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Luzes de Emergência.

Copyright © 2022 Julie Pedrosa. Todos os direitos reservados.


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Proibido o armazenamento e/ou a reprodução gratuita ou comercial desta obra sem a autorização da autora. É proibida a divulgação parcial da obra,
mesmo que de forma gratuita, sem os devidos créditos. Luzes de Emergência é uma obra de ficção, qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais é mera
coincidência.

Esta obra reproduz pequenos trechos de “Jingle Bells”, letra e música de James Lord Pierpont, 1857, se encontrando de acordo com o disposto no art.
46, VIII, da Lei n. 9.610/98.

Capa: Marcus Pallas


Ilustração contracapa: André Martuscelli
Diagramação: Julie Pedrosa
Imagens diagramação: freepick.com
Revisão: Caroline Sena
Para todos os ateus que começam a rezar quando o avião dá uma balançadinha.
Feliz Natal.
Capítulo 1

Elena Garbacio não deveria estar à bordo voo 3393.


Era dia 24 de dezembro. O voo de São Francisco para Londres
duraria dez longas horas, o que envolvia passar o Natal a mais de 30
mil pés de altura, sobrevoando o Polo Norte.
Elena não conseguiu dizer não para sua colega de apartamento
quando ela lhe pediu para substituí-la, então agora teria de passar
seu Natal a bordo. Sendo justa, a proposta não era de todo ruim.
Elena tinha motivos egoístas para não ter pensado duas vezes antes
de aceitar o voo 3393.
O interfone da galley dianteira tocou. A comissária sacudiu o
corpo para espantar o frio e atravessou o espaço minúsculo da
cozinha do avião. No caminho, fechou a cortina entreaberta que
separava a área dos comissários da cabine de passageiros, em
seguida colocou o interfone contra a orelha e cumprimentou a
comandante.
— Pode nos trazer algo quente para beber, srta. Garbacio? — A
voz de Amara era doce, quase uma prece. Ali estava o motivo real
para Elena ter aceitado trocar de voo.
Perguntou-se quais eram as chances da comandante aparecer
em seu quarto quando chegassem em Londres e desejou que
fossem grandes. Passar o Natal voando era, no mínimo,
desanimador, mas se na manhã seguinte estivesse sozinha na fria e
indiferente Londres, enterraria qualquer uma de suas esperanças de
ter um feriado digno e se permitiria lamentar até o Ano Novo.
— Chocolate quente ou café? — perguntou, pronunciando as
palavras em um inglês perfeito com um toque de sotaque brasileiro
que se recusava a perder.
— Dois chocolates, por favor.
Elena confirmou e desligou o interfone. Antes de preparar as
bebidas, seus olhos passaram pelos corredores da classe executiva,
verificando se havia algum sinal luminoso aceso que indicasse um
passageiro à espera de ser atendido. Para sua sorte, trabalhava com
uma equipe eficiente naquela noite e pôde seguir para o carrinho de
bebidas sem preocupação.
O relógio em seu pulso indicava que estavam próximos da meia
noite. No Brasil, aquele era o momento em que o Natal realmente
acontecia. Lembrava-se de sua mãe não deixar ninguém comer até a
virada e do desespero das crianças esperando o fim da oração para
devorarem tudo pela frente.
Enquanto servia as bebidas e pegava algumas bengalas
açucaradas como acompanhamento, Elena fez uma conta mental
para lembrar-se quanto tempo fazia desde que fora embora de casa.
Não conseguiu recordar, imaginava que estivesse entre onze e doze
anos — tempo o suficiente para se acostumar com a saudade,
exceto em dias como aquele.
Se conseguisse alguns dias a mais de folga, poderia visitar a
família, mas vinte e quatro horas não eram o suficiente para pegar
um voo para o Brasil e voltar a tempo de trabalhar no dia seguinte.
Já tinha sido chamada atenção por se atrasar em uma dessas
tentativas, não valia a pena tentar outra vez.
Equilibrou a bandeja em uma das mãos e com a outra afastou a
cortina que separava a galley do corredor para a cabine de comando.
Bateu duas vezes na porta e olhou para a câmera no canto da
parede, em seguida, entrou.
A imensidão da noite a pegou desprevenida, estava
acostumada a levar lanches para os pilotos e dar uma olhada na
vista, ainda assim, sempre se deslumbrava com os vidros que
cobriam toda a parte frontal do avião, quase em uma visão
panorâmica. As cores que o pôr do sol desenhava nas nuvens eram
lindas, mas Elena gostava especialmente do breu da noite, do
interior da aeronave iluminado apenas pelas estrelas.
A luz fraca e amarelada dos instrumentos de voo reluziam sob
Amara e seu co-piloto. Eles poderiam ter ligado as luzes brancas da
cabine, mas Elena imaginou que, assim como ela, quisessem
desfrutar das estrelas e do horizonte em um perfeito degradê de
azul.
— Elena. — Andrew, o co-piloto, sorriu em sua direção. Se
espreguiçou na cadeira e estendeu as mãos para ajudá-la com a
bandeja. — Como está o serviço de bordo?
— Já acabamos. — Elena entregou a xícara de Amara, seus
olhos castanhos demorando por mais tempo do que deveria na
mulher. — Tudo tranquilo, por enquanto.
Amara lhe direcionou um sorriso educado. Na escuridão da
cabine de comando sua pele negra cintilava em tons de dourado com
o reflexo dos instrumentos, deixando-a ainda mais bonita. Elena
desejou tocá-la, mas conteve seus impulsos. O último voo em que
estiveram juntas ainda estava impregnado em sua mente, precisaria
de pouco esforço para lembrar de seus beijos descendo por todo o
corpo da comandante e de como doera no dia seguinte descobrir que
Amara era casada — com um homem, ainda por cima.
Não entendia porque estava se mutilando com algo que não
podia ter. Nunca fora esse tipo de mulher, mas na solidão de uma
noite de Natal longe de casa, não seria difícil encontrar uma
justificativa para seus impulsos autodestrutivos. Morar no exterior era
solitário, ser comissária de bordo ainda mais, e valores morais se
perdiam em meio às decolagens e pousos. No fim, estava seguindo
o mesmo caminho de qualquer tripulante: encantar-se pelo mundo,
desencantar-se consigo mesma.
— Já que você está aqui, pode fazer companhia para a
comandante Nkosi enquanto vou ao banheiro, por gentileza? —
Andrew piscou para Elena, ergueu-se do espaço minúsculo
destinado ao co-piloto e tocou no ombro dela no caminho para a
saída.
A comissária olhou para Amara, que agora encarava o
horizonte, bebericando seu chocolate quente. Não tinha certeza se
Andrew tinha percebido o clima entre elas ou se apenas estava
sendo simpático. Apesar de morarem no mesmo complexo de
apartamentos, Elena não o conhecia o suficiente para prever suas
ações.
— Estamos passando pelo Polo Norte — Amara falou,
apontando com o queixo para o painel. Elena ficou feliz de ouvir sua
voz e se empertigou para enxergar a vista.
— Dá pra enxergar a casa do Papai Noel daqui? — brincou,
deixando a bandeja de lado para apoiar-se na cadeira vazia de
Andrew.
Amara soltou uma risada fraca e a olhou de soslaio.
— Não sei, fique atenta, de repente ele passa com o trenó. — A
comandante arqueou uma das sobrancelhas grossas.
— Já escutei comandantes falarem que viram naves espaciais e
OVNIS, o que seria o Papai Noel perto disso? — Elena deu de
ombros e passou a mão sobre a saia lápis, nervosa. O gorrinho de
Natal que usava estava escorregando pelos cabelos loiros, o pegou
entre as mãos e passou os dedos nos fios antes de devolvê-lo à
cabeça.
A comandante assistiu seu nervosismo, comprimiu os lábios e
deixou a xícara de lado.
— Até um tempo atrás diziam que era impossível um avião alçar
voos tão altos, e aqui estamos. — Pela primeira vez Amara não
desviou o olhar. — O impossível só é impossível até alguém
acreditar que é possível.
— Que frase mais mal feita. — A comissária abriu um sorriso,
mostrando que havia entendido o que ela queria dizer. Sentiu um
peso sair de seus ombros ao ter os olhos de Amara sobre si, e
percebeu, só naquele momento, que temia ela estar chateada com
algo do que havia acontecido, ainda que não tivesse feito nada de
errado.
Elena deveria estar chateada, não o contrário.
— Não quis passar o Natal em casa? — Amara passou a mão
pelos cabelos crespos repuxados para trás em um coque tão firme
que deveria estar doendo sua cabeça. — Seu nome não estava na
escala.
— Está procurando meu nome nas escalas, Amara? — A frase
saiu como um suplício. Elena não desejava soar tão desesperada,
então emendou outro assunto como se não importasse. — Não tem
ninguém me esperando em casa e minha amiga arranjou um novo
namorado, queria passar o Natal com ele. Foi uma troca justa.
Sua frase não passou despercebida, os olhos escuros da
comandante correram pelo seu rosto, pelos fios de cabelo loiro que
escapavam do coque e pelo uniforme bem passado. Os lábios
carnudos de Amara abriram, dispostos a respondê-la, mas um aviso
luminoso impeliu pelo ar antes que a comandante pudesse falar.
A cabine de comando encheu-se de uma luz vermelha que
acendia e apagava sem parar, a voz robótica de aviso sonoro dizia
fuel repetidas vezes. Amara encarou o painel, a testa franzida em
incompreensão e um pouco de desespero. Elena sentiu a angústia
crescer no peito e sua mente logo tratou de convencê-la de que
deveria ser algo simples de resolver, que Amara tinha o controle.
Além disso, estava treinada para momentos como aquele.
Precisava manter a calma.
— O que está acontecendo? — perguntou, segurando-se na
cadeira de Andrew para manter o equilíbrio.
A vista do horizonte passou a mudar sem que ninguém
houvesse movido o manche. Mesmo com seu conhecimento básico
sobre pilotagem, Elena entendeu que algo estava interferindo na
estabilidade do avião.
— O combustível congelou. — Amara estava com a face
torcida, as mãos segurando o manche a ponto de os nós dos dedos
ficarem brancos. Sua postura deixou evidente que não entendia o
porquê aquilo acontecia, e a forma como seus olhos buscaram dados
no computador de bordo mostraram que também não sabia ao certo
como resolver. O problema estava além do combustível congelado,
Elena concluiu. Caso contrário, Amara não teria dificuldade em
resolver. — Chame o Andrew e mande todo mundo sentar e atar os
cintos.
Elena assentiu e saiu aos tropeços da cabine de comando. Do
lado de fora, percebeu que a turbulência era muito maior na área de
passageiros do que no bico da aeronave. Segurando-se nos
bagageiros superiores, caminhou pelos corredores pedindo
desculpas cada vez que o sacudir a fazia esbarrar em alguém.
O aviso de atar cintos já cintilava pela aeronave antes mesmo
dela chegar ao fim do corredor. Os passageiros a paravam,
perguntando o que estava acontecendo e Elena mentia
deliberadamente sobre estarem passando por uma área de
turbulência. Os mais medrosos agarravam-se contra os apoios de
braço das poltronas e alguns soltavam gritos engasgados cada vez
que um solavanco atingia o avião.
Enquanto procurava por Andrew com os olhos, pedia de forma
robótica para os passageiros sentarem, pensando que ela mesma
precisava manter-se segura o mais rápido possível. Um grupo de
senhoras rezava em um canto, ao mesmo tempo em que alguns
homens insistiam em pegar algo nos bagageiros e ir ao banheiro,
alheios à turbulência e aos problemas que poderiam causar a si
mesmos se não se protegessem.
Uma parcela de passageiros temia por suas vidas, enquanto o
restante flertava com o perigo.
O co-piloto saiu da galley da classe econômica premium,
localizada no centro da aeronave. Pelo olhar de culpa que carregava,
era provável que tivesse se distraído ao conversar com as
comissárias. Quando passou por ela, Andrew não se preocupou em
saber o que aconteceu, apenas murmurou com a voz baixa para que
fosse sentar.
Com o aumento do chacoalhar do avião, não foi preciso muito
mais para que os passageiros finalmente obedecessem a ordem de
atar os cintos. Os gritos começaram a se tornar constantes e preces
silenciosas dispararam em formato de murmúrios pela aeronave.
Elena tinha dificuldade em se concentrar, seus pensamentos
aceleravam e, junto do barulho dentro da cabine, tornavam-se um
turbilhão insuportável.
Cogitou voltar para a galley da classe executiva, como chefe de
cabine do voo, temia que os comissários subordinados a ela
precisassem de assistência. Entretanto, seria imprudente continuar
andando em uma turbulência como aquela. Torceu que o treinamento
da LivrAir fosse o suficiente caso precisassem e se apressou até os
assentos dos comissários da classe econômica premium.
Atou o cinto de quatro pontas e vasculhou a galley com os olhos
para confirmar de que os carrinhos de comida estavam todos presos
e que nada se soltaria e os mataria sufocados contra as paredes do
avião. Ainda estava traumatizada pelo caso de uma comissária da
companhia que foi esmagada durante uma turbulência, ela estava
viva, mas Elena não queria ter a mesma experiência.
Ao seu lado uma garota recém promovida tremia, era uma
jovem francesa sem muita experiência. Pelo pouco que Elena havia
conversado com ela na sala de briefing, imaginava que estava
vivendo os dias de comissária exatamente como todas as outras
meninas da sua idade faziam ao entrar em uma companhia área:
festas, sexo e compras internacionais.
Não podia culpá-la, quando era mais nova e estava encantada
com a vida de comissária, ela própria tinha se esquecido que o
trabalho que exercia era muito mais que servir bebidas à 30 mil pés
de altitude. No meio da boêmia e por trás do luxo, existia uma
profissão que visava, acima de tudo, a segurança a bordo; esquecer-
se disso era fácil demais quando o número de acidentes aéreos era
uma raridade.
Um solavanco as fez pular no assento. Berna, a comissária
responsável pela classe econômica premium, estava sentada à
frente delas e olhou para as janelas de emergência mais próximas. O
céu escuro do Polo Norte continuava a acomodá-las em seu breu.
Elena segurou o cinto em seu peito, os olhos castanhos percorrendo
os corredores para se certificar de que nenhum passageiro louco
levantou de sua cadeira.
Quando um segundo solavanco as atingiu, a comissária ao seu
lado colocou a mão sobre a sua e a apertou. Elena procurou pelo
nome dela no crachá e lhe deu um sorriso complacente.
— Vai ficar tudo bem, Amélie — disse com convicção, ainda que
não tivesse tanta certeza do que dizia.
Não era um medo irracional. Elena percebeu o pavor nos olhos
da menina e da outra comissária. Entre os gritos dos passageiros era
difícil comunicar-se, mas o desespero que se desenhou no rosto de
cada uma era o suficiente para entender que aquela não era uma
turbulência normal. Comissários estavam acostumados com
turbulências, sabiam identificar quando algo saia do padrão porque
voavam dia e noite, mais vezes do que qualquer ser humano voaria
durante sua vida. O modo como aquela aeronave as jogava para
cima e para baixo era o presságio de algo muito pior.
As sacudidas cessaram por um momento e Elena repassou em
sua mente os procedimentos de emergência para um pouso forçado
no gelo, sabia que Berna e Amélie faziam o mesmo. Uma
sobrevivência no Polo Norte era a mais improvável, as temperaturas
seriam insuportáveis e, com os berros dos passageiros, mal
conseguia pensar de que forma manteria aquelas mais de trezentas
pessoas a bordo vivas.
O barulho do interfone quebrou a prece tácita que as
comissárias faziam ao olhar umas para as outras. Elena tomou a
iniciativa de atender o interfone.
— Comissária Garbacio, comandante.
— Elena. — A voz de Amara estava trêmula e era possível
escutar os avisos sonoros misturando-se em um caos agonizante no
fundo da chamada. — Nosso sistema de degelo e de troca de calor
do combustível estão em pane. Por conta disso, o combustível
começou a congelar. Isso nem sequer deveria ser possível… — Sua
voz falhou, a última frase foi dita baixa e cheia de frustração. —
Estamos perdendo a sustentação com o gelo acumulado nas asas e
no motor, além disso, o sensor de velocidade também está
congelado, de forma que não consigo ter o controle das informações
fornecidas pelo computador de bordo, estão todas incoerentes e não
consigo reverter. Contactei o aeroporto mais próximo, mas não
acredito que seremos capazes de chegar lá.
Houve um curto momento de silêncio na linha antes de Amara
continuar a falar. Desta vez, com a voz mais firme, as ordens
atravessando o interfone até Elena.
— Faremos um pouso de emergência no Polo Norte em
aproximadamente quinze minutos. As partes mais afetadas serão a
frente e asas. Irei comunicar os passageiros. Por favor, prepare a
tripulação para impacto, darei a ordem via porta-voz e a ordem será
“tripulação, impacto”. Confirme tudo que ouviu.
Elena olhou para as outras comissárias, Berna havia parado de
rezar e agora lhe encarava. Sentiu um nó em sua garganta, mas
repetiu as informações de Amara, palavra por palavra, analisando o
olhar de choque e desespero de suas colegas preencherem a galley
da classe econômica premium.
— Me dê cinco minutos para posicionar toda a equipe nos
corredores antes de fazer seu speech — pediu a Amara.
— Cinco minutos, vou esperar seu sinal pelo interfone. Tentarei
estabilizar a aeronave ao máximo diminuindo nossa altitude — ela
respondeu com a voz endurecida, séria. A comissária estava prestes
a desligar a ligação quando a comandante a chamou. — Elena…
Esperou que ela dissesse algo relacionado à emergência, mas o
que surgiu entre elas foi o silêncio ensurdecedor. Tudo que podia
ouvir na linha eram os avisos sonoros da cabine de comando e o
grito dos passageiros ao fundo da ligação, mas seus ouvidos
taparam o caos como se pudesse focar apenas na voz da
comandante. A respiração de Amara entrecortou-se, um suspiro
escapando de seus lábios. Demorou dois segundos para os ombros
de Elena caírem e o coração apertar, dando-se conta do que a
comandante, de fato, queria dizer.
Amara queria pronunciar palavras que não podia, expor desejos
que jamais fariam parte de sua realidade. Em nada tinha relação com
os procedimentos de emergência. Elena ficou feliz de saber que o
sentimento que tinham vivido juntas, ainda que breve, não foi criação
de sua mente. Tinha sido real.
— Eu sei — respondeu, quebrando o silêncio entre elas. — Vai
ficar tudo bem.
— Cinco minutos.
Elena assentiu, ainda que a comandante não pudesse vê-la.
Devolveu o interfone para o lugar e virou-se para a equipe de
comissários que a observava.
— Estamos em uma real situação de emergência — disse, os
solavancos do avião deixando sua voz entrecortada. — Em quatorze
minutos faremos um pouso de emergência no Polo Norte, as áreas
mais afetadas serão frente e asas. — Elena não conseguia acreditar
que aquelas palavras estavam saindo de seus lábios, era cômico,
imoral, impossível. O rosto de Berna e Amélie refletia o seu próprio
espanto. — A comandante vai avisar os passageiros e a ordem para
que assumamos a posição de impacto será “tripulação, impacto”, via
porta-voz. Peço que se organizem nos corredores para o aviso da
comandante. Comissária Berna, pode tomar o controle por aqui?
Preciso voltar para o meu posto e avisar a tripulação da econômica.
A outra mulher assentiu, tomando um posto mais ativo que sua
reza anterior. Elena não estava certa se ela poderia dar conta
daquela situação, mas como comissária sênior e chefe de cabine
daquele voo, seu papel ia além da classe econômica premium.
Precisava comandar outros oito tripulantes espalhados por aquele
avião.
Berna abriu os cintos e levantou-se, dando sinal para que
Amélie fizesse o mesmo. Elena as acompanhou com os gestos mais
apressados e disparou pelos corredores da aeronave, se esquivando
dos passageiros que agarravam seus pulsos e a puxavam para perto
para perguntar o que estava acontecendo. A maioria tremia,
tocavam-lhe com as mãos geladas e tentavam ser ouvidos em meio
aos gritos. Elena se desvencilhou com delicadeza de seus toques e
garantiu que em breve a comandante explicaria a situação. Antes de
entrar na classe executiva, olhou para trás uma última vez, a tempo
de ver Berna organizando-se para as demonstrações de emergência.
Conferiu o relógio, ainda tinha alguns minutos para organizar
sua equipe. Estava sem ar quando chegou à galley e reuniu as duas
comissárias que trabalhavam com ela. Elena estava há dois anos
como comissária da classe executiva e, em outras aeronaves
maiores, como comissária da primeira classe. Mas ser chefe de
cabine era algo novo, era estranho ter todos aqueles comissários à
espera de uma ordem sua.
Repetiu o mesmo discurso que fizera antes, mas desta vez para
as comissárias da classe executiva. Estas, por sua vez, reagiram de
forma mais corajosa e assertiva diante do anúncio de um pouso
forçado que as outras duas. Talvez, Elena pensou, tivesse algo a ver
com o fato de que na executiva estavam acostumadas a lidar com os
passageiros mais insuportáveis, aqueles que achavam que eram
Deus, muito melhores que elas ou qualquer um naquele avião —
enfrentavam uma amostra grátis do inferno todos os dias.
Entretanto, os comissários na classe econômica mostraram-se
mais ansiosos que todos. Elena teve que garanti-los que o
treinamento da LivrAir os preparava para situações como aquela e
que tinham tudo sob controle. Seus cérebros sabiam quais decisões
tomar, quais eram os procedimentos, tinham treinado
incansavelmente para em caso de emergência se adequarem como
robôs à situação, para terem o manual de sobrevivência na ponta da
língua e as mãos ágeis preparadas para enfrentar os terrores de uma
acidente aéreo.
Elena precisou repetir para si mesma que não estava mentindo.
Tinha, sim, tudo sob controle.
Apesar da turbulência ter diminuído, Elena ainda tinha
dificuldade de manter-se em pé. O avião empinava como se
estivesse preparando-se para o pouso, mas a tripulação sentia em
sua pele que não era o caso. Ao fim dos cinco minutos que pediu a
Amara, estavam todos os comissários nos corredores: da classe
executiva, econômica premium e econômica.
A tripulação entreolhou-se, as palavras não ditas perdidas em
meio ao chacoalhar do avião. O estômago de Elena revirava, um frio
ansioso subindo por sua barriga. As chances de sobreviver a um
pouso forçado no Polo Norte eram quase nulas. Se a queda bruta
com o impacto das calotas de gelo não os matasse, seria o frio
agonizante que viria em seguida ou a falta de suprimentos ao longo
dos dias. Existia uma gama de fatores que os tornava propícios para
o extermínio e quase nenhuma esperança em meio a eles.
Deu um sinal via interfone para Amara e, no segundo seguinte,
sua voz chiada por conta da interferência do alto-falante disparou por
todo o avião. As luzes da cabine se acenderam, acordando aqueles
que ainda não haviam sido despertados pelo balançar do avião e
movimentação dos tripulantes.
— Senhores passageiros, venho informar que estamos em uma
emergência devido a uma pane no sistema de degelo.
Os gritos dos passageiros reverberaram pela cabine, Elena se
esforçou para pedir-lhes calma e que escutassem a comandante,
mas os clientes da classe executiva costumavam ser exigentes e
acreditar que mesmo em meio às nuvens eram melhores que os
outros e mereciam tratamento diferenciado. Foi incisiva com alguns
deles, o que os calou por um momento.
— Peço calma aos senhores, — Amara continuou. — nossa
tripulação é altamente preparada para esse tipo de situação, a partir
de agora acatem a todas as ordens dos tripulantes.
A voz finalizou, permanecendo apenas os gritos e vozes
desesperadas dos passageiros. Elena puxou o interfone de contato
com a cabine e respirou fundo antes de iniciar seu discurso de
emergência.
— Senhoras e senhores, atenção. Quem lhes fala é a chefe de
cabine deste voo, Elena Garbacio. — Engoliu em seco, desejou
poder falar aquelas palavras em português, seu nervosismo e
ansiedade estavam deixando seu sotaque muito forte, mas por sorte
ainda compreensível. — Necessitamos de sua cooperação, portanto
ouçam atentamente nossas orientações. — Entre os passageiros,
alguém gritou pedindo por silêncio. A histeria coletiva tornava difícil a
compreensão. Elena ergueu a voz, tremendo não ser ouvida. —
Retornem imediatamente para seus assentos e, se possível, ocupem
as poltronas do corredor. Iniciaremos a preparação da cabine. Os
comissários efetuarão o recolhimento de copos, papéis, embalagens,
jornais e outros objetos. Coloquem suas bagagens de mão nos
compartimentos acima de seus assentos e se elas não couberem,
deixem-nas no corredor que os comissários irão recolhê-las e
guardá-las.
A movimentação na cabine já se iniciava. Um bruto chacoalhar
jogou Elena contra a parede. Usou das poltronas para se manter
firme e segurou o interfone com mais força.
— Coloque o encosto de suas poltronas para a posição vertical,
fechem e travem suas mesas e apertem seus cintos de segurança.
— sua voz falhou por um momento, pigarreou, sentindo a garganta
doer. — Precisaremos da ajuda de algumas pessoas. Tripulantes ou
funcionários LivrAir, policiais, militares ou bombeiros, identifiquem-se
aos comissários.
Continuou seu discurso esforçando-se para respirar. Quando
terminou, devolveu o interfone ao apoio e verificou o andamento da
cabine, sempre de olho no relógio.
Os comissários a olhavam quando passava, como se pudessem
achar alguma esperança a qual se agarrar em seus olhos, e apesar
de Elena sempre ter sido otimista — o jeitinho brasileiro que a equipe
costumava exaltar —, não tinha como manter muita esperança em
uma situação como aquela.
Parou nas janelas de emergência e perguntou se os
passageiros ali sentados sentiam-se aptos a abri-las, os dois
negaram e Elena teve de trocá-los de lugar, passou os próximos
minutos realocando-os e ensinando os passageiros as posições de
impacto que poderiam adotar na hora do pouso, assim como também
o modo de abrir as janelas de emergência. Pediu às mulheres com
crianças de colo que protegessem seus filhos com seu corpo e por
último permaneceu nos corredores, junto de seus colegas, para a
demonstração de emergência.
Quando o procedimento finalizou, restavam dois minutos para o
pouso. Elena sentia a aeronave perdendo altitude bruscamente,
trazendo um frio que descia por seu estômago e alojava-se na
barriga. O sufoco tomou seus pulmões à medida que o avião
despencou no ar, cada solavanco soando como se alguém os
empurrasse para baixo. Se Elena fosse cristã, questionaria se não
estavam sendo castigados e puxados para o centro do inferno.
Diminuiu as luzes da cabine e falou uma última vez com os
passageiros, lembrando-os da posição de impacto e do sinal. Nos
últimos minutos, o avião já voltava a balançar de forma
desgovernada, de modo que tornava-se impossível manter-se em pé
na cabine. Elena sentou-se em seu assento, atou o cinto de quatro
pontas e pegou o interfone, verificando cada galley e classe até que
todas estivessem prontas para o pouso. Faltava um minuto. Desejou
beber água para fazer a bola de angústia que havia se formado em
sua garganta descer, mas em vez disso apertou o botão para o
porta-voz da cabine de comando.
— Comandante. — Elena umedeceu os lábios secos, fechou os
olhos e suspirou. — Estamos preparados para o pouso forçado.
Amara não respondeu, mas também não precisava. Elena sabia
que se o caos na cabine dos passageiros estava grande, dentro da
cabine de comando deveria estar muito pior. Devolveu o interfone
para o local e esperou em silêncio o anúncio de suas mortes quebrar
os gritos e orações.
Escutou uma criança cantando Jingle Bell enquanto era
agarrada pelos braços da mãe. Pronunciava cada refrão como uma
prece, um desejo de Natal em meio àquele pesadelo. Era mórbido e
assustador o modo como sua voz esganiçada e infantil preenchia a
cabine, sobrepondo todo o desespero dos gritos e lamúrias.
A voz da comandante foi ouvida logo em seguida, a frase que
Elena escutara tantas vezes em seu treinamento reverberando como
um anúncio fúnebre.
— Tripulação, posição de impacto.
Todos os comissários na cabine de passageiros repetiram a
ordem: posição de impacto, posição de impacto. As vozes gritando
em uníssono, repetidamente, pareciam ter vindo de um filme de
terror. Elena gritava e perguntava-se ao mesmo tempo se o
treinamento era o suficiente, se poderiam sair dali com vida. Fizera
tudo até aquele momento de forma robótica, ensaiada, assim como
fizera tantas vezes durante os treinamentos, mas sua mente ainda
não entendia que aquele era um cenário real. O inferno não se
encerraria com uma palavra animadora de sua professora,
elogiando-os pela encenação bem sucedida.
O avião despencou do céu em meio aos gritos de desespero e
pedidos de socorro, um solavanco brutal jogou Elena para frente e
depois para trás. As luzes da cabine piscavam como as luzes de
Natal que desejava ver ao chegar em Londres, só para em seguida
serem sugados pelo breu e caírem pelos céus em um pandemônio
de lamentação.
Com a pressão descomunal esmagando a sua caixa torácica,
ninguém era capaz de gritar. O silêncio disparou pela aeronave ao
mesmo tempo em que os ouvidos de Elena estouraram com o
barulho da carcaça do avião se partindo, as asas sendo deixadas no
caminho. Não sabia se seus olhos estavam fechados ou se o breu da
noite a consumira, se estava viva ou se sua alma já pairava entre as
nuvens.
Um feixe de luz surgiu em meio a uma faísca de fogo e Elena
ergueu os olhos no momento em que a cauda do avião foi sugada
pela escuridão da noite, junto com as poltronas traseiras e os
passageiros sentados nela. Assistiu os corpos serem consumidos
pela pressão da queda, as bagagens abrirem-se e voarem por todo o
céu. Atrás de si algo bateu contra o bico do avião e empurrou seu
corpo para frente, o cinto a pressionando tão forte que a sufocou.
O impacto a deixou desnorteada. As pancadas a jogaram para
trás e esmagaram sua caixa torácica contra o assento outra vez. Foi
tudo tão rápido que Elena pensou ter perdido a consciência por um
segundo e acordado no seguinte, sem fôlego, com o corpo dolorido e
sangue coagulado em sua nuca misturando-se com os fios de cabelo
loiro.
Quando o contato com o gelo passou a diminuir a velocidade da
aeronave, o solavanco lhe devolveu a capacidade de gritar, mas não
sabia se estava dando ordens para os passageiros permanecerem
sentados ou se estava apenas implorando por misericórdia. Tudo
parou e ela continuou berrando a mesma ordem em plenos pulmões
como se fosse adiantar de alguma coisa: permaneçam sentados.
Os gritos rasgavam sua garganta, disparavam pela mucosa
como lâminas afiadas e o frio do Polo Norte entrava pelas narinas
como veneno, ardendo no percurso e congelando-a por dentro.
Elena inspirou uma última vez e segurou a respiração ao abrir o cinto
com as mãos trêmulas e correr para as portas, abrindo-as e ativando
os escorregadores de emergência.
— Tirem os cintos e saiam! — A ordem já estava sendo dada
pelos outros comissários, suas vozes retumbantes e em coro se
sobressaíam aos berros, choros e súplicas dos passageiros. Parada
na porta de saída, Elena também gritava repetidas vezes: — Salta e
escorrega!
Puxou uma das comissárias da classe executiva pelo braço e a
deixou em seu lugar. O fluxo de passageiros pedindo socorro e
saltando pelos escorregadores a impedia de entrar nos corredores,
mas Elena conseguiu alcançar os kits de sobrevivência nos primeiros
compartimentos para bagagem e entregou para a primeira
comissária que viu, ordenando que saltasse. Em menos de um
minuto os passageiros que eram capazes de andar estavam fora da
aeronave, exatamente como o treinamento os ensinara a fazer.
— Tem alguém aí? — gritou pelos corredores. Os outros
comissários a acompanhavam em coro, pegando os suprimentos, o
extintor de incêndio e os kits de sobrevivência espalhados pela
aeronave.
Elena viu pessoas desacordadas ainda sentadas em seus
assentos e tentou acordá-las com sacudidas brutas e gritos de
ordem. Alguns estavam jogados como se estivessem em um sono
cruel, outros torciam-se com fraturas expostas e ferimentos
irreversíveis. Não estavam vivos. Continuou pelos corredores,
tentando captar algum gemido ou pedido de ajuda, mas o
procedimento era insensível quanto aquilo, em uma emergência
salvava o que era possível, não o que desejava. Precisava ser rápida
e sair da aeronave.
Ajudou os feridos entre os destroços a serem arrastados pelo
carpete até as escorregadeiras. Posicionou-os entre os comissários
de forma que escorregassem juntos para fora da aeronave e ordenou
que sua equipe saltasse. Elena os observou descer, o frio subindo
por seus braços e tornando a pele dormente.
Antes de deslizar pelo escorregador de emergência, olhou para
a cabine de comando.
Alguém de sua equipe a chamava do lado de fora, em meio aos
gritos e choros dos sobreviventes, mas nada daquilo importava.
Tinha cumprido com o procedimento, mas Amara não estava do lado
de fora, Elena precisava se certificar de que ela não estava presa
dentro da cabine.
Jogou seu corpo contra a porta de ligação da cabine de
comando com a dos passageiros. Algo pesado impedia sua entrada,
Elena afastou o próprio corpo e tentou mais uma vez, ao que a porta
cedeu.
O vidro do painel da aeronave tinha explodido, a neve entrava
pelas frestas e se apossava do que via no caminho. Os olhos da
comissária foram de imediato para Andrew, o primeiro em seu campo
de visão. Um pedaço pontudo e grosso de vidro perfurou seu
cérebro, alocando-se entre seus olhos e fazendo com que o sangue
escorresse pelo seu rosto e corpo como uma pintura sádica. Cristais
de gelo descansavam em seus olhos abertos, congelados em uma
expressão de pânico. Pintavam a neve que o cobria de vermelho.
Um grunhido baixo a trouxe de volta para seu objetivo, Elena
olhou para Amara, imprensada contra o manche, com uma tonelada
de neve cobrindo seu torso. O vidro também a havia alcançado e
estava fincado em seu ombro, impedindo-a de se mover.
Mas estava viva.
— Vou tirar você daí — falou para a comandante, que abriu os
olhos de forma débil e encarou Elena sem qualquer resquício de
esperança nos orbes.
A comissária fez uma prece baixa enquanto afastava a neve
com as mãos descobertas, o gelo queimava seus dedos e agora que
encarava a temperatura ártica sentia seu corpo travar, as mãos não
obedeciam às ordens, anestesiadas como se as juntas precisassem
de óleo para se mover. Com dificuldade, livrou-se o suficiente da
neve para tirar o cinto de Amara e enfiar as mãos em suas costas
para içá-la. A mulher gemeu, ergueu uma das mãos até o antebraço
de Elena como quem pede para parar e murmurou algo
incompreensível para a comissária.
Os olhos de Elena estavam cheios de lágrimas, o vento frio que
entrava pelas janelas quebradas ardia sua córnea e o sangue
escorrendo do ombro de sua amada cortava-lhe o coração. Amara
fechou os olhos outra vez e suspirou antes de falar.
— O rádio. — Sua voz rouca arranhava na fala, mas Elena não
precisou que ela falasse uma segunda vez. Procurou os fones
jogados em meio a neve, seus dedos partindo do vermelho sangue,
em carne viva, para uma cor azulada que certamente significava a
morte gradual de seus tecidos e músculos.
— Qual a frequência da rádio?
A comandante parecia esforçar-se para manter os olhos abertos
e permanecer acordada, balbuciou algum número que Elena não
entendeu, e quanto mais a comissária perguntava, sua voz elevando-
se a cada vez que não era respondida, menos adiantava.
Não sentia mais seus dedos enquanto tentava forçá-los a mudar
a frequência do rádio para encontrar algum sinal. O painel estava
apagado, não havia energia no avião, e demorou-lhe dois segundos
para perceber que não importava a frequência, o rádio também não
funcionava mais.
— Porra! — gritou em português, largando os fones sobre a
neve e enfiando as mãos por debaixo de Amara. Estava desmaiada
e Elena aproveitou que já não tinha mais forças para berrar ou
reclamar, para içá-la do assento e arrastá-la para fora da aeronave.
Não houve explosão, nem incêndio. Elena olhou em volta antes
de descer pela escorregadeira com Amara entre as pernas e tudo
que viu foi a fumaça que saía da aeronave dispersando-se pelo ar
com o frio da noite, os gritos de desalento em meio ao gelo
abraçando-as durante a queda. Elena tremia e sabia que se não se
agasalhasse, não demoraria muito para morrer de hipotermia, mas
enquanto seus olhos estavam em Amara, desacordada em seus
braços, a morte parecia perder um pouco da importância, como se
pudesse suportar um pouco mais, por ela.
A tripulação a recebeu quando seu corpo afundou no gelo.
Moveram-se com rapidez para tirar a comandante de seus braços e
colocá-la junto dos outros feridos. Elena tremia, o gelo queimou-lhe
os braços e, se não fosse pelos agasalhos que se apressaram em
colocar sobre ela, sentia que poderia ter desmaiado pelo frio.
Enxergava a neve acumulando-se em seus cílios. A dor em
suas mãos e pés era dilacerante, quase como se houvessem cortado
o membro fora sem qualquer anestesia. Respirou fundo e o ar que
entrou em seus pulmões a perfurou como uma lâmina congelada.
O olhar perdido pousou no grupo de sobreviventes. Em meio
aos passageiros jogados sobre o gelo com fraturas expostas,
pessoas empaladas vivas e crianças com as cabeças jorrando
sangue, Berna reanimava uma moça jovem demais para estar morta
em meio aos destroços daquela aeronave. Não muito longe, a
criança ainda cantava, agora mais baixo, a melodia de Jingle Bells.
Sua voz se perdia com os ventos gelados e o bater de seus dentes
deixava as palavras emboladas.
Um choro baixo, próximo demais para que lhe chamasse a
atenção a fez olhar para uma criança a pouco menos de um metro
de distância. Os destroços da aeronave tinham esmagado seus
braços e pernas, os ossos saltavam para fora, cortando a pele e a
roupa. Demorou a perceber que o choro não era do neném, mas da
mãe, parada ao seu lado, viva, com os olhos fitando a escuridão da
noite polar. Por mais que respirasse, as lesões em sua alma
pareciam demasiadas profundas para que ela aguentasse muito
mais.
Desejou que aquela criança, antes de morrer, tivesse pedido ao
Papai Noel que sobrevivessem. Desejou que qualquer um que
tivesse fé em algo, intercedesse por eles, porque Elena não era
capaz de fazê-lo, era cética demais para manter-se otimista.
Os olhos de Berna encontraram os seus, só então Elena
percebeu que a maioria dos tripulantes a observava, à espera de
ordens, de esperança.
Amara deveria comandá-los. Pela hierarquia, ela era a
comandante e em caso de emergência deveria ser a responsável por
liderar a tripulação. Só na incapacidade de Amara e Andrew é que
Elena tomaria a dianteira.
Tudo estava errado. Fitou os orbes suplicantes de Berna, a
desesperança expressa neles, enquanto tentava reanimar aquela
garota, era replicada no olhar de cada sobrevivente.
Esperavam por palavras de esperança que Elena não tinha para
dar.
Capítulo 2

O Polo Norte era um inferno branco de ventos furiosos.


Os passageiros e tripulantes em melhores condições de saúde
mobilizaram-se para retirar as bagagens dos compartimentos de
carga e de dentro da aeronave. Em minutos, distribuiam roupas e as
utilizavam de formas criativas para lidar com o frio glacial. Elena
usou camisas para cobrir as orelhas e cabelo, passou o cachecol
pelo queixo e enfiou os pés em botas. Depois de alguns minutos,
seus dedos já não pareciam estar prestes a cair, mas continuavam
sensíveis por debaixo das camadas de roupa.
Os tripulantes ainda a olhavam à espera de um milagre, mas
tudo que Elena tinha para oferecer era o plano de acionar o
radiofarol de emergência, prestar os primeiros socorros às vítimas do
acidente, reunir os demais recursos de sinalização e em seguida
seguir para o AFA + A (abrigo, fogo, água e alimento), enquanto
esperava por resgate.
Dos 324 passageiros a bordo, Elena estimava que menos de
100 estivessem fora da aeronave. Precisariam retirar os corpos de
dentro do avião para utilizar a fuselagem como abrigo, mas com a
quantidade mínima de pessoas sem ferimentos, tudo se tornava mais
lento de ser feito.
Separou em equipes os sobreviventes em condições de mover-
se e ajudar, e colocou tripulantes para liderá-los. Sua tripulação tinha
tido baixas evidentes, restava apenas Berna, Amélie e as duas
comissárias de executiva. Com a perda da traseira da aeronave
todos que estavam nas galleys traseiras da econômica foram
levados para longe, junto com os destroços. A possibilidade de que
estivessem vivos era a mesma de sobreviverem mais do que um dia
no Polo Norte: quase nula.
Berna estava à frente da equipe de primeiros socorros, fazendo
o impossível para manter vivos os que restaram, mas os ferimentos
de muitos não apresentava bom prognóstico e, no meio do gelo, as
crianças eram as primeiras a sucumbir ao frio de 40 graus negativos.
Elena apoiou as costas na fuselagem da aeronave, respirando fundo
e soprando o ar gelado que saía de seus pulmões contra as mãos
cobertas.
Os sobreviventes gritavam e, em meio a imensidão das calotas
geladas do Polo Norte, seus suplícios se perdiam no ar. Elena tentou
acalmar o próprio coração, cada lufada de ar que respirava a
congelava por dentro, tornando difícil mover-se e até mesmo respirar.
Lembrou-se de como reclamou dos mosquitos em seus treinamento
para sobrevivência na selva, e ainda assim desejou ter caído em
qualquer outro lugar, que não no meio do gelo.
Na mata não morreriam de frio em poucos dias, haveria animais
para caça e existiria a possibilidade de ser encontrado com maior
facilidade. Com a neve que caía dos céus e cobria seus cabelos e
roupa, duvidava que alguma equipe de resgate fosse capaz de
encontrá-los com rapidez. Eles chegariam, mas Elena temia que
chegassem tarde demais.
O ser humano não fora projetado para suportar temperaturas
como as do Polo Norte, ainda mais uma brasileira como ela.
Balançou a cabeça em negação, precisava ter a mente limpa e sã
para sobreviver, mas seu cérebro só se concentrava em seu corpo
trêmulo e em como uma atividade tão simples quanto respirar
parecia lhe tomar toda a energia.
Olhou para dois rapazes próximos de si, abrindo as malas em
meio a neve. Estavam vermelhos e sacudiam os braços a cada
movimento, em uma tentativa de espantar a sensação de anestesia
que se alojava nos músculos. Quanto tempo demoraria para que
sucumbissem às condições climáticas extremas daquele lugar e
falecessem?
Elena levantou, recusando-se a pensar em um cenário tão
negativo. Pessoas já haviam sobrevivido aos Andes, eles poderiam
sobreviver ao Polo Norte.
As chances do avião explodir eram quase nulas, considerando
que Amara havia dito a eles que o combustível congelara ainda em
ar. Elena não se lembrava qual era o ponto de congelamento da
gasolina aeronáutica, mas devia estar entre 34 graus negativos ou
algo próximo disso. Se quisessem utilizar o combustível para criar
fogo, precisariam se esforçar. Por enquanto, era seguro utilizar a
fuselagem como corta-vento para proteger os feridos.
— Você está mancando. — Berna deixou uma comissária
cuidando da fratura exposta de um passageiro e se aproximou da
colega de trabalho. Elena estendeu um casaco grosso que tinha
pego em uma das malas para ela e a ajudou a colocar sob os
ombros. — Fraturou algo?
— Não. — Sua voz saiu abafada, um cachecol pesado cobria os
lábios. — Não foi nada de mais, não se preocupe. — Deixou uma
pilha de casacos que havia separado nas mãos de Berna. —
Distribua entre os doentes. Vou procurar o rádio de emergência.
— A traseira da aeronave está distante, talvez seja melhor outra
pessoa ir. Ou ir acompanhada.
— Não. — balançou a cabeça em negação. — Consigo ver a
cauda daqui. — Elena sacudiu a lanterna que carregava na direção
da traseira da aeronave, alguns minutos de distância à pé. — Irei
rápido, se encontrar sobreviventes farei um sinal luminoso para o céu
pedindo ajuda.
Berna a olhou, hesitante. Fez menção de abrir os lábios para
discordar, mas acabou assentindo. Não tinham muitos tripulantes e,
quando ainda estavam voando, só conseguiram identificar três
médicos e um tripulante extra, de outra companhia aérea, que
poderia ajudá-los. No solo, só encontrou uma destas médicas viva,
ajudando os feridos. Não fazia ideia de onde estava o restante. Tirar
qualquer um de suas missões para acompanhá-la era algo que Elena
não poderia fazer, ainda que os procedimentos indicassem o
contrário.
Observou a outra comissária voltar para a linha de corpos
estirados rente a aeronave, a médica que se prontificou quando
estavam a bordo se aproximou de Berna e pediu ajuda com um
enfermo. Elena percebeu que a menina em quem, mais cedo, a
comissária fazia os procedimentos de ressuscitação não estava mais
lá, mas sim na pilha de corpos no outro extremo do local que
delimitaram para acampar.
As fraturas expostas e os corpos abertos eram diferentes de
simulações e fotografias. Aquelas vísceras saltavam para fora, o
sangue espalhando-se pelo gelo e congelando no processo. Por
conta do frio, os órgãos apresentavam uma cor opaca, congelada.
Desviou o olhar dos corpos destroçados. Com o breu da noite,
só era possível enxergar até onde a luz da lanterna alcançava,
deixando todos em uma penumbra desagradável, ainda pior que a
escuridão.
Mais uma vez, lembrou-se do acidente dos Andes enquanto
caminhava à procura da cauda do avião. Foram 72 dias em busca de
socorro. Dezesseis pessoas sobreviveram — e só conseguiram
porque em determinado ponto passaram a comer os corpos dos
defuntos.
Aqueles que se recusaram, pereceram mais rápido. Antes,
quando pensava em sobrevivência, tinha a certeza que duraria
alguns dias, mas nada se comparava à realidade. Não existia
treinamento que preparasse um ser humano para uma situação
como aquela.
Percebeu, pela primeira vez durante aqueles anos fora de casa,
que se fosse morrer, queria cear uma última vez com sua família e
não apenas ligar desejando boas festas. Uma lágrima solitária
ameaçou escorrer pelo seu rosto, mas secou nos olhos antes que
sequer pudesse cogitar deixá-la cair.
Sua lanterna iluminou uma jovem encostada em um pedaço da
aeronave, encolhida como um pássaro machucado. Elena se
apressou em chegar até ela, os pés deslizando no gelo com as botas
largas que havia encontrado no compartimento de carga.
— Ei — ela chamou, torcendo para a menina ainda estar viva.
Os lábios estavam roxos e seus olhos fechados, mas Elena
enxergou seu peito subindo e descendo de modo entrecortado,
quase nulo. — Meu Deus… — tocou a pele da moça, coberta apenas
por um cardigã. Olhou ao redor, estava a poucos metros de distância
do acidente.
Sacudiu a lanterna para o alto e gesticulou até que alguém
viesse correndo ajudá-la. Uma das comissárias, acompanhada de
um homem, se aproximou com uma maca e lençóis. Elena os ajudou
a erguer a menina inconsciente e a carregá-la de volta.
Percebeu, então, que ela não era a única perdida.
O pouso forçado havia sido seguido pelo avião chocando-se
contra uma das montanhas de gelo. A cauda havia se partido, a
pressão sugou aqueles que estavam na parte traseira do avião,
jogando-os em meio a neve junto dos destroços da aeronave. Era
improvável que houvesse muitos sobreviventes, mas se aquela moça
estava respirando, talvez outros também estivessem.
Encolheu-se dentro do casaco quando voltou a andar em
direção a cauda do avião, os ombros trêmulos e o pé anestesiado.
Mentiu para Berna quando disse que o motivo de estar mancando
não era nada demais. Quando foi trocar as sapatilhas por botas o pé
encontrava-se tão inchado que se o sapato não fosse três números
maior que o seu, não caberia. A dor que sentia em suas
extremidades também não era suportável como fazia parecer, tinha
medo de que o nariz necrosasse com o frio, o cachecol que cobria
metade de seus rosto não parecia estar dando conta e já fazia algum
tempo que não sentia mais a própria pele.
Dez anos atrás, quando encarou pela primeira vez uma
temperatura negativa em sua vida, Elena achou que qualquer
temperatura abaixo de zero era a mesma coisa. Dez graus negativos
lhe causavam dor, era um frio agoniante, vinte e três graus abaixo de
zero também era uma temperatura cruel. Portanto, o sofrimento era o
mesmo. Não podia estar mais errada, os 29 graus negativos que
encarou em sua viagem para Minnesota eram de um frio incômodo,
mas suportável. Ela precisava se apressar para entrar no hotel antes
dos dedos começarem a tremer, mas não havia aquela agonia
exorbitante das noites polares.
O frio já não parecia mais frio, era apenas dor pura e aguda.
Uma sensação ardente que em seguida dava lugar para uma dor
profunda e entorpecente que irradiava pelos ossos. O vento
acrescentava uma nova experiência àquela tortura, era uma
sensação tátil, uma dor mais urgente. Como ferro quente em sua
pele exposta, ainda que estivesse praticamente coberta. Elena
fechou os olhos e imaginou as praias do Rio de Janeiro, lembrou do
sol fritando sua pele nos verões carioca, em como tomava água de
coco seminua na areia da praia. A lembrança lhe fez abrir um sorriso
triste, ciente de que talvez nunca mais fosse banhar-se nas águas da
Praia Vermelha.
Elena percebeu no meio do percurso que caminhar sozinha até
os destroços não era a melhor ideia. Tinha subestimado os desafios,
sentia-se fraca e cada vez que erguia os pés da neve era como
carregar seu peso triplicado. A neve a puxava para baixo como areia
movediça e sua respiração estava ofegante como se corresse uma
maratona.
Apontou a lanterna para o céu e depois para os arredores, tudo
que conseguia enxergar com sua visão limitada era o gelo se
alongando em um grande nada. Parecia estar no deserto, exceto que
aquele estava congelado. Não muito distante, enxergava a ponta da
cauda da aeronave alongando-se com a proximidade.
Desejou conhecer alguma reza ou acreditar em um ser superior
que pudesse auxiliá-la naquela caminhada. Sentiu-se envergonhada
por desejar tomar medidas tão crentes. Elena era uma cética por
natureza, não acreditava em Deus, inferno ou céu. Estava claro que
se existia algum ser místico agindo em prol deles, os odiava. Que
espécie de Deus os deixaria cair, de todos os lugares do mundo, no
Polo Norte, na noite do aniversário de Jesus Cristo?
O pensamento a fez lembrar do último Natal que passou em
casa, pouco antes de receber a Golden Call — a chamada mágica
que avisava o dia do seu embarque para trabalhar na LivrAir.
Elena ajudou os primos menores a esconder o menino Jesus. O
roubo rendeu uma série de acusações e até o fim da noite todos da
família estavam brigados, não mais pelo sumiço do Messias, mas por
assuntos mal resolvidos que surgiram junto das incriminações de
roubo. Ninguém nunca soube a verdade sobre o crime e à meia-noite
cearam como se nada tivesse acontecido. No dia seguinte, o menino
Jesus acordou em sua manjedoura, e o assunto virou um daqueles
segredos de família que todos concordavam em silêncio em não
trazer à tona.
Elena levou as mãos ao rosto, tentando aquecer o nariz. A
lanterna finalmente iluminava a cauda do avião em sua totalidade,
que tinha virado uma massa disforme de fios, fuselagem e destroços.
A pintura azul e vermelha da LivrAir quase não sobreviveu à queda,
e a parte da traseira que fora arrancada do restante da aeronave
parecia derreter em meio ao gelo.
Deu a volta nos destroços, incerta sobre como subiria nos
destroços. Havia um espaço minúsculo pelo qual poderia enfiar seu
corpo, mas temeu levar um choque ou algo parecido. Infelizmente,
acionar o Rádio Beacon, era o mais próximo de chance que tinham
de conseguir um resgate.
Elena enfiou a alça da lanterna em um dos braços e apoiou as
mãos enluvadas nos destroços, tentando sustentar o peso no pé
direito e não no que estava machucado. Sua panturrilha começava a
doer com a compensação de peso que vinha fazendo, mas ignorou o
incômodo e içou o corpo, soltando um gemido fraco ao apoiar-se na
primeira parte da fuselagem.
O vento gelado passou pelo seu corpo e a paralisou com a dor,
os sussurros da noite agiam como um mosquito que zumbia em seu
ouvido, a embalavam com murmúrios de incerteza e a convenciam
de que não existia salvação. Elena contou até três e subiu mais um
pouco, sua respiração ofegante ativou um alarme em seu cérebro,
lembrando-a de que não poderia suar. O suor cristalizaria naquela
temperatura baixa e faria sua temperatura corporal despencar.
Esperou sua respiração estabilizar, o ar gelado entrando
cortante em seus pulmões. Demorou mais do que desejava para
tomar coragem e içar-se uma última vez, enfiando seu corpo em um
espaço minúsculo entre as fiações arrancadas e a fuselagem
retorcida. Percebeu, tarde demais, que seu cérebro tinha esperança
de encontrar calor do lado de dentro da aeronave, mas o local estava
ainda mais frio que do lado de fora.
Elena estava jogada no carpete do avião, parte dele tinha sido
arrancado quando a cauda voou para longe, e os carrinhos de
comida estavam soltos de suas presilhas, as rodinhas a poucos
centímetros de distância do olhar da comissária. Ela forçou os
braços, já exaustos, a erguerem seu corpo, e direcionou a lanterna
para sua frente, iluminando a galley traseira.
O frio lhe arrancou o ar outra vez, teve de tossir, a garganta e os
olhos ardendo. Uma angústia desesperançosa subiu por seu
estômago até a boca, dando-se conta de que não importava para
onde fosse, aquele pesadelo não acabaria.
Os corpos dos comissários ainda estavam amarrados pelo cinto
de segurança, mas não havia possibilidade de qualquer um deles
estar vivo. Vigas de ferro atravessavam o corpo de jovens recém-
contratadas pela empresa, a cabeça de uma pendia para o lado com
os lábios ainda abertos em um grito engasgado. Os carrinhos que
soltaram na queda haviam esmagado outra comissária, que estava
jogada nos cantos da aeronave, o sangue escorrendo pelo carpete.
Elena levou a mão enluvada aos lábios, não tinha forças para chorar
por aquelas pessoas, nem tempo para lamentar suas vidas ceifadas
tão cedo. Fechou as pálpebras, os cílios congelados ardendo seus
olhos, e então virou-se na direção dos compartimentos de
emergência onde deveria estar o Rádio Beacon.
E percebeu que não estava lá. A aeronave havia se partido no
exato lugar onde estaria o rádio. Ele deveria ter voado pelos céus e
com sorte talvez caído próximo aos destroços, mas naquela
escuridão Elena levaria uma eternidade para encontrá-lo, já tinha lhe
tomado tempo e energia demais arrastar-se pela neve até a cauda
do avião.
Deixou seu corpo deslizar até estar caída em meio ao sangue,
sem qualquer esperança restando em seu corpo. Tentou segurar-se
no fato de que Amara comunicou a queda às torres mais próximas,
mas nas condições climáticas que enfrentavam, cada minuto em
meio ao gelo era uma vida ceifada.
Bateu o punho contra a parede do avião, o eco de seu
movimento se espalhando pelo nada que era aquele lugar.
A volta para os destroços foi mais demorada do que a ida. Elena
não tinha certeza se o que dificultava o caminho era a neve, seu pé
inchado ou o sentimento de desesperança em seu peito. Se
arrastava pelo gelo do Polo Norte como quem caminha para a morte,
incerta sobre como contaria às pessoas que não havia rádio para
pedir ajuda.
Encolheu-se dentro do casaco e apontou a lanterna da neve
para os pontos distantes — sobreviventes amontoados, seus rostos
não eram visíveis, mas Elena tinha a sensação de que podia escutá-
los implorando por ajuda. Faltavam alguns minutos para chegar até
os restos da aeronave. Esperava que os abrigos já estivessem
encaminhados quando chegasse lá.
Procurou com a luz trêmula da lanterna um local onde se
abrigar por alguns minutos, apenas para tomar forças antes de
continuar a caminhada. A ansiedade lhe consumia de uma forma
que não conseguia manter a lanterna fixa em um único lugar, seus
dedos tremiam por debaixo da luva, os dentes batiam a cada
respiração entrecortada e Elena cogitou que poderia morrer de
medo, antes mesmo que o frio fosse capaz de lhe consumir.
Largou a lanterna no gelo e se arrastou até um amontoado de
neve que formava-se no caminho. Por favor não me deixe morrer.
Lembrava-se de sua professora de sobrevivência dizer que
havia uma Bíblia a bordo do avião, porque a fé era uma arma
poderosa contra a desesperança. Em situações como aquela, quem
acreditava em um Deus era capaz de consolar seu coração com
mais facilidade, segurar-se em algo antes de perecer. Desejou
acreditar, apenas para não sentir que estava falando com o vazio,
sozinha em meio àquele deserto congelado.
Pediu ao nada para que lhe desse algo em que se segurar.
Suas lágrimas não desciam, a angústia de querer chorar a fazia
engasgar e logo sua garganta pediu por água. Arrastou-se na neve,
ciente de que continuar sofrendo jogada ao chão não era sua melhor
opção, nem sequer deveria ter ido sozinha até o Rádio Beacon.
Seus dedos se fecharam em algo que acreditou ser a lanterna
antes jogada no chão. Puxou, o peso parecendo-lhe estranho,
desproporcional. Elena percebeu que não era o que esperava e
tateou na neve, notando um fio de iluminação próximo às suas
pernas, pegando-o. Ergueu a luz na direção do amontoado de neve
em que se apoiava segundos atrás, a bile subindo-lhe à garganta.
Um braço fugia para fora da neve, parte de um corpo soterrado, os
dedos largados para fora em um pedido de socorro, em estado de
necrose.
Elena cavou com a mão livre. À medida que a iluminou,
percebeu que era uma passageira, uma mulher adulta da qual não
se lembrava. Tirou uma das luvas com pressa para procurar pulso
em seu pescoço. Ainda que estivesse evidente sua morte, precisava
se certificar.
Parou com os dedos sobre a carótida da mulher e confirmou
que não havia pulsação. Elena sentiu o sangue escorrendo de seu
pescoço e ergueu a luz mais próxima do rosto da vítima. Uma linha
sanguinolenta cortava sua garganta, os olhos ainda abertos
imploravam por misericórdia. Franziu o cenho, incerta do que poderia
ter a cortado daquela forma, tão limpa e precisa. Não parecia como
as pessoas que acabara de encontrar na parte traseira da aeronave,
deformadas e com vigas atravessando seu corpo.
Limpou o sangue em sua roupa e deu dois passos para trás.
Aquele corpo poderia ter sido jogado pelo impulso do avião para ali,
mas poderia também ter sido colocado debaixo da neve, escondido
de quem passasse por perto no escuro. Balançou a cabeça em
negação, deveria estar criando coisas em sua cabeça, começando a
dar vazão às suas paranoias. Elena voltou a calçar a luva e estava
prestes a dar as costas quando escutou, baixinho, distante,
propagando-se pelo ambiente gélido em um eco que parecia
provindo de um sonho:
— Jingle bells, jingle bells, jingle all the way… — A voz era doce
e baixa, melódica como a música original. Elena achou que estivesse
sonhando, ou talvez delirando, ainda assim esforçou-se em olhar ao
redor.
— Quem está aí? — Sua pergunta ecoou no vazio e aos poucos
a cantoria se dissipou no ar, como se estivesse se afastando do
corpo e de Elena.
O frio aproveitou a fresta de sua luva para esgueirar-se por
debaixo dos panos e congelar seus ossos. Elena agarrou a lanterna
e forçou-se a dar às costas para o corpo, a música ainda ecoando
em seus ouvidos, por mais que agora soasse apenas como sua
mente tentando assimilar o medo e não com alguém cantando.
Berna largou o que estava fazendo e correu em sua direção
quando a avistou arrastando-se pela neve. Só agora Elena percebeu
que a outra comissária estava com um corte na testa, um filete
escorria do curativo empapado de sangue que deviam ter feito às
pressas. Notou que tinha saído com tanto choque e pressa que não
se ateve aos detalhes daquele caos, à sujeira de fuligem no rosto de
seus colegas, o cheiro de ferro impregnado em suas roupas, os
cabelos congelados e extremidades azuladas.
Os lamentos estavam mais baixos do que quando Elena correu
em busca do Rádio Beacon. Teve medo de perguntar a Berna se as
pessoas estavam mais calmas ou se os que gritavam em desespero
haviam morrido durante a sua ausência.
— Onde está o rádio? — Berna cruzou os braços na cintura,
tentando aquecer o corpo com o contato. As roupas que estavam
utilizando não eram o suficiente para encarar aquela temperatura, as
malas dos comissários e dos passageiros estavam preparadas para
um frio ameno em Londres, com mínima de três graus, se tivessem
azar.
Ninguém cogitou a possibilidade de encarar quarenta graus
negativos.
— Não sei. — Elena balançou a cabeça em negação e desviou
os olhos da comissária. Não sabia como dizer aquilo sem soar
desesperançosa. Ao fugir do olhar de Berna, encontrou um terror
muito pior descansando na neve: a pilha de corpos. — Quando o
avião se partiu, os compartimentos devem ter voado para longe.
Podemos tentar procurar pela manhã, com a luz do sol, mas talvez
nem sequer funcionem mais.
— Pela manhã? — Berna pronunciou as palavras com um peso
na garganta. Os lábios finos estavam arroxeados e a neve se
acumulava em seus cílios. — Estamos na noite polar, Elena.
A comissária franziu a testa, sua cabeça estava doendo por
conta do frio extremo, os fios loiros já haviam perdido o movimento e
vida há muitas horas, jaziam congelados ao lado de seu rosto,
mortos, como a maioria das pessoas ali.
Ao fundo, alguém cantava a maldita melodia de Jingle Bells.
Elena tapou os ouvidos, precisava manter-se calma, se perdesse a
razão estaria dando abertura para a loucura, não apenas para sua
pessoa, mas para toda uma tripulação.
— A noite polar — Elena repetiu, só então dando-se conta.
Havia ignorado aquele detalhe nas aulas de geografia e de
sobrevivência, mas a citação do fato a lembrou do que se tratava. O
Polo Norte ficava imerso em uma escuridão sem fim por seis meses
do ano, assim como experienciava dias infinitos na outra metade.
Estavam no breu da noite polar, não haveria amanhecer como
esperava, a esperança não surgiria de lugar nenhum. — Meu Deus.
Capítulo 3

Enquanto arrastava pela neve o corpo de uma senhora robusta,


muito parecida com sua avó, Elena se arrependia de não ter
aproveitado mais os natais em família. Estava sempre mal
humorada, sem paciência para as conversas sobre política e as
perguntas inconvenientes. Era um dia que usava para se esconder
dos familiares enquanto a ceia não ficava pronta.
Era nova demais para entender a importância daquelas
lembranças. Há tantos anos distante da família, sentia que aqueles
momentos iam se tornando um filme de sua própria vida, distantes
demais para trazer-lhe qualquer sentimento. Quanto mais o tempo
passava, mais curta e rala ficava a narrativa, as memórias
apagavam-se, transformavam-se em visões sem detalhes o
suficiente e sem a lembrança do toque ou da voz daqueles que
amava.
Era como cair em uma piscina leitosa de sensações: havia algo,
mas estava distante demais para que ela pudesse alcançar.
Talvez, se não tivesse perdido Leticia, teria dado mais valor aos
momentos em família. Compreender os mistérios da morte de
alguém querido ainda tão nova certamente havia lhe tirado parte do
espírito natalino — na verdade, parte do prazer em viver. Com a
morte da irmã mais nova, Elena afundou em um luto melancólico,
usou do sofrimento durante anos para se mutilar, e não tinha certeza
se já tinha superado. A família quebrou no dia em que Letícia partiu
e, para Elena, qualquer reunião após a data foi como tentar
reconstruir uma instituição morta.
Largou o corpo empilhado na neve junto dos outros defuntos. A
visão era insensível e trazia-lhe lágrimas aos olhos, mas estas nunca
chegavam a cair. Tinha certeza de que demoraria a chorar, o pranto
parecia estar engasgado na boca de seu estômago, esperando um
gatilho, qualquer coisa, para saltar de sua boca e lhe afundar em
melancolia. Em um voo com mais de trezentas pessoas, apenas
oitenta permaneciam vivas, fora do avião — e pela quantidade de
feridos, restaria apenas metade no dia seguinte. Elena sabia que se
começasse a chorar, não pararia e não tinha tempo para isso.
Passou a mão enluvada na testa, a atividade física estava
cansando a todos muito rápido, mas suas preocupações
encontravam-se nos suprimentos. Não havia o suficiente para muitos
dias e com a falta de sol na noite polar nem mesmo conseguiriam
derreter o gelo para bebê-lo.
— Senhorita. — um rapaz alto a chamou, era jovem e a barba
rala estava coberta de gelo, o terno que usava por debaixo de vários
casacos parecia um bocado de trapos. Suas bochechas saltavam,
tão vermelhas que Elena quis colocar as mãos sobre a pele, em uma
tentativa de aquecê-lo. — A classe executiva e a do centro estão
liberadas. O que sobrou da econômica… está um pouco difícil, por
conta dos corpos.
— As poltronas foram jogadas para frente, vai ser difícil arrancá-
las de lá. — Elena constatou, não quis imaginar quantas pessoas
haviam morrido esmagadas pelo impacto. — Vamos começar a levar
os enfermos para dentro, então. As duas classes vão bastar por
enquanto.
Ele assentiu e permaneceu parado, esperando que Elena
tomasse a iniciativa. A comissária passou por ele, os pés afundando
na neve enquanto caminhava até Berna. Era como tentar correr em
areia movediça, o peso a puxava para baixo, a engolia em meio ao
gelo.
— Berna, esvaziamos a aeronave, quais dos enfermos
conseguem andar e ajudar os outros? — Elena pousou os olhos em
Amara, estirada em uma lona para seu corpo não queimar com o
contato com a neve.
— Poucos, os colocamos ali. — A comissária apontou para um
amontoado de pessoas. Teriam muito trabalho. — Alguns
conseguem se arrastar até a aeronave, mas não são capazes de
ajudar.
— Vamos começar por eles então — falou ao rapaz, indicando
com as mãos que poderia tomar a iniciativa e chamar outras pessoas
para ajudá-lo. Quando ele foi em direção aos enfermos, Elena
colocou a mão sobre o ombro de Berna. — Você está indo muito
bem, Berna. Obrigada por liderar a equipe de primeiros socorros.
— Oh, não. — A moça soltou uma risada fraca, envergonhada.
— Eu estou só seguindo ordens, quem está comandando tudo é a
doutora Bryanna.
Berna apontou para uma moça que cuidava dos ferimentos de
um rapaz que quebrou as duas pernas durante o acidente, a médica
tinha belos dreads enrolados no topo da cabeça e uma pele tão
escura quanto a de Amara.
— De qualquer forma, você está sendo ótima. — Sorriu. —
Agora vamos levar todos para dentro.
Berna assentiu e foi até Bryanna avisar-lhe que precisariam
mover os enfermos para dentro da aeronave. O frio estava
insuportável e ninguém contestou a movimentação. Ao menos dentro
do local estariam abrigados do vento que congelava seus ossos.
Elena avisou aos gritos que aqueles que conseguissem andar
deveriam ajudar os outros a ir para dentro. Parou junto a comissária
que separava os suprimentos, esta chorava copiosamente, suas
lágrimas caindo na neve e congelando. Elena tocou-lhe o ombro e
disse para que fosse para dentro da aeronave. Seus dedos tremiam,
como os de uma criança com medo, quando largou as barras de
chocolate dentro da caixa e correu para junto do restante dos
sobreviventes.
Jogou tudo dentro da caixa, bagunçando o trabalho minucioso
da tripulante. O frio estava lhe congelando o cérebro, seu corpo
implorava por um pouco de calor. Não iria permanecer mais nenhum
segundo do lado de fora.
Colocou a caixa debaixo do braço e foi até Amara. Seu rosto
deformado assustava à primeira vista, o olho virou uma massa
disforme arroxeada, a boca estava tão calejada que os machucados
rasgavam a pele. Elena olhou ao redor, à espera de que alguém
aparecesse para ela pedir ajuda e levar a comandante para dentro.
Os enfermos estavam em linha, e a mulher ao lado de Amara
soluçou. Elena se aproximou, com medo de que ela estivesse se
engasgando com o próprio vômito e a deitou de lado, para que
tossisse se necessário.
A cabeça da desconhecida pendeu das articulações. Elena
segurou-a por impulso, seus dedos afundando-se na carne aberta. A
pele estava se desgrudando dos músculos e a parte de dentro do
pescoço gangrenara, a morte subia pelas veias e manchava de
sangue o torso da mulher. Seus olhos fixaram-se naquela cena como
se captar cada um dos detalhes dos nervos partidos e dos músculos
destroçados pudesse tornar a situação mais real.
A cabeça havia sido quase decepada, segurava-se apenas no
esôfago, grosso demais para ser cortado com facilidade. Elena
largou a mulher, e por um segundo sua mente temeu que seu
movimento houvesse sido imprudente e a causa daquilo, mas era
apenas o desespero e o trauma falando em seu ouvido. Não havia
como ela ter sido morta daquela forma por acidente. Alguém,
deliberadamente, cortou metade de sua garganta — e a cena era tão
grotesca que seu cérebro nem sequer era capaz de processá-la
como verídica.
Olhou em volta. Estavam todos focados em levar os enfermos
para dentro da aeronave, ninguém prestava atenção nela. Ajoelhou-
se diante da mulher e puxou o seu lençol até o queixo, cobrindo a
cabeça decepada e o sangue que a manchava.
Bryanna saiu da aeronave aos tropeços, tinha elegância ao
andar e parecia irritada de não conseguir manter sua postura em
meio ao caos. Elena olhou mais uma vez para os lados e passou por
cima das pernas da defunta e de Amara, indo em direção a médica.
— Doutora — a comissária chamou, com a voz arranhada por
causa da falta de água. — Meu nome é Elena Garbacio, sou a
comissária chefe do voo.
A médica a direcionou um olhar sério, impessoal, mas estendeu
a mão para ela.
— Sou a doutora Bryanna Miller — cumprimentou com um
aperto rápido e cruzou os braços, aquecendo as mãos junto ao
corpo. — Posso ajudar em algo?
— Aquela mulher… — Elena virou-se para a vítima decapitada
ao lado de Amara. — Estava tratando ela?
Bryanna deixou a cabeça pender e analisou o corpo coberto.
— Sim, desconfiamos de morte cerebral. — A médica suspirou,
irritada com as mortes inevitáveis. — Não vai suportar muito.
Elena engoliu em seco e passou a língua nos lábios secos.
Cogitou deixar a história para lá, mas agora que tinha falado com
Bryanna, não poderia apenas ignorar a situação.
— Doutora, escute bem o que vou lhe dizer. — Deu dois passos
para frente, aproximando-se da mulher. — Aquela mulher, quando foi
a tratar, como estava sua cabeça?
— Sua cabeça? — Bryanna franziu o cenho, seus dreads
balançaram com o movimento e flocos de neve caíram do topo. —
Normal, inchada, mas normal. Por que está me perguntando isso?
— Porque a cabeça dela estava decepada quando fui movê-la.
Os lábios da médica se abriram por um curto segundo e depois
fecharam-se em incompreensão. Bryanna não sabia o que dizer,
Elena também não.
— O que está sugerindo?
— Não sei o que estou sugerindo, mas encontrei outra pessoa
na neve com a cabeça degolada, não tão horripilante quanto esta,
mas ainda assim… — Elena comprimiu os lábios. — Não vamos
alarmar os outros passageiros, vamos tirá-la dali e colocar na pilha
de corpos. Consegue fazer isso?
— Comissária Elena… — O peito de Bryanna subia e descia
com a respiração acelerada, ela afundou os pés na neve e caminhou
até a defunta. Ergueu o lençol posto sobre seu rosto e colocou a mão
sobre os lábios. — Esta mulher não estava com esses ferimentos
quando saiu do avião, e posso garantir que a havia colocado junto de
outras pessoas, na ala de casos mais… graves. Irreversíveis.
Alguém a moveu para cá.
Elena desejou que Bryanna estivesse errada, porque a outra
possibilidade era muito pior. Um assassino a bordo? Após cair no
Polo Norte?
Existia alguma forma daquela situação tornar-se pior?
— Nós vamos tirá-la dali e não falaremos nada até entendermos
o que aconteceu. — Elena repetiu. — Pode fazer isso, doutora?
A médica assentiu, sacudiu os braços ao redor do corpo e
seguiu Elena até o corpo. Enrolaram a mulher no lençol para usá-lo
de maca e a carregaram até a pilha de corpos, deixando-a enfiada
na neve de uma forma que ninguém prestasse atenção em seus
ferimentos. Elena pensou em levar o lençol consigo. No frio em que
estava, todo pano era necessário, mas estava tão ensopado de
sangue que a comissária largou na neve, junto da defunta.
Bryanna a encarou por longos segundos, a visão da cabeça
pendendo apenas por uma ligação frágil com o restante do corpo
impregnando em sua memória. Elena conseguia enxergar em seus
olhos o próprio choque e dissociação que experienciava, sua mente
presa em uma único questionamento que surgia repetidamente:
como?
Os ventos congelantes do Polo Norte começavam a diminuir
quando a comissária fez com que Bryanna entrasse na aeronave.
Sua ansiedade lhe fazia querer procurar Amara entre as pessoas
empilhadas do lado de dentro da fuselagem, então deixou a médica
para trás cuidando dos enfermos e se enfiou entre os sobreviventes,
procurando a pele escura e os cabelos cacheados da comandante.
Ela estava deitada na classe executiva do avião, o único indicativo
de que permanecia viva sendo sua respiração leve.
Elena encostou o corpo nas paredes da galley e suspirou. Uma
chama cintilava no interior da aeronave, alguém tinha juntado vários
papéis em um recipiente de ferro e a brasa aquecia a classe
executiva e econômica premium. Largou a caixa de suprimentos ao
seu lado e encolheu-se entre as poltronas dos comissários em uma
tentativa de se aquecer. Seus olhos se perderam naquele amontoado
de corpos, nos choros silenciosos e nas conversas atravessadas.
O ar cheirava a sangue e fumaça. Elena torceu o nariz e pegou
a caixa de suprimentos para contar quanta comida tinham e começar
a distribuir. Espalhou no carpete as barras de chocolate, os bombons
e todos aqueles alimentos que aumentavam a glicose, mas não
mantinham ninguém saudável a longo prazo. Viu com o canto do
olho que Berna desviava dos sobreviventes para chegar até ela,
estava a alguns passos de distância quando Elena a escutou cantar
Jingle Bells.
Sua voz era um pouco mais grossa do que aquela que
cantarolou em meio ao gelo, quando voltava de sua rápida
expedição. Tinha um timbre mais agudo, melodioso, ainda assim
causou arrepios na comissária. Elena esperou que ela chegasse
mais perto para perguntar:
— Foi você?
Berna franziu o cenho e se sentou ao seu lado, alheia ao
incômodo de Elena.
— Eu o que? — perguntou.
Elena abriu os lábios para dizer sua desconfiança, mas pensou
o quanto soaria estúpida. Um assassinato logo após um acidente
aéreo? Não podia ser. Estava delirando por conta de toda a situação.
O que tinha visto com Bryanna deveria ser algo que não podia
explicar no momento, mas que faria sentido quando a equipe de
investigação chegasse ao local após resgatá-los.
Balançou a cabeça em negação e mostrou os suprimentos para
a outra comissária, pedindo sua ajuda para continuar a contar.
Capítulo 4

Em algum momento da noite, depois de distribuir os alimentos


racionados e a pouca água que tinham, Elena caiu no sono.
Trabalhar como comissária de bordo tinha lhe dado a útil habilidade
de dormir em qualquer lugar, a qualquer momento. Costumava usar
os momentos de turbulência para tirar uma soneca durante o serviço,
e seus amigos que trabalhavam em terra sempre tiravam sarro de
como ninguém poderia atrapalhar seus cochilos.
Acreditou que dormir naquelas circunstâncias extremas fosse
ser mais difícil, mas seu corpo acabou cedendo ao cansaço.
Infelizmente, seu sono foi como uma lufada breve de ar e, pouco
tempo depois, acordou desnorteada.
Uma fina camada de fumaça cobria a parte de dentro da
aeronave. Amara estava desacordada aos seus pés e Elena se
arrastou para verificar se ainda respirava. Sentia-se tonta, envolta
em uma embriaguez que não condizia com o medo que explodia em
seu peito. Puxou o ar de forma apressada, percebendo que tinha
dificuldade de respirar.
Era como se uma toalha encharcada estivesse sob seu nariz e
boca, a dor no peito se alastrava pela garganta e subia até as vias
áreas como fogo. Elena cogitou estar sonhando, tudo parecia
distante, seu corpo flutuava como se variasse entre a consciência e o
desmaio.
Seus dedos pararam na carótida de Amara, não conseguia
sentir o seu toque na pele e consequentemente não seria capaz de
medir sua pressão arterial. Elena arrastou os olhos, que insistiam em
fechar, pelo corredor da aeronave. A maioria estava em um sono
profundo.
Ela franziu o cenho, o frio ainda os castigava, era estranho que
conseguissem dormir com tanta paz. Qual o problema? Sua mente
se perguntava, em busca de uma solução para o incômodo em seu
corpo e mente. Balançou a cabeça, tentando espantar a embriaguez
que a envolvia. Não poderia ser glicose baixa, tinha comido há pouco
tempo, talvez…
Seus olhos pararam na chama que consumia cédulas de
dinheiro, próxima a Amara. O calor do fogo era mais que bem vindo,
mas Elena percebeu que no desespero de impedir o frio de entrar,
taparam todas as saídas de ar. Estavam sendo envenenados pela
sua própria respiração. O monóxido de carbono não tinha para onde
sair.
Com a cabeça latejando e uma confusão mental que não lhe
deixava compreender o que era melhor para aquela situação, Elena
levou longos segundos para se apoiar nas paredes da aeronave e
abrir a primeira saída de emergência que encontrou. A lufada de ar
gelado entrou dentro da aeronave como uma assombração que
esperava apenas o momento correto para intervir.
Junto do vento, veio a melodia. Alguém cantarolava Jingle Bells,
em uma voz que não se parecia nem com a de Berna, nem com a da
pessoa que encontrara mais cedo na neve. O coração de Elena quis
acelerar, mas seu corpo ainda estava anestesiado. Virou-se com
lentidão e procurou em meio aos armários da classe executiva um
cilindro de oxigênio.
É coisa da minha cabeça. Pensou, abrindo os compartimentos
com dificuldade. Encontrou o cilindro e uma máscara, a colocou sob
o rosto e inspirou profundamente, sentindo seus pulmões
agradecerem pela misericórdia.
A música continuava, desta vez a voz era masculina e
preenchia a aeronave, escapando pelas frestas para o lado de fora.
Congelava o sangue de Elena mais do que o frio de quarenta graus
negativos.
Ajoelhou-se diante de Amara e colocou a máscara sob seu
rosto, apenas por tempo o suficiente para garantir que o veneno
estava fora de sua circulação. Em um ritmo adormecido, a respiração
da comandante voltou a subir e descer devagar.
Bryanna estava no centro da aeronave. Elena conseguia
enxergar seu corpo encolhido entre o de outras pessoas, os dreads
presos em coque volumoso. Com uma saída de ar aberta, alguns
poucos sobreviventes despertaram tossindo, procurando ar. Elena se
agachou diante deles e os ofereceu oxigênio. Explicou que era
necessário abrir as saídas de ar para livrar-se do monóxido de
carbono e em seguida arrastou-se pelos corredores da aeronave
passando a máscara de mão em mão até chegar na médica.
Percebeu que sua pele escura estava pálida, em um tom opaco
de cinza, sem vida. Entre o lençol e suas roupas, o sangue escorria
pelo chão da aeronave. Elena puxou o pano que a cobria e, com o
movimento, sua cabeça despencou para o lado, presa por uma
camada grossa de músculo que a impediu de rolar pelo carpete do
avião.
Alguém gritou, ou talvez tenha sido a própria Elena. Só
percebeu o que estava fazendo quando avançou nas pessoas
próximas a Bryanna, sacudindo-as em desespero para saber quem
estava fazendo aquilo. Não era um caso isolado, Elena não estava
criando coisas em sua cabeça por conta da loucura, aquela mulher
estava morta, assim como a que haviam carregado o corpo mais
cedo, e como a que encontrara no meio da neve em sua busca pelo
rádio.
Ao redor de Bryanna, a cabeça de outras duas pessoas
pendiam do corpo. Em uma delas, a massa disforme que se tornou
seu pescoço estava pendurada por uma fina camada de pele, já a
outra caiu no colo de um enfermo desacordado. Encontravam-se
degolados, decepados, segurando-se pelos músculos ou pelo
esôfago. Exigia muita força arrancar uma cabeça, quem havia feito
aquilo se esforçara em seu máximo.
Elena deu dois passos para trás, tropeçou em alguém e caiu
sobre o carpete da aeronave, arrastando-se em meio às pessoas até
que algo lhe chamou a atenção: a música tinha parado. Berna
sacudia seus ombros, o olhar preocupado.
— Elena! O que está acontecendo? — gritava, em plenos
pulmões.
Algumas pessoas arriscavam se levantar em busca de ar, outras
vomitavam em seus lugares, paralisadas por seus ferimentos. Elena
ainda enxergava as cabeças decapitadas. O frio diminuia o odor
pútrido, mas havia tanto sangue espalhando-se pelo avião que era
impossível afastar o cheiro de ferro que impregnava suas narinas.
— Você enxerga o mesmo que eu? — Elena perguntou,
agarrando os braços de Berna e apontando para trás dela, onde
estava o corpo de Bryanna.
Berna não olhou, balançou a cabeça para cima e para baixo,
confirmando, mas não teve coragem de virar-se para encarar os
corpos desfigurados. Seus olhos encheram-se de lágrimas e as
mãos afrouxaram o aperto ao redor dos ombros da amiga.
— O que está acontecendo? — a voz fraca de Berna
murmurou.
O corpo de Elena voltou à realidade e respondendo aos seus
instintos, seus braços envolveram o corpo de Berna e a trouxeram
para perto.
— Alguém está nos matando — respondeu Elena. —
Precisamos saber quem.
Berna balançou a cabeça em negação, seu rosto estava coberto
pelas lágrimas grossas que escorriam. As pessoas acordavam, viam
a cena e corriam para fora da aeronave. O caos se instalava aos
poucos, a falsa paz dissipando-se com o ar.
Quanto tempo se passou desde que o avião caiu? Parecia
muito, mas Elena sentia que não ultrapassava quatro horas. Sem o
sol para guiá-la, parecia afogar-se em um limbo, presa em uma um
buraco negro que jamais seria acessado.
— Ela não queria — Berna falou, entre soluços. — Disse que foi
sem querer, que era mais forte que ela, incontrolável.
— Quem? De quem você está falando?
— Amélie. — ela apontou com a cabeça para o fundo da
aeronave. Em seu acesso de medo, Elena não tinha percebido
Amélie, jogada no carpete da galley. — Ela está morta agora.
Franziu o cenho e levantou-se, Berna ficou para trás, ajoelhada,
de costas para o massacre que havia acontecido enquanto estavam
desacordadas. Como era possível que Amélie, uma jovem tão magra
e sem forças, tivesse não só matado três pessoas, mas decepado a
cabeça de uma delas, sem que ninguém fizesse nada? Ela também
sofreu pelo envenenamento de monóxido de carbono, não estava
ilesa à falta de oxigênio.
Corpos estirados bloqueavam o seu caminho. A comissária não
queria pensar naquilo no momento, mas a maioria se encontrava
morta, não dormindo. O envenenamento por monóxido de carbono
era silencioso e rápido, uma morte melhor do que a que Bryanna e
os outros tiveram. Melhor do que a que Elena provavelmente teria.
O corpo de Amélie olhava para o teto como se tentasse tomar
coragem. Não estava decepada como os outros corpos, o máximo
que conseguiu foi cortar a jugular e sangrar até a morte. Aquela óbito
foi lento, uma tortura. Ela afogou-se no próprio sangue antes de
falecer, e agora a boca aberta permitia que a gosma escarlate
deslizasse para fora de seus lábios e colorisse o chão.
Elena procurou por uma faca na mão dela. Não tinha percebido
mais cedo, mas no kit de sobrevivência faltava o facão. Agora que
entendia — ou achava entender — o que acontecia na aeronave,
fazia sentido que alguém o tivesse carregado. A única peça que não
se encaixava era Amélie ter sido este alguém. Exigia muito mais do
que vontade e habilidade com lâminas para causar o horror que
presenciou.
Não tinha faca alguma nas mãos da comissária falecida. Elena
soltou um suspiro de raiva e incompreensão. Se continuassem
daquela forma, não durariam até o resgate. Em poucas horas teriam
dizimado a si mesmos, nem sequer precisariam do frio ou das
infecções.
Estava cansada, seu corpo inteiro doía e tremia de forma
incontrolável, câimbras dolorosas dificultavam seus movimentos e a
sensação de falta de ar ainda impregnava seu pulmão. Naquele
ponto, sua mente começou a questionar se valia a pena esforçar-se
tanto para viver. Sua vida de antes realmente valia tanto assim?
Parecia mais fácil só fechar os olhos e deixar tudo para trás, deixar
que aquelas pessoas matassem umas às outras, que o gelo a
soterrasse enquanto sonhava com uma vida que jamais teria.
Um grito agonizante disparou pelo ar vindo do lado de fora.
Elena deixou o corpo de Amélie para trás e correu pelos corredores
da aeronave aos tropeços, segurando-se nas poltronas que
sobraram para não perder o equilíbrio. Berna ainda estava no meio
do caminho, ajoelhada, os olhos fixos no carpete em completo
choque.
Os ventos congelantes haviam diminuído e a neve cessou, mas
o Polo Norte continuou recebendo os sobreviventes em sua
temperatura torturante.
Na porta da aeronave, seu corpo paralisou. O medo, o frio e a
incompreensão a engoliram, Elena só se moveu porque outro grito,
desta vez de uma criança, a trouxe de volta à realidade e obrigou
seus músculos a arrastarem-a para fora do avião.
Os sobreviventes amontoavam-se em um círculo e as vozes
enraivecidas gritavam umas com as outras em um caos que não
podia ser compreendido. Elena desceu as escorregadeiras da
aeronave e se aproximou em passos difíceis, a neve acumulada a
puxava para baixo a cada passada larga que dava e tirava um
pouquinho sua vontade de impedir qualquer que fosse a confusão.
Só queria poder ir para casa e fechar os olhos para descansar,
dormir por longas noites e aproveitar a próxima viagem cansativa
que faria para Paris.
Letícia lhe disse antes de morrer que viver era cansativo, e
agora Elena entendia.
Quando tinha nove anos, implorou para que Deus não levasse
sua irmãzinha. Ainda acreditava que existia alguém acima deles, que
cuidava de seus desejos e não deixava que injustiças acontecessem.
Naquela noite, seu choro fora copioso, baixinho, uma súplica ingênua
e individual que ninguém mais escutou. Ainda lembrava do
desespero no peito, da falta de ar a cada respiração, de não
conseguir parar de chorar porque a dor era tão grande que a
dilacerava sua alma e cortava a pele.
Foi esse mesmo desespero que sentiu na voz da menina no
centro daquele círculo. O pai também chorava, com a faca no
pescoço dela, sussurrando-lhe palavras de coragem enquanto ela
dizia que não queria e segurava o seu antebraço com as mãozinhas
pequenas, desesperadas.
— Solta a garota, meu senhor — uma moça pedia, com as
mãos à frente do corpo como quem se prepara para uma luta. — Se
você quer morrer, morra, mas não leve a menina com você.
O homem balançou a cabeça, transtornado. Tinha o olhar de
louco, seus olhos vagavam por aquelas pessoas enfermas e
desesperadas como quem procura lucidez, mas não encontra. Ele
apertou mais a faca contra a garganta da filha e um filete de sangue
escorreu pela pele alva da criança.
— Ninguém vai nos socorrer! — ele gritou, a voz rouca saiu
esganiçada, perdida em meio ao vazio do Polo Norte. — Acabem
com o sofrimento de vocês, é melhor assim.
Uma onda de burburinhos se alastrou pela neve, as pessoas
dividiram-se em indignação e concordância. Estava claro que aquele
homem enlouqueceu, mas após passar tantas horas na neve,
enterrando desconhecidos e quase morrendo sufocados pela própria
respiração, não estavam todos eles um pouco loucos?
— Nós seremos resgatados, só precisamos sobreviver até que
nos encontrem! — Elena tentou argumentar, abrindo espaço na roda,
mas em meio aos sobreviventes, alguém começou a cantar.
A comissária franziu o cenho e procurou a voz suave que
iniciava a melodia de Jingle Bells. A pouca comida que tinha
consumido subiu à garganta e ela engoliu em seco, contornando a
vontade de vomitar. Seu coração acelerou a cada verso cantado, a
língua pesou e a impediu de continuar a falar.
Afastou as pessoas à sua volta, a princípio desnorteada, sem
saber ao certo se queria encontrar quem cantava ou só abrir espaço
para respirar.
À medida que o desespero cresceu em seu peito, Elena passou
a sacudir aqueles que estavam no círculo, puxou os cachecóis que
cobriam suas bocas para saber se moviam os lábios, e questionou
aos berros quem cantava aquela maldita canção. Em segundos, o
silêncio tomou conta do grupo e apenas a melodia podia ser
escutada. Alguém acompanhou a voz principal, agora com uma voz
mais velha, cansada, que soava como quem não queria estar
cantando, mas que tinha perdido a sanidade e não sabia o que fazer.
— Pai, por favor… — a menininha pediu, aos suplícios
esganiçados, enquanto tentava se livrar dos braços do homem que
deveria cuidar dela.
Elena parou de procurar a voz, olhou para a garota a tempo de
ver seu pai fechar os olhos, a dor explícita em sua feição, o
desespero descrito no tom de voz entrecortado quando continuou a
melodia.
— Oh, what fun it is to ride… — ele se engasgou com o próprio
choro, a garota já não conseguia mais falar. — In a one horse open
sleigh…
Elena sabia o que ele faria ao fim da música. Fez menção de se
aproximar, tentar impedi-lo, mas o homem a surpreendeu cortando o
pescoço da filha antes do refrão encerrar. Ele caiu de joelhos sobre a
neve, com o corpo pequeno em seus braços, a jugular espirrando
sangue para todos os lados. Não parou de cantar enquanto ninava o
corpo da criança, a faca ainda presa em sua mão como um objeto de
apoio emocional, algo em que se segurar.
Os outros sobreviventes ergueram a voz. Aqueles que antes
estavam em silêncio começaram a cantar, timidamente e depois com
mais força. A letra da música de Natal virou grito de guerra, um hino
de um povo desesperado, enlouquecido. Elena observou a loucura
se espalhar pelas palavras cantadas, percebeu que além dela,
apenas outras quatro pessoas permaneciam caladas, sem
compreender o que acontecia.
Uma senhora deu um passo à frente e se aproximou do rapaz.
Elena estava no meio do caminho, entre ele e o grupo de loucos que
cantavam em simbiose como se fossem um único corpo. A velha não
direcionou o olhar para a comissária, passou direto por ela e foi até o
homem, ajoelhando-se ao lado dele e tomando a faca de suas mãos.
Ele a olhou, seus olhos encharcados de lágrimas a encarando
com esperança, um tom de agradecimento expresso em sua face
quando a mulher tocou seu rosto e se colocou atrás dele antes de
cortar-lhe a garganta. Elena abriu a boca em um grito mudo,
engasgado. Estava paralisada na neve, procurava em meio aos
sobreviventes alguém que questionasse aquilo, mas todos pareciam
ter sido envoltos em uma loucura coletiva, movida por aquela música
demoníaca.
— Vocês estão loucos! — berrou, voltando-se para o grupo que
cantava cada vez mais alto. — O resgate vai chegar! Nós só
estamos aqui a algumas horas, porque estão fazendo isso?!
Outro homem a encarou com fulgor, os lábios dele se mexiam
roboticamente quando a jogou para o lado com brutalidade, fazendo-
a cair na neve, e caminhou até onde estava a senhora e o homem
assassinado. Ele tomou a faca da velha, e Elena assistiu com
descrença o rapaz erguer a lâmina e cortar a garganta da idosa.
Outra pessoa seguiu para o grupo e fez os mesmos movimentos
antes feitos. Elena se arrastou pela neve com medo, pensando que
deveria estar louca, tendo um pesadelo bizarro ou que devia ter
desmaiado ainda dentro do voo e que tudo aquilo não passou de um
delírio da sua mente cansada. Não havia lógica, estavam matando
uns aos outros como se fizessem um favor, pareciam animais
andando em círculos sem motivo aparente. A mente não era capaz
de descrever o que não entendia, e Elena nunca seria capaz de
entender o que estava acontecendo diante de seus olhos.
— Levanta. — uma voz feminina e dura ordenou, tinha o
sotaque carregado, mas Elena não conseguiu identificar de onde. —
Levanta, merda.
A comissária obedeceu, suas mãos tremendo pelo contato
prolongado com o gelo. A mulher puxou-lhe o braço, trazia consigo
uma outra moça, um pouco mais velha que elas duas.
— Espera. — Elena parou, sendo alvo de um olhar julgador por
parte da garota. — Para onde está indo?
— Para o avião. — Ela continuou puxando o braço da
comissária, obrigando-a a andar. — Se ficarmos aqui, vão nos matar.
Deixe que matem uns aos outros. Vem.
Elena olhou para trás. Alheios às três fugitivas, o restante dos
sobreviventes iniciava mais uma vez a cantoria. Uma grande parte
deles já estava empilhado na neve, com os pescoços cortados e
outros com a cabeça decepada. Alguns eram mais hesitantes ao
matar, outros executavam os golpes com brutalidade desmedida.
Uma, duas, três ou mais vezes. O quanto fosse necessário para
separar a cabeça do corpo — ou perto disso.
A garota desconhecida as levou para dentro da aeronave. Elena
se apressou em pegar os corpos daqueles que tinham morrido pelo
monóxido de carbono e empilhar nas portas para evitar que alguém
entrasse com facilidade. Não era momento de livrar-se deles. Seriam
úteis em sua morte.
Parou diante do corredor. Berna ainda estava sentada, com os
olhos vidrados no carpete, exatamente como a deixou ao sair da
aeronave. Elena se ajoelhou diante dela, sacudiu seus ombros e
procurou por vida em seu semblante perdido. Os lábios se moviam
sem que saísse nenhum som, e com certa dificuldade a comissária
identificou os versos de Jingles Bells nas palavras malditas. Largou
Berna como se ela fosse feita de veneno e suas mãos estivessem
contaminadas.
Deu dois passos para trás e esbarrou na garota que a salvara.
— Ela não tem mais salvação — a garota disse, puxando-a
outra vez.
— Não. — Elena parou, olhou para a comissária. Lágrimas
silenciosas escorriam do rosto de Berna, como se estivesse presa
em um transe que não queria experienciar.
— Você vai morrer. — A garota a puxou para mais perto, o rosto
a centímetros do seu. — Não seja estúpida. Ela não vai sair do
transe.
Elena balançou a cabeça em negação, engoliu o choro dentro
de si e deixou-se levar pela garota até a galley da classe executiva.
Amara ainda estava lá, dormindo profundamente, alheia a tudo que
acontecia ao seu redor. Uma pitada de esperança surgiu no peito de
Elena, ela agarrou a comandante sob os olhares acusatórios das
outras duas e a enfiou na galley entre elas. A garota puxou as
cortinas, como se aquele pedaço de pano fosse separá-las da
loucura do lado de fora, e depois se sentou junto às sobreviventes.
A melodia de Jingle Bells entrava pelas frestas da porta como
um murmúrio distante. À medida que as pessoas matavam e
morriam, ia perdendo sua força, dissipando-se nos ventos frios que
voltaram a assolar o Polo Norte.
— Tampem os ouvidos — a moça desconhecida mandou,
enfiando pedaços de sua roupa dentro dos ouvidos para não escutar.
Elena a obedeceu. Não sabia o que fazer, não entendia o que
acontecia. Podia ser bruxaria ou uma loucura cientificamente
comprovada, não faria diferença. Nem se houvesse lido sobre aquilo
em um livro ou estudado durante anos para lidar com situações do
tipo, estaria preparada para tamanha loucura.
Era uma música infantil, um cântico que costumava acalentar as
noites de Natal.
Enfiou pedaços de pano nos ouvidos de Amara e encolheu-se
ao seu lado. Por mais que lutasse em não escutar, a música parecia
ser cantada na beirada de seu ouvido. Infiltrava-se em seu cérebro
de modo doentio, consumindo o restante de sanidade que ainda
tinha.
Mesmo quando a última pessoa se matou, a música ainda
ressoava.
Capítulo 5

Ava, a mulher que foi arrastada junto com Elena pela


desconhecida — que agora tinha nome, era Kali — teve de ser
amarrada pouco tempo depois que os sobreviventes mataram uns
aos outros.
Elena não teve muita oportunidade de conhecê-la, era uma
moça calada, não muito mais velha que ela e tinha feições básicas.
Era mais uma estadunidense, sem muito o que lhe diferenciar do
restante dos passageiros da LivrAir. Fora isso, não conseguiu
perceber mais nada sobre Ava antes que ela começasse a cantar
sem controle algum a maldita música de Natal.
Por mais que Kali e Elena estivessem com os ouvidos tapados,
a melodia propagava-se pelos tecidos e chegava em suas audições.
Ava deixou-se consumir pela mesma loucura que o restante do grupo
foi engolido. Não tiveram outra opção, precisaram amarrá-la para
que não corresse até o culto satânico que havia virado o grupo de
sobreviventes do voo 3393 e matasse a si mesma — ou pior,
tentasse matá-las. Enfiaram um pedaço de uma camisa suja em sua
boca e assistiram angustiadas Ava murmurar palavras
incompreensíveis, enquanto lágrimas grossas desciam pelo rosto.
Não muito tempo depois, Ava cansou e dormiu. Elena e Kali
estavam alternando em vigia, e naquele momento Kali também
dormia, de modo que Elena lutava para ficar alerta. Brincava com os
fios de cabelo de Amara, massageando seu couro cabeludo
enquanto fixava o olhar no nada. Sentia-se desconexa de seu corpo,
afogada em um silêncio ensurdecedor dentro de sua mente.
Vez ou outra, os ventos zumbiam pelas frestas da fuselagem,
arrepiavam sua pele e a traziam de volta à lucidez. Elena variava
entre lembrar-se do passado e se segurar no presente, mas era
incapaz de absorver tudo que acontecia à sua volta. Sua mente
voltava às lembranças que tinha de sua irmã, quando ela ainda
estava viva, como se precisasse delas para manter a sanidade —
Letícia era uma bote salva-vidas em meio ao oceano perigoso de sua
mente. Se acreditasse em céu ou inferno, talvez tivesse cedido ao
frio ou à loucura, apenas para encontrar a caçula da família uma
última vez.
Elena tocou o broche da LivrAir por debaixo dos casacos. Tinha
virado comissária de bordo por causa da irmã. Lembrava-se de
brincar com ela no parquinho, fingindo que os pregos mal colocados
na madeira da casa na árvore eram os botões da cabine de
comando, e de dizer em uma voz séria, ensaiada, para Letícia
apertar os cintos que o avião estava prestes a decolar. Eram uma
tripulação de duas, a comandante e sua co-piloto, desbravando o
mundo em uma fantasia que só elas eram capazes de enxergar. Até
o dia em que a tripulação de duas, virou de uma só.
A comissária suspirou e cutucou Kali. Eram memórias muito
dolorosas para continuar acordada revivendo-as.
— É o seu turno — avisou com exagero, para que ela
entendesse mesmo com os ouvidos tapados. Kali balançou a cabeça
em afirmação e tentou se erguer para ficar mais alerta. Abriu os
olhos exageradamente e fez sinal para que Elena fosse deitar.
A loira recostou a cabeça na parede da galley e trouxe Amara
para mais perto. Certificou-se de que a comandante respirava antes
de se acomodar entre os agasalhos.
Estava com medo. Seus olhos insistiam em fechar, mas o
cérebro lutava bravamente contra, como se soubesse que, no
momento em que caísse no sono, estaria vulnerável demais às
loucuras que assolaram aquela aeronave.
Abriu os olhos com força e tentou focar na figura de Kali para
garantir que ela estava acordada, cuidando da retaguarda e que
poderia dormir em paz, mas não conseguiu. O sono a consumiu de
forma instantânea e Elena afogou-se nas memórias leitosas de
natais passados.
Por de trás das pálpebras, lembrou-se da última vez em que
passou a data com a irmã.
Foi o tipo de cochilo que poderia ter durado horas ou apenas um
minuto. Um piscar de olhos, uma consciência vazia. Seu corpo e
mente estavam tão exaustos que seria capaz de ter dormido por três
dias sem perceber. Escutava o som baixo de uma cantoria natalina,
os murmúrios calmos, como os de sua mãe quando a ninava quando
criança.
Como a voz de Letícia, penteando seus cabelos antes da festa
de Natal.
Quando abriu os olhos, entretanto, soube que havia dormido por
tempo demais.
Berna estava à sua frente. Os olhos grandes, redondos, tinham
choque e terror expresso neles e, como se pudessem ler sua alma,
fixavam-se em Elena. O sangue escorria pelo seu rosto, manchando
as bochechas e pingando pelo queixo, não conseguia identificar a
fonte, pareciam respingos disformes. Ela caiu para trás, batendo o
quadril no carpete imundo e arrastando-se para longe de Elena como
se a loira fosse a causa daquilo.
Só então a comissária percebeu a faca na mão de Berna.
Tocou o próprio corpo em busca de ferimentos, estava envolta
em uma embriaguez causada pelo sono e cogitou que o choque
pudesse ter lhe anestesiado a dor de ter sido esfaqueada. Sangue
manchava o chão e suas vestes, uma quantidade grande o suficiente
para empapar os tecidos.
Era isso, iria morrer no ártico, então.
Seus olhos se arrastaram até Amara, uma parte de si desejando
que ela não fosse sofrer dos mesmos males que assolaram o
restante da aeronave. Se podia pedir um milagre de Natal, era para
que ela sobrevivesse àquela tragédia. Infelizmente, ninguém estava
disposto a fazê-la crer que existia alguém no além-vida zelando por
eles.
Elena se curvou até o corpo da comandante e tocou-lhe com as
mãos trêmulas, descrente do que via. Sua garganta cortada jorrava
sangue. Não estava degolada como as outras, era um corte fino,
quase que delicado. Os dedos hesitantes passaram pela poça
escarlate que se formava em seu colo, subindo até o rosto delicado,
inchado pelo impacto da aeronave, e terminaram pousando sobre os
lábios calejados do frio.
Não. Elena murmurou a palavra para si mesma diversas vezes,
alheia a todo o restante do mundo. Aquilo era pior do que ela ter sido
assassinada. Era pior do que se aquele sangue fosse seu.
O pior tipo de abandono que alguém poderia sofrer era o que a
morte trazia. Assistir as pessoas que amava irem embora doía muito
mais do que a ideia de dormir para sempre e deixar aquele mundo. O
acidente era a realização de seus piores pesadelos, dos seus medos
mais profundos. Elena tinha se mudado para tão longe porque era
mais fácil abandonar do que ser abandonada — entretanto, ali
estava.
Gritou, agarrando o corpo de Amara contra si. Aquela morte
significava o fim, não era apenas a morte da comandante, da garota
por quem nutria desejos que jamais poderia satisfazer, era a morte
do que restava de sua esperança. O fim daquela tripulação.
Largou o corpo de sua amada contra o carpete e avançou para
cima de Berna, que tinha passado a gritar ao perceber o que fizera.
Implorava por perdão enquanto emendava a melodia clássica de
Jingle Bells, variando entre a loucura e a consciência ao mesmo
tempo em que Elena batia sua cabeça contra o chão e berrava
contra o seu rosto.
Quando ouvir os gritos de dor de Berna não foi o suficiente, ela
pegou a faca de sua mão e rasgou-lhe a garganta em um golpe firme
e rápido. O seu último grito precedeu o silêncio. Seus olhos
encararam o teto do avião uma última vez com os lábios
entreabertos, no meio de uma cantoria desesperada.
Elena sentiu o sangue respingando nas bochechas, escorrendo
pela lâmina e penetrando o tecido de sua luva. Seu coração pulsava
no mesmo movimento que fazia o sangue de Berna jorrar, ao mesmo
tempo em que uma estranha sensação de calmaria se espalhava por
seus ossos, fazendo-a esquecer do frio infernal que corria por seu
corpo.
— O que você fez? — Kali perguntou, sua voz julgadora saindo
cheia do sotaque indiano que carregava. — Você também está
contaminada… — ergueu-se do chão, os olhos baixos de quem
havia acabado de acordar arregalando-se com a adrenalina. — Meu
Deus…
— Você dormiu! — Elena acusou, erguendo a faca em sua
direção. — Deveria estar vigiando, mas dormiu. Ela está morta e a
culpa é sua!
Kali deu um passo para trás e se apoiou nas paredes da
aeronave. Ela olhou para Ava, presa e amordaçada no canto da
galley. Também estava morta, com a garganta aberta em um grito
desesperado, já que seus lábios ainda estavam tapados com o
tecido.
— É sua culpa! — Elena repetiu.
— Foi você quem matou ela — Kali murmurou, olhando para os
lados para saber por onde iria fugir. — Eu não matei ninguém, você
matou.
— Olhe pra ela! — Elena avançou com a faca em seu rosto e a
forçou a olhar para o corpo de Ava e Amara. — Estão mortas por sua
causa.
— Não! — Kali a empurrou com brutalidade, passou por cima do
corpo de Berna e correu pelos corredores da aeronave.
Elena a seguiu. Em seu interior, não sabia se desejava matá-la
ou se a ideia de ficar sozinha em meio aquela pilha de corpos a
assustava mais do que correr atrás de Kali.
Desceram pelas escorregadeiras da aeronave. Kali disparou
pela neve, escondendo-se no breu. Elena gritou por seu nome,
correu pelo gelo com a respiração pesada e entrecortada, chutou os
corpos dos loucos que se mataram no caminho. Xingou Deus e o
Diabo. Procurou pela última mulher sobrevivente daquela tragédia no
escuro, sentindo que cada segundo que passava respirando aquele
ar estava abrindo mão da lucidez, deixando-se viajar naquela loucura
que até mesmo tinha pitadas de consolo.
A ideia de ter controle sobre a própria vida a ponto de tirá-la não
era de todo ruim, Elena não seria levada pelo frio ou por acidentes,
seria a responsável por dizer quando aquele inferno acabava. O
facão em sua mão pesava como uma consolação, era arrastado pela
neve como se pudesse limpar o caminho de todas aquelas memórias
ruins, acabar com toda a dor que explodia em seu peito.
Elena se jogou na neve e inspirou o cheiro do gelo misturado ao
sangue e suor de suas roupas. Gritou o nome de Kali uma última
vez, mas a mulher tinha-se enfiado entre a neve e sumido no inferno
glacial.
Quando seus olhos captaram as estrelas da noite polar,
percebeu que ao fundo luzes verdes subiam pelo céu formando uma
aurora boreal. A noite polar astronômica envolveu-a em uma
sensação de conforto e destino que a sacudiu para um lado e para o
ouro como uma canção de ninar — como uma canção de natal.
Elena riu. Quanta loucura. Ergueu-se e voltou para a aeronave
com o facão apoiado na neve, abrindo caminho por onde passava.
Começou a cantarolar, despretensiosa, jogando o corpo para um
lado e para o outro, usando a lâmina como bengala.
Pouco tempo depois, berrava a melodia de Jingle Bells por todo
o Polo Norte, mas não havia ninguém para escutá-la.
Existiam, afinal, males muito piores do que a morte.
Capítulo 6

Os destroços do voo 3393 eram uma cena de filme de terror.


Adelia Ivanovna estava no ramo de acidentes aéreos há muitos
anos, mas nunca tinha visto nada como aquilo. Em seu treinamento,
quando ainda morava na Rússia, escutou sobre sobreviventes que
comeram uns aos outros nos Andes, mas de forma humana e
consciente, após vários dias de fome extrema e sem nenhuma
previsão de serem resgatados.
Aqueles passageiros e tripulantes estavam na noite polar por
apenas dois dias quando a equipe de resgate pousou no Polo Norte.
O resgate fora difícil, localizar aeronaves no breu do ártico, durante
nevascas, era algo que não conseguiriam se não tivessem um
enorme anteparo tecnológico. Mesmo que a tripulação tivesse
consciência das dificuldades no resgate, Adelia não conseguia
entender como perderam a fé a ponto de deliberadamente tirarem a
suas vidas.
Chutou uma caixa de chocolates jogada no chão da aeronave. A
comida não tinha acabado e, no gelo glacial, a falta de água não era
o suficiente para enlouquecê-los daquela forma. Não quis soar
insensível, mas seus pensamentos variavam entre compreender que
loucura ou histeria tinha recaído sobre aquele avião e julgar a falta
de esperança daquele povo. Seria possível que algo superior,
incompreensível para eles, os tivesse dominado?
— Algumas horas a mais sobrevivendo e teriam sido resgatados
— um colega lamentou ao seu lado, tirando fotos da cena enquanto
os corpos eram carregados para os helicópteros.
Adelia enfiou as mãos no bolso. O frio estava castigando mais
aos seus colegas do que a ela, mas não deixava de ser insuportável.
Encolheu-se dentro do casaco e continuou a avaliar o local. Era difícil
distinguir o que havia acontecido naquela bagunça.
Alguns pareciam ter morrido com o impacto. A pilha organizada
do lado de fora e coberta pela neve provavelmente era dos que
faleceram com a queda do avião. Entretanto, havia corpos ali sem
sinais de ferimentos, que só conseguiria avaliar a causa na autópsia
— e é claro, tinham cabeças rolando para todos os lados. Pessoas
degoladas por cada canto em que olhava, uns com cortes finos na
garganta, outros com o pescoço pendurado e alguns completamente
decepados do restante do corpo.
Lembrou-se de sua namorada, de uma noite em que viram
sobre um povo antigo que dançou até a morte. Histeria coletiva, ela
dissera. Era uma espécie de infecção mental, mas Adelia não tinha
certeza se a psicologia podia explicar o que acontecera ali.
As pessoas criariam teorias, falariam sobre bruxaria, assassinos
em série e qualquer loucura que lhes viesse à mente. Era mais fácil
imaginar narrativas fantasiosas do que admitir que aquelas pessoas
tinham mergulhado nas águas profundas de suas próprias mentes e
acabaram consumidas pelos medos que lhe afligiam após a queda
da aeronave.
O inconsciente era poderoso. Aquilo que guardavam dentro de
si e que não desejavam que o mundo visse nadava em locais
sombrios e se escondia em árvores retorcidas. Adelia sabia que o
ser humano poderia causar maus que ela jamais seria capaz de
imaginar ou compreender, ainda que seu passatempo fosse ler sobre
acidentes aeronáuticos e true crime. Bastava uma oportunidade para
que o monstro que habitava em cada um acordasse.
Parou de caminhar. Ali estava uma coisa que se encaixava
menos ainda. Talvez, se Adelia se esforçasse, poderia juntar as
pessoas mortas na queda, as que não tinham ferimentos, mas
também estavam mortas, e aquelas cabeças degoladas.
Poderia formar uma história.
Agachou-se diante da mulher loira, sentada nos fundos da
aeronave. Seus olhos castanhos fitavam o vazio com determinação.
Precisou de coragem para fazer aquilo. Não era como os outros que
tinham cortado as gargantas, esta tinha enfiado a faca no coração.
Adelia afastou suas roupas ao perceber que algo reluzia por
debaixo das vestes congeladas. Foi difícil movê-la, os membros
estavam petrificados e os punhos fechavam sobre o cabo do facão
com uma força descomunal. Uma fina camada de gelo cobria o seu
corpo, neve acumulando-se nas extremidades. O frio fez com que os
defuntos nem sequer fedessem, permaneceram preservados como
se a morte lhes tivesse visitado na noite anterior.
Estava com o uniforme da LivrAir, o broche de identificação
reluzindo com a luz das lanternas. Elena. Adelia soltou um suspiro e
balançou a cabeça em negação, incrédula. Aquele seria um dos
casos mais difíceis de explicar à mídia.
Escutou seu nome ser chamado do lado de fora e deixou a
comissária para trás. No caminho, sacudiu o próprio corpo, agoniada.
Enfiar uma faca no próprio coração não era para qualquer um.
Aquela mulher tinha chegado ao extremo, com certeza.
Adelia parou ao lado de um amigo que empacotava os mortos
para colocá-los nos helicópteros. Ele quis mostrar-lhe a pilha de
defuntos degolados, que ela já tinha visto de relance ao chegar no
local, mas optou por averiguar depois. Dezenas de pessoas estavam
jogadas na neve, em círculo, todas com as gargantas cortadas. Seria
um quebra cabeça difícil de encaixar.
Um dos funcionários da equipe de resgate passou por eles
carregando um corpo. Sua face séria, torcida, contrastava com a
cantoria que saia de seus lábios. Adelia franziu o cenho, tentando
identificar a música. Era um homem velho, corpulento, e um sorriso
irônico ameaçou brotar em seus lábios quando percebeu que ele se
parecia com o Papai Noel, com uma barba grossa branca e os fios
de cabelo da mesma cor escapando de um gorro escuro.
Percebeu que ele cantava Jingle Bells.
— Ei — seu amigo chamou o homem. — Pare de cantar, não é
apropriado.
O funcionário comprimiu os lábios e torceu o rosto. Não falou
nada, continuou carregando o corpo até o helicóptero — e pouco
tempo depois estava cantando outra vez.
Agradecimentos

Todas as manhãs, antes de ir para a escola, minha avó sentava


no banco do motorista do carro e iniciava o dia com o seu speech de
decolagem. Depois, disparávamos pela avenida vazia às seis da
manhã fingindo que subíamos para os céus. Ela era a comandante,
eu era a sua co-piloto.
De alguma forma, todas as minhas boas memórias quando falo
de escrita e aviação acabam chegando à minha avó. Ela marcou o
meu amor pela literatura, pelo Natal, por conhecer o mundo e pela
vida, me ensinou que a intensidade não era um defeito, mas uma
qualidade rara de se encontrar. Por tudo isso, sou muito agradecida.
Nenhuma das minhas histórias e ambições seriam tão profundas se
não tivessem o dedinho de loucura da minha avó Lúcia.
Luzes de Emergência foi um conto escrito tão rápido quanto um
voo de São Paulo para o Rio de Janeiro. Foi escrito e finalizado em
18 dias, para isso, eu precisei me dedicar nas madrugadas e
horários livres, o que só foi possível graças à minha outra avó,
Lindalva, que sempre me deixa despreocupada quanto a tudo na
vida e me ensina todos os dias que paz é a maior benção que um ser
humano pode ter. Sem a paz que ela traz aos meus dias, eu não
conseguiria produzir com qualidade um conto tão desafiador em tão
pouco tempo. Obrigada, vó! Ter uma rede de apoio é uma das
maiores preciosidades que tenho atualmente.
Quero agradecer também ao meu pai, que contra sua vontade
acabou me ajudando a pagar minha faculdade de ciências
aeronáuticas e (com muita reclamação) incentivou a filha a ser o que
ela quisesse. O seu apoio nesse meu sonho de alcançar os céus foi
crucial para que o meu amor pela aviação não morresse, sou muito
grata pela oportunidade de ter estudado uma das coisas que mais
amo e agora poder, finalmente, segurar meu diploma e dizer que sou
bacharel em ciências aeronáuticas.
Obrigada a minha madrasta, maravilhosa, que me apoia todos
os dias e foi uma das primeiras a acreditar que eu chegaria longe
sendo escritora. Você sabe que a sua presença na minha vida é uma
das coisas que jamais serei grata o suficiente.
Antes que eu escreva mais uma noveleta nos agradecimentos:
obrigada às minhas amigas e betas! Obrigada Ariane, por ser a
primeira pessoa a ler minhas loucuras e apoiar todas elas. Raíssa,
por ser minha alma gêmea mórbida e sempre exigir o pior de mim no
texto. Rafael, por ser o leitor beta mais organizado que já tive. Gabs,
por ser beta, amiga, tudo em uma única pessoa. Letícia, por sempre
me agraciar com suas informações aleatórias (e sombrias). E por
último, Camile e Mima, por serem as leitoras de romance que
aceitam se traumatizar lendo meus livros em nome da arte!
Obrigada, também, à minha revisora e amiga, Carol, que
mesmo morrendo de medo de trabalhar comigo porque eu sou
exigente, aceitou sem pensar duas vezes trabalhar neste livro só
porque me ama.
Esse ano foi cheio de conquistas para a minha carreira: ganhei
prêmio, esgotei livro físico e ultrapassei todas as minhas metas. Sem
você, leitor, nada disso seria possível. Muito obrigada por estar
sempre presente comigo nas redes sociais, por vibrar com as minhas
conquistas, torcer pelo meu sucesso e ler minhas obras. Nunca serei
grata o suficiente pelo que o apoio de vocês têm me proporcionado.
Espero que Luzes de Emergência tenha te lembrado que
existem coisas piores no Natal do que o seu parente chato e uva
passa no arroz. Feliz Natal!
Sobre a autora
Estudante de psicologia e ciências aeronáuticas, mentora de escrita, blogueirinha no tempo
livre e criadora do @escritoradebordo no Instagram — onde fala de suspense, escrita e
crime — Julie Pedrosa é uma escritora sanguinária, amante do caos e da intensidade —
algo fácil de perceber em suas obras. Seus sonhos incluem um bestseller físico, dois
milhões na conta e um jatinho particular que ela mesma pretende pilotar.

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