Você está na página 1de 28

Hebreus 6:4-6 e a Possibilidade de Apostasia

por

Dr. Sam Storms

Esta é indubitavelmente uma das mais controversas e freqüentemente


debatidas passagens em toda a Escritura. Não seria errado dizer que
aqueles que crêem que um crente genuíno pode perder sua salvação
apelam a esta passagem com mais freqüência que qualquer outra. Leia a
passagem atentamente.

“Porque é impossível que os que já uma vez foram iluminados, e provaram o


dom celestial, e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a
boa palavra de Deus, e as virtudes do século futuro, e recaíram, sejam outra
vez renovados para arrependimento; pois assim, quanto a eles, de novo
crucificam o Filho de Deus, e o expõem ao vitupério.”

Quem são aquelas pessoas que uma vez foram iluminadas, provaram do
dom celestial, se tornaram participantes do Espírito Santo, provaram da boa
Palavra de Deus e dos poderes do século futuro, e então recaíram? É
importante que saibamos, pois é impossível renová-las outra vez para o
arrependimento, uma vez que elas novamente crucificaram o Filho de Deus
e o expuseram ao vitupério.

Existem provavelmente mais de doze opções interpretativas a essa


passagem, que podem ser encontradas em comentários ou periódicos. Não
é meu propósito interagir com eles. Pelo contrário, estou focando somente
na questão de se a terminologia nos versos 4 e 5 nos levaria a concluir que
estes indivíduos são nascidos de novo, justificados, crentes.

Estas pessoas são homens e mulheres cristãos nascidos de novo? Se


forem, destrói-se a doutrina da segurança eterna. Ou é possível para alguém
experimentar alguma forma de iluminação espiritual, provar bênçãos
espirituais, partilhar do Espírito Santo e ainda assim nunca ter conhecido
Jesus de um modo salvífico? Creio que a resposta para esta última questão
é Sim. Deixe-me começar dando seis razões do próprio livro de Hebreus
para mostrar que as pessoas que apostataram não são nascidas de novo.

Primeiramente, a situação descrita nos versos 4-6 é ilustrada nos versos 7-


8. Lá nós lemos, “Porque a terra que embebe a chuva, que muitas vezes cai
sobre ela [este beber chuvas freqüentes refere-se às bênçãos dos versos 4-
5: iluminação, participar do Espírito, provar bênçãos espirituais, etc.], e
produz erva proveitosa para aqueles por quem é lavrada, recebe a bênção
de Deus; mas a que produz espinhos e abrolhos [isto corresponde à queda
do v.6a], é reprovada, e perto está da maldição; o seu fim é ser queimada.

A chuva cai em todos os tipos de solo, mas não se pode dizer, apenas com
base nisso, que tipo de vegetação, se haverá alguma, aparecerá. A figura
aqui não é de um solo que recebe chuva freqüente, dá vida e vegetação, e
então a perde. A figura é sobre dois tipos de solo juntos. Um responde à
chuva [bênçãos e oportunidades espirituais] por produzir vegetação
abundante, enquanto o outro é estéril, sem vida e, assim condenado. Da
mesma forma, pessoas que ouvem o evangelho e respondem com fé
salvífica manifestam vida. Outras, entretanto, que sentam na igreja, ouvem a
verdade e são abençoadas pelo ministério do Espírito Santo mas que
eventualmente viram suas costas a tudo isso, são como um campo em que
nunca floresce vegetação e assim vão a julgamento.

Como Wayne Grudem nota,

A idéia de terra que uma vez deu bons frutos e agora traz
espinhos não é compatível com esta figura. A implicação é esta:
enquanto as experiências positivas listadas nos versos 4-6 não
nos dão informação suficiente para saber se as pessoas são
verdadeiramente salvas ou não, a atitude de apostasia e expor
Cristo à vergonha revelam a verdadeira natureza daqueles que
caíram: todos eles são como um solo ruim que pode dar apenas
frutos maus. Se a metáfora da terra de espinhos explica os
versos 4-6 (como certamente o faz), então sua queda mostra
que primeiramente eles nunca foram salvos (Perseverance of the
Saints: A Case Study from Hebrews 6:4-6 and the Other Warning
Passages in Hebrews, in Still Sovereign, Baker; 156-57).

Segundo: em 6.9 lemos um contraste significante: Mas de vós, ó amados,


esperamos coisas melhores, e coisas que acompanham a salvação, ainda
que assim falamos. As coisas melhores em vista são listadas em 10-12,
coisas como trabalho, amor, serviço, diligência, completa certeza da
salvação e fé, paciência, herança das promessas. Estas coisas são
melhores que as experiências dos versos 4-6 precisamente porque elas
pertencem à ou são acompanham a salvação . Em outras palavras, o autor
diz que está confiante de que muitos de seus leitores têm coisas melhores
que as pessoas descritas nos versos 4-6, e estas coisas são melhores, pois
seus leitores têm coisas que pertencem à salvação. Isto implica que as
bênçãos nos versos 4-6 não são coisas que pertencem à salvação (Grudem,
159).

Antes de seguir adiante, vamos resumir os versos 7-12. Os versos 7-8


descrevem as pessoas nos versos 4-6 como terra infrutífera que
repetidamente produz espinhos e abrolhos, e, portanto indica que elas
nunca foram salvas. Versos 9-12 dizem que os leitores, em geral, têm coisas
melhores que as experiências temporárias dos versos 4-6, e que estas
coisas melhores incluem a salvação. Portanto, tanto os versos 7-8 como
verso 9 indicam que as pessoas nos versos 4-6, que caíram, nunca tiveram
salvação (Grudem, 160).

Terceiro, de acordo com Hebreus 3.14 (e 3.6), nós nos tornamos


participantes de Cristo, se retivermos firmemente o princípio da nossa
confiança até ao fim. Note bem: ele diz que nós nos tornamos participantes
de Cristo, não que nos tornaremos ou somos agora participantes, se
perseverarmos na fé. Em outras palavras, se reter firmemente a fé, i.e.,
perseverar, isto prova que você se tornou parceiro de Cristo no passado.
Falhar em sustentar a fé, u.e., apostatar da fé, prova que você nunca foi um
participante de Cristo. Apostasia ou cair (6.6a) não significa que uma vez
você estava, mas agora caiu da participação em Cristo. Significa que você
nunca foi ou nunca se tornou um participante.
Quarto, lemos em Hebreus 10.14 que pelo sacrifício único Cristo
aperfeiçoou para sempre aqueles que são santificados. Aqui nos é contado
que aqueles que agora estão sendo santificados (i.e., habitados pelo
Espírito Santo, crescendo em santidade pela fé), o sacrifício de Cristo na
cruz aperfeiçoou esta pessoa para sempre. Para sempre! Em outras
palavras, tornar-se um beneficiado da obra aperfeiçoadora, justificadora, de
Cristo na cruz é ser aperfeiçoado ao lado de Deus eternamente. Isto sugere
que Hebreus 6.6 não significa que quem re-crucifica Cristo foi uma vez
justificado pelo sangue de Jesus e foram realmente santificados em um
sentido espiritual (John Piper, Sermon, 5).

Quinto, nosso autor conclui sua carta com uma oração relatando a plenitude
em nós das bênçãos da Nova Aliança. Ele ora para que Deus vos aperfeiçoe
em toda a boa obra, para fazerdes a sua vontade, operando em vós o que
perante ele é agradável por Cristo Jesus (13.20-21). A promessa da nova e
eterna aliança é que Deus colocará em seu povo um novo coração e os
levará a andar em Seus caminhos, e não deixará de fazê-los bons (veja Ez
11.19,36.27; Jr 24.7,32.40). Portanto, Piper conclui que

No verso 21, ele diz que não depende de nós se perseveraremos


na fé e frutificaremos. Isto é ultimamente dependente de Deus:
Ele está trabalhando em nós naquilo que é agradável a seus
olhos. Ele está completando a promessa da nova aliança de nos
preservar. Isto significa que Hebreus 6.6 contradiria a nova
aliança se significasse que as pessoas poderiam ser
verdadeiramente membros justificados na nova aliança, e então
cometer apostasia e ser rejeitadas. Isto significaria que Deus
não completaria sua promessa de trabalhar neles o que é
agradável aos seus olhos. Ele teria quebrado sua promessa da
nova aliança (Piper, 5).

Sexto, devemos tomar nota não só do que é dito destas pessoas nos versos
4-6, mas o que não é dito delas, mas que é usualmente dito dos cristãos.
Termos típicos usados para descrever os crentes, como regeneração,
conversão, justificados, adotados, eleitos, crentes em Jesus, estão
obviamente ausentes. Isto é mais que meramente um argumento
proveniente do silêncio quando consideramos a forma como os cristãos
são descritos no próprio livro de Hebreus. Aqui está uma lista do que é
verdadeiro sobre o verdadeiro crente, tudo o que está ausente na descrição
daqueles que apostataram em 6.4-6:

(1) Deus perdoou seus pecados (10.17; 8.12)

(2) Deus limpou suas consciências (9.14; 10.22)

(3) Deus escreveu sua lei em seus corações (8.10; 10.16)

(4) Deus está produzindo santidade na vida deles (2.11; 10.14;


13.21)

(5) Deus deu a eles um reino inabalável (12.28)

(6) Deus tem prazer neles (cap.11; 13.16,21)

(7) Eles têm fé (4.3; 6.12; 10.22,38,39;12.2; 13.7, etc.)


(8) Eles têm esperança (6.11,18; 7.19; 10.23)

(9) Eles têm amor (6.10; 10.33-34;1 3.1)

(10) Eles adoram e oram (12.28; 13.15; 4.16; 10.22)

(11) Eles obedecem a Deus (5.9; 10.36; 12.10,11,14)

(12) Eles perseveram (3.6,14; 6.11; 10.23)

(13) Eles entram no descanso de Deus (4.3,11)

(14) Eles conhecem a Deus (8.11)

(15) Eles são a casa de Deus, seus filhos, seu povo (3.6; 2.10,13;
8.10)

(16) Eles são participantes de Cristo (3.14)

(17) Eles receberão a salvação futura (1.14; 7.25; 5.9; 9.28)

Alguém talvez faça uma objeção, ao dizer: OK, descrições típicas dos salvos
não são encontradas em 6.4-6, mas também descrições típicas dos
perdidos são encontradas lá! Grudem responde: eu concordo que as frases
[em 6.4-6] sozinhas não batem com as descrições do autor sobre os
perdidos, e elas não indicam que essas pessoas são perdidas (antes que
cometam apostasia). Mas isto é justamente o ponto. Antes que elas
cometam apostasia seu estado espiritual é incerto. Fica a questão de se eles
estão entre os salvos ou os perdidos. Eles não deram indicações decisivas
sobre qualquer caminho. Esta é a razão para que o autor os avise para que
não voltem atrás se eles ainda estão em um ponto onde a decisão entre
estar entre os salvos ou os perdidos deva ser feita (171).

O que dizer dos termos usados em 6.4-5 (iluminação, provar, participantes,


etc.). Por um lado, é certo o caso de que todos os cristãos experimentam
estas realidades. Mas somente cristãos experimentam elas? Ou é possível
que essas experiências também sejam verdadeiras para pessoas que são
repetidamente expostas ao Evangelho e aos benefícios que este traz, ainda
que pessoalmente elas não abracem a pessoa de Cristo como Senhor ou
Salvador? Vamos observar cada uma delas.

Eles foram uma vez iluminados. Verdadeiros cristãos foram iluminados?


Sim. Mas este termo não precisa significar mais que ouvir o Evangelho,
aprender ou entendê-lo. Certamente um entendimento intelectual dos fatos
do Evangelho é um passo importante para a fé salvífica, mas por si só não
constitui o elemento de confiança pessoal em Cristo, que é essencial à fé
(Grundem, 142-43). Todos conhecemos pessoas, talvez membros de
família, que foram repetidamente expostos à verdade do Evangelho,
entenderam o que significa, podem articular as afirmações de Cristo com
uma precisão incrível, mas ainda assim recusam-se a colocar sua confiança
nEle como Senhor e Salvador. Portanto, embora todos os verdadeiros
cristãos tenham sido iluminados, nem todos que foram iluminados são
verdadeiros cristãos.
Eles provaram do dom celestial, da boa palavra de Deus e dos poderes do
século futuro. Isto certamente aponta para uma genuína experiência
espiritual. Mas nós devemos concluir que foi uma genuína experiência
salvífica ? Eles não são estranhos ao Evangelho e à igreja. Existem pessoas
que chegam a ter convicção do Espírito Santo e que experimentaram algum
tipo de bênção, por meio da graça comum e por seu íntimo contato com
verdadeiros crentes. Talvez elas tenham sido curadas. Talvez um demônio
tenha sido expulso. Elas ouviram a Palavra de Deus e vieram a provar, sentir
e se beneficiar de algo de seu poder, beleza e verdade. Elas ouvem as
palavras do Espírito Santo e viram grandes e maravilhosas coisas no corpo
de Cristo. Aqueles em Mateus 7.22-23 pregaram, profetizaram, operaram
milagres e expulsaram demônios no nome de Cristo... mas não foram
salvos. Jesus disse a eles: eu nunca vos conheci, apartai-vos de mim, vocês
que praticam a iniqüidade (v.23). Estes, portanto, provaram do poder e
bênçãos da nova aliança, mas pessoalmente não são atraídos, ligados,
abraçaram, amaram, guardaram, confiaram ou foram salvos pela morte
expiatória de Jesus como sua única esperança de vida eterna.  

Eles se tornaram participantes do Espírito Santo . Mesmo que a palavra


traduzida como participante possa certamente se referir a uma participação
salvífica em Cristo (cf. Hb 3.14), também pode referir-se a uma associação
ou participação sem união. Veja Lc 5.7; Hb 1.9 (companheiros ou
companhia). Estas pessoas vieram de certa forma a compartilhar algum
aspecto do Espírito Santo e seu ministério. Mas com base em que devemos
concluir que foi de uma forma salvífica? Por que nosso autor não usa uma
terminologia que colocaria a questão de seus estados espirituais sem
dúvidas, como cheios de, batizados no, ou habitados pelo Espírito Santo?

Eles em algum sentido se arrependeram. Existe uma tristeza pelos pecados


e arrependimento deles que mesmo incrédulos podem experimentar. Isto é
claro a partir de Hb 12.7, em referência a Esaú, também foi assim com o
arrependimento de Judas Iscariotes em Mateus 27.3. Paulo refere-se a um
arrependimento sem a tristeza que leva a salvação. A implicação parece ser
que existe um arrependimento que não leva à salvação. Como crença e fé,
da mesma forma com o arrependimento, devemos sempre distinguir entre o
que é substancial e salvífico por um lado, e por outro, o que é espúrio.

Wayne Grudem traz este resumo útil:

O que aconteceu a essas pessoas? Elas eram pelo menos


pessoas que estiveram afiliadas, de uma forma muito próxima, à
comunhão da igreja. Elas tiveram alguma tristeza pelo pecado e
uma decisão de abandoná-lo ( arrependimento ). Elas claramente
entenderam o Evangelho e tiveram alguma concordância com
isto (elas foram iluminadas ). Eles vieram a apreciar a beleza da
vida cristã e a mudança que vem sobre a vida das pessoas que
se tornam cristãs, elas provavelmente tiveram orações
respondidas em suas próprias vidas e sentiram o poder do
Espírito Santo trabalhar, talvez mesmo usaram alguns dons
espirituais (elas se tornaram associadas do trabalho do Espírito
Santo, ou se tornaram participantes do Espírito Santo e provaram
o dom celestial e os poderes do século futuro). Elas foram
expostas à verdadeira pregação da Palavra e apreciaram muitos
de seus ensinos (elas provaram a boa Palavra de Deus). Estes
fatores são todos positivos, e estas pessoas que
experimentaram estas coisas podem ser genuínos cristãos. Mas
estes fatores sozinhos não são o bastante para nos dar uma
evidência conclusiva de qualquer dos estágios iniciais decisivos
da vida cristã (regeneração, fé salvífica e arrependimento para a
vida, justificação, adoção, santificação inicial). De fato, essas
experiências são todas preliminares para aqueles estágios iniciais
decisivos da vida cristã. O estado espiritual real daqueles que
experimentaram essas coisas não é ainda claro (153).

Eu concluo que as pessoas descritas em 6.4-5 que, de acordo com v.6,


caíram, não são agora, e nunca foram crentes nascidos de novo. Não são
cristãos que perderam sua salvação.

Eu acredito que o estado e experiência espiritual daqueles descritos em


Hebreus 6.4-6 é virtualmente idêntico aos três primeiros dos quatro solos
da parábola do semeador (veja Mateus 13.3-23; Marcos 4.1-9; Lucas 8.4-
15). Nesta parábola, somente o quarto solo é chamado de bom e,
conseqüentemente, produz fruto. Os outros três representam aqueles que
ouviram o Evangelho e respondem com graus variantes de entendimento,
alegria e interesse. Nenhum deles, entretanto, produziu fruto que testificaria
uma vida espiritual genuína. Isto é dizer que eles experimentaram a
iluminação, provaram da excelência e poder do ministério do Espírito e das
bênçãos do reino. Ainda assim deram suas costas à verdade quando
dificuldades, problemas ou tentações apareceram em seus caminhos. Sua
apostasia foi a prova da falsidade de sua fé inicial (veja especialmente João
8.31; Hebreus 3.6,14; 1 João 2.19).

Traduzido por: Josaías Cardoso Ribeiro Jr.


Revisado por: Felipe Sabino de Araújo Neto
03 de Abril de 2005.

http://www.monergismo.com/
Este site da web é uma realização de
Felipe Sabino de Araújo Neto®
Proclamando o Evangelho Genuíno de CRISTO JESUS, que é o poder de DEUS para salvação de todo aquele que crê.

TOPO DA PÁGINA

Estamos às ordens para comentários e sugestões.

Livros Recomendados

Recomendamos os sites abaixo:

Academia Calvínia/Arquivo Spurgeon/ Arthur Pink / IPCB / Solano Portela /Textos da reforma / Thirdmill
Editora Cultura Cristã /Editora Fiel / Editora Os Puritanos / Editora PES / Editora Vida Nova

Você também pode gostar