pelo ridículo disparate entre a pretensão dos gestos e o
fracasso dos fatos. Eis alguns perfis instantâneos, de texto telegráfico, que viria
a ser uma obsessão do jornalismo dos anos 90, dos deputados que o nosso
repórter viu por dentro da gaiola:
• À minha frente, feliz de si e complacente ante a infelicidade de todos nós,
Alíomar Baleeiro, a estátua luzidia da mediocridade, exulta.
• Como é exaustivo ouvir Armando Fonseca, o Malamando, explicando sempre,
e mais uma vez, que não é ladrão. Sinto vontade de apartear: "Esses são outros
600 mil cruzeiros."

93
• O presidente Átila Nunes, rabiscando um papel, dá a impressão de que está
preparando os discos para o radiobaile de logo mais no Guanabara.
• Afonsinho, o deputado que conta por dois. Como o homem da Emulsão Scott,
carrega um bacalhau nas costas.
• O deputado Gladstone de Melo discursa dizendo que "Para estar aqui repetirei
o milagre antonino da bilocação ". Demorei a decifrar. Ele queria dizer aos
deputados que deveriam estar presentes na mesma hora a duas comissões.
Referia-se a Santo Antônio, que tinha o dom da ubiqüidade.
• O deputado Morelzinho. O olhar. O penteado. Parecia Rodolfo Valentino,
recém-chegando de uma viagem de 33 anos, desde 1929, sem a roupa do Filho
do Sheik.
Maria era apolítico, embora comportamentalmente de esquerda, mas foi um dos
mais sistemáticos críticos do governo de Carlos Lacerda, no então estado da
Guanabara.
Não porque Lacerda, apelidado o Corvo, tivesse sido integralista ou levado
Getúlio ao suicídio. Nada. O que horrorizava Maria era a ignorância do
governador das regras do viver carioca. Achava-o um "complexado, enredeiro,
policial, triste", e brindou, por aproximação, suas correligionárias com o apelido
de "malamadas".
A repressão ao jogo do bicho, movida pela polícia de Lacerda, foi combatida
com artigos críticos, mas sempre bem-humorados. "Com 100 cruzeiros aluga-se
uma esperança de 600 mil", escrevia Maria. "E com 600 mil, um dia farei mais
coisas que toda a família Matarazzo."
Lacerda, no livro Depoimento, diz que Maria implicou com ele por ter sido
"desmoralizado" no episódio Panair. Foi por
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volta de 1956. O compositor e um grupo de intelectuais tinham ido num "avião
da alegria" até Paris e, na volta, teriam condenado uma greve de funcionários da
empresa.
Lacerda, um Mike Tyson da oratória, fez tremendo escarcéu na televisão,
citando principalmente Maria, que saiu chamuscado e lhe teria tomado ódio
mortal. Pode ser. De qualquer maneira, foi uma guerra pouco santa.
Simpatizantes do governador ameaçavam Maria por telefone. E este, numa
edição de janeiro de 1961, também pegava pesado soltando os cachorros em
cima do Corvo:
[Cumprindo ordens de Lacerda] A carrocinha recolhe cachorros na praia e leva
para o incinerador. Crianças sofrem. Enquanto isso Lacerda leva seu
cachorrinho Xanan para o Palácio e ele sai mordendo as pessoas. Nada
estranhável. Xanan saiu ao dono. Ninguém mordeu mais do que Lacerda na
campanha de fundos para sua campanha.
Morde, Xanan. Teu pai já mordeu e ainda vai morder muito.
Maria, Lacerda e Xanan. Só pode ter saído daí a expressão carioquíssima "briga
de cachorro grande".

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*Nota da digitalização: As páginas 96 a 104 contêm fotos

Sambacanção cheio de bossa

Ary Barroso e Antônio Maria travaram um dos mais célebres, engraçados e
reveladores diálogos da história da música popular brasileira. O radialista
esportivo Luís Mendes garante que foi na cantina Sorrento, no Leme, e que
Walter Clark estava na mesa. Outros garantem que foi num hospital, quando
Ary já estava muito doente e Maria o visitava. O compositor mineiro provocou
a conversa com o pernambucano. Eis as falas: — Na sua opinião, Maria, qual é o
meu maior sucesso?
— Sei lá — respondeu o cronista. — São tantos. Acho que deve ser Aquarela do
Brasil.
— Então me faz um favor, Maria — pediu Ary. — Me canta Aquarela do Brasil.
Maria estava desconfiado dos caminhos daquela conversa meio ridícula e sem
sentido, mas, diante da insistência de Ary, limpou a garganta e começou:
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— "Brasil, meu Brasil brasileiro/ Meu mulato inzoneiro/ Vou cantar-te nos meus
versos..."
— Muito bem — cortou Ary, satisfeito com a reverência. — Agora você me
pergunta qual é o seu maior sucesso.
O tom de Ary era tenso, enérgico. Mas isso não chegava a ser uma pista. Ele só
falava assim.
— Está bem, Ary. Qual é o meu maior sucesso?
— Ninguém me Ama, sem dúvida. Agora, me peça para lhe cantar Ninguém me
Ama.
Maria relutou: — Que bobagem, Ary. Deixa isso pra lá. — Não. Faço questão,
me peça. — Está bom — aquiesceu Maria. — Cante Ninguém me Ama.
— Não sei — berrou Ary. — Não sei — repetia apoplético, provocando
gargalhadas nos que ouviam o papo.
A história revelava a irritação de Ary com o grande sucesso musical de Antônio
Maria, um lançamento de 1952, na voz de Nora Ney. Mas ocultava sutilezas.
Ary, defensor das sonoridades, personagens e temas deste país lindo e trigueiro,
achava Ninguém me Ama desprezível por ser, que horror!, um sambolero, um
coqueiro que não dava coco verde-e-amarelo. Estava cansado de pedir em
sucessivos artigos de jornal para Maria, seu grande amigo, assumir que, naquele
caso, não passava de um simples, e menor, compositor daquilo que não ousa
dizer seu nome, o bolero.

106
Sinhô havia fixado o samba na década de 10. Ary tinha inventado o samba
cívico. O mulato era inzoneiro e pronto; fora de nosso torrão, só a merencória
luz da lua.
Depois do movimento tropicalista, o vale-tudo baiano que a partir de 1968
liberou da maldição todos os gêneros musicais, a acusação pode soar como mais
um nonsense do estranho humor de Ary. João Gilberto foi de Farolito e Caetano
Veloso simplesmente arrasou com Cu-cu-rru-cu-cu, Paloma. Há boleros lindos.
Nos anos 50, no entanto, ser acusado de compositor de boleros soava como
xingamento terrível. O bolero era a praga, a saúva do intelecto, o inimigo
público número 1 a ser atacado por quem tinha bom gosto. A soberania cultural
brasileira estava em jogo, gritava Ary.
Maria, claro, estava pagando o pato. A briga não era com ele. A partir da década
de 40, o Brasil foi invadido por uma legião de cantores mexicanos, cubanos,
chilenos e espanholitos como Bienvenido Granda, Lucho Gatica, Pedro Vargas e
Agustín Lara, donos de um repertório no mínimo polêmico, mas que tinha
enorme repercussão nas paradas de sucesso. O povão adorava, e os calouros
pelas décadas seguintes comprovariam que, para não ser chacoalhado pelo pato
nem levar uma buzinada nas fuças, o negócio era soltar uma Granada, de
preferência deixando um dos pulmões no palco.
O que Antônio Maria fazia era sambacanção. Não tinha nada de bolero. Ele não
inventou nada, mas ouviu direitinho a lição dos mestres que vieram antes e
traduziu para os anos 50. Deu ao gênero suas cores definitivas: o preto e o cinza.
O sambacanção já estava no ar desde 1928, quando Luís Peixoto e Henrique
Vogeler, autores do teatro de revista,
107
compuseram Ai, Ioiô, aquele do "eu nasci pra sofrê, fui oiá pra você, meus
oinho fechô", gravado por Araci Cortes. A indústria do disco ainda não tinha
este rótulo maligno, muito menos os compositores trabalhavam com fórmulas
matemáticas para fabricar sucessos. Mas Peixoto e Vogeler bolaram uma receita
diabólica: pitadas do choro, da modinha, as grandes influências brancas da
música brasileira, e um pouquinho de sal para dar certa vivacidade, roçando
civilizadamente o maxixe dos negros.
Ficou assim: o ritmo bate como samba, a melodia leva como canção. Preto no
branco. Não se dança mais valsinha vienense no Itamarati, nem se pula lundu no
terreiro das baianas da praça Onze. Era uma nova pedrinha (Drummond
escreveu Uma Pedra no Meio do Caminho também em 1928) que construía um
Rio mais urbano. Para terminar, espalhe nas letras o eterno tema da desilusão
amorosa, essa pedra fundamental do cancioneiro pátrio.
Estava pronto o sambacanção. Era só levar ao forno e depois comer de olhos
fechados, suspirando por aquele certo alguém que foi embora com outro amor.
Último Desejo, de Noel Rosa, em 1937, era. Orlando Silva, no auge, gravou
alguns: uns mais dolentes, como No Km 2, em 1935; outros mais balançados,
como Coqueiro Velho, em 1942.
Nunca se conseguiu identificar direito onde estava o sambacanção. O crítico Ruy
Castro, de olho no fígado de Maria, deu o flagra: o gênero havia surgido
quando o samba e a canção foram para a cama. Suspeitava-se que o bolero era o
pai da criança.
Não é preciso nem exame de DNA. Em 1952, quando Maria chamou Nora Ney
para cantar e deu parceria ao amigo Fernando Lobo em Ninguém me Ama, o
sambacanção realizava-se como a esperada contrapartida canarinha para
combater o bolero. Acabou ficando com a cara do pai ameaçador, mas com

108
aquele jeitão todo nosso. Havíamos tentado, com sucessos aqui e ali, o
enfrentamento através do fox-canção de Custódio Mesquita, as cordas
sincopadas de Radamés Gnattali no arranjo de Copacabana para Dick Farney e,
mais radical, o estapear amoroso de Lupicínio Rodrigues e Herivelto Martins.
Ninguém me Ama juntava tudo isso. Era sofisticado, sombrio, sofria de amor —
e, atendendo aos ouvintes, prometia um bolero a cada novo acorde.
Ninguém me ama Ninguém me quer Ninguém me chama De meu amor A vida
passa E eu sem ninguém E quem me abraça Não me quer bem Vim pela noite
tão longa De fracasso em fracasso E hoje, descrente de tudo Me resta o
cansaço Cansaço da vida Cansaço de mim Velhice chegando E eu chegando
ao fim.
Apenas 62 músicas de Antônio Maria foram gravadas. Boa parte delas assim,
tristes. De fossa. De dor-de-cotovelo. O amor era uma doença. A vida não valia
a pena.
Fernando Lobo acha que era uma técnica de sedução para conquistar as
mulheres. Mas em algumas delas sabia-se por quem Maria estava realmente
sofrendo. Suas Mãos, por exemplo, de 1958, uma parceria com Pernambuco
gravada por Sylvia Telles, suplicava por uma
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reconciliação com Dorothy Faggin, showgirl de Carlos Machado e sua
namorada na época.
As suas mãos, onde estão Onde está o seu carinho Onde está você Se eu
pudesse buscar Se eu soubesse onde está Seu amor, você Um dia há de chegar
Quando ainda não sei Você vai procurar Onde eu estiver Sem amor, sem você.
Uma aventura complicada da vida de Maria foi em 1960, com a vedete Rose
Rondelli, do elenco da Rádio Mayrink Veiga, TV Rio e das certinhas do Lalau.
Rose tinha um relacionamento com Lalau, o Stanislaw Ponte Preta, alcunha
jornalística de Sérgio Porto, quando foi fisgada na malha de sedução de Maria.
Ela garantiria, décadas depois, que não rolou nada físico. Que, trancados no
quarto do Plaza, conversavam, conversavam. Aconteceu então que uma noite de
Maria e Rose teve a vigília silenciosa, na porta do hotel, o Plaza, na avenida
Princesa Isabel, em Copacabana, do desesperado Sérgio.
O traído não fez escândalo. Esperou. De manhã, Rose deixou o hotel e, quando
viu Sérgio, se afastou apressada. Antônio foi falar com Sérgio. Os dois tinham
mais de 1,80m, fortes, um currículo de brigas. Seria mais um combate do
século. No entanto, preferiram conversar. Tomaram o café-da-manhã. Jantaram
juntos. Continuaram amigos. Os intelectuais de Copacabana formavam uma
casta diferente. Já não se lavava a honra com sangue. Mas com idéias.

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Dias depois, Sérgio dava a resposta e publicava a crônica O Amante de Plantão,
em que, sem identificar, mostrava como Maria, sempre muito bonzinho, se
aproximava de uma mulher com problemas de relacionamento amoroso e
tornava-se útil até levá-la para a cama: Se a mulher brigada telefona pedindo
chiclete, ele (o Amante de Plantão) sai de casa e vai comprar chiclete para a
coitadinha. O Amante de Plantão não relaxa.
Faz companhia, leva ao bar, acompanha ao cinema. Para mostrar suas boas
intenções, vez por outra cita o verdadeiro amante dela como um excelente
sujeito. E larga no ar, muito vagamente, esta sentença: — Vocês precisam fazer
as pazes.
A resposta de Maria, que dessa vez não se apresentava em público como o
perdedor, foi delicada e elegante. Compôs o sambacanção O Amor e a Rosa,
parceria com Pernambuco, e um de seus maiores clássicos. Parecia querer
continuar a conversa com Sérgio Porto: Guarda a rosa Que eu te deí Esquece
os males Que eu te fiz A rosa vale mais Que a tua dor Se tudo passou Se o
amor acabou A rosa deve ficar Num canto qualquer Do teu coração O amor
renascerá.

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Antônio Maria compôs pelo menos nove obras-primas da música popular
brasileira (Ninguém me Ama, As Suas Mãos, O Amor e a Rosa, Menino
Grande, Se Eu Morresse Amanhã, Frevo Número Um do Recife, Valsa de uma
Cidade, Canção da Volta, Manhã de Carnaval). O reconhecimento que a
posteridade tem lhe reservado, no entanto, é bastante modesto. No livro
Sambistas e Chorões, o crítico Lúcio Rangel dá uma geral na MPB e sequer o
cita. Vasco Mariz, em A Canção Brasileira, e Ary Vasconcelos, em Panorama da
Música Brasileira, outras duas referências básicas nesse tipo de literatura,
também desconhecem sua existência. O mercado de discos repete o descaso e o
trata sem qualquer deferência especial. A Funarte lançou um LP, em 1989, com
regravações de seus sucessos e a cantora Marisa Gata Mansa, em 1996, fez um
CD completo em sua homenagem. É tudo.
A verdade é que, na grande briga de grupos da MPB, Maria ficou sozinho. Seus
primeiros trabalhos musicais foram frevos, toadas, xotes e dobrados, mas,
apesar da regravação em 1968 do Frevo Número Um do Recife ("Ai ai saudade/
Saudade tão grande/ Saudade que eu sinto/ Do Clube dos Pás, dos Vassouras...")
pela baiana Maria Bethânia, ninguém jamais se lembra de o colocar no nicho dos
regionalistas. Fez a embolada arretada Nós Era Sete, com Zé Gonzaga. Pouco
ainda.
Se os tradicionalistas, como Ary Barroso, lhe faziam restrições por causa do
sambolero, os moderninhos que vieram depois chegaram a fazer um movimento
inteiro para negar aquela conversa de que "ninguém me ama" e que "se eu
morrer amanhã minha falta ninguém sentirá". Que papo é esse de que viver é
juntar desenganos de amor?
A bossa nova, costurada nas mesmas noites de Copacabana dos sambascanções,
tinha alguns alvos personalizados. Era
112
contra o dó de peito da escola Vicente Celestino, contra o palavreado bas-fond
de Adelinos e Lupicínios, e principalmente contra a fossa, a dor-de-cotovelo, a
desesperança e o baixo-astral de Antônio Maria. Imagine Ronaldo Bôscoli e
Roberto Menescal, garotos bonitões da mais ensolarada Zona Sul, curtindo um
domingo no barquinho cheio de brotos maravilhosos, quando o rádio de pilha
começa a tocar Onde Anda Você, de 1953: Fui como um resto de bebida Que
você jogou fora E na hora Farto de mim, me esqueceu Eu fui mais uma taça
desprezada Quis ser tudo e não fui nada Ninguém é mais triste do que eu.
A bossa nova queria distância desse mundinho noir. Sartre e toda aquela náusea
existencialista dos anos 40, os shows da Juliette Greco no Copacabana Palace, o
rien de rien da Edith Piaf, o clima sombrio do Jean Gabin em Trágico
Amanhecer, toda essa tristeza francesa que tinha feito o coração e a cabeça da
geração de Maria estava desabando no foco da Rolleiflex e da influência do jazz.
A bossa nova achava Maria "derrotista, macambúzio, sorumbático e
meditabundo" demais com aquele papo de ninguém me ama. A palavra de
ordem agora era de Vinicius de Moraes e Tom Jobim: "Eu Sei que Vou te
Amar."
Ronaldo Bôscoli, o mais atrevido de todos, chamava Maria de "o único mulato
careca do Brasil" e, para que o preconceito ficasse, sem ironia, bem claro,
apelidou-o de Galak, o primeiro chocolate branco que acabara de chegar ao
mercado brasileiro, e Eminência Parda. Maria, por sua vez, vibrava em ()Jornal
com o fracasso do show da bossa nova no Carnegie Hall.

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Uma noite, porém, ele foi até o Beco das Garrafas, um corredor de boates na
Duvivier, em Copacabana, com shows exclusivos do novo gênero musical, para
acabar com o lobo-bobo do Bôscoli. Seria um massacre, mas, na petulância da
juventude e talvez porque estivesse no seu território, Bôscoli já se preparava
para o combate quando Aloysio de Oliveira, produtor de discos do movimento e
parceiro de Carmen Miranda no Bando da Lua nos Estados Unidos,
simplesmente colocou o peru para fora e urinou no sapato, tamanho 43, do
menino grande.
Se havia alguém lúcido naquele corredor, deve ter dado uma olhada em torno
procurando as câmeras da Atlântida. Só podia ser a filmagem de alguma
chanchada. Pego de surpresa pelo absurdo total da cena, só restou a Maria cair
na gargalhada e entrar no Little Club abraçado com Bôscoli e Oliveira para um
uísque.
Todas as divergências podiam ter-se encerrado ali. Na verdade, o refinamento de
texto de Maria o aproximava de Carlos Lyra, Tom, Bôscoli e Vinicius de
Moraes, os grandes letristas da frase enxuta, da linguagem cinematográfica, da
poesia coloquial que marcava a bossa nova. Um exemplo disso é Manhã de
Carnaval, de 1958. Feita por Maria em parceria com Luís Bonfá para o filme
Orfeu Negro, de Marcel Camus, ela é a mais internacional composição brasileira
depois de Garota de Ipanema, com mais de 500 regravações e o recorde de 89
mil execuções no ano de 1970. O estilo é absolutamente cool-and-happy:
Manhã, tão bonita manhã Na vida, uma nova canção Cantando só teus olhos
Teu riso, tuas mãos Pois há de haver um dia Em que virás

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Das cordas do meu violão Que só teu amor procurou Vem uma voz Falar dos
beijos perdidos Nos lábios teus Canta o meu coração Alegria voltou Tão feliz
a manhã Deste amor.
A briga mais recente da bossa nova, trinta anos depois do movimento ter
expirado ao som baixo-astral dos "carcarás e opiniões", é para retirar de Antônio
Maria — ou pelo menos diminuir sua importância na parceria — as canções que
compôs com Ismael Neto. Foram dez canções, quase todas de 1954. Ismael,
líder de Os Cariocas, o conjunto que no final dos anos 40 antecipou algumas
idéias da bossa nova, era um genial músico intuitivo e virou lenda ao morrer,
com apenas 31 anos, em 1956.
Quando ele compôs Canção da Volta e Valsa de uma Cidade com Maria, a bossa
continuava tateando nos inferninhos de Copacabana, atrás do acabamento final
que só conseguiria em 1958, na batida do violão de João Gilberto, no disco
Canção do Amor Demais, de Elizeth Cardoso.
Em seu livro Chega de Saudade, Ruy Castro lamenta que aquelas duas músicas
tenham entrado para a história como "músicas de Antônio Maria" quando
"evidentemente eram de Ismael". Pena que Aloysio de Oliveira já não esteja
entre nós para botar a chanchada para fora e resolver rapidamente essa briga.
Maria freqüentava os shows de Johnny Alf na boate Plaza. Aprovou os toques
clue Antônio Carlos Jobim, funcionário da gravadora Continental, deu nos
arranjos dos seus sambascanções

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de 1952 e 1953. Inventou Nora Ney, uma desconhecida de timbre elegante e
extensão vocal curta, tudo fora do padrão musical da época. E, ao mesmo tempo
em que ouvia os artistas da bossa nova em suas saídas noturnas por
Copacabana, sua música foi-se transformando. Mexeu inclusive na escolha dos
temas, deixando a desgraça amorosa de fora em algumas das letras que fez a
partir de 1954. Era um artista sofisticado, atualizado com as últimas notícias.
Todas as letras que fez com Ismael Neto, incluindo as pouco conhecidas O Rio
Amanhecendo e Carioca 1954, antecipam a bossa nova ao incluir a paisagem da
cidade, o olho de câmera cinematográfica e a luz solar na concepção. Depois de
1954 fez pouca fossa, parou de freqüentar com tanta assiduidade o palavrão dos
mexicanos. Já Ary Barroso atacou de Risque, um sambacanção na ante-sala do
bolero que ele tanto execrava.
Em Carioca 1954, acreditem, havia a alegria de viver o encontro de um grande
amor. A gravação é de Dolores Duran, uma descoberta de Maria. Ouçam: Sou
da noite do Rio Da noite macia do Rio Eu sou deste bar que me chama Em
nome de alguém que me ama Sou da noite do Rio Da noite bonita do Rio Dou
graças a Deus se tem lua Pois fico mais tempo na rua A rua que é meu mundo
A rua onde sou rei A rua onde encontrei vontade de viver Essa noite do Rio A
noite tão boa do Rio

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Me toma, me prende em seus braços Me ampara E ajuda meus passos.
Mas era tarde para tanto otimismo. Ninguém me Ama tinha marcado demais os
anos 50 com seu clima pesado, e a turma de Bôscoli, quase toda bacana mas
radical, precisava realçar a escuridão para que se fizesse, em contrapartida, o
pedido de luz solar. Escolheram Maria para vilão, e o brigão, carente, aceitou.
A verdade, no entanto, é que Antônio Maria, com suas letras modernas, enxutas,
já tinha feito o serviço antes. Falou no jeito da bossa antes dos seus donos. E
com Valsa de uma Cidade, de junho de 54, antecipava que lá vinha o sol dos
anos 60.
Vento do mar no meu rosto E o sol a queimar, queimar Calçada cheia de gente a
passar E a me ver passar Rio de Janeiro, gosto de você Gosto de quem gosta
Desse céu, desse mar, dessa gente feliz Bem que eu quis Escrever um poema de
amor E o amor Estava em tudo o que eu vi Em tudo quanto eu amei E no
poema que eu fiz Tinha alguém mais feliz Que eu O meu amor Que não me
quis.

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Mas não houve tempo para desfazer todos esses mal-entendidos, o que
inevitavelmente ia acontecer. Por pelo menos três motivos: 1. Maria estava
amicíssimo de Vinicius de Moraes e logo passaria a elogiar Tom Jobim,
recebendo afagos de volta.
2. Do baião à marchinha carnavalesca, cabia tudo no saco da bossa nova. O que
harmonizava a confusão, saca só a rima, era a batida do João.
3. Os estilos musicais de Maria, pós-Ismael e Bonfá, e a bossa estavam se
aproximando.
Anos mais tarde, em pelo menos um show, João Gilberto, o dono da bossa e o
menos preconceituoso de todos, aquele que gravou BesameMucho e Farolíto,
fez um show cantando São Paulo, uma parceria de Maria com Paulo Soledade.
É uma música até hoje inédita em disco. De início era um jingle de Maria para
um político. Acabou virando o grand finale de uma revista de Carlos Machado.
Depois, reapareceu no canto-sopro de João.
São Paulo, quis fazer Um hino para você Mas sou povo E povo faz samba São
Paulo então Eu quis fazer-me compreender Na linguagem de samba popular
Mas meu samba, São Paulo, Não diz O que eu sinto no coração

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Por esse povo que trabalha E é feliz E fez do meu país Uma grande nação.
Se o lobo-bobo Bôscoli seguisse o conselho de um programa de rádio de sucesso
na época e tivesse perguntado ao João, saberia a resposta: a bossa, meu caro, era
de quem tinha.

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Romance policial na Hilário de Gouveia

"Para Murilo, Não te culpo pela minha morte.
Perdoa-me por duvidar da
nossa felicidade futura. Justamente agora resolvi fugir.
Beijos desta que te amou
desesperadamente, Lina. "
Depois de maltraçar o clássico bilhete do suicida, Corina dos Santos, cinqüenta
anos, abriu o gás e esperou a morte num apartamento da Nossa Senhora de
Copacabana, 836, na madrugada de 8 de dezembro de 1959. As pirâmides de
Brasília estavam sendo erguidas, o samba descontínuo de João Gilberto havia
acabado de sair em 78 rotações e as bancas de jornais recebiam o primeiro
número da revista Senhor, o máximo em ousadia gráfica. O Brasil parecia ter
embarcado para o futuro — menos na coluna "Romance Policial de
Copacabana", que a Última Hora publicou entre 1959 e 1961 com a assinatura
de Antônio Maria. Bandidos folclóricos, o conto do paco, ciganas
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inescrupulosas e o bangue-bangue do amor, eis a pauta. O Sputnik estava no ar;
mas só podia ser uma precipitação dos russos. Em Copacabana ainda morria-se
de amor.
Foi na coluna, especializada nessas desavenças criminosas da pequena aldeia,
que apareceu, em 10 de dezembro, o bilhete anunciando o gesto tresloucado de
Corina, senhora de um desespero amoroso típico de algumas canções de Maria.
Ela foi encontrada ainda com vida às quatro da madrugada pelo comissário
Bruno, do 2° Distrito Policial da Hilário de Gouveia, e levada para o posto
médico da praça do Lido. Sobreviveu. Murilo, o amante, não foi localizado pela
reportagem do "Romance Policial".
Sequer deu as caras no Lido.
Trabalhar como repórter de polícia não chegava a ser uma excentricidade na
vida de Antônio Maria. Fazia sentido e, antes de mais nada, ele tinha às vezes
um bagrinho que o ajudava a recolher algumas ocorrências. Era um bom
ambiente para descobrir histórias, a bandidagem ainda fazia um estilo romântico,
juntava mais uns cobres aos seus sempre necessitados bolsos — e, cá entre nós,
sua ronda pela delegacia concentrava-se principalmente na madrugada, no final
das rondas pelas boates. Nosso repórter dormia tarde, nenhum grande esforço
extra. Muitas vezes ficava plantado no barzinho em frente, o Pavão Azul, e de lá,
copo de uísque na mão, controlava o movimento. Os policiais atravessavam a
rua e lhe passavam as últimas notícias. O escritor João Antônio viu Maria
escrevendo crônicas ali mesmo na mesa do Pavão Azul.
A se acreditar nos relatos de Maria — e por mais existencialismo francês que ele
colocasse em seus gatunos de segunda, prostitutas e casais beligerantes, era tudo
verdade —, a cena policial de Copacabana parecia quase tão tranqüila quanto um
pôr
122
do sol de Bora-Bora. Em outubro de 1959, o 12º Distrito registrou 47 queixas
(41 foram solucionadas), cinco flagrantes, 21 inquéritos e duas investigações
sociais.
O crime mais em moda era o "descuido". Prenderam-se 32 descuidistas. O povo
queixou-se da perda de Cr$ 4.464.200,00, dos quais Cr$ 4.433.890,00 foram
recuperados.
Foram presas 360 pessoas. Ao final desse balanço, Maria classificou os dados de
"honrados" e cumprimentou a eficiência do delegado Hermes Machado e do
detetive Aloísio Cesar.
O nosso repórter, estava na cara, tinha bons relacionamentos na delegacia e
queria mantê-los. Um ano antes, em janeiro de 1958, olhando o mesmo cenário,
Rubem Braga havia descrito o apocalipse em Ai de ti, Copacabana: "Já movi o
mar de uma parte e de outra, e suas ondas tomaram o Leme e o Arpoador, e tu
não viste este sinal", trombeteava como o profeta do fim dos tempos. "Estás
perdida e cega no meio de tuas iniqüidades e de tua malícia." O horror, o horror.
Não era por falta de aviso que as pessoas continuavam se aventurando pelas
ruas.
O bairro tinha começado sua crônica policial na década de 50, com o folclórico
delegado Deraldo Padilha submetendo os malandros, que identificava pelo uso
da calça muito apertada, a um ritual cômico. Padilha jogava um limão dentro da
calça do suspeito de malandragem. Se ele ficasse preso na boca, recolhia-se o
indigitado aos
costumes. Moreira da Silva chegou a fazer um samba de breque sobre a
pândega. Mas agora, no final dos 50, como anunciava Rubem Braga, a
inocência estava perdida.
Na madrugada de 14 de julho de 1958, os moradores da avenida Atlântica
foram acordados para o pesadelo do corpo da jovem Aída Curi se estatelando na
calçada do edifício Rio Nobre, no Posto 6. Ela havia sido currada e jogada do
terraço pelos transviados Ronaldo Souza e Cassio Murilo.

123
Copacabana já não enganava ninguém. Na madrugada de 11 de maio de 1954, o
jornalista Nestor Moreira, também da Última Hora, depois de ser preso, bêbado,
por brigar com um motorista na frente da boate Vogue, foi espancado até a
morte, no mesmo distrito da Hilário de Gouveia, pelo guarda civil Paulo Ribeiro
Peixoto, o Coice de Mula. Mas no "Romance Policial" o clima era outro.
Maria estava interessado na riqueza humana das pequenas histórias do
cotidiano. Já em 1954 ele falava em suas crônicas dos traficantes de maconha
pelas ruas, mas agora, no final da década, queria falar também do assaltante
louro e charmoso que, de lâmina Gilette em punho, só atacava nos elevadores.
Da obsessão que os suicidas tinham pelo domingo. Do cidadão Francisco
Kruschewsky de Toledo que, bêbado, agrediu uma dupla de Cosme e Damião
mais o guarda civil 1.382, em plena rua Santa Clara.
Um de seus grandes momentos lítero-policialescos foi quando Pedro das Flores,
um sujeito que interrompeu o namoro de várias gerações tentando vender rosas
aos casais nos bares da avenida Atlântica, entrou na delegacia e rogou que lhe
localizassem a mulher. Havia mandado a dona embora, mas estava arrependido.
Queria sua flor de volta. Era uma ocorrência na medida para a pena de Maria,
que, na coluna de 6 de novembro de 1959, comoveu a cidade com o drama de
Pedro — mas aproveitou para lhe dar uma lição de sabedoria amorosa:
Mulher a gente só manda embora depois de procurá-la bem em todos os cantos
do coração (em todos os cantos da carne) e não encontrar. Mesmo assim a gente
não manda embora. A gente é que vai. E quem vai aprende o caminho de tornar.

124
Coitado do Pedro. Além de levar o sermão existencialista, teve a humilhação
pública de ver a tal senhora, depois de encontrada, se negar peremptoriamente a
voltar aos seus braços. Mais: ela mostrou ao repórter Maria uma inusitada "carta
liberatória" do florista. Preferiu ficar onde estava, livre. Ao fundo, sem muito
esforço, dá para ouvir os anjos da desilusão embalando Pedro com solos de
Ninguém me Ama ao violino.
O "Romance Policial de Copacabana" era, ao lado de "A Vida como Ela É", de
Nelson Rodrigues, das reportagens de Amado Ribeiro, das certinhas de
Stanislaw Ponte Preta e das dez mais elegantes de Jacinto de Thormes, uma das
atrações que garantiam a boa vendagem da Última Hora. Um reconhecimento
merecido. No "Romance" ninguém morria em decúbito dorsal. A pena afiada
com estilo era a arma do crime. Truman Capote ainda nem sonhava com o perfil
dos assassinos daquela família caipira em A Sangue Frio. No Rio, o texto mais
ilustre que freqüentava os bastidores do crime era o das ocorrências lavradas
pelo comissário Rubem Fonseca, mas por enquanto nem mesmo ele tinha
prestado atenção nisso.
Maria percebeu — antes de Gay Talese e dos bambas do new jornalism, antes
de Scorsese e da glamourização cinematográfica da violência — que podia
conseguir no submundo do crime personagens notáveis como Hildebrando
Neves, um mendigo que vivia na praça do Lido, sempre com um paletó muito
bem cortado para suas posses, e que um dia foi parar na delegacia porque um
"rato-de-praia", o Gogó, lhe veio com insinuações sobre a origem da peça. O
mendigo, que almoçava carne, arroz e cenouras no banco da praça, cortou a cara
do outro com o garfo. Foi preso. E no dia 23 de fevereiro de 1961, depois de
valorizar todos os detalhes da história — "Este paletó você manda fazer",

125
desafiava Gogó no discurso que antecedeu o sangue, "você não é mendigo; é
rico e safado, seu paletó é fantasia" —, Maria concluiu: Nesta história policial,
sem grande importância, o repórter comprova quão grave é para o mendigo o
mistério do seu paletó comprido. Judie-se de um mendigo. Mas não se lhe diga
uma só palavra sobre o paletó comprido — seu traje de cena. Cada homem, na
vida, tem o direito de ser ou fingir o que bem quiser. É um direito líquido e
incriticável de viver.
Os pés-de-chinelo da cidade eram perfilados por um dos seus mais sensíveis
cidadãos. Drama, comédia, o inferno de Dante visto através das celas da Hilário
de Gouveia.
Às vezes, a coluna era ilustrada com fotos do próprio Maria em ação — embora
sempre sentado, é claro — na delegacia. Na edição de 26 de novembro de 1959,
por exemplo, lá estava ele, com seu paletó mal-ajambrado, cigarro no dedo,
olho na lente, ao lado do assustadíssimo paraibano de Campina Grande, Josias
Gomes de Lima. Josias acabara de confessar que sim, era ele o "Homem
Mosca", aquele que escalou as paredes do anexo do Copacabana Palace e
entrou, pela janela do último andar, para roubar o apartamento do diplomata
Eduardo Ryan em Cr$ 200 mil. Era uma mixaria, mas a ação, espetacular. E
Maria não fez por menos em aclamar o paraibano como o mais audacioso ladrão
da história do bairro.
Durante dias o "Romance" assombrou os leitores antevendo para logo mais à
noite aquela lagartixa pendurada nas varandas. Lembrou que poderia ser a volta
de Faquir, um especialista nesse tipo de ataque nos anos 40. Até que, numa
ronda burocrática, prendeu-se por acaso Josias, e foi assim que ele acabou ao
lado de
126
Maria e de frente para as lentes da Última Hora, 35 anos antes do AR-15. O
policial responsável pela glória foi o comissário Nilo Raposo, "com sua
carranca à la Bogart, sempre fumando longos cigarros e lendo velhos livros de
ocorrências".
Evidentemente, a proximidade diária com os policiais tornava Maria menos
crítico e ele, sempre pronto a disparar até contra algum amigo muito querido,
encerra 1959
parabenizando o delegado Hermes Machado por ter acabado com o trottoir na
avenida Atlântica, uma façanha que, se algum dia realizada, entronizará o busto
do delegado responsável na galeria de Einsteins e Chaplins deste século. Ter
boas relações com policiais da área rendia notícias e, nunca se sabe, proteção.
Maria, em pessoa, era um tremendo personagem para seus romances. Por pelo
menos três motivos: 1) Tinha alguns inimigos. 2) Gostava de uma briga. 3)
Todo mundo na noite de Copa também gostava.
Pode não explicar, mas naqueles anos o Rio vivia o frisson dos programas de
luta livre na TV Continental, e os duelos entre Waldemar Santana e Carlson
Gracie levavam multidões ao Maracanãzinho. Nas ruas, a juventude transviada
traduzia o rock recém-lançado em brigas de canivete. A Turma dos Cafajestes
quebrava uma boate por semana. E Copacabana começava a se deteriorar
fechando a década com insuportáveis 183.846 pessoas. Rio babilônico, 45 graus.
No olho dessa confusão, o Menino Grande brigava na mão com certa facilidade
e, reconhecem todos que o viram em ação, boa técnica. Uma de suas brigas
célebres foi com os irmãos de Baby Vignolli, gentil senhorinha da sociedade
que ele estava namorando, para desespero dos tais rapazes. Mas há outras.

127
Na noite de 5 de dezembro de 1959, vamos encontrar nosso herói mais uma vez
num ringue, numa cena que entrou para a história dos valentes do bairro e só
não acabou no "Romance Policial" porque ficaria esquisito.
Maria estava entrando na boate Sacha's, na rua Gustavo Sampaio, no Leme,
quando recebeu a saudação irônica de Baby Pignatari: — Já estão deixando
crioulo entrar em boate? — provocou Pignatari, dando imediatamente uma
bofetada no jornalista.
Baby Pignatari, industrial, playboy e sócio dos Cafajestes, estava acompanhado
de dois homens, um deles o empresário Carlos Peixoto, conhecido também
como o Carlinhos Boboca. O motivo da cafajestagem era uma nota de Maria
comentando o mau comportamento de Baby na noite. Nada que dezenas de
pessoas não soubessem. Entre outras façanhas lamentáveis, Baby havia
quebrado, na chique Vogue, um dente da cantora Julie Joy, porque esta tentara
convencer a irmã, namorada do playboy, a se retirar da boate.
— Mulher que está comigo só sai quando eu autorizar — gritou Baby, antes de
investir sobre a artista da Rádio Nacional.
Bem, mas isto aconteceu lá por 1955 e era só uma tentativa de dar uma perfilada
rápida no nosso vilão. Agora que Baby Pignatari está apresentado, lembre-se
que ele e seus amigos estão frente a frente com o peso pesado Antônio Maria,
agora já na calçada do elegante Sacha's. São três horas da manhã. Mulheres dão
gritinhos, apavoradas com a iminência do sangue rolando. Segundos fora. Já
está no segundo round mais um combate do século.

128

— Vamos quebrar tuas mãos para você não escrever mais bobagens — gritava
Pignatari.
— Pode quebrar, eu não escrevo com as mãos — respondeu Maria, sinalizando
para a cabeça, e imediatamente se pondo em guarda. Pode ser bom demais para
ser verdade, mas é o diálogo que a história da noite carioca guardou para a
posteridade.
Socos, pontapés, o de sempre. Ao final da contenda, Pignatari e amigos haviam
vencido, é claro. Mas a performance de Maria tinha sido heróica. Ele ainda teve
o gostinho de, dois dias depois, relatar a pancadaria na primeira página da
Última Hora: "Restame a satisfação de saber que tanto o Sr. Francisco Pignatari
quanto o Sr. Carlos Peixoto e Ludovico de tal sentiram na sua carne o preço de
uma dura resistência que eles certamente não esperavam encontrar.
Julie Joy, a blondie girl da Nacional, estava vingada.
Maria largou o "Romance" em fevereiro de 1961. Alegou que "um repórter de
polícia não podia ter outro pensamento, outra mulher que não fosse a decifração
do crime — e eu tenho muitas ocupações". Precisava compor, escrever para a
TV Tupi, a Mayrink Veiga, fazer jingles, o "Jornal do Antônio Maria"... Saiu na
hora certa.
Ronaldo Bôscoli e Nara Leão davam trabalho ao anjo da guarda e namoravam,
em paz, de madrugada, em plena areia da praia. Mas já estava ficando difícil
encontrar romance no noticiário policial. O Esquadrão da Morte entrava em
cena e no ano seguinte ia matar Mineirinho, um bandido romântico, com 13 tiros
de metralhadora.
Em 1964, o mesmo esquadrão de policiais mataria, com cem tiros, Cara de
Cavalo, bandido que explorava mulheres e pontos de bicho.

129
Esse negócio de poesia estava ficando meio ridículo e perigoso. Os traficantes já
cercavam Copacabana por todos os lados. Alguns policiais do 2° Distrito, que
saíam nas viaturas com Maria para as rondas, eram traficantes. Jesuíno Abraão
Jorge, presença nos bastidores do pôquer entre amigos, também era. Outros
tempos. Também era aquele homem que Dorival Caymmi, morador na
vizinhança, na rua Felipe de Oliveira, viu uma tarde com Maria na porta do
restaurante Grego, na Barata Ribeiro.
Estava na hora dos loucos, dos punguistas, ciganos, cafajestes, suicidas e do
próprio cronista darem vez aos profissionais do crime, como o detetive Mariel
Mariscott, meio policial, meio bandido, um dos símbolos do Esquadrão da
Morte. Era hora de se despedir de gente como a aposentada Valda Catarina dos
Santos Pereira. Atormentada pelo noticiário do Caso Sacopã e totalmente pinel,
ela tentou invadir o 2° Distrito aos gritos de "Não foi o tenente Bandeira, seu
comissário. Fui eu, ligue para Juscelino, fui eu que matei Afrânio". Foi num dos
últimos "Romances" de Antônio Maria: Pobre Valda. Com os olhos
esbugalhados, as vestes em trapos e uma baba branca a escorrer-lhe na boca, foi
recolhida à ambulância, que a transportou ao Posto do Lido.

130

Um cronista na mesa de pista

Preocupada, a leitora Mariza Freitas, do Rio de Janeiro, escreve, em 3 de
outubro de 1963, querendo saber do nosso experimentado doutor em assuntos
sentimentais o que fazer depois que descobriu o terrível problema do namorado:
Sr. Antônio Maria, meu namorado sua muito debaixo dos braços.
O velho homem de imprensa com sua sagaz sabedoria aplaca o sofrimento da
leitora e a convoca para enfrentar os problemas da vida por um ângulo mais
positivo: Só debaixo dos braços, Mariza? Então, não há motivo para desgostos.
Divirta-se na área enxuta, que é a maior parte do seu namorado.
Havia muitas dúvidas e inquietações naqueles tempos. Agora é a vez da leitora
Luciana Ruiz escrever, ainda do estado da Guanabara, em novembro de 1961,
querendo saber do experimentado homem da noite o que rola naquela terra de
ninguém:
131
Sr. Antônio Maria, é verdade que os casais se aproveitam da escuridão da boate?
Com humor afiado, o nosso consultor para assuntos notívagos finge que
desentende a parte mas concorda com o todo: o mundo está mesmo cheio de
sem-vergonhas, e, sim, os casais se aproveitam da escuridão da boate:
Muito. E levam os cinzeiros, as xícaras, os talheres e os guardanapos.
Foi uma das mais deliciosas invenções de Antônio Maria na sua atividade nos
jornais. Na Última Hora, entre 1959 e 1961, no Diário da Noite, entre 1961 e
1962, e em O jornal, até outubro de 1964, ele respondeu às cartas dos leitores.
Muitas eram forjadas pelo próprio Maria, claro. Mas a idéia surgiu quando,
depois de lerem crônicas carregadas de situações sentimentais, alusões a
adultérios e outras complicações da vida romântica, alguns leitores, no
desespero desses momentos, pegaram da pena e escreveram seriamente para o
jornalista que tanto parecia entender do assunto. Queriam uma luz na escuridão
da dúvida. Separar hoje o que chegou pelo correio e o que foi inventado na
redação é impossível. E desnecessário. Importa saborear o humor que Maria
conseguiu com aqueles textos curtinhos.
Um certo Reinaldo, sem sobrenome, teria escrito em 6 de dezembro de 1961
pedindo que o nosso catedrático em corpo feminino, amante de tão lindas
mulheres, lhe explicasse como contornar o terrível problema que de súbito se
lhe apresentara com a amada: Sr. Antônio Maria, estou noivo há dois anos e só
agora descobri que Berenice, minha noiva, só tem três dedos na mão esquerda.

132
A resposta tinha a lógica dos grandes mestres do amor, mas não se sabe se
acalmou o atormentado Reinaldo: Mas se ela tiver sete na mão direita dá no
mesmo, Reinaldo. O negócio é ter dez dedos na hora de mostrar. Verifique e
volte a escrever-me.
As colunas de Antônio Maria foram um dos mais agradáveis exercícios de
leitura que os jornais do Rio já entregaram aos seus leitores. Tinham humor,
vivacidade, clareza e davam a impressão, pela facilidade de leitura, que também
tinham saído de um jato, espontâneas. Revelavam uma sabedoria que,
permeada sob um texto de estilo leve e coloquial, as colocam entre as dos
grandes clássicos da geração de cronistas da cidade. Maria escrevia crônicas, o
mais carioca de todos os gêneros literários. Um texto de formato prático, rápido,
leve de espírito, como se usasse bermuda-e-camiseta no meio dos pretensiosos
fardões acadêmicos. O assunto era sempre a geografia, lendas e costumes do
povo carioca. Todos os seus craques, no entanto, foram "estrangeiros".
Rubem Braga, capixaba, foi o mestre de todos, roçando a poesia na observação
do nada: um homem que nadava ao longe, as mulheres no verão, um cinzeiro na
aula de inglês.
Paulo Mendes Campos, mineiro, misturava LSD e uísque para se avaliar
melhor, mas sabia o que era ser brotinho de cara lambida em crônicas de
sensibilidade lírica.
Fernando Sabino, mineiro, olhava mais a vida real, viagens pelo mundo, o
escracho do homem nu no corredor do edifício.
José Carlos de Oliveira, capixaba, idealizou os jovens, os bandidos, as
minissaias e tudo mais que a contracultura dos anos

133
60 exibisse na frente da varanda do bar Antonio's, no Leblon, seu escritório.
Antônio Maria, pernambucano, se encharcou do que ia pelas ruas,
principalmente as de Copacabana, seu grande cenário, e tirou dali material entre
o sentimental e o reportarioso para retratos argutos da alma carioca, como este
que publicou na Última Hora em 6 de janeiro de 1961: [...] Minha admiração
pelos homens que passam os dias inteiros na praia. São homens honrados. Não
fazem negócios escusos, não emprestam dinheiro a 4% nem ganham comissões
nas empreitadas do governo. Ficam na praia, que é de graça, expostos às graças
do sol, adquirindo a pigmentação necessária a essa vida úmida dos trópicos.
Gosto mais dessa gente, dessa humanidade que não ajuda mas também não
atrapalha. Gosto mais desses que dos outros, os que acordam às 6 e partem, às 7,
magros e pálidos, para a chamada zona bancária. Aquele escritor, cujo nome é o
mesmo do cachorro de Jacinto de Thormes, dizia em Júlio Cesar que não gosta
de homens magros.
Pensam muito. Chegam a muitas conclusões. Gosta (o escritor, não o cachorro)
dos homens luzidios. E são estes, os da praia de Copacabana, que passam óleo
nas costas, nos braços, no rosto e nos maus pensamentos.
A influência de Rubem Braga é nítida, afinal o "urso de Ipanema", como era
conhecido pela convivência pouco efusiva com o próximo, deu o contorno deste
século a um gênero que, em João do Rio ou Benjamin Costallat, ainda estava
cheio de anáguas passeando pela rua do Ouvidor. Mas Maria, depois das boas
escolas no Recife, onde não chegou a fazer universidade, não era exatamente
um devorador de livros — preferiu devorar a
134
vida. Adorava Antoine de Saint-Exupéry ("Eu gostaria de ter escrito O Pequeno
Príncipe'). Citava Fernando Pessoa ("minha alma é uma lembrança que há em
mim") como o que mais lhe interessava na vida em junho de 1957. Tietou,
molhado de emoção como sempre, o seco Carlos Drummond de Andrade na
calçada da praia de Copacabana em junho de 1963. Comemorou o centenário de
Flores do Mal de Baudelaire em 1957. Conhecia bem a literatura brasileira e
tinha Jorge Amado em conta de gênio da raça.
Mas há quem prefira reconhecer, como Carlos Heitor Cony, a herança regional
do pernambucano Manuel Bandeira por trás das mulheres, das noites e das
angústias de Maria. Faz sentido. Afinal, responda rápido, quem é Manuel e
quem é Antônio nos trechos abaixo: 1. "Estou sozinho, pensando humildemente
nas mulheres que amei.
2. "Mas para que tanto sofrimento se lá fora há o lento deslizar da noite."
3. "Cá estou, nesta janela que não me deixa mentir, em frente à noite de que sou
uma espécie de filho de criação, a repassar lembranças de uma moça que de
mim, se muito recordar, recordará meu nome."
4. "Entra uma moça clara, da idade das outras, e senta à mesa em frente à
minha. Jovem. Linda. E eu, não."
As duas primeiras — e você só acertou porque o ritmo é evidentemente de
poesia — são de Manuel, as seguintes, do cronista Antônio. Mas não se acanhe
quem indicou o contrário. Os dois eram nostálgicos de uma felicidade jamais
vivenciada e
135
tinham chegado até aqui de fracasso em fracasso, por uma vida inteira que
poderia ter sido e não foi. Maria, pessoalmente de uma alegria explosiva, ao
escrever às vezes embicava, como nos sambascanções, para declarar perdas e
suspirar decepções. O fascínio pessoal era pleno, solar, mas na hora da produção
procurava inspiração na face oposta da lua. Escreveu assim alguns dos seus
melhores momentos, versões em prosa da dor-de-cotovelo musical.
O ponto de partida era sempre a mulher. Às vezes apocalíptica: Toda mulher
após 30 dias de felicidade sente fome e sede de desgraça. Só não irá embora se
não tiver condução. As mulheres sadias precisam de desditas muito mais que de
espelhos.
Uma mulher quase sempre acionando paroxismos:
Não há sensação mais curiosa que a de encontrar a exnamorada pela primeira
vez em companhia de seu atual namorado. Por mais que agente lhe olhe o rosto,
não lhe vê as feições. É uma mulher sem olhos, sem nariz e sem boca, que a
gente só reconhece pela falta de ar que nos causa a sua presença.
Em algumas dessas crônicas, os céus parecem se misturar à terra e, viva Manuel
Bandeira!, o espírito de Deus volta a se mover sobre a face das águas. O milagre
da Criação é evidente. Mas, como no sambacanção, existe um preconceito
muito grande. A crônica, apesar de Braga e Maria, continua relegada à cova
mais rasa da literatura, o primo pobre deste nosso grande balançamas-não-cai
intelectual. Crônica, querem os fardões, é coisa com a validade estampada no
cabeçalho do jornal: um dia apenas e, depois, o lixo do esquecimento. Paulo
Francis, por exemplo, fez
136
o elogio do amigo, mas confessou que preferia o Maria ao vivo, o conversador,
o causer.
"Seu estilo consistia em revelar o absurdo, a ironia de situações e pessoas que
apanhava, formalmente, ao natural", escreveu Francis no prefácio do livro O
Jornal de Antônio Maria, coletânea feita por Ivan Lessa e publicada em 1968
pela editora Saga. "Um pequeno twist na organização das palavras, aqui e ali,
produzia o efeito, sem que a aparência de simplicidade se alterasse. Como
qualquer profissional sabe, isso é muito difícil de fazer. E em pessoa, sem as
inibições da palavra escrita, das restrições da nossa provinciana imprensa, ele se
abria mais. Embora no seu gênero de crônica ele me pareça inimitável."
Quem quiser dançar esse twist saboroso tem algumas opções. As mais
empoeiradas delas são esperar até 50 minutos para que, na Biblioteca Nacional,
alguém lhe ponha na mão uma coleção de jornais antigos e esfarelados ou, pior,
microfilmados. Nos sebos, além do livro prefaciado por Paulo Francis, há
Pernoite, coletânea publicada em 1989 pela Funarte e a editora Martins Fontes.
Com Vocês Antônio Maria, coletânea de 1994 publicada pela Paz e Terra, repete
grande parte das crônicas de "O
Jornal de Antônio Maria". O charme deste último, no entanto, é trazer os
desenhos, as caricaturas (bem divertidas) que Maria, multimídia total, fazia de si
próprio e dos amigos para ilustrar alguns textos dos anos 60. Todos esses livros
estão esgotados. Recentemente chegaram às livrarias novas fornadas de suas
crônicas. Duas edições da Civilização Brasileira, Benditas Sejam as Moças, de
2003, e Seja Feliz e Faça os Outros Felizes, de 2005, trazem quase uma centena
de textos inéditos, recolhidos em coleções da Última Hora e O Jornal.
Ainda há muito AM para ser lançado até que se dê uma geral completa em sua
obra monumental. Faltam os programas

137
de rádio e televisão, suas deliciosas notas curtas sobre o zumzum-zum da
badalação do Rio noturno e o que ia pelo cenário artístico, como esta
observação na "Mesa de Pista" de 25 de abril de 1957, em O Globo:
Achamos péssima a maneira de apresentar Caymmi na TV O anúncio é um
charuto e o anunciador passa o tempo inteiro fazendo comparações entre
Caymmi e o charuto.
Está bem: os dois são baianos. Porém, no mais, Caymmi é muito melhor que o
charuto. E não parece nada com charuto.
Seja Feliz e Faça os Outros Felizes repara uma lacuna nos elogios ao talento de
Maria e o reconhece como um dos autores fundamentais que implantaram o
humorismo moderno no país. Às vezes cáustico, outras vezes com a leveza
lírica de sua produção sentimental, o Maria humorista tinha um estilo que
poderia ser comparado ao de Sérgio Porto, por um lado, e aos modernos
comediantes que centram suas atenções na tragicomédia das relações amorosas.
Em "A gata de Cabo Frio", ele vai narrando o cotidiano de uma nova figura em
sua casa, uma gata que os filhos encontraram abandonada em Cabo Frio e
recolheram. No parágrafo final, Maria faz o twist de que falava Francis e, num
flash rápido, traça o perfil agudo de certas mulheres: Lá está ela olhando para
mim. Estou certo de que ela sabe que estou escrevendo sobre ela. Essa gata
entende tudo. Um dia ela vai falar. Mas aí é que está meu medo.
Receio que ela, um dia, me pergunte, como algumas mulheres menos
informadas: "Você gosta da sua gatinha?"
Com as centenas de crônicas de Maria ainda inéditas em livro seria possível
fazer pelo menos uma edição com seus textos
138
sobre o Rio e outra recolhendo os perfis de personalidades de sua época. Ele
traçou retratos arrasadores dos deputados na Assembléia Legislativa, peças que
jamais saíram das páginas da Última Hora. A palavra malamada ainda não foi
impressa em qualquer livro do seu criador. Não se formulou também uma
coleção de frases que, pinçadas das crônicas, acabaram ganhando vida própria e
andam sozinhas pela boca do povo ou em citações de personalidades. Muitos
nem sabem mais que algumas dessas frases e aforismos, de tão usados, têm
autoria particular:
• É muito melhor estar mal acompanhado do que só. A única vantagem da
solidão é poder entrar no banheiro e deixar a porta aberta. • Gente má dorme
em posição de sentido. • O homem mau ri errado. • A única vantagem de viver
na companhia de uma mulher é a mulher. Aponte outra. • Só há uma Semana
Santa; nas outras, vocês matem quem quiser. • Não sei por onde vou. Não sei
para onde vou. Sei que não vou por aí. • Éperigoso ter muitas mulheres. Quem
tem seis, por exemplo, tem cinco oportunidades de ser passado para trás. •
Dificilmente uma mulher engana o marido às seis da manhã. O homem só deve
inquietar-se quando a sua mulher começa a ir à missa das três da tarde. •
Angústia é o resultado da perda de intimidade de um homem consigo mesmo. •
A mulher pode não ter muita vergonha nos outros lugares, mas na cara tem. • A
mulher é o meu espetáculo predileto.

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A atriz Yolanda Cardoso, que teve um importante relacionamento amoroso com
Maria durante boa parte dos anos 50, diz que ele tinha várias técnicas de
seduzir, dependendo do tipo de mulher que se lhe apresentava: discursava contra
Carlos Lacerda, se a vítima era politizada; conversava sobre moda, se era uma
deslumbrada; contava fofocas, se era uma girl de Carlos Machado. E, a
propósito, Yolanda acha que foi neste último segmento que Maria abateu a
maior parte das cinqüenta mulheres que calcula terem passado pela vida do
cronista naqueles anos.
A técnica de Maria para seduzir seus leitores nos jornais era idêntica: tinha
conversa para todos, falava sobre qualquer assunto e quase sempre abordava-os
pelo irresistível filtro do humor. Cada dia, um papo novo. Podia tripudiar da
participação de Jane Mansfield, "uma moça muito percorrida", no carnaval de
1959 ("em um baile romperam-se as comportas do seu busto e foi um
desassossego, quase uma obra de engenharia para refazer a barragem e evitar o
derrame"), ou achar que o melhor assunto era meter o pau na proibição de
Lacerda ao frescobol ("uma bolada nunca fez mal a ninguém, o corpo humano,
pensando bem, precisa vez por outra de uma bolada"). Rubem Braga podia ser
mais refinado, mas o vôo da borboleta amarela era muito lento para a tensão de
um leitor de jornal diário.
No "Jornal de Antônio Maria" a claquete estava batendo sempre: ação! Surgia
Araci de Almeida transformada em deusa. Ação! Um conto sobre o gerente do
banco em dez linhas. Ação! Um artigo sobre a irresponsabilidade dos motoristas
de lotação. No texto a seguir, como todos os outros exemplos anteriores, inédito
nas coletâneas de Maria, ele joga também luz e câmera no ser humano
comovente, gente humilde barrada na Vogue:

140
Aqui está o ser humano em seus 10 momentos mais comoventes (comoventes
sobre o triste): 1. Criança fantasiada, principalmente na idade dos seis meses a
três anos.
2. Moça de carro alegórico jogando beijos. 3. Homem velho contando que deu
soco em alguém e, fazendo o gesto (aí é que comove), mostrando como foi o
soco. 4.
Preto de óculos Ray-ban (sábados e domingos). 5. Violinista de casa de chá
tocando Toseil. 6 Retrato de primeira comunhão. 7. Criança tocando acordeão
na televisão.
8. Fotografia de índio (posada), perto de avião. 9. Goleiro de time de morro com
uma joelheira só. 10. O bilhete que a empregada deixa sobre a mesa da cozinha
(muito mais pela caligrafia do que pela ortografia): "Pesso deichar a xave."
Maria, que não desperdiçava uma boca livre na noite do Rio, dizia presente com
mais rapidez ainda quando o convite era para uma viagem a Paris e Lisboa.
Carlos Lacerda costumava atacá-lo por isso. Dessas viagens, sobraram várias
crônicas e cartas inéditas, como esta, em poder da família, de novembro de
1960, quando escrevia na Última Hora:
Moacir [Moacir Werneck de Castro, chefe de redação], seu disquinho já está
comprado e você o tocará aí em memória da embaixatriz. Paris vai bem.
Beaujolais, todos.
Como têm chegado minhas notícias? Lê minhas coisas e cuidado com o meu
francês. Tenho medo que elas se percam. E a revisão? Nessa que estou
mandando,

141
na oitava linha há "uma chuva que soa unida". Se sair "úmida" estou fodido.
Paris cintila. Aqui, Joel Silveira, Rubem Braga, Françoise Sagan e João Dantas.
Sagan estava, ontem, no Epi, acho que com o Tom Jobim. Num canto,
respeitavelmente. Paulo Bittencourt [proprietário do Correio da Manhã/ está
querendo um correspondente do CM aqui. Acha que jornalista francês manda
notícia que não interessa ao Brasil. Interessa a você? Não te mete nisso não,
Werneck. PB é um pouco aquele bêbado amigo do Chaplin. A entrevista com
Simone Signoret foi curta, mas de muita sorte. Passou um dia só ou dois em
Paris. Não falou a nenhum repórter. Das notícias que estou mandando não têm
nada de mentira. Refiro-me especialmente às de Lacerda. Ontem tomei um
pileque, aquela ressaca, Moacir. Com gripe, Moacir. Você já tomou pileque,
Moacir. Não pude escrever mais que isso. Desculpe este seu frágil amigo,
sujeito ao álcool e todos os males temporais. Abraça a Di. Abraça a Samuca.
Abraça a todos. Escreve. Diz como queres os lenços. "Essa imensa distância que
nos une'; como diria Rubem Braga. Teu, Antônio Maria. Ps. Manda entregar a
carta a Danuza.
No Diário da Noite — uma brevíssima experiência carioca no formato tablóide
e que teve uma das maiores sortes da história do jornalismo ao lançar seu
primeiro número no exato dia do assalto de Tião Medonho ao trem pagador —
Maria tinha uma página inteira. Nas outras publicações, um quarto de página.
Ilustrava com algum traço seu ou de outro desenhista. Também dava fotos de
artistas e vedetes. Na edição de 1° de fevereiro de 1961, a Última Hora
estampou pose expressiva da vedete Amparito apenas de maiô no corpo e riso
debochado nos lábios — ou seria

142
vice-versa? No texto-legenda, o sal do verão açoitando o desejo na pele, Maria
parece estar anunciando madame Lúcifer e o último capítulo do que restava das
famílias locais:
A mulher por quem sonham os coronéis da noite carioca. A mulher por quem os
homens estão mandando suas famílias para Petrópolis. A esperança dos cigarras.
Amparito, girl de Walter Pinto. Quase dois metros de altura, esportiva, honesta,
jovem e audaciosa.
O mundinho das famílias, sabe-se lá com que renúncia de prazeres, resistiu ao
diabolismo de Amparito, mas sofreu outros ataques da pena cínica e iconoclasta
de Antônio Maria. O casamento, as sogras, a monotonia dos lares, os filhos
preguiçosos, todas essas confusões domésticas eram o assunto principal do
único mergulho que o jornalista fez na ficção — o "Romance dos Pequenos
Anúncios", uma de suas mais inspiradas invenções. Ele pegava um anúncio
qualquer publicado nos classificados do jornal, escondia endereço, telefone ou
nomes:
Preciso de 20 mil cruzeiros. Pago 30 mil. Cinco por mês. Urgência. (Endereço
riscado), número 105, ap. 102, Urca.
Depois criava em cima. No caso do sujeito que precisava desses 20 mil
cruzeiros, imaginou a história de um funcionário público, Gaudêncio, que tem a
vida tumultuada com a aparição de uma nova vizinha. Não consegue mais
trabalhar, não fala mais com a esposa, inteiramente tomado pela súbita e esguia
deusa. Um dia, no elevador, declara-se:
— Eu quero você pra mim.
E quase caiu de surpresa quando a moça respondeu:

143
— Eu também. E acrescentou a moça: —Vamos passar este fim de semana em
Teresópolis. Não fala nada.
Pobre Gaudêncio. O ordenado de 40 mil cruzeiros mal dava para a despesa da
casa com a mulher e 4 filhos. Só de aluguel (antigo), 15 mil. Mas tinha de ir,
porque a vizinha era grande, clara, esguia e "viúva': E tinha mais uma coisa:
chamava-se Gilda. Gaudêncio sempre quis ter uma mulher chamada Gilda.
Fez as contas. Gastaria o quê? Uns 20 mil cruzeiros.

144

Uma espiadinha na gaveta do criado-mudo

Os biógrafos, por mais que corram atrás das pegadas deixadas por seus
personagens, podem errar. Maria deu uma facilitada nas coisas. Deixou parte de
sua história registrada nas crônicas, muitas das vezes um relato na primeira
pessoa do que lhe tinha acontecido na véspera. Não satisfeito, e aqui este
biógrafo penhoradamente agradece, reservou alguns momentos dos dias entre
12 de março e 19 de abril de 1957 para escrever um diário. O homem já escrevia
o dia inteiro, mas encontrava tempo para escrever sem pressão, sem o bafo do
editor no cangote gritando pelo fim do prazo.
Estou escrevendo [o diário] porque não me seria possível deixar de fazê-lo. Este
trabalho íntimo e verdadeiro talvez me desvie dos desgostos de escrever mal
para O Globo e para a rádio. Ou melhor, de escrever sob contrato com hora
certa, sem assunto, sem vontade, sem emoção. Experimento, agora, uma nova
sensação: de liberdade.
Continuarei escravo dos meus contratos e dos meus horários; das
recomendações e censuras dos meus patrões; mas tenho como dizer tudo o que
quero, quando eu bem quiser.

145
Os 39 dias do diário fazem um raio X impressionante, preto no branco, sem
cores artificiais e sem poses para os fotógrafos do que ia nos dias e no fundo da
alma do nosso Menino Grande. Se não disse tudo, afinal ninguém é bobo de
dizer tudo nem a si mesmo, Maria disse mais do que quase tudo.
Já na primeiríssima linha, mostra a que veio:
Escrevi 10 páginas de humorismo para o rádio. Com o desgosto de sempre. Não
me acho engraçado.
Nas linhas seguintes faria, não necessariamente nesta ordem, outras observações,
chicotes afiados, sobre a sua pessoa. Não. Antônio Maria não era seu maior fã: •
Me sinto só. • Estou gordo. • Devo morrer cedo, de repente, por causa desses
meus exageros.
• Tenho a impressão que ser minha mulher acaba com qualquer pessoa.
• Preciso de alguém mais forte. • Não suporto ler o que escrevi há uma semana.
• Sou um homem preguiçoso. Durante 39 dias, Antônio Maria caprichou o mais
que pôde na letra jogada para a direita e escreveu suas confissões mais íntimas,
com caneta-tinteiro, nas páginas pautadas de dois cadernos escolares. Na
apresentação, ele ordena que, quando morresse, os

146
cadernos deveriam ficar para João Condé, jornalista que recolhia documentos de
grandes nomes nacionais e, com eles, publicava em O Cruzeiro a seção
"Arquivos Implacáveis".
Morto Condé, os cadernos voltaram para a família de Maria, que em 2003
permitiu a publicação do diário. Nunca na literatura brasileira, talvez só no diário
de José Carlos Oliveira com seu cruel desfile de supositórios e broxadas com
prostitutas, um escritor fez um striptease tão doloroso em público.
A noite de seus 36 anos, por exemplo, Maria passou vomitando, sozinho, na
calçada do Sacha's. Depois dormiu num canteiro até as seis da manhã. Em
seguida passou para um sofá da boate onde ficou até as 11. Os únicos presentes
que recebeu foram quatro sabonetes Phebo dos filhos — "isso é uma prova de
que estou por baixo", concluiu o aniversariante.
O diário não traz exatamente nenhuma informação nova. Afinal, trata-se de um
jornalista que publicava textos todos os dias e precisava lançar mão da própria
vida, dos acontecimentos do seu cotidiano, para preencher o espaço do jornal.
Mas é chocante entrar na intimidade de um compositor que em público posava
de sentimental, se fazia de torturado pela busca amorosa, pela solidão atávica, se
confessava incompreendido por todos — é chocante entrar na gaveta do criado-
mudo do autor de Ninguém me Ama e perceber que não era poesia. Charme
coisa nenhuma. Era tudo verdade.
Quem me poderia tirar da depressão que estou sentindo? Que parente? Que
amigo? Tenho a impressão de que seria fácil melhorar-me. Bastava que alguém
me oferecesse um pouco de segurança. Bastava que alguém me garantisse uma
solidariedade incondicional — assim como um pai. Alguém que fosse mais
forte que eu.

147
Foram apenas 39 dias narrados na mais radical primeira pessoa e dá para
imaginar a barra que foram todos os outros. Maria reclama das dívidas. Tenta
arrumar força para realizar alguns projetos como gravar um LP com suas
canções, ele próprio cantando, organizar um livro com suas melhores crônicas
— mas não consegue força, ou, como diz, "estou muito sem coragem", para
realizar qualquer coisa. "Tenho que pagar 50 mil cruzeiros", revela no dia 17 de
março, "só tenho 20." Mais adiante, no dia 26, depois de escrever que deve mil
cruzeiros a Titise e 20 mil francos ao pai, conclui: "Só não devo a mim mesmo
por falta de crédito pessoal."
O diário é uma peça completa do melhor do estilo Antônio Maria de escrever e
refletir sobre o mundo. Metralha uma máquina de escrever diariamente das dez
às nove da noite, mal vê os filhos, dorme fora de casa, luta com a necessidade
de emagrecer 30 quilos, freqüenta as putas, não tem onde cair morto, dá em
cima das mulheres casadas — mas olha isso tudo com um humor especial,
inteligente e ácido: Conheci Maria Helena Raposo, bonita e excelente cantora.
Interessei-me demais por ela. Mais do que devia. O marido não é nada. MH me
fazia bem. À medida que conversávamos, os sustos e deslumbramentos que eu
lhe causava me faziam um certo bem. Sou vaidoso. Mas não tenho outras
belezas senão as do meu espírito. E me apresso em mostrá-las.
Tenho medo de não ver as pessoas nunca mais. É Não devo ser boa coisa.
Definitivamente, e graças a Deus, Maria não se levava a sério. E no dia 15 de
março, ele está com as antenas pregadas numa certa Dana Mendonça:
148
Voltei a ver, ontem, Dana Mendonça. Estava com os ombros nus e os cabelos
soltos. Cabelos negros. Muitos. Disse que eu escrevia bem. Deve ser porque a
mencionei numa crônica. Já deve ter dito o mesmo a Ibrahim Sued. Mas isso
não tem importância. Senti uma certa vontade de pegá-la com as mãos.
Esfregar-lhe o nariz pela nuca. Dormir com ela. Mulher feia, mas, sei lá...
mulher mais que muitas.
Na mesma noite:
Rosina Pagã apresentou-me a Ann Miller com esta frase: "Este é o Voltaire
brasileiro. "Pobre Rosina.
Na noite de 30 de março:
A cama se quebrou comigo enquanto eu dormia. Acordei com um estrondo
enorme. Eu fazia parte do estrondo. Como se eu houvesse explodido. Não
entendi logo. Mas eu estava no chão. Estou mais gordo.
Maria, conforme flagrado no diário, não fazia nada além do que escrever
durante o dia e à noite ir às boates, dar uma olhada nas mulheres. De vez em
quando emociona-se ao ver que o filho está lendo Saint-Exupéry, autor preferido
dele também na época, e que a filha esmera-se nas aulas de piano. A mulher
Mariinha, com quem ainda morava na rua Nina Rodrigues, no Jardim Botânico,
aparece poucas vezes e reclama que o marido não a leva para suas saídas
noturnas. Maria explica que é melhor assim, que se saíssem juntos, se levassem
uma vida pública de casados, a coisa degringolaria de vez.
Mariinha me parece triste. Sua vida — onde a minha se reflete tanto e tanto —
deve estar muito sem graça.

149
Cuidar da casa, das crianças. Cuidar de mim, que lhe peço tanto as coisas.
Como eu poderia alegrá-la mais um pouco? Talvez, quem sabe?, morrendo.
O diário está cheio de citações aos "meus amigos", "meus inimigos" de Maria,
um sujeito sempre inseguro do bem que lhe queria a humanidade e disposto a
reagir à altura das suas suspeitas. Numa crônica da Revista da Semana, Fernando
Lobo acusa Maria de ter demitido Dorival Caymmi quando era diretor da Rádio
Tupi, em 1948.
Maria diz que não foi ele. E atira:
Fernando Lobo é um infeliz. Mas um mau infeliz. Alegra-me hoje estar livre de
todo o bem que lhe queria.
Di Cavalcanti aparece chegando de uma suruba, dez mulheres, oferecida por
Oscar Niemeyer aos arquitetos que vieram da Europa julgar o plano urbanístico
de Brasília.
Sempre bêbado, Paulo Mendes Campos, pelo menos na noite de 13 de março,
"estava sem graça e contava histórias intermináveis", algumas já contadas
anteriormente.
Maria janta no Golden Room do Copacabana Palace com a grãfinagem carioca,
Tereza e Didu de Souza Campos, Dirceu Fontoura e Jorginho Guinle, que
minutos antes lhe confessara ter comido aquela mulher sentada duas cadeiras
para a esquerda na mesma mesa, a atriz americana Lana Turner.
Gente boba e vazia. Vaidosos, frívolos, ricos. Gosto, porém, de conhecê-los cada
vez mais, para ver até onde chega sua organizadíssima miséria humana.
Antônio Maria encerrou as anotações em seu diário sem qualquer explicação.
Talvez preguiça e falta de tempo. Talvez porque, como diz num dos dias,
desconfiasse que Mariinha o

150

andasse lendo. Ou porque ele mesmo andou mostrando a duas amigas e a partir
daí sentiu que escrevia diferente, sentiu que poderia ser lido pela posteridade e,
ao contrário do que se tinha prometido no início, começou a posar no texto, a
escrever com menos naturalidade. Sabe-se lá o motivo da interrupção, apenas
lamenta-se.
Era Antônio Maria em estado bruto, imprevisível, carente profissional,
desconfiado da humanidade como um todo, desgovernado pela busca do grande
amor nas mulheres mais erradas, e ao mesmo tempo capaz de reflexões
belíssimas sobre elas, como as do dia 12 de março: Nenhuma emoção é mais
forte que a de entrar no quarto da amante que dorme. Sentir-lhe o cheiro e o
calor no ar do quarto. Deitar ao seu lado, se possível, bêbado.
Tocar-lhe a pele poderosa. Nela, encontrar intensificação. E possuí-la do modo
mais a gosto, sem outras palavras que não sejam as dos rudes vivas do amor.
Depois, dormir, como na morte, para despertar ao peso dos deveres aflitos a
cumprir.
Ou:
Só se ama uma mulher quando lhe tememos a pele e o cheiro. Quando a idéia de
sabê-la em outra cama nos torna capazes de matá-la ou perdoá-la. Geralmente,
matá-la e perdoá-la são duas coragens difíceis. Fica-se, simplesmente...
A última anotação de Maria no diário foi em 19 de abril. Não por acaso uma
Sexta-feira Santa. Dia consagrado à dor.

151

O cardisplicente

No dia 22 de dezembro de 1959, a Última Hora publicou ao lado da coluna de
Antônio Maria as sensacionais previsões do vidente Mirakoff para o ano que se
aproximava: 1. Lott vencerá disparado as eleições presidenciais. 2. Piloto
soviético descerá na lua. 3. Kruschev será assassinado. Pobre Mirakoff. Errou
tudo. Jânio Quadros venceu, ninguém desceria tão cedo na lua, e Kruschev
sobreviveu — se é que os russos não nos enganaram aquele tempo todo com um
sósia.
A previsão mais fácil para 1960 era cruel mas óbvia, e estava logo no colunista
ao lado de Mirakoff. Se Antônio Maria não parasse de comer todas aquelas
feijoadas que anunciava, não largasse aquelas boates e fosse dormir mais cedo, o
coração ia falhar. Era cardiopata, ninguém precisava ter bola de cristal. Bastava
um estetoscópio.
Os médicos de Antônio Maria tinham os melhores. E acertaram na previsão.

153
Um dia Maria sentiu forte dor no peito. Os médicos da Casa de Saúde Dr. Eiras
lhe diagnosticaram bico-de-papagaio e lhe deram analgésicos. O neurologista
Paulo Niemeyer foi visitálo e perguntou se tinham feito um eletrocardiograma.
Não tinham. Chamou-se um radiologista. Maria estava sofrendo seu primeiro
enfarte.
Bem que ele tentava de vez em quando uma dieta sem sal. Chegou a trocar o
cigarro pelo cachimbo. Mas tudo sem muita convicção. De vez em quando,
Maria abria a geladeira de Dorival Caymmi, por exemplo, tirava de lá um prato
de feijão e devorava a gororoba, gelada mesmo. Não perdia também um
croquete de botequim. Como se não bastasse, jogava pôquer todas as noites com
Ivan Lessa, Jairo Leão, Flávio Porto, Oswaldo Melita, Bené Nunes, Daniel
Tolipan, Moacyr Werneck de Castro, Millôr Fernandes, Danuza Leão, Samuel
Wainer e outros. A mala com as fichas era de Leon Eliachar. Uma maratona
estressante de centenas de noites.
Alguns tópicos do check-up médico-existencial de Maria deviam ser ainda,
neste início dos anos 60, mais ou menos os mesmos do que ele escreveu no
diário íntimo de 1957:
Pergunto-me, estou feliz? Não. Mas também não estou desgraçado ou sequer
triste. Sinto-me cansado, isto sim. Um cansaço que não sei bem por que foi.
Talvez não durma o necessário.
Talvez já fosse o coração. Maria, no início dos anos 60, tinha todos os motivos
para continuar se sentindo com aquele mesmo cansaço de 1957. Nada havia
mudado em sua rotina. Das recomendações médicas, fracassou principalmente
no item da receita que lhe pedia para diminuir o ritmo de trabalho. Os credores,
no entanto, não descansam. Ele precisava cada vez mais

154
de mais dinheiro. E corria atrás. Uma das melhores ilustrações da vida de
workaholic em que se meteu foi feita por ele próprio em 6 de agosto de 1963.
Junto com o "Jornal de Antônio Maria" daquele dia, então em O Jornal, dos
Diários Associados, desenhou um auto-retrato em que aparecia escrevendo à
máquina diante de uma parede onde estavam afixadas as suas tarefas do dia:
1. O Mundo de Tônia (um programa de televisão) 2. Romance Policial 3.A
Sala, deAM 4. Três Quadrinhos 5. O Jornal 6. Mayrink Veiga Ufa!!!!
Profissionalmente, aquele início dos 60 foi um dos melhores períodos de sua
carreira. Não só pela quantidade da produção, mas pelo estilo e a projeção que os
programas de televisão, na época na Tupi, lhe estavam dando. Por debaixo do
pano ainda colaborava com a recém-fundada TV Excelsior nos programas My
Fair Show e Os Insaciáveis.
Ufa!!!!
O jornalismo agressivo de Samuel Wainer, o dono da Última Hora, de fato lhe
fizera bem. O governador Carlos Lacerda forçava a cidade a um racionamento
de luz, água, leite, arroz e feijão. O jogador Garrincha tinha-se aproveitado
daquele caos para, com sua fama de bicampeão do mundo, conseguir sacos de
feijão e depositá-los na cozinha da cantora Elza Soares, uma dona de casa gentil
que em troca lhe abriu a porta de outros cômodos. Mas Maria, certamente
também estimulado por Wainer, inimigo havia muito mais tempo do Corvo, não
estava vendo

155
qualquer romantismo naquelas filas ao redor dos armazéns, muito menos no
autoritarismo do Estado. E começou a perceber que, por trás daqueles
problemas de abastecimento, estava acontecendo algo de mais grave. A crise
estava afetando o caráter de um povo: É o retrato do Rio, cidade que já foi livre,
bonita e alegre. Aqui inventavam-se anedotas. Aqui escreviam-se as mais belas
canções ao amor e à natureza. Hoje, da boca de cada carioca, sai um resmungo,
um palavrão ou um gemido. Tudo está irremediavelmente perdido, abandonado,
sob um céu de névoa densa, que nos priva até do sol.
Parece que foi ontem, mas foi em 25 de janeiro de 1961. Quantas vezes depois
esse desabafo premonitório seria repetido? Maria estava afiado, a polêmica,
misturada ao sentimentalismo, lhe dava um sabor com a cara daqueles tempos.
Mais um pouco e todos saberiam de um outro sofisticado ingrediente para a
perfeição desse coquetel.

156

Danuza

Danuza Leão tinha uma beleza exótica. Um nariz que talvez se alongasse mais
do que costumava se alongar quando aparecia no rosto das mulheres
classicamente bonitas.
Mas o conjunto era irresistível. O pescoço também era prolongado, o corpo
esguio, e tudo no lay-out final, sublinhado pela elegância dos gestos, ganhava
sentido espetacular. Era uma presença linda, enigmática, que deslumbrava
qualquer salão. Em 1960, quando cruzou seu destino magro com a existência
gordíssima de Antônio Maria, era um mito na sociedade carioca, o modelo da
mulher moderna. Talvez tenha sido cunhada para ela a expressão que depois —
com Leila Diniz e todas as louquinhas que sucederam as feministas dos 60 -
virou clichê. Danuza era uma mulher à frente do seu tempo.
Filha de um advogado de Vitória, ela veio para o Rio em 1943, quando tinha dez
anos. Fez uma breve carreira de modelo que a levou, no início dos anos 50, à
passarela de Jacques Fath, em Paris. Menina precoce. Aos 12 anos era amiga de
seu vizinho, Fernando Sabino, aos 15 de Di Cavalcanti, aos 16 de Rubem Braga
e aos 20, em 1954, depois de ter morado alguns

157
meses em Paris, se apaixonado loucamente pelo ator Daniel Gélin,
experimentado com ele algumas rodadas de heroína, Danuza, uma mulher
absolutamente cosmopolita, enturmadíssima no jet set carioca, subia ao altar
para se casar com Samuel Wainer. Tinha conhecido o tycoon da imprensa
nacional no ano anterior, quando ele estava preso por ter-se negado a responder
a uma pergunta numa CPI. Samuel era o todo-poderoso dono da Última Hora.
Em 1960 Danuza o trocou por um dos seus empregados, o colunista do
"Romance Policial de Copacabana". Antônio Maria era gordo, suava muito,
todos aqueles deméritos anticharme que já se noticiaram antes. Mas, senhores e
senhoras, que borogodó!
Eis o relato de próprio punho de sua mais espetacular presa, Danuza Leão,
publicado no livro de memórias Quase Tudo, que ela lançou em 2005: Antônio
Maria tinha uma personalidade exuberante, era extremamente inteligente,
sensível, divertido, e sua presença, garantia de uma noite ótima. Era o último a
sair das boates, e, quando as portas se fechavam, ainda ficava na calçada com
uma roda de amigos, tomando cerveja no gargalo. Jamais vi alguém com tanta
capacidade de beber, comer, de atravessar as noites sem dormir; ele era uma
força da natureza.
Em 1960, três filhos, Samuel e Danuza viviam os problemas naturais de seis
anos de casamento. A eterna crise política nacional fazia com que Wainer
passasse muito tempo cuidando dos problemas do jornal. Ele estava sempre
acuado nas cordas se defendendo do ataque implacável que Carlos Lacerda, seu
amigo de adolescência e depois inimigo número um, lhe movia. Não tinha
tempo para comparecer em casa. Maria, "o amante de
158
plantão", segundo Sérgio Porto, já tinha percebido o quadro com suas antenas
sensíveis.
Atacou.
"Antônio Maria sabia ouvir", escreveu Danuza, 45 anos depois. "Qualquer
problema meu, fosse minha insatisfação com a babá dos meus filhos, fosse uma
rusga com meu pai, ele tinha todo o tempo do mundo não só para escutar como
para discutir, sugerir, às vezes aconselhar. Era exatamente o que eu não tinha de
Samuel, era exatamente do que eu precisava — e Antônio Maria sacou."
Danuza, por mais a fim que estivesse, percebeu que estava diante de um pré-
Shrek. Maria não correspondia a nenhuma das fantasias que ela pudesse ter em
relação aos homens. O cara era a deselegância em pessoa. Sofisticação zero.
Quase não ia à praia, esporte que ela praticava com empolgação. Nas raras
vezes em que ia ao mar, nosso herói o fazia em grande estilo: tamanco de
português e sacola de feira. De noite, o estilo era coerente. Seus sapatos eram
sempre de padre, de padre de antigamente, com aqueles vários botõezinhos de
um lado só.
Maria fez sua amada perceber que essa coisa de aparência era uma bobagem.
Convenceu Danuza de que a vida devia ser vivida de um jeito mais simples, que
para ser feliz bastava amar, ser amada. E que as frescuras que a madame, quer
dizer, ela, Danuza, tanto apreciava não passavam disso. Frescuras. A primeira
coisa que Danuza fez sob o efeito daquela conversa foi dispensar a governanta
dinamarquesa das crianças. Contratou uma nordestina. O amor é fogo.
Foi tudo um escândalo e as colunas de fofoca por muito tempo — o romance de
Neide Aparecida com Cyll Farney não podia ser páreo — trataram do babado
com prioridade.

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Não existiam personalidades mais diferentes do que o Samuel Wainer homme
du monde e Antônio Maria, um sujeito que não sabia dançar, não tinha qualquer
fascínio pelo glamour do jeito que ele era entendido por Danuza. Mas vai
entender o coração de uma mulher.
Maria continuava casado com Mariinha, a esta altura morando na Gávea, na
Marquês de São Vicente, mas raramente aparecia em casa. Vivia no apartamento
do Plaza.
Danuza, que o tinha como amigo, diz ter percebido um dia que ela era a
primeiríssima prioridade de Antônio Maria.
Gostou.
No final de 1960, antes que o óbvio ficasse público, Danuza comunicou a
Samuel que queria se separar. Maria às vezes já ia para a Última Hora no carro
que Samuel dera a ela. O dono da UH pediu que a mulher esperasse seis meses,
tempo que faltava para a grande festa de 11 anos do jornal, em junho de 1961,
no Museu de Arte Moderna. Danuza topou.
Maria não deixou qualquer relato explícito do que aconteceu na relação com a
grande paixão de sua vida. As músicas, que após os encontros com Ismael Neto,
em 1954, e Luis Bonfá, em 1958, tinham tido um sopro de esperança e alegria,
retomavam esse tom. Fez pouquíssimas canções nesse período em que esteve
casado com Danuza, todas para cima, como "Esse Amor que Deus nos Deu",
com João Roberto Kelly. A mais bonita de todas é, sem dúvida, "Vem Hoje", de
1960, em parceria com Moacir Silva, e conforme relato a um grande amigo, e
segundo acredita Danuza, foi inspirada naquela grande história de amor.
O casal estava com sua união deflagrada, não tinha volta, mas era um segredo
de Estado. Danuza ainda esperava os tais seis
160
meses se passarem. Maria, sôfrego de ansiedade, declara seu amor e pede que
Danuza, "sem medo", venha logo.
A primeira gravação de Vem Hoje foi de Elizeth Cardoso, em plena forma.
Maria parecia usar a voz de um anjo para uma súplica desesperada pelo grande
amor de sua vida:
Em cada verso meu Eu procurei o teu caminho E o teu amor E cada verso meu
foi como um grito Chamou teu nome sem ninguém saber Tanta coisa perdi, me
perdi Em longas noites, sem amor As horas passando, passando Vai passar a
vida e tu não vens... Faz falta em meu olhar o teu olhar A doce paz dos teus
olhos Faz falta em minha vida O imenso bem do teu amor Vem, sem medo,
meu amor Meu caminho é fácil de encontrar Vem hoje — há luar no céu Vem
hoje — há canções no mar Vem hoje — eu te beijarei Vem hoje...
Depois que o casamento se concretizou, as crônicas no jornal também mudaram
de tom. Falavam evidentemente de um homem remoçado pela crença amorosa,
saboreando o erotismo doméstico, e milhas distante das girls de Carlos
Machado ou outras aventuras passadas. Num texto de 27 de janeiro de 1963,
161
lamentava os homens que tinham mulheres de tarde em apartamentos de chaves
emprestadas e lençóis alheios. E saudava a necessidade de uma mulher a quem
se chegava de noite como um barco fatigado ao cais. Mais: o apaixonado Maria
acrescentava um novo elemento ao jogo sexual. O café com leite. Mas, calma,
sem perversão: Há um complemento venturoso do qual alguns se descuidam. O
café com leite de manhã. O lento café com leite dos amantes, com a satisfação
do prazer cumprido. No mais, tudo é menor. O socialismo, a astrofisica, a
especulação imobiliária, a ioga, todo ascetismo da ioga... tudo é menor. O
homem só tem duas missões importantes: amar e escrever à máquina. Escrever
com dois dedos e amar com a vida inteira.
Durante os três anos de efetiva relação que tiveram, Maria e Danuza não
moraram juntos. Separado de Mariinha, ele alugou uma casa de dois andares na
rua Vitor Maurtua, na Fonte da Saudade, e Danuza ia visitálo. Um dos pactos da
separação com Samuel é que ela não poderia viver com outro homem, pois
perderia a guarda dos filhos.
Danuza topou. Estava apaixonada, mas não pretendia morar com Maria. Tudo
que queria era estar livre para ser dele e ver como se desdobrava a relação. Seria
um desquite sem maiores problemas se o pai de Danuza não tivesse rompido
relações com ela. Pararam de se falar. Ele não aceitava que a filha se desquitasse
e, pior, se juntasse a Antônio Maria.
Todos achavam que ela estava louca.
Antônio Maria dizia que tinha apenas um motivo para insistir. Não podia viver
sem ela. Danuza concordou que não poderia haver nada mais forte. Foi com
tudo.

162
Danuza diz em seu livro que "durante esses anos em que vivemos juntos,
abrimos mão dos amigos, dos desejos, do passado — do qual nenhum de nós
podia falar; abrimos mão da vida. Ele deixou de beber e de ser quem era;
conseqüentemente, eu também. Por mais apaixonadas que sejam, duas pessoas
que conversam somente entre elas — e sobre elas —, bem, uma hora fica
difícil".
A rotina do casal era simples. Durante o dia, Danuza cuidava dos filhos. Maria
— já no O Jornal, porque Samuel Wainer, ao saber da história, com toda a
razão, o demitiu — partia para cima da máquina de escrever, desovando a
caudalosa produção de sempre. De noite, encontravam-se e iam, "sempre os
dois, só os dois", jantar fora. Foi o período mais calmo da vida de Antônio
Maria, que praticamente se fechou para o resto do mundo.
Os amigos da Vogue e do Sacha's, que faziam parte do roteiro do outrora
boêmio, ficaram em segundo plano e, enciumados, até hoje se mostram
magoados com aquele período Danuza. Dizem que Maria passou a usar umas
roupas formais demais, que ficou triste ao perder 30 quilos num regime, que foi
proibido de freqüentar a boate Zum-Zum do amigo Paulo Soledade, que ficou
deslumbrado com a melhoria social e que nas reuniões de artistas de rádio se
isolava da bancada nordestina.
Danuza Leão, que havia pouco era uma mulher transitando nas altas esferas do
poder nacional, casada com um homem que privava da intimidade do presidente
Jango Goulart e totalmente sintonizada com as últimas notícias, viu-se
subitamente recolhida. O casal não via ninguém. Não ia a um cinema. Não
tomava conhecimento do que se passava no resto do planeta.

163
Aos poucos ela foi percebendo a sabedoria daquela frase — de perto ninguém é
normal. O nosso Antônio Maria, segundo o relato de Danuza, que viveria com
ele a intimidade de quatro anos de bastidores radicais, de perto não era
exatamente aquele homem que nas crônicas e canções compreendia tão bem a
alma feminina. Pelo contrário.
Ainda no prazo de seis meses que Samuel pediu, ela foi à Europa com dois
filhos — mas Maria a proibiu de passar em Paris, enciumado com a terra onde
ela tinha tido a grande paixão com Daniel Gélin e conservava muitos amigos.
Apaixonada, ela não percebeu a gravidade da proibição e achou até maravilhoso
um homem com tanto ciúme.
Um dia, Cauby Peixoto cantava o bolero Ninguém É de Ninguém no rádio e
Antônio Maria teve um acesso de fúria: "Como assim, ninguém é de ninguém?".
Só uma mulher muito apaixonada não percebia o computador do Perdidos no
Espaço dizendo "Perigo, perigo".
Outra noite, ao ouvir Danuza narrar casualmente que durante o dia, numa festa
junina, Samuel pegou o filho Bruno que estava no colo dela, Maria explodiu
transtornado.
Como ela podia ter estado tão próxima fisicamente de Samuel?!!!!
Esta cena foi dias antes, em meados de 63, de Maria ter um segundo infarto — e
ele culpou o ocorrido, "de uma intimidade intolerável", de ter-lhe disparado o
coração.
Maria, o homem de alma feminina, lírico, de perto, na avaliação de sua mulher,
era um opressor. Controlava todas as horas dela com explosões de ciúme que, se
no início do romance eram fofas, agora eram patológicas.

164
Maria achava, e dava bronca, que Danuza estava se exibindo para o locutor
quando passava de trajes íntimos em frente ao aparelho de televisão.
Proibiu-a de fazer análise.
No início de 64, o estado de saúde de Maria era grave e Danuza, com o
argumento de que precisava tratar dele, conseguiu que Samuel a liberasse do
pacto de jamais coabitar com outro homem. Ela levou os filhos, todos agora
finalmente morando juntos na casa da Fonte da Saudade. Depois de três anos de
relação, com todos seus altos e baixos, o casal estava finalmente consolidado sob
um lar — e foi aí que as coisas pioraram e acabaram de acabar.
Danuza sentia que as 24 horas do seu dia eram controladas, se definia oprimida,
sufocada, agoniada, que não podia nada, e uma semana depois de estarem
vivendo enfim juntos, Maria, que devia estar sentindo algum problema parecido,
se mandou. Danuza foi atrás. Ele voltou. Aí foi ela que começou a pensar em
largar tudo. Afinal, uma noite, estavam abraçados na sala, onde havia um
espelho. Maria, por não se ver refletido, pois Danuza estava na frente do corpo
dele, achou que a mulher estava abraçando outro homem — e a empurrou com
força para longe.
Na verdade, Maria e Danuza viveram juntos sob o mesmo teto pouco mais do
que 30 dias. Ela relata que se sentia sufocada, com as 24 horas do seu dia
controladas.
De noite, fingia estar dormindo para não ter que conversar com aquele homem
que a seduzira justamente conversando. Ia dizer o quê? Que estava infeliz? A
grande questão por debaixo dos cabelos castanhos de Danuza era: como
abandonar um recém-enfartado e não ser acusada por sua morte? A possibilidade
disso ocorrer em seguida era enorme.

165
Maria não deixou qualquer relato de queixa sobre o casamento, mas também não
estava gostando. Não dava mais.
Quem conviveu de perto com o casal, viajou com os dois para fins de semana na
casa de praia dela, em Cabo Frio, ficou surpreso com as confissões de Danuza.
Presenciou momentos de paixão e felicidade que em nenhum momento
aparecem na biografia. Brigavam como qualquer casal, mas por muito tempo foi
evidente o afeto que sentiam um pelo outro, e como se divertiam juntos.
A crise conjugal se precipitou quando os militares deram o golpe de 31 de
março e Samuel Wainer asilou-se na embaixada do Chile. Danuza achou que
deixar Samuel levar os filhos era a única maneira de ele suportar o exílio. Maria
não concordou e saiu de casa. Danuza, depois de passar horas sem saber se ele
voltaria ou não, resolveu fazer o mesmo. Pegou algumas coisas, embrulhou as
crianças nuns cobertores. Foi para a casa dos pais.
Maria nunca mais a veria. Ia para a portaria do edifício em que Danuza passou a
morar e mandava recados de que estava armado, que iria se matar. Um dia
enviou carta dizendo que havia se esquecido do rosto dela e que já comprara o
sono para o dia do seu aniversário, data em que se conheceram. Apavorada,
trancada dias em casa, com medo de sair na rua e encontrar Maria de quem
temia a violência física, Danuza resolveu ir para Paris, onde já estava Samuel, e
realizar o projeto de que ele tivesse um exílio com o calor da família. Em junho
estava lá.
Encerrava-se uma impressionante história de amor. Maria não soube. Danuza
também não colocou em seu livro. Uma semana depois de sair da casa da Fonte
da Saudade, fugida em pânico, ela descobriu que estava grávida de Antônio
Maria.

166
Mas era tarde demais.

P.S. Mesmo morando em apartamentos vizinhos em Paris, Samuel Wainer e
Danuza Leão não retomaram a relação amorosa. Amigos simplesmente, nada
mais, como diz o samba de Fernando Lobo, aquele outro amigo-inimigo de
Maria.

167

O insuportável mau cheiro da memória

Sem Danuza, Maria, arrasado, mudou-se para um apartamento alugado na rua
Fernando Mendes, em Copacabana.
O novo apartamento já estava mobiliado e, segundo o jornalista Paulo Francis,
um dos amigos dessa época e apelidado de o Francês, o estilo da decoração era o
mesmo do que ia no espírito de seu novo locatário: depressivo.
Acostumado com o bom gosto do que tinha visto na Fonte da Saudade, nos
tempos de Danuza, Francis não acreditou no que encontrou em Copacabana: Era
um apartamento de português, cheio de cristaleiras e quadros de quinta
categoria de Jesus, com o inevitável coração púrpura brilhando, a Virgem Maria,
com cara de bocó, e São José, inexpressivo. Aquela decoração fazia parte do
seu masoquismo de amante frustrado.
O clima decorativo na Fernando Mendes devia ser mesmo depressivo, mas
Francis pode ter caído na conversa de Maria — e quem não? — quando este
recusou a proposta de arrumar uma

169
nova namorada e dar a volta por cima. "Não agüento mais, Francês", teria dito
Maria, começando a jogar o velho, e sempre sedutor, charme do carente. "Sou
um mulato gordo. Quando tiro a roupa, a mulher sempre ri. Depois se acostuma,
mas eu não agüento aquele primeiro riso novamente."
Maria lamentando a sorte com as mulheres? É ruim, hein!
Claro que ele reconhecia suas limitações estéticas, mas continuava sendo um
mestre em superá-las. Gostaria apenas, claro, que a tarefa lhe custasse menos
esforço.
Um dos seus novos amigos depois da separação de Danuza foi Luís Carlos
Santos, que viria a ser ministro da Coordenação Política do governo Fernando
Henrique Cardoso.
Luís Carlos era um homem flagrantemente bonito. Maria invejava-o com
carinho, e dizia por quê: — O Luís Carlos come a mulher com a cara. Eu, para
uma mulher se interessar por mim, é preciso três horas de conversa até ela se
esquecer da minha cara.
Voltara a relaxar no visual — e, a propósito, ainda devia estar usando, em 1964,
algumas peças do guarda-roupa que ganhou de Carlos Machado no final dos
anos 50.
Principalmente, tentava esquecer os problemas brincando com os amigos.
Aproveitou que Luís Carlos Santos passava uma noite no apartamento da
Fernando Mendes e contratou duas mulheres para que o acordassem. Mas elas
deveriam fazê-lo pulando em cima da cama onde dormia sua futura excelência
da república tucana. Luís Carlos acordou com aqueles mulheraços aos pulos,
gritando disparates, e até hoje não sabe direito se estava no céu ou no inferno.
Maria exercitava o humor também com outra molecagem que tanto cativava os
amigos: o trote. Tinha um grande
170
repertório deles. Mas o preferido nessa época era o trote ao pintor de
churrascaria. Anotava o nome e o telefone do artista que pintava aqueles bois e
vacas pavorosos e quando chegava em casa ligava para o infeliz. Identificava-
se, o artista do outro lado ficava todo orgulhoso com os elogios de tamanha
celebridade e, em troca, logo se prestava a lhe pintar algo, gratuitamente. O que
gostaria, Sr. Maria: um bezerro mamando? Um potro cavalgando? Onde? E
Maria então lhe descrevia, com seriedade científica, uma certa parte protuberante
e exclusiva da anatomia masculina. Ao fundo, os amigos gargalhavam,
esquecidos talvez de um dos aforismos célebres de Maria: "Os homens tristes
geralmente fazem graça."
Ele estava deprimido, sem dúvida, e enfrentava uma temporada terrível. Ficou
dois meses sem escrever em O Jornal. Em maio redigiu apenas um bilhete, a um
amigo com quem morava:
Se me encontrar dormindo, deixe. Morto, acorde-me.
Quando voltou ao jornalismo, no dia 23 de julho, parecia anunciar um milagre:
Com vocês, por mais incrível que pareça, Antônio Maria, brasileiro, 43 anos,
cardisplicente (isto é: homem que desdenha do próprio coração). Profissão.
Esperança.
Walter Clark e Bôni foram testemunhas dos seus fracassos naquela época para
criar os programas de televisão. Não conseguia produzir nada. Maria passou
alguns dias em São Paulo com o recentíssimo amigo José Aparecido de
Oliveira, ex-ministro de Jânio Quadros. Tinha-lhe feito muitas críticas no
passado. E quando foram apresentados, na casa de Joel Silveira, esperava-se
uma briga. Maria, no entanto, produziu no ato uma de suas

171
brasilianas sabedorias. Traduziu em uma frase, de improviso, como se fosse
mais um repente, toda a tese sergio-buarquiana sobre nossa cordialidade: — No
Brasil a gente só é inimigo de quem não conhece. Depois que conhece fica
amigo.
Mais que isso, Maria e Aparecido ficaram amicíssimos. Assim como houve
amigos que viraram desafetos — Fernando Lobo, Ary Barroso —, era a hora de
o desafeto virar amigo. Aparecido estava cassado pelo governo militar e
precisava desaparecer por uns tempos. Maria ficou com ele em São Paulo no
apartamento de Luís Carlos Santos.
Um mineiro conservador e um pernambucano do mundo. Uma noite deu-se o
choque cultural. Foram parar na mitológica La Licorne, o rendez-vous de luxo
que desvairava a paulicéia, e Maria viu, pasmo, o amigo, mineiramente
desconfiado, negar seus lábios aos lábios de aluguel que se lhe ofereciam.
— Meu Deus, o mundo está perdido — lamentou Maria. — Já há homens que
recusam beijo na boca.
No dia 25 de setembro, certamente um dia de sol, conseguiu dar a volta por cima
e produziu um texto engraçado, debochado, sobre o novo governo brasileiro. A
pretexto de estar enviando uma carta ao amigo Vinicius de Moraes, em Paris,
contando-lhe as últimas daqui, traçou um perfil irônico do país. Sabia, claro, das
prisões, cassações e moralidade das famílias em marcha pela liberdade. Mas
nada de discurso político esquerdista, que não era o seu estilo. Fez o tal twist que
Paulo Francis percebeu na organização das palavras e conseguia um efeito
absurdo. Melhor: subversivo.

172
Desde primeiro de abril estamos fazendo uma experiência militar-rosário, na
base de generais-católicos. Deve dizer-se que aqui vai tudo bem porque, embora
os salários não tenham subido, o preço da vida e os impostos se elevaram
dignamente. Mas estamos numa democracia e as autoridades militares que, em
boa hora, assomaram ao poder, estão tentando uma novidade que, certamente,
servirá de exemplo ao mundo moderno: democracia sem eleições. A Revolução
fez poucos prisioneiros, mas todos vão bem de cama e mesa, enquanto
descansam da mulher e dos filhos, convivência que, de vez em quando, precisa
ser interrompida para sobrevivência da própria família.
Fala-se de violências ocorridas nas prisões federais. Acredita você que homens
da cordura de um Cecil Borer sejam capazes de um gesto menos polido? Em
tudo isso, caro poeta, há a intriga dos comunistas, que pretendiam vender-nos a
Moscou com Pelé, Garrincha, petróleo, café, você mesmo, Di Cavalcanti, João
Gilberto, Astrud, Tom e tudo. Mas aqui, oh!
Enfim Maria chegou a outubro de 1964. Estava a bordo de um diminuto,
fechado e opressivo Gordini, a grande novidade da indústria nacional naquele
ano e o oposto do oposto do espaçoso, conversível, Cadillac dos 50. Ele próprio,
garantem os amigos, era outra pessoa. Baixo-astral total. "Definhava", sentencia
Walter Clark.
Foi por essa época que compôs com Paulo Soledade sua última música. As
rádios e as paradas estavam cheias de Ewaldo Gouveia e Jair Amorim, seus
sucessores no trono do sambacanção. O tema da última música parece ser
Danuza. Em cada

173
acorde, um comentário sobre aquele amor desperdiçado e cuja lembrança
dolorida o ocupava o tempo todo. O nome da música é Perdão por Tanto te
Amar, também conhecida como Só, Só, Só. A primeira gravação foi de Helena
de Lima. O pressentimento da morte é confessado, alto, em forma de
sambacanção.
Perdão por tanto te amar Perdão por mim Perdão por meu bem querer Tão
grande assim Se em minha vida fiz mal Fiz mal a mim Perdão se um dia eu
morrer Sem te esquecer Ao te encontrar me encontrei No teu amor Ao te
perder me perdi Na minha dor A dor ensina a viver E o que eu sofri Me
ensinou a saber Que eu tenho de ser Só, só, só.
Nesse mês de outubro, Maria começou a produzir então uma impressionante
quantidade de crônicas amargas, sofridas, desesperadas. Danuza sempre ao
fundo. Nos 15
primeiros dias daquele mês escreveu duas vezes sobre o suicídio; outra, sobre a
morte de um amigo; outra, garantindo que aquele era o ano da dor-de-cotovelo
— e não estava certamente fazendo qualquer alusão ao quadro político-militar.
Usava sempre umas frases junto ao cabeçalho do "Jornal de Antônio Maria", e
naquele mês

174
parecia obcecado por um tema: a dor que lhe trazia o passado, o desejo mórbido
de mergulhar nele.
Já no dia 2 de outubro, por exemplo, lembrou-se de uma frase de Carlos
Drummond de Andrade: Oh, abre os vidros de loção e abafa o insuportável mau
cheiro da memória.
Dias depois citou frase de Ivan Lessa, identificado em forma de anagrama,
"Ivessa Lean":
Aqueles que não se lembram do passado estão condenados a repeti-lo.
Ele passou todos aqueles 15 dias apenas com os faróis traseiros do Gordini
ligados. Queria ver se iluminava o passado e tirava dali algum sentido de
esperança ou a sentença definitiva de morte. Não jogou qualquer palavra,
nenhum facho de luz, em direção ao futuro. Quando tentou olhar em frente,
pediu que olhos sobrenaturais o ajudassem a enxergar. Maria tinha voltado a
freqüentar Tia Lulu, uma preta velha — "pitonisa, cartomante ou macumbeira"
— de Niterói que lhe emprestava conforto espiritual. Fazia-lhe pedidos típicos
dos desesperados do amor. Levou sem pudor a fossa pela perda de Danuza ao
terreiro.
Não quero nada, não quero ela de volta. Mas queria merecer, apenas, que ela
passasse por mim tudo o que eu passei por ela. Que ela sentisse em minha
ausência tudo o que senti, até que me habituasse à ausência dela. E tenho
certeza de que isto pode acontecer, pois, quando nos separamos, gostávamos um
do outro. Ah, Tia Lulu,
175
ajude-me a ter esta alegria e irá ver-me rindo, com as mãos cheias de carinhos e
ajudas para você.
Naquele mês de outubro, que costuma dar os mais belos dias do ano, choveu
tanto naquelas crônicas que dava a impressão de Maria, que tanto gostava de
dirigir, ter embicado o Gordini rumo à Macondo de Gabriel Garcia Márquez.
Estava tudo escuro e sem sentido. Foi com uma meteorologia existencial dessas
— "Esta noite... esta chuva... estas reticências. Sei lá" — que começou o texto
de 9 de outubro, intitulado "Canção de homens e mulheres lamentáveis". É um
retrato perturbador, uma obra-prima da dor-de-cotovelo. Nem em Ninguém me
Ama ousou confessar tanta derrota.
Quem seria capaz de abrir o peito e mostrar a ferida? De dizer o nome? De
lembrar, sequer lembrar, o rosto? Quem seria capaz de contar a história? De
chamar o maior amigo, ou melhor, o inimigo, e dizer:
— Estou me sentindo assim, assim, assim... [..] Você diria em público o nome
da Amada? E suportaria ouvi-lo? Não, não; o nome dela, em sua boca ou na dos
outros, é tão proibido como sua nudez (dela). Não há diferença. [...]
Há poucos minutos, em meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era
tanta que tive de escolher entre morrer e escrever estas coisas. Qualquer das
escolhas seria desprezível. Preferi esta (escrever), uma opção igualmente piegas,
igualmente pífia e sentimental, menos espalhafatosa, porém. A morte, mesmo em
combate, é burlesca.

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Uma pergunta, que não tem nada a ver com o corpo desta canção. Quem saberia
discriminar o ódio do amor? Ninguém. Os psicologistas e analistas têm perdido
um tempo enorme. [...]
Só há uma vantagem na solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta. Mas
isto é muito pouco para quem não tem sequer a coragem de abrir a camisa e
mostrar a ferida.
Maria passou a noite de 15 de outubro de 1964 com a amiga Vera Nascimento e
Silva. Num determinado momento, telefonou para Yolanda Cardoso, sua
namorada dos anos 50, e pediu que ela se juntasse aos dois. Yolanda alegou que
tinha feito duas sessões de uma peça no Teatro Ginástico, no Centro, e estava
cansadíssima. Não foi.
Maria jantou com Vera e depois a levou em casa no Gordini. Na volta, foi trocar
um cheque no restaurante da esquina da Fernando Mendes com Nossa Senhora
de Copacabana, o Rond Point, famoso por uma sopa de cebola. Estava ainda na
porta, conversando com o garçom Obed Fernandes, quando teve um infarto do
miocárdio.
O delegado Nilo Raposo, velho conhecido dos tempos do distrito policial da
Hilário de Gouveia, estava no restaurante Cangaceiro, logo em frente, e veio
correndo tentar uma respiração boca a boca. Mas nada mais podia ser feito.
Maria morreu ali mesmo. Na calçada de uma rua de Copacabana, cena de
centenas de suas crônicas, e por volta de três horas da madrugada, numa outra
das coincidências arrepiantes dessa história: Madrugada 3 e 15 é o nome de uma
de suas músicas mais tristes.
O dono do Rond Point ainda pegou no telefone e ligou desesperado para Rubem
Braga. O "urso de Ipanema" não se interessou pelo caso. Estava brigado com
Maria.

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Alguns amigos, nem todos, acham que Antônio Maria morreu como havia
anunciado: de cardisplicência. Infarto fulminante do miocárdio. Não cuidou da
saúde do coração.
Do ponto de vista médico, estava tudo previsto e alertado. Era uma morte cruel,
aos 43 anos, mas sem surpresas. Tomava seus comprimidos de Trinitrina, mas
era pouco. O próprio Maria escreveu que "cansaço, pé chato e gordura" haviam-
lhe tornado "essa coisa ansiosa, insegura e com sono". Enfim, todos sabiam.
Outros amigos, no entanto, como Joel Silveira, Walter Clark, Paulo Soledade e
Fernando Lobo ficaram com a impressão, quase certeza, de que o compositor de
Ninguém me Ama morreu em forma de sambacanção.
De amor.
Danuza recebeu a notícia em Paris, e durante dias trancafiou-se no apartamento
sem querer ver ninguém. Por muito tempo viveu encucada. Anos depois
encontrou os dois filhos de Maria, já adultos. Foi bem recebida por eles e
respirou, para sempre aliviada de qualquer peso de culpa pelo que aconteceu ao
ex-marido apenas seis meses depois de tê-lo abandonado.
Antônio Maria foi enterrado no mesmo dia 15 de outubro, na catacumba 66,
quadra 13, do Cemitério de São João Batista, em Botafogo. Deixou escrita uma
última crônica, publicada no dia seguinte em O Jornal, sobre uma velhinha que
freqüentava o restaurante Westfalia, no Centro, e que levava seus próprios
talheres para a mesa. Maria desconfiava que a velhinha, "se a gente fosse abrir",
tinha um homem dentro. "Um homem solitário, que sabe o que quer e não cede
"isso' de sua magnífica solidão."

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Foi a última palavra, da sua última frase, no seu último texto. O solitário dentro
da velhinha do Westfalia evidentemente era ele. Maria escreveu a palavra
solidão, uma das mais recorrentes em toda sua obra, e saiu de cena como viveu.
Sentimental, em grande estilo e só, só, só.

179

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183
Agradecimentos

Maria Rita, Antônio Maria Filho, Regina Echeverria, Isa Pessôa, Consuelo
Leandro, Carlos Heitor Cony, Joel Silveira, Dorival Caymmi, Paulo Soledade,
Maneco Müller, Nelson Gonçalves, Millôr Fernandes, Ary Carvalho, José
Aparecido de Oliveira, Nádia Maria, Carmem Verônica, Jorge Goulart, Renato
Maurício Prado, Ivan Lessa, Fausto Fawcett, Artur Xexéo, Nancy Wanderlei,
Tárik de Souza, José Maria Manzo, Sérgio Cabral, Fernando Barbosa Lima,
Fernando Lobo, Ricardo Cravo Albim, Maurício Sherman, Jairo Severiano,
Yolanda Cardoso, João Antônio, Luciene Franco, Marisa Gata Mansa, Teixeira
Heizer, Mariozinho de Oliveira, Ellen de Lima, Oldar Fróes, Luis Mendes,
Jaguar, Jorge Abi-Khalil, João Roberto Kelly, Ricardo Linck, Orlando
Drumond, Dirce Belmonte, Teodoro e Luciana Barros, Haroldo Costa, João Luiz
Albuquerque, Sérgio Figueiredo, Luiz André Alzer, Chico Anysio, Carlinhos
Niemeyer, Alberto Dines, Bibi Ferreira, Carmem Mayrink Veiga, João Máximo,
Milton Teixeira, Adalgisa Colombo, Zózimo Barroso do Amaral e Gisele
Carvalho.

185

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