Você está na página 1de 3

BALCÃO DE

REDAÇÃO
TEMA 3 – 2021 | Período de 8 a 14 de fevereiro PRÉ-VESTIBULAR
PV
A VIDA SECRETA DOS OBJETOS
Pacavira, avisa à família que perdeu o trem ontem e agora só pode
ORIENTAÇÕES PARA O ALUNO
ir na semana que vem”; “Rosália do Putiú, Baturité, avisa aos irmãos
Os textos a seguir apresentam dois exemplos de crônicas cujos Ribamar e Vicente, na barra do Ceará, que a mãe faleceu repentina-
temas são objetos específicos que, por razões distintas, atraíram a mente; o enterro será hoje mesmo”.
atenção dos autores e ganharam nova dimensão. Como é próprio A princípio se estranha como é que chegam ao destino aquelas
do gênero, parte-se de um aspecto corriqueiro, supostamente ba- comunicações perdidas, sem horário certo. Depois se entende – os
nal, para que, por meio da escrita, seja-lhe conferido um sentido rádios estão sempre ligados, sempre tem em casa uma pessoa que
mais amplo. O terceiro texto traz uma matéria sobre a influência escuta as mensagens. Ao ouvir um nome conhecido, arrebita a ore-
dos objetos em nossas individualidades, reforçando representações lha, presta atenção e passa adiante o recado a quem interessa. É ra-
sociais nem sempre democráticas. Leia-os com atenção, buscando ríssimo perder-se um comunicado ou chegar ele com atraso. Sempre
associar as ideias principais ao seu repertório prévio para desenvol- alguém por perto o escutou.
ver a proposta de redação. E pode faltar na casa o dinheiro para o fumo ou o café, para a
rede nova, para o corte de pano da mulher, mas não faltará para o
carrego do rádio – ou seja, carga de pilhas do aparelho. E também,
TEXTO 1 sendo o rádio objeto de tão indispensável presença em todos os
O rádio lares, e sendo quase sempre escasso o dinheiro em moeda corrente,
Sei que o homem desembarcar na Lua foi o fato mais impor- os rádios são negociados nas barganhas mais singulares: um rádio
tante do século – e quem sabe até da história do mundo. Mas a di- novo por dois bacorinhos, um saco de milho e meia arroba de al-
vulgação do rádio transitor teve um alcance muito maior em sentido godão; um rádio velho, já passado por muitas mãos, por um amar-
imediato. rado de frangos e um relógio de pulso com corda quebrada; um
Não conheço outra criação do progresso que possuísse tal ca- rádio ainda mais ou menos por tantos dias de serviço, uma lanterna
pacidade de penetração nem que fosse tão rapidamente aceita pelas de pilha sem carrego e uma ninhada de ovos de galinha indiana...
populações mais atrasadas. Máquina de costura, luz elétrica, agulha Qualquer negócio vale, contanto que o rádio venha; pois é da nossa
de injeção, tudo isso espalhou-se depressa e profundamente – mas natureza, mesmo entre os mais esquecidos e abandonados dos seres,
não chegou aos pés do rádio de pilha. Até do motor a explosão o rá- esse desejo e esse orgulho de pertencer (nem que seja através de uma
dio ganha por causa da sua acessibilidade. Todo mundo pode sonhar voz distante dentro de uma caixa de plástico), de fazer parte, de se
com um carro – até índio – mas adquiri-lo já é outra coisa. Enquanto integrar na comunhão dos homens.
o rádio está praticamente ao alcance de todos – até do índio também. [22 de maio de 1974]
No sertão mais escondido, em barrancas secretas do rio por QUEIROZ, Rachel de. “O rádio”. O melhor da crônica brasileira.
Amazonas e Goiás, em serranias perdidas, em campinas longe do Rio de Janeiro: José Olympio, 2013. p. 82-84.
mundo, se a gente avista uma casa de caboclo, de colono, de pio-
neiro emigrante, nove casas em cada dez verá, por cima do telhado
Glossário:
rústico de cumeeira a cumeeira, o fio de cobre da antena do rádio.
Barrancas: barrancos.
Dentro da casa haverá um tamborete, um pote, um fogão de barro,
Cumeeira: cume; ponto mais elevado de um terreno.
nada mais. Porém, em cima de um caixote improvisado em mesa,
Caritó: prateleira rústica nas paredes das casas sertanejas.
trepado num caritó na parede da sala, quase infalivelmente você
Bacorinho: criança pequena; neném.
verá um rádio. Tocando o dia inteiro as suas musiquinhas de dois
vinténs (e por isso matando a velha e preciosa música folclórica),
espalhando notícias e – essa, sim, é a sua contribuição mais im-
TEXTO 2
portante – servindo de ligação entre populações distantes que não
têm entre si outro veículo de comunicação, dando recados, pedindo Na maciota
notícias, acusando cartas, servindo de correio gracioso aos que não No meio da adolescência, tendo em vista uma maior valoriza-
têm outro correio ou, tendo-o, não sabem como usá-lo. ção de minha pessoa pelo sexo oposto, resolvi implementar algumas
Rara é a estação interior – rara não, acho que não há mesmo melhorias no layout e abri mão do conforto em nome da estética.
nenhuma – que deixe de ter a sua “hora sertaneja” ou “alô, ser- Troquei os moletons pelos jeans, aposentei o relógio com joguinho
tão”, ou “mande o seu recado”, ou outro programa equivalente. E e, mais difícil, abandonei os deliciosos tênis esportivos, passando a
comove a gente ouvir o trançado das informações e avisos – “Dona usar calçados com proposta: All Stars, Adidas vintage, Pumas invo-
Maria de Tal, fazenda Carnaúba, sua filha manda dizer que o me- cados, sapatênis e outros modelos cheios de conceito e sem nenhu-
nino operou-se e vai se salvar”; “Seu Raimundinho Nonato, do sítio ma tecnologia de entressola. Foram 20 anos castigando as juntas

www.poliedroeducacao.com.br 1
BALCÃO DE REDAÇÃO – TEMA 3 – 2021

em nome do coração, batendo os calcanhares contra a rígida crosta o status do detento, dificultando a ressocialização; a roupa que você
terrestre só para tentar me mostrar um pouquinho mais atraente às usa e que reflete sua identidade.
mulheres – o que a gente não faz por amor? Quantas sandálias você já evitou usar por causa da cor da sua
Não sei se foi o aprimoramento de minha “identidade visual” – pele? “Muitas vezes”, respondeu o professor de língua portuguesa
como dizem os publicitários –, o amadurecimento interior, o curso Fabrício Gama, de Belém (PA). Negro, ele não costuma usar determi-
natural da vida ou tudo isso junto, só sei que funcionou. Longe de nadas vestimentas em espaços públicos para não ser discriminado –
ter me tornado um Don Juan das Perdizes, mas consegui perder como percebeu na fila do banco, quando duas pessoas esconderam o
a virgindade (para nunca mais encontrá-la – pelo menos não em celular na bolsa quando o avistaram. “Baixei a cabeça e sorri para mim
mim), tive algumas namoradas, depois me casei. E foi uma sensação mesmo. Fiquei na fila, saquei meu dinheiro e fui para a academia. Daí
de comezinha plenitude, uma cotidiana paz interior que me levou, você pergunta, ‘você sorri por quê?’. Porque comecei a me acostumar
semana passada, de volta aos tênis esportivos. Depois de duas a viver em um país preconceituoso, não seria a primeira vez que eu
décadas sem moleza – literalmente –, passei os últimos sete dias sofria isso”, lamenta.
calçando um Nike Air de corrida, cinza e amarelo, tão aprazível às No livro Trecos, Troços e Coisas, o antropólogo britânico
juntas quão desagradável à visão – segundo minha mulher. Daniel Miller aborda a cultura material dos objetos – não só
Ela está preocupada: não só com a feiura desses tênis, de cores como extensões do próprio ser humano, a exemplo dos óculos,
berrantes e cheios de faixas refletoras – desenhados mais para im- que corrigem a visão, mas também como registros da comple-
pedir um atropelamento na beira da estrada do que, digamos, para xidade social. “Um ‘treco’ é a materialização das relações que
serem exibidos no Spot –, mas com o que virá depois. Moletom? Rou- produzimos, e muitas vezes pode se virar contra nós mesmos e
pão aos domingos? Bigode? Pijama na padaria? Rider, Deus do céu?! tornar-se opressivo”. [...].
Ontem, minha irmã me ligou. Sempre defensora da elegância “Objetos não gritam para você como os professores, nem jo-
e solidária à minha mulher, queria saber dos detalhes. “É dos colori- gam um pedaço de giz em você, como o meu jogou, mas eles lhe
dos?”, “Não, não, branco é pior ainda!”, “Cê usa como, com jeans? ajudam docilmente a aprender como agir da forma apropriada. Essa
Sei... E a meia, de que cor? Nossa...”, “E se você usasse só dentro teoria também dá contorno e forma à ideia de que os objetos ‘fazem’
de casa?”, “Eu tô falando é pelo seu bem!”, “Tá, pela Julia, então! as pessoas. Porém, a lição da cultura material é que, quanto mais
Pensa na Julia! Cê acha que é legal ela se arrumar toda e sair por aí deixamos de notá-la, mais poderosa e determinante ela se mostra”,
com um marido de tênis de corrida?!”. afirma Miller, que se dedica ao estudo das relações humanas com as
Estou vivendo dias contraditórios. Sinto-me feliz e culpado, coisas e as consequências de seu consumo.
como um fumante que retoma o cigarro após anos de abstinência. [...]
Sinto-me reconfortado e aflito, como o divorciado que, fraquejan-
do, volta ao casamento problemático. Estarei eu me libertando dos Objetos como marcadores de gênero
grilhões da moda ou me atolando na areia movediça da preguiça? [...] Professora do Museu Paulista da Universidade de São Paulo
Seria esse um movimento de independência ou apenas mais um (USP), Vânia Carneiro estuda como os objetos constituem as diferen-
passo em direção ao Homer Simpson que aguarda a todos os mari- ças sociais e de gênero dentro do espaço doméstico. No século 19,
dos depois de alguns anos de casado? artefatos masculinos remetiam ao universo do trabalho intelectual,
Não sei, mas acho que vale a pena insistir e ver no que dá. A como livros, jornais, cigarros, poltronas de couro, mesas de madeira
cada dia, caminhando pela calçada, dando aquela corridinha para etc. Já os objetos relacionados às mulheres eram as de atividades
atravessar a rua ou mesmo parado, numa fila, passando o peso de do lar – toalhas, capas, bolsos, cestos, sacolas, caixas, máquina de
uma perna para outra, tenho mais certeza de minha opção. Do pó costura.
viemos e ao pó voltaremos: que possamos ao menos, entre o corpo “Com isso, os suportes materiais puderam atingir estratos so-
e a terra, colocar os anteparos necessários para amaciar a jornada. ciais menos abastados, e creio que isso acontece porque, ainda
A vida já é curta, meus amigos, não precisa ser dura também. E que hoje, esses marcadores são relevantes para muitas famílias” [...].
venha o moletom! (Brincadeira, amor, brincadeira...). Outra marca do feminino na casa é a associação do corpo da
PRATA, Antonio. “Na maciota”. Folha de S.Paulo, 29 ago. 2012. mulher aos objetos do lar. Por exemplo, flores presentes na estam-
Disponível em: <www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/1144838- pa da roupa da dona de casa estão presentes em almofadas. “No
na-maciota.shtml>. Acesso em: 6 jan. 2021. seriado ‘A Grande Família’, da TV Globo, a protagonista Nenê se
apresentava, por vezes, com um vestido de estampa igual à cortina”,
lembra a pesquisadora.
TEXTO 3 Preste atenção nas propagandas do Dia das Mães, ou do Dia
Trecos, troços e coisas: como os objetos dos Pais. Em geral, mostram imagens de filhos comprando eletrodo-
materiais definem nossa identidade mésticos e utensílios do lar para mães. Para eles, os pais, disposi-
Observe os objetos, trecos e coisas à sua volta. Perceba como tivos tecnológicos, livros. “É preciso que tomemos consciência dos
eles têm o poder de nos distinguir e de nos afetar – seja oprimindo objetos e de sua importância para o que fazemos de nós mesmos. É
ou evidenciando quem somos: a catraca do ônibus que limita a pas- preciso uma tomada de consciência – não para amarmos ou odiar-
sagem de pessoas obesas; a tornozeleira eletrônica que “denuncia” mos incondicionalmente os artefatos que nos rondam e nos consti-

www.poliedroeducacao.com.br 2
BALCÃO DE REDAÇÃO – TEMA 3 – 2021

tuem, mas para entendermos sua relevância, sua não neutralidade e


PROPOSTA DE REDAÇÃO
o que eles ajudam a ocultar ou revelar”.
[...] Com base na leitura e análise da coletânea e em suas experiên-
cias pessoais, redija uma crônica cujo tema seja um objeto ainda
Ressignificação dos objetos usual que carregue consigo alguma representação social signifi-
As coisas ao nosso redor falam muito sobre quem somos. A todo cativa da qual nem você se dava conta. Nela, você deve: deixar
instante, damos novo sentido a artefatos que, no passado, foram claro desde o início o objeto que será trabalhado; evidenciar a as-
motivos de opressão. [...] Se parássemos para observar a densidade sociação entre o uso desse objeto e a representação social a ele
de significados que cada um dos artefatos com os quais nos re- correspondente; narrar como foi a tomada de consciência sobre a
lacionamos diariamente carrega, nossa vida paralisaria, acredita o significância desse objeto; concluir de maneira a reforçar a reflexão
antropólogo Marcos Carvalho. “Mas também acredito que exista um sugerida ao longo da crônica.
jogo complexo entre regimes de visibilidade e invisibilidade. O que Lembre-se de cumprir os seguintes critérios:
é visível para alguns não é para outros. E, às vezes, muito esforço é • atribuir um título à crônica;
empreendido para produzir processos de visibilização – ou invisibili- • utilizar a norma-padrão da língua portuguesa, recorrendo à
zação – por grupos e contextos particulares”. [...]. informalidade quando necessário;
Mais recentemente, em 2019, foi a imagem de uma cadeira • adequar a interlocução à situação e ao gênero propostos;
de vime com encosto circular alto na foto de uma festa de aniver- • respeitar a estrutura do gênero textual solicitado;
sário badalada em Salvador (BA) que expôs o racismo naturalizado • utilizar o mínimo de 18 e o máximo de 25 linhas.
no Brasil. A aniversariante, a socialite e ex-editora da revista Vogue
Brasil, Donata Meirelles, postou numa rede social uma foto em que
aparecia sentada na tal cadeira, ladeada por duas mulheres negras Boa produção!
em trajes típicos usados pelas baianas em festas de candomblé. A Professora Andressa Tiossi
cadeira, do modelo conhecido como Emanuelle ou cadeira-pavão,
repercutiu como representação racista de uma sinhá rodeada por
suas mucamas escravas, típica cena do Brasil colonial.
Em outra fotografia, captada em 1968, a cadeira-pavão tem re- Orientações para o professor
presentação exatamente oposta. Numa imagem icônica, o fundador Crônicas tratam de assuntos que, apesar de recorrentes em nosso
do partido Black Panthers e líder do movimento negro nos Estados cotidiano, tendem a ser imperceptíveis aos olhares menos atentos.
Unidos, Huey Newton, posa sentado numa cadeira-pavão segurando Por isso, estudar esse gênero é uma ótima maneira de exercitar a
um rifle em uma das mãos e uma lança na outra, retratando o poder observação de sutilezas, detalhes ao nosso redor que possam ren-
e a realeza negra. Em 2018, a cantora Beyoncé resgatou essa sim- der boas análises. Observar o mundo é fundamental para a boa
bologia ao incluir uma cadeira-pavão no show da turnê “Formation”, interpretação e para a escrita. Além disso, crônicas são bons retra-
replicando a imagem de Newton no palco. tos de contextos sociais e históricos, por isso a coletânea explora
Não, não é só uma cadeira. exemplos de diferentes períodos – em concordância com o texto 3,
RÔMANY, Ítalo. “Trecos, troços e coisas: como os objetos materiais que trata justamente dos valores simbólicos de determinados ob-
definem nossa identidade”. TAB-UOL, 10 jun. 2020. Disponível em: jetos nos mais variados contextos. Após a discussão e análise do
<https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/06/10/como-chinelos- tema em aula, é fundamental reforçar o viés literário predominante
cadeiras-e-mamadeira-de-piroca-explicam-nossa-sociedade.htm>.
no gênero, ainda que apareça de formas sutis e mesmo que seja
Acesso em: 6 jan. 2021.
recorrente no universo jornalístico. Crônicas são feitas de histórias
bem-contadas, por isso, por mais que a proposta temática envolva
uma discussão sobre eventuais questões sociais, esse conteúdo pre-
cisa aparecer de forma leve na produção textual.

www.poliedroeducacao.com.br 3

Você também pode gostar