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Territorialidades e diversidade

nos campos e nas cidades


latino-americanas e francesas

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Territorialidades e diversidade
nos campos e nas cidades
latino-americanas e francesas

Marcos Aurélio Saquet


Júlio César Suzuki
Glaucio José Marafon
[organizadores]

1ª edição
Outras Expressões
São Paulo – 2011

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Copyright © 2011 Grupo de Estudos Territoriais – GETERR

Esta obra possui Conselho Editorial indicada pelo


Grupo de Estudos Territoriais – GETERR
Marcos Aurélio Saquet – Presidente
Adilson Francelino Alves
Edson Belo Clemente de Souza
Eliseu Savério Sposito
Luciano Zanetti Pêssoa Candiotto
Roseli Alves dos Santos
Sílvia Regina Pereira
Walquíria Kruger Corrêa

Revisão: Sueli Baleeiro


Capa, Projeto gráfico e Diagramação: Krits Estúdio

Impressão: Cromosete
Tiragem: 1 000 exemplares

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

T327 Territorialidades e diversidade nos campos e nas cidades latino-


americanas e francesas. / Marcos Aurélio Saquet, Júlio
César Suzuki, Glaucio José Marafon (organizadores).
--1.ed.--São Paulo : Outras Expressões, 2011.
412p. : graf., fotos, mapas.

Indexado em GeoDados – http://www.geodados.uem.br


ISBN 978-85-64421-02-8
Edição bilíngüe: português e francês.

1. Territórios. 2. Espaço urbano – América Latina.


3. Espaço urbano – França. 4. Geografia agrária – Brasil.
4. Educação do campo. I. Saquet, Marcos Aurélio, org.
II. Suzuki, Julio César, org. III. Marafon, Glaucio, José, org. IV. Título.

CDD 910
CDU 911.3
Catalogação na Publicação: Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250

1a edição: março de 2011

A responsabilidade dos conteúdos de cada texto é de seus respectivos autores.

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Editora Outras Expressões


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Sumário

Olhar e ler o campo e a cidade: uma apresentação 7


Geografia: pensamento impensado
(Aos colegas e companheiros geógrafos do grande Brasil) 13
Massimo Quaini

Percursos teórico-metodológicos da Geografia Agrária


brasileira: da formação à autonomia intelectual 23
Júlio César Suzuki

Nas “trilhas” da geografia agrária: reflexões sobre uma trajetória 41


Vera Lúcia Salazar Pessôa

As perspectivas para os encontros nacionais de geografia agrária 51


Rosa Maria Vieira Medeiros

Dilemas na conceituação do campo e do rural no Brasil 59


Rosa Maria Vieira Medeiros

Dilemas na conceituação da cidade e do urbano no Brasil 67


Paulo Roberto Rodrigues Soares

Algumas observações sobre a construção de conceitos


e os conceitos de cidade e urbano 79
Sandra Lencioni

France: mutations des relations villes-campagnes de 1950 à 2008 –


evolutions géographiques et débats théoriques 99
Yves Jean

“O campo e a cidade no Brasil do passado” 129


Vanda Ueda

Relação cidade campo: as metamorfoses da cidade 139


Odette Carvalho de Lima Seabra

Relações campo – cidade: uma leitura a partir do espaço rural fluminense 155
Glaucio Jose Marafon

Trajetórias e cenários de integração das populações


rurais: exemplos do Brasil e da França 169
Martine Droulers

Les rapports ville-campagne en Amerique Andine et en Afrique


Occidentale: quelques reflexions a partir d’une comparaison 183
Jean-Louis Chaléard

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O novo tempo do capital globalizante e as novas relações campo-cidade 195
Júlia Adão Bernardes

Contribuições teórico-metodológicas para uma abordagem


territorial multidimensional em geografia agrária 209
Marcos Aurélio Saquet

Mercado de terras: estrangeirização, disputas


territoriais e ações governamentais no Brasil 227
Sérgio Sauer

Mercado da terra e diferentes formas de apropriação territorial 247


Márcia Yukari Mizusaki

Acumulação flexível, precarização e empreendedorismo


no espaço agrário brasileiro 261
Jacob Binsztok

A agricultura familiar no contexto do rural contemporâneo 275


Luciano Zanetti Pessôa Candiotto

As territorialidades da produção fumageira: o caso da empresa Souza Cruz 299


Luís Carlos Braga

Desafios do desenvolvimento territorial para a agricultura familiar 321


Roselí Alves dos Santos

Alternativas de desarrollo regional endógeno


en la región periférica Surcolombiana 335
Luis Carlos Jiménez Reyes

Los movimientos antisistemicos de America Latina


y su lucha por la tierra en el siglo xxi 343
Carlos Antonio Aguirre Rojas

Da luta pela posse da terra à formação territorial: construção


do éthos da agricultura familiar e os desafios contemporâneos 365
Adilson Francelino Alves

Educação do Campo e Formação Política 385


Helana Célia de Abreu Freitas

A Educação do Campo no território institucional da Secretaria


de Estado da Educação do Paraná (SEED/PR): algumas considerações 397
Willian Simões

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Olhar e ler o campo e a cidade:
uma apresentação

Olhar o mundo faz parte da natureza humana. No entanto, não há


uma maneira única de recortar o real por meio do olhar; há múltiplas pers­
pectivas e dimensões. É o que se dá também em relação à construção de
uma interpretação das dinâmicas e dos processos nos quais estamos todos
inseridos; há leituras diversas, sendo, em muitos casos, conflitantes.
O campo e a cidade, tão caras aos geógrafos, bem como a todos os
cientistas humanos e sociais, expressam bem a diversidade de olhares e de
leituras constituídas acerca de suas naturezas, singularidades, particulari­
dades e universalidades.
No Brasil, a história dos eventos acadêmicos geográficos permite re­
velar muito da diversidade de interpretações que foram constituídas sobre
estas duas realidades espaciais, sendo o Encontro Nacional de Geografia
Agrária (ENGA) e o Encontro Nacional o Rural e o Urbano no Brasil (SI­
NARUB), dois dos seus espaços privilegiados.
O ENGA é um dos mais importantes eventos acadêmicos da Geo­
grafia, sendo, ainda, um dos mais antigos. Sua história pode dar conta do
seu significado, já que a realização do XX ENGA, em Francisco Beltrão, é
a continuidade de mais de 30 anos de encontros e debates acerca da Geo­
grafia e das leituras acerca do espaço agrário brasileiro.
A realização do XX ENGA objetivou estabelecer intercâmbios de
coo­peração acadêmica e científica entre pesquisadores vinculados a gru­
pos de estudos congêneres da geografia agrária e demais interessados, pos­

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Olhar e ler o campo e a cidade: uma apresentação

sibilitando um espaço de socialização e debates sobre a questão agrária


brasileira e a construção de uma teoria social crítica.
Este encontro representa a celebração da continuidade e amadu­
recimento de um processo de estudos e debates das temáticas agrárias,
que se originou nos anos de 1970, congregando pesquisadores da geografia
agrária brasileira, os quais buscavam, a partir da realização de um encon­
tro temático, o fortalecimento deste campo do conhecimento.
Assim, partindo do seio da Associação dos Geógrafos Brasileiros
(AGB), em 1978, foi realizado, na cidade de Salgado (SE), o I ENGA, na
efervescência da mudança de paradigma que se instituía na geografia bra­
sileira em decorrência das mudanças políticas, econômicas e sociais pelas
quais passava o país, transformando diretamente a organização territorial
do espaço agrário. Neste contexto, as valiosas contribuições de geógrafos
como Orlando Valverde, Manuel Correia de Andrade, Pasquale Petrone e
Maria do Carmo Galvão, entre outros, foram fundamentais.
O ENGA foi constituído, ainda, como uma tentativa de ampliar o
espaço para os debates caros à Geografia Agrária, extremamente reduzi­
do, nos Encontros Nacionais de Geógrafos da AGB, bem como em seus
Congressos, por conta do número cada vez mais elevado de áreas do co­
nhecimento em que se fragmentava a Geografia, presentes nesses eventos
acadêmicos.
O II ENGA ocorreu, em 1979, na cidade de Rio Claro (SP), organi­
zado pela UNESP. Neste encontro, foi definido que os subsequentes ocor­
reriam em diferentes regiões brasileiras e que a responsabilidade de orga­
nização seria da respectiva unidade universitária. Até o encontro ocorrido
em Florianópolis, em 1988, a periodicidade foi anual, a partir daí a ple­
nária decidiu que, por questões organizacionais e financeiras, o mesmo
aconteceria a cada dois anos, com exceção do que ocorrera entre o III e o
IV ENGA, conforme se pode notar na lista abaixo, com o local e ano de rea­
lização de cada um dos encontros:

III ENGA, no Rio de Janeiro (RJ), em 1980;


IV ENGA, em Uberlândia (MG), em 1983;
V ENGA, em Santa Maria (RS), em 1984;
VI ENGA, em Garanhuns (PE), em 1985;
VII ENGA, em Belo Horizonte (MG), em 1986;
VIII ENGA, em Barra dos Coqueiros (SE), em 1987;
IX ENGA, em Florianópolis (SC), em 1988;
X ENGA, em Teresópolis (RJ), em 1990;
XI ENGA, em Maringá (PR), em 1992;
XII ENGA, em Águas de São Pedro, em 1994;
XIII ENGA, em Diamantina (MG), em 1996;
XIV ENGA, em presidente Prudente (SP), em 1998.

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Júlio César Suzuki | Marcos Aurélio Saquet | Glaucio José Marafon

A partir dos debates realizados, esse importante encontro de geó­


grafos estudiosos das questões agrárias ganha cada vez mais força e ex­
pressão na Geografia nacional e internacional e, a partir de 2000, com
a realização do XV ENGA, em Goiânia (GO), efetiva-se a ampliação do
mesmo com a participação dos estudantes de graduação, em sua Assem­
bléia Geral, que, juntamente com estudantes de pós-graduação, professo­
res e pesquisadores, avançam nas discussões e na compreensão da pro­
blemática do campo brasileiro.
Com a inserção estudantil, especialmente da graduação, foi cres­
cente, tanto a participação, como a apresentação de trabalhos acadêmi­
cos. As comunicações livres se constituem num espaço de diálogos e in­
tercâmbios, reunindo resultados de pesquisas realizadas em diferentes
lugares do Brasil, por distintos pesquisadores, sobre diferentes temas e
perspectivas metodológicas de abordagem, constituindo olhares e leitu­
ras muito diversas.
A partir do ENGA de Goiânia, foram realizados os que seguem:

XV ENGA, em Goiânia (GO), em 2000;


XVI ENGA, em Petrolina (PE), em 2002;
XVII ENGA, em Gramado (RS), em 2004;
XVIII ENGA, no Rio de Janeiro, em 2006;
XIX ENGA, em São Paulo, em 2009.

O objetivo do XIX ENGA foi o de analisar as dinâmicas espaciais


presentes no campo e na agricultura, contemplando as mais recentes dis­
cussões no âmbito da Geografia Agrária no sentido de permitir um apro­
fundamento e uma reflexão no tema norteador do evento, ou seja, Forma­
ção e contemporaneidade da diversidade socioespacial no campo.
Conforme se definiu na plenária do XIX ENGA, na USP, o próxi­
mo encontro seria realizado em Francisco Beltrão (PR) e organizado pelos
professores, estudantes e pesquisadores do Grupo de Estudos Territoriais
(GETERR) e do Colegiado de Geografia da Universidade Estadual do Oes­
te do Paraná, dando continuidade na organização de um evento de caráter
nacional e de forte expressão na organização, debate e pesquisa acerca da
geografia agrária brasileira.
Assim, o ENGA tem se constituído em um marco importante na his­
tória dos encontros nacionais de geografia agrária, tal qual está se tornan­
do o SINARUB, organizado, em sua primeira edição, em 2006, na Univer­
sidade de São Paulo, por idealização dos Profs. Drs. Júlio César Suzuki e
Vanda Ueda, sob a coordenação conjunta dos programas de pós-graduação
em Geografia Humana da Universidade de São Paulo e em Geografia da

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Olhar e ler o campo e a cidade: uma apresentação

Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Universidade do Estado


do Rio de Janeiro (sede da segunda edição do evento).
O objetivo do I SINARUB foi o de constituir um espaço privilegiado
para os debates teórico-metodológicos acerca do campo e da cidade, bem
como das leituras referentes à relação entre agricultura e urbanização,
cujas pesquisas já vinham sendo apresentadas em outros eventos, cada vez
com mais expressividade, a partir do final século XX e início do XXI.
Assim, o presente livro reune os textos referentes às apresentações
em mesas redondas e conferências do XIX e XX Encontros Nacionais de
Geografia Agrária e do I Simpósio Nacional o Rural e o Urbano no Brasil,
além de contruibuições importantes de pesquisadores da Universidade Es­
tadual do Oeste do Paraná.
O primeiro e primoroso texto de Massimo Quaini, além da apresen­
tação de sentidos e direções fundamentais pelos quais trilhavam os que
pretendiam criar uma outra Geografia, a Crítica, nos dois lados do Oceano
Atlântico, propõe a valorização de saberes dos homens artesãos e da prote­
ção ambiental na continuidade dos caminhos que serão construídos pelos
geógrafos em seu caminhar.
Dessa recuperação da história da Geografia e dos seus sentidos e
direções, bebe, também, Júlio César Suzuki, ao propor duas linhas pa­
radigmáticas principais no seio dos percursos teórico-metodológicos da
Geografia Agrária, a Geografia do Campesinato e a Geografia da Mo­
dernização.
Vera Lúcia Salazar Pessoa e Rosa Maria Vieira Medeiros dedicam-
se à leitura dos encontros nacionais de Geografia Agrária, particularmente
em seu papel agregador de pesquisadores e de produção de conhecimento
novo, com temas dos mais diversos.
O debate conceitual acerca do campo e da cidade foi um dos que es­
tiveram permeando os eventos de Geografia Agrária, recuperado nas aná­
lises de Rosa Maria Vieira Medeiros, Paulo Roberto Rodrigues Soares e
Sandra Lencioni.
Yves Jean, Vanda Ueda, Odette Carvalho de Lima Seabra e Gláu­
cio Marafon brindam-nos com discussão importante e necessária acer­
ca das transformações do campo e da cidade, na França e no Brasil,
tendo como referências regiões e localidades diversas, o que contribui
para a discussão de teorias e métodos diversos utilizados nas diversas
abordagens.
Além de Yves Jean, dois outros autores franceses, Martine Droulers
e Jean-Louis Chaléard, partirão de seus estudos em realidades geográficas
diferentes para debater as dinâmicas que perpassam o campo e a cidade;
Martine Droulers tendo como referência a França e o Brasil e Jean-Louis
Chaléard a América Andina e a África Ocidental.

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Júlio César Suzuki | Marcos Aurélio Saquet | Glaucio José Marafon

Júlia Adão Bernardes insere seu debate na análise da relação cidade-


campo no contexto do capital globalizante, tomando como referência a ca­
deia carne/grãos, no Mato Grosso, ao largo da BR-163.
Marcos Aurelio Saquet nos brinda com seu debate acerca da aborda­
gem territorial multidimensional em Geografia Agrária, sendo a categoria
território instrumento das análises realizadas por Sérgio Sauer e Márcia
Yukari Mizusaki em relação ao mercado de terras no Brasil.
Jacob Binsztok realiza debate importante acerca das dinâmicas e
processos que envolvem a produção agrícola atual.
Luciano Zanetti Pessôa Candiotto, Luís Carlos Braga e Roselí Al­
ves dos Santos aprofundam o debate da importância do trabalho de base
familiar na agricultura brasileira, bem como seus desafios e dilemas, to­
mando como referência situações diversas de inserção desses trabalha­
dores do campo.
Luis Carlos Jiménez Reyes caminha pelo debate da construção de
alternativas para o campo colombiano, tendo como foco a região periféri­
ca sul-colombiana.
Carlos Antonio Aguirre Rojas e Adilson Francelino Alves trilham
pelo debate da luta pela terra, como movimentos antissistêmicos e como
produção territorial, respectivamente.
Avançando no sentido da reflexão do significado cultural da luta
pela terra, transmitido por meios formais de educação, Helana Célia de
Abreu Freitas relaciona educação do campo e formação política, enquan­
to William Simões nos apresenta a experiência da Secretaria de Estado da
Educação do Paraná com a educação do campo.
Os debates reunidos nesse livro seguem por teorias, métodos e abor­
dagens muito distintos. Não constroem, assim, pedaços que se unem em
uma mesma direção e sentido na produção de leituras importantes para a
elaboração de uma Geografia Agrária contemporânea, mas revelam a di­
versidade que marca o momento atual do pensamento acerca do campo e
da cidade, tomando como referência situações geográficas, sobretudo, bra­
sileiras e latino-americanas.
Assim, cabe-nos, aos organizadores, agradecer aos intelectuais que
participaram de vários projetos de produção de espaços de diálogo acadê­
micos fundamentais à troca de experiências, necessária ao aprofundamen­
to das leituras sobre o campo e a cidade, bem como aos participantes em
geral que tanto aqueceram as discussões das mesas redondas, das comuni­
cações livres, dos corredores, das refeições.
Por fim, cabe-nos reiterar o agradecimento, feito oportunamente,
na realização dos XIX e XX Encontros Nacionais de Geografia Agrária e I
Simpósio Nacional o Rural e o Urbano no Brasil, às agências de fomento
que, sem as quais nada teria sido possível, muito contribuiram para que os

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Olhar e ler o campo e a cidade: uma apresentação

diálogos se realizassem, bem como a presente publicação: CAPES, CNPq,


FAPESP e Fundação Araucária. Vale, ainda, mencionar o apoio concedido
pela Universidade de São Paulo, em várias de suas instâncias, e pela Uni­
versidade Estadual do Oeste do Paraná.

São Paulo, Francisco Beltrão e Rio de Janeiro, verão de 2011.

Júlio César Suzuki


Marcos Aurélio Saquet
Glaucio José Marafon

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Geografia: pensamento impensado
(Aos colegas e companheiros geógrafos
do grande Brasil)
1

Massimo Quaini
Universidade de Gênova | Itália

Estou muito triste por não poder aceitar o seu convite. Seria muito
prazeiroso, de fato, concluir minha carreira acadêmica (me aposentarei no
próximo ano – 2011) com a conferência de abertura de um congresso que
reúne os geógrafos de um grande país como o Brasil e, em particular, aque­
les que se ocupam da geografia do mundo camponês. Neste, nas suas raí­
zes culturais mais profundas e ainda não extintas vejo as possibilidades de
mudança em um planeta devastado pela longa crise de um imperialismo
financeiro e industrial sem futuro. Politicamente, de fato, reconheço-me
cada vez mais no movimento Terra madre nascido no meu país, graças ao
Slow Food e às intuições de Carlin Petrini, movimento atualmente difundi­
do em muitos países, inclusive o Brasil.
Limito-me a mandar-lhes, da minha pequena Ligúria, algumas
considerações que correspondem a um balanço das minhas atividades
como pesquisador em geografia. Alguns conhecem os meus primeiros li­
vros, em particular Marxismo e geografia, no qual alimentei a esperança
de que a geografia pudesse, juntamente com outras ciências sociais, re­
1
Texto elaborado em virtude de sua impossibilidade de viajar ao Brasil e ministrar a con­
ferência de abertura do XX Encontro Nacional de Geografia Agrária (XX ENGA), que ocor­
reu na Unioeste, Francisco Beltrão (PR), entre 25 e 29 de outubro de 2010. Escrito dirigido
aos geógrafos brasileiros e especialmente para esta publicação. Tradução: Marcos Aurelio
Saquet, que escolheu também o título principal do texto.

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Geografia: pensamento impensado
(Aos colegas e companheiros geógrafos do grande Brasil)

encontrar na análise marxista maior capacidade para contribuir para a


transformação do mundo. A esperança de contribuir com a construção
de uma nova humanidade capaz de responder aos desafios de um mundo
cada vez mais globalizado e dominado pelo desfrutar do homem sobre
ele mesmo.
Atualmente, penso que um dos maiores limites da análise marxista
foi, não tanto aquele de não ter considerado os problemas do território ou
o que mais tarde chamamos de “questão ambiental” (como sustentaram
muitos geógrafos europeus, em particular Paul Claval), mas o de ter con­
siderado muito cedo a superação pela história e pela modernidade capita­
lista dos saberes e práticas camponesas, o de ter negado a complexidade so­
cial, cultural e também geográfico-territorial de um mundo e de paisagens
geográficas e sociais que a concepção urbanocêntrica do progresso civil e
econômico havia facilmente condenado.
Para ser ainda mais explícito: atualmente, além do movimento Terra
madre, reconheço-me no pensamento de um urbanista-geógrafo como Al­
berto Magnaghi, quando escreve que “a terra prometida pela modernização
foi transformada em terra devastada pela desertificação ambiental, social e
espiritual”. Tenho ainda a satisfação de reconhecer que Marx e alguns dos
teóricos marxistas, como Rosa Luxemburgo, tinham intuído os riscos da
modernização dessa natureza. Porém, raramente o movimento operário e
socialista, sobretudo na velha Europa, soube dar centralidade a questões
como a de uma relação equilibrada entre cidade e campo. Não soube fazer
nem quando, no plano cultural, podia contar com o pensamento anárquico
de Reclus e Kropoktin.
Nas minhas obras, Marxismo e geografia (1974) e A construção da
geografia humana (1975), pretendia andar nessa direção. Foram, junta­
mente com outras obras de Giuseppe Dematteis e Pasquale Coppola, ma­
nifestações de uma “escola” que as forças terroristas e o consequente re­
fluxo político ocorrido na Itália, no final dos anos 1970, impediram de se
desenvolver. Mesmo onde existiam condições mais favoráveis, como na
França, registraram-se mutações genéticas incomuns, como foi demons­
trado pela Geopolítica e pela evolução de uma revista internacional como
Hérodote.
É por isso que valorizo os sinais provocados por minhas publica­
ções na América Latina – no México, na Argentina e sobretudo no Brasil –,
influenciando na formação de geógrafos e contribuíndo, talvez, para que
geógrafos como Milton Santos se sentissem menos isolados nas suas ba­
talhas em favor de uma outra geografia. Surpreendo-me, também, quan­
do leio reconstruções históricas como a de Joan Nogué, geógrafo da
Universidade de Girona e diretor do Observatório da paisagem da Cata­
lunha, inserindo em Entre paisajes (2009-2010), aqueles que, juntamente
com Reclus e Kropotkin, influenciaram na construção de uma “geogra­

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Massimo Quaini

fia outra”: David Harvey, Richard Peet, Yves Lacoste, Massimo Quaini e
William Bunge2.
Citei Noguè não tanto pela presença de meu nome, mas sobretudo
porque ratifico a sua afirmação de que da “geografia radical” desenvolvi­
da nos anos 1960, dos dois lados do Atlântico, nasceram e continuam nas­
cendo “geografias críticas” que, de acordo com cada contexto, favorecem
a abertura de novos caminhos em direção a um outro futuro, descobrindo
paisagens inéditas. Também estou convencido de que hoje “os nossos ma­
pas contêm terras desconhecidas (...) que resultam opacas. Em direção a
esses novos espaços brancos, a essas geografias outras são dirigidas novas
‘expedições’ geográficas”3.
Por isso, apesar do pessimismo que tenho em relação a uma geogra­
fia internacional, cada vez mais vazia com base no culturalismo (no sen­
tido do relativismo cultural mais conservador), penso que houve e ainda
existem geografias que, com conteúdos diversos daqueles previstos, contri­
buíram e estão contribuindo para experimentar um novo humanismo do
qual temos grande necessidade.
Para entender melhor o sentido dessa evolução é útil traçar outra liga­
ção com os anos 1970. Em 1978, escrevi para a coleção Espresso Strumenti,
idealizada e dirigida por Umberto Eco, um texto intitulado Depois da Geo­
grafia (Dopo la geografia). O título foi escolhido pelo responsável pela cole­
ção, que se encarregou também de apresentar o texto com palavras que vale
a pena recordar, pois ajudam a entender o caminho feito pela Geografia:

Se recordamos de nossos estudos escolares, a geografia é um conjunto de


noções concernentes ao fato que a capital da Jamaica é Kingston, a Suécia
tem sete milhões e meio de habitantes e tal país destaca-se na produção de
ferro. Nesse sentido, a Geografia parece uma ciência muito ‘objetiva’, sobre
a qual não pesam nem ideologias nem opiniões pessoais. Parece uma ciên­
cia ‘finita’: o que nos resta saber sobre nosso planeta? Porém, Depois da Geo­
grafia – depois da geografia das escolas, das universidades, dos exercícios
– ocorre a reflexão crítica sobre as origens e fundamentos do saber geográ­
fico, que sempre esteve ligado a visões religiosas, econômicas e políticas, a
interesses produtivos e militares, a projetos de uso da terra ou dos habitan­
tes. Depois da geografia das escolas acontece a descoberta de que a geografia
não é neutra e que tem motivações ideológicas também na escolha da escala
para um mapa. O livro de Quaini mostra-nos uma geografia que é política
também quando se mede uma paisagem alpina, fala da geografia dos con­
quistadores e da dos indígenas, da geografia do colonialismo, dizendo-nos
porque e como a geografia está em transformação e precisa ser refeita.

2
Surpreendo-me porque a tendência é reproduzir a argumentação de Paul Claval que, a partir
de sua idéia de uma ciência pura e neutra, discute e distingue Harvey de Quaini, atribuindo
ao segundo os adjetivos de stalinismo e dogmatismo.
3
Nogué, Joan. Altri paesaggi. Milão: Franco Angeli, 2010, p. 25-26.

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Geografia: pensamento impensado
(Aos colegas e companheiros geógrafos do grande Brasil)

Atualmente, não é mais tempo de denunciar, como fazíamos nos


anos 1970, a pretensa neutralidade da geografia ou a ausência de motiva­
ções políticas explícitas resultantes de um empenho social, visto que exis­
tem ainda muitos geógrafos que trabalham com a planificação urbana e
territorial e com a gestão do patrimônio coletivo que é representado pela
paisagem e pelos bens culturais e ambientais. O principal elemento dos
últimos quarenta anos está no fato da geografia não ser uma “ciência fini­
ta”, ou seja, a geografia está em construção, como também afirma Nogué.
Qualquer um poderia reconhecer que tal constatação vale para qualquer
ciência. Na realidade, para a geografia parece valer mais e o valor adicional
deve ser buscado sobretudo na resposta de uma pergunta que raramente
nos fazemos: o espaço para construir um saber geográfico criticamente de­
senvolvido situa-se DEPOIS OU ANTES DA GEOGRAFIA.
Explico-me melhor: a mensagem geográfica – que o término de mi­
nha carreira de geógrafo militante possibilita-me transmitir para vocês –
nasce necessariamente no espaço histórico entre um ANTES, somente na
aparência já realizado se é verdade que é rico de promessas ainda inexplo­
radas, e um DEPOIS, ainda por realizar-se nos seus horizontes utópicos
que deve encontrar o seu fundamento no passado. Implica, noutras pala­
vras, uma forte dimensão temporal: a convicção que um dos males do nos­
so tempo consiste na homogeneização de nossas pesquisas e projetos num
presente sem passado e, por isto, sem futuro.
A afirmação que escolhi poderá, talvez, ser considerada como uma
provocação inteligente. De fato, não pode não ser considerada provocativa
a hipótese que a geografia, embora seja um saber que tem dois mil anos
de história ou, talvez por isto, ainda precise reconhecer-se na sua história
e, em consequência, também no seu estatuto científico. Isto é, o futuro da
nova geografia acontece em grande parte “antes da geografia”.
Para delimitar um tema muito amplo e pouco estudado, tenta­
rei delinear a complexidade científica do saber geográfico e também as
suas pontencialidades futuras colocando-me no século XVIII, antes da
institucionalização da geografia. Um século no qual, não por acaso, um
poeta das Minas Gerais, José Basilio da Gama, escreve um poema épico
e político (Uraguai, 1769) em que o herói indígena Cacambo condena a
Europa imperialista. Percebo que a provocação que faço é a de um his­
toriador, antes de ser um geógrafo, mas sempre fui convicto que não se
faz a epistemologia da geografia sem fazer a história dos múltiplos sabe­
res geográficos que a precederam como disciplina. Não é por acaso que,
tanto no Marxismo e geografia como na Construção da geografia humana,
compreendi Jean Jacques Rousseau como um “filósofo” que fala para
nossa consciência de geógrafos. Por isso ‘ando nesta estrada’ com o con­
forto de um hitoriador, Michel de Certeau (que amava muito o Brasil),
que escreveu:

16

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Massimo Quaini

O caminho de uma análise escreve os seus passos, regulares ou não, sobre


um solo habitado há muito tempo. Percebo somente algumas dessas presen­
ças. Muitas outras, seguramente mais determinantes – postulados ou aqui­
sições estratificadas nessa paisagem que é memória e palimpsesto – perma­
necem implícitas. O que dizer dessa história?

Em outros termos, nesta minha contribuição, objetivamos propor hi­


póteses e associações mentais que permitam refletir seriamente sobre a ló­
gica deste pensamento impensado que ainda é a geografia. Visamos interro­
gar a história ainda muda de um palimpsesto cheio de abrasões, de aspectos
encobertos pelos “vencedores”, uma memória que se fez forte de muitas re­
moções. Por isso, a ênfase histórica que damos poderia intitular-se Elogio de
uma ciência do passado, mas sem esquecer que a análise histórica da qual
descrevo somente algumas linhas tem como principal finalidade a constru­
ção dos saberes locais adequados aos lugares das novas cidadanias numa vi­
são dialética da relação entre passado, presente e futuro. Também para não
arriscar de enobrecer um passado da geografia raramente louvável, preciso
dizer-lhes que minha pesquisa mais recente nasce de uma série de perguntas
que a comunidade dos geógrafos se faz nos seus congressos e que, a cada
cinquenta anos, reaparecem com diversas formulações nos escritos solitá­
rios de qualquer geógrafo anônimo ou heterodoxo:
a) E se a Geografia, contrariamente às representações presentes nos
manuais velhos e novos, fosse uma ciência do passado que concluiu
sua mais interessante e incisiva parábola, seja como ciência teórica,
seja como saber operativo e estratégico útil à sociedade e aos sujei­
tos, no momento em que foi institucionalizada com disciplina esco­
lar e universitária?
b) E se o senso da história da Geografia, a partir da metade do século
XIX, tivesse que ser encontrado no pensamento dos outsiders, das tes­
temunhas incômodas e substancialmente mudas daquele pensamen­
to impensado da história dos esforçados, tanto enobrecidos pela tra­
dição como substancialmente vazios, feitos por geógrafos acadêmicos
para recuperar uma função social perdida ou redimensionada pelo
desenvolvimento das ciências sociais pouco representadas na escola?
c) E se, em outros termos, a perene necessidade da Geografia (mais
que de outras ciências) fosse a de reinventar-se continuamente, ini­
cialmente no âmbito social e depois no acadêmico?
Esta última pergunta poderia parecer óbvia e válida para qualquer
ciência humana. Porém, isso não ocorre se observamos as diversas modali­
dades de nascimento das outras ciências sociais. A Geografia é antiga até no
nome e nasce juntamente com a invenção da escrita (talvez antes: dos contos
orais dos nômades, pastores e marinheiros). Tem sua gênese muito antes do
discurso político da burguesia e da filosofia do positivismo que originaram a

17

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Geografia: pensamento impensado
(Aos colegas e companheiros geógrafos do grande Brasil)

Sociologia e a ciência urbana ou urbanística. A Geografia foi condicionada,


entre os séculos XIX e XX a batalhar para sobreviver como disciplina.
Quando, juntamente com a História (recordemos do papel de Lucien
Febvre4), foi induzida à esta batalha, a Geografia tinha nas suas “costas”
uma longa história e um patrimônio de esperiências e práticas científicas
que as ciências sociais mais recentes ainda não tinham. Com esse patrimô­
nio deveria fazer-se forte para vencer a batalha. No entanto – aqui está o
ponto de fraqueza ou o paradoxo do geógrafo universitário -, alucinada pelo
modelo científico proposto pela filosofica de Comte ou de Spencer (sem re­
fletir sobre o fato singular das suas classificações não contemplarem a Ge­
ografia), a Geografia perde os instrumentos úteis para ler a sua história e
renuncia a seu rico patrimônio, comum a muitos atores sociais e a outros
sujeitos científicos, com os quais poderia fortalecer-se para vencer a bata­
lha. Abre-se mão do patrimônio construído, sancionando-o inexoravelmen­
te. Cito o exemplo, para muitos paradigmático, do modo como a Geografia
italiana se relaciona com esse patrimônio e representa sua história. Assim,
um dos principais geógrafos italianos do início do século XX escreve sobre
os saberes geográficos (Geografia Física e Geografia Histórica ou Humana)
que, no século XIX, dividem a cena e precedem a unificação científica:
Quando as várias ciências, ou físicas, ou políticas, ou sociais, encontram-se so­
brecarregadas de materiais novos e não sabiam bem onde colocá-los, abriam
um grande armário e guardavam-nos aí. No armário estava escrito em letras
grandes: Geografia. De vez em quando pegavam as suas coisas e o armário
seguidamente ficava vazio. Na metade do século XVII, um jovem holandês,
Varênio, tentou colocar-se dentro da ‘Geografia física’ e Newton tranca a cha­
ve. No século XIX, há o milagre: a ‘Geografia física’ nasce, toda armada como
Minerva, abraçada com Alexander Humboldt; e nasce também a ‘Geografia
histórica’ com Karl Ritter. As duas pegam, por algum tempo, caminhos dife­
rentes, quase opostos, encontrando-se mais tarde, no final do século XIX5.
Poderíamos juntar a esse testemunho a avaliação ainda mais explí­
cita de Roberto Almagià, extraído de um manual que foi utilizado pelo me­
nos por duas gerações de geógrafos italianos, mas o resultado não mudaria:
de acordo com a interpretação canônica ainda em vigor, aquela concepção
da primeira metade do século XVII deriva da revolução romântica. Sobre
“Geografia científica”, na Itália, deve-se falar somente do decênio 1863-73,
quando Giuseppe Dalla Vedova e Bartolomeo Malfatti, inspirando-se no
novo modelo alemão – aquele que tinha “superado” tanto Humboldt quanto
Ritter – começaram a construir as bases doutrinais6. Quais as consequências

4
Febvre, L. La Terre et l’évolution humaine. Paris, 1922.
5
Bertacchi, C. Conversazioni geografiche. Per la Storia della Geografia in Italia. Torino: Bocca.
1925, p.10.
6
Idem, p. 19.

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Massimo Quaini

do peso esmagador da tradição alemã? Eis outro problema que não foi colo­
cado em questão, mas é muito relevante para reescrever a história do saber
geográfico (não somente na Itália). Uma consequência deveria ser evidente
mas não apareceu: estranhar a Geografia das correntes mais fortes da cul­
tura nacional e isolá-la da sociedade e de suas instâncias mais significati­
vas que, como já se conhecia, emergiam mais facilmente em nível regional.
Bem (re)vestida pela nova roupagem acadêmica, quando a Geografia deci­
de valer-se de tais instâncias e das inevitáveis alianças com as forças sociais
para enraizar-se melhor num nicho conservador, senão reacionário, da so­
ciedade civil. Como se a Geografia tivesse que pagar, também na Itália, uma
“oficialidade” palaciana por conta da participação numa fase revolucionária
evidente na realidade histórica e censurada no novo imaginário científico e
político. A referência é, obviamente, à revolução francesa, porque é evidente
que a Geografia moderna nasce como uma das primeiras e mais relevantes
respostas à crise intelectual e política iniciada com a revolução de 1789.
Mesmo que a Geografia Física, no clima positivista do final do sécu­
lo XIX, fosse de certo modo privilegiada pelo maior nível de cientificida­
de, o cordão umbilical das ciências geográficas com a Economia Política
e com a Estatística – “dois estudos essencialmente modernos – não havia
sido ainda cortado quando, na Geografia, esperava-se “reconhecer o fenô­
meno econômico e o aspecto numérico dos movimentos sociais nas suas
relações com o solo e a sua extensão no globo terrestre”. E tal tarefa pode­
ria ser cumprida somente quando a Geografia assumisse vínculos com as
paixões terrestres que o seu elevado nível científico lhe devia assegurar:

Porque somente à Geografia é dada a possibilidade de ver numa visão de


conjunto os seres terrestres considerados separadamente pelas ciências fí­
sicas e naturais sob um aspecto particular; somente à Geografia é reservado
contemplar de um ponto de vista mais alto a poderosa coexistência e a vas­
ta distribuição espacial dos fenômenos terrestres, sejam físicos, biológicos,
históricos e sociais, alargando consideravelmente o poder das pesquisas so­
bre as causas, sobre o princípio fundamental de uma imensa correlação7.

É esse paradigma essencialmente cartográfico – enquanto visão pano­


râmica e lateral (“imensa correlação”) da realidade social que, progressiva­
mente, anulou e tornou acadêmica a geografia humana do período revolu­
cionário, tornando-a um instrumento útil para a normatização. De Certeau,
autor de uma pesquisa nos anos 1970 sobre as práticas espaciais urbanas,
tem seu jeito de evocar um texto no qual descreveu o que não se vê mais do
110°. andar do Worl Trade Center: um mar de linhas verticais e de obcuros
desmoronamentos que compõem uma “escritura” (uma geo­grafia) na qual
“coincidem os extremos da ambição e da degradação, as contraposições bru­

7
Bertacchi, op. cit., p.111.

19

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Geografia: pensamento impensado
(Aos colegas e companheiros geógrafos do grande Brasil)

tais de raças e estilos”. O prazer de ver o conjunto, de “totalizar o mais des­


medido dos textos humanos” – respondeu De Certeau –, lembrando o mito
de Ícaro e o olho fora de prumo do cartógrafo, graças ao qual Ícaro pode ig­
norar as astúcias de Dédalo. “A elevação (...) interpõe uma distância (...)”8.
Aquilo que precisamos hoje não é, de fato, o ponto de vista de Ícaro,
mas são as astúcias de Dédalo e Ariana para penetrar nos labirintos móveis e
sem fim da paisagem social que se esconde na cidade e no campo, formados
por um “misto” que requer novas categorias. É o saber que refuta totalizar “o
mais desmedido dos textos humanos” para coletar a riqueza de uma página,
talvez de uma frase ou de uma palavra com a ajuda de pontos de vista como
aqueles de Ivan Illich e Serge Latouche, Franco Cassano e Alberto Magnaghi,
que tiveram o mérito de individualizar as aporias que a realidade da moder­
nização selvagem provoca dramaticamente sob nossos olhos; em particular, a
dificuldade de valorizar os lugares que habitamos não por sua centralidade na
rede global, mas por seu patrimônio territorial que os caracterizam como úni­
cos e locais. É preciso ter clareza que tudo isso “não é o retorno de identidades
simples, mas a descoberta que, depois do desenvolvimento, tornam-se úteis
muitos recursos que eram jogados fora” em virtude da nossa viagem insensata
à modernização e à globalização. Também a “paisagem” colocamos fora pela
janela, porque do alto do nosso saber estratégico voltado para a conquista do
mundo, não entendemos aquilo que os poetas já tinham entendido: que sem
uma paisagem ou um “mapa” não impostos pela globalização cultural e eco­
nômica, não podemos nos conhecer e, assim, não podemos existir consciente­
mente. Estamos apenas sendo levados pela história, continuamos sendo carne
maltratada de uma Geografia a serviço do mundo imperialista já condenado
pelo poeta brasileiro do século XVIII que mencionei anteriormente.
Em outras palavras, nos últimos anos, assistimos a uma revolução
antropológica na qual a Geografia teve um pequeno papel. Também porque
nós, geógrafos, escutamos mais Hermes, o deus da comunicação e do co­
mércio, do que a terrestre Hestia, ou porque endossamos a separação de Dé­
dalo-Teseo de Ariana ou da Geografia das damas que nos convidavam a alte­
rar a ênfase presente na cientificidade abstrata, baseada particularmente na
observação: o sentido que indicava ao observador uma posição externa e dis­
tante (como aquela do alto das torres gêmeas), que exclui os outros sentidos,
justamente aqueles com os quais conseguimos tocar, farejar e viver o tecido
urbano e rural, mantendo as representações tangíveis e concretas. E, assim,
poderia ampliar este texto com outros exemplos de geógrafos que antecede­
ram Humboldt e Ritter acumulando conhecimento que permitiu a ambos
constituir o saber geográfico que incidiu na história política e social do mun­
do, não somente no plano científico-cultural. A Geo­grafia teve um papel não
secundário nas principais correntes do socialismo utópico de Saint Simon

8
De Certeau, M. L’invention du quotidien. Arts de faire. Paris : UGE, 1980.

20

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Massimo Quaini

a Fourier, e não por acaso aconteceu que tanto Marx como Elisèe Reclus e
Kropoktin ficaram fascinados com a Geo­grafia de Humboldt e Ritter.
Porém, como citei o papel de Ariana e do seu método para vencer o
labirinto e derrotar o Minotauro, limito-me a recordar que, mesmo havendo
muito a descobrir, há mais de uma Ariana-geógrafa também na história do
marxismo que precisa ser valorizada se o nosso objetivo é elaborar uma sín­
tese entre Dédalo ou o espírito global e Ariana ou a revalorização do coração
e do tato ou da proximidade. Tal síntese, o marxismo e a Esquerda revolu­
cionária teriam conseguido encontrar se tivessem dado mais atenção a Rosa
Luxemburgo: uma economista marxista que amava muito a Geografia e as
paisagens, conjungando, na sua elaboração teórica, a mente e o coração, a
paisagem e a racionalidade econômica e política. Nas suas cartas escritas na
prisão, há um forte desejo de viajar livremente pelas paisagens rurais, pelos
jardins típicos do ambiente mediterrâneo, em particular da Córsega. Com
essa relação com a Geografia e com a hitória mediterrânea, Luxemburgo
junta-se a Rousseau e ao espírito libertário da revolução que gerou a que­
da do regime aristrocrático. Nessa revolução, e pensamento tinha alguma
coisa a mais da idéia burguesa da apropriação privada do território e das
terras comuns. Tinha a liberação de todos os espaços, a liberdade celebra­
da por Rousseau de percorrer e gozar livremente a bela paisagem do jardim
da natureza e de continuar produzindo-o, limitando a cidade, a tecnologia.
A transformação da paisagem de espaço aristocrático em espaço de prática
popular e democrática e, por esta via, há também superação da separação
entre o útil e o belo, entre a produção e a contemplação.
Superação que, atualmente, foi sancionada pela Convenção euro­
péia da paisagem. A Convenção, no seu mais profundo significado político,
convida-nos a uma relação diferente com a história, com as razões de um
passado não totalmente esquecido. O modelo econômico “superado” pela
história, do qual a paisagem rural, que hoje tentamos tutelar, era a manifes­
tação visível, podemos dizer, do tipo pré-capitalista, pelo fato de se manter
numa dimensão cultural predominantemente local, artesanal e familiar (a
unidade camponesa e familiar tinha uma centralidade que, em boa parte,
foi desagregada e desmantelada pela agroindústria de mercado). Este mun­
do pré-capitalista, feito de lugares e paisagens, conflita fortemente com a
globalização. A sua conservação é uma das cartas em jogo na batalha entre o
local e o global. A teoria de Marx – que esteve na base da primeira teoria eco­
nômica da globalização –, ajuda-nos também atual­mente a entender algu­
mas manifestações desta batalha. Em particular, auxilia-nos a teoria da crise
econômica elaborada por Rosa Luxemburgo há um século e recentemente
retomada por Zygmunt Bauman também para explicar a última profunda
crise finan­ceira9. O que dizia Luxemburgo, que não por acaso amava mui­

9
Bauman, Z. Capitalismo parassitario. Bari: Laterza, 2009.

21

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Geografia: pensamento impensado
(Aos colegas e companheiros geógrafos do grande Brasil)

to a Geografia? Afirmara que o capitalismo, para continuar sua trajetória


de acumulação, difundindo-se e crescendo, tem necessidade de que existam
ambientes ou espaços pré-capitalistas. Por isso é uma corrida em direção ao
abismo: penetrando em tais embientes, transforma-os em capitalistas elimi­
nando progressivamente as bases econômicas da sua expansão ou acumula­
ção, corta suas pernas e permanece numa crise sistêmica.
Atualmente, temos a sensação de ter chegado próximos do abismo
e precisamos diminuir a corrida. Por isso é importante a defesa das paisa­
gens rurais, de algum modo pré-capitalistas e não homologadas pelo mo­
delo global, pois esta defesa pode tornar-se, pelo menos na velha Europa,
uma articulação da luta contra um capitalismo parasitário que da especu­
lação financeira e da renda fundiária faz uma das suas principais estra­
tégias de sobrevivência. Os centros históricos das cidades não podem ser
reduzidos a espaços vazios ou luxuosos, mas valorizados como paisagens
construídas por meio dos saberes camponeses e das práticas locais.
Por isso, juntamente com a recuperação dos saberes rurais, atualmen­
te, há quem retome a cultura artesanal, de matriz do século XVIII, como de­
monstra a Encyclopédie ou Dizionario ragionato delle Arti e delle Scienze de Di­
derot e d’Alembert. Isso foi recentemente proposto por Richard Sennet numa
pesquisa monumental dedicada ao L’Uomo artigiano (O homem artesão)10. O
que tal pesquisa nos mostra? Algo do qual temos muita saudade: a maestria
do artesão. Metáfora do “materialismo cultural”, hoje necessário para encon­
trar alternativas ao mundo dominado pela Pandora ou pela técnica que, nes­
tes últimos anos, encontrou na China, cada vez menos camponesa e sempre
mais industrial, a sua mais completa realização. “O mito da Pandora é um
símbolo secularizado de autodestruição. Para encarar a crise física é necessá­
rio modificar os objetos que produzimos e o uso que deles fazemos”.
Devemos começar a andar na direção contrária ao gigantismo chi­
nês e “aprender modos diferentes de construir os edifícios e de organizar
os transportes. Devemos, sobretudo, sermos bravos artesãos do ambiente”.
Também a respeito desta arte que “hoje nos é estranha”, Sennet, com uma
série de exemplos e questões convincentes, demonstra-nos como “o grande
desafio, com o qual a sociedade moderna se defronta, é continuar a pen­
sar como artesãos fazendo uso correto da tecnologia”11. A convicção, com a
qual me dirijo a vocês, é de que a Geografia humana possa contribuir muito
nessa direção. Uma boa estratégia pode ser a de trabalhar com a sabedoria
de quem sabe que é necessário combater os gigantes que nos antecederam,
conforme recordei brevemente neste texto, assim, poderemos avançar muito
em favor da valorização do homem artesão e da proteção do ambiente.

10
Sennet, R. L’uomo artigiano. Milano: Feltrinelli, 2008.
11
Idem, pp. 21 e 50.

22

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Percursos teórico-metodológicos
da Geografia Agrária brasileira:
da formação à autonomia intelectual

Prof. Dr. Júlio César Suzuki


Departamento de Geografia/FFLCH/USP | jcsuzuki@usp.br

As experiências vividas pelo homem no que concerne ao campo e à


agricultura são muito anteriores à sistematização do saber realizada no sé­
culo XIX. No entanto, tal sistematização não permitiu que no campo do sa­
ber que vinha se definindo como Geografia se estruturasse uma parcela de­
finida como Geografia Agrária; é o que afirma Orlando Valverde (1964:11)
ao indicar que “A Geografia Agrária é quase tão antiga quanto a própria
geografia científica”1; mas sobretudo ao definir a sua estruturação após a
Primeira Guerra Mundial: “Só depois da Primeira Guerra Mundial é que a
Geografia Agrária se estruturou (...)”.
No entanto, o que se produz até a Segunda Guerra Mundial é tão
somente Geografia Humana e não Geografia Agrária. Não há, ainda, um
campo do saber definido como Geografia Agrária logo após a Primeira
Guerra Mundial, como afirmara Orlando Valverde.
Geógrafos e historiadores são co-fundadores da Geografia Agrária,
na Alemanha e na Inglaterra, a partir de discussões realizadas no final do
século XIX, e depois na França; sendo Marc Bloch o primeiro a difundir,
na universidade, uma concepção que relacionasse os camponeses, as for­
mas de ocupação do solo e de habitação como produtos da organização
da sociedade e do poder no tempo, a partir de um ramo do saber deno­
minado história rural; tendo, em 1931, publicado Caractères originaux de

1
Grifo nosso.

23

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Percursos teórico-metodológicos da Geografia Agrária
brasileira: da formação à autonomia intelectual

l’histoire rurale française; obra que orientou os geógrafos, tornando-se, por


um tempo, um arquétipo de uma geografia indiferentemente agrária e ru­
ral (LÉVY; LUSSAULT, 2003:51 e 809). Assim, não é possível pensar uma
Geografia Agrária anterior à obra de Marc Bloch, ou seja, uma Geografia
Agrária constituída já no primeiro quartel do século XX.
A resposta está no debate acerca das dicotomias vividas pela Geo­
grafia em que se inseria o pensamento de Paul Vidal de La Blache e de Jean
Brunhes. Jean Brunhes, discípulo de Paul Vidal de La Blache, viveu muito
do dilema deste debate, defendendo a unidade da Geografia, mas tenden­
do sempre para uma valorização da ação humana sobre o meio (CAPEL,
1981:352).
Jean Brunhes, então, segue a trilha de Vidal de La Blache, para quem
a unidade da Geografia deveria ser mantida, mesmo tendo sido fortemente
influenciado por uma concepção de separação entre um ramo da natureza
(Geografia Física) e outro cultural ou humano (Geografia Humana). (CA­
PEL, 1981:333)
Assim, a discussão não se centrava na definição de ramos da Geogra­
fia, mas na de grandes áreas como a da Geografia Física e a da Geo­grafia
Humana, bem como a da dicotomia entre Geografia Regional e Geogra­fia
Geral (LENCIONI, 1999:111).
No entanto, mesmo nesse perído, do final do século XIX até meados
do século XX, já havia publicações utilizando-se da expressão “Geogra­
fia Agrária”, como é o caso da obra de Daniel Faucher, Geographie Agraire
(Types de Cultures)2, de 19493.
A definição da Geografia Agrária, como sub-área da Geografia, cons­
titui-se mais de uma década após a publicação do livro de Daniel Faucher,
no Brasil, em que pese três de suas dimensões: a política, a técnica e a so­
cial.
Yves Lacoste (1988:37), ao salientar que, “(...) em numerosos Esta­
dos, a geografia é claramente percebida como um saber estratégico e os
mapas, assim como a documentação estatística, que dá uma representação
precisa do país, são reservados à minoria dirigente”, ressaltou o significa­
do político da Geografia, marcadamente no momento histórico a partir do
qual fala Yves Lacoste, marcado pela Guerra Fria e pela crítica ao planeja­
mento estratégico do Estado. É, também, o momento em que a Geografia
se colocou de forma contundente a serviço do Estado, elaborando teorias

2
O livro de Daniel Faucher nunca foi traduzido para o português, cujo título poderia ser: Geo­
grafia Agrária (Tipos de Cultivos), seguindo a proposta espanhola, constante nas referências
deste texto.
3
Cabe, ainda, ressaltar que a obra de Faucher teve uma versão preliminar publicada, na
forma de ensaio, no Bulletin du Centre de Documentation Française, por duas vezes, em
1935 e 1940, já levando o mesmo título Geographie Agraire (Types de Cultures) (FAUCHER,
1953:9).

24

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Júlio César Suzuki

e propondo ações, tanto no que concerne à geopolítica, quanto ao plane­


jamento. No entanto, o significado instrumental do conhecimento sobre o
espaço é tão antigo quanto as primeiras reflexões sobre a guerra e a forma­
ção das civilizações.
Na perspectiva do desenvolvimento tecnológico, vale citar os níveis
alcançados com as Primeira e Segunda Guerras Mundiais, os quais não
podem ser olvidados, já que, a partir deles, foi possível estabelecer novos
parâmetros de leitura do real e de sua representação.
A sociedade, também, nesse período, de final do século XIX até mea­
dos do século XX, passa por uma intensificação da urbanização, conduzin­
do para o estabelecimento de novos processos e dinâmicas, com a proemi­
nência das cidades e das metrópoles como locus da gestão das atividades
econômicas.
Nesses termos, a Geografia Agrária é resultante de múltiplas deter­
minações, tanto de caráter político, quanto técnico, mas, também, socio­
econômico.
A Geografia brasileira, em seus primórdios, amplamente definida
pela Geografia européia, sobretudo a francesa, como a principal matriz,
mas também pela alemã, incorporou as dicotomias entre Geografia Física
e Geografia Humana e Geografia Geral e Geografia Regional. É o que se
pode perceber em relação às cátedras criadas na Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Inicialmente, foram cons­
tituídas as cátedras de Geografia Humana e de Geografia Física e, depois,
a de Geografia Regional.
A disciplina de Geografia Agrária só vai aparecer na segunda metade­
do século XX, não só na Universidade de São Paulo, mas em, praticamen­
te, todos os cursos de graduação em Geografia no Brasil, particularmente
no momento em que se inicia a cisão deste curso do de História. A dis­
ciplina de Geografia Agrária, muito difundida, também, como Geografia
Rural, vai encontrar seu lugar, nos currículos dos cursos de graduação,
após a reforma universitária de 1968. É, exatamente, o momento em que a
Geografia Humana, como um conjunto de saberes, entra em crise, confor­
me questionamento de Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro (1988:135)
ao recuperar a proposta do arquiteto e urbanista grego Doxiadis quanto à
criação de uma disciplina preocupada com o estudo do povoamento rural
e urbano: a Ekistica.
O caderno de notas das aulas de Geografia Humana de José Bueno
Conti , do ano de 1955, muito revela do quanto o saber sobre o campo e a
4

4
José Bueno Conti é Professor Titular no Departamento de Geografia da Faculdade de Filo­
sofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Cabe-nos, aqui, um agra­
decimento especial à gentileza do Prof. Dr. José Bueno Conti em compartilhar parte de sua
história acadêmica, permitindo o delineamento dos meandros de produção da Geografia
Agrária Brasileira.

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Percursos teórico-metodológicos da Geografia Agrária
brasileira: da formação à autonomia intelectual

agricultura se articulava com os debates da população e da economia. O


curso era de Geografia Econômica, em aulas da disciplina de Geografia
Humana, com prioridade para a discussão da produção agrícola e dos sis­
temas de cultivo, o que se definia como Geografia Agrícola, sendo que a
nota constante à página 107 é bastante elucidativa da relação estabelecida
entre Geografia Agrícola, Geografia Econômica e Geografia Humana: “A
geografia agrícola faz parte da Geografia econômica. Está enquadrada na
Geografia Humana” (CONTI, 1955:107).
O curso de Geografia Humana de 1955, ministrado na Universidade
de São Paulo, era, extremamente, atualizado. Já constava na bibliografia o li­
vro de Daniel Faucher (Géographie Agraire), publicado, na França, em 1949.
Além das categorias de produção agrícola e de sistemas de cultivo,
a de gênero de vida era muito utilizada, revelando a influência da Geogra­
fia Francesa nas disciplinas de Geografia Humana da Universidade de São
Paulo, o que contribuiu para a incorporação de tendência historicista na
leitura do campo e da agricultura.
Jean Brunhes (1956 e 1962) foi um dos proeminentes autores fran­
ceses historicistas bastante lidos e incorporados pela Geografia Brasileira,
sobretudo, por meio de seu livro La Géographie Humaine, desde a primei­
ra edição de 1910, mas, também, da edição resumida (édition abrégée) de
1942, cujo projeto foi proposto pelo autor, mas conduzido, depois de sua
morte, por Mariel Jean-Brunhes Delamarre e Pierre Deffontaines, sendo
este o professor que participou da primeira expedição estrangeira formado­
ra da Universidade de São Paulo, em 1934; tendo participado, também, da
fundação da Associação dos Geógrafos Brasileiros, no mesmo ano, em São
Paulo. Manuel Correia de Andrade identifica muito bem a participação de
Pierre Deffontaines na formação da Universidade de São Paulo e da Univer­
sidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro), ao mencio­
nar sua estadia em São Paulo e sua transferência para o Rio de Janeiro:

(...) o início do ensino superior da Geografia deu-se a partir de 1934, em São


Paulo, e de 1935, no Rio de Janeiro. Ao montar a Universidade de São Paulo,
o governador Armando de Sales Oliveira convidou vários professores france­
ses para virem exercer o magistério na nova Universidade; em 1934, recebia a
colaboração, na área de Geografia, do professor Pierre Deffontaines e, em se­
guida, do professor Pierre Monbeig, que subistituiu aquele professor em 1935,
quando o mesmo se transferiu para o Rio de Janeiro. (ANDRADE, 1987:83).

Assim, Pierre Deffontaines5, seguindo o percurso do mestre Jean


Brunhes, participa da construção de uma Geografia marcadamente histo­
ricista nas suas primeiras décadas, sobretudo a partir do Rio de Janeiro, já

5
Pierre Deffontaines permanece, no Brasil, entre 1934 e 1940, sendo, no primeiro ano, em
São Paulo e, depois, no Rio de Janeiro.

26

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Júlio César Suzuki

que, de São Paulo, a grande influência vai ser estabelecida por Pierre Mon­
beig6, um proeminente geógrafo historicista muito preocupado com a rea­
lidade histórica da frente pioneira, tema central de sua tese de doutorado,
defendida em meados do século XX7 e traduzida para o português apenas
em 1984 (MONBEIG, 1984).
Além da influência de Jean Brunhes, presente nos estudos de Pier­
re Deffontaines, dentre outros; Albert Demangeon foi lido e incorporado,
sobretudo por meio da discussão de Geografia Agrária, de Daniel Faucher
(1953).
Na perspectiva de um conhecimento sobre o campo e a agricultura,
mas fazendo uma Geografia Humana, Jean Brunhes (1956) valorizou as
categorias de produção agrícola e habitat; Albert Demangeon (1956), as
de habitação e povoamentos rurais; e Max Derruau (1964), as de paisagem
agrária e sistemas agrícolas.
Seguindo a tradição historicista e dialogando, sobremaneira com
a obra de Jean Brunhes, Albert Demangeon, Max Derruau, Marc Bloch,
dentre outros; Daniel Faucher (1953) constitui sua obra utilizando-se da
categoria de sistema agrícola como fundamento principal de suas análises,
relacionando os elementos físicos aos técnicos na realização das ativida­
des agrícolas.
Além da tradição francesa conformando os contornos da Geografia
no Brasil, Leo Waibel8 representou, sobretudo com seu Capítulos de Geo­
grafia Tropical e do Brasil, de 1958, forte influência, de linha alemã, na for­
mação dos geógrafos brasileiros, a partir de meados do século XX, com a
fortificação das categorias de sistema agrícola e de paisagem, bem estabe­
lecidas em suas Geografias Agrárias Estatística, Ecológica e Fisionômica,
conforme as discutira Orlando Valverde (1964:22).
A segunda metade do século XX inicia-se sem a presença, em lon­
gas expedições acadêmicas, de grandes geógrafos estrangeiros preocupados
com o campo e a agricultura. Mas o diálogo não é interrompido, aprofun­
dando a preocupação com as relações sociais, presente na obra de autores
como Pierre Monbeig, em que vale destacar Pioneiros e fazendeiros de São
Paulo, mas, também, Ensaios de Geografia Humana Brasileira (MONBEIG,
1940) e Novos Estudos de Geografia Humana Brasileira (MONBEIG, 1957).

6
Pierre Monbeig permanece, no Brasil, entre 1935 e 1949, em São Paulo. Sobre o pensamen­
to de Pierre Monbeig, cabe a leitura do livro de Aldo Dantas – Pierre Monbeig, um marco da
Geografia brasileira –, resultante de sua tese de doutorado.
7
A tese de doutorado de Pierre Monbeig obteve, em 1950, o prêmio de tese da Fundação Na­
cional das Ciências Políticas (MONBEIG, 1984:15).
8
Leo Waibel permanece, no Brasil, no Rio de Janeiro, entre 1946 e 1950. Sobre Leo Waibel e
a sua contribuição para a formação da Geografia Agrária, cabe a leitura do livro de Virgínia
Elisabeta Etges (2000) – Geografia Agrária; a contribuição de Leo Waibel –, resultante de sua
tese de doutorado (ETGES, 1997).

27

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Percursos teórico-metodológicos da Geografia Agrária
brasileira: da formação à autonomia intelectual

A preocupação com as relações sociais está bem expressa em Os mé­


todos da geografia, de Pierre George:

A geografia agrária e seu complemento, a geografia agrícola, têm como ob­


jeto o conhecimento e a expressão das relações sociais e das relações econô­
micas referentes à produção agrícola (...) (GEORGE, 1972:80).

No entanto, as preocupações com os sistemas de cultivo, habitat ru­


ral, habitação, paisagem rural, que já tinham aparecido em autores ante­
riormente citados, não desapareceram, tendo sido expandidas com a in­
trodução de novos elementos, como as categorias de morfologia agrária
e regiões agrícolas homogêneas, bem como a preocupação com estudo
de área, classificação e balanço econômico, advindas do pensamento de
Hatshorne e, sobretudo, do diálogo com a produção acadêmica oriunda da
teoria de polarização na França, particularmente com Jean Labasse, con­
forme se pode verificar em Geografia Rural e Os métodos da geografia, de
Pierre George (1972 e 1982).
As novas preocupações, com as quais lidavam autores como Pierre
George, marcam uma proposta inovadora presente entre os geógrafos, de­
nominada de Geografia Ativa, em que o livro de Pierre George, Raymond
Guglielmo, Yves Lacoste e Bernard Kayser (1980), A Geografia Ativa, teve
papel extremamente importante na conformação de uma leitura voltada
para o planejamento e para uma atuação pensada do geógrafo na interpre­
tação e na prática da sociedade.
A Geografia Ativa, no Brasil, formou importantes intelectuais, den­
tre ele, vale ressaltar a importância de Manuel Correia de Andrade, um
geó­grafo para além do seu tempo, pois, antes mesmo de uma virada da
Geo­grafia Brasileira no sentido de uma Geografia marxista, publicou A ter­
ra e o homem no Nordeste (ANDRADE, 1973), em 1963, discutindo a pro­
priedade da terra, a mão de obra na agricultura, o latifúndio, dentre outros
temas tão caros à Geografia pós-1978, momento de grande inflexão na As­
sociação dos Geógrafos Brasileiros que não deixou de impactar, decisiva­
mente, os caminhos da Geografia Brasileira, como reconhece o próprio
Manuel Correia de Andrade (1993:61-71).
Na obra de Manuel Correia de Andrade, a força da teoria da polari­
zação, tal qual influenciara a Geografia Ativa na França, aparece em várias
de suas obras, tomando o contorno do planejamento e da preocupação
com o desenvolvimento, em que podemos citar, como exemplos, os livros
Aceleração e freios ao desenvolvimento brasileiro (ANDRADE, 1973) e Espa­
ço, Polarização e Desenvolvimento (ANDRADE, 1987), mas sobretudo a sua
atuação em assessoria técnica aos órgãos de governo em projetos para o
Nordeste brasileiro.
Outro grande intelectual que não pode se pode esquecer de mencio­
nar é Orlando Valverde, cuja obra Geografia Agrária do Brasil, de 1964, foi

28

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Júlio César Suzuki

um marco no processo de incorporação da preocupação social que o geó­


grafo deve ter em sua prática acadêmica, política portanto, utilizando de
categorias como relações de trabalho e estrutura fundiária.9 No entanto,
em Grande Carajás – planejamento da destruição, Orlando Valverde (1989)
se coloca de modo muito mais enfático na incorporação de um posicio­
namento crítico em relação à forma de apropriação das riquezas que nas
obras anteriores, intensificando, também, o debate acerca dos prejuízos
ambientais em relação às formas predatórias de uso dos recursos naturais,
tema que já tinha, em certa medida, aparecido em outros trabalhos do au­
tor, como Geografia Agrária do Brasil (VALVERDE, 1964) e Estudos de Geo­
grafia Agrária Brasileira (VALVERDE, 1985).
Dois intelectuais, Manuel Correia de Andrade e Orlando Valverde,
formados na tradição da Geografia historicista, como muitos outros geó­
grafos brasileiros de sua época10, mas que avançaram, enormemente, na
incorporação de categorias que permitiram adensar a análise das contra­
dições presentes no campo e na agricultura.
Praticamente, no mesmo período em que a Geografia Agrária his­
toricista, ainda, marcava a reflexão de grandes intelectuais, como os ante­
riormente mencionados, mas, também, Pasquale Petrone, dentre outros;
José Alexandre Felizola Diniz (1984) preocupou-se na incorporação de no­
vas técnicas de tratamento dos dados quantitativos, tendo como foco a rea­
lização do planejamento, mas sem salientar a existência de contradições
no campo e na agricultura, muito menos em denunciar a desigualdade na
apropriação da riqueza socialmente produzida, sendo o que se expressa
em Geografia da Agricultura, de 1984, obra de síntese de uma tendência
da Geografia identificada como teórico-quantitativa, com uma perspectiva
sistêmica.
No entanto, são esses os dias marcantes de grande mudança na in­
trodução de novas leituras que aprofundaram muitos das mediações já
postas pela abordagem historicista da Geografia Agrária, bem como acres­
centando outras preocupações advindas do diálogo com outras áreas do
conhecimento.
A tese de doutorado de Maria Regina Cunha de Toledo Sader (1987)
– Espaço e luta no Bico do Papagaio –, de 1986, defendida em 1987, foi um
marco no adensamento de uma leitura acerca da desigual apropriação da
terra no Brasil, abrindo o debate sobre conflitos no campo brasileiro, no
qual se inseriram muitos trabalhos que incorporaram a preocupação com

9
Não se pode deixar, ainda, de mencionar Estudos de Geografia Agrária Brasileira, como uma
outra obra de grande envergadura do autor na continuidade das reflexões anteriormente
apontadas, em que se coloca uma leitura de crítica na distribuição da riqueza socialmente
produzida.
10
Vale, aqui, ao menos indicar os trabalhos de CARVALHO (1944), MÜLLER (1946), FRANÇA
(1951), PETRONE (1961 e 1964), SADER (1970) e FERNANDES (1972).

29

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Percursos teórico-metodológicos da Geografia Agrária
brasileira: da formação à autonomia intelectual

a realização da reforma agrária, tal qual a tese de doutorado de Marta Inez


Medeiros Marques (2000) – De Sem-Terra a “posseiro”, a luta pela terra e a
construção do território camponês no espaço da reforma agrária: o caso dos
assentamentos nas fazendas Retiro e Retiro Velho-GO –, de 2000; mas, tam­
bém, com a apropriação capitalista da terra no Brasil, sobretudo em pro­
jetos de colonização, como os trabalhos de Hidelberto de Souza Ribeiro
(1993), Gislaine Moreno (1994) e Reinaldo Corrêa Costa (2004).
Particularmente preocupado com os movimentos sociais de luta pela
terra no campo brasileiro, Bernardo Mançano Fernandes (1996), com sua
dissertação de mestrado, defendida em 1994 e publicada em 1996 – MST:
formação e territorialização –, propõe o uso das categorias de espacializa­
ção e de territorialização para a leitura dos movimentos sociais agrários,
sendo sua tese de doutorado – Contribuição ao estudo do campesinato bra­
sileiro: formação e territorialização do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra – MST (1979-1999) –, defendida em 1999, uma continuidade de
suas reflexões (FERNANDES, 1999 e 2000).
Na temática dos movimentos sociais, duas obras devem ser mencio­
nadas, primeiramente, o livro de Ariovaldo Umbelino de Oliveira (2001),
A Geografia das lutas no campo, cuja primeira edição é de 1988, por conta
de sua importância na síntese que realiza da história e da geografia dos
movimentos sociais no campo brasileiro, tendo fortificado, densamente, a
análise dos conflitos no campo brasileiro; tema que muitos de seus orien­
tandos de graduação e de pós-graduação perseguiram. Em seguida, o livro
de Carlos Walter Porto Gonçalves (2001) – Geo-grafías; movimientos so­
ciales, nuevas territorialidades y sustentabilidad –, publicado em 2001, mas
resultante de reflexões feitas em sua tese de doutorado defendida em 1998
– Geografando: nos varadouros do mundo – da territorialidade seringalista
à territorialidade seringueira ou do seringal à reserva extrativista (GONÇAL­
VES, 1998) –, cujo debate acerca da Amazônia e dos movimentos sociais
tem sido referência importante na apropriação da categoria território.
Além da temática da luta pela terra e da reforma agrária, outras es­
tiveram presentes nos anos que se seguiram a 1980, dentre elas o da ex­
pansão de atividades no campo, com relações de produção capitalistas,
inicialmente, como modernização da agricultura e complexos agroindus­
triais – vale mencionar os trabalhos de Silvio Carlos Bray (1980), Claude­
te Barriguela Junqueira (1982), Ligia Celoria Poltronieri (1985), Antonio
Thomaz Júnior (1989), Tito Carlo Machado de Oliveira (1994), Antonio Ni­
valdo Hespanhol (1997), Glaucio José Marafon (1998), João Cleps Junior
(1998) e Edson Baraldi (2000) –, ampliando-se para a discussão do êxodo
rural, com Rosa Ester Rossini (1975), e das relações de trabalho e gênero,
com os trabalhos de Rosa Ester Rossini (1988), Célia Regina Gomide de
Oliveira (1991b), Maria Luiza Oliveira de Francisco (1997), Isamara Lima
de Jesus (1999), Edson Baraldi (2000), Antonio Thomaz Júnior (2002) e

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Júlio César Suzuki

Celma da Silva Lago Baptistella (2004). Ainda, na perspectiva da moder­


nização, a mudança na relação entre produtor agrícola e indústria foi bas­
tante discutida, ora como subordinação da renda da terra ao capital, ora
como integração produtiva, ora como terceirização na agricultura, por vá­
rios autores, dentre eles, vale citar: Ruth Youko Tsukamoto (1981 e 1994),
Virgínia Elisabeta Etges (1990), Roland Luiz Pizzolatti (1996) e Márcia
Yukari Mizusaki (2003).
Vale, ainda, mencionar a diferenciação de Ariovaldo Umbelino de Oli­
veira (1999), entre territorialização do capital e monopolização do território,
que muito ajudou a entender o significado do trabalho subordinado à lógica
de reprodução ampliada do capital e de acumulação primitiva – ora como
trabalho camponês integrado e subordinado, quando ocorre a monopoliza­
ção do território, ora como trabalho assalariado, quando ocorre a territoria­
lização do capital –, servindo de fundamento para muitas das reflexões feitas
sobre o tema da modernização da agricultura, sobretudo a dos seus orien­
tandos de graduação e de pós-graduação, muitos deles citados neste texto.
Nas três últimas décadas, sob orientação de Ariovaldo Umbelino de
Oliveira, consolidou-se uma Geografia Agrária do Campesinato, com pers­
pectivas e dimensões bastante distintas, avançando no entendimento de
suas primeiras reflexões sobre a renda da terra (OLIVEIRA, 1978 e 1986) e
o significado da produção camponesa na formação da riqueza oriunda do
campo e da agricultura (OLIVEIRA, 1990 e 1991a).
No entanto, muitos trabalhos optaram por um outro viés terminoló­
gico, o de agricultor familiar, como o de Rosângela Aparecida de Medeiros
Hespanhol (2000) e o de Célia Maria Santos Vieira de Medeiros (2002).
Uma outra temática constituída na última década foi a que se preo­
cupou com a expansão de atividades não-agrícolas no campo brasileiro,
como os trabalhos de Paulo Roberto Raposo Alentejano (1998 e 2003).
Por fim, cabe mencionar dois outros caminhos, abertos nas últimas
décadas, a da análise da relação campo-cidade, com trabalhos como o de
Sandra Lencioni (1985), o de Sérgio Manuel Merêncio Martins (1993) e
o de Júlio César Suzuki (1997 e 2002), como tema central, mas, também,
os de Manoel Seabra (1969 e 1972), como fundamento da análise; e o de
incorporação das contribuições de Milton Santos, particularmente na dis­
cussão da relação entre meio técnico-científico-informacional e agricultu­
ra, em que se inserem os trabalhos de Denise Elias (2003), resultante de
sua tese de doutorado, e de Ricardo Castillo (1999).
Nas últimas décadas, revelou-se uma grande diversidade temática
nos estudos relacionados à Geografia Agrária, sobretudo por conta das
possibilidades de aprofundamento de elementos presentes nas aborda­
gens que precederam os anos 1980, cujas raízes fortes e sólidas permiti­
ram avançar, com segurança, em muitas reflexões, mas, também, devido à
descentralização da pós-graduação no Brasil que possibilitou a ampliação

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Percursos teórico-metodológicos da Geografia Agrária
brasileira: da formação à autonomia intelectual

do número de orientadores e seus respectivos orientandos, majorando pes­


quisas realizadas concomitantemente, muitas das quais utilizando-se do
mesmo instrumental teórico-metodológico na leitura de realidades socio­
espaciais diversas, o que tem contribuído para avaliar os limites das teo­
rias, dos métodos e das técnicas.
Muitos temas e muitas abordagens teórico-metodológicas, mas, ain­
da, uma unidade que tem como foco a leitura do campo e da agricultura,
marcadamente com perspectiva espacializante; distanciando-se de traba­
lhos oriundos de áreas do conhecimento próximas da Geografia, como a
Economia, a Sociologia, a Antropologia, a História, dentre outras.
Vale, ainda, mencionar, por um lado, o quanto o diálogo com estas
outras áreas do conhecimento tem contribuído para avançar na utilização
de categorias de análise esquecidas pela Geografia, como a de modo de vida,
mas incorporar outras, como a de habitus, ethos, marcadamente vindas da
Antropologia Rural, por mais que oriundas originalmente, da Sociologia.
Mas, por outro lado, não são poucas as contribuições que a Geogra­
fia Agrária, em sua diversidade, tem dado para o avanço de outras áreas
do conhecimento. Não são raros os livros organizados por antropólogos,
sociólogos, economistas e históriadores, em que há capítulos de geógrafos
agrários. Nestes termos, o diálogo é uma via de mão dupla, demonstrando
a maturidade das reflexões realizadas, bem como a importância dos temas
de pesquisa na compreensão do movimento do mundo a partir da leitura
do campo e da agricultura.
A Geografia Agrária brasileira alcançou um trilhar com instrumen­
tos teórico-metodológicos próprios, o que permite identificar a autonomia
intelectual em que se vive desde as duas últimas décadas do século XX,
quando se definiram as duas principais linhas paradigmáticas11: a da Geo­
grafia do Campesinato e a da Geografia da Modernização.
A primeira, a da Geografia do Campesinato, orientada pela valoriza­
ção do camponês como sujeito em constante transformação, em que pese
a sua permanência histórica.
A segunda, a da Geografia da Modernização, relacionada, sobretu­
do, à categoria de trabalhador rural, com as suas diversas nuanças, como
a de agricultor familiar.
No entanto, mesmo distintas, essas duas linhas paradigmáticas não
se desvinculam de todo, já que há temáticas que lhes são comuns, além de
técnicas de campo e de gabinete, por mais que a relação entre pesquisador
e pesquisado possa ser bastante distinta.

11
Distanciamo-nos da leitura de Thomas S. Kuhn (1997) acerca da definição de paradigma
como padrão teórico-metodológico, praticamente, homogêneo da ciência e aproximamo-
nos de Ivan Domingues (2004:52) ao reconhecer o paradigma como uma “espécie de guarda-
chuva capaz de abrigar várias teorias”.

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Júlio César Suzuki

Em comum, ainda, entre as duas linhas é a crítica à sociedade ca­


pitalista, em que se salienta, com discursos diversos, os processos e as
dinâmicas de subordinação dos sujeitos subalternizados do campo bra­
sileiro, além de aproximações, em graus distintos, com o materialismo
histórico.
Outras linhas, ainda, compartilham do mesmo sentido de crítica so­
cial, mas estão fundadas em posições teóricas bastante distintas da multi­
plicidade presente nessas duas grandes perspectivas paradigmáticas, como
é o caso das leituras fenomenológicas e sistêmicas.
Assim, não é possível afirmar que haja uma única Geografia Agrá­
ria, mas há duas linhas principais, com correntes, também, muito diversas
entre si.
É, ainda, por essa grande riqueza de posições teórico-metodológi­
cas, relacionadas a posições políticas diversas, que se pode afirmar haver,
no Brasil, a sua autonomia intelectual.
Se, em um primeiro momento, o de formação, a Geografia Agrária
no Brasil seguia parâmetros vindos de outros centros intelectuais de pro­
dução do conhecimento, sobretudo a França, a Alemanha e os Estados
Unidos, no segundo, seus passos são dados tendo como norte a busca da
conformação de teorias e métodos que dêem conta da realidade brasileira
em sua riqueza e diversidade, o que significa a negação da importação de
pensamentos conformados para realidades espaciais distintas da do Bra­
sil, por mais que muitos pesquisadores estrangeiros, de extrema importân­
cia, tenham contribuído enormemente para a situação atual em que vive a
Geo­grafia Agrária brasileira.
Mas, para concluir, cabe recuperar a indicação de Manuel Correia
de Andrade para que não se lide com a teoria como uma camisa de força:

Ao se tentar teorizar é necessário ter uma abertura que permita a cada estu­
dioso seguir os seus caminhos filosóficos, epistemológicos e políticos e que
ele seja capaz de se adaptar a cada situação com que se defronte. Os grandes
modelos podem ser utilizados apenas como referências abstratas, teóricas,
mas nunca como uma meta a ser aplicada mecanicamente no trabalho cien­
tífico, no campo. A observação e a preocupação com a diversificação devem
permanecer no raciocínio do estudioso para atenuar o rigorismo dos mode­
los que quase sempre são bem elaborados, mas em geral contribuem para a
alienação. (ANDRADE, 1995:12).

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Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Rio Claro, 2000.

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Júlio César Suzuki

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Percursos teórico-metodológicos da Geografia Agrária
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da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universi­


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Ciên­cias Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993.
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versidade de São Paulo, São Paulo, 1975.
ROSSINI, Rosa Ester. Geografia e Gênero; A mulher na lavoura canavieira
paulista. 1988. 348p. Tese de Livre-Docência em Geografia da Popula­
ção – Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1988.
SADER, Maria Regina Cunha de Toledo. Espaço e luta no Bico do Papagaio.
1986. 422p. Tese de Doutorado – Departamento de Geografia da Fa­
culdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo, São Paulo, 1987.
SADER, Maria Regina Cunha de Toledo. Evolução da paisagem rural de Itu,
num espaço de 100 anos. 1970. 115p. Dissertação de Mestrado – De­

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Percursos teórico-metodológicos da Geografia Agrária
brasileira: da formação à autonomia intelectual

partamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên­


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nas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1972.
SEABRA, Manoel. Vargem Grande; organização e transformações de uma
parte do cinturão verde paulistano. 1969. Dissertação de Mestrado –
Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên­
cias Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1969.
SUZUKI, Júlio César. A gênese da moderna cidade de São Paulo; Uma con­
tribuição da Geografia Urbana à história da cidade. São Paulo:
FFLCH­/USP, 2002. (Tese de Doutorado).
SUZUKI, Júlio César. De povoado a cidade; A transição do rural ao urbano
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manas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997.
THOMAZ JÚNIOR, Antonio. A territorialização do monopólio; as agroin­
dústrias canavieiras em Jaboticabal. 1989. Dissertação de Mestrado
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Ciên­cias Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989.
THOMAZ JÚNIOR, Antonio. Por trás dos canaviais, os “nós” da cana; a relação
capital X trabalho e o movimento sindical dos trabalhadores na agroin­
dústria canavieira paulista. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2002.
TSUKAMOTO, Ruth Youko. Experiência japonesa na cultura e industria­
lização do chá em Tapirai-SP. 1981. 90p. Dissertação de Mestrado –
Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên­
cias Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1981.
TSUKAMOTO, Ruth Youko. Teicultura no Brasil: subordinação e dependên­
cia. 1994. 244p. Tese de Doutorado – Departamento de Geografia da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, São Paulo, 1994.
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VALVERDE, Orlando. Geografia Agrária do Brasil. Rio de Janeiro: CBPE/
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40

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Nas “trilhas” da geografia agrária:
1
reflexões sobre uma trajetória

Vera Lúcia Salazar Pessôa2

Introdução
Os Encontros Nacionais de Geografia Agrária constituem fóruns im­
portantes para o debate sobre as questões teórico-metodológicas da geo­
grafia agrária não apenas com os geógrafos, mas também com pesquisa­
dores de áreas afins. O caráter interdisciplinar dos Encontros sempre foi
positivo. E, nessa interdisciplinaridade, os desafios são constantes.
Em 2008, completamos 30 anos da realização do 1º Encontro Nacio­
nal de Geografia Agrária (ENGA). Ao longo desse período 18 encontros. Para
comemorar a data, preparamos este texto que foi apresentado também no
XIX ENGA, realizado em fevereiro/2009 na Universidade de São Paulo.
A pluralidade de temas, ao longo dos dezoito encontros realizados,
reflete a preocupação dos geógrafos em “construir” uma geografia agrária
brasileira que possa contribuir para a reflexão crítica sobre o campo e a
cidade, o rural e o urbano e suas contradições.
Assim, o objetivo é fazer um relato de minha trajetória nos quinze
encontros dos quais participei e mostrar sua importância para minha for­
1
Texto originalmente publicado na GEOUERJ, Rio de Janeiro, v.2.n.18, p.208-223, 2º. Sem.
2008 e apresentado,com revisões, no XIX Encontro Nacional de Geografia Agrária/ 2 a 7 de
fevereiro 2009/USP.
2
Professora do Programa de Pós-Graduação em Geografia/Instituto de Geografia/UFU/Mem­
bro do LAGEA e NEAT.

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Nas “trilhas” da geografia agrária: reflexões sobre uma trajetória

mação acadêmica. O trabalho está dividido em três momentos, além da In­


trodução e Para finalizar. No primeiro momento, procuro mostrar minha
“inserção” no mundo da Geografia Agrária. No segundo momento, relato
um pouco da “história” do ENGA. No terceiro, revelo o significado dos
ENGA’s para minha formação acadêmica.

1. A inserção no “mundo” da Geografia Agrária


O ponto de partida para esta reflexão começa em 1976! Não foi uma
monografia em Geografia Agrária, nem tampouco a participação em um
projeto de iniciação científica como é comum nos dias atuais.
O país vivia o período ditatorial, época em que os questionamentos
acerca da realidade brasileira eram “quase” impossíveis nas Universidades.
Eu havia concluído a graduação em Geografia, em 1974, na Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Uberlândia. Meus conhecimentos limita­
vam-se a me “orgulhar” do Brasil gigante, potência econômica: o maior
produtor de café, o melhor rebanho bovino!
Aprendi muito bem com meus professores a trabalhar com a Geo­
grafia Tradicional: observar e descrever! O “mundo rural” e o “mundo ur­
bano” eram bem distintos. Nada de contradições! Como professora do
Ensino Fundamental e Médio, sentia-me orgulhosa de repassar para os
alunos todas as informações que o livro didático nos apresentava. Era o
único instrumento que tínhamos para preparar nossas aulas. De vez, em
quando, a projeção de alguns slides retirados de livros ilustrava as aulas. O
atlas também era um excelente recurso.
Mas, as oportunidades surgem! E quando isto acontece temos que
aproveitá-las. Em 1976, fui contratada para dar aulas de Geografia Físi­
ca na Faculdade onde estudei. De imediato, fui para Belo Horizonte fazer
o Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Geografia Humana (PREPES:
Programa Regional de Especialização Para Professores do Ensino Supe­
rior ) na PUC/Minas.
Um mundo abria-se à minha frente. Era julho/1976 e acontecia,
também, em Belo Horizonte, o II Encontro Nacional de Geógrafos na
UFMG. Quanta mudança! Mas, e a Geografia Agrária, onde estava ela?
Em algumas comunicações a que assisti no Encontro que antecedeu o
Curso de Pós-Graduação e na disciplina Geografia Agrária ministrada
pela profa. Dra. Ligia Celória Poltronieri (UNESP/Rio Claro). A aborda­
gem foi na linha teórica sobre a Teoria Geral dos Sistemas, indo de encon­
tro ao momento político pelo qual o país atravessava. Concluí o primeiro
módulo do Curso e retornei “encantada” com o que tinha aprendido, não
só na Geografia Agrária, mas nas outras disciplinas cursadas. O livro Teo­
ria Geral dos Sistemas de Ludwig Von Bertalanffy foi uma leitura obriga­
tória para dar subsídios às disciplinas do curso. O “encantamento” conti­

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Vera Lúcia Salazar Pessôa

nuou até terminar o curso em 1977. A cada módulo concluído, retornava


para Uberlândia querendo aplicar o que tinha aprendido. Isso nem sem­
pre foi possível.
Finalmente, chegamos em 1978: a federalização da Universidade Fe­
deral de Uberlândia era uma realidade! O 3º Encontro Nacional de Geó­
grafos a realizar-se em Fortaleza, a “abertura política” do país e a seleção
para o mestrado! Tudo acontecendo quase que “simultaneamente”. No 3º
Encontro Nacional de Geógrafos, a experiência foi gratificante. Além de
assistir às discussões inflamadas na Geografia e a possibilidade de conhe­
cer José César de Magalhães (presidente da AGB-Nacional), Milton San­
tos, Orlando Valverde, Caio Prado Jr, Roberto Lobato, Armen Mamigonian,
dentre outros geógrafos, tive o privilégio de fazer uma “excursão” ao Baixo
Jaguaribe, durante três dias, coordenada por José Borzachiello da Silva.
Nessa “excursão”, a Geografia Agrária se fez presente com as observações
apresentadas por Orlando Valverde e Caio Prado Júnior. As “aulas” do prof.
Orlando nas “paradas” de observação e ao final do dia serão sempre lem­
bradas, somadas a todas as informações que recebíamos em cada lugar
que passávamos. Foi aí que vi o grande desmatamento da mata da carnaú­
ba para a implantação de um projeto de irrigação na referida região!
O final do ano se aproximava. Novembro de 1978: seleção para o
curso de Mestrado na UNESP/Campus de Rio Claro. No mural da Faculda­
de, um cartaz: I Encontro Nacional de Geografia Agrária em Salgado/SE,
(4 a 7 de dezembro -1978). Pensei! No próximo – II Encontro – eu irei, pois
estava ali para prestar a seleção para o curso de mestrado em Geografia
Agrária e tinha a convicção de que conseguiria ser aprovada no processo se­
letivo! Naquele momento! Um “sonho”! Havia atravessado o “Rio Grande”3
e o “mundo da Geografia Agrária” começava a se abrir para mim!
E por que surgiram os Encontros Nacionais de Geografia Agrária?

2. Um pouco da história dos ENGA’s


Aqui, transcrevo o relato do prof. José Alexandre Felizola Diniz de
seu texto: “Uma idéia que deu certo”:

Corria o mês de julho de 1978, e a cidade de Fortaleza sediava o 3º Encontro


Nacional de Geógrafos da Associação dos Geógrafos Brasileiros. Em plena
efervescência da reunião onde despontavam mudanças profundas nas concep­
ções geográficas mais aceitas no Brasil, sobretudo com uma crítica severa aos
métodos quantitativos e uma preocupação acentuada com as questões sociais,
os estudos urbanos encontravam-se em pleno desenvolvimento. Em oposição,
a Geografia Agrária mostrava-se enfraquecida, pouco produtiva, diante de ou­
tras áreas da nossa ciência, não merecendo mais do que uma simples sessão

3
Rio que separa Minas Gerais de São Paulo.

43

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Nas “trilhas” da geografia agrária: reflexões sobre uma trajetória

vespertina para apresentação de algumas contribuições. E para todos aqueles


que faziam essa geografia, a sensação era de frustração e desânimo.
Sentados diante do “bandejão” para almoço, nesse dia reservado para a men­
cionada sessão, meditávamos eu, Rivaldo Gusmão4, Solange Silva5 e Olindi­
na Mesquita6 sobre nossa fragilidade, quando despontou, como resposta à
célebre pergunta: “o que fazer”?, a idéia do ENGA. E ali mesmo fomos mon­
tando a estrutura preliminar do primeiro Encontro, dividindo as tarefas e
selecionando temas. Logo me dispus a organizar o evento, em dezembro do
mesmo ano, que, em nossa idéia precipitadamente concebida, deveria ser o
primeiro de uma grande seqüência.
Do almoço fomos ao encontro de colegas que já estavam, sem saber, “encar­
regados” das tarefas urgentes. Como o primeiro ENGA deveria ser de caráter
norteador e metodológico, Lúcia Gerardi, Antonio Ceron e Miguel Sanchez
deveriam preparar um texto sobre “Metodologia da pesquisa em Geografia
Agrária”, enquanto Mário Lacerda de Melo desenvolveria o tema da forma­
ção do geógrafo agrário no Brasil. Com outros colegas de Sergipe e de ou­
tros estados presentes em Fortaleza, logo se formou um grupo que definiu
as regras básicas para futuros Encontros. (DINIZ et al., 1987, p.18,grifos do
autor, destaques nossos).

Para a realização dos Encontros, as “regras básicas”, propostas por


José Alexandre Felizola Diniz, e os colegas já citados, seriam:

a) que sua organização não seria da responsabilidade nem prerrogativa de


um único organismo ou instituição, devendo sim, ser encargo de um grupo
de interessados, quaisquer que fossem suas vinculações profissionais ou as­
sociativas;
b) que ele seria realizado anualmente e teria abrangência nacional;
c) que discutiria problemas cruciais da agricultura brasileira, não impli­
cando esta decisão no abandono da discussão de problemas de natureza teó­
rica, metodológica ou técnica;
d) que além da discussão de temas específicos, seriam discutidas comuni­
cações livres ou vinculadas ao temário básico, inscritas pelos participantes;
e) que os Encontros deveriam ser realizados, prioritariamente, em am­
bientes fechados, favoráveis à discussão e reflexão profundas, em trabalho
de grupo, para permitir aprofundamento de temas desenvolvidos por auto­
res escolhidos.(DINIZ et al., 1987, p.18).

Continuando seu relato, José Alexandre Felizola Diniz, assim conclui:

E a ideia deu certo! As 14 primeiras comunicações apresentadas em Salga­


do, no 1º ENGA, foram largamente superadas nas reuniões que se seguiram.
A Geografia Agrária brasileira, hoje [1987], atravessa uma nova fase, mais
criativa e com produção significativa. Diversos fatores contribuíram para

4
Rivaldo Pinto de Gusmão/geógrafo do IBGE.
5
Solange Tietzmann Silva/ geógrafa do IBGE.
6
Olindina Vianna Mesquita/geógrafa do IBGE.

44

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Vera Lúcia Salazar Pessôa

isso, inclusive a expansão dos cursos de pós-graduação, sobretudo de Rio


Claro, que a estimularam bastante. Todavia, a contribuição dos ENGA’s não
pode ser esquecida. (DINIZ et al., 1987, p.18-19, destaque nosso).
A partir da ideia, surgida em 1978, os Encontros Nacionais de Geo­
grafia Agrária expandiram-se. Os trinta anos, completados em dezembro
de 2008, revelam o crescimento da Geografia Agrária brasileira, constata­
do nas dissertações e teses produzidas nos programas de pós-graduação,
nos livros publicados, na criação de uma revista direcionada para a Geo­
grafia Agrária e áreas afins, no volume de comunicações apresentados nos
referidos encontros.
Parte da estrutura do Encontro, como os minicursos e os grupos de
trabalho, duas atividades importantes, mudaram para atender o crescimento
do público participante. Como retomar essa ideia? Um desafio para pensar...

3. O significado dos Encontros Nacionais de Geografia Agrária


para a “construção” do conhecimento...

A busca pelo conhecimento é uma constante no ser humano. É por


meio dele que aprendemos a desvendar a realidade do mundo. Produzir
ciência, produzir pesquisa (científica), ou seja, produzir conhecimento é
uma tarefa das Universidades. Isto porque a Universidade

é uma agência formadora da ciência e da tecnologia, assim como configura


um lugar de produção do imaginário coletivo, capaz de articular, prática e
simbolicamente, a sociedade política e a sociedade civil. Encontramos na
Universidade o lugar necessário e adequado para desenvolver a atividade
científica entendida como o processo criativo que visa à produção do conhe­
cimento. (TAVARES DOS SANTOS, [199-], p.178).

Foi desse modo que os Encontros Nacionais de Geografia Agrária


contribuíram para minha formação acadêmica. Minha trajetória começou
no 2º ENGA/1979. Até 2006, foram quinze encontros. As discussões foram
muito ricas. Na sua estrutura, as comunicações científicas, as mesas-re­
dondas, os minicursos, os grupos de trabalho, painel com a participação
de produtores rurais, presidentes de sindicatos (rurais e de trabalhadores
rurais), os trabalhos de campo contemplaram diversos assuntos.
Assim, nas mesas-redondas, tivemos temas como: a divisão da ter­
ra agrícola no Brasil, a agricultura e desenvolvimento no Brasil, as polí­
ticas de planejamento rural no Brasil, as transformações atuais da agri­
cultura brasileira, as políticas agrícolas e reforma agrária, agricultura e
indústria no Brasil, as contradições da pequena e da grande produção
agrícola, abordando subtemas como a expansão da fronteira agrícola,
agricultura energética e conflitos sociais no campo, o cooperativismo,
a natureza e a organização do espaço agrário, agricultura empresarial

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Nas “trilhas” da geografia agrária: reflexões sobre uma trajetória

e relações de trabalho, movimento sindical, agricultura sustentável, as


novas territorialidades do espaço agrário brasileiro, agricultura familiar,
produção rural familiar, agricultura camponesa, relações cidade-campo,
pluriatividade na agricultura, os assentamentos rurais. Além desses te­
mas mais específicos, as questões teórico-metodológicas da geografia
agrária (I,VIII e XII ENGA’s), a formação do geógrafo agrário (I ENGA)
e o ensino da geografia agrária na Universidade brasileira possibilita­
ram discussões profícuas (XIII ENGA’s) Outra atividade importante nos
ENGA’s iniciais foram os grupos de trabalho. A sistemática adotada era
a seguinte:

a) apresentação, pelos autores, durante 30 minutos, das idéias centrais dos


documentos já distribuídos aos participantes; b) reunião em grupos com
assessoria dos autores e coordenação” de professores indicados pela coor­
denação do evento; c) reunião dos participantes em plenário para apresen­
tação das conclusões de cada grupo e rediscussão dos documentos com os
autores; d) apresentação e discussão, em plenário, das comunicações inscri­
tas. (DINIZ et al. , 1987, p.8).

Da mesma forma que os grupos de trabalho, os minicursos foram


importantes. Dentre eles, nossa participação em dois contribuíram para o
enriquecimento das discussões:

a) O papel do Estado na organização do espaço rural, ministrado


pela profa. Dra. Beatriz Soares Pontes (VIII ENGA/1987) e b) A renda da
terra, ministrado pelo prof. Dr. Ariovaldo U. de Oliveira (IX ENGA/1988).
Os trabalhos de campo também compunham a estrutura dos ENGA’s.
Era uma forma de “resgatar” as “excursões” que marcaram os Encontros
da AGB nos anos 1950, 1960, 1970 e também de aprender um pouco sobre
a realidade local. Com esses trabalhos aprendi muito.
Nessa trajetória, a estrutura dos ENGA’s, conforme já destacado,
mudou. Do Encontro realizado em locais “fechados”, passamos para os
espaços das Universidades. O número de trabalhos apresentados cres­
ceu de forma significativa face ao crescimento também dos programas de
pós-graduação. A tônica das questões teórico-metodológicas da Geografia
Agrária, temas do I ENGA, em 1978, continuou em pauta.
Perguntamos: o que avançamos ao longo desses trinta anos? Creio
que é possível responder: muito! Por mais dificuldades que tenhamos en­
contrado, ao longo da trajetória, conseguimos avançar teoricamente. As­
sistimos às mudanças de uma Geografia Agrária com base nos princípios
filosóficos da Geografia Tradicional e da Geografia Neopositivista, com
destaque, sobretudo, para os trabalhos com o uso das técnicas quantita­
tivas e abordagem sistêmica, para a Geografia Agrária Crítica. A partir de
então, o geógrafo (agrário) passou a fundamentar-se no materialismo his­

46

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Vera Lúcia Salazar Pessôa

tórico-dialético para explicar as contradições do processo de desenvolvi­


mento desigual do capitalismo no campo brasileiro. Temas como: relações
sociais de produção, a apropriação da terra, os conflitos pela posse da ter­
ra, ou seja, os problemas sociais da agricultura, passaram a ser objetivo de
análise dos estudiosos da questão agrária.
Entretanto, nesta trajetória, gostaria de destacar quatro contribui­
ções importantes, reflexos dos ENGA’s, para minha formação acadêmica:

a) a possibilidade que tive de fazer o mestrado(1979/1982) e o


doutorado(1985/1989) em Geografia Agrária, na UNESP/Campus de Rio
Claro, sob a orientação de Dr. Miguel César Sanchez e ter tido, nesta tra­
jetória, o aprendizado com Dra. Lúcia Helena de Oliveira Gerardi, Dr. Ri­
valdo Pinto de Gusmão, Dra. Rosa Ester Rossini, Dra Iracy Gomes de Vas­
concelos Palheta, Dr. Marcos Roberto Ribeiro, responsáveis pela minha
titulação acadêmica, além de mestres como Dr. Antonio Olívio Ceron, Dr.
José Enio Casalechi, Dr. Márcio de Miranda Costa e Dra Vera Marisa Hen­
riques de Miranda Costa, com quem aprendi a discutir e refletir sobre as
questões agrárias e adquiri uma visão crítica da realidade a partir das lei­
turas realizadas nas disciplinas cursadas. Além desses mestres, Dr. Antonio
Christofoletti e Dra. Lívia de Oliveira contribuíram para minhas reflexões
sobre a Geografia, como um todo.
Nos dois momentos da pós-graduação, para entender as novas con­
figurações que ocorreram no espaço agrário brasileiro, sobretudo, após a
década de 1970, o ponto de partida foi o processo de modernização da agri­
cultura. As discussões pautavam-se nas concepções teóricas de Ruy Muller
Paiva7 e foram a tônica das pesquisas. Para explicar as contradições engen­
dradas por esse processo no campo brasileiro, o desenvolvimento rural,
baseado nas discussões de Phil Karp8 entendido como estratégia para me­
lhorar as condições de vida do homem do campo, serviu como referencial
teórico para essas análises e possibilitou a discussão mais crítica acerca da
realidade brasileira.
Outro autor que serviu como referencial para a análise crítica da
modernização da agricultura foi José Graziano da Silva9. Essas referências
foram, podemos dizer, um “norte teórico” para nossa dissertação de mes­
trado e para a tese de doutorado, desenvolvidas sobre a abordagem agrá­
ria. A partir daquele momento, novos autores foram sendo incorporados às
leituras para dar o suporte teórico crítico.

7
PAIVA, Ruy Miller. Modernização e dualismo tecnológico na agricultura. Pesquisa e planeja­
mento: Revista do IPEA, v.1, n.2, p.171-234, dez./1971.
8
KARP, Phil. Rural development: a people-oriented strategy. Antipode, Mass.,v.8, n. 2, p.50-
64, may. 1976.
9
GRAZIANO DA SILVA, José (Coord.). Estrutura agrária e produção de subsistência na agri­
cultura brasileira. São Paulo: HUCITEC, 1978.

47

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Nas “trilhas” da geografia agrária: reflexões sobre uma trajetória

A titulação possibilitou minha inserção no Programa de Pós-Gradua­


ção em Geografia/Instituto de Geografia /UFU, em 1996, quando o mesmo
foi criado. O resultado são as orientações (mestrado e doutorado), verda­
deiras aulas de aprendizado constante.

b) A publicação de um trabalho: O Espaço rural de Uberlândia no ano


seu centenário, nos Cadernos de Geografia –n.2 –a dez.1988-AGB Seção de
Uberlândia, em co-autoria com as professoras Beatriz Ribeiro Soares e
Maria Benedita Cavalini. O trabalho resultou de um projeto da AGB-Seção
Uberlândia, em conjunto com a Secretaria Municipal de Agricultura, In­
dústria e Comércio e teve como objetivo conhecer a organização do atual­
[1988] espaço rural no município de Uberlândia. As discussões sobre a
modernização da agricultura e do desenvolvimento rural foram a temática
do trabalho.

c) A participação no Projeto Interinstitucional sobre a Realidade


Agrária do Norte Paranaense: transformações recentes e novas perspecti­
vas, com os colegas: Dra Alice Yatio Asari, (UEL), Dra. Ruth Y. Tsukamoto
(UEL); Dr. Elpídio Serra (UEM) e Dr. José Barreira (UEM). As idéias para
esse projeto “nasceram” no trajeto: Diamantina/Belo Horizonte no retorno
do XIII ENGA (1996). O objetivo foi conhecer a realidade agrária do norte
do Paraná, a partir da intensificação das relações capitalistas de produção,
das transformações ocorridas na região e dos seus reflexos no contexto da
modernização da agricultura. Para a execução desse projeto, na primeira
fase (1997-1999), foram propostos cinco subprojetos10, tendo como eixo
central a modernização da agricultura. Na segunda-fase (1999-2001), para
dar continuidade ao objetivo central, foram propostos mais quatro sub­
projetos11.

d) A coordenação de CAMPO-TERRITÓRIO, Revista de Geografia


Agrária (2005/fev.2009), idealizada no X ENGA (2004) por Dr. Bernardo
Mançano Fernandes e apoiada pelos colegas “agrários” presentes àque­
le ENGA. A experiência foi rica: resgatamos seis trabalhos escritos sobre
10
As relações campo-indústria no norte paranaense (Profa. Ruth Y. Tsukamoto/UEL)); As co­
operativas e a modernização agrícola: gestão e processos de produção e de trabalho (Prof.
José Barreira/UEL); As faces do movimento migratório: o caso do norte paranaense (Profa.
Alice Y. Asari/UEL): Os movimentos rurais organizados pela reforma agrária no norte para­
naense (Prof. Elpídio Serra/UEM); O café e a soja na (re) organização do espaço do Triângu­
lo Mineiro/Alto Paranaíba (Profa. Vera Lúcia Salazar Pessôa/UFU).
11
A sericicultura no norte paranaense: situação atual e perspectivas (Profa. Ruth Y. Tsukamo­
to/UEL); A ação governamental na retenção das migrações internas: programas vilas rurais
no Paraná (Profa. Alice Y. Asari/UEL); Os movimentos rurais organizados pela reforma agrá­
ria no norte do Paraná (Prof. Elpídio Serra); O cooperativismo no Triângulo Mineiro/Alto
Paranaíba: evolução e transformações (Profa. Vera Lúcia Salazar Pessôa/UFU).

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Vera Lúcia Salazar Pessôa

a Geografia Agrária brasileira, abordando as questões teórico-metodoló­


gicas, além da interdisciplinaridade presente nos artigos enviados e que
compõem os sete números (fevereiro /2009) da Revista.
De forma indireta, os ENGA’s possibilitaram a formação de Grupos
de Pesquisa com o objetivo de propiciar o intercâmbio dos grupos, cujas
análises principais enfocam a temática da agricultura associada às trans­
formações socioespaciais e ao desenvolvimento regional. O tema central
dos encontros foi: Agricultura, desenvolvimento regional e transformações
socioespaciais. Foram realizados quatro encontros: 2005 (UERJ/Rio de Ja­
neiro); 2006 (UFU/Uberlândia); 2007 (UFRGS/Porto Alegre) e 2008 (USP/
São Paulo). A preocupação central dos grupos é reforçar o debate sobre as
questões teórico-metodológicas na geografia agrária, uma proposta do I
ENGA (1978).
O resultado da formação dos grupos foram dois livros organizados
por Gláucio José Marafon e Vera Lúcia Salazar Pessôa e o projeto de pes­
quisa, coordenado pela profa. Darlene Ap. de Oliveira Ferreira (UNESP/
Campus de Rio Claro), com a participação de prof. Gláucio Marafon
(UERJ) e Vera Lúcia Salazar Pessôa(UFU). Sobre os livros, destacamos:
Interações Geográficas: a conexão interinstitucional de grupos de pesquisa
(2007) e Agricultura, desenvolvimento e transformações socioespaciais: re­
flexões interinstitucionais e constituição de grupos de pesquisa no rural e no
urbano(2008).
Quanto ao projeto: Espaço, território e paisagem: uma leitura teórico-
metodológica da Geografia Agrária brasileira na pós-graduação a partir dos
anos 1970, o objetivo é propor uma diretriz teórico-metodológica para a
geografia agrária, com a elaboração de uma metodologia de trabalho para
analisar o transcurso do desenvolvimento do pensamento geográfico no
Brasil e, particularmente, dos estudos sobre o setor agropecuário e o mun­
do rural. Esse projeto terá a duração de dois anos (2008-2010).

Para finalizar...
No “espaço” dos ENGA’s, o conhecimento produzido, resultado das
pesquisas, mostrou (e mostra) que, nessa trajetória, a interdisciplinaridade
contribuiu para o fortalecimento dos encontros.
Assim, nossa participação, ao longo dos quinze ENGA’s, contribuiu
para esta reflexão. A cada Encontro, a busca por “respostas” aos problemas
levantados possibilitava um repensar da continuidade dos mesmos para
cumprir o proposto no I ENGA. Este objetivo, conforme já destacado, tem
sido alcançado.
A reflexão que fazemos, a cada dois anos de realização dos Encon­
tros, mostra a importância do repensar teórico-metodológico iniciado em
1978. Podemos afirmar que a geografia agrária brasileira, nesses trinta

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Nas “trilhas” da geografia agrária: reflexões sobre uma trajetória

anos (1978-2008), cresceu, tanto em termos de qualidade quanto de quan­


tidade na produção de monografias, dissertações, teses, artigos, livros. Isto
vem mostrar a responsabilidade não só acadêmica, mas também social do
geógrafo agrário quando se propõe, mais que um pesquisador, ser um ci­
dadão comprometido com a sociedade.

Referências:
ANAIS DOS ENCONTROS NACIONAIS DE GEOGRAFIA AGRÁRIA- 19
79/1980/1983/1984/1985/1986/1987/1988/1990/1992/1994/1996/1998
/2000/2002/2004/2006
ASARY, Alice Y. et al. Realidade agrária do norte paranaense: transforma­
ções recentes e novas perspectivas. Londrina:UEL;Uberlândia:UFU,
1999. 333p. Relatório.
ASARY, Alice Y. et al. Realidade Agrária Do Norte Paranaense: transforma­
ções recentes e novas perspectivas. Londrina:UEL;Uberlândia:UFU,
2001. 426p. Relatório.
DINIZ, José Alexandre Felizola et al. ENGA ANO 10: subsídio ao estudo da
história da geografia agrária brasileira. Aracaju: [s.n],1987. (Texto
mimeo.).
FERREIRA, Darlene Ap. de O. Geografia agrária brasileira: fontes e refe­
rências.In: . Mundo rural e geografia: geografia agrária no
Brasil: 1930-1990. São Paulo: Editora UNESP, 2002. p.113- 186.
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. A nova organização do trabalho
científico. In: MOROSINI, M. C. (Org.). Universidade no MERCOSUL­.
São Paulo: Cortez; Porto Alegre:FAPERGS/CNPq, [199-]. p.178-187.

AGRADECIMENTOS: Agradecemos ao Prof. Dr. Glaucio José


Marafon pela leitura e sugestões e à Profa. Dra. Valéria Guimarães de
Freitas Nehme pela revisão do texto.

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As perspectivas para os encontros
nacionais de geografia agrária

Profª Drª Rosa Maria Vieira Medeiros


NEAG/IG/UFRGS | rmvmedeiros@yahoo.com.br

Na expectativa de mostrar a importância dos ENGAs para o pensa­


mento geográfico, especialmente em Geografia Agrária é que o presente
trabalho traz alguns elementos para reflexão e discussão.
Em primeiro lugar é importante ressaltar que nas últimas décadas
se tem registrado uma grande diversidade temática nos estudos relaciona­
dos à Geografia Agrária. Segudo Suzuki (2008), esta diversidade possibili­
tou o aprofundamento sobre os elementos presentes nas abordagens que
precederam os anos oitenta, cujas raízes fortes e sólidas permitiram avan­
çar com segurança em muitas reflexões. Ressalta ainda que, embora haja
muitos temas e muitas abordagens teórico-metodológicas existe entre eles
uma unidade cujo foco é a leitura do campo e da agricultura com uma for­
te perspectiva espacializante.
A Geografia Agrária brasileira, segundo Chelotti (2007), portanto
chegou ao século XXI influenciada por essas correntes filosóficas do pen­
samento, produzindo diferentes interpretações sobre o campo brasileiro,
seja pela ótica do empirismo lógico, da fenomenologia ou da dialética.
A Geografia Agrária passa então por um processo de construção do
conhecimento, sendo fundamental o estudo sobre a atualidade do pensa­
mento geográfico em que os eventos são entendidos como espaços funda­
mentais para que esse processo ocorra.
Diniz, em 1987 (apud GALVÃO,1991), já mostrava esta necessidade,
demonstrando que o encontro seria o momento para se ter informações
mais precisas sobre pesquisas, eventos, trabalhos publicados e teses de­

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As perspectivas para os encontros nacionais de geografia agrária

fendidas, sem as quais não seria possível reconstruir de forma prudente a


trajetória da Geografia brasileira.
Ferreira (2001), por sua vez afirma que o estudo do campo efetuado
pela Geografia tem renovado seu espaço de divulgação nos ENGA’s, des­
tacando a importância dos anais como recurso que auxilia o acompanha­
mento dos acontecimentos que marcaram o campo brasileiro.
Para Germani (apud RAMOS FILHO, 2005) os eventos também
são espaços essenciais para a compreensão da formação do pensamento
geográfico,pois é o momento, o lugar onde se manifestam as posições das
pessoas ou grupos que constroem espaços para aquilo que elas acreditam
representar as preocupações da Geografia Agrária.
Para Marafon (2008) os grupos de pesquisa tornaram-se canais
de construção do conhecimento e possibilitam que os alunos envolvidos
atuem como sujeitos do próprio processo construção do conhecimento.
É pois dentro desta perspectiva que os Encontro Nacionais de Geo­
grafia Agrária foram construídos com o objetivo de:
1. Aprofundar as questões teórico metodológicas relacionadas direta
ou indiretamente à Geografia Agrária;
2. Trazer para o debate os temas polêmicos, impactantes e de impor­
tância para o campo brasileiro;
3. Reunir pesquisadores, professores e estudantes de Geografia e de
áreas afins, brasileiros e estrangeiros para socializar e debater o co­
nhecimento construído;
4. Difundir as pesquisas em Geografia Agrária e áreas afins desenvolvi­
das no âmbito das diferentes universidades e instituições brasileiras
e estrangeiras através das comunicações livres e/ou coordenadas as­
sim como das mesas redondas;
5. Elaborar propostas que contemplem novas linhas de pesquisa, novos
caminhos e trajetórias para o ensino da Geografia e para as políticas pú­
blicas direta ou indiretamente ligadas ao campo e ao rural brasileiro.

A partir desta proposição é são trazidos para o debate questões que


estão relacionadas à agricultura familiar, à pluriatividade, ao meio am­
biente, aos movimentos sociais, aos assentamentos e à reforma agrária;
ao meio técnico-científico e à modernização da agricultura; às novas ter­
ritorialidades do espaço agrário; à educação no campo e à relação campo-
cidade; ao turismo rural; e também à re-organização do espaço agrário na­
cional frente ao agronegócio e às novas alternativas de produção agrícola
voltadas à sustentabilidade.
É neste momento, portanto, que temos a oportunidade de discutir,
no coletivo, o caminho que está sendo percorrido pela Geografia Agrária
brasileira. Caminho este, que será registrado em meio impresso (livros,

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Rosa Maria Vieira Medeiros

anais) ou digital (Cds, revistas eletrônicas) e que nos permitirá analisar os


trechos já percorridos e aqueles que, ainda em construção, serão caminha­
dos passo a passo.
Mas o que efetivamente dá sustentação aos ENGAs contituindo a
base de seu fortalecimento enquanto núcleo permamente dos debates em
escala nacional, é o engajamento pessoal, livre, informal e voluntário do
pesquisador que organiza, do pesquisador que leva sua pesquisa para o de­
bate, do estudante ansioso que participa em busca do conhecimento.
Ao dirigirmos nosso olhar para o passado poderemos ver o que já
se discutiu nos eventos anteriores e isso, nos possibilta ver por onde anda­
mos, os caminhos que percorremos, por onde passamos, onde chegamos
e para onde iremos. Mas, fundamental nesta trajetória é a marca deixada
pela contribuição feita e a certeza de estar crescendo e fortalecendo a Geo­
grafia Agrária que, enquanto ramo de uma ciência, apresenta uma histó­
ria, que não pode ser esquecida.
Maria do Carmo Galvão já afirmou que

os Encontros de Agrária se constituíram num forum permanente de debate


sobre a matéria, promovendo e estimulando o desenvolvimento da pesquisa
em Geografia Agrária e com isso o surgimento de novos geógrafos voltados
para seu estudo e para as novas questões a serem investigadas.

Afirma ainda que um relance sobre temas e eixos das comunicações


dos encontros traz à tona a trajetória percorrida sob diferentes nuances
mostrando as diferentes preocupações.
É pois, a conscientização da Geografia Agrária no que se refere à
sensibilidade e à sintonia com os problemas relacionados não apenas com
o campo em si, mas sim, do campo enquanto expressão das questões re­
lacionadas à sociedade e à natureza. As questões teórico metodológicas,
fundamentais neste processo, são os alicerces deste debate, qualificam a
pesquisa e possibiltam mostrar os avanços desta caminhada.
Para Campos e Fernandes (2009), estes eventos trazem uma opor­
tunidade extremamente importante que é a do fortalecimento dos grupos
de pesquisa presentes nestes encontros, através de sua participação nas
comunicações onde trazem para o debate as pesquisas construídas e de­
senvolvidas no coletivo. Afirma que esta produção ao se fazer presente nos
principais eventos científicos possibilita que a partir delas se perceba e se
identifique as tendências temáticas e as correntes teórico-metodológicas
que hoje influenciam os estudos geográficos.
Fundamental também neste momento, é a possibilidade do re-encon­
tro entre os pesquisadores oriundos de diferentes instituições e os estudantes
de graduação e pós-graduação que, muitas vezes, de forma timida, trazem o
resultado ou pelo menos o andamento de suas pesquisas para ser debatido
na expectativa de obter contribuições importantes que permitam avanços

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As perspectivas para os encontros nacionais de geografia agrária

em seu trabalho. Isto é algo que foi construído e fortalecido nos Encontros
Nacionais de Geografia Agrária, pois não é só entre os pesquisadores já esta­
belecidos que as discussões tanto teórico-metodológicas quanto pragmáticas
devem acontecer: os estudantes ali presentes são o resultado das sementes
do conhecimento que plantamos e, portanto sua participação nas comunica­
ções demonstra o cuidado que nós, pesquisadores/professores tivemos com
esta planta que ainda está crescendo. É este o momento em que podemos
perceber o encantamento desses jovens pela Geografia Agrária, a sua busca
pelos novos rumos, pelos novos caminhos, pelo fortalecimento do seu co­
nhecimento. E isto é possível comprovar pela sua participação crescente nos
Encontros Nacionais de Geografia Agrária. Em 1988, Galvão já afirmava em
sua palestra de baertura no XIII ENGA , em Florianópolis que,

Nesse particular, vale ressaltar a interacao frequente e, cada vez mais forte
entre os ENGAs e os Cursos de Pós-Graduação, através de articulações entre
teses e comunicações, que são a expressão concreta desse fortalecimento da
Geografia Agrária e de seus profissionais em todo o país. (GALVÃO,1988)

A interação se fortalece ainda mais quando este jovem tem a opor­


tunidade de conhecer e de trocar idéias com os pesquisadores os quais ele
conhece apenas através da bibliografia. E isto, reforça a proposição dos
ENGAs de trazer para participar das palestras e das diferentes mesas re­
dondas, pesquisadores reconhecidos nacional e internacionalmente.
Neste XX Encontro Nacional de Geografia Agrária (2010) temos a
certeza do fortalecimento da Geografia Agrária, pois aqui serão abordados
temas que estão em evidência no debate nacional, temas que nos inquie­
tam, nos angustiam e para os quais buscamos alternativas e/ou soluções.
Ao discutir o tema “mercado de terras e diferentes formas de apro­
priação territorial” o evento poderá trazer para o debate questões relacio­
nadas à ocupação privada das terras públicas, à relação das diferentes for­
mas de produção com a apropriação da terra e à apropriação ilegal das
terras pertencentes a comunidades tradicionais.
Já na relação com os saberes, o XX ENGA abordará a agroecologia
associado-a às diferentes experiências e à consolidação das redes. Portan­
to discutirá um tema de importância relevante referente à construção de
alternativas de produção que além de não impactarem o meio ambiente
recuperam valores tradicionais.
Quanto à expansão do capital, que ao delinear uma geopolítica tra­
ça novos territórios no espaço agrário brasileiro, haverá um debate para
discutir o desenvolvimento destas novas territorialidades, fonte geradora
de novas ruralidades.
A educação é tema de presença confirmada nos debates relaciona­
dos ao campo uma vez que é parte dela a contribuição para as novas con­
figurações políticas, sociais e econômicas.

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Rosa Maria Vieira Medeiros

A problemática ambiental não poderia faltar neste debate propor­


cionado pelo XX ENGA, uma vez que é tema presente no cotidiano da im­
prensa tanto relacionada à expansão do uso do espaço agrário, quanto à
substituição de produções com seus riscos, impactos e uma legislação nem
sempre respeitada.
Estes temas todos, ao serem abordados trarão na sua construção, no
resultado da pesquisa, no encaminhamento proposto, uma forte contribui­
ção teórica para a Geografia Agrária, expressa através de diferentes méto­
dos demonstrando que o pesquisador é livre na sua escolha de caminhos
para realizar suas análises e chegar a suas conclusões.
Como afirma Suzuki (2007), há muitos temas e abordagens teórico-
metodológicas mas há ainda uma unidade: o campo, a agricultura, a sua
espacialização. Para ele, o diálogo é uma via de mão dupla, demonstrando
a maturidade das reflexões realizadas e a importância dos temas de pes­
quisa na compreensão do mundo a partir da leitura do campo e da agri­
cultura.
As perspectivas construídas a cada Encontro Nacional de Geografia
Agrária são fundamentadas nas centenas de comunicações apresentadas
tanto por pesquisadores cuja caminhada na Geografia Agrária é reconheci­
da, como por jovens, estudantes de graduação e pós-graduação, que estão
a construir sua trajetória acadêmica.
A cada ENGA, a Geografia Agrária se renova, se fortalece, amplia
seu conhecimento e abre perspectivas para novas reflexões em torno de
nossas inquietações teórico-metodológicas.
O ENGA é pois a grande representação da pesquisa e do aprofunda­
mento teórico-metodológico em Geografia Agrária no Brasil. Cada evento
se constitui numa fonte de conhecimento avançado em Geografia Agrária.
Este é o momento do encontro, do debate, do crescimento, da construção
de relações, da construção de amizades.
Em 2004, no XVII ENGA, em Gramado/RS, foi lançada a semen­
te para a criação da revista Campo e Território, hoje referência na Geo­
grafia Agrária. Também nesse evento começaram as primeiras conversa­
ções para a constituição dos Grupos de Pesquisa, hoje fortalecido através
da realização de cinco encontros e da publicação do livro “Agricultura,
desenvolvimento e transformações socioespacias: reflexões interinstitu­
cionais e constituição de grupos de pesquisa no rural e no urbano” em
2008.
O ENGA é, portanto, o solo fértil onde são lançadas as sementes
do conhecimento em Geografia Agrária. É o evento que traz importante
contribuição para consolidar as reflexões ora em andamento uma vez que
possibilita o estabelecimento de diálogos fundamentais para coerência e
coesão téoricas, metodológicas e históricas. É o evento que abre novos ca­
minhos de análise através do contato entre pesquisadores de lugares, de

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As perspectivas para os encontros nacionais de geografia agrária

teorias e de posições políticas as mais diversas uma vez que define-se como
espaço primaz de diálogo e de relativização do conhecimento original em
construção na Geografia Agrária.
E para concluir esta reflexão, uma vez mais usaremos as palavras de
Galvão (1991) que afirma ser,

Portanto, auspiciosa (e não desanimadora), a revisão metodológica que se


percebe hoje na geografia brasileira e que se vem manifestando nos En­
contros de Geografia Agrária. Nela se encontram as diversas correntes de
pensamento desenvolvidas entre nós, e nela se evidencia a tomada de cons­
ciência de que problemas não resolvidos na investigação científica exigem
aprimoramento do arcabouço metodológico utilizado, e uma preocupação
constante com sua adequação à dinâmica específica do objeto focado. O
ponto a que hoje chega a Geografia Agrária configura-se, assim, como um
novo ponto de partida abrindo campo e espaço para novas questões e outros
tantos desafios.

Referências:
CAMPOS, J.F. de S.; FERNANDES, B.M. Grupos de esquisa/pesquisado­
res e encontros científicos da geografia agrária: levantamento das
produções paulistas do simpósio internacional de geografia agrária
(2005 e 2007). XIX ENCONTRO NACIONAL DE GEOGRAFIA AGRÁ­
RIA, São Paulo, 2009, pp.1-21.
CHELOTTI, M.C.; PESSOA, V.L.S. (Re)visitando a geografia agrária de
Raymond Pébayle: interpretações sobre o espaço agrário gaúcho,
CAMPO-TERRITÓRIO: revista de geografia agrária, v.2, n. 4, p. 38-
61, ago. 2007.
FERREIRA, Darlene A. de Oliveira. Terra Livre, São Paulo n. 16 p. 39-70 1º
semestre/2001.
GALVÃO, M. do C. Contribuição ao debate teórico-metodológico em Geo­
grafia Agrária. Anuário do Instituto de Geociências, Rio de Janeiro,
1991. V.14, pp.45-52.
GALVÃO, M. do C. Questões e desafios para a investigação em Geografia
Agrária. Conferência de abertura do IX ENGA (Encontro Nacional de
Geografia Agrária), realizada na UFSC, em dezembro de 1988.
MARAFON, Gláucio José. A importância dos grupos de pesquisa na forma­
ção dos profissionais da geografia agrária: a experiência do NEGEF.
In: Campo Território: Revista de Geografia Agrária, Uberlândia, v. 3,
n. 5, p. 284-290.
Programação do XX ENGA. http://sites.google.com/site/xxenga/programa­
cao-do-xxenga consultado em 24/10/2010.

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Rosa Maria Vieira Medeiros

RAMOS FILHO, Eraldo Silva. Tradição x Tecnologia: As novas territoriali­


dades do espaço brasileiro (entrevista), Revista Formação, Presiden­
te Prudente, v. 1, nº 12, p. 45-86, 2005.
SUZUKI, J.C. Geografia agrária: gênese e diversidade in MARAFON,
G.;RUA,J. ; RIBEIRO M.A. (orgs). Abordagens teórico-metodológias
em geografia agrária. EDUERJ. Rio de Janeiro, 2007.
SUZUKI, J.C. Geografía agraria brasileña: génesis y diversidad. Cuadernos
de Geografía, Revista Colombiana de Geografía, n.º 17, 2008.

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Dilemas na conceituação do campo
e do rural no Brasil

Rosa Maria Vieira Medeiros


Profª Drª do Departamento de Geografia do IG/UFRGS,
Coordenadora do PPGGEA/IG/UFRGS, Tutora do PET-GEA/UFRGS

Que “novo” rural é este no Brasil?1


Para pensar o rural é importante começar pela sua definição: rural é
tudo o que é pertencente ou relativo ao, ou próprio do campo; é o agrícola;
é relativo à vida campestre. Ou ainda pode ser visto como a zona fora do
perímetro urbano ou suburbano das grandes cidades, na qual geralmente
predominam as atividades agrícolas, ou zona onde se situam pequenas ci­
dades de vilegiatura que não as de praia.
Para o IBGE, o conceito de rural utilizado nas suas pesquisas
(PNADs­, Censos...) baseia-se naquilo que o município define como rural
em seu plano diretor, ou seja numa decisão de cunho político-administrati­
vo onde muitas vezes não há um conhecimento mais profundo em relação
a esta questão. Portanto para o poder público, os espaços rurais são todos
aqueles que não são urbanos.
Campo, por sua vez, é definido como região mais ou menos afastada
dos grandes centros onde os habitantes se dedicam à agricultura e à cria­
ção de gado; onde há baixa densidade populacional. Campo, nesse sentido,
significa terra para plantar, propriedade, limites, território.
O campo pode ser compreendido como recurso a partir do seu uso
produtivo (agricultura, pecuária, agroindústria, turismo, etc...); como modo

1
Palestra proferida na Mesa Redonda “Dilemas na conceituação do campo e do rural no Bra­
sil” no I Simpósio Urbano Rural – USP/SP.

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Dilemas na conceituação do campo e do rural no Brasil

de vida enquanto local de residência e de lazer; e como natureza enquanto


ecossistema, espaço natural, contribuição com a diversidade biológica.
A produção no campo perpassa as representatividades do território,
uma vez que mobiliza e aprofunda não só as relações de produção quanto
às relações de trabalho que nele se desenvolvem.
No campo, de uma forma tradicional, as sociedades rurais apresen­
tam características homogêneas de comportamento fortemente marcadas
pelas ações e influências dos seus atores. São eles que apresentam uma
relação própria, diferente das outras que lhes permitem o interconheci­
mento, a solidariedade e uma grande proximidade com o espaço próximo.
As bases demográficas, econômicas e culturais que estruturaram as socie­
dades rurais evoluíram sob um efeito duplo, desigual dentro do espaço e
dentro do tempo, da chegada de novas populações e do desenvolvimento
de novas atividades2.
Em decorrência destes fenômenos, o geógrafo se percebe diante de
um duplo discurso, por muitos considerados complementares entre si. O
primeiro deles se refere à diferença cada vez mais tênue entre o espaço ur­
bano e o rural cujos limites são mais e mais indefinidos, onde as mobilida­
des individuais comportam a idéia de um continuum urbano-rural levando
à idéia de uma permanente fixação dos ares urbanos.
O segundo discurso é reducionista e compreende o espaço rural
como natureza, essencialmente caracterizado pela paisagem, e pela sua
condição de suporte para a produção de alimentos.
Segundo Yves Jean,

Dentro de uma civilização urbana, supra-industrial, marcada pela desmate­


rialização da produção, o mito da natureza se amplia. A ruralidade está res­
trita a natureza, fonte de repouso e de tranqüilidade. Esta natureza bucólica
é freqüentemente vista, de um lado, a partir de paisagens reais e idealizadas,
pensadas como fatores de uma melhor qualidade de vida e, de outro lado, a
partir de uma natureza suporte da atividade agrícola, fonte da alimentação,
que reforça a ligação agricultura e rural e impede freqüentemente de abor­
dar as outras funções dos espaços rurais.

Henri Lefebvre, já na década de 1950, chamava a atenção dizendo


que as questões do mundo rural são muito mais diversas e múltiplas do
que parecem.
O conceito de rural, então, se transforma, pois, se transforma o es­
paço agrário. Novas dimensões são agregadas àquelas já tradicionais e per­
tinentes ao processo de produção agrícola. A noção de território, as ques­
tões ambientais e o turismo se fazem presentes no debate sobre o rural.

2
Kayser 1993 ;Jean 1995. Faire la géographie sociale aujourd’hui – Les Documents de MRSH de
Caen,n°14,octobre 2001,p.111-122.

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Rosa Maria Vieira Medeiros

No debate contemporâneo, o rural é tratado como um novo rural


ou como uma nova ruralidade. A ruralidade tradicional está fortemente
condicionada pelo enfoque dicotômico; tipológico. A nova ruralidade é
apresentada com vários recortes, envolvendo contribuições de cientistas
brasileiros como Maria Nazareth Baudel Wanderley, Maria José Carneiro,
Silvana G. de Paula, José Graziano da Silva, Roberto José Moreira, entre
outros.
Mas que rural é este?
Esse “novo rural brasileiro”, segundo Maria José Carneiro (2004),

se caracterizaria pela diminuição do peso da agricultura na manutenção das


famílias o que é entendido como evidência da falência de certas formas de
agricultura familiar. Além disso, se caracterizaria também pela não identi­
ficação do espaço rural à atividade agrícola, se é que podemos dizer que al­
gum dia houve esse rural exclusivamente agrícola.

Por outro lado Maria Nazareth Baudel Wanderley, coloca que “as di­
ferenças espaciais e sociais das sociedades modernas apontam não para o
fim do mundo rural, mas para a emergência de uma nova ruralidade”
Segundo José de Souza Martins, não raro o mundo rural tornou-se
objeto de estudo e de interesse de sociólogos rurais pelo ‘lado negativo’ [...]
Não por aquilo que as populações rurais eram e sim por aquilo que os cien­
tistas gostariam que elas fossem.
E a ruralidade, o que é ruralidade?
A ruralidade pode ser entendida como um modo de vida, como uma
sociabilidade que é pertinente ao mundo rural, com relações internas es­
pecíficas e diversas do modo de viver urbano.
A ruralidade sugere uma gama considerável de imagens quando é
pensada, quando é discutida. Ruralidade é uma construção social contex­
tualizada, com uma natureza reflexiva, ou seja, ela é o resultado de ações
dos sujeitos que internalizam e externalizam através dessas ações a sua
condição sócio-cultural presente reflexo daquela herdada de seus antepas­
sados. Nesta ruralidade está expressa a capacidade destes sujeitos de se
adaptarem às novas condições resultantes das influências externas.
A modernidade continua a se surpreender com a manutenção, com
a permanência, com a capacidade de transformação e de mudanças que
ocorrem no mundo rural. Neste processo de transformações entende que
o rural não se ‘perde’; ao contrário, reafirma sua importância e particula­
ridade.
E ao assumir esta ruralidade como uma construção social é que de­
vem ser enfatizadas e compartilhadas abordagens que percebem ser este
um modo de ser, um modo de viver mediado pelo território e pela cultu­
ra. A ruralidade deve ter referência em si mesma e não a partir da cidade,
como se dela fosse um apêndice com dependência política e econômica.

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Dilemas na conceituação do campo e do rural no Brasil

Segundo Francisco Duran (1998), não deve haver distinção entre ru­
ral e ruralidade uma vez que não se constitui em uma questão e, mais do
que isso, deve ser ignorada, especialmente quando se investiga uma multi­
plicidade de aspectos, socioculturais, econômicos e ecológicos.
Por esta razão as reflexões sobre a ruralidade na atualidade devem
ter como exigência o re-conhecimento do rural, considerando suas pró­
prias relações assim como com o urbano. Estas novas ruralidades ao se­
rem estudadas devem considerar todas as especificidades e todas as repre­
sentações deste espaço rural tanto em relação ao espaço físico (referência
ao território e aos seus símbolos), ao lugar onde se vive (territorialidades,
identidades) e lugar de onde se vê e se vive o mundo (a cidadania e inserção
nas esferas políticas e econômicas da sociedade).
Mas é preciso destacar que no âmbito da modernidade há uma rela­
ção de uma certa forma tensionada entre o rural e o urbano em virtude da
valoração excessiva dirigida ao urbano, que ainda é visto e pensado como
sinônimo de moderno, de progresso, ao contrário do rural visto como sinô­
nimo do atraso, do tradicional.
Segundo Enrique Sergio Blanco (2004), as “novas ruralidades” não
só aproveitam como também expandem as novas funções e as novas ati­
vidades no campo principalmente integrando e envolvendo as famílias ru­
rais tanto com o poder público como com a iniciativa privada. É a conhe­
cida pluriatividade ou multifuncionalidade do campo, como é classificado
esse novo momento no meio rural brasileiro.
Foi a partir de meados dos anos 80, segundo José Graziano da Silva,
que o meio rural brasileiro teve uma nova conformação, compondo-se ba­
sicamente de três grandes grupos de atividades:

a. um agropecuária moderna, baseada em commodities e intimamente li­


gada às agroindústrias;
b. um conjunto de atividades não-agrícolas, ligadas à moradia, ao lazer e a
várias atividades industriais e de prestação de serviços;
c. um conjunto de novas atividades agropecuárias, localizadas em nichos
especiais de mercados.

Muitas dessas atividades, na verdade, são seculares no país, mas não tinham até
recentemente importância econômica. Eram atividades de fundo de quintais,
hobbies pessoais ou pequenos negócios agropecuários intensivos (piscicultura,
horticultura, floricultura, fruticultura de mesa, criação de pequenos animais,
etc.), que foram transformados em importantes alternativas de emprego e ren­
da no meio rural nos anos mais recentes. Muitas destas atividades, antes pou­
co valorizadas e dispersas, passaram a integrar verdadeiras cadeias produtivas,
envolvendo, na maioria dos casos, não apenas transformações agro-industriais,
mas também serviços pessoais e produtivos relativamente complexos e sofisti­
cados nos ramos da distribuição, comunicações e embalagens (p.1).

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Rosa Maria Vieira Medeiros

Houve uma re-valorização de atividades rurais não-agrícolas decor­


rentes das transformações do meio rural que passa a ser lugar de moradia,
de turismo, de lazer e de prestação de serviços. Também as atividades de­
correntes da preservação do meio ambiente fazem parte deste processo.
O rural até então considerado tradicional, conservador e atrasado
se transforma e a ele é dada uma nova re-significação que contempla ele­
mentos, como por exemplo, a cultura. A questão da conservação e/ou pre­
servação da natureza projeta este rural em um ponto muito distante da
realidade.
E aqui cabe uma reflexão quanto a este melancólico e nostálgico re­
torno ao rural uma vez que este pode ser considerado como uma perigosa
reaproximação da natureza, onde os homens enquanto agentes/atores deste
processo são excluídos. O paradigma da sustentabilidade que identifica e
cria a associação rural/natureza retém da epistemologia clássica os pressu­
postos de uma natureza vazia de homens, sujeita às leis positivas de cientis­
tas e de técnicos, com coletividades humanas desprovidas de territórios.
A ruralidade considerada como realidade vivida e mediada por sig­
nificações, tem como eixo metodológico a experiência, para que assim pos­
sa dar conta da prática cotidiana que configura, que caracteriza este rural
muitas vezes em meio a tensões. Tendo, pois, a experiência como proce­
dimento metodológico, a vida se insere na teoria e dá elementos para in­
tegrar pensamento e ação, abstrato e concreto. E. P. Thompson (1981) ao
destacar a experiência na construção da teoria, considera-a indispensável
ao historiador,

... já que compreende a resposta mental e emocional, seja de um indivíduo ou


de um grupo social, a muitos acontecimentos interrelacionados ou a muitas
repetições do mesmo tipo de acontecimento. (Thompson, 1981: p 15)

Assim é que a ruralidade ancorada exclusivamente na relação com a


natureza como que nega o processo de desenvolvimento humano, excluin­
do cultura conhecimento, o saber fazer de um novo rural construído idili­
camente no imaginário distante da realidade social. A realidade é comple­
xa e as explicações sobre essa realidade são distintas, diferenciadas em si,
comprometidas cultural e politicamente.
O rural brasileiro é, pois imbricado de ruralidades que dão novos sig­
nificados ao campo onde as relações não são apenas culturais, mas econô­
micas, sociais e políticas. Um exemplo de uma ruralidade onde as relações
econômicas e políticas se sobrepõem às relações culturais é a do cerrado,
território do agronegócio com 70% da área das chapadas ocupadas com cul­
tivos de grãos, algodão ou eucaliptos e pinus. (GONÇALVES, 2006)
José Graziano da Silva (1996), por sua vez, destaca a presença de
uma outra ruralidade, não mais calcada na produção, mas na busca inces­
sante dos homens por uma qualidade de vida que se perdeu na turbulência

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Dilemas na conceituação do campo e do rural no Brasil

da vida nas cidades. O rural passa a ser buscado como ambiente para o la­
zer e para a fuga dos problemas da vida urbana fazendo com cresçam os
investimentos em condomínios horizontais, chácaras, hotéis-fazenda, spas
e coisas do gênero.
O espaço rural se vê então, gradativamente, interpenetrado por este
novo personagem, o neorural, constituído por profissionais liberais, aposen­
tados, amantes da natureza, todos eles ex-habitantes da cidade que buscam
no campo tranqüilidade e paz, mas todos eles com suas referências urbanas
e ligados ao mundo global. São novas ruralidades num espaço rural que é
marcado pela presença forte de seus velhos personagens: os ruralistas, os la­
tifundiários, os produtores familiares, os camponeses com ou sem terra.
Portanto, é preciso ter claro de que dentro dessas contradições, em
todas as regiões brasileiras ainda se encontra parte significativa de sua po­
pulação rural excluída do processo produtivo, vivendo em luta constante
na espera de uma reforma agrária justa, séria e comprometida. Esses cam­
poneses assentados ou não, fonte de abastecimento de alimentos para a
população brasileira, parte viva, dinâmica deste rural, com seus saberes,
com sua cultura re-configuram novos territórios, re-configuram também
novas ruralidades no espaço agrário brasileiro.

Referências
BLANCO, Enrique Sergio. O turismo rural em áreas de agricultura fami­
liar: as «novas ruralidades» e a sustentabilidade do desenvolvimento
local. Caderno Virtual de Turismo, v.4, n° 3, 2004.
CARNEIRO, Maria José . Pluriatividade da agricultura no Brasil: uma refle­
xão crítica CPDA/UFRRJ, 2004.
DURAN, Francisco E. Viejas y nuevas imágenes sociales de ruralidad. Es­
tudos Sociedade e Agricultura, 11, outubro 1998: 76-98.
E. P. Thompson. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica
ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
GONÇALVES, Carlos Walter Porto. A Globalização da natureza e a natureza
da globalização. Civilização Brasileira, RJ, 2006.
ILHA NETO, Severo Francisco. Da Sociologia do Rural a Sociologia do
Território, Ciência&Ambiente, http://coralx.ufsm.br/reciam/resenha.
php?IDResenha=91
JEAN, Yves. L’agriculteur, la ruralité et le géographe – pour une socio-géo­
graphie des agriculteurs. Revue de Géographie Alpine, décembre
2003, tome 91, n° 4.
KAYSER 1993; Jean 1995. Faire la géographie sociale aujourd’hui – Les
Documents de MRSH de Caen, n°14,octobre 2001,p.111-122.

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Rosa Maria Vieira Medeiros

LEFEBVRE, Henri. La Revolucion Urbana. Madrid, Alianza Editorial,


1972.
MARTINS, José de Souza. O futuro da Sociologia Rural e sua contribui­
ção para a qualidade de vida rural. Estud. av. vol.15 no.43 São Paulo
Sept./Dec. 2001.
SILVA, José Graziano da Silva; GROSSI, Mauro Eduardo del. O Novo Rural
brasileiro. IE/Unicamp, Porto Alegre,1996.
WANDERLEY, Maria Nazareth Baudel. A emergência de uma nova rurali­
dade nas sociedades modernas avançadas: o “rural” como espaço sin­
gular e ator coletivo. Recife, Universidade Federal de Pernambuco,
mar. 2000. (Mimeografado)

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Dilemas na conceituação da cidade
e do urbano no Brasil

Paulo Roberto Rodrigues Soares


Professor do Departamento de Geografia e do Programa em Pós-graduação em
Geografia da UFRGS | prrs.geo@uol.com.br

Cabe ao geógrafo esta análise do cenário urbano, assim como do cenário ru­
ral. E ela não poderia ser árida sob pretexto de ciência: deve exprimir a alma
da cidade. O agrupamento urbano (...) que não é hoje, sem dúvida, o que foi
ontem... (Monbeig, 1941).

O Brasil é um país urbano. A urbanização brasileira envolve pro­


cessos de elevada complexidade espraiados pelo território nacional e so­
bre uma rede urbana constituída por um entramado de diferentes níveis
hierárquicos. Esta urbanização conforma distintas espacialidades que vão
desde as metrópoles quase mundiais, como São Paulo e Rio de Janeiro, até
as pequenas cidades ou os núcleos de população vinculados às atividades
agrárias.
Independentemente das definições quantitativas, legais ou adminis­
trativas, a marcha da sociedade urbana no Brasil é inegável e inexorável. A
maior parte de nossa população está concentrada em aglomerados de po­
pulação sob influência do modo de vida urbano, seja nas metrópoles, nas
cidades grandes, médias e pequenas, ou até mesmo no campo. Vive, por
conseguinte, a sociedade urbana, seu modo de vida, seus padrões de con­
sumo, seus modelos de comportamento. Competem para este fenômeno
uma série de fatores, entre eles os processos contemporâneos de produção
da forma urbana, uma significativa transformação qualitativa nas relações
cidade/campo, a difusão das relações de trabalho capitalistas sobre o rural,

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Dilemas na conceituação da cidade e do urbano no Brasil

os mecanismos de inclusão proporcionados pelo Estado e a força integra­


dora dos meios de comunicação de massa, especialmente da televisão.
Recentemente alguns questionamentos desta realidade urbana em
favor da persistência do rural estão sendo realizados e ganhando espaço
na mídia. É o caso da idéia de cidades imaginárias alçada ao debate acadê­
mico em livro recente1 e acredito não ser necessário reproduzir aqui suas
idéias, mas sim acrescentar algumas questões.
Com a Constituição de 1988 ampliaram-se os direitos sociais, es­
pecialmente com relação à saúde, educação, previdência social urbana e
rural e o voto dos analfabetos. Esta situação ampliou a massa de pessoas
integradas aos controles do Estado e reforçou o papel exercido pelo meio
urbano para uma parcela importante da população que vivia nas pequenas
cidades e no campo, especialmente nos rincões e grotões do país.
Situação semelhante poderíamos considerar sobre os programas
de renda social mínima, tipo bolsa-família (tão discutido na recente cam­
panha eleitoral), vinculados à escolarização e implantados pelo Estado o
qual integrou alguns milhões de pessoas ao sistema bancário-financeiro,
ao cartão magnético, aos cadastros, ao controle do Estado, enfim... e daí à
sociedade urbana, rompendo com o velho isolamento rural2. Mesmo os re­
centes processos eleitorais, especialmente as eleições presidenciais, o voto
dos analfabetos e a generalização da urna eletrônica em todo o território
nacional representam uma acelerada estratégia de integração, do ponto do
vista do comando do território e da população por parte do Estado, de uma
vasta área de populações rurais, as quais passam – com todo o direito – a
exercer seu voto nas mesmas condições que as populações urbanas.
Não se trata aqui de negar o campo, o mundo agrário, ou a ruralida­
de. Não se trata tampouco de desconhecer a importância de uma série de
experiências diferenciadas de organização social levadas a cabo em comu­
nidades rurais organizadas, núcleos de populações tradicionais (indígenas,
quilombolas, caiçaras, comunidades pesqueiras) e assentamentos de refor­
ma agrária e pelo Brasil afora.
Entretanto, mesmo as experiências que tendem a garantir a perma­
nência da população no campo ou na zonas rurais, na atualidade estão
1
Veiga, J. E. Cidades Imaginárias. O Brasil é menos urbano do que se calcula. Campinas: Ed.
Autores Associados, 2002. O texto em tela já foi objeto de uma excelente crítica de Ana Fani
A. Carlos, publicada na Geousp (Carlos, A. F. A. Seria o Brasil menos urbano do que se cal­
cula? Geousp – Espaço e Tempo, n° 13, 2003, p. 179-187).
2
“A burguesia submeteu o campo à cidade. Criou grandes centros urbanos; aumentou pro­
digiosamente a população das cidades em relação à dos campos e, com isso, arrancou uma
grande parte da população do embrutecimento da vida rural” (Marx, K. e Engels, F. Mani­
festo do Partido Comunista [1848]). “A cidade constitui o espaço da concentração, da popu­
lação, dos instrumentos de produção, do capital, dos prazeres e das necessidades, ao passo
que o campo evidencia o oposto, o isolamento e a dispersão” (Marx, K. e Engels, F. A Ideolo­
gia Alemã [1847].São Paulo: Martins Fontes: 1989, p. 54).

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Paulo Roberto Rodrigues Soares

bastante integradas à sociedade urbana, como um todo, ou a partes desta.


Ou seja, a presença de organizações não-governamentais, escritórios de
assessoria, movimentos sociais, universidades, centros de pesquisa, basea­
dos no meio urbano e vinculados ao rural e ao agrário é fator muitas vezes
decisivo para a organização destes movimentos, o que reforça a conexão
dos espaços rurais à sociedade urbana. Da mesma forma, os movimentos
sociais do campo a medida que ascendem e avançam em organização, am­
pliam suas formas e mecanismos de integração à sociedade urbana, pois é
no meio urbano que buscam apoio e visibilidade.
Levantamos estas questões como reflexão inicial para o debate so­
bre a questão da cidade e do urbano, procurando demonstrar que cidade
e campo no Brasil aparecem como realidades cada vez mais integradas,
como expressões de uma espacialidade diversa e como produto, em nossa
visão, da marcha da urbanização e da constituição da sociedade urbana,
a qual, conforme diversas análises, pode se processar recriando formas de
sociabilidade e espacialidades diferenciadas e até mesmo “pretéritas” ao
tempo social histórico dominante no período atual de nossa sociedade.
Como exemplo desta última está o reconhecimento e, muitas vezes,
o renascimento de territórios “ocultos”, como é o caso dos territórios indí­
genas e dos quilombolas, os quais, e muitos casos, reapareceram na última
década vinculados a processos de organização e mobilização política e so­
cial das suas populações, apoiados por organizações do meio urbano.

A necessidade de um novo conceito de urbano e de cidade


Se estamos debatendo os dilemas da definição de cidade e de urbano
no Brasil é porque algo passa ou passou com nossos velhos conceitos, com
nossos esquemas explicativos e os métodos de análise sobre estas realida­
des socioespaciais3. Dadas as transformações socias, econômicas e polí­
ticas pelas quais passou nosso país nas últimas décadas, estes não são os
únicos conceitos que necessitam de uma revisão. A modo de exemplo, tam­
bém a definição de áreas e regiões metropolitanas, bem como o conceito
de cidades médias vêm sendo debatidos no âmbito das ciências sociais e,
especialmente, da Geografia4.

3
Este debate também se dá em outras realidades tendo em vista as transformações gerais na
espacialidade das sociedades na atual fase do processo de mundialização do capital. Assim,
encontramos o debate sobre a ville emergente (França), “as novas realidades territoriais” (Es­
panha) e da città disfatta (Itália), para citar alguns exemplos europeus. Ver a propósito os
trabalhos de G. Dubois-Taine e Y. Chalas, La ville emergente. Saint-Etienne: Editións L’Aube,
1997; A. Precedo Ledo, Nuevas realidades territoriales para el siglo XXI. Madrid: Síntesis, 2003
e F. Indovina, La Città Diffusa. Venezia: Daest/IUAV, 1990.
4
A discussão sobre a definição de áreas e regiões metropolitanas extrapola os limites da geo­
grafia urbana, sendo que alguns contornos deste debate podem ser encontrados em Silva,

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Dilemas na conceituação da cidade e do urbano no Brasil

A partir de uma leitura ordinária da paisagem, aqueles espaços que


desde há algum tempo considerávamos inequivocadamente como urba­
nos ou plenamente rurais, sofreram profundas transformações gerando al­
gumas (ou muitas) imprecisões dos conceitos e das ferramentas teóricas
utilizadas para analisar as realidades que queremos explicar, bem como
questionamentos na operacionalidade destes conceitos como continentes
de determinados fenômenos sociais. Metrópoles, aglomerações, cidades,
campos, zonas rurais sofreram significativas mudanças na sua forma, na
sua organização, no seu conteúdo econômico e social e na sua valoração
simbólica, embaralhando nossos velhos conceitos e produzindo a atual cri­
se dos discursos sobre o rural e o urbano e a cidade e o campo5.
Os conceitos não são imutáveis, pois neste caso se convertem em
dogmas. A realidade que se transforma permanentemente exige sua cons­
tante revisão à luz de um método de análise que seja capaz de apreender
toda a sua complexidade. Cabe salientar ainda que conceitos, definições e
discursos sobre urbano, cidade e rural não escapam aos embates políticos
e ideológicos de nossa sociedade e que na maioria das vezes a preferên­
cia por determinados conceitos dissimula opções políticas e ideológicas,
projetos de desenvolvimento e formas de inserção de nossa sociedade na
economia capitalista cada vez mais mundializada. Quer dizer, o negar a ci­
dade, o campo, o urbano, o rural, a metrópole ou, por outro lado, somen­
te enxergar o rural, o campo, o urbano, a cidade ou a metrópole desvelam
estratégias ideológicas para afirmar determinados projetos políticos-eco­
nômicos-sociais em nossa sociedade, bem como determinados discursos
teórico-acadêmicos que mastigados e simplificados pela midia passam a
influenciar políticas publicas e a orientar os debates de outras correntes
com menor inserção nos mass media.
Assim, a idéia de um “Brasil menos urbano”, ainda que em alguns
aspectos bem-intencionada, pode ser (e esta sendo!) utilizada por aqueles
que defendem o projeto de valorização da opção agrário-exportadora de
uma parcela de nossas elites dominantes, para qual o campo “moderno e
empreendedor” emerge como o grande “salvador da pátria” e guia de nos­
so árduo caminho rumo ao desenvolvimento. Relembremos aqui as diver­
sas reportagens que os meios de comunicação hegemônicos seguidamente

C.A.; Freire, D. G.; Oliveira, F. G. Metrópole: governo, sociedade e território. Rio de Janeiro:
DP & A, Faperj, 2006. Já a temática das cidades médias vem sendo bem discutida pelos geó­
grafos, como se observa no livro organizado por E. Sposito, M. E. B. Sposito e O. Sobarzo,
Cidades Médias: produção do espaço urbano e regional (Presidente Prudente: Expressão Po­
pular, 2006). Para uma visão de outras realidades ver C. Bellet e J. M. Llop, (ed.) Ciudades
intermedias: urbanización y sostenibilidad. Lleida: Editorial Milenio, 2000.
5
Já no final dos anos 1980 e início dos 1990, Milton Santos discutiu a nova organização do
campo modernizado e suas conseqüências na rede urbana brasileira, considerando “três
brasis”, um urbano, outro agrícola, além do Brasil rural (ver Santos, 1988 e 1993).

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Paulo Roberto Rodrigues Soares

têm veiculado sobre o potencial do campo como gerador de empregos e de


riquezas e como as cidades (especialmente as grandes) e o próprio Estado
“não cumprem seu papel” e até mesmo “atrapalham” esta tarefa. Nesta di­
reção temos a imagem das metrópoles veiculada no insuspeito O Estado de
São Paulo em reportagem recente: “Metrópole vira baleia encalhada e atrasa
o crescimento do País”6.
Tanto a idéia de “cidades que não existem”, como a de “metrópoles
encalhadas” configuram-se como faces de um certo discurso anti-urbano,
geralmente reacionário em seus propósitos – uma vez que está vinculado
a manutenção do status quo de nossa estrutura agrária – e anti-Estatal ao
extremo, pois propaga a ideologia de que “onde há menos Estado há mais
desenvolvimento”, exatamente o contrário do que a grande maioria das
análises acadêmicas apontam.
O que temos que ter claro é que este discurso “anti-urbano” também
é um discurso “anti-rural” já que tem como padrão o agro modernizado e
tecnificado, do latifúndio e das empresas rurais exportadoras, levando ao
campo um modelo de racionalidade e eficiência fabril próprio do urbano e
que no atual estágio do desenvolvimento do capitalismo no Brasil e de sua
inserção na economia mundializada encontra as melhores condições para
sua manutenção e reprodução justamente no campo.
Campo e cidade são realidades opostas e complementares, estan­
do ligados à própria origem do municipium. Ao longo da história cons­
truíram-se poderosas representações da oposição cidade-campo (urbs-rus,
liberdade-prisão, civilização-barbárie, modernidade-atraso), que hora fa­
voreciam a cidade e hora enalteciam o campo. Estas oposições estão, nos
dias de hoje, em processo de diluição ou desaparição:

As cidades garantem a diversidade e escala da vida social bem como a com­


petição e cooperação características da vida humana contemporânea. Os
campos, por sua vez, tão diversos entre si, garantem também diversidades
dentro das suas homogeneidades extensivas e escalas de produção quando
tomados de forma abrangente. Contém também processos de competição
e cooperação, mesmo gerenciados pelas cidades e limitados pela auto-sufi­
ciên­cia relativos que ainda mantêm (Monte-Mór, 2006:07).

É fato que o urbano é cada vez mais complexo no Brasil, tanto em


seu conteúdo sócio-econômico, como nas formas espaciais, especialmente
na região concentrada, embora os processos engendrados não sejam exclu­

6
“Principais indicadores das Regiões Metropolitanas recuaram de 1992 a 2004, enquanto o
resto do Brasil cresceu. As grandes regiões metropolitanas, com destaque para São Paulo, an­
daram na contramão do resto do País nas melhoras dos indicadores econômicos e sociais bra­
sileiros entre 1992 e 2004. “São como baleias encalhadas, retardando o desenvolvimento do
Brasil”, diz o economista André Urani, diretor-executivo do Instituto de Estudos do Trabalho
e Sociedade (IETS), no Rio” (O Estado de São Paulo, São Paulo, 25 de junho de 2006).

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Dilemas na conceituação da cidade e do urbano no Brasil

sividade do centro-sul aparecendo também em algumas capitais do Norte


e Nordeste brasileiros. Mas essa compexidade pode e deve ser apreendida
em diferentes escalas.
Na escala urbano-regional, observamos que a mancha urbana é cada
vez mais homogênea se espalhando pelo território como uma imensa man­
cha de óleo. Nesta escala, a diversidade das espacialidades da urbaniza­
ção no Brasil incluem as grandes metrópoles enlaçadas à rede global (São
Paulo e Rio de Janeiro), as metrópoles nacionais (na verdade, regionais)
como Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Fortaleza e
Belém, cidades grandes (com mais de 500 mil habitantes), as cidades mé­
dias, as cidades pequenas. Aqui a urbanização aparece quase sem solução
de continuidade desde Porto Alegre até Brasília, Belo Horizonte e Vitória.
Esta grande região urbana é complementada por “ilhas de urbanização” no
entorno das capitais litorâneas nordestinas e por alguns núcleos importan­
tes no centro-oeste e na Amazônia.
Na escala intra-urbana, as cidades constituem-se em espaços cada vez
mais amorfos, fragmentados e segregados. Nos confins das grandes e médias
cidades se justapõem novos bairros e antigas zonas rurais, ao mesmo tempo
que atividades agrícolas ocupam os interstícios dos espaços periféricos.
Os novos processos de produção urbana, concebidos por arquitetos
e urbanistas e operados por agentes do capital financeiro e imobiliário em
aliança com planejadores, conduzem a novos padrões de localização dos
grupos sociais (especialmente os de maior poder aquisitivo), impondo no­
vas formas de segregação e um novo sentido de “estar na cidade”, no qual
o espaço público é substituído por espaços fechados onde se realizam as
atividades cotidianas tradicionalmente vinculadas as áreas centrais das ci­
dades. A velha dualidade centro-periferia que caracterizava nossas cidades
perde o sentido de localização com a presença das “novas centralidades”,
freqüentemente localizadas distantes do centro histórico, em novos veto­
res de valorização do solo urbano, bem como das “novas periferias”, a pe­
riferia “rica” dos interesses fundiários e imobiliários.
Por outro lado, os grupos sociais de menor poder aquisitivo são em­
purrados para periferias distantes (da “velha” periferia), até mesmo exte­
riores aos perímetros urbanos legais, muitas vezes em assentamentos pre­
cários situados em áreas de proteção ambiental. Ou – como em casos mais
freqüentes nas metrópoles – ocupam os setores degradados do centro his­
tórico retro-alimentando o ciclo de deterioração da qualidade sócio-am­
biental dos espaços urbanos.
A grande maioria dos núcleos inseridos na hierarquia urbano-regio­
nal brasileira (especialmente no Centro-sul) são urbanos7. Embora, inde­

7
Ver IPEA, IE-NESUR/Unicamp, IBGE Caracterização e tendências da rede urbana do Brasil.
Campinas: Unicamp, 1999.

72

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Paulo Roberto Rodrigues Soares

pendente do tamanho caberia, na escala intra-urbana, uma análise por­


menorizada se realmente constituem cidades no sentido pleno. Não por
características de tamanho da população, funcionalidade ou densidade
demográfica, mas sim como núcleos de concentração da população que
conseguem reunir qualidades e atributos dos três sentidos da cidade, ou
seja da urbs, da polis e da civitas: da centralidade e da morfologia urbana
(urbs), considerando aqui os atributos da paisagem urbana construída, na
qual além das infra-estruturas e equipamentos urbanos necessários ao fun­
cionamento da cidade, também destaca-se a presença dos espaços públi­
cos necessários ao exercício da vida urbana; da atuação de uma sociedade
política (polis), tanto no nível institucional (a institucionalidade político-
administrativa que dá personalidade jurídica à cidade), como no nível das
lutas sociais (movimentos sociais e populares urbanos); da presença das
qualidades da vida urbana (contato, sociabilidade, festa), que garantem o
significado pleno da cidadania e do “estar na cidade” (civitas). Estas três
qualidades advém da noção européia de cidade, muito diversa da idéia
americana ou latino-americana.
Em nosso continente as cidades constituiram-se como um “sonho
de ordem” em um território “selvagem” e destinado a ser “dominado” pelo
colonizador cristianizador. As cidades fidalgas da conquista, paulatina­
mente se converteram em cidades criollas e, após a independência, em ci­
dades patrícias, nas quais as novas elites necessitavam demonstrar à velha
elite metropolitana que também tinham condições de construir aqui uma
civilização8.
No caso brasileiro, como é sabido, o Estado precedeu a sociedade,
e desta forma, em muitos casos, também foi o Estado quem estabeleceu
as cidades, mais do que a sociedade. Ou seja, a elite dirigente e proprietá­
ria chegou antes da população ter seus plenos direitos e a sociedade civil
construir suas instituições. E o Estado serviu a estas elites, como apon­
tou Francisco de Oliveira (1982), seja nos seus espaços de assentamento
(a princípio nas áreas centrais, junto aos aparatos de poder – as câmaras
municipais, o forum, a igreja), na construção das infra-estruturas urbanas
(redes de abastecimento de água, esgotos, redes de energia, transportes e
comunicações), seja nos aparatos produtivos da economia agro-exportado­
ra (portos, ferrovias, estradas).
Em outros casos foi a iniciativa privada quem estabeleceu as cida­
des, seja nas antigas “cidades de patrimônio”, seja nas mais recentes ci­
dades da frente pioneira, ou mesmo nas cidades-empresa na fronteira de
exploração de recursos naturais. Aqui a população estabeleceu suas insti­
tuições antes da obtenção de um status político-administrativo de cidade

8
Ver Terán, F. La ciudad hispanoamericana: um sueño de orden. Madrid: CEHOPU, 1898 e Ro­
mero, J. L. América Latina. As cidades e as idéias. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004.

73

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Dilemas na conceituação da cidade e do urbano no Brasil

ou, por outro lado, se estabeleceu a “lei do mais forte” com a elite latifun­
diária exercendo o monopólio da violência sem a presença do Estado. No
primeiro caso, vilas e cidades surgem como urbs e polis, precedendo a so­
ciedade civil, enquanto que no segundo a urbs se constrói antes da chegada
civitas ou da polis.

A crítica ao conceito brasileiro de cidade


De acordo com a legislação vigente no Brasil, toda sede municipal é
considerada cidade e toda sede distrital vila, independente de sua dimen­
são demográfica ou qualquer outra definição funcional. Por conseguinte,
todos os habitantes situados no perímetro urbano de cidades e vilas são
considerados como urbanos.
Esta tão criticada legislação originada no Estado Novo (1938) cum­
priu uma função modernizadora do Estado e colaborou com a necessidade
de integração dos mercados regionais na economia nacional. Ao colocar
aglomerações em igualdade de status político-administrativo, independen­
temente de sua dimensão demográfica, possibilitou, ao menos no plano
ideal, que as populações destes diferentes núcleos reivindiquecassem a
presença das mesmas políticas públicas estatais por todo o território na­
cional.
Evidentemente que não somos ingênuos para ignorar o poder das
oligarquias rurais estabelecidas nos pequenos núcleos circundados por
zonas rurais pobres. Porém, aqueles que propõem (tal como adotado em
muitos países), classificações diferenciadas para povoados, vilas e cidades,
de acordo com sua dimensão demográfica, esquecem dos efeitos negativos
de tal medida, que implicaria no “rebaixamento” de muitas núcleos de sua
condição de cidades e a possibilidade de supressão de diversas políticas
públicas urbanas sobre estas populações. E mais, dada a diversidade de
formas derivadas dos diferentes graus de artificialização da natureza no
território nacional, esta diferenciação muito provavelmente atingiria as re­
giões menos desenvolvidas (o nordeste e o norte, especialmente), as quais
sofreriam com a diferenciação de políticas.
Da mesma maneira, consideramos reacionárias as idéias – de fácil
apelo midiático – de subtração da representatividade política de uma am­
pla parcela da população brasileira, contida nas propostas de diminuição
no número de municípios ou de vereadores. Ou seja, o argumento de que
muitas câmaras municipais estão sobre-dimensionadas, por apresentarem
número excessivo de vereadores, não levam em consideração a diversidade
social e política alcançada por nossa população nos últimos trinta anos e,
especialmente, após a redemocratização. A construção de inúmeros movi­
mentos sociais e formas de expressão dos anseios e projetos políticos dife­
renciados é muitas vezes canalizada para o poder legislativo local, primei­

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ro degrau da representação política institucional. Ou ainda o juízo de que


os mais de 5.500 municípios brasileiros significam um número excessivo
de unidades territoriais, pois muitos não deveriam existir por não apresen­
tarem as “condições mínimas” para se sustentarem como tal. A nosso ver
também uma idéia reacionária e presa a um argumento economicista, pois
impede a autonomia local de um número expressivo de brasileiros, em um
momento histórico no qual se debate o pode local e o desenvolvimento so­
cial dos territórios a partir da base local9.

Os processos contemporâneos de produção da forma urbana


A “explosão das cidades” constitui-se na metáfora das formas atuais
de urbanização. Cidades e vilas crescendo em população e estendendo-se
sobre o campo circundante, reproduzindo suburbios, engolindo fazendas e
povoados, são a expressão do moderno crescimento urbano10.
Para a análise destes significados podemos partir dos atuais proces­
sos de produção espacial que afetam nossos espaços urbanos. A dispersão
urbana ou urbanização difusa (a explosão da urbe) altera os tradicionais
padrões morfológicos das cidades. No caso brasileiro afeta especialmente o
Estado de São Paulo, a partir do núcleo da metrópole paulista seguindo os
grandes eixos rodoviários em direção ao interior, formando a região mais
complexa, em termos de formas espaciais, da urbanização brasileira.
Nesta região urbana encontramos ao longo das autopistas diver­
sas tipologias de áreas industriais, complexos logísticos, condomínios fe­
chados, loteamentos periféricos, intercalados com áreas de preservação,
projetos de florestamento, cinturões de produção de hortifrutigranjeiros,
represas e sítios de moradia e lazer. Todo este amplo complexo urbano “en­
gole” antigas áreas rurais e pequenas cidades, inserindo-as ou alijando-as
da dinâmica dos fluxos metropolitanos.
As comunidades fechadas, por exemplo, morfologicamente têm um
aspecto urbano, muitas vezes como reprodução idílica da “cidade ideal”,
ou seja, da cidade pequena na qual a vida social se realizava no entorno
da igreja, da praça e do coreto. Refletem os anseios de determinados gru­
pos abastados da população brasileira os quais procuram estabelecer um
modo de vida “independente” do Estado quanto aos serviços básicos de
saúde, educação, segurança e transporte. Entretanto, este “paraíso urba­
no” se dá as custas de forte aparato de proteção, assim como em um am­

9
Em caso de comparações com outros países, Espanha possui 8.108 municípios e França
apresenta-se dividida em 36.782 comunas, a menor unidade administrativa do Estado, go­
vernada por um conselho municipal e presidida por um prefeito, ambos países possuem ex­
tensão semelhante à Minas Gerais ou Bahia. Já os Estados Unidos estão divididos em 3.141
condados (counties) e mais de 30.000 cidades.
10
QADEER, M. A. Urbanization by explosion. Habitat International, 28, 2004, p. 1-12.

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Dilemas na conceituação da cidade e do urbano no Brasil

biente de homogeneidade social, cultural e étnica, que nega a diversidade.


Da mesma forma que se dá em função da apropiação das facilidades de
deslocamento proporcionada pelos sistemas de engenharia implantados
no território pelo Estado e pela dependência do transporte motorizado in­
dividual.
Reproduzindo o modelo disperso de urbanização, sítios e chácaras
de lazer cada vez mais se tornam locais de moradia de determinados seg­
mentos das classes médias. Porém, incluindo em seu interior elementos de
conforto de residências urbanas, especialmente os das novas tecnologias
da informação e comunicação (internet, televisão por satélite).
Todos estes “pedaços do espaço” estão inseridos no urbano, embora
em muitos casos não façam parte de nenhuma cidade e não “respeitem”
limites municipais em sua implantação. Cabe ainda salientar que a flexibi­
lização das relações laborais, as novas tecnologias da informação e de co­
municação e a crescente necessidade de mobilidade em nossa sociedade,
ampliou a escala das atividades cotidianas (trabalho, lazer, compras, estu­
do, negócios). Tarefas que estavam circunscritas a um determinado âmbito
havia trinta anos (normalmente a cidade ou o município), na atualidade
podem ser realizadas em um contexto espacial mais amplo (aglomerações,
municípios próprios), igualmente ignorando determinantes locais.
Nesta direção, o sentimento de pertenência e identidade a algum pe­
daço do espaço, a algum lugar, desaparece para uma parcela importante
(embora não majoritária) da população. São pessoas que têm seus ritmos
marcados pela inserção nos fluxos da economia global e para os quais a lo­
calidade não está acompanhada de nenhum valor simbólico, uma vez que
praticam um estilo de vida que pode ser reproduzido em São Paulo, Bue­
nos Aires, Nova Iorque ou (máxime) Miami.
Com as novas tecnologias da comunicação e da informação e os
sistemas de transporte, até mesmo a idéia de aglomeração urbana ou me­
tropolitana prescinde da necessidade de plena conurbação física da malha
urbana. O tecido urbano se espalha com a “urbanização extensiva” (Mon­
te-Mór, 1994, 2006) e a figura da metápole (Ascher, 1995) incorpora em seu
conceito a idéia de um espaço metropolitano nos quais os limites são difu­
sos e descontínuos.
Cidade e campo se transformaram, assim como as relações cidade-
campo mudaram significativamente. Por um lado, temos a explosão e o
amorfismo da cidade, sua extensão sem limites, sua diluição na paisagem
rural. De outro, o campo se moderniza e se aproxima da cidade em suas
pautas e modelos de comportamento e organização. As atividades agrárias
modernas cada vez mais exigem a presença de aparatos tecnológicos seme­
lhantes, senão idênticos aos das cidades. Estes aparatos trazem consigo a
racionalidade urbana ao campo mudando a qualidade da relação campo-
cidade.

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Paulo Roberto Rodrigues Soares

Se há algum tempo esta era claramente uma relação de dominação


da cidade sobre o campo, com base em uma divisão social do trabalho na
qual à cidade estava reservado o trabalho intelectual e ao campo restava o
trabalho manual, hoje em dia esta relação foi totalmente subvertida pela
modernização do campo havendo fluxos intensos de informação em am­
bas os sentidos e direções.
Esta nova qualidade da relação campo-cidade não é exclusiva das re­
giões dominadas pela grande e média empresa rural. Também em muitos
territórios de permanência da pequena propriedade, da agricultura cam­
ponesa, a informação é um componente a mais da paisagem, representada
pela presença de antenas parabólicas fixadas ao lado das casas. O trabalho
intelectual acompanha o processo produtivo no campo desde o plantio até
a colheita. A presença dos chamados “neo-rurais” (profissionais, muitas
vezes de formação superior, que se afastam da cidade para residir no cam­
po e exercer atividades agrárias) igualmente reforça a presença de novas
formas de organização do rural ampliando a diversidade do campo e apro­
ximando o mesmo da cidade e do urbano.
As dificuldades de classificação desta população (se “rurais” ou “ur­
banos no campo”) também questiona os limites da cidade e do campo, do
rural e do urbano.

Considerações finais
A conceituação de cidade e de urbano no Brasil é um debate aberto
no qual os geógrafos devem intervir. Os referenciais históricos e teórico-
metodológicos da geografia contruídos ao longo do século XX nos per­
mitem uma interpretação apurada do processo de urbanização brasileiro,
bem como do entendimento das formas de produção e organização das
nossas cidades. Se a realidade é cambiante e está nos obrigando novamen­
te à reflexão, que o façamos à luz das experiências anteriores, e incorpo­
rando novos referenciais que levem em consideração a situação atual de
inserção de nosso país nos fluxos de uma sociedade global, a qual é cada
vez mais, urbana.
Entretanto, não podemos discutir os conceitos de cidade e urbano
no Brasil com a intenção de qualificar ou desqualificar determinados es­
paços. É preciso ter consciência de que na atualidade o Estado cumpre um
importante papel na integração de populações na sociedade urbana. Como
resultado de lutas históricas acumuladas por amplos setores de nossa so­
ciedade, no Brasil, onde há cidade há Estado! E possibilidade de direitos
civis e sociais. Porque é nas cidades que se estabelecem as melhores condi­
ções de organização e participação social.
Não alentamos ilusões de que será o Estado que construirá a cidade
(assim como não foi o Estado que construiu a sociedade). Tampouco será

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Dilemas na conceituação da cidade e do urbano no Brasil

uma mudança de conceito que produzirá entre nós uma verdadeira socie­
dade civil, ou que irá inserir nosso país nos trilhos do desenvolvimento.
Neste sentido, a idéia de cidades no sentido completo do termo, no
Brasil ainda é uma utopia a ser construída, não sem avanços e recuos, num
processo de lutas que envolve diferentes segmentos sociais e projetos de
sociedade.

Referências:
ASCHER, F. Metápolis, ou l’avenir dês villes. Paris: Odile Jacob, 1995.
Amendola, G. La ciudad postmoderna. Madrid: Editorial Celeste, 2000.
Bourdin, A. A questão local. Rio de Janeiro: DP & A, 2001.
MONBEIG, P. O estudo geográfico das cidades. Boletim Geográfico. IBGE.
Transcrito da Revista do Arquivo Municipal. São Paulo, ano VII, vol.
73, janeiro de 1941.
Monte-Mór, R. Urbanização extensiva e novas lógicas de povoamento:
um olhar ambiental. In Santos, M., Souza, M. A. e Silveira, M. L.
(orgs.) Território: globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec/
Anpur, 1994, p. 169-181.
Monte-Mór, R. O que é o urbano, no mundo contemporâneo. Texto para
Discussão, nº 281. Belo Horizonte: CEDEPLAR/UFMG, 2006.
Oliveira, F. O Estado e o urbano no Brasil. Espaço & Debates – Revista
de estudos urbanos e regionais, vol. 6, 1982, p. 36-54.
Santos, M. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Hucitec, 1988.
Santos, M. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993.

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Algumas observações sobre a construção de
conceitos e os conceitos de cidade e urbano

Sandra Lencioni
Profa.Dra. do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências­Humanas da Universidade de São Paulo | slencion@usp.br

Introdução
A pesquisa exige, permanentemente, escolhas e, nesse sentido, pes­
quisar significa viver opções. Esse viver traz angústias, pois o risco de op­
ções equivocadas é uma realidade que não deixa traços indeléveis e exige
correção de caminhos e rotas. Angústia, descrença nas certezas e encontro
com novas certezas fazem parte do percurso do conhecimento. Nesse per­
curso, enfrentar dificuldades, negar falsos problemas e superar equívocos
requerem coragem, mas exigem também, uma certa dose de prudência.
De certa maneira, a prática de pesquisa se confunde com o exercício
de opções e a necessidade de separar partes da totalidade para a análise e,
posteriormente, sua reconstituição enquanto síntese construída pelo inte­
lecto. Esse exercício pode conduzir a dilemas; ou seja, pode vir acompa­
nhado de insatisfação em relação ao que se está escolhendo ou selecionan­
do para a análise. Se assim o for, os dilemas deixam de se situar no âmbito
de simples escolhas, e podem e trazem, no exercício da opção, uma certa
angústia, uma insatisfação presente em qualquer que for a escolha feita.
Essa insatisfação, longe de comprometer o avanço do conhecimen­
to, é motivadora do seu desenvolvimento, pois é ela que nos liberta e coloca
desafios, já que as respostas que se tem não parecem satisfatórias. Assim,
os dilemas são como o ritmo de um coração batendo, sem ele o coração
perde o sopro da vida, tanto quanto o conhecimento, sem os dilemas, per­
de a liberdade que impulsiona seu desenvolvimento.

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Algumas observações sobre a construção de conceitos
e os conceitos de cidade e urbano

Opções e dilemas, enfrentamento de obstáculos, negação do falso,


superação de equívocos, novos encontros e certezas são imanentes à cons­
trução do conhecimento. São agudamente percebidos quando se trata de
conceituar um objeto, um fato, um processo ou um fenômeno.
A discussão sobre o conceito de cidade e urbano situa-se nesse anfi­
teatro onde se degladiam muitas dúvidas e poucas certezas. Afinal, o que é
a cidade, o que é o urbano? E, o que vem a ser a cidade e o urbano no Bra­
sil? Pode a cidade ser igual a urbano? Se não, o que diferencia os conceitos
de cidade e urbano?
Antes de apresentar considerações em relação a essas questões, é
importante, em primeiro lugar deixar claro para que serve um conceito.
Todo conceito serve para se compreender a essência dos objetos, dos fenô­
menos, das leis e, nesse sentido, se constitui num instrumento de conheci­
mento e pesquisa. E, em segundo, tecer algumas observações sobre o que
vem a ser conceito, que auxiliará na discussão sobre os conceitos em tela:
cidade e urbano à luz da realidade brasileira.

Sete observações sobre conceitos


As sete observações que seguem esse número mágico apresentam-
se de forma simples. Esse número é uma escolha e bem poderia ser maior,
alem de que cada observação poderia se objeto de ampla discussão. Mas
não é o caso; o sentido dessas observações é apenas de alertar para o que
julgamos fundamental na construção de conceitos.

Primeira observação. A construção de conceitos é um exercício do


pensamento sobre o real e esse existe independentemente de pensarmos
sobre ele ou de termos conceitos acerca dos objetos do real.1

Essa observação diz, claramente, que não há uma relação de de­


pendência entre a existência de um objeto e a existência de um conceito a
cerca desse objeto. E que os objetos existem independentemente de termos
um conceito sobre ele. Mais, precisamente, os fenômenos, os fatos, as coi­
sas, os objetos, os processos, as leis, enfim, tudo que é objeto do conheci­
mento se coloca na esfera do pensamento sobre o real e a existência do real
independe de pensarmos sobre ele.
Vejamos o seguinte exemplo, que busca tornar claro que os objetos
existem independentemente de termos um conceito sobre ele. Trata-se do
1
Em função dos objetivos, que é de discutir o conceito de cidade e urbano, estaremos nos re­
ferindo, na maioria das vezes, à relação entre o conceito e o objeto. A idéia de objeto assume,
assim, os sentidos de fato, fenômenos e processos – embora não o sejam –, em função da
fluência do texto, já que para a discussão em pauta o assolamento das diferenças não com­
promete o que se intenta.

80

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Sandra Lencioni

conceito do número 4. Esse conceito nem sempre existiu e quando se per­


guntava a um homem quantas cavalos ele tinha, ele dizia:
— Tenho um cavalo marron, um outro marron com manchas bran­
cas no dorso, outro preto e outro malhado de cinza e preto.
Esse homem não tinha o conceito de número 4. Mas, contava a seu
jeito. Nos primórdios da civilização os homens não tinham o conceito de
número abstrato e, por isso, não podiam enumerar os objetos em termos
numéricos, mas tinham a prática de contar.

Segunda observação. O conceito é uma forma de reflexo dos objetos, dos


fenômenos, dos processos e das leis de desenvolvimento desses processos e
fenômenos.

O conceito não se confunde com o real, ele é um reflexo do real, uma


representação do real. Como ele é reflexo do real e uma representação des­
se, ele existe a posteriori dos objetos que representa. Os objetos do mundo
real existem independentemente dos conceitos.
Como no exemplo dado do homem que tinha os cavalos, o conceito
de numero 4, que é abstrato, é uma representação da quantidade de cabras
que esse homem possuía e reflete a quantidade de cavalos que aquele ho­
mem possuía..

Terceira observação. Os conceitos são ao mesmo tempo objetivos e


subjetivos.

Os conceitos são objetivos pelo seu conteúdo, pois estão relaciona­


dos ao real, referidos ao real. Por isso, quanto mais conhecemos o real te­
mos mais condições de formular um conceito.
Mas os conceitos são, além de objetivos, subjetivos porque existem
no nosso pensamento, na nossa consciência. O fato de se situarem na cons­
ciência é que faz com que os conceitos possuam uma realidade subjetiva.

Quarta observação. Não há identidade entre o conceito e o real ao qual ele


se refere, porque nenhum conceito é capaz de conter toda a riqueza do real.

Quando conceituamos, por exemplo, rua, pensamos a rua não com


todos os predicados que ela possa ter: sinuosa, pavimentada, larga ou es­
treita. Pensamos de uma maneira muito menos rica, pensamos de um
modo empobrecido perto de qualquer rua que possamos descrever.
Qualquer conceito reflete aquilo que é essencial, os aspectos essen­
ciais, as relações essenciais, enfim, a essência do objeto, fenômeno ou pro­
cesso. Portanto, a construção de um conceito exige um exercício de captu­
ra do que é essencial para sua formulação e, nesse sentido, reflete um certo

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Algumas observações sobre a construção de conceitos
e os conceitos de cidade e urbano

grau de generalização. Assim, o conceito é sempre uma simplificação do


real e ao mesmo tempo uma generalização deste.
Para se construir essa generalização é necessário pesquisar uma
grande quantidade de objetos, compará-los e, ainda, examinar os aspectos
particulares e singulares que esses objetos apresentam. Esse é o ponto de
partida de qualquer conceituação. Dizendo de uma outra forma, verificar
semelhanças, diferenças e peculiaridades do objeto é fundamental na for­
mulação do conceito. Por exemplo, o conceito de rua, ao qual já nos re­
ferimos, não nos remete a nenhuma rua em particular, a indicar que um
conceito guarda certa independência em relação àquilo que ele representa,
dado o grau de generalização que ele requer.
Isso não significa dizer que o particular e o singular não são consi­
derados. Pelo contrário, a essência do objeto se faz representar no conceito
e, portanto também se faz presente no particular e no singular, com toda a
riqueza que o particular e o singular possuem.

Quinta observação. O conceito existe em movimento.

O conceito se modifica, se altera, muda. Para indicar que o concei­


to tem movimento e evolui, alguns autores usam mais o termo ‘noção’ do
que o próprio termo ‘conceito’. O conceito tem movimento e, por isso, um
conceito construído numa determinada época pode se alterar. Na medida
em que o conceito é um reflexo do real e esse real está em permanente mu­
dança, é lógico que ele também se modifique.
Alguns conceitos podem, inclusive, derivar de outros conceitos. Esse
é o caso do conceito atual de metrópole, que tem relação com o conceito
de metrópole da antiguidade clássica, mas que é diferente desse. Qualquer
conceito tem, portanto, sua história, mas isso não significa dizer que sem­
pre um conceito deriva de outro conceito. Conceitos novos são formula­
dos, a exemplo do conceito de informática. Esse conceito está vinculado ao
ramo do conhecimento dedicado ao tratamento da informação mediante
o uso de computadores e demais dispositivos de processamento de dados,
tem origem nos anos 60 do século XX, quando se iniciou o desenvolvimen­
to de computadores.

Sexta observação. O conceito se encontra sempre, em nexo, em relação com


outros conceitos.

Nenhum conceito é independente de outros conceitos. Seja ele


oriundo de outro conceito ou um conceito inteiramente novo, guarda es­
treita relação com outros conceitos. O conceito de 4, por exemplo, guarda
relação com todos os outros números abstratos, tanto quanto o conceito de
rua que guarda relação com o de estrada, praça, caminho, cidade, etc.

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Sétima observação. O conceito não existe sem uma definição.

Para que exista um conceito é necessário defini-lo e, para isso,


é necessário palavras, por isso é que o conceito existe na forma de lin­
guagem No entanto, atribuir identidade entre a palavra e o conceito se
constitui num equívoco. Uma grave incorreção, pois se uma palavra
pode ter vários significados, um conceito, em tese, não. O conceito de
atmosfera, por exemplo, diz respeito à camada de gases que envolve um
planeta e que é retida pela atração gravitacional. Esse é o significa de
atmosfera.
Tanto no exemplo dado sobre o conceito de atmosfera, como no
caso do conceito de célula, esses conceitos não variam e nem mudam de
significados. Nas chamadas ciências duras a força dos conceitos se situa
no âmbito da experimentação e demonstração. Mas, dizendo respeito às
ciências humanas a sustentação de uma ideia não provém de experiências,
mas de argumentações.
À essa diferença entre as chamadas ciências duras e as ciências huma­
nas junta-se a observação de que os conceitos relativos às ciências humanas
tem variações e essas variações estão relacionadas às distintas referências
teóricas. O conceito de cidade e urbano, objeto desse texto, varia segundo
referências teóricas. Por isso, se exige acurada clareza nos conceitos uti­
lizados nas ciências humanas, justificativa dos sentidos empregados, das
escolhas feitas e, sobretudo coerência entre o conceito empregado e o refe­
rencial teórico de análise Essa coerência é fundamental, pois não se pode
mesclar conceitos de referências teórico-metodológicas distintas porque se
torna praticamente impossível desvendar o real. Impossível porque o con­
ceito é um instrumento e como qualquer instrumento tem que ser adequa­
do à função que deve desempenhar.
Exemplificando, o conceito de totalidade, como uma totalidade fe­
chada, sistêmica, próprio da lógica formal e do positivismo, é avesso ao
conceito de totalidade na dialética. Pensar ou ter a intenção de utilizar o
materialismo dialético na pesquisa e ao mesmo tempo empregar o concei­
to de totalidade fechada e centrar esforços na análise de causas e efeitos se
constitui num erro que pode resultar em graves conseqüências. Num erro
porque a totalidade dialética incorpora a lei de ação recíproca que não é
considerada na lógica formal.
Como dissemos no início dessa observação, os conceitos só existem
a partir de uma definição e, portanto, não prescindem, não dispensam a
linguagem. Essa observação justifica o que vamos discutir a seguir, antes
de tratarmos especificamente do conceito de cidade e urbano. Veremos,
assim, os sentidos dessas palavras na língua portuguesa, como um ponto
de partida, pois as palavras, como vimos, se constituem na base sensorial
dos conceitos.

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Algumas observações sobre a construção de conceitos
e os conceitos de cidade e urbano

As Palavras: cidade e urbano


Por meio da fala os homens expressam suas idéias e os diferentes
sentidos da palavra cidade e urbano na língua portuguesa podem nos au­
xiliar na compreensão do conceito de cidade e urbano no Brasil. De ante­
mão gostaríamos de precisar que nossa intenção é discutir os conceitos de
cidade e urbano tendo como referência a realidade brasileira. Observamos,
ainda, que as considerações, aqui, são auxiliares aos objetivos desse texto
e não se situam no âmbito que lhes é devido, o da lingüística. Acreditamos
que mesmo uma abordagem simples e despretensiosa dessas palavras po­
dem nos auxiliar na discussão sobre os conceitos de cidade e urbano tendo
como referência o Brasil.
Gramaticalmente a palavra cidade é um substantivo, ou seja, uma
palavra que serve para nomear um objeto determinado e possui várias
acepções na língua portuguesa. Pode significar “aglomeração humana de
certa importância, localizada numa área geográfica circunscrita e que tem
numerosas casas, próximas entre si, destinadas à moradia e/ou a ativida­
des culturais, mercantis, industriais, financeiras e a outras não relaciona­
das com a exploração direta do solo”.2
Além desse sentido o Dicionário Houaiss registra, também, deriva­
ções por metonímia da palavra cidade, ou seja, decorrentes de outros sen­
tidos que transcendem ao sentido semântico normal da palavra cidade.3
Vejamos alguns exemplos de metonímia. Na frase: A cidade apresenta-se
segregada, o sentido é de que a população da cidade se encontra segregada.
Já na frase: A cidade reformulou seu IPTU, a palavra cidade assume o senti­
do de governo e de ente da administração pública. Na frase: A cidade baixa
de Salvador passou por grandes transformações, enquanto a cidade alta se
mantém a mesma, o sentido diz respeito às partes distintas de uma mesma
cidade. Na frase: Eu vou à cidade, o sentido é de núcleo original ou prin­
cipal de uma cidade onde se concentram as mais importantes atividades
administrativas, comerciais e financeiras.
Quanto à palavra urbano, essa palavra é um adjetivo e serve, assim,
para caracterizar os seres ou os objetos nomeados pelo substantivo; ou
seja, serve para caracterizar o que foi nomeado.4 Quando dissemos trans­
porte urbano e policiamento urbano, a palavra urbano qualifica o tipo de
transporte e o tipo de policiamento.

2
Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, referido no texto simplesmente como
Dicionário Houaiss.
3
Além das derivações por metonímia, o dicionário registra regionalismos, a exemplo de ur­
bano usado, no Estado de São Paulo, com o sentido de soldado da polícia. Não discutiremos
regionalismos relativos a essas palavras. O dicionário registra, também, a etimologia da pa­
lavra cidade e urbano, que será discutida a posteriori.
4
Sobre adjetivos, ver Cunha: 1992: 114 e 151.

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Sandra Lencioni

Quando, porém, o adjetivo que caracteriza o substantivo se torna o


termo principal, ele deixa de ser um adjetivo e passa a ser uma substantiva­
ção do adjetivo. É nessa condição, de substantivação do adjetivo, que a pala­
vra urbano será aqui tratada. O exemplo a seguir pode ajudar a esclarecer.
Comparemos as seguintes frases: O transporte urbano é caótico com
a frase: O urbano é caótico. Na primeira frase, a palavra urbano qualifica o
transporte, sendo, portanto, um adjetivo. Porém, na segunda frase a pala­
vra urbano não qualifica nada, não sendo, assim, um adjetivo. Ao contrá­
rio, ela, a palavra urbano é que recebe qualificação, a de caótico. Na frase
O urbano é caótico a palavra urbano se constitui como uma substantivação
do adjetivo e é nessa condição que será considerada na discussão.5
Em relação à palavra cidade, as metonímias não serão levadas em
conta, tanto quanto na palavra urbano a condição de adjetivo não será con­
sidera. O que importa para a discussão do conceito de cidade e urbano é o
sentido semântico normal da palavra cidade e a condição de substantiva­
ção do adjetivo na palavra urbano.
Uma segunda consideração diz respeito à etimologia das palavras
cidade e urbano na língua portuguesa, que ao indicar o tempo de seu pri­
meiro uso, sugere que ela está relacionada a um fato ou fenômeno que se
apresenta, nos auxiliando a situar no tempo o que a palavra busca repre­
sentar. Por exemplo, o uso da palavra chester para indicar uma espécie
de galináceo, só surgiu em português quando a engenharia genética criou
esse tipo de ave. A etimologia nos permite, assim, relacionar, historicamen­
te, a palavra ao que ela se refere.
O Dicionário da Língua Portuguesa e Latina, de 1712, registra vários
sentidos para a palavra cidade.6 No entanto, nenhum para a palavra urba­
no, o que significa dizer que a ideia de urbano não existia até então. Nesse
dicionário as acepções da palavra cidade são as seguintes: a) de multidão
de casas distribuídas em ruas e praças, cercadas de muros e habitadas por
homens que vivem em sociedade e subordinação; b) de cabeça de um reino
ou de uma província. Esse dicionário do século XVI apresenta, também, as
acepções da palavra cidade acrescidas de adjetivos: cidade fronteira, cida­
de mercantil... Todos os verbetes são em português e em latim e é impor­
tante registrar que quando apresenta o sentido de “concernente à cidade”,
o correspondente apresentado em latim é Urbanus, a, um.

5
No caso da palavra urbano se apresentar como adjetivo que busca caracterizar os seres ou
objetos, os sentidos que podemos encontrar para a palavra urbano são os de qualificar o que
é dotado de urbanidade ou o que é afável, civilizado ou cortês. Esse é o caso da seguinte fra­
se: Hoje em dia os costumes urbanos estão corrompidos. Mas, também a palavra urbano pode
estar referida ao que é relativo ou pertencente à cidade, ou, ainda, ao que é próprio à cida­
de, como na expressão saneamento urbano. E, pode, também, expressar o caráter de cidade,
como na frase: Ontem houve um grande conflito urbano.
6
BLUTEAU: s/d.

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Algumas observações sobre a construção de conceitos
e os conceitos de cidade e urbano

Segundo o Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Por­


tuguesa, a data provável do vocábulo ‘cidade’ data do século XIII, sendo
originária da palavra latina civitas-âtis. Embora esse dicionário não regis­
tre a palavra urbano, apresenta o vocábulo urbe, que tem o sentido de ci­
dade e se origina da palavra latina ubs, urbis, indicando o século XX como
datação para o uso da palavra urbe na língua portuguesa. Curioso é que a
palavra suburbano e a palavra urbanidade são usadas na língua portuguesa
desde o século XVI e que a palavra urbanista tenha antecedido à palavra
urbanismo, já que a primeira, urbanista, é de 1874, enquanto que urbanis­
mo é do século XX.7
Esse pequeno arrazoado acerca das palavras cidade e urbano na lín­
gua portuguesa permite vermos que a palavra cidade antecede, em muito,
a palavra urbano, a indicar que a idéia de cidade precede, historicamente,
à idéia de urbano. Esse é o ponto a reter.
Todas essas considerações sobre as palavras cidade e urbano apenas
situam o escopo de muitas discussões possíveis e, antes de tratarmos dos
conceitos em si mesmos, vale relembrar que os conceitos são diferentes
das palavras.

O conceito cidade e urbano tendo como referência a realidade


brasileira

A discussão do conceito de cidade nos conduz a pensar na discussão


de um objeto e, preliminarmente, evoca várias idéias sobre cidade: pensa­
mos na cidade grega, na cidade comercial que fazia parte da liga Hanseá­
tica, na cidade colonial brasileira, na São Paulo de hoje. Já ao refletirmos
sobre o conceito de urbano esse é visto mais como um fenômeno do que
como objeto. Isso é comum aos adjetivos que assumem o sentido gramati­
cal de substantivos, precedidos, em geral, de artigo, tão comuns no mundo
acadêmico. Esse é o caso, por exemplo, de: o rural, o agrário, o informal,
o social, o espacial...
Independentemente dessa questão, tanto o conceito de cidade como
o de urbano exigem pensar a relação entre espaço e sociedade, pois tanto
a cidade como o urbano são produtos dessa relação; mais precisamente,
são produzidos por relações sociais determinadas historicamente. Nesse
sentido, a discussão que aqui se desenvolve toma como referência a pro­
dução da cidade e do urbano no Brasil, referência essa, vale dizer, tomada
apenas como um pano de fundo para se tratar desses conceitos, não im­
plicando, portanto, na própria discussão sobre a produção da cidade e do
urbano no Brasil.

7
De autoria de Antônio Geraldo da Cunha. Cunha: 1982; 182 e 804.

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Sandra Lencioni

O conceito de cidade
Inicialmente queremos chamar atenção para o seguinte afirmação:
a idéia de cidade é clara para todo mundo, diferentemente da idéia de ur­
bano. No entanto, o conceito de cidade é obscuro. Como um conceito pode
açambarcar desde cidades pequenas, de 2.000 habitantes, até cidades que
abrigam milhões e milhões de habitantes? Como pode se referir a um obje­
to que se apresenta com características bem distintas e, que por isso, exige
o complemento de um adjetivo, a exemplo de: cidade de fronteira, cidade
grega, cidade colonial, cidade medieval, cidade portuária, cidade turística,
cidade mineradora, cidade industrial? Como pode se colocar como concei­
to, o que implica em ser reflexo de um objeto – segunda observação – quan­
do esse objeto se apresenta múltiplo e variável?
Paulo César Xavier Pereira (2001), a partir de uma perspectiva so­
ciológica, pergunta por que a palavra cidade teria atravessado séculos sem
alterações, muito embora tenha se referindo a um objeto em perpétua mu­
dança. A resposta, inspirando-se em Norberto Elias, reside no fato de que,
muitas vezes, por não conseguirmos expressar o movimento e as mudanças
constantes, mantemos a palavra e acrescentamos uma outra para precisar.
Esse é o fato: por não conseguirmos expressar as transformações constan­
tes de algo tão mutável, temos mantido a palavra cidade e acrescentado a
ela adjetivos. É isso que permite compreender a presença de tantas adjeti­
vações relacionadas à palavra cidade: cidade satélite, cidade horizontal, ci­
dade mundial, cidade moderna, cidade administrativa, cidade interiorana
e tantos mais adjetivos que possamos agregar.
As angústias na discussão sobre o conceito de cidade diminuem
quando lembramos que embora o conceito seja um reflexo do real, ele é
infinitamente mais pobre que o real – primeira observação – e que não há
identidade entre o conceito e o real – quarta observação – Isso significa re­
cordar, também, que o conceito deve refletir aquilo que é essencial, os as­
pectos essenciais, as relações essenciais, enfim, a essência do objeto. Nesse
sentido, repetindo o que dissemos no início desse texto, a construção de
um conceito exige sempre um exercício de captura do que é essencial ao
objeto que é motivo da reflexão.
A cidade, não importando sua dimensão ou característica, é um pro­
duto social que se insere no âmbito da “relação do homem com o meio” –
referente mais clássico da geografia. Isso não significa dizer, todavia, que
estabelecida essa relação tenhamos cidades. Não importando as variações
entre cidades, quer espaciais ou temporais há uma idéia comum a todas
elas, que é a de aglomeração. Não é à toa, então, que a idéia de aglomera­
ção se faz presente na definição da palavra cidade.
Mas, aglomeração do que? De homens e de habitações, diriam uns.
Estar-se-ia, então, trazendo para a reflexão as tendas armadas nos deser­

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Algumas observações sobre a construção de conceitos
e os conceitos de cidade e urbano

tos, as feiras de mercados de escravos, os assentamentos dos sem terra ao


longo das estradas... e tanto as outras formas nômades de agrupamentos?
Não. É Ratzel que chama a atenção para a questão da sedentarização, in­
dicando que à cidade corresponde, sim, a idéia de aglomeração, mas a de
aglomeração durável.8
O conteúdo do conceito de cidade já indica, portanto, dois termos
para sua definição: aglomeração e sedentarismo. Mas eles se apresentam
ainda insuficientes, pois um simples exemplo mostra a necessidade de se
buscar novos elementos para a apreensão da essência do conteúdo do obje­
to a se conceituar, pois se assim não o fosse estaríamos considerando mui­
tas aldeias dos índios do Brasil como cidades.
Paulo César Xavier Pereira (2001) fornece uma excelente contribui­
ção para essa discussão ao discutir a palavra cidade.9 Lembra que a palavra
cidade definida no Dicionário Aurélio relaciona a idéia de população que ha­
bita a cidade à de população não agrícola. Mas, adverte que a idéia de cidade
relacionada à idéia de população não agrícola é inconsistente, pois existem
muitas cidades com uma porcentagem significativa de população dedicada
às atividades agrícolas, como é o caso de muitas cidades brasileiras onde
moram os trabalhadores do campo, os chamados boias-frias.
Nos idos dos anos 60 do século XX, Max Derruaux (1964) considerava
que embora possa haver casos de cidades com população voltada para as ati­
vidades agrícolas, a exemplo de várias aglomerações mediterrâneas, como
Mesina, Palermo ou Murcia, essas apresentam aspectos próprios das cida­
des, como mercado e administração pública. E, para reforçar sua argumen­
tação, acrescenta que uma fábrica com algumas casas ao seu redor, onde a
atividade é distante de ser agrícola, nem por isso constitui uma cidade.
Portanto, o fato da aglomeração sedentária conter população volta­
da para as atividades do campo não compromete o sentido de cidade que
pode estar presente no aglomerado. E, indica, mais uma vez, que uma de­
finição da palavra originária de um dicionário não se confunde com o seu
conceito científico.
Uma segunda observação de Paulo César Xavier Pereira (2001) diz
respeito à relação entre o tamanho da aglomeração, melhor dizendo, da
aglomeração sedentária. Essa observação também se faz presente em ou­
tros autores, dentre os quais podemos mencionar Pierre George, Max Der­
ruaux e Manuel Castells.10 Paulo César Xavier Pereira (2001) é taxativo
ao dizer que na conceituação de cidade essa ideia de quantidade “parece
ocorrer como sedução e obscurecimento maior quando se fala de grandes

8
Derruaux: 1964; 561.
9
Pereira: 2001; 261-284.
10
Castells reporta-se à Pierre George dizendo que esse mostrou as contradições insuperáveis
de se definir o urbano pelo empirismo estatístico. Castells: 2000; 40.

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Sandra Lencioni

concentrações demográficas, porque nessa maneira de falar se desconside­


ra que o tamanho da população não desvenda fenômeno nenhum e muito
menos o ‘gigantismo’ de sua complexidade social”.11
Qualquer critério de tamanho da população na conceituação de ci­
dade nos parece pouco frutífero. A relação entre o tamanho do aglomerado
não se desvincula do tempo histórico e dos lugares. O tamanho do aglo­
merado não tem sentido em si mesmo como definidor de cidade. Se defi­
níssemos como condição para se conceituar cidade a população de 2.000
habitantes, esse número poderia definir cidades em determinados lugares
e num momento determinado, mas em outro lugar e tempo, não. Ou seja,
poderia expressar aglomerações em relação à população total de um país
ou nação, mas poderia não expressar a idéia de aglomerado em outros lu­
gares. Cabe mencionar que uma aglomeração sedentária de 2.000 habitan­
tes na Holanda não tem o mesmo sentido que na Índia ou na China, países
com mais de 1 bilhão de habitantes.
Na conceituação de cidade, excluindo-se, portanto, a idéia que nega
a incorporação da população voltada às lides do campo, bem como a de ta­
manho da população, mantém-se as idéias de aglomerado, sedentarismo,
mercado e administração pública, que parecem constituir referências im­
portantes para a discussão do conceito de cidade. A essas idéias é funda­
mental recuperar a observação de Paulo César Xavier Pereira (2001) quan­
do diz claramente que muitas das dificuldades na compreensão do que
vem a ser cidade decorre do fato dela ser enfocada de uma perspectiva a-
histórica. Diz, ele, que a cidade depende de formas políticas e sociais e que
essas são produto de determinações sociais. São essas forças que a caracte­
rizam e que lhe dão individualidade. Esse autor compara a palavra cidade
com a palavra poço para ilustrar que enquanto a cidade apresenta-se agu­
damente variada, segundo lugares e o momento histórico, o poço, “grande
buraco, geralmente circular e murado, cavado na terra a fim de atingir um
lençol de água subterrâneo”, não se altera nem ao longo da história e nem
segundo os lugares.12
Isso posto, a discussão sobre o conceito de cidade, para fugir do pe­
rigo de mais obscurecer do que esclarecer, requer um situar na história.
No caso desse trabalho, requer a incorporação da perspectiva histórica no
exame do conceito de cidade referido a uma sociedade e a um território
específico: o Brasil.
Recuperando elementos da essência do conteúdo do conceito: aglo­
meração, sedentarismo, mercado e administração pública, vamos, nesse
momento, situar a discussão no âmbitos dos termos: aglomeração e seden­
tarismo.

11
Pereira: 2001; 269.
12
Definição de poço, segundo o Dicionário Houaiss.

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Algumas observações sobre a construção de conceitos
e os conceitos de cidade e urbano

Esses termos acompanham duas palavras: povoado e povoação, que


embora tenham um sentido diferente em Portugal, têm o mesmo sentido
no Brasil.13 São sinônimos, mas são muito diferentes segundo as regiões
do país, embora guardem alguns traços comuns, apresentados a seguir.
Povoa­do e povoação se caracterizam, segundo do Dicionário Houaiss:
a) pela presença de habitações modestas – quer construídas de tábuas,
barrote, tijolo ou, até mesmo, palhoças;
b) por uma população reduzida;
c) pelo predomínio de uma só rua ou caminho, podendo apresentar, no
entanto, duas ou mais ruas e até um esboço de largo, com capelinha
ou igrejinha;
d) pela presença de poucas casas de comércio: vendas, armarinhos e
artigos domésticos;
e) por vida modorrenta e tranqüila;
f) por uma vida vibrante nos dias de festas, feiras, eleições...

Dessas características cabe comentar a menção ao aspecto que os


povoados e povoações tem: o de vida morrenta e tranqüila. Essa caracte­
rística não se aplica aos povoados das zonas de garimpagem. Ao contrário,
nessas zonas os povoados são locais bastante turbulentos.
Podemos afirmar, seguramente, que muitos povoados no Brasil de­
ram origem às cidades. Mas cabe refletir um pouco sobre a questão: da
onde surgiram os povoados? Muitos deles se originaram de locais fortifica­
dos e postos militares, de aldeias e aldeamentos indígenas, de arraiais, de
corrutelas, de engenhos e usinas, fazendas e bairros rurais, de patrimônios
e núcleos coloniais, de pousos de viajantes, de núcleos de pescadores, de
estabelecimentos industriais, de seringais, de vendas de beira de estradas,
de ancoradouros ás margens dos rios, de pontos de passagens em cursos d’
água, de estações ferroviárias e postos de parada rodoviária, dentre tantas
origens.14
As condições de aglomeração sedentária, acrescida da função de
troca e da de administração pública é que fizeram com que alguns po­
voados se desenvolvessem como cidades. Alguns, porém, já se instituem
como cidades, não porque fossem maiores ou diferentes dos povoados
que haviam, mas porque foram concebidos como sede do poder metro­
politano, sede do poder lusitano. Esse é o caso de São Vicente, fundado
13
Em Portugal, povoado significa aldeia, lugarejo ou pequena localidade com pessoas, en­
quanto que povoação se refere a lugar povoado, que pode se referir a pequenos agregados
rurais e até às maiores aglomerações.
14
Azevedo: 1957; 36. Sobre a origem dos povoados no Brasil o texto de Aroldo de Azevedo,
Embriões de Cidades Brasileiras é referência obrigatória.

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Sandra Lencioni

como Vila, portanto, como representação do poder lusitano, em 1532.


Esse aspecto, o de local de poder, é fundamental na conceituação de cida­
de no Brasil. Sozinho, define uma cidade, independente dos outros ele­
mentos mencionados.
Ao falarmos em cidade no Brasil estamos nos referindo a um aglo­
merado sedentário que se caracteriza pela presença de mercado (troca) e
que possui uma administração pública. Lembrando as sete observações
sobre os conceitos, vemos, claramente, que o conceito de cidade no Brasil
é posterior á própria constituição da cidade (primeira observação), que
esse conceito busca refletir o real (segunda observação) sendo ao mesmo
tempo objetivo e subjetivo; ou seja, relativo a um conteúdo do real, mas
também subjetivo, porque se relaciona ao pensamento sobre ele (tercei­
ra observação). Ainda, o conceito de cidade é infinitamente mais pobre
ao real ao qual ele se refere (quarta observação) e existe em movimento
(quinta observação), ou seja, se altera segundo referências e segundo o
tempo histórico. E, também, o conceito de cidade se relaciona a outros
conceitos (sexta observação) e só existe se for definido enquanto tal (sét­
ma observação)

O conceito de urbano
Um olhar filtrado sobre o real permite perceber que vivemos num
mundo novo onde as redes e os fluxos tecem conexões entre os lugares e
alteram a idéia de próximo e distante. Esse é um dos aspectos do mun­
do em que vivemos que indica o desenvolvimento de uma sociedade pós-
industrial, ou seja, de uma sociedade que “nasce da industrialização e a
sucede”, como diz Lefebvre e que ele denomina de sociedade urbana e, de
maneira sintética, de urbano.15 Foi nos idos de 1970 que Lefebvre (1999)
fez essa consideração, indicando que o urbano de então não se constituía
numa realidade acabada, mas numa realidade em processo de vir a ser que
se apresentava, ainda, de forma virtual devendo, no entanto, se apresentar
como real no futuro.16
Lefebvre (1999) situa, assim, o urbano no âmbito da industrializa­
ção, mas não considera que o urbano seja um subproduto da industriali­
zação. As justificativas relativas a necessidade de superar esse reducionis­
mo – que coloca o urbano como derivação de um processo deixando pouca
margem para se perceber o seu próprio conteúdo – são objeto de atenção
preciosa de Martins (1999) que salienta que nessa redução se restringe,
também, as dimensões do urbano, tornando impossível compreender o
que ele é em si mesmo e, assim, tornando extremamente difícil a compre­

15
Léfèbvre: 1999; 16. e 28.
16
Léfèbvre: 1999; 15.

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Algumas observações sobre a construção de conceitos
e os conceitos de cidade e urbano

ensão de que o urbano é um lugar de enfrentamentos e confrontações, uma


unidade de contradições.17
Como Lefebvre, diversos autores na discussão sobre o urbano fazem
a relação entre urbano e industrialização, por assim dizer, entre urbano e
sociedade industrial capitalista, uns caindo no reducionismo criticado por
Lefebvre, outros, não. O que importa é que a idéia de urbano aparece, na
maioria das vezes, vinculada à de capital industrial e à de sociedade capi­
talista industrial. Castells (2000) é um dos autores que compartilha des­
sa visão. Citamos apenas esse autor ao lado de Léfèbvre porque são esses
dois autores paradigmáticos nessa discussão. Igualmente, os dois olham o
mundo a partir da perspectiva na qual se inserem, da perspectiva da cultu­
ra ocidental e de um ponto preciso: a sociedade européia.
A perspectiva de Léfèbvre e Castells relaciona diretamente o concei­
to de urbano à sociedade capitalista industrial. A partir desses autores e
dessa referência à sociedade capitalista industrial vamos pensar o urbano
no Brasil.
A sociedade capitalista industrial, a rigor, emerge no Brasil quan­
do a reprodução ampliada do capital passa a ser comandada pela ativida­
de industrial. Segundo Maria da Conceição Tavares (1972) e João Manoel
Cardoso de Mello (1984) , dentre outros autores, só a partir desse momen­
to é que podemos falar em industrialização, muito embora a atividade in­
dústria já existisse. Só a partir desse momento é que o capital industrial
se emancipa da atividade primário-exportadora, que nesse período é a ca­
feicultura, sendo capaz de gerar seu próprio crescimento industrial. Dessa
forma, só então, em 1930, é que estão constituídas plenamente as bases de
uma sociedade industrial e, por conseguinte, podemos falar em urbano no
Brasil.
Essa abordagem nos conduz, assim, a situar o urbano a partir dos
anos 30 do século XX. Ela se fundamenta na idéia de que a indústria brasi­
leira teria surgido em função das oscilações da economia cafeeira. Já para
José de Souza Martins (1979) a industrialização brasileira não se situa nes­
sas oscilações; ou seja, seu desenvolvimento não está apenas relacionado
às crises do setor exportador cafeeiro, que fazem fluir os investimentos
para outros setores econômicos, inclusive o industrial, ou relacionada às
fases de auge da cafeicultura, que conduz à diversificação dos investimen­
tos em outras esferas da atividade econômica. Para Martins, a gênese da
industrialização brasileira está relacionada à dinâmica do complexo cafe­
eiro, idéia mais ampla do que a de oscilação da economia cafeeira. Dinâ­
mica essa, da qual falaremos a seguir, que teve a capacidade de gerar um
processo dinâmico de acumulação capitalista, até mesmo não assentado
em relações sociais de produção capitalista.

17
Martins: 1999; 10..

92

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Sandra Lencioni

Essa compreensão da acumulação capitalista e da constituição da


sociedade capitalista industrial no Brasil desloca o conceito de urbano,
com marco dos anos 30 do século XX, no entendimento de Maria da Con­
ceição Tavares (1972) e João Manoel Cardoso de Mello (1984), para o final
do século XIX. A compreensão de José de Souza Martins (1979) decorre de
um olhar voltado internamente ao Brasil e que busca compreender as par­
ticularidades do seu desenvolvimento capitalista, que, dentre outros ele­
mentos, inclui a escravidão moderna e o desenvolvimento de um complexo
cafeeiro. Complexo esse, como já nos referimos, fundado em relações de
produção não capitalistas e base de uma sociedade industrial. Particulari­
dades de uma história, vicissitudes de uma história da “periferia”, vicissi­
tudes daquilo que se apresenta fora do centro.
São esses contratempos da história que conduzem à compreensão do
particular, que só pode ser percebido compreendendo-se o universal. A es­
sência do fenômeno urbano, a idéia de capital, que lhe é intrínseca, é que
permite compreender a particularidade do urbano no Brasil, que como qual­
quer particular desvendado, enriquece o conhecimento acerca do geral.
Não há nenhum equívoco em se conceituar o urbano em relação à
indústria e ao capital, o equívoco está em não procurar desvendar as par­
ticulares históricas dessa relação. Como comentamos, para Martins a gê­
nese da industrialização brasileira está relacionada ao complexo cafeeiro,
que apresentou capacidade de gerar um processo de acumulação capitalis­
ta industrial. Isso porque o capital cafeeiro não se constitui num simples
capital mercantil, dada as metamorfoses pelas quais se transfigurava: ora
em capital industrial de um industrial, ou ora como estoque de um comer­
ciante, ou como renda do Estado, como recurso financeiro de um banquei­
ro, ou como em investimento para a construção de estradas de ferro.
O capital cafeeiro se desenvolve constituindo um complexo de rela­
ções que conduz a um grande desenvolvimento econômico. E, curiosamen­
te, ele se desenvolve assentado em relações não capitalistas de produção,
que é o colonato, que ao permitir combinar a produção da mercadoria café
com a produção dos meios de vida do trabalhador encontrou a chave de
ouro para a acumulação da riqueza. Já não se fazia mais necessário dis­
ponibilizar recursos para a compra de escravos indispensáveis à fazenda
de café. O trabalho era livre e os subsídios relativos à imigração garantiam
mão de obra abundante, num contexto em que a terra já era livre, desde
1850, e era monopólio de poucos.
A produção de subsistência do colono, que era fundamental para
sua reprodução, livrava o fazendeiro de dispêndios maiores com o colono
e esse via nessa possibilidade de produção, um trabalho para si mesmo,
mas, na verdade, esse trabalho se constituía, também, numa exploração,
muito embora a partir dele o colono pudesse auferir algum excedente que
poderia ser vendido no mercado.

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Algumas observações sobre a construção de conceitos
e os conceitos de cidade e urbano

O que se fazia necessário era a construção de estradas de ferro para


garantir o escoamento da produção que adentrava o território paulista e,
para isso exigia, também, o desenvolvimento de serrarias e de metalúrgi­
cas para os dormentes e trilhos dos trens. Do mesmo modo era essencial o
aparelhamento do porto de Santos, o desenvolvimento de instituição vol­
tada para o mercado de ações do café e o desenvolvimento dos negócios
financeiros e jurídicos.
Igualmente, era imprescindível a industrialização de bens de con­
sumo para satisfazer as necessidades de reprodução dos colonos, que não
eram garantidas pelo próprio trabalho excedente, bem como da população
que vivia nas cidades. E fundamental a produção dos instrumentos neces­
sários ao trabalho nos cafezais e roças (instrumentos, equipamentos e ma­
quinas), bem como a produção de máquinas de beneficiamento de café. O
que vale dizer, também era imperioso o desenvolvimento da capacidade
energética, quer para as atividades produtivas, quer para as cidades que se
desenvolviam.
As cidades materializavam as condições gerais da produção cafe­
eira, garantindo o comércio e os serviços necessários, o que redundou no
desenvolvimento de uma extensa rede urbana no interior paulista. Rede
urbana que se fez obrigatória porque a principal parcela do capital da fa­
zenda de café era produzida na formação de fazendas de café estendendo
os cafezais pelo território adentro que necessitavam de cidades para prover
as condições gerais da cafeicultura. Enquanto isso a cidade de São Paulo
se metamorfoseava, passando de simples vila a cidade em acelerado cres­
cimento com chaminés de fábricas e população operária.
A posição de José de Souza Martins (1979) nos conduz a interpreta­
ção de que é no interior do complexo cafeeiro que situamos a capacidade de
geração de um processo dinâmico de acumulação capitalista, que induziu à
industrialização e à constituição do urbano. Assim posto, podemos falar em
urbano no Brasil a partir da constituição do complexo cafeeiro que se mos­
tra, nitidamente visível, a partir de 1870. Essa compreensão não considera
o urbano como um subproduto da industrialização, mas como produto de
determinadas relações sociais e de determinados condicionantes próprios
do complexo do cafeeiro. Desloca-se, assim, a relação industrialização e ur­
bano, por assim dizer, a relação entre urbano e sociedade industrial. Afrou­
xa-se essa relação deixando espaço para a relação entre urbano e complexo
cafeeiro, relação essa particular à sociedade brasileira. Antecede-se, assim,
o entendimento de quando podemos falar em urbano no Brasil.
Relembrando o que dissemos em relação à palavra urbano, de que
essa palavra não se constitua em termo da língua portuguesa no século
XIX, isso não compromete em nada o raciocínio, pois, como dissemos, o
conceito existe a posteriori dos objetos ou fenômenos que representam (se­
gunda observação).

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Sandra Lencioni

As posições de Maria Conceição Tavares (1972) e João Manoel Car­


doso de Mello (1984), de um lado, e, de outros, de José de Souza Martins
(1979) indicam soluções diferentes para o conceito de urbano no Brasil.
Tendo como referência os primeiros, o urbano se constitui a partir dos
anos 1930, enquanto que a interpretação de José de Souza Martins nos
conduz a situá-lo a partir de 1870.
Pode ter aparecido alongada essa discussão, mas o sentido foi de
mostrar que os conceitos existem em relação a um corpo teórico e que o
entendimento de quando se constitui a sociedade industrial capitalista é
que conduz à compreensão de quando podemos falar em urbano no Bra­
sil. Claro, fundada na premissa dizendo respeito à relação entre urbano e
industrialização.
A discussão tem, também, o mérito de mostrar que os conceitos se
fundam em teorias e que segundo essas os conceitos se alteram. Como dis­
semos na Introdução, a pesquisa exige permanentemente escolhas e pes­
quisar significa viver opções.
Assim posto, embora tenhamos cidades no Brasil desde a colônia, a
constituição do urbano lhe é posterior em ambas as perceptivas analisa­
das, já que é imanente ao conceito de urbano sua relação com o processo
de reprodução capitalista, no sentido de processo dinâmico que induziu à
industrialização moderna e à constituição da sociedade industrial. Proces­
so esse que se desenvolve, no dizer de Maria Conceição Tavares (1972) e
João Manoel Cardoso de Mello (1984) partir de 1930 e que segundo José de
Souza Martins (1979) se situa a partir de 1870. Seja qual for a referência o
conceito de urbano encontra sua historicidade.
Fizemos uma escolha, de relacionar o conceito de urbano à socie­
dade industrial capitalista no Brasil e chegamos, assim a duas referências
para discutir quando podemos falar de urbano no Brasil. Poderíamos ter
assumido outro caminho, como o apontado por Jean Remy e Liliane Voye
(1976) que entende que o urbano está relacionado ao processo de urba­
nização que se constitui como um processo de transformação estrutural
específico da sociedade capitalista e que impulsiona essa sociedade para
adiante, quer em suas contradições, quer em suas explicitações.18 Essa
compreensão não vincula, portanto, o urbano à sociedade capitalista in­
dustrial. Se tomarmos como referência essa compreensão de urbano, por
certo podemos falar em urbano no Brasil desde os primórdios da coloni­
zação já que essa nasce sob a égide da sociedade capitalista, na sua fase
mercantil.
O conceito de urbano se relaciona a um processo histórico e depen­
dendo da referência teórica falaremos de urbano desde os primórdios da
colonização brasileira, desde o final do século XIX quando são lançadas

18
Remy e Voye; 1976; 82.

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Algumas observações sobre a construção de conceitos
e os conceitos de cidade e urbano

as bases da sociedade capitalista industrial no Brasil, ou desde os anos de


1930, quando a reprodução ampliada do capital passa a ser comandada
pela atividade industrial.

Considerações Finais
Essas observações sobre os conceitos de cidade e urbano tiveram o
objetivo não só de discutir esses conceitos, mas sobretudo de alertar para
o fato de que os conceitos se constituem em elementos fundamentais para
a interpretação da realidade. Por meio dos conceitos buscamos nos instru­
mentalizar para compreender o real. Longe de serem únicos e verdadeiros,
os conceitos são definidos segundo referências teóricas.
No caso do conceito de cidade construído a partir do contexto brasi­
leiro, podemos, como vimos, incorporar a idéia de população que nela vive
dedicada ao trabalho no campo, deixando de considerar apenas cidades as
aglomerações sedentárias que se caracterizam pela presença de população
voltada exclusivamente para as atividades urbanas.
Relativo ao conceito de urbano vimos que segundo o entendimento
de urbano podemos falar em urbano no Brasil a partir de três marcos his­
tóricos: desde a colonização, final do século XIX e a partir dos anos 30 do
século XX.
O que é importante no conhecimento é a coerência com as referên­
cias assumidas. Seria um erro grosseiro exprimir que o urbano se relacio­
na à sociedade capitalista industrial e, ao mesmo tempo, discutir o urbano
no século XVIII ao se falar das cidades da mineração: Ouro Preto, Mariana
e Sabará, por exemplo. Como também seria falta grave falar em urbano no
Brasil no final do século XIX se a compreensão do urbano se assenta na
idéia de sociedade capitalista industrial entendida como sendo aquela so­
ciedade cujo fundamento da reprodução ampliada do capital se encontra
na atividade industrial.
Conceitos e teorias são, portanto, imanentes uns aos outros. Essa é
a idéia fundamental desse texto que busca, por meio da discussão sobre
os conceitos de cidade e urbano contribuir para a discussão sobre o que
é cidade e o que é urbano no Brasil. Longe de respostas simples e de cer­
tezas esse texto buscou transmitir a idéia de que as certezas fáceis e os
modelos explicativos usados sem a reflexão necessária não têm nenhum
poder de desvendar os processos que examinamos. Em geral, não desven­
dam nada ficando na reprodução de idéias e de pressupostos entendidos
como fé.
O caminho do conhecimento é árido, solitário e angustiante. Muitas
certezas se tornam incertezas durante o percurso, enquanto que outras en­
contram soluções; o que importa é que por meio da consistência teórica e
conceitual é possível contribuir para a compreensão do real.

96

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Sandra Lencioni

Referências:
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Algumas observações sobre a construção de conceitos
e os conceitos de cidade e urbano

Renaudie, S. Sur l´urbain. In: Lefebvre, Henri, Groupe de Navarrenx.


Du contrat de citoyenneté. Paris: Ed. Syllepse, 1990, p. 186-196.
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98

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France: mutations des relations
villes-campagnes de 1950 à 2008
Evolutions géographiques et débats
théoriques

Yves Jean
Professeur de géographie
Université de Poitiers | ICOTEM | (Identité et Connaissance des Territoires et des
Environnements en Mutation) | yves.jean@univ-poitiers.fr

En 2003, le rapport de la Datar consacré à la «  France rurale en


2020 », invite à regarder avec un œil neuf l’espace rural qui « cristallise les
espoirs et inquiétudes de la société française »1. Cet espace connaît de pro­
fondes mutations, liées à sa nouvelle attractivité dans une société urbaine
(solde migratoire positif), aux nouveaux liens avec les villes ainsi qu’aux
évolutions économiques et fonctionnelles (espace résidentiel, de loisirs, de
création de valeur ajoutée par l’agriculture, l’industrie, le tertiaire). B. Jean
parle des nouveaux territoires de la ruralité2 pour le Québec afin d’analy­
ser la ruralité comme objet sociologique mais également comme fait de
société. Nous aurons le souci d’aborder la question rurale du point de vue
géographique, par l’analyse des principaux changements – démographi­
ques, économiques, culturels – qui créent une nouvelle donne sociale et
géographique et en évoquant les débats entre ceux qui considèrent que
« les campagnes sont des figures de l’urbain3 » et d’autres auteurs qui es­
saient de préciser les nouveaux contours de l’espace rural, analysé à partir
des circulations des produits, des hommes et des idées.

1
Datar, 2003, « Quelle France rurale pour 2020 ? », Documentation française, septembre 2003,
64 pages.
2
Jean (B.), 1997, « Territoires d’avenir. Pour une sociologie de la ruralité », Presses Universitai­
res du Québec, 318 pages.
3
Lévy (J.), 2001, « Les campagnes figures de l’urbain », article paru dans Pouvoirs locaux, n°
48, pp. 32-36.

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France: mutations des relations villes-campagnes de 1950 à 2008
Evolutions géographiques et débats théoriques

I. Espaces ruraux : diversité sociale et spatiale


Depuis le milieu des années 1970, les espaces ruraux connaissent
d’importantes mutations démographiques, économiques, culturelles, de
degré différent selon les trajectoires spatiales de chaque espace. Cette nou­
velle situation favorise une complexification des dynamiques territoriales
qui brouille les représentations anciennes des campagnes. Cinq ruptures
alimentent ces changements.

I.1 Renouveau rural depuis vingt ans


A partir du milieu du XIXème siècle, l’exode rural vers les villes ca­
ractérise les relations villes – campagnes. Il s’amplifie à partir de 1880 et
renforce le poids relatif des paysans dans les villages, car ce sont surtout
les ouvriers, les artisans, les commerçants qui partent, attirés par la ville
et l’industrie. Cet exode rural et agricole va cependant favoriser des circu­
lations entre les régions de départ et les principales villes : par exemple,
dans l’Aubrac, deux ou trois générations plus tard, des descendants de mi­
grants vont rénover d’anciens biens et favoriser des investissements dans
le territoire de départ. Ainsi, jusqu’en 1950-1960, la France se caractérise
par une grande masse de paysans (27% des actifs en 1954 soit 8 millions
de personnes).
A partir du milieu des années 1960, la ruralité commence à chan­
ger par une augmentation de la population rurale non agricole. Une dis­
sociation de tendances s’opère, entre les espaces ruraux proches des villes
qui connaissent une forte progression démographique, c’est le début de
la périurbanisation4 et les espaces ruraux éloignés où l’exode vers la ville
se poursuit ainsi que le dépeuplement. Jusqu’au milieu des années 1970,
l’exode rural est d’actualité5, les campagnes de faible densité continuent à
perdre des habitants, les déséquilibres démographiques s’accentuent.
Depuis 1975-1980, les mouvements migratoires changent entre les
villes et les campagnes provoquant l’étalement urbain mais également le
renouveau démographique de nombreuses campagnes. Ainsi, entre les re­
censements de la population de 1990 et 1999, la croissance de la popula­
tion concerne le littoral atlantique, un grand sud-est du pays, les alentours
de Toulouse, l’Alsace et un grand Bassin parisien. Les mouvements mi­

4
Nous avons fait le choix de ne pas aborder ici les relations singulières qui existent entre les
espaces périurbains et les villes proches. Ce phénomène spatial particulier, le « tiers espa­
ce », entre ville et campagne, mérite une analyse différenciée de ses relations avec les villes.
Notre communication reste centrée sur les relations entre les villes et les espaces ruraux plus
éloignés. Voir la publication récente, 2008, Roux E., Vanier M., « La périurbanisation : pro­
blématiques et perspectives »,Paris, La Documentation française, 84p.
5
Guermond (Y.), 2001, « Territoire et aménagement », Atlas de France, dir. Saint-Julien T., vo­
lume n°14, 144p., La Documentation Française.

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Yves Jean

gratoires sont devenus excédentaires dans les espaces ruraux, y compris


dans des zones rurales quelquefois très éloignées des villes, compensant
très souvent le déficit naturel.

Les résultats de l’INSEE de la deuxième enquête annuelle de recen­


sement, de 2004 et 20056 confirment la forte croissance démographique
dans les régions du Sud et de l’Ouest en raison de leur forte attractivité.
Cinq régions associent un excédent naturel et un excédent migratoire : Al­
sace, Rhône-Alpes, Provence-Alpes-Côte d’Azur, Pays de la Loire et Breta­
gne ; la décroissance de la population est atténuée en Champagne-Arden­
nes et la reprise de la croissance est confirmée pour les régions du Massif
central, l’Auvergne et le Limousin. Depuis 1999, le taux de croissance a
été plus fort dans les communes rurales que dans les communes urbaines
(+1,1 % par an depuis 1999 contre +0,7 % par an). L’augmentation la plus
forte concerne les communes de moins de 2000 habitants et plus particu­
lièrement celles de moins de 500 habitants pour lesquelles le taux de crois­
sance est passé de +0,3 % par an entre 1990 et 1999 à +1,0 % par an depuis.
Si l’étalement urbain se poursuit et s’étend depuis 1999, il se double d’une
accélération de la croissance démographique dans l’ensemble de l’espace à
dominante rurale. La population des communes rurales situées à plus de
30 km du centre d’une aire urbaine a augmenté depuis 1999 à un rythme
annuel de 0,7 % contre une stagnation entre 1990 et 1999 (+0,1 % par an).
Comme l’écrivent B. Morel et P. Redor, « en définitive, la périurbanisation
continue de représenter la contribution la plus forte à la croissance de la
population… mais c’est au sein de l’espace rural, dans les zones attractives
les moins denses et de plus en plus loin des zones d’influence des villes, que
l’accélération de la croissance démographique est la plus sensible7».

I.2 Recomposition sociale dans les espaces ruraux


Depuis 1965, les dynamiques des populations invitent à reconnaître
de nouvelles configurations démographiques : entre les années 1960 et les
années 1999, le poids des ménages agricoles est passé de 33% à 7%, celui
des artisans et commerçants reste quasiment stable autour de 6 à 7 %, ce­
lui des ouvriers et employés a progressé légèrement de 25% à 28% entre
les années 1960 et 1990, lors de l’industrialisation des campagnes et dé­
croît pour représenter 20 % des ménages en 1999 ; la catégorie des cadres
moyens et supérieurs progresse de façon très significative de 4% à 15% en
1990 et 20 % en 1999, reflet d’un bouleversement sociologique très rapide
des sociétés locales.

6
Morel (B.), Redor (P.), 2006, “Enquêtes annuelles de recensement 2004 et 2005 », Insee pre­
mière, n°1058.
7
Morel (B.), Redor (P)., 2006, op. Cité.

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France: mutations des relations villes-campagnes de 1950 à 2008
Evolutions géographiques et débats théoriques

Tableau n°1: Evolution de la composition des ménages ruraux entre 1962 et 1999 (en%)
1962 1990 1999
Agriculteurs et salariés agricoles 33,8 9,9 7
Artisans – commerçants 8,8 6,9 6
Cadres moyens et supérieurs 3,9 14,9 20
Employés et ouvriers 25,0 27,6 24
Retraités agricoles 28,5 40,7 43
Total 100 100 100
Source: INSEE, RGP de 1962, 1990, 1999

Cette mutation accélérée de la composition sociale des espaces ru­


raux ne s’effectue pas partout au même rythme ou avec la même intensité
ni la même recomposition sociale ce qui explique la grande diversité des
réalités sociales des campagnes actuelles. L’analyse de la mobilité et des es­
paces vécus des ruraux permet de distinguer trois catégories:
• les populations marginalisées par le système économique, parfois la
majorité de la population, petits producteurs, salariés de l’industrie
qui ont comme espace d’identification et de reconnaissance sociale
le village. Ils sont souvent en état de fragilité économique, préoc­
cupés par leur avenir, ils disposent de peu de temps et de disponi­
bilité pour participer à des formes de vie culturelle. Parmi ce pre­
mier groupe, l’on trouve également les pauvres, personnes jeunes
ou âgées, dont l’espace vécu est parfois plus réduit que la commune
(absence de mobilité, faiblesse des moyens d’existence, peu de par­
ticipation à la vie locale). Leur espace vécu correspond au village ou
aux villages proches et au chef lieu de canton ; la faible circulation
géographique reflète une socialisation réduite;
• les actifs, qu’ils soient agriculteurs, artisans, commerçants ou sala­
riés sont mobiles, leurs territorialités vont de la commune à l’espace
environnant (bassin de vie et / ou micro – région, ville sous-préfectu­
re proche). Un des critères de différenciation interne de cette catégo­
rie est lié au travail de la femme : elle influence fortement les espaces
de vie et les lieux fréquentés par le ménage. Ces actifs participent à
redonner vie à des formes culturelles traditionnelles facilitant une
évolution de l’identité locale ;
• les praticiens de la qualité de la vie que sont les retraités avec des
revenus suffisants, les touristes, les personnes possédant une rési­
dence secondaire, les actifs avec une grande liberté professionnelle
tels les cadres moyens et supérieurs ou les professions intellectuelles
et libérales. Deux différences marquent ce groupe : ils participent le
plus souvent, par leur statut social et économique à la culture do­

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Yves Jean

minante, et ils ont choisi leur lieu d’habitat ce qui n’est pas le cas
des deux premiers groupes. Nombreux sont ceux qui manifestent
un grand intérêt pour le milieu qu’ils ont choisi et ils cherchent à
s’identifier au territoire d’accueil en s’intéressant aux aspects de la
vie locale : langage, coutumes, activités ludiques, usages de travail
d’autrefois. Ils vont de la maison à la ville, sans obligatoirement fré­
quenter les habitants du village. Leurs réseaux de sociabilité sont le
plus souvent en ville.

La commune rurale est devenue un espace complexe, aux popula­


tions diverses : aux couches traditionnelles de petits producteurs, agricul­
teurs, artisans, commerçants, salariés des petites entreprises s’ajoutent de
nouveaux habitants, des retraités du milieu urbain, des cadres travaillant
en ville et résidant à la campagne, des migrants arrivant des pays anglo-
saxon, reflet d’une migration Nord-Nord. Les communes rurales sont habi­
tées par des personnes aux trajectoires, aux conditions de vie, de revenus,
aux besoins, aux modes d’identification et d’expression culturelle, aux ima­
ginaires très différents. Aujourd’hui, la commune rurale est un lieu de vie
qui peut être un lieu de rencontre reposant sur une grande mixité sociale,
source d’urbanité et de citoyenneté à condition que les élus favorisent la vie
associative et les espaces publics, lieux de rencontres.

I.3 Pluralité des fonctions économiques


Trois facteurs sont susceptibles d’influencer l’avenir des campagnes,
dans les articulations et les tensions entre la localisation des productions –
agricoles, industrielles, de services, touristiques – et le choix de résidence.

I.3.1 Agriculture – espace rural – villes: de nouvelles circulations


Pendant des siècles, le monde rural s’identifiait au monde agricole, il
s’agissait de réalités identiques car l’activité agricole dominait. Parfois en­
core aujourd’hui, la perception des campagnes est faussée par l’empreinte
paysagère de l’activité agricole mais la ruralité ne peut plus se réduire à la
seule activité agricole.
Cependant, si l’évolution de l’agriculture est moins déterminante
aujourd’hui qu’il y a quarante ans, elle continue d’influencer les dynami­
ques rurales, en particulier dans les campagnes de moyennes montagne,
vieillies, enclavées, en difficultés, tant en ce qui concerne l’occupation de
l’espace, l’entretien et la valorisation des paysages que la création de va­
leur ajoutée et d’empois directs et indirects avec les industries agricoles et
alimentaires. Au cours des années 1950-1960, l’agriculture constituait la
fonction économique dominante et structurante des espaces ruraux: avec
48 % des ménages ruraux en 1962, les paysans détenaient le pouvoir poli­
tique local et donnaient une homogénéité aux sociétés rurales. En 2006, ils

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France: mutations des relations villes-campagnes de 1950 à 2008
Evolutions géographiques et débats théoriques

représentent une minorité des ménages, illustration de la décomposition /


recomposition sociale qui s’est opérée. Leur influence reste cependant sur-
représentée du fait de leurs réseaux professionnels, de la détention du fon­
cier, de leur enracinement local : aux élections municipales de mars 2 001,
20% des 36 600 maires sont agriculteurs ce qui conforte l’analogie entre
agricole et rural.
Bertrand Hervieu8 souligne que la crise d’identité des agriculteurs
correspond à une crise de société alimentée par des changements profonds
concernant la place du secteur primaire – 30 % de la population active en
1950, moins de 4% en 2 003 – mais, également, les relations entre l’agricul­
ture et la famille, le territoire, l’alimentation, la nature. La crise d’identité
des agriculteurs oblige à redéfinir l’utilité sociale, économique, culturelle
du métier d’agriculture, au carrefour de la production, des marchés et de
la gestion du patrimoine, de l’écosystème – eau, air, terre – en privilégiant
la qualité des produits et des process de production. Cette crise, déjà iden­
tifiée lors des années 1980 n’a toujours pas trouvé de réponse pertinente
vingt cinq ans plus tard.

Agriculteurs: multiplication des rapports avec le marché urbain9

Les relations des agriculteurs avec la demande et le marché ont


toujours structuré une partie de leurs rapports avec la ville. Lors de la
seconde révolution agricole, à partir de 1955, les rapports des agricul­
teurs avec leurs “partenaires” sont multipliés : industries d’amont qui
fournissent les consommations intermédiaires, industries agricoles et
alimentaires qui absorbent les matières premières pour les transfor­
mer, le système bancaire, l’Etat et l’Union européenne. Cette nouvelle
donne structure de nouveaux rapports avec des centres de décision
extérieurs aux lieux pratiqués par les agriculteurs.
Depuis vingt ans, la crise agricole favorise de nombreuses ini­
tiatives des agriculteurs qui développent un nouveau métier, celui
d’exploitant rural. Ce métier regroupe trois principaux modes d’or­
ganisation  : la première démarche consiste à prolonger l’acte pro­
ductif en prenant en compte la transformation du produit et sa com­
mercialisation  ; 10% des agriculteurs déclarent pratiquer la vente
directe : la ville redécouvre ainsi son “plat pays” par la multiplication
des marchés hebdomadaires et la présence d’agriculteurs proches
géographiquement. La proximité géographique semble être un gage
de qualité des produits. La seconde démarche développe l’accueil à

8
Hervieu (B.), « Les champs du futur », Editions F.Bourin, 1993.
9
Jean (Y.), « L’agriculteur, la ruralité et le géographe », Revue de Géographie Alpine, juin 2003.

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Yves Jean

la ferme, la ferme auberge, la table d’hôtes, souvent à partir d’une


gamme de produits et de services fermiers liés à l’accueil et structu­
rée par une certaine image de « pays ». Ainsi, des agriculteurs qui ne
se déplacent pas vers la ville, rencontrent des citadins de France ou
d’Europe qui louent leur gîte rural pendant une ou plusieurs semai­
nes. Parfois, des amitiés se nouent entre les adultes et/ou entre les
enfants, fabricant de nouvelles représentations, sans s’être déplacé ;
la troisième approche concerne l’offre de services liés aux loisirs, à la
construction, à l’entretien du patrimoine ou à l’environnement.
Les règles d’excellence pour l’agriculteur et pour l’exploitant ru­
ral sont différentes : pour l’agriculteur, sa qualité repose sur la maî­
trise de la fonction technique, le référentiel est celui de l’ingénieur. Cet
agriculteur est souvent isolé sur son exploitation, les temps d’échanges
avec ses voisins étant très brefs dans l’année ; pour l’exploitant rural,
il s’agit d’une mise au point d’une gamme originale de produits ou de
services qui transforme complètement l’exploitation et le métier car
il faut mettre en œuvre de nouveaux savoirs techniques concernant la
transformation des produits, la présentation, l’emballage, l’accueil, la
restauration. Ceci induit des rapports multiples entre les agriculteurs
et la ville, selon qu’ils fournissent des produits bruts aux industries
agricoles et alimentaires ou selon qu’ils transforment leurs produits
et les vendent directement aux citadins. Dans une même commune,
certains agriculteurs n’auront jamais l’occasion d’aller en ville pour
leur activité économique alors que leurs voisins seront régulièrement
présents sur des marchés citadins. Cette diversité des situations induit
des rapports différents à l’espace, aux lieux, à la ville, mais également
aux temporalités liées au travail et par voie de conséquence au temps
libre. L’agriculteur pratiquant une agriculture fordiste connaît une
synchronisation du temps de ses activités successives sur un espace
proche. L’exploitant rural connaît une multiplicité de lieux et d’espa­
ces, liée à la multiplicité de ces activités; il y a un changement de natu­
re, de contenu, de rythmes de travail qui le différencie de l’agriculteur
producteur de matières premières.

I.3.2 PME et espace rural : de nouvelles relations


L’espace rural est plus industriel et ouvrier qu’agricole et paysan.
L’emploi industriel dans les bassins de vie ruraux est deux fois plus im­
portant que l’emploi agricole et agro-alimentaire additionnés. Les ouvriers
dépassent, dans un quart des bassins, 40 % du total des emplois. Ils consti­
tuent la partie la moins qualifiée, la moins formée et souvent la plus pré­
caire des espaces ruraux.

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France: mutations des relations villes-campagnes de 1950 à 2008
Evolutions géographiques et débats théoriques

Les entreprises industrielles ont pour plus de la moitié d’entre elles


moins de 100 salariés, sont localisées de manière diffuse, souvent dans les
petites villes rurales. Cette présence s’explique par l’héritage des localisa­
tions dès le XIXème siècle pour certaines, mais surtout par les différentes
étapes des relations entreprises – campagnes depuis les années 1950.
Trois principales périodes permettent d’aborder l’évolution des rela­
tions entre les PME et les espaces ruraux :

1. dans l’après-guerre, les petites entreprises des secteurs traditionnels


de production de biens de consommation tel que l’habillement, le cuir, le textile
constituaient une particularité française par rapport aux structures industriel­
les plus concentrées des pays anglo-saxons. La spécialisation géographique de
ces activités permettait de repérer les centres textiles des Vosges, le système
cuir et papier d’Annonay en Ardèche, la coutellerie de Thiers en passant par la
fabrication de chaussures à Fougères ou Romans, la petite métallurgie et l’hor­
logerie de Franche-Comté et du Jura…Soit une variété de systèmes locaux d’in­
dustrialisation diffuse qui s’étaient développés dans des espaces ruraux;

2. c’est contre le maintien de ces systèmes semblant faire primer la


défense de modes d’organisation locaux par rapport aux nécessaires ouver­
tures à opérer que s’inscrit l’action de l’Etat, à partir de la reconstruction,
pour favoriser la concentration économique10. « De l’ardente nécessité du
Plan » prônée lors des années 60 à « l’impératif industriel » des années 70,
les plans successifs favorisent les grandes entreprises pour les industries
de biens d’équipement afin d’obtenir des ensembles industriels compétitifs
à l’échelle internationale. Cela favorise la disparition d’entreprises situées
dans les espaces ruraux : des PME du textile, habillement, cuir, chaussu­
res, activités héritées de la première révolution industrielle et un certain
nombre de secteurs intermédiaires de la mécanique. La DATAR favorisera
la délocalisation d’activités et d’entreprises afin de limiter l’hypertrophie de
la région parisienne mais le bilan des arrivées ne compense pas celui des
fermetures ; les principales opérations ont bénéficié aux agglomérations et
aux villes moyennes ainsi qu’aux régions de l’Ouest et au Sud-Ouest. Cette
phase de restructuration – concentration induit une plus grande dépen­
dance des espaces ruraux vis-à-vis de l’extérieur.
IL y eut cependant quelques exceptions:
• à l’Ouest, avec le Choletais et la Vendée, phénomène localisé, sans
comparaison avec les situations du Nord-Est et du Centre de l’Italie:
70 aires et systèmes à base de PME appelés les districts industriels
ou la « troisième Italie »;
• dans les Monts du Lyonnais et dans la région d’Oyonnax dans le Jura.
10
Bonin (H.), Histoire économique de la France depuis 1880, Masson, 1988 

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Le Choletais, zone « blanche », anciennement royaliste, très catho­


lique, en opposition au pouvoir central, comme les Monts du Lyonnais ou
la région d’Oyonnax, de vieille tradition socialiste et libertaire au XIXème
siècle. Cependant ces cas sont très circonscrits et cela ne compense pas les
restructurations.

3. Depuis la fin des années 70, après la phase de restructuration et


face aux difficultés des grandes entreprises, un regain d’attention est porté
sur les PME (passage d’un paradigme technico-économique à un autre) du
fait de leurs capacités
d’adaptation aux mutations, de leurs facultés de résistance et de
leurs créations d’emplois.

Les espaces ruraux industrialisés en 1990


Types d’espaces Industries caractéristiques
Industries liées à l’hydro-électricité (Alpes)
Décolletage, horlogerie (Arve)
ZONES ETENDUES Travail des matières plastiques (Jura)
Alpes du nord, Jura Industries du bois (Jura, Alpes)
Textile (Bas-Dauphiné)
Mécanique, métaux (Jura, Bas-Dauphiné)
Vosges Textile, bois, ameublement, verrerie
Barrois, Plateau de Langres Première transformation des métaux, fonderie, coutellerie, mécanique
Matériaux de construction (Beauvaisis)
Textile, habillement (Aube)
Périphérie Ile-de-France
Agro-alimentaire (Péronne)
Industries diverses liées à la déconcentration parisienne, diffusion périurbaine
Choletais, Vendée Cuir, chaussures, habillement
Coutellerie, plâtrerie (Thiers)
Papeterie (Ambert)
Centre-Est du Massif central
Mécanique (Ambert, Yssingeaux)
Textile (Roanne, Yssingeaux)
Textile, habillement
Sud Ardèche, Nîmes, Alès,
Industries extractives (Alès), eaux minérales
Le Vigan
Industries diverses de diffusion périurbaine
NOYAUX ISOLES
Mines, textile, agro-alimentaire, périurbain
Béthune, Lille
Ardennes Première transformation des métaux, textile
Briey-Thionville Mines de fer, industries nouvelles de reconversion
Le Havre Zone industrialo-portuaire, automobile
Segré Industries extractives, cuir, industries diverses

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France: mutations des relations villes-campagnes de 1950 à 2008
Evolutions géographiques et débats théoriques

Rochechouaurt – Nontron Cuir, chaussures


Castres Peaux, cuir, textile
Foix Industries extractives, électro-métallurgie, textile
Céret Industries extractives, textile, habillement
Aix-en-Provence,
Industries extractives
Draguignan
Grasse Electronique (IBM, Thomson)
Source: Hervieu (B.), (dir.), 1993, « L’aménagement rural », rapport de l’ENA, Documentation
Française, Paris.

Ces nouvelles dynamiques se développent souvent sur la base de ré­


seaux professionnels externes au local, souvent localisés dans des villes
moyennes ou grandes et d’une proximité organisationnelle plutôt que se­
lon une logique reposant sur la proximité géographique. L’ancien tissu in­
dustriel de PME était caractérisé par l’intégration locale développée entre
les entreprises et les activités d’une même zone. B. Ganne11 souligne que
les tendances vont vers un modèle de type « association de compétences »,
donnant la priorité à des ententes et des réseaux professionnels délocalisés.
Ce sont moins les questions de main-d’œuvre, d’approvisionnement ou de
matériel qui sont explicatifs des implantations des entreprises, que les pro­
blèmes de savoir-faire et de réseaux de compétences.
Les nouveaux impératifs industriels induisent une transformation
des critères de localisation :
• avant, les implantations industrielles dans les espaces ruraux étaient
pensé en terme de branche d’activités spécifiques comme les IAA et
d’avantages comparatifs tel que le moindre coût de la main-d’œuvre,
la proximité par rapport aux matières premières ;
• de plus en plus, la localisation des entreprises est abordée en pre­
nant en compte les facteurs de réduction des coûts directs mais éga­
lement le développement des techniques de communication, joints
aux mutations industrielles. L’important pour l’entrepreneur étant
d’avoir un accès immédiat aux donneurs d’ordre, aux services à l’en­
treprise, dans un environnement favorable. Les PME qui s’installent
en milieu rural deviennent des acteurs autonomes, performantes sur
leurs créneaux, en développant des complémentarités avec les autres
entreprises, grandes et petites et en s’inscrivant dans des réseaux qui
articulent l’échelle locale et l’échelle mondiale.

11
Ganne (B.), Bertrand (N.), 1996, « PME et milieu rural : changer les problématiques », RERU,
n°2.

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P. Chevalier12 montre que le cadre actuel des migrations vers l’espace


rural, la localisation rurale est la rencontre entre le souhait d’un ménage, un
lieu où l’exprimer et une opportunité matérielle de le réaliser. Pour tout mé­
nage s’il n’est pas possible d’obtenir un emploi sur place, il s’avère indispen­
sable de trouver d’autres moyens d’obtenir un revenu au-delà de l’assistance
pour les exclus. En raison du faible nombre d’emplois salariés disponibles,
l’un des moyens choisis, à côté des migrations quotidiennes plus ou moins
longues, c’est la création d’une activité indépendante. La petite entreprise est
alors un moyen de concilier les choix de mode et de cadre de vie du ménage
avec l’indispensable besoin de générer des revenus suffisants.
Le cadre de résidence, l’aspect relationnel de la vie dans la société
rurale sont des avantages comparatifs qui participent à l’explication de la
mobilité ou la non-mobilité d’une partie des ménages. Ils se trouvent, en
effet, en situation de compenser partiellement les désavantages supportés
par l’entreprise du fait de sa localisation en milieu de faible densité.
Dans ce contexte, l’entrepreneur doit concilier les désirs du ménage
et les contraintes inhérentes à l’exploitation de l’entreprise. Des éléments
ou des choix favorables à la gestion de l’entreprise ont une incidence né­
gative sur la vie familiale ou les loisirs de l’entrepreneur. Des choix plus
favorables à la vie privée entraîneront des répercutions négatives pour l’ex­
ploitation de l’entreprise. D’autres induiront une double incidence positive
ou négative pour le ménage de l’entrepreneur et pour l’entreprise. Il s’agit
alors, dans le cas des petites entreprises en milieu rural, d’abonder vers un
raisonnement en termes de ménages d’entrepreneurs ruraux plutôt que se
limiter à la notion d’entreprise rurale.
La part du tertiaire, légèrement inférieure à la moyenne nationale
joue un rôle déterminant dans l’évolution des campagnes avec plus de 58 %
des actifs en 2005 et assure la majeure partie des nouveaux emplois. La do­
tation en commerces et services aux particuliers influence favorablement
la croissance démographique par le jeu des migrations autres que profes­
sionnelles. J.P. Laborie13 souligne que « les petites villes ont profité, depuis
les années 1970, de la contraction du tissu des services publics dans les
espaces ruraux. Ce niveau inférieur de la hiérarchie urbaine a renforcé sa
centralité en particulier dans les régions où les mailles du réseau urbain
sont lâches ». La réorganisation des cartes de la santé, de l’éducation, de la
justice et de l’armée dans ce contexte de réduction de l’emploi public et de
la concentration des services suscite de grandes inquiétudes sur le devenir
des fonctions des petites villes dans les espaces ruraux de faible densité.

12
Chevalier (P.), « Les nouveaux systèmes productifs ruraux », Information géographique, n°
70, 2006
13
Laborie (J.P.), « Les petites villes face aux fermetures des services publics », in Jean (Y.), Va­
nier (M.), « La France : aménager les territoires », Paris, A. Colin, 337p. 2008

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France: mutations des relations villes-campagnes de 1950 à 2008
Evolutions géographiques et débats théoriques

L’activité économique liée au tourisme structure de façon inégale les


dynamiques spatiales en fonction de leur accessibilité aux centres urbains
et selon la nature de la ressource valorisée :
• les espaces de proximité des métropoles et aires urbaines, caractéri­
sés par des loisirs résidentiels avec des courts séjours ;
• les espaces d’attractivité forte et de loisirs spécifiques (sites naturels,
patrimoine monumental..) souvent dotés d’équipements importants
– stations thermales, stations de haute montagne mais également les
parcs d’attraction et de séjour –;
• certains espaces ruraux en difficulté: la fermeture de villages de va­
cances illustre les crises connues par certaines zones de thermalis­
me comme dans le Massif central.

Cette fonction touristique est souvent complétée par une fonction


« de nature », une nature redécouverte et parfois mythifiée, qui apparaît
comme un atout important de ces espaces.
Ainsi, ces territoires dépendaient précédemment de l’évolution d’une
fonction économique dominante, l’agriculture; aujourd’hui, leur devenir
est lié à plusieurs fonctions économiques – agriculture, industrie, services,
tourisme, environnement –; cette multifonctionnalité favorise également la
diversité sociale des habitants résidant en milieu rural.

I.4 Importance des choix de résidence : forte influence des représentations


de la ville et de la campagne

Au cours des années 1950, la population active habitait à proximité


de son lieu de travail entraînant une forte relation entre la localisation de
l’emploi et la population résidente. En 2006, les actifs sont mobiles avec la
séparation croissante entre les lieux de travail, de plus en plus concentrés,
et les lieux d’habitat de plus en plus diffus. Ce divorce s’est creusé depuis 20
ans, accentuant le phénomène de renouvellement des populations, inégal
dans l’espace et dans le temps, mais la logique résidentielle devient domi­
nante par rapport à la logique de production; les activités productives el­
les-mêmes sont de plus en plus induites par l’évolution de l’habitat. L’attrait
des espaces ruraux repose sur des facteurs économiques – faible coût du
foncier, du bâti, de la pression fiscale –, une plus grande facilité de dépla­
cements et sur des facteurs psychosociologiques.
Depuis la fin des années soixante, les changements de perception
de la ville et de la campagne influent sur le choix des ménages avec,
d’une part, «  la crise  » de la ville, lieu d’oppression, saturée, polluée,
inhumaine, bruyante, congestionnée... et, d’autre part, le fait que soit
associé aux espaces ruraux les valeurs de tradition, écologie, authenti­
cité, nature, qualité de la vie, convivialité, solidarité. Cette représenta­

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tion dichotomique a été renforcée depuis quelques années par ce qu’il


est convenu d’appeler la « crise des banlieues ». Dans une civilisation ur­
baine, cette mythification de la ruralité donne l’impression d’un retour
aux racines, dans une France à demi – rurale en 1945. Les ménages effec­
tuent leurs choix en intégrant également l’accessibilité aux équipements
et aux services publics et privés, en particulier les équipements scolaires.
La mobilité est devenue une caractéristique des ruraux : mobilité quoti­
dienne entre le lieu d’habitat et le lieu de travail, mobilité hebdomadaire
avec la bi-appartenance résidentielle, mobilités touristiques favorisées
par le développement du temps libre, mobilité variable selon les âges de
la vie et le genre.

Nouvelles mobilités des populations dans le Massif central14

Le Massif central, loin des aires métropolitaines, caractérisé


par de faibles densités et une population vieillie, connaît après un
siècle d’exode un flux de nouveaux habitants qui s’installent dans
« l’espace rural isolé » tel qu’il est définit par l’INSEE.
Les nouveaux habitants représentent un apport significatif pour
les communes ( 150 nouveaux venus sur cinq ans dans un canton de
2 000 personnes), surtout des jeunes couples possédant un niveau de
formation supérieur à celui des « locaux ». Ces nouveaux habitants
changent souvent d’emploi ou d’activité lors de leur installation à la
campagne. L’éventail de leurs profils s’est largement ouvert : à l’instal­
lation traditionnelle des retraités s’ajoutent des actifs venant habiter
avec un projet économique – reprise avec modernisation d’une acti­
vité existante, création de nouvelles activités, essentiellement dans le
secteur tertiaire –. Sauf exception, les populations fragilisées, voire
marginalisées représentent un faible pourcentage des nouveaux ha­
bitants, même si certaines localisations en réseaux expliquent des re­
groupements parfois conséquents de personnes en difficultés écono­
miques. Cette marginalité est parfois subie, liée au repli économique
des activités dans certains espaces ruraux et d’autres choisissent cet­
te marginalité en s’installant à la campagne. Ce flux est également
alimenté par le développement d’une migration nord-nord, entre les
pays d’Europe du Nord et les espaces ruraux de faibles densités, re­
cherchés pour leur cadre de vie en particulier la qualité paysagère.
Cette migration est organisée par les réseaux d’agences immobilières

14
Cognard (F.), Rieutort (L.), « Nouvelles mobilités des populations et nouveaux territoires ru­
raux dans le massif central français  », colloque «  Rural-urbain  : nouveaux liens, nouvelles
frontières », Poitiers, juin 2003.

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France: mutations des relations villes-campagnes de 1950 à 2008
Evolutions géographiques et débats théoriques

spécialisées, par les réseaux familiaux et professionnels et facilitée par


la multiplication des relations aériennes à partir des petits aéroports
des villes chef-lieu de département.
Jusque dans les années 1990, les mobilités résidentielles
étaient liées à l’évolution de la localisation de l’emploi, expliquant
le processus séculaire d’exode rural. Depuis, « ces mobilités résiden­
tielles s’expliquent par un projet de vie global et pas simplement par
un choix strictement professionnel, projet construit par des facteurs
à la fois répulsifs et attractifs, souvent alimentés par un rejet de la
ville, quelle que soit la dimension de celle-ci alors que les campagnes
apparaissent porteuses d’avantages comparatifs, d’aménités et de re­
présentations positives, souvent idéalisées15 ».
Cette arrivée de nouveaux habitants favorise des tensions et par­
fois des affrontements plus ou moins larvés à partir de trois thèmes :
• l’accès au foncier bâti ou non et la maîtrise de l’usage de la terre ;
• les conflits d’usage entre ruraux «  autochtones et nouveaux
arrivants ayant une représentation plus urbaine de l’usage de
la campagne, par le souci de la valorisation du patrimoine (ar­
chitecture, paysages, savoir-faire) ;
• le contrôle associatif et politique de cet espace. Ces nouveaux
habitants participent à la multiplication des territorialités
des ruraux, articulant de façon nouvelle les liens entre ville
et campagne, créant de nouveaux réseaux, à d’autres échelles,
du local à l’européen.

I.5 Bouleversement du socle culturel


La terre a longtemps été le cadre du travail, des relations, de la pro­
duction : les principales ressources provenaient de l’exploitation du sol et
du sous-sol. A ces terroirs productifs et nourriciers, se substituent de nou­
velles fonctions et de nouvelles images : un espace rural synonyme de lieu
de résidence, de loisirs, de détente, en complément d’un lieu d’emploi, de
création de richesses. Traditionnellement, chaque société locale était pour­
vue d’une culture spécifique, d’un patois, de coutumes, de relations de voi­
sinages, d’une vie collective très fortement influencée par les agriculteurs,
homogénéisant ces communautés. Cette relative uniformité des compor­
tements variait par micro-région, selon la diversité des systèmes agraires :
cela permettait une organisation simple des services, qui étaient localisés
dans chaque commune selon un principe de proximité géographique.

15
Hervieu (B.), Viard (J.), 1996, « Au bonheur des campagnes », Editions de l’Aube, 155 p.

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Depuis cette période, les mutations démographiques, fonctionnelles


et culturelles16 ont bouleversé les situations spatiales et sociales des campa­
gnes entraînant une grande diversité géographique. L’éclatement des socié­
tés rurales, au cours des dernières décennies, affecte le sentiment d’identifi­
cation et l’identité locale. L’activité est devenue immatérielle: le rapport aux
différents socles sur lesquels s’édifient les sociétés humaines – en particulier
la terre – devient lointain, bouleversant les repères des populations rurales.

II. Diversité géographique et développement inégal


II.I. Huit configurations spatiales
En 1996, l’Institut National de la Statistique et des Etudes Economi­
ques (INSEE) a redéfinit « une nouvelle approche territoriale de la ville17»
par la délimitation en zonage en aires urbaines afin de disposer « d’un cadre
susceptible de rendre compte de l’influence des villes en définissant l’espace
à dominante urbaine …le territoire de la France métropolitaine est scindé en
deux grands espaces : l’espace à dominante urbaine et l’espace à dominante
rurale18». Cette nouvelle nomenclature spatiale permet de différencier les
aires urbaines et les communes multipolarisées soit 13 200 communes et les
23 000 communes constituant l’espace à dominante rurale.

L’espace à dominante rurale : l’ensemble des communes ou


petites unités urbaines n’appartenant pas à l’espace à dominante ur­
baine. Il comprend quatre types d’espaces :
• le rural sous faible influence urbaine (8 800 communes), 20 % ou
plus des actifs résidents vont travailler dans une aire urbaine ;
• 335 pôles ruraux (594 communes) ayant 2 000 emplois ou plus
et dont le nombre d’empois est supérieur au nombre d’actifs
résidents ;
• la périphérie des pôles ruraux (2 935 communes) dont 20 % ou
plus des actifs résidents vont travailler dans un pôle rural ;
• le rural isolé (10 918 communes) n’étant ni sous influence ur­
baine, ni à la périphérie des pôles ruraux.

Source : Insee, Définition du Zonage en Aire Urbaines

16
Jean (Y.), « Mutations des espaces ruraux français et écoles », pp. 56-67, Actes du symposium
sur la ruralité et le développement des petites collectivités, 9 et 10 août 1997, Université du
Québec en Abitibi-Témiscamingue, Ed. Chaire Desjardin.
17
Le Jeannic (Th.), 1996, « Une nouvelle approche territoriale de la ville », Economie et Statis­
tique, n° 294-295, pp. 25-45.
18
Le Jeannic (Th.), 1996, op.cité

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France: mutations des relations villes-campagnes de 1950 à 2008
Evolutions géographiques et débats théoriques

Du rapport de la Datar émergent trois France rurales  : «  les cam­


pagnes des villes, les campagnes les plus fragiles et les nouvelles campa­
gnes19». Chaque groupe est composé de plusieurs sous-ensembles formant
huit types de configurations géographiques.

1. les campagnes des villes regroupent 750 cantons en croissance


démographique de 1990 à 1999 mais sont composées de deux catégories :
• le rural périurbain (10% des cantons ruraux) ou domine la fonction
résidentielle : la densité de population est élevée (195 habitants au
km2), les actifs travaillent dans l’aire urbaine proche et l’emploi agri­
cole (2%) comme la population ouvrière (23% des actifs) sont moins
représentés que dans les autres espaces ruraux. Cet espace est sur­
tout composé de familles avec enfants, l’arrivée d’une population re­
lativement jeune conforte cette particularité ;
• l’espace rural dense, en croissance démographique grâce au solde
naturel et au solde migratoire, résidentiel et productif représente
500 cantons. Ce nouvel espace périurbain, moins dense que le précé­
dent (66 habitants au km2) constitue la seconde couronne périurbai­
ne des aires agglomérations, formant souvent un continuum comme
dans l’Ouest ou en Alsace. Ces campagnes se développent autour des
petites villes rurales. L’emploi agricole est plus important que pour
le premier type (8% des actifs) comme en Île-de-France ou en Picar­
die ; l’emploi industriel structure également l’emploi (34% des actifs
sont ouvriers) ;

2. les nouvelles campagnes aux fonctions productives diversifiées


valorisent la fonction résidentielle et bénéficient du développement de la
mobilité et de la multi-appartenance spatiale. Ce type comprend :
• le rural à attractivité touristique composé de 250 cantons, carac­
térisés par un solde migratoire très positif lié à la qualité du cadre
de vie et à l’héliotropisme. Ces cantons sont localisés sur les littoraux
et le long des fleuves. De densité moyenne (61 habitants au km2) cet
espace attire des jeunes actifs et surtout des retraités, ménages fran­
çais ou d’origine étrangère (anglais, hollandais) ;
• une quarantaine de cantons localisés dans les Massifs montagneux
des Alpes et des Pyrénées, où domine l’économie touristique valori­
sant les aspects naturels de ces espaces. Le pourcentage de résiden­
ces secondaires est élevé et l’agriculture contribue à la valorisation
d’aménités paysagères et à la prévention des risques naturels ;

19
Datar, 2003, op.cité.

114

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• parmi ce type, le rapport inclut « les espaces ruraux à la croisée des


chemins20» regroupant deux situations  : d’une part, les espaces en
transition, 500 cantons, marqués par le poids de l’agriculture avec
17% des emplois, une industrie structurée par l’agroalimentaire et
un développement de la tertiarisation. La dynamique démographi­
que est positive mais faible, obtenue par un flux de nouveaux habi­
tants qui compense le déficit naturel. La seconde configuration, celle
des petites villes regroupe 350 cantons. Elles structurent l’armature
de l’espace rural, leurs trajectoires sont liées à leurs spécialisations
en particulier au cours des années 1960-1980. La plupart connais­
sent une désindustrialisation qui les fragilise, baisse de l’emploi in­
dustriel faiblement compensé par le développement des activités ter­
tiaires. Le taux de chômage y est souvent élevé et l’accroissement de
population faible. Certaines de ces villes structurent des systèmes
productifs locaux (Cholet, Thiers, Figeac, Oyonnax par exemple).

3. les campagnes les plus fragiles marquées par la diminution de la


population et les difficultés économiques. Elles représentent un tiers des
campagnes avec près de 800 cantons et elles cumulent trois handicaps  :
la faible densité, la mono-activité héritée de la première révolution indus­
trielle, en crise, et une baisse du nombre d’habitants. Deux ensembles sont
distingués :
• des espaces vieillis et de faible densité à dominante agricole soit un
peu moins de 500 cantons localisés dans les zones de moyenne mon­
tagne du Massif Central ou des piémonts, en Bretagne centrale ou de
façon plus dispersée en Normandie, Champagne-Ardennes ou Bour­
gogne. Le solde migratoire légèrement positif ne compense pas le
déficit naturel et ne réduit pas le vieillissement de ces espaces. Les
difficultés économiques caractérisent l’agriculture et l’industrie lo­
cale dégageant de faibles revenus pour les ménages ;
• des espaces ruraux ouvriers et traditionnels, (300 cantons) en déclin,
localisés au nord d’une ligne Le Havre – Strasbourg. Cette campagne
ouvrière (2 actifs sur 5 sont ouvriers) connaît un déclin industriel et
un fort taux de chômage. La densité est élevée avec 88 habitants au
km2 ce qui peut constituer un atout.
Cette typologie souligne la très grande diversité des trajectoires spa­
tiales et fonctionnelles des espaces ruraux. De nombreuses autres
typologies ont été élaborées par des géographes ou des économistes
depuis le début des années 1990 :

20
Datar, 2003, op.cité, p.24.

115

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France: mutations des relations villes-campagnes de 1950 à 2008
Evolutions géographiques et débats théoriques

• B. Kayser21 évoque quatre types d’espaces ruraux : la troisième cou­


ronne périurbaine, éloignée des villes, où s’affrontent l’urbanisation
et l’agriculture, un espace marqué par une économie agricole pro­
ductive et professionnelle, l’espace rural appauvri, marginal et dis­
ponible et le quatrième type caractérisé par l’implantation d’acti­
vités de service urbain pour les loisirs, le tourisme, les activités de
santé soit un espace essentiellement utilisé par les urbains ;
• J. Renard22 distingue  des campagnes résidentielles à proximité des
villes, des campagnes ouvrières, des campagnes touristiques et enfin
des campagnes surtout agricoles associant exploitants et travailleurs
des industries agro-alimentaires des bourgs et petites villes ;
• en Rhône-Alpes, F. Bel et F. Pernet23 séparent les espaces aux dyna­
miques industrielles et urbaines de ceux aux dynamiques agro-in­
dustrielles ou aux dynamiques de marginalisation ;
• à partir des évolutions de population, des emplois et des activités, B.
Schmitt24 précise la diversité des trajectoires des bassins ruraux :  cer­
tains sont en évolution positive sous les effets d’une croissance dé­
mographique non exclusivement liée aux évolutions d’emploi, d’un
développement d’activités récréatives rendu possible par la mobili­
sation d’aménités rurales et d’un certain développement industriel ;
les bassins ruraux sous influence urbaine évoluent dans une confi­
guration qui allie une dynamique propre et une dynamique induite
par l’influence de la ville ; en fin de compte, moins de la moitié des
bassins ruraux étudiés seraient en récession.

Ces différentes typologies illustrent toutes des dynamiques démo­


graphiques et économiques contrastées, liées aux évolutions de l’activité
agricole en régression, à l’affirmation du poids des villes et souvent à une
plus grande dépendance vis-à-vis de l’emploi urbain, à l’influence croissan­
te et discriminante de la fonction résidentielle et à la tertiarisation inégale
des activités. Elles mettent en évidence la complexité des relations entre les
espaces urbains et ruraux à partir de focales différentes, valorisant soit la

21
Kayser (B.), 1990,  « La renaissance rurale, sociologie des campagnes du monde occidental » ,
A. Colin, 316 pages.
Kayser (B.) 1990,  « Le nouveau système des relations villes-campagnes » , Géographie, entre
espace et développement, Toulouse, Presses Universitaires du Mirail.
22
Renard (J.), 1996, « La France, Agricultures et campagnes dans le monde », textes rassemblés
par Bonnamour (J.,) SEDES, p. 51-83.
23
Bel (F.), Pernet (F.), 1990,  « Différenciation de l’espace agro-rural : le cas de Rhône-Alpes »,
INRA-ESR, Grenoble.
24
Schmitt (B.), 1996, «Avantages comparatifs, dynamiques de population et d’emploi des espaces
ruraux », RERU, n°2, p. 363-383. 

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fonction résidentielle, soit les migrations alternantes, soit les dynamiques


agro-industrielles, soit les avantages comparatifs des milieux ruraux.

II.2 Diversité des formes d’organisation spatiales


Cette diversité des fonctions des configurations fonctionnelles des
espaces ruraux doit être complétée par l’analyse de la diversité d’organisa­
tion spatiale des différents éléments structurants l’espace.
Concernant les bourgs-centres qui organisent l’armature de l’espace
rural, V. Jousseaume25 repère, pour la Loire-Atlantique, quatre situations :
• un premier groupe de 7 bourgs-centres, dont le niveau d’équipement
est très supérieur à la moyenne, tant en matière de services que d’of­
fre commerciale. Ils possèdent deux supermarchés, au moins trois
grandes surfaces spécialisées dans le bricolage, le jardinage, les vê­
tements, l’électroménager ou le meuble, entre trente et quarante ma­
gasins concernant l’équipement de la personne (vêtements, chaussu­
res, opticiens…), de nombreuses banques dont celles qui ne sont pas
mutualistes, des services de santé (laboratoire d’analyses médica­
les, médecins-spécialistes) mais les services administratifs sont peu
remarquables. En matière d’enseignement, le lycée d’enseignement
général ou technique est présent ;
• dans le deuxième groupe composé de 7 cas, la rente de situation du
chef-lieu de canton reste forte mais avec une offre marchande plus
faible que précédemment. Leur niveau administratif est classique
avec une gendarmerie, une perception, une antenne de la Sécurité
Sociale ; l’offre scolaire se compose, comme pour le premier type, de
deux collèges, l’un public et l’autre privé (caractéristique de certains
départements de l’Ouest de la France) et souvent d’un lycée d’ensei­
gnement agricole ou d’un lycée professionnel. Les services de santé
se distinguent par l’absence de spécialistes mais chacun possède un
pédicure-podologue et un orthophoniste. L’offre marchande se limi­
te à un seul supermarché et une dizaine de commerces alimentaires
de détail;  l’habillement s’essouffle. Les marqueurs sont le magasin
d’optique, de chaussures, l’institut de beauté, le pressing, l’horloge­
rie-bijouterie ;
• le troisième groupe avec 10 cas, se différencie du second par la fai­
blesse accentuée de l’offre commerciale. Le niveau de services publics
semblable au second groupe dispose de services marchands moins
fréquents  : deux banques mutualistes, deux agences d’assurance et
une étude notariale. Les services de santé de base sont représentés

25
Jousseaume (V)., « L’Ombre d’une métropole. Les bourgs-centres de Loire-Atlantique », PUR,
209p., 1998

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France: mutations des relations villes-campagnes de 1950 à 2008
Evolutions géographiques et débats théoriques

avec un cabinet médical et un cabinet dentaire, un kinésithérapeute,


un centre de soins infirmiers, une pharmacie, un service d’ambulan­
ce et une maison de retraite. Il y a rarement un supermarché et une
moindre diversité de l’offre alimentaire ou vestimentaire ;
• les 9 communes du groupe 4 ne sont pas des chefs-lieux de cantons
mais leur population est semblable à celle du groupe précédent. La
césure s’explique par la faiblesse des services tertiaires : une agence
bancaire et une d’assurances, l’étude notariale fait souvent défaut.
Les services sanitaires fondamentaux et l’équipement des ménages
sont assurés.

Ainsi, selon l’histoire du bourg-centre, sa localisation, la situation


des communes environnantes, chaque bourg-centre structure de façon
spécifique les flux de population selon l’équipement en services publics, en
offre marchande, en services privés…renforçant la diversité fonctionnelle
des espaces ruraux.
Notons également que le terme de « commune rurale » englobe des
situations fort diverses, des vastes communes de l’Ouest de 5 à 10 000 hec­
tares, au peuplement dispersé, avec des gros bourgs proches de 1 000 habi­
tants, de la taille d’un chef-lieu de canton dans l’Est, ou les communes sont
composées parfois de quelques dizaines de personnes sur 300 hectares ; des
communes à tradition agricole ou celles influencées par l’industrie, celles
structurées par la forêt ou par le tourisme ; celles situées dans des aires rura­
les dynamiques et celles appartenant à des aires aux évolutions fragiles.
Cette diversité géographique rend difficile une organisation norma­
tive et uniforme des services publics pour les espaces ruraux ; elle invite à
réfléchir à la mise en place d’organisations qui « collent » bien aux terri­
toires en fonction de leurs spécificités. Cette mise en œuvre nécessiterait,
outre une volonté de la part de l’Etat, la réalisation de diagnostics afin de
mieux connaître la réalité spatiale et sociale ; or l’Etat a souvent tendance
à plaquer un schéma d’organisation type, quelle que soit la configuration
spatiale, et quel que soit le service concerné.
Les campagnes françaises sont marquées par leur multifonctionnalité
héritée, séculaire. Elles ont longtemps été des campagnes composées d’arti­
sans ruraux, de petites entreprises à côté des activités agricoles en relation
avec le réseau urbain ancien, dense, hiérarchisé : les campagnes se sont dé­
veloppées, de façon inégale, selon leur degré d’intégration au marché urbain.
La ville était le lieu des investissements fonciers pour les paysans qui déga­
geaient un surplus financier, de la fin du XIXème siècle au XXème siècle,
mais c’était et c’est toujours le lieu d’écoulement des produits, qu’ils soient
agricoles, artisanaux ou industriels, c’est enfin un lieu de loisirs.
Pour la première fois depuis des siècles, la campagne est attractive,
revitalisée démographiquement par la ville, créant de nouvelles circulations

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entre ville et campagne. Nous assistons à un renforcement des contrastes


entre les espaces ruraux en fonction de l’encadrement urbain et des rela­
tions inégales avec la ville, des aménités rurales et des avantages climati­
ques qui accentuent la diversité des dynamiques des sociétés locales.

III. Evolutions des modèles explicatifs


Les ruptures récentes de l’évolution des espaces ruraux alimentent
les pertes de repères des agriculteurs, des habitants, des acteurs locaux et
nationaux mais également parfois des universitaires. Les représentations
de la ruralité et de l’urbanité qui dominent dans les sphères politiques et
dans la société civile agissent sur les pratiques spatiales des individus, en
particulier pour leur choix de résidence et sur les politiques d’aménage­
ment du territoire. La complexification des dynamiques spatiales a favo­
risé, entre 1985 et 1995, l’existence, chez les géographes, de deux modèles
d’analyses qui évoluaient en parallèle : l’un insistait sur la « crise rurale 26 »
et l’autre mettait l’accent sur la « renaissance rurale27 ».

Des années 1950 aux années 1990 : opposition ville – campagne, continuum
urbain-rural ou renouveau rural

Nicole Mathieu28 rappelle que depuis les années 1950, plusieurs mo­
dèles explicatifs ont dominé pour analyser les transformations des espaces
ruraux et les relations spatiales villes – campagnes. Les années 50 sont do­
minées par une conception antagonique, contradictoire des rapports ville
– campagne, selon une conception hégélienne et marxiste de la ville et de
la campagne. La campagne était définie par la notion de milieu naturel,
support de la production agricole; la ville, milieu technique, échappait à la
nature, étant l’espace des activités industrielles et tertiaires. Ces deux en­
tités spécifiques, fortement clivées, symbolisées par le paysan et le citadin
entretenaient des relations asymétriques, la ville dominant la campagne.
L’opposition rural / urbain avec une relation antagonique dans les
années 1950, laisse la place au fil des années 1960, à un modèle dominant
reposant sur la fin du rural par l’urbanisation des campagnes. Lors de cette
période de très forte croissance du PIB mais également du niveau de vie
des ménages, l’extension des villes semble être une véritable loi du dévelop­
pement spatial mettant fin aux conceptions précédentes. Ce modèle repose
sur la notion de continuum urbain et permet d’analyser les processus de

26
Béteille (R.), 1994, “La crise rurale”, 127 p, Que Sais-je? PUF ; 1981, “La France du vide”,
316p., Paris, Litec
27
Kayser (B.), 1990, “La renaissance rurale”, 316 p., A. Colin ; 1993, “Naissance des nouvelles
campagnes”, 174 p;, Ed. De l’Aube ; 1994, “Pour une ruralité choisie”, 135p., Ed. De l’Aube
28
Mathieu (N.)., “La notion de rural et les rapports ville – campagne en France”, Economie
Rurale, mai-juin 1990, n° 197

119

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France: mutations des relations villes-campagnes de 1950 à 2008
Evolutions géographiques et débats théoriques

diffusion du mode de vie urbain dans les espaces ruraux. La seconde révo­
lution agricole et l’introduction du progrès technique à fort coefficient de
capital dans l’agriculture, accompagné du développement de l’emploi non
agricole réduit les différences mises en exergue lors de la décennie précé­
dente.
Ainsi, à la fin des années 1960, la pensée dominante repose sur la ra­
tionalisation économique29, la concentration et l’urbanisation des campa­
gnes ce qui devait entraîner leur disparition. Cette conception d’un espace
rural résiduel a abouti fort logiquement à une politique de normalisation
des services et, en particulier, au début du processus de fermeture des ser­
vices publics en milieu rural.
A nouveau, au cours des années 1970, les géographes mettent l’ac­
cent sur les relations de domination de la ville sur la campagne. Les campa­
gnes risquent la « marginalisation » la « dévitalisation », voire la « désertifi­
cation »30, certains auteurs utilisent le modèle explicatif centre / périphérie
qui domine concernant les rapports entre les pays développés et les pays
sous-développés pour analyser les relations entre la ville et la campagne.
La campagne, oubliée par les politiques publiques lors des années 1960 car
il s’agissait d’un espace résiduel en voie de disparition, va faire l’objet d’une
attention nouvelle au cours des années 1970 avec les politiques d’aménage­
ment rural et le soutien aux “zones rurales les plus défavorisées ». Le ren­
versement idéologique a influencé les décideurs publics. Au cours de cette
décennie, un incontestable renouveau des recherches rurales commence,
marqué par le passage de la géographie agraire à la géographie rurale. La
création de l’Association des Ruralistes Français, en 1974, symbolise cette
volonté de faire une nouvelle géographie rurale, reposant sur une double
interdisciplinarité, d’une part, entre sciences sociales et, d’autre part, entre
chercheurs et acteurs.
Les années 1980 jusqu’au milieu des années 1990, sont dominées
par la présence de deux systèmes explicatifs, diamétralement opposés31.
Les différentes publications concernant les campagnes révèlent cette oppo­
sition des termes utilisés, révélateurs des éléments du réel qui sont mis en
exergue et reflet d’une divergence profonde entre les deux conceptions des

29
Les années 1950-1960 sont dominées par la pensée classique de l’économie, puis les années
1970 – 1985, voient le développement d’un courant marxiste, qui déplace les débats théori­
ques concernant l’objet de l’économie rurale, vers l’étude des rapports sociaux dans la sphè­
re de production agricole. Lieu d’enjeux théoriques et politiques, l’économie rurale devient
une science sociale. Voir Jean (Y.), “Le point de vue de l’économiste : de l’économie agricole à
l’économie rurale”, dans “La société agricole de la Vienne aux XIXème et XXème siècles” sous la
direction de Chauvaud (F.),Geste éditions, 2001.
30
Numéro spécial de la revue Autrement en 1978.
31
Jean Y. 1997, “Analyse comparative des deux modèles explicatifs des évolutions des espaces
ruraux français”, Annales de géographe, n° 598, nov-déc., pp. 631-646, Armand Colin

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dynamiques rurales32. Dans son Que Sais-je33, Roger Béteille parle de crise
rurale et d’apparente croissance rurale, de déséquilibres démographique
accentués, de chômage et de marginalisation : il insiste sur l’ensemble des
éléments négatifs de l’évolution récente des espaces ruraux en soulignant
les difficultés rencontrées sur le plan démographique, économique et so­
cial; il met en exergue les éléments du réel qui déclinent, qui sont préoccu­
pants. Ce modèle reprend la conception dominante de la ruralité héritée de
la fin du XIXème siècle qui trouve son origine dans l’évolution singulière
des systèmes agraires et des espaces ruraux en France : l’exode qui débute
en 1846 et s’amplifie après 1860, sera plus rural qu’agricole, renforçant
ainsi le caractère paysan des territoires ruraux et l’analogie entre rural et
agricole jusque dans les années 1960. A l’opposé, Bernard Kayser parle de
renaissance rurale et de ruralité choisie, de reprise démographique confir­
mée et de recomposition démographique et sociale; il met l’accent sur les
éléments nouveaux des dynamiques rurales. Il n’ignore pas les facteurs de
crise et les contraintes macro-économiques mais il montre qu’il existe des
possibilités de développement en insistant sur les mutations liées, en parti­
culier, à l’arrivée de nouvelles activités économiques et de nouveaux habi­
tants. Parmi les difficultés rencontrées par ce modèle explicatif, il y a celle
liée au poids de l’histoire car le retournement de tendances est récent et
contredit l’évolution séculaire des relations inégales entre les villes et les
campagnes; ce modèle essaie d’appréhender la diversité des réalités spa­
tiales dans leur globalité, démarche toujours plus complexe à réaliser et à
faire prendre en compte qu’une analyse simple, antagonique, de domina­
tion d’un espace par un autre.
Cette opposition des termes révèle une conception totalement oppo­
sée de l’état des lieux des espaces ruraux français. Le premier modèle souli­
gne le retard et le sous-développement des campagnes à partir d’une analyse
qui s’appuie sur une comparaison très économiste, entre les espaces ruraux
et le reste du pays pour montrer le décalage de richesse existant. L’ensemble
des difficultés économiques et sociales rencontrées dans les espaces ruraux
sont développées mais sans souligner s’il s’agit de spécificités de ces espa­
ces ou de problèmes de société. Ce modèle explicatif est à rapprocher des
anciennes analyses du sous-développement qui illustraient le retard des so­
ciétés du Tiers Monde par rapport au développement des pays de l’O.C.D.E.
De la même façon, nous sommes en présence d’une analyse illustrant « le
retard » des sociétés rurales face à la modernité qui serait urbaine.

32
N.Mathieu souligne à juste titre que les mots géographiques ont un voire plusieurs sens, am­
biguïté des mots soulignée en s’interrogeant « comment utiliser des mots qui ont à la fois une
valeur scientifique permettant de classer, de découper...mais aussi une clarté idéologique ou
politique », dans Beteille (R.), Montagne-Villette (S.), (Textes rassemblés par), 1995, « Le
« rural profond » français », SEDES,166p.
33
Béteille (R.), 1994, Que Sais-je

121

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France: mutations des relations villes-campagnes de 1950 à 2008
Evolutions géographiques et débats théoriques

Pour le second courant de pensée, l’accent est mis sur la diversité de


la réalité territoriale : les auteurs parlent de l’heureuse diversité, de l’hété­
rogénéité des régions agricoles, des configurations démographiques régio­
nales très contrastées. Ils ont le souci de cerner les territoires qui connais­
sent des difficultés en particulier démographiques mais en précisant leur
importance spatiale (17% du territoire) et en n’oubliant pas qu’il peut y
avoir une diminution de population et des innovations sociales et/ou éco­
nomiques. Le phénomène de recomposition sociale est largement souligné
en relation avec la dispersion de l’habitat et l’importance des dynamiques
résidentielles dans l’évolution des espaces ruraux. Il ne s’agit plus ici de
faire un simple constat à partir d’indicateurs mais d’étudier les processus
d’évolutions et les facteurs explicatifs des dynamiques spatiales. Les mul­
tiples fonctions économiques des espaces ruraux sont abordées, tant les
questions agricoles et la maîtrise de l’espace que les dynamiques industriel­
les, touristiques ou résidentielles.
Ces deux modèles d’analyses se différencient de manière fondamen­
tale sur la façon de concevoir les transformations des campagnes dans leurs
relations aux villes. Pour le premier système explicatif, c’est la conception
antagonique qui prévaut, avec une relation de domination de l’urbain sur
le rural. Cette conception reprend l’analyse classique du rapport ville / cam­
pagne, à savoir une relation contradictoire, d’exploitation. Il est question
d’un “espace rural de plus en plus dépendant, mis sous tutelle par l’Europe
et l’Etat” : d’une société rurale dépendante de l’urbain. Pour le second cou­
rant d’analyse, il n’y a pas d’observation des espaces ruraux en soi mais
dans leurs relations complémentaires et contradictoires avec les espaces
urbains; la dialectique local / global participe à structurer l’analyse. L’ob­
jectif est de favoriser l’interaction, la complémentarité des espaces ruraux
et urbains proches. La complémentarité s’entend comme l’introduction de
critères qualitatifs dans la logique d’équilibre quantitatif entre les villes
pour éviter les processus de concentration en favorisant le développement
des campagnes. Il paraît nécessaire d’aborder des politiques d’association
autour de projets entre villes et campagnes.
Ce modèle privilégie la diversité des territoires et la complémenta­
rité des relations villes / campagnes en fonction des projets des acteurs lo­
caux. A l’hétérogénéité des modes de vie des habitants des espaces ruraux
et aux mobilités multiples34 correspond une hétérogénéité des espaces pra­

34
Cette mobilité multiple ne concerne pas tous les habitants des espaces ruraux de façon
semblable : certains habitants, les pauvres, ont comme espace de vie souvent seulement leur
maison et pas le village, certains salariés, agriculteurs, artisans ...ont comme espace de vie le
village ou les villages proches, d’autres, appartenant aux mêmes catégories socio profession­
nelles, dont l’épouse ou la compagne travaille ont un espace de vie élargi à la petite ville ou
la ville proche ; d’autres, cadres, résidents secondaires ont un espace de vie élargi, du village
aux villes, aux autres pays.

122

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tiqués, de la maison à la ville en passant par le village ou des espaces plus


éloignés. A la proximité physique se superpose de nouveaux espaces liés à
la mobilité; cela signifie une approche par l’individu, la quotidienneté et
une analyse qui s’insère dans d’autres spatialités. Cliver les territoires avec
des critères traditionnels ne permet pas de prendre en compte cette com­
plexité territoriale, l’imbrication du global au local.
Depuis le milieu des années 1990, les évolutions démographiques ont
participé à mettre un terme à l’utilisation du premier modèle explicatif. En
effet, ce dernier était contredit par les résultats successifs des recensements
de la population, qui ont conforté le fait que les flux migratoires sont posi­
tifs pour les espaces ruraux et que la recomposition sociale est une réalité
incontournable, même si elle est inégale selon les espaces. Lors des années
1990, un nouveau modèle domine, le rural se recharge de la notion de na­
ture, qui n’est plus le simple support de l’activité agricole comme dans les
années 1950 mais une nature pluridimensionnelle qui articule l’écosystème
avec les usages du sol, en lien avec la montée des approches environnemen­
tales. La notion de paysage conduit à une esthétique de la ruralité, vue com­
me un paysage et un patrimoine à préserver, à labelliser car c’est un bien
collectif. Cette conception renvoie à un mode de vie, un mode d’habiter sin­
gulier, lieu de renaissance du lien social mis à mal en ville.
Cependant, malgré le renouveau démographique rural, deux concep­
tions s’opposent à nouveau en géographie : d’une part, les auteurs qui met­
tent l’accent sur des campagnes  comme des figures singulières de l’ur­
bain35, d’un espace rural sous influence urbaine dont l’attraction urbaine
conduit à l’intégration et à terme la disparition de la ruralité du fait de la
généralisation des mobilités, de la pluri-appartenance résidentielle et de la
diffusion des modes de vies urbains et, d’autre part, ceux qui réaffirment
la spécificité de cet espace, articulé de façon nouvelle à la ville, mais dis­
posant de caractéristiques propres – faibles densités, habitat individuel,
dispersion de l’habitat, importance des petits producteurs, prégnance des
paysages –, modèle reposant sur la complémentarité entre les deux entités
villes et campagnes et régulé par des rationalités spécifiques et des façons
de penser le monde singulières.

Les approches récentes


Depuis dix ans, les travaux des géographes concernent surtout qua­
tre thèmes:
• la diversité des dynamiques spatiales rurales : les différentes typo­
logies, illustrent toutes des dynamiques démographiques et écono­
miques contrastées. Elles mettent en évidence la complexité des
relations entre les espaces urbains et ruraux à partir de focales diffé­

35
Lévy (J .), 2001, op .cité.

123

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France: mutations des relations villes-campagnes de 1950 à 2008
Evolutions géographiques et débats théoriques

rentes, valorisant soit la fonction résidentielle, soit les migrations al­


ternantes, soit les dynamiques agro-industrielles, soit les avantages
comparatifs des milieux ruraux;
• le second thème concerne le paysage et la nature en analysant les
conflits, les tensions, les frottements entre les pratiques agricoles et
l’environnement. Le renouveau rural et le développement de l’agri­
culture intensive entraînent une multiplication des conflits d’usages
entre différentes conceptions de la ruralité entre, d’une part, la repré­
sentation d’une campagne résidentielle, d’une campagne paysage et
d’autre part, celle d’une campagne simple espace de plaisance, de ré­
création et enfin, celle d’une campagne productive, source de matiè­
res premières, avec les bruits, et parfois les odeurs, liées aux activités
économiques. L’agriculture semble focaliser toutes les attentions des
associations de “riverains” alors que les questions industrielles font
rarement l’objet de manifestations associatives;
• deux autres questions sont abordées par les géographes, de façon
plus discrète : d’une part, l’étude de l’influence des produits du ter­
roir sur les dynamiques spatiales et sur l’évolution du rôle des agri­
culteurs dans les sociétés locales, et, d’autre part, l’observation des
relations rural – urbain à partir d’observatoires36.

La plupart des recherches concernent les dynamiques spatiales des


espaces ruraux mais trop peu de travaux abordent l’observation des prati­
ques et des représentations des ruraux (étude des espaces vécus, des espa­
ces appropriés, des territorialités). Le modèle d’analyse actuellement domi­
nant met l’accent sur l’observation des dynamiques rurales et des conflits
nés des différentes perceptions de la nature.

Questions en débat
Les relations villes-campagnes restent marquées par deux grands
modèles de lecture du territoire  : le premier met l’accent sur un espace
continu avec son centre et ses périphéries, ses frontières. Les politiques
d’aménagement confortent ce modèle organisationnel par la promotion
des «  pays  » et des communautés d’agglomérations. Les caractéristiques
naturelles sont souvent mises en scène pour identifier ces espaces d’action
publique. Ce modèle s’inscrit dans la tradition du modèle républicain fran­
çais, les villes sont nettement séparées des campagnes. La seconde concep­
tion valorise les réseaux, la mobilité, la circulation, l’échange.
36
On peut en particulier citer les recherches effectuées par l’observatoire des rapports rural/
urbain, mis en place en 1996 par le LADYSS, Dynamiques Sociales et Recomposition des
Espaces, Université de Paris X. Cet observatoire a l’ambition de mesurer et de qualifier les
temporalités du changement social afin de mieux comprendre les formes spécifiques des
nouvelles relations entre les catégories de rural et d’urbain.

124

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A. Bourdin37 souligne que dans cette seconde perspective, «  le jeu


des flux des réseaux et des pôles crée le territoire ». Selon une approche
diachronique, le passage à un nouveau paradigme implique l’abandon d’un
système fini, objet géographique bien délimité, que ce soit la ville ou la
campagne. De la centralité fondée sur le modèle centre – périphérie on doit
passer à un modèle appréhendant la mobilité, la multi-résidence, la multi-
activité. Les nouvelles territorialités brouillent les limites entre les villes et
les campagnes et redessinent de nouvelles relations, inégales selon les indi­
vidus, en relation avec leur statut, leur âge, leur genre, leur capital cognitif,
culturel, financier, d’autochtonie.
Il ne s’agit pas ici de considérer que dans ce vieux couple ville-cam­
pagne, la métropolisation et la mondialisation conduiraient à la dispari­
tion du rural, forme spécifique, gradient de l’urbain. Le rural comme l’ur­
bain continuent de signifier des rapports singuliers aux lieux, à l’autre mais
ce qui importe, ce sont les relations, les réseaux entre les habitants de ces
espaces, singularité liée en partie aux contextes régionaux (sans évoquer
les contextes nationaux).
Ces deux conceptions du territoire et donc de la ville et de la cam­
pagne nous invitent à réfléchir aux modes de représentations mobilisés.
Ainsi, B. Debarbieux38 rappelle que « dans notre civilisation moderne, la
peinture et la carte, ont beaucoup contribué à l’adhésion collective à cette
vision ordonnée du monde… la carte, doit une part de son efficacité cogni­
tive à sa capacité à rendre visible ces systèmes ordonnés d’objets géogra­
phiques » que sont la ville et la campagne.

Les approches récentes


Une nouvelle approche géographique mériterait d’être développée,
dont le point de départ serait l’analyse des itinéraires spatiaux et sociaux
des ruraux au fil de leur histoire de vie, en analysant leurs représentations
et leurs pratiques des lieux, après avoir choisi cinq ou six types d’espaces
ruraux représentatifs de la diversité socio-spatiale de la ruralité. Cette so­
cio-géographie globale permettrait d’éclairer les actuelles relations des ru­
raux entre eux et dans leurs relations avec les autres habitants d’espaces
différents. Cette approche pourrait privilégier les rapports aux lieux, ceux
de la quotidienneté comme la fréquentation de l’école, mais également
ceux qui sont fréquentés lors de responsabilité professionnelle, syndicale,
associative, politique ainsi que les lieux de loisirs, de vacances, complétée
par une approche diachronique, prenant en compte l’épaisseur historique
37
Bourdin (A.), « Flux et frontières sur les territoires métropolitains », pp. 45-53, in Arlaud (S.),
Jean (Y.), Royoux (D.), « Les relations rural – urbain. Nouveaux liens, nouvelles frontières »,
Presses Universitaires de Rennes, 506p., 2005
38
Debarbieux (B.), « Obsolescence ou actualité des objets géographiques modernes ? », pp. 33-
44, in Arlaud (SS.), Jean (Y.), Royoux (D.), op. cité, 2005

125

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France: mutations des relations villes-campagnes de 1950 à 2008
Evolutions géographiques et débats théoriques

des générations et des territoires, et par une approche compréhensive par


entretiens afin de mieux cerner les ajustements et les décalages entre les
pratiques des lieux, des hommes et les représentations. Il serait intéressant
de voir comment les catégories spatiales de rural et d’urbain, de ville et de
campagne font sens aujourd’hui. L’observation des lieux quotidiens, la di­
versité des articulations des rapports à la ville, le rôle du contexte spatial,
les rapports entre les générations, entre hommes et femmes, pourraient
nourrir de nouvelles recherches, étudiant les trajectoires socio-spatiales
des ruraux.

La ruralité : objet de débat


Les mobilités croissantes des ruraux et les interactions avec les espa­
ces urbains ne doivent pas conduire à penser que tous les comportements
seraient urbains. Cette affirmation est souvent développée à partir d’une
surestimation donnée à l’accroissement des mobilités dans une planète no­
made39  et au fait que les limites sont brouillées entre l’urbain et le rural.
Etre rural semble garder un sens spécifique : il s’agit d’une construc­
tion mentale, réelle et idéelle, nourrie par la perception de la campagne et
de la ville connue et pensée, structurée par un rapport concret, pratique
mais également symbolique, rêvé, à l’espace, à la nature, à l’autre. Avoir de
l’espace, dans la maison40 et à l’extérieur, que ce soit réel ou non, est perçu
comme un gage de qualité de vie à l’opposé de la ville caractérisée par la
promiscuité ; de même, le rapport à la nature, souvent mythifié, est pensé
en opposition à la ville qui serait sans nature. Concernant l’interconnais­
sance, il semble, à partir de l’analyse des espaces vécus des ruraux, que
c’est une caractéristique moins pertinente aujourd’hui pour les ruraux, du
fait de la grande diversité des rapports aux autres et aux lieux, qui va d’une
interconnaissance ténue, dense, à une quasi inexistence.
Il ne faut pas confondre l’observation différenciée des dynamiques
spatiales rurales, la diversité fonctionnelle des campagnes et la fin des par­
ticularités dans la façon de penser et d’être : l’on est en présence d’un subs­
trat réel et idéel commun, malgré des espaces vécus très différents selon les
individus selon qu’ils sont pauvres et seuls percevant parfois le rural com­
me un espace sans issue ce qui sera différent pour les salariés et petits pro­
ducteurs, pour lesquels la maison se prolonge dans le village qui est leur
espace de reconnaissance, et, enfin, les cadres, certains retraités, certains

39
Pour reprendre le titre du livre dirigé par Knafou (R.), 1998, « La planète nomade. Les mobi­
lités géographiques d’aujourd’hui », Belin, 247p.
40
Nécessité d’approfondir la manière dont l’espace est produit en étudiant le rapport en­
tre l’individu résidant à la campagne, la maison ou les « lieux domestiques » et les « hauts
lieux » pour reprendre la terminologie de Lussault (M.), 1996,  « L’Espace en actions. De la
dimension spatiale des politiques urbaines », Diplôme d’habilitation à diriger des recherches
en géographie, Tours, 296p. 

126

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Yves Jean

nouveaux habitants dont les espaces vécus sont multiples, de la maison à


la ville et au monde. Pour ces derniers, le village n’est pas toujours un lieu
fréquenté ou de façon très aléatoire . Les hommes et les femmes vivent et
pensent différemment les lieux, les formes de vie associatives, profession­
nelles, familiales mais à partir des points communs liés à l’espace et la na­
ture, selon des mises en intrigue complexes.
Cette spécificité rurale se traduit par des degrés d’urbanité très varia­
bles selon l’organisation spatiale du village, qu’il s’agisse d’un village-rue ou
d’un village organisé autour d’une place, selon la dispersion de l’habitat, la
vitalité de la vie associative, économique, selon les histoires des familles et
leurs relations ce qui conforte la diversité des situations pour les relations
de voisinage, plus ou moins distendues, et la diversité des histoires locales et
des effets de lieux qui peut masquer les points communs d’identification.
Les effets de lieux sont construits en relation avec des effets de terri­
toire, perçus comme une construction réelle et symbolique d’acteurs, ins­
crite dans le temps long et l’espace, créant une ambiance qui facilite ou
freine les initiatives individuelles et collectives et un développement local
inégal. L’on ne doit pas confondre l’observation de la petite fabrique des
territoires, pour reprendre l’expression de M. Vanier41, tels les communau­
tés de communes ou les «  pays  », liée aux jeux des acteurs à différentes
échelles, et l’observation fine des espaces vécus et des territorialités des ha­
bitants qui ne sont pas toujours mis en scène localement, recherches qui
doivent être approfondies.
Les notions de société locale, d’espace rural, de village, de  pays, sont
parfois interprétées comme homogénéisantes des relations sociales. Cette
construction est souvent élaborée grâce à l’utilisation d’indicateurs démo­
graphiques, économiques, sociaux et à l’utilisation de cartes qui reflètent
la cohérence de l’espace étudié. Si ces termes sont utilisés pour appréhen­
der les évolutions des espaces ruraux, il faut les penser comme des notions
reflétant une réalité plurielle, complexe, multiple, parfois conflictuelle et
dynamique.
Il y a trop souvent une confusion entre la description géographique
d’un espace dont on présente des caractéristiques communes et l’identité
locale qui serait, par conséquence homogène. Le village, la commune ru­
rale, le  pays  sont souvent pensés comme des espaces de cohésion sociale,
de communauté42 ; or ces notions ne peuvent être pertinentes que si leur

41
Vanier (M.),1997, « De l’industrie au territoire », Diplôme d’habilitation à diriger des recher­
ches, université de Lyon –II, 225p.
42
Certains travaux d’ethnologues confortent cette vision homogène du village, en élaborant
une typologie ; voir, par exemple, Sahuc P.(1995), qui parle de quatre types avec le modèle
I, chacun pour soi, le modèle II, Avec ceux du quartier, le modèle III, tous pour le village, le
modèle IV, se rapproche des villages fantômes, dans « Du bureau de poste à un poste d’obser­
vation des mutations rurales »,Economie Rurale, n°229, pp. 22-29.

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France: mutations des relations villes-campagnes de 1950 à 2008
Evolutions géographiques et débats théoriques

définition reflète la diversité des comportements, l’hétérogénéité des rap­


ports aux autres, à l’espace, aux territoires.
Depuis les années 1950, les campagnes françaises connaissent de
rapides mutations tant démographiques – arrivée de nouveaux habitants
et mobilités accrues – que fonctionnelles avec un rôle discriminant lié à la
localisation et à la qualité des services et des activités tertiaires. Nous as­
sistons à une revalorisation de l’espace rural comme milieu de vie avec le
retour à la campagne, à la montée des préoccupations environnementales
pour lesquelles la valorisation des paysages constitue un enjeu important,
à une revendication sociale des ruraux eux-mêmes pour proposer une or­
ganisation du territoire qui appréhende la spécificité de cet espace.

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“O campo e a cidade no Brasil do Passado” 1

Profa. Dra. Vanda Ueda


Programa de Pós-Graduação em Geografia e Departamento de Geografia – UFRGS

Escrever sobre o campo e a cidade no Brasil do passado não é tarefa­


fácil, ainda mais se formos pensar desde uma perspectiva da Geografia
Histórica. Sabemos que, as contradições existentes entre o campo e a cida­
de existem desde o surgimento das cidades. Ao mesmo tempo em que são
dicotômicas, elas se relacionam, ou seja, o campo e a cidade em determi­
nado período histórico se confundem. Portanto, é necessário existir o cam­
po e a cidade para que tenha uma simbiose.
Henry Lefebvre em seu livro De lo rural a lo urbano (1971) nos faz
refletir sobre a temática em especial sobre os significados, quando diz que
poucas questões são tão penosas (e insolúveis) como as relacionadas com
a prioridade e o uso das palavras e o acesso às idéias (...) sabemos que a
mesma idéia, com freqüência, surge em vários lugares de uma só vez (...)
as melhores idéias escapam muitas vezes de seus autores. Emigram para
fora do sistema (...) Caem no domínio público, na consciência social e se
tornam triviais.
O que quero dizer é que este texto será uma compilação de idéias,
com incertezas e interconexões, ou seja é uma relação dialética, cheia de
conflitos e em movimento, onde expresso o desejo e a necessidade de avan­

1
Texto produzido para a mesa “O campo e a cidade no Brasil do passado”, do 1º Simpósio
Nacional o Rural e o Urbano no Brasil – SINARUB, realizado de 08 e 09 de dezembro de
2006, na Universidade de São Paulo.

129

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“O campo e a cidade no Brasil do Passado”

çarmos na discussão da cidade e do campo, do urbano e do rural. Buscan­


do e proporcionando uma série de questões emergenciais, como as teorias,
os problemas e os conceitos.
Portanto, a dispersão e/ou junção das idéias neste texto pode ter
e ser aparente e superficial, mas buscamos uma reflexão que tenha um
centro teórico. Concordamos com Lefebvre quando analisa que a relação
campo-cidade é dialética, uma vez que existe uma oposição conflitual que
tem a tendência a extrapolar-se quando o tecido urbano re-absorve simul­
taneamente o antigo campo e a antiga cidade. Segundo o autor, a definição
da sociedade urbana vai acompanhada de uma lenta degradação e desapa­
rição do campo, dos camponeses, das vilas, assim como em um “estalo de
dedos”, pode acontecer a dispersão e a proliferação desmesurada da cidade
rumo as áreas rurais. Portanto nossa reflexão terá duas partes: uma que
versa sobre a(s) geografia(s) do passado e a outra sobre a relação cidade
campo, pensando que o tema nos oferece uma análise da paisagem, assim
como se expressa através de uma poética relação.

A(s) geografia(s) do passado


Para entender as relações entre o campo e a cidade no Brasil do
passado recorro a Geografia Histórica. Nossa intenção não é a de esgo­
tar as discussões sobre os significados, conceitos e usos e sim refletir
sobre a temática. Buscamos em discurso realizado por Carl O. Sauer,
em dezembro de 1940 para a Association of American Geographers, em
Baton Rouge, Louisiana, onde o mesmo nos indica alguns caminhos
para os estudos da Geografia Histórica. No texto Foreword to Histori­
cal Geography, publicado somente em janeiro de 1941, Sauer ressaltou
de poucos eram os geógrafos que trabalhavam com a Geografia numa
perspectiva histórica.
Salientamos que, os geógrafos foram aos poucos descobrindo que
poderiam acrescentar em suas pesquisas um recorte histórico, recons­
truindo a história, quer seja local, regional ou mundial sem esquecer da
dimensão espacial, social e cultural. O geógrafo histórico deve ser um
especialista e que não deve limitar-se a conhecer apenas a região na sua
aparência atual e sim reconhecer os traços fundamentais para entender
o passado.
Também chama a atenção para os caminhos a serem trilhados na
pesquisa em geografia histórica, ressaltando que o trabalho de campo em
geografia histórica2, exige um intenso trabalho e é importante para a pes­

2
Carl Sauer chama de trabalho de campo as pesquisas a serem realizadas nos arquivos e bi­
bliotecas. Onde ressalta que o mesmo é árduo e necessário para quem quer dedicar-se ao
trabalho com geografia histórica.

130

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Vanda Ueda

quisa. Acrescenta ainda, que um dos primeiros passos consiste na capaci­


dade de ler todos os documentos encontrados o que requer uma certa habi­
lidade e tempo. Pois muitas vezes, nem todos os documentos se encontram
em bom estado de preservação. Mesmo assim, se trata de uma área excep­
cional onde as fontes documentais nos oferecem uma grande parte dos da­
dos necessários para reconstruir os padrões geográficos da vida através de
etapas sucessivas de sua história. Enfim, a familiaridade e a busca de tais
registros, exigem muito tempo.
Mas, estes documentos nos proporcionam um encontro, por
exemplo, de uma área descrita há tempos atrás, e que podemos com­
parar os lugares e as atividades do passado com os do presente, vendo
onde se encontravam os objetos e as pessoas. Sauer assinalava que, ao
analisar tais documentos e em seguida realizar um trabalho de campo,
podemos localizar os lugares esquecidos, citando como exemplo, um lu­
gar onde a vida silvestre voltou a tomar possessão dos cenários da vida
ativa, para notar as migrações internas dos habitantes, para entender as
bases produtivas ou para observar onde se encontravam as moradias,
etc. Quando chegamos nessa etapa em que as investigações começam a
tomar forma, e descobrimos que os fatos do passado estão cada vez mas
claros e evidentes.
Neste sentido, podemos entender os contrastes atuais, constituindo
o que o autor chama de um verdadeiro descobrimento. Portanto pensar o
campo e a cidade no Brasil do passado é redescobrir e revisitar obras, his­
tórias de vida e perceber o quanto não valorizamos essa passagem do rural
ao urbano, tão pouco temos a percepção do campo e suas relações com a
cidade.
Na mesma direção, Capel (2000) destaca que a geografia histórica é
o estudo das geografias do passado, realizado sempre a partir de uma pers­
pectiva atual e com uma concepção da geografia atual. Neste sentido, não
tem nada a ver com a história da geografia (que estuda as concepções pas­
sadas da ciência), mas podem ter teorias geográficas e, que permite decidir
os referenciais mais adequados para o estudo do problema.
A diferença da geografia histórica com a história é muitas vezes difí­
cil de realizar. Pode se dizer que a geografia histórica é a história que pres­
ta atenção à dimensão espacial e que se incorpora as tradições de temas
e estudos realizados pelos geógrafos. Acrescenta ainda que é uma história
que está por fazer com os conhecimentos dos métodos e dos problemas da
geografia, e do ponto de vista geográfico. É evidente que o desenvolvimen­
to da geografia histórica constitui em um enriquecimento para a ciência
geográfica (Capel, 2000).
Muitos são os geógrafos que tem insistido que a compreensão do
presente necessita do passado. Neste sentido, buscamos através da poesia
a compreensão do passado para entendermos o presente.

131

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“O campo e a cidade no Brasil do Passado”

A poética relação entre o campo e cidade no passado


Para iniciarmos a discussão e observarmos as mudanças na paisa­
gem através da poética relação entre a cidade e o campo, recorri aos po­
emas de José Joaquim Cesário Verde3. Por que buscar inspiração em um
poeta e escritor português do Século XIX? Porque vai retratar em seus
poemas a dicotomia e/ou relação entre a cidade e o campo, demonstran­
do o cotidiano do Século XIX e todas as transformações que ocorridas no
início do Século XX, tão importante para entendermos o campo e a cidade
do passado
Neste sentido, Willians (1989:11) enfatizou que campo e cidade são
palavras muito poderosas, e isso não é de se estranhar, se aniquilarmos o
quanto elas representam na vivência das comunidades humanas. O ter­
mo inglês country pode significar tanto um país quanto campo: the coun­
try pode ser toda a sociedade ou só sua parte rural. Assinala ainda que, o
campo passou a ser associado a uma forma natural de vida e a cidade a
um centro de realizações e muitas vezes com associações negativas. Essas
associações foram realizadas, em geral, sem considerar a realidade em que
se vivia. Portanto, em diversos poemas de Cesário Verde, observamos que
existia uma preocupação social de intervir criticamente nos processos de
transformações entre a cidade e o campo.
Segundo Cesário Verde, a supremacia da cidade sobre o campo,
muitas vezes retratada por poetas e romancistas como algo superior e mo­
derno, não era real. Em O Sentimento dum Ocidental a cidade era expres­
sada de forma opressora e as pessoas agiam de maneira individualizada.
Como podemos observar: “Semelham-se a gaiolas, com viveiros, As edifica­
ções somente emadeiradas: Como morcegos, ao cair das badaladas, Saltam
de viga em viga os mestres carpinteiros”.
Assinala ainda que é na cidade que se propagam as violentas epi­
demias de cólera e febre amarela, “ E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados; Sombrios e espectrais recolhem os
soldados, Inflama-se um palácio em face de um casebre. E vai colocar que:
“Triste cidade! Eu temo que me avives Uma paixão defunta! Aos lampiões
distantes, Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes. Curvadas a sorrir às
montras dos ourives”.
As epidemias de cólera e febre amarela foram marcantes na vida do
autor e da população em geral dessa época. A falta de soluções aos proble­
mas urbanos, o incomodava e a cidade aparece como algo nefasto e cheio
de problemas e contradições. O que foi duramente criticado em seu poema
Nós escrito no verão de 1857, “(...) Foi quando em dois verões, seguidamen­

3
Poderiamos trabalhar com os romances de Machado de Assis, Aluisio de Azevedo, entre ou­
tros, mas fizemos a opção por apresentar os poemas de Cesário Verde.

132

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Vanda Ueda

te, a Febre. E o Cólera também andaram na cidade, Que esta população, com
um terror de lebre, Fugiu da capital como da tempestade. Ora meu pai, depois
das nossas vidas salvas, (Até então nós só tivéramos sarampo). Tantos nos
viu crescer entre uns montões de malvas Que ele ganhou por isso um grande
amor ao campo! Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga: O que se ou­
via sempre era o dobrar dos sinos; Mesmo no nosso prédio, os outros inqui­
linos Morreram todos. Nós salvámo-nos na fuga.(...) Sem canalizações, em
muitos burgos ermos, Secavam dejecções cobertas de mosqueiros. E os mé­
dicos, ao pé dos padres e coveiros, Os últimos fiéis, tremiam dos enfermos!
Uma iluminação a azeite de purgueira, e noite, amarelava os prédios maci­
lentos. Barricas de alcatrão ardiam; de maneira Que tinham tons d’inferno
outros arruamentos. (...).
No Brasil, Chalhoud (1996:61-62) analisou a Cidade Febril colocan­
do que a epidemia de cólera e febre amarela se propagou pela cidade do
Rio de Janeiro e seus arredores, vindas da Europa, especialmente de Por­
tugal. Estimativas indicaram que mais de um terço dos 266 mil habitantes
contraíram febre amarela no verão de 1849-50. Entre 1855-1856 uma de­
vastadora epidemia de cólera atingiu o Rio de Janeiro. Essas duas epide­
mias continuaram nos verões seguintes, assim como as outras. O mesmo
fenômeno foi destacado em outros poemas de Cesário Verde.
Percebemos que, para Cesário Verde, a cidade não havia um encanto
e sim, um cotidiano sem futuro e o campo ainda carregava algo de provin­
ciano. Ainda no poema NóS analisa que: “(...) Por isso, o chefe antigo e bom
da nossa casa, Triste de ouvir falar em órfãos e em viúvas, E em permanên­
cia olhando um horizonte em brasa: Não quis voltar senão depois das gran­
des chuvas; Ele, dum lado, via os filhos achacados, Um lívido flagelo e uma
moléstia horrenda! E via, do outro lado, eiras, lezírias, prados, E um salutar
refúgio e um lucro na vivenda! E o campo, desde então, segundo o que me
lembro, É todo o meu amor de todos estes anos! Nós vamos para lá; somos
provincianos, Desde o calor de Maio aos frios de Novembro!”.
Os poemas de Cesário Verde retratavam a cidade, cuja paisagem era
o da destruição, caótica e cinzenta. Que se revelava através da convivên­
cia, da urbanidade, de mitos e problemas. Estes retratados muitas vezes
de forma opaca e escura, do qual demonstrava toda a vulnerabilidade e
sofrimentos do autor. Em Na Cidade/A Débil, publicado em 1876, assinala
que: “nesta Babel tão velha e corruptora, tive intenções de oferecer-te o bra­
ço” (...) “ e quando deste esmola a um miserável, eu, que bebia cálices de ab­
sinto, mandei ir a garrafa, porque sinto que me tornas prestante, bom, sau­
dável”. E em outro trecho do poema Nós destaca que: “(...) Tínhamos nós
voltado à capital maldita, Eu vinha de polir isto tranqüilamente, Quando
nos sucedeu uma cruel desdita, Pois um de nós caiu, de súbito, doente. Uma
tuberculose abria-lhe cavernas! Dá-me rebate ainda o seu tossir profundo!E
eu sempre lembrarei, triste, as palavras ternas,Com que se despediu de todos

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“O campo e a cidade no Brasil do Passado”

e do mundo! Pobre rapaz robusto e cheio de futuro!Mas sei dum infortúnio


imenso como o seu!Viu o seu fim chegar como um medonho muro, E, sem
querer, aflito e atônito, morreu!... De tal maneira que hoje, eu desgostoso
e azedo.Com tanta crueldade e tantas injustiças, Se ainda trabalho é como
os presos no degredo,Com planos de vingança e idéias insubmissas. E ago­
ra, de tal modo a minha vida é dura,Tenho momentos maus, tão tristes, tão
perversos,Que sinto só desdém pela literatura, E até desprezo e esqueço os
meus amados versos!”.
A opacidade da cidade pode ser observada não só nos poemas de
Cesário Verde, mas em muitos romances e poemas do Século XIX e XX,
uma vez que existia um discurso higienista muito forte neste período. Em
que as classes pobres não eram vistas como perigosas, apenas porque ofe­
reciam problemas do trabalho e da manutenção da ordem pública, mas os
pobres ofereciam também perigo de contágio, através de uma metáfora da
doença contagiosa (Chalhoub, 1996:29).
A existência dos “indesejados” na cidade foi largamente difundida por
todo o mundo através de muitos projetos de renovação e modernização do
espaço urbano, como por exemplo em Porto Alegre do final do Século XX e
início do XX com a construção de grandes avenidas, cuja destruição e remo­
ção dos pobres promocionaram a mudança dos mesmos para bairros mais
distantes do centro e muitas vezes, em áreas insalubres (Ueda, 2006).
A paisagem da cidade foi completamente modificada e concorda­
mos com Pechman (2002: 204 e 205) que o urbano não é natural da cidade,
o urbano é uma invenção social da cidade (...) a opacidade da cidade nos
romances procura tornar visível o destino de seus habitantes, através da re­
velação, das conexões profundas e decisivas, que ligam tudo a todos.
Além disso, a cidade representava a idéia de que nela se encontra­
vam os que decidiam e mandavam. Era o poder e seus agentes, os homens
bons, os limpos de sangue e sem mácula de ofício mecânico, e a hierarquia
estamental de seus privilégios que definiam o modo de ver e conceber a ci­
dade e sua gente e nela o lugar de cada um (Martins,1992:7)
Segundo Ferrão (2000), as relações entre o campo e a cidade desta­
ca-se historicamente por quatros pontos em comuns. A função principal
do campo como produtor de alimentos; a agricultura como atividade eco­
nômica dominante; como um grupo social de referência, com comporta­
mentos e valores próprios, o modo de vida, etc... e a paisagem que modifica
as características naturais e reflete nas conquistas e equilíbrios das famí­
lias que vivem no campo. Esses quatros pontos podem ser vislumbrados
nos poemas e nos escritos de vários autores, em especial os que tinham a
preocupação em retratar o cotidiano e as mudanças ocorridas no campo
em função da expansão da cidade.
Pensando na dicotomia campo-cidade, assim como as suas relações,
para Cesário Verde o campo, ao contrário de muitos poetas de sua época

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Vanda Ueda

que o retratava como algo bucólico e paradisíaco, era um espaço real, con­
creto, autêntico e que lhe conferia liberdade.
Portanto, o “campo é um espaço de vitalidade, alegria, beleza e vida
saudável, enquanto que na cidade, o ambiente físico, cheio de contrastes,
apresenta ruas esburacadas, casas apalaçadas (habitadas pelos burgueses e
pelos ociosos), quintalórios velhos, edifícios cinzentos e sujos (...) O ambien­
te humano é caracterizado pelos calceteiros, cuja coluna nunca se endireita,
pelos padeiros cobertos de farinha, pelas vendeiras enfezadas, pelas engoma­
deiras tísicas, pelas burguesinhas” (... ).
É neste sentido que podemos reconhecer a capacidade de Cesário
Verde em trazer para a poesia o real cotidiano do homem da cidade e o
campo e vai oferecer ao poeta uma lição de vida multifacetada. Os cam­
poneses são retratados no seu trabalho diário, assim como os conflitos, as
contradições e processo migratório, comum em essa época, retratados em
um de seus poemas (...) “Mas nem tudo são descantes. Por esses longos ca­
minhos, Entre favais palpitantes. Há solos bravos, maninhos,Que expulsam
seus habitantes! É nesta quadra do amores. Que emigram os jornaleiros. Ga­
nhões e trabalhadores! Passam clans de forasteiros. Nas terras de lavradores.
Tal como existem mercados. Ou feiras, semanalmente, Para comprarmos os
gados,Assim há praças de gente. Pelos domingos calados!
Nos poemas transmite com objetividade e realismo de todas as suas
preocupações. Trata-se, pois, de uma visão concreta do campo e da terri­
torialização da paisagem e não somente de uma abstração da Natureza e
uma visão utópica do campo, vai além em suas preocupações inserindo o
cotidiano do campo de forma singular.
Segundo Mata (2006:18) a territorialização da paisagem, é o reco­
nhecimento que cada território se manifesta paisagisticamente em uma
fisionomia singular, dinâmica e em diversas imagens sociais. Isso faz da
paisagem um aspecto importante de qualidade de vida da população. Nes­
te sentido, a paisagem é, antes de qualquer coisa, resultado da relação sen­
sível da gente com o seu entorno percebido, cotidiano ou visitado. Por isso
mesmo, a paisagem é um elemento de afinidade e de identidade territorial
e explicita na materialidade de cada paisagem e em suas representações
sociais.
A paisagem da cidade é obscura e cinza, onde as pessoas são infeli­
zes e exploradas pelo sistema econômico. O campo era produtor de mer­
cadorias e cheio de encantos. Isso pode ser observado no trecho do poe­
ma Nós: (...) “Oh! Os ricos primeurs da nossa terra. E as tuas frutas ácidas,
tardias, No azedo amoniacal das queijarias. Dos fleumáticos farmers de In­
glaterra! (...) Ó cidades fabris, industriais, De nevoeiros, poeiradas de hulha,
Que pensais do país que vos atulha. Com a fruta que sai de seus quintais?
Todos os anos, que frescor se exala! Abundâncias felizes que eu recordo! Car­
radas brutas que iam para bordo! Vapores por aqui fazendo escala!Uma alta

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“O campo e a cidade no Brasil do Passado”

parreira moscatel. Por doce não servia para embarque! Palácios que rodejam
Hyde-Park, Não conheceis esse divino mel! (...) Oponde às regiões que dão
os vinhos. Vossos montes de escórias inda quentes! E as febris oficinas estri­
dentes. As nossas tecelagens e moinhos! E ó condados mineiros! Extensões.
Carboníferas! Fundas galerias! Fábricas a vapor! Cutelarias! E mecânicas,
tristes fiações! Bem sei que preparais corretamente. O aço e a seda, as lâmi­
nas e o estofo; Tudo o que há de mais dúctil, de mais fofo, Tudo o que há de
mais rijo e resistente! Mas isso tudo é falso, é maquinal, Sem vida, como um
círculo ou um quadrado, Com essa perfeição do fabricado, Sem o ritmo do
vivo e do real! E cá o santo Sol, sobre isto tudo, Faz conceber as verdes ri­
banceiras; Lança as rosáceas belas e fruteiras. Nas searas de trigo palhagudo!
Uma aldeia daqui é mais feliz Londres sombria, em que cintila a corte!... Mes­
mo que tu, que vives a compor-te, Grande seio arquejante de Paris!... Ah! Que
de glória, que de colorido,Quando, por meu mandado e meu conselho, Cá se
empapelam “as maçãs de espelho”. Que Herbert Spencer talvez tenha comido.
Para alguns são prosaicos, são banais. Estes versos de fibra suculenta;Como
se a polpa que nos dessedenta. Nem ao menos valesse uns madrigais! Pois o
que a boca trava com surpresas. Senão as frutas tônicas e puras! Ah! Num
jantar de carnes e gorduras. A graça vegetal das sobremesas!(...).
Portanto, este mundo rural opõe-se claramente ao mundo urbano,
marcado por funções, atividades, grupos sociais e paisagens não só distintos
mas, também, em grande medida construídos “contra” o mundo rural. Esta
oposição tende a ser encarada como “natural” e, por isso, recorrentemente
associada a relações de natureza simbiótica: campo e cidade são complemen­
tares e mantêm um relacionamento estável num contexto (aparentemente?)
marcado pelo equilíbrio e pela harmonia de conjunto (Ferrão, 2000).
Portanto, a relação entre campo e cidade, só pode ser entendida a
partir de um tempo histórico. Entendemos que Cesário Verde ao retratar
a cidade e o campo, utiliza-se de técnicas impressionistas, com extrema
sensibilidade e expressando seus cenários e paisagens prediletas de forma
natural e real.
Neste sentido, podemos refletir sobre as relações entre o campo e a
cidade através da(s) geografia(s) do passado e inserir outros recursos para
a discussão, como a poesia. Como dissemos no início do texto, nossa inten­
ção não foi a de esgotar a discussão, mas sim levantar alguns pontos para
a reflexão e entender a relação campo e cidade no passado.

Referências:
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histórica, situação actual e pistas para o futuro. EURE. Santiago,
vol.26  n.78, Setembro de  2000.(http://www.eclac.cl/Celade/publica/
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Relação cidade campo:
as metamorfoses da cidade

Profa. Odette Carvalho de Lima Seabra


Professora do Departamento de Geografia-FFLCH-USP | odseabra@usp.br

Na década de oitenta parece ser ter havido uma inflexão no proces­


so de urbanização que tinha a cidade de São Paulo por centro. Nesta fase
a urbanização se apresenta como fenômeno ainda mais complexo porque
sintetiza o que havia antes e que estava bem representado no trinômio: ci­
dade, indústria e mercado de trabalho, com as transformações impostas
pelas determinações políticas do ajuste estrutural, cujo resultado foi a forte
desnacionalização e internacionalização da economia; tais políticas trou­
xeram novas injunções de processos ligados à reestruturação produtiva na
indústria e a um novo papel do Estado na sociedade com as privatizações
das empresas públicas. Em conseqüência não se tratará mais do espaço da
indústria traduzido pela centralidade da cidade ( São Paulo cidade de bair­
ros ) que induziu à conformação de um padrão periférico de crescimen­
to. Temos agora uma urbanização difusa, identificada como periurbani­
zação, profundamente marcada pelas separações/fragmentações, das quais
são exemplo os enclaves territoriais de padrões muito homogêneos quanto
ao uso do solo, sejam eles residenciais, de comércio ou de serviços.
Neste breve ensaio tomo a cidade de São Paulo como objeto explo­
ratório para pensar como o aprofundamento das relações capitalistas in­
cide sobre as cidades. Parto de certas linhas de continuidade, porém assi­
nalando as descontinuidades do processo de produção do espaço urbano,
as quais correspondem primeiro à cidade e depois à metrópole. Minha hi­
pótese é que cidade e metrópole, cada uma de per si, contém uma identi­

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Relação cidade campo: as metamorfoses da cidade

dade ontológica apreensível como uma circunstancia temporal da história.


Correspondem, nas suas respectivas forma-material, a formas históricas
do capital hegemônico; podendo, cada qual, ser analisada através da es­
pacialidade/territorialidade que gera. De tal forma que há uma certa espa­
cialização do processo social imediatamente referida à correlação espaço-
indústria, através da qual discuto processos que interessam à cidade, o que
é muito diferente da territorialização da metrópole como generalidade do
urbano, enquanto modo de vida.
A metrópole move-se sob o primado do valor de troca. Tudo tem
preço. A metamorfose a que foi sendo sujeitada a cidade gerou, até certo
momento, positividades ao retirar do isolamento contingentes de popula­
ção dos campos. Mas, a medida que foi sendo invadida pelo valor de troca
e este acabou por ser a medida de todas as coisas, configurou a anticidade,
com o aprofundamento das relações de mercado, assentadas em profun­
das desigualdades estruturais.
A forma clássica de discutir a urbanização consiste em explicitar a
relação cidade e indústria porque contém processos implicados que indu­
zem à discussão da concentração de atividades, da estruturação de diversos
mercados, da mobilidade do trabalho, enfim, da modernização da socieda­
de com o desencadeamento de processos que estruturaram materialmente
nossas cidades e que levaram à formação de metrópoles. São Paulo, por
exemplo, é uma cidade que ficou no centro de um processo dessa natureza
e que é uma metrópole mundial, inserida num tecido de urbanização con­
tínua com mais 80 km de extensão e de estrutura policêntrica.
Mas essa concentração tal como se apresenta na Região Sul e Sudes­
te, mostra um processo de aprofundamento da divisão territorial do traba­
lho. A posição de São Paulo nessa estruturação do espaço nacional deve-se
a circunstancia histórica de ter ficado no centro do processo de industriali­
zação brasileira e por isso ter integrado, com alguma anterioridade em re­
lação às demais regiões, os processos de produção e de reprodução capita­
listas no Brasil, em sua forma integral ou mais completa. Pois, os circuitos
capitalistas da indústria que originalmente, abriam-se e se completavam
nesta região, logo começaram a integrar outras regiões do espaço nacio­
nal, propiciando que a lógica da acumulação e da expansão (motor do ca­
pitalismo enquanto formação sempre em processo) integrasse o território
nacional mantendo seu centro em São Paulo.
Portanto, sob a ótica do desenvolvimento capitalista no Brasil trata-
se da concentração de investimentos produtivos e da mobilidade territorial
do trabalho à escala nacional, constatada em muitos estudos. Isto porque,
contingentes expressivos de população do campo foram sendo arrastadas
no turbilhão da história dirigindo-se, sem cessar, num movimento inin­
terrupto para as áreas urbanas. Contribuíam, assim, para a formação dos
mercados de trabalho urbano nas áreas de concentração e de maior de­

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senvolvimento das indústrias localizadas no sudeste. A acumulação capi­


talista no Brasil, entre anos trinta e anos setenta, centrada em São Paulo,
produziu um diferencial de possibilidades e de riqueza acumulada que se
verificou à custa da expropriação de atividades tidas por tradicionais atin­
gindo regiões inteiras como aconteceu com a região nordeste. Seria exage­
ro considerar que esse capital, no sudeste reproduzia-se enquanto capital
devido aos aportes de tecnologia e das linhas de produção, mas ao mesmo
tempo realizava acumulação primitiva, desterrando, expropriando outras
regiões?
A industrialização está geneticamente relacionada à economia cafe­
eira. Esta que teve tal expressão que estruturou a sociedade de alto abaixo,
no campo e na cidade, formando o complexo cafeeiro, como um conjunto
de atividades integradas ( Wilson Cano ). Pode-se dizer que do ponto de vis­
ta da relação cidade campo a cafeicultura apresentou excelentes exemplos
de complementaridade rural-urbano. Disseminaram-se as cidades articu­
ladas em redes hierarquizadas com funções de suprimento de bens e ser­
viços de uso imediato. As cidades maiores, além de exercerem funções de
comércio e serviços eram, sobretudo, centros políticos e de administração
pública, chegando ser um nível importante de acumulação regional, cen­
tralizando bancos, portanto o crédito.
As empresas industriais que se formavam arrastavam um número
sempre crescente de empresas dependentes, tanto economicamente como
financeiramente. Mas a industrialização não mudava, de chofre, o perfil
agrário /tradicional daquela sociedade. Ao contrário, nas cidades iam sen­
do revelados muitos dos aspectos do mundo rural pela presença de con­
tingentes egressos do campo que chegavam em levas massivas a partir
dos anos quarenta e cinqüenta. A cultura urbana sempre espelhou o traço
agrário, rústico e tradicional num sincretismo que reunia nas cidades, as
diferentes matrizes étnico culturais que eram características do povo.
O capitalismo enquanto formação social tinha também que se formar tan­
to que em todo o período da industrialização os capitais produtivos eram repro­
duzidos ampliadamente ao mesmo tempo que propiciava formação de capital. A
expropriação de meios de vida das populações tradicionais era inerente, estava
implícita nesse processo cuja função era a de modernizar a sociedade. Por razões
que começaram tornar-se mais claras no debate atual, na verdade a modernização
não modernizava cabalmente.
Não obstante, é vasta a literatura que faz remontar a alguns aspectos
da cafeicultura para acentuar seu efeito modernizador das estruturas ur­
banas, bem como a diversidade étnico-cultural decorrente da presença dos
imigrantes que vieram trabalhar nas fazendas. Quando se estuda São Pau­
lo da segunda metade do século dezenove, por qualquer ângulo que seja,
depara-se com uma avalanche de efeitos modernizadores da cidade e da
sociedade de então. O Estado, pelas suas estruturas e aparatos, tinha que

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Relação cidade campo: as metamorfoses da cidade

se aparelhar para esse fim e conforme princípios republicanos. Inseriam-


se, tais demandas, num quadro de dependência tecnológica que explica a
importância assumida pelas empresas estrangeiras que eram as grandes
empresas de serviços públicos, nesse aparelhamento das nossas cidades.
(abastecimento de água, transporte, sistema hidrelétrico, entre outros.)
A integração sempre crescente à economia do sudeste, gradativa­
mente foi desarticulando as economias regionais que contavam com cer­
tos compartimentos da indústria tradicional (tecelagem, bebidas, calça­
dos...). As estatísticas sobre migrações nacionais registram, já em meados
dos anos vinte, a presença significativa de nordestinos em São Paulo. A de­
sarticulação interna daquelas economias, em escala nacional, foi uma con­
seqüência do desenvolvimento industrial de São Paulo primeiro porque
provocava a integração dos mercados de bens e produtos e segundo por­
que impunha um diferencial de produtividade que a partir de certo ponto
começava a inviabilizar as produções locais. Em conseqüência a produção
do sudeste ganhava presença nas outras regiões do país.
Portanto, a integração regional (nordeste-sudeste em âmbito nacio­
nal) foi precipitada pelo processo de valorização do capital aplicado pro­
dutivamente na indústria do sudeste, na medida que esse capital produtivo
acabava impondo seus parâmetros para o resto do país. Nessas circuns­
tancias tanto os deslocamentos populacionais como, a circulação de pro­
dutos-mercadorias, têm a propriedade de promover integração à economia
nacional, às custas de uma certa desintegração intra-regional, como de fato
muitos estudos têm constatado, nas diferentes regiões. Impõe-se, portanto,
raciocinar a partir da noção de totalidade.
Dentre o conjunto de efeitos que se pode recolher de uma tal integra­
ção está a forma como na cidade de São Paulo foram sendo acomodados
os contingentes migrantes nos seus respectivos papéis, seja na indústria ou
no comércio. Esse desenvolvimento desigual entre regiões, traduzir-se-ia
também numa diferenciação enorme intra-regional no sudeste que ao lon­
go do tempo foi configurando das periferias urbanas.

Espaço e indústria
A espacialização do processo social comandado pela indústria em
São Paulo, nos primeiros anos do século vinte, gerava impactos de diferen­
tes dimensões que alcançavam muitos níveis na vida social porque promo­
viam diferentes formas de trabalho, diversificando os modos de inserção
social dos sujeitos. A indústria instaurava importantes transformações nas
condições materiais de existência, gerando uma sociedade estruturada em
torno das formas de produzir e reproduzir riqueza como capital assentada
sob as bases e as peculiaridades de uma sociedade agrária. A cidade se tra­
duziria, em pouco tempo, como pólo da relação cidade campo, cuja unida­

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de começara ser expressa em valor, como disse, resultado da acumulação


mercantil. Porém misturando de modo inusitado, no seu interior o rural e
o urbano.
Como decorrência tinha curso um processo de complexificação so­
cial que tendia para uma ordem impessoal e abstrata desafiadora da or­
dem doméstica e familiar de essência agrária. A ascensão da cidade signi­
fica, de fato, que está ocorrendo um triunfo do geral sobre o particular, do
intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo. As abstrações
estão fundadas em práticas que se desdobram em representações do mun­
do rural ou do mundo urbano. A modernidade desencadeando esta separa­
ção (o teórico e o prático – o imaterial e o corpóreo ) histórico estrutural a
partir das cidades, projeta o urbano como síntese de todo processo, como
um conjunto de práticas tendentes a configurar um modo de vida propria­
mente urbano. Este que, aliás, ganharia realidade muito mais tarde, já en­
tão sob o primado do capital numerário, ou financeiro, enquanto agente
privilegiado e estruturador da sociedade e do seu espaço.
A cidade e a economia pecuniária em expansão em cuja base esta­
va acumulação mercantil oriunda da cafeicultura, como disse, foram pré-
condições para a industrialização de São Paulo. E essa economia pecu­
niária que induzia à modernização da cidade tanto do ponto de vista da
materialidade urbana (pela implantação de transportes mecânicos como o
bonde, pela montagem – geração e transmissão – dos sistemas hidrelétri­
cos, com a construção de infraestrutura de saneamento, fornecimento de
gás...) como das estruturas jurídico-política de gestão, foi criando e conso­
lidando as condições gerais sociais para a produção e reprodução capita­
lista. Resulta que o espaço da cidade, tomado por sua expressão fenomêni­
ca guardaria estreita relação com os conteúdos específicos desse processo,
pelo qual começava a ser urbanizada a sociedade inteira. De tal forma que
estava posta a necessidade de serem produzidas grandes estruturas urba­
nas para permitir que os conteúdos propriamente urbanos tivessem curso
e encontrassem meios de realização. Será necessário recuperar alguns ar­
gumentos sobre o sentido que tiveram na urbanização de São Paulo a pro­
dução do espaço.

A cidade e o seu espaço


Vendo mais de perto a estruturação e reestruturação contínua do
espaço urbano e em conformidade com muitos estudos que têm sido pro­
duzidos sobre o assunto, as ferrovias que, no último quartel do século XIX,
valorizavam para usos urbanos terrenos distantes e insalubres como o
eram as várzeas e baixos terraços, (Langenbuch, J.R.1970) acabaram por
ser um fator preponderante de localização das indústrias por mais de meio
século. Tanto que as unidades fabris com os armazéns de depósitos ao lon­

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Relação cidade campo: as metamorfoses da cidade

go das ferrovias, depois a instalação das fábricas com vilas operárias, os


bairros inteirinhos de operários, como eram Barra Funda, Água Branca,
Brás, Mooca, Belenzinho e Ipiranga, correspondem a um capítulo impor­
tante e necessário de ser compreendido da história urbana de São Paulo
porque a cidade crescia transformando áreas rurais em urbanas.
Por quatro a cinco décadas (30 a 70), foi ainda possível constatar
que havia chácaras em São Paulo que entremeavam o tecido urbano em
franca expansão, em meio aos loteamentos que se sucediam.
A suburbanização da indústria e da moradia operária ampliando o
espaço destinado a usos urbanos, davam sentido às transformações que
ocorriam no entorno da cidade. Desde muito cedo os negócios com a pro­
priedade imobiliária formavam uma frente avançada de monopolização
e de ganhos extraordinários no processo de estruturação e crescimento
da cidade. Pesquisas acuradas demonstraram como desde o século XIX,
diga-se de passagem, a partir da Lei de Terras de 1850, muitos foram os
interesses que se articularam no sentido de fazer pela via da propriedade
territorial, formação de riqueza manipulando informações e estabelecendo
territórios de domínio no espaço urbano (COE, Paulo. 1984). Em muitos
casos bastou ter acesso a certas estruturas do Estado e dispor de informa­
ção para maneja-las no mercado que se formava. A propriedade territorial
permite capitalização da renda. De uma renda territorial urbana que circu­
la socialmente no urbano porque a terra urbana tem preço.
Dois fenômenos importantes traduzem muito bem o perfil da urba­
nização de São Paulo já nas primeiras décadas do século XX. O primeiro é
concepção, parcelamento e vendas de lotes no interior das estratégias ter­
ritoriais da Companhia City, esta que reproduzia, sob muitos aspectos, os
modelos de cidades jardins inglesas e que, entre nós resultou nos bairros
jardins de São Paulo. Num período próximo de cem anos, esses loteamen­
tos transformaram-se nas áreas nobres da cidade. E, caracterizando bem
um outro extremo, está um fenômeno que também tem marcado o perfil
desta urbanização. Trata-se da sucessão de loteamentos, legais e também
ilegais, que desde os anos quarenta seguem ampliando a área propriamen­
te urbana, com os quais se tem levado a cabo o processo de autoconstrução
(produção doméstica e artesanal de habitação) na formação da periferia de
São Paulo.
Mas o crescimento pode-se dizer explosivo da cidade provocava
grandes transformações no entorno, como disse, ainda meio rural e meio
urbano. Os ganhos extraordinários que a produção do espaço permite para
os agentes envolvidos nessas produções constituem um capítulo da maior
importância inclusive porque nos termos que a cidade fora sendo apare­
lhada, respondendo aos requisitos da modernização capitalista, formou-se
desde muito cedo uma camada de homens de negócios que compreenden­
do as estruturas do Estado sabiam situar-se nela. Caio Prado Junior com

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Odette Carvalho de Lima Seabra

muita pertinência tratou desse fenômeno e chegou mesmo a considerar


que o capitalismo brasileiro tinha o atributo de ser um capitalismo buro­
crático, ao que acrescento, burocrático e rentista. A estruturação do espaço
e as reestruturações que jamais cessam porque, afinal, as tecnologias do
urbano estão em constante renovação e readequações, transformavam a
cidade numa “máquina de crescimento”. Os negócios da Companhia Light
em São Paulo são expressão cabal da internalização da cidade inteira nos
circuitos de valorização dos capitais privados.
Essa urbanização avassaladora carregava tantos outros ingredien­
tes. Beiras de rios e córregos estiveram, desde sempre, destinadas aos mais
pobres. Por todo entorno de São Paulo existiu uma população pobre, ao
que parece residual com atributos de uma população caipira de perfil ca­
boclo quanto ao tipo étnico, rústica nos modos de ser. A industrialização
atingiria por inteiro essa população mais ou menos original do entorno de
São Paulo tingida aqui e ali por índios, como na região de Santo Amaro e
por negros remanescentes-descendentes do cativeiro. Alguns trabalhos fa­
zem referência aos pobres do Pari, mas são raras as menções sobre os cai­
piras de São Paulo. Ora, a pobreza do caipira chegava ser repulsiva para os
padrões urbanos e supostamente civilizados ao gosto europeizante das ca­
madas ricas da cidade, nas fases conhecidas como progressistas da indus­
trialização. Na sociedade do trabalho em formação, caipiras e imigrantes
(operários) descreviam trajetórias inversas.
Vejamos, foram os estrangeiros, sobretudo italianos que entraram
maciçamente em São Paulo ao final do século XIX que viriam a constituir
as camadas urbanas ligadas à indústria. Chegaram estar tão majoritaria­
mente presentes em São Paulo que os dialetos vêneto e napolitano, impreg­
navam o cotidiano da cidade. Pertence ao folclore desse período o trabalho
dos meninos jornaleiros que gritavam as manchetes dos jornais da cidade
na sua língua de origem. Dois terços da população de São Paulo era de ita­
lianos ao final do século XIX e nos primeiros anos do século XX.
A imigração, destinada a formar o contingente de força de traba­
lho para indústria, assunto já bastante conhecido, permitiu a formação
de bairros muito homogêneos como o foram a Mooca, o Brás e o Belenzi­
nho, por exemplo. Nestes casos o bairro e a fábrica estiveram no centro de
um enredo que expressava aspectos muito significativos do ambiente sócio
cultural que se formava a partir da indústria. Mas, bairro e fábrica formam
uma unidade muito mais contingente, em princípio, do que se pensa. Pois
num curto lapso, a demanda por lugar (por moradia) já não pode ser satis­
feita no próprio bairro e se a fábrica pode permanecer por mais tempo, não
muda os termos do problema. A mobilidade dos operários com suas famí­
lias, inclusive por causa da reprodução dessas famílias, e os contingentes
migrantes que cresciam exponencialmente constituía a demanda crescente
que fazia alargar os domínios da área urbanizada, permitindo, inclusive, a

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Relação cidade campo: as metamorfoses da cidade

formação de fortunas nos negócios imobiliários da cidade. Bancos, com­


panhias colonizadoras, empreendedores, as grandes empresas de serviços
públicos, enfim, todos se lançavam na especulação com terras. Nessa bus­
ca de trabalho e de lugar imigrantes pobres, muitos dos quais foram sendo
empobrecidos nesse processo, acabavam estabelecendo-se com suas famí­
lias em meio aos caipiras por todo entorno de São Paulo.Uma questão por
demais interessante foi a de constatar o encontro dessas populações de
matrizes histórico-culturais tão diferentes num âmbito de vivência com­
partilhada como eram os bairros organizados por volta das paróquias até
mais ou menos anos cinqüenta em São Paulo. Sim, porque enquanto os
imigrantes lutavam por uma inserção na sociedade do trabalho em forma­
ção exercitando suas habilidades e, sobretudo, seus ofícios mecânicos, os
caipiras eram por natureza sujeitos de desnecessidade de trabalho. Foi as­
sim que Antonio Candido compreendeu o caipira, na sua clássica obra Os
Parceiros do Rio Bonito. Portanto dificilmente se encontrariam nas fábri­
cas. Os bairros de São Paulo, sobretudo os velhos bairros, foram um tea­
tro da vida marcado pelo encontro dessas populações cujas práticas preen­
chiam de significação e de sentido os lugares apropriados.
Era mais ou menos a favor e contra o sentido da história na moder­
nidade que esse enredo ganhava plasticidade. Afinal os imigrantes tinham
que ser operários nas fábricas e os caipiras, aliás, muito pobres e empobre­
cidos, estavam fadados a desaparecer.
No ponto culminante dessa história a cidade foi transformando-se
em metrópole e agora São Paulo estará sempre associado aos grandes nú­
meros, o que exige considerar aspectos e conteúdos da vida urbana na
metrópole. Assunto que será retomado quando discutir certos aspectos do
urbano metropolitano

A divisão social e técnica do espaço


A indústria tem sua força de mobilização e seu centro na combina­
ção sintética/antitética de capital e trabalho; enquanto o trabalho, como
força de trabalho, requer a mobilização de contingentes de população para
se tornar imediatamente disponível, o capital só se constitui enquanto tal,
exatamente à medida que possa transmutar-se em tecnologia, em matérias
primas e força de trabalho, aplicados ao processo de produzir produtos-
mercadorias. Esse é o fundamento necessário para compreender como a
ciência e tecnologia aplicadas, e natureza compreendida como uma dimen­
são cósmica do mundo, (fracionada, repartida) tornam-se força produtiva
do capital. O processo do capital mobiliza a sociedade inteira do solo e do
sub solo a seu favor e o movimento que desencadeia, numa sucessão sem
fim, promove, em extensão, a integração de diferentes espaços (áreas geo­
gráfica ) e, em profundidade revolve sem cessar os modos de vida sobre os

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Odette Carvalho de Lima Seabra

quais incide. Trata-se de um movimento que jamais cessa porque a cada


mudança na base tecnológica (meios materiais), o processo do capital ten­
de a refazer o processo inteiro. Acontece que não o fará à larga porque há
um custo muito alto para desfazer-se do capital fixo quando este, materia­
lizado em bens máquinas e equipamentos, torna-se obsoleto. Mesmo assim
as forças produtivas materiais da sociedade são submetidas a sucessivos
descartes. E, diga-se, através das inovações e substituições se recompõe
indefinidamente a competição intercapitalista. De modo que a cada rein­
vestimento aprofundam-se as contradições face às demandas de novas tec­
nologias porque muda a base técnica e operacional do sistema, tal como
acontece no presente com as tecnologias da informação. Disto decorre as
modificações na posição social dos sujeitos tanto que mais claramente se
opõem, no corpo social, proprietários e não proprietários, mesmo quando
o anonimato do capital (o capital por ações) parece generalizar-se.
A divisão técnica do espaço obedece à lógica da rentabilidade eco­
nômica e da funcionalidade técnica. É ora produto e ora condição do de­
senvolvimento da indústria. Isto faz com que as paisagens urbanas apre­
sentem-se em constante mutação. Entretanto, apesar de existir uma tal
determinação social sobre o uso das distintas localizações intra-urbanas,
nada pode impedir que no espaço urbano fiquem guardados resíduos de
fases superpostas porque a propriedade é um absoluto que se põe diante
das diversas modalidades de uso do solo ora facilitando, ora impedindo as
transformações do uso. De tal forma que as mudanças implicam em mo­
bilização da propriedade territorial sob a premissa de que se trata de uma
equivalência de valor em função da riqueza que circula pela sociedade. E,
isto porque, a propriedade capta parte da mais valia social no seu proces­
so de valorização convertendo-se, portanto, em obstáculo e meio de todo o
processo de valorização do espaço.
Por isso o valor de uso das diferentes localizações intra-urbanos
obedece às estipulações ou disposições, que expressam os seus próprios
atributos econômicos.
A identidade particular de cada cidade com sua morfologia básica,
sua arquitetura e paisagens urbanas são valorizadas como especificidades
da cultura. São aspectos através dos quais a economia simbólica, enquanto
ângulo de visão e de práticas da economia urbana, justifica o ideário neo-
liberal que visa integração à economia global. A reestruturação produti­
va imprimiu mobilidade espacial às indústrias nas duas últimas décadas.
Desde então os critérios de localização da indústria privilegiam as áreas
menos congestionadas e geralmente limítrofes da região urbana. As velhas
áreas industriais, ao longo das vias férreas, permanecem como escombros
da fase anterior.
Formou-se uma nova economia na metrópole que centraliza fun­
ções de gestão, de serviços altamente especializados bem como de serviços

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Relação cidade campo: as metamorfoses da cidade

para as famílias: comércio, educação, saúde, lazer, cultura. O resultado


tem sido o da perda de postos de trabalho na indústria com aumento do
emprego no setor de serviços. O aumento do emprego nos serviços tem
sido tão expressivo que quase compensou a perda de empregos na indús­
tria (BARELLI, Walter. 2003).
A nova base técnica, em torno da qual muitas das transformações do
quadro de vida gravitam, em poucas décadas disseminaram-se rapidamen­
te. Claro que as novas tecnologias alcançam de modo distinto os diversos
espaços sociais. E, mesmo com a saída do emprego industrial, a metrópole
de São Paulo registra a maior concentração relativa de riqueza e poder no
espaço nacional.

O urbano metropolitano
Trata-se de considerar as estruturas materiais e o quadro de vida
que resulta das metamorfoses da cidade, de esclarecer momentos e cir­
cunstâncias desse processo uma vez que a metrópole está em linha de
continuidade da cidade. Resulta dos acúmulos que visavam maximização
do uso dos fatores produtivos nas ondas de modernização, fossem elas da
indústria ou da cidade (trabalho, espaço, infra-estrutura) e do acúmulo
de contradições não resolvidas geradas na produção cada vez mais socia­
lizada (pela indústria), sobre a prerrogativa de apropriação privada, privi­
legiada, dos resultados. A cidade, mesmo em processo de transformação,
é expressão fenomênica do processo que espelha a paisagem própria do
capitalismo; enquanto tal é a tradução formal dos fundamentos desiguais
desta sociedade. Na metrópole tudo aquilo que constituiu os fundamen­
tos da própria cidade se expressam sem mediações. A riqueza e a pobreza
vêem­-se e se confrontam. No urbano metropolitano, que constitui o qua­
dro de vida na modernidade, esse confronto gerou a violência que é de
longe o maior drama.
Em síntese, a metrópole é expressão da organização capitalista da
sociedade que, na sua materialidade, expressa as suas contradições mais
fundamentais; apresenta a justaposição de ambientes recortados pela se­
gregação social que está no seu próprio fundamento. Nestes termos é um
espaço fragmentado pelas estratégias mercadológicas e um ambiente no
qual a ideologia pode até ser zero porque as relações fundamentais do capi­
tal, na sua voracidade, acabaram por serem reveladas de modo implacável
nos territórios do urbano, tais como os enclaves residenciais com edifí­
cios de apartamentos ou em loteamentos exclusivos, os centros empresa­
riais, as ruas de acesso controlado ou os resorts, por exemplo. A metrópole
afirma-se como a negação da cidade enquanto prática e enquanto ideário
e assim tende para o absoluto. O absoluto domínio do quantitativo ou do
valor de troca.

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Odette Carvalho de Lima Seabra

É nesse sentido que vigora o sentido do negativo que não consegue


negar em termos absolutos os princípios e valores iluministas ligados à ci­
dade como têm sido as promessas de civilidade e de integração de uma co­
munidade política, atributos ligados à afirmação da democracia burguesa
e aos processos de secularização que agora se apresentam em franca corro­
são. E que, as ideologias revelando-se como tais operam num nível mais alto
de abstração social produzindo a valoração dos objetos e das coisas através
da coisificação e do fetiche de tudo que existe como parte da sociedade e do
social na vida urbana já sem nenhuma urbanidade real e possível nos mar­
cos desta sociedade. Nas circunstancias em que domina um aprofundado
grau de divisão do trabalho na sociedade e que, além do mais a reestrutu­
ração produtiva da indústria leva a diminuição de postos de trabalho sem
que exista compensação correspondente das perdas, com criação de novos
empregos, a aglomeração metropolitana congrega uma massa de sujeitos
monetarizados sem dinheiro. O que equivale a dizer que a socialização ca­
pitalista reúne os indivíduos concretamente no trabalho e abstratamente no
dinheiro (salário). E que mesmo não tendo trabalho (salário) o sujeito so­
cial do capitalismo, quem quer que seja está sujeitado pelo dinheiro.
A racionalidade urbana desembocou num urbano que não supor­
ta outra razão que não a do dinheiro como capital que, enquanto tal tem
que visar a sua própria reprodução seja como fictício ou real. As oposições
possíveis para descrever tal processo parecem estar situadas na enorme
inflexão que repercutiu para sociedade com a configuração da metrópo­
le a partir de seus processos internos. O que não quer dizer que a cidade
constituiu uma estrutura e um processo sem contradições. É exatamente
o contrário: a cidade enquanto discurso pôde, até certo ponto e sob certas
circunstâncias, iludir as práticas sob a salvaguarda do ideário do progres­
so material embora já abrigasse a impossibilidade da cidadania enquanto
projeto político burguês. É exatamente isso que revela a urbanização da
sociedade no presente.
Não é por acaso que a pobreza urbana com a violência que a acom­
panha, mesmo quando duvida-se de uma correlação estrita entre pobreza
e violência, seja de longe o maior problema que se vive em nossas cida­
des e especialmente nas metrópoles. Esse drama pode ser constatado por
muitos ângulos e em qualquer lugar. Seja a escola pública que não ensina
e as escolas privadas que em grande quantidade existem para fazer circu­
lar dinheiro, da imensa massa de jovens pobres da periferia para quem o
futuro é ainda mais incerto. Não basta enumerar o drama. É necessário
admiti-lo e compreender a sua gênese para então verificar se há meios de
negar o que nega uma vida urbana mais digna ou, então, admitir o limiar
da barbárie.
Retomando argumentos, a metrópole apresenta-se como síntese
contraditória da cidade. Por isso é uma forma do urbano que não se pode

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Relação cidade campo: as metamorfoses da cidade

confundir com a própria cidade. Nela a lógica da forma visando a funcio­


nalidade técnica, aliada à rentabilidade econômica, foi estabelecendo-se
em contradição com a dialética dos conteúdos e deixando evidente as de­
terminações do valor de troca. A lógica da forma pode ser compreendida
como lógica do espaço traduzida em termos da territorialização das prá­
ticas.
Mudanças substanciais no núcleo da relação do capital-trabalho in­
dicam ter havido inflexão em todo o processo que agora é menos nacio­
nalista e mais neoliberal; menos industrialista e mais financeiro; menos
produtivo e mais especulativo. Como decorrência das transformações im­
plicadas nessa seqüência e como fruto de contradições internas que move­
ram e movem todo o processo, estamos sob a vigência de uma urbaniza­
ção que não se explica mais pela indústria e que, além do mais, aniquilou
a cidade.
A Geografia tematizou, por um longo período, a cidade e sua re­
gião. Assunto que permitiu alimentar e estruturar o saber geográfico tão
amplamente que permitiu a formação de escolas geográficas. Num lapso
relativamente curto, quando ainda eram esboçados certos entendimentos,
descortina-se o problema de que a urbanização ao generalizar-se revolvia
os modos de vida superando os seus fundamentos de origem. Urbaniza­
ção sem indústria quer dizer que as fábricas e as vilas operárias, depois os
bairros inteiros de operários, as áreas ocupadas por grandes indústrias ao
longo das ferrovias e mais tarde ao longo das rodovias, foram ingredientes
motores da urbanização por quase todo o século vinte em São Paulo, mas
já não o são no século vinte e um. A urbanização generalizada apresenta-se
como formação de um tecido de urbanização contínua que indelevelmen­
te liga importantes centros urbanos, do passado. Trata-se da concentra­
ção desconcentrada, do espraiamento do urbano como quadro material
de vida. Uma vasta região urbana se afirma em oposição aos territórios de
atividades concentradas.
Conurbanização foi a designação dada aos aspectos formais do pro­
cesso desta natureza, quando fábricas e moradias de operários acompa­
nhando as vias de comunicação pareciam querer ligar o espaço das cidades
já no começo do século vinte, conforme viu J.Gottmann, estudando a costa
leste dos Estados Unidos. Hoje parece corresponder à constatação do fenô­
meno designado por periurbanização.

O rural e o urbano
A cidade de São Paulo era circundada por um cinturão de chácaras,
no alvorecer da industrialização. Eram as chácaras paulistanas descritas
por Alice Canabrava. Serviam elas de moradia a uma população tradicio­
nal habituada a ter também uma moradia na cidade para onde acediam

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Odette Carvalho de Lima Seabra

em ocasiões excepcionais como eram as festas religiosas que aconteciam


na cidade. Havia uma estreita simbiose entre o campo e a cidade, esta que
era literalmente o lugar da festa.
A modernização que acompanhou a industrialização, da qual procu­
ramos descrever alguns aspectos, incidiu decisivamente sobre certos espa­
ços desse entorno rural, absorvendo-os nos seus próprios processos. Como
já mencionado tratava-se de promover: geração e transmissão de hidroe­
letricidade, de captação e distribuição de água, da canalização de rios e
córregos, da abertura de estradas e caminhos, da construção de pontes e
de viadutos que assim venciam as dificuldades naturais do sito urbano, ab­
sorvendo as particularidades originais desse sítio com a criação de padrões
técnicos de uso do espaço dotados de certa homogeneidade. A cidade ape­
nas começava perder suas particularidades originárias. Perda que o auto­
móvel, muito mais tarde, viria coroar.
Como essas mudanças, mesmo quando rápidas não se faziam de
uma vez, quando as chácaras seguiam desaparecendo, restavam ainda os
quintais que serviam a economia doméstica com hortas, árvores frutíferas,
galinheiros, às vezes até cabras e criação de uma ou duas vacas, além do
cavalo. As chácaras de flores também eram muito comuns.
Das chácaras de verduras ocupando fundo de vales e, sobretudo, as
várzeas e baixos terraços na cidade de São Paulo, se tem notícias já nos
anos vinte. Na região da Penha, por exemplo, um segundo vagão conhe­
cido por cara dura, foi anexado ao bonde de passageiros. Destinava-se ao
transporte gratuito da produção das chácaras até o mercado da Cantareira
(região do mercado central).
Pelos idos dos anos quarenta e cinqüenta costumavam ser cedidos
para cultivo de verduras e legumes os terrenos subjacentes às linhas de
transmissão de energia, em quase toda extensão. Dedicavam-se a estas ati­
vidades como chacareiros, sobretudo, portugueses que com suas carroças
de verduras palmilhavam a cidade e se estabeleciam também, com esse co­
mércio, nas feiras livres. Eram eles muito numerosos em São Paulo. Tanto
que até o surgimento do super mercado e sua consolidação, contribuíram
decisivamente para o abastecimento da cidade.
Concomitantemente, o mercado urbano em expansão justificou des­
de muito cedo lavouras de caráter comercial e com assistência técnica às
quais dedicaram-se, sobretudo, os japoneses. Essas lavouras como ativida­
de exclusiva localizavam-se a uma certa distância, circundando a cidade
propriamente dita.
Eram lavouras comerciais de produtos de mesa, portanto muito
mais do que chácaras ou hortas, já que se especializavam em produtos que
ocupavam extensas áreas de cultivo e estavam integradas aos sistemas das
cooperativas agrícolas. As cooperativas dos hortifrutigranjeiros passaram
ocupar grandes áreas sempre em função da demanda que não parava de

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Relação cidade campo: as metamorfoses da cidade

crescer até alcançar o mercado nacional e disseminar, inclusive, um certa


padronização dos produtos. Basta um exemplo: a produção de tomate no
Estado de São Paulo desarticulava a produção de pequenos agricultores
(sitiantes) em diversas localidades do território nacional. Assim foi tam­
bém com a batata, a cebola e outros produtos.
Lavouras muito homogêneas especializadas em certos produtos,
sempre em função dos rendimentos possíveis, foram ocupando grandes
áreas e compondo a paisagem do entorno de São Paulo. Ora, como a ci­
dade é o lugar da divisão do trabalho aprofundada, a formação de áreas
especializadas no abastecimento de produtos de mesa estava na ordem ló­
gica das coisas.
Portanto, no interior de uma área em franco processo de industriali­
zação tinha lugar uma modalidade de agricultura que foi deixando de exis­
tir de modo intersticial para existir como lavoura comercial destinada ao
abastecimento urbano de produtos de mesa.
Em meados dos anos sessenta, todo entorno da grande aglomeração
que era São Paulo estava circundado por áreas de agricultura mais ou menos
especializadas identificadas, à época, como o cinturão verde de São Paulo.
Nos novos espaços agrários, por vezes bem distantes da metrópole,
verdadeiras “plantations” de alface, de cenoura, outras vezes de tomate ou
alcachofra, foram sendo produzidas em escala, dominando, portanto, a
paisagem por extensos territórios.
Mas, aqui ou ali, no entorno imediato da cidade, às vezes muito pró­
ximo dos loteamentos que continuavam se sucedendo, nas baixadas geral­
mente beiras de rios e córregos, encontravam-se algumas chácaras ainda
nos anos setenta, ao mesmo tempo que áreas enormes, antes de uso rural,
transformavam-se em locais de moradia de trabalhadores urbanos.
A formação dos mercados para produtos hortifrutigranjeiros corres­
ponde, quase que linearmente ao aprofundamento da divisão do trabalho
social em função das necessidades do desenvolvimento da indústria. O fato
é que os pequenos negócios ligados ao abastecimento urbano tais como a
rede de quitandas, os verdureiros que porta-a-porta faziam chegar à mesa
diariamente as hortaliças e frutos, gradativamente começaram a desapare­
cer porque o abastecimento urbano constituíra-se em um grande negócio
passível de investimentos e lucros. As redes de comercialização que se for­
maram foram administrando o fluxo de produtos e preços e o tamanho do
mercado de consumo acabou por justificar o deslocamento da produção
para áreas distantes, uma vez que compensava o custo da distância – preço
do transporte – com especialização de áreas produtoras.
A pergunta que não pode calar é se agora, essa agricultura de abas­
tecimento urbano tecnológica, especializada, absorvedora de ciência e de
tecnologia, pertence ao mundo rural. Assunto que remete para considera­
ções do quadro de vida.

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As “plantations” de tomate em Ibiúna, as de cenoura, a perder de vis­


ta, em Castro no Paraná, as alcachofras de São Roque, formam paisagens
agrárias de grande homogeneidade. Mas, nem tudo é tão simples como
pode parecer à primeira vista, não basta a paisagem para esclarecer nosso
problema porque o quadro de vida implica as modalidades do uso do tem­
po das populações concernidas. E nesse sentido o tempo parece estar mais
ou menos ritmado pelos padrões urbanos das formas de uso desse tempo,
no qual a modernidade introduziu a noção do lazer.
As chácaras de final de semana, os pesqueiros, os restaurantes de
beira de estrada, as iniciativas com finalidade educativa para crianças ex­
perimentarem uma outra face daquilo que vêem na cidade, a começar pe­
los próprios alimentos, denotam possibilidades inusitadas de integração
rural-urbana.
Mas, considerando propriamente a questão do tempo hoje, o rádio e
a televisão têm absoluta centralidade na vida tanto no campo como na ci­
dade, constituindo a principal forma de lazer, embora o tempo esteja ainda
ritmado pelo tempo de trabalho, em torno do qual se estabelece o cotidia­
no de uns e de outros.

Referências:
ASCHER, François. Métapolis ou L´Avenir des Villes. Paris: Editions Odile
Jacob, 1995.
ARANTES, Paulo E.e ARANTES, Otília B. Fiori. Sentido da Formação. RJ:
Paz e Terra, 1997.
BARELLI,Walter. És o avesso do avesso. São Paulo, Rev. Dos Estudos Avan­
çados, n.47, p.7 a 19.
COE, Paulo. Paraíso dos grileiros. São Paulo: edição particular, 1997, p.
257.
DE LA CORTE, Judith. Contribuição ao Estudo do Abastecimento da Ci­
dade de São Paulo em Produtos Hortifrutícolas, São Paulo, IGEOG-
USP, 1985.
FIX,Mariana. São Paulo – Cidade Global: fundamentos financeiros de uma
miragem. São Paulo, Boitempo Editorial, 2007.
LANGENBUCH, Juergen R. A Estruturação da Grande São Paulo. RJ: IB­
GE-1971.

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Relações campo – cidade: uma leitura
a partir do espaço rural fluminense

Gláucio Jose Marafon


Instituto de Geografia UERJ | glauciomarafon@hotmail.com

Introdução
A análise das atuais transformações no campo brasileiro torna-se
fundamental, pois, o campo, além de desempenhar as funções tradicionais
de fornecer mão-de-obra para a cidade, matérias primas e consumir pro­
dutos oriundos da cidade abriga, cada vez mais, atividades não agrícolas,
como a produção industrial, os serviços associados às atividades de turis­
mo que valorizam as áreas com aspectos naturais. Há que se destacar o
contínuo processo de migração da cidade para o campo, pois as pessoas
buscam sua inserção no mercado de trabalho e uma melhor qualidade de
vida. O campo além de ser o local da produção agropecuária, transforma-
se em um espaço, no qual inúmeras atividades não agrícolas são efetuadas,
como o trabalho de caseiros, diaristas, jardineiros, etc.
O espaço rural torna-se fortemente marcado pelo conteúdo de téc­
nica e capital, representado pelos complexos agroindustriais e pelo agro­
negócio, que correspondem ao espaço de produção agrícola, o qual é fruto
da revolução verde, da modernização e da industrialização da agricultura.
Neste contexto, o espaço rural da produção familiar é fortemente marcado
pelas atividades não agrícolas, que valorizam o patrimônio natural e histó­
rico. Como o espaço da produção familiar não apresenta uma moderniza­
ção nos mesmos moldes do agronegócio, ainda existem áreas preservadas
relacionadas à natureza e ao processo de ocupação (vegetação, rios, monu­

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Relações campo – cidade: uma leitura a partir do espaço rural fluminense

mentos históricos etc.), além de possibilitarem a prática de uma agricultu­


ra pautada nos princípios da agroecologia. A valorização desses aspectos
possibilita a prática de atividades não-agrícolas nessas áreas. Essas práti­
cas constituem uma produção alternativa ao modelo dominante do agro­
negócio, cujo objetivo é construir novas bases agroecológicas e sustentá­
veis que incentivem o fluxo de pessoas oriundas da cidade, sejam turistas
ou residentes, em busca de tranqüilidade e qualidade de vida.
Configuram-se, então, novas relações entre o campo e a cidade, com
novas qualidades e impressão de marcas fortes na paisagem. Além da pro­
dução agrícola e da industrialização temos hoje novas atividades que de­
vem ser identificadas para caracterizar o campo e suas relações com a
cidade. A presença de uma enorme diversidade de atividades que se encon­
tram no campo decorre da ação dos pequenos produtores, que contribuem
de forma significativa para a produção de alimentos e que, de forma cria­
tiva, traçam suas estratégias para sobreviver. Há também no campo muito
sujeitos sociais como os grandes proprietários, os assalariados, os peque­
nos proprietários, os parceiros, os trabalhadores volantes, os sem-terra e
a sua luta pelo acesso à terra. Tais sujeitos materializam no espaço rural,
com o seu trabalho, uma ampla diversidade de objetos, elementos e situa­
ções que tornam o campo um espaço bastante complexo.
Soma-se a essa complexidade de situações, a presença de pessoas
oriundas da cidade, que muitas vezes desempenham outras atividades que
não a agrícola.
Esse crescimento de atividades não agrícolas é decorrente do desen­
volvimento tecnológico representado pela melhoria e expansão das vias
de comunicação, como estradas, telefonia e meios de transporte. Surgem,
portanto, novas relações campo-cidade, alterando a vida e o trabalho, in­
fluenciando, inclusive, a atuação dos movimentos sociais do campo que
lutam pelo acesso à terra no país.
Assim, mostramos a complexidade do espaço rural decorrente das
profundas transformações ocorridas recentemente e sua subordinação aos
interesses da cidade, buscando compreender essas relações e como os mo­
vimentos sociais presentes no campo estabelece estratégias, nas suas re­
lações com o Estado, para que um maior número de trabalhadores rurais
passem à condição de produtores rurais. Propomos, neste ensaio, desven­
dar algumas características presentes no espaço rural brasileiro e como
foram alteradas as relações campo cidade.

Relações campo x cidade: o espaço rural em perspectiva


Inicialmente, é importante assinalar a dificuldade que encontramos,
na atualidade, em trabalhar e precisar a noção do que seria o espaço rural,
e isso pode ser constatado no grande número de trabalhos que procuram

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refletir sobre as relações campo-cidade no Brasil contemporâneo. Mui­


tas vezes, esses trabalhos geram polêmicas em virtude, sobretudo, de uma
abordagem restrita à legislação que determina o que é urbano no Brasil.
São as municipalidades, por meio da lei municipal, que na realidade de­
terminam seu perímetro urbano, consequentemente, o espaço rural surge
por exclusão. Assim, tudo o que não é urbano é considerado rural. Todavia,
devemos pensar o espaço rural com sua complexidade atual em um mundo
globalizado, que apresenta uma perspectiva transescalar (local, regional,
nacional e internacional) dos fenômenos e, devido às conquistas tecnológi­
cas cada vez mais intensas há significativas transformações no território.
O papel da ciência e da informação é significativo para entender também
o setor agropecuário na atualidade. Pensar o espaço rural requer uma re­
flexão consistente, a partir da Geografia e de seus conceitos fundamentais,
aliados a um conhecimento empírico da realidade (o papel dos trabalhos
de campo em geografia). Isso requer pensar com rigor teórico-metodológi­
co as transformações que estão em curso no espaço rural brasileiro.
Nesse sentido, precisamos, em primeiro lugar, explicitar o que enten­
demos por espaço rural a fim de balizarmos as discussões sobre as transfor­
mações em curso no campo brasileiro, fortemente marcado pelo agronegó­
cio de bases modernas e biotecnológicas e pela produção familiar, com sua
enorme gama de variações no território brasileiro, seja pelos níveis tecnoló­
gicos diferenciados, pelas estratégias de sobrevivência para se manterem no
campo ou pela força dos movimentos sociais na luta pelo acesso à terra.
Face ao exposto nos perguntamos, qual imagem vem a nossa mente
quando pensamos em espaço rural, espaço de produção agrícola e pecuá­
ria, florestas, campos, espaço de turismo, de segunda residência, áreas me­
nos modernas ou mais modernas? Quais os problemas associados ao es­
paço rural?
Michel Woods (2005) sinaliza a existência de quatro amplas aborda­
gens utilizadas para caracterizar o espaço rural. A primeira delas remete à
descrição, para a distinção geográfica entre áreas urbanas e rurais, basean­
do-se nas características socioespaciais, expressas por meio de dados esta­
tísticos; a segunda está atrelada aos aspectos socioculturais e procura iden­
tificar os territórios rurais por meio de tais características, com a distinção
entre os aspectos das sociedades urbanas e rurais; a terceira, considera o
rural como local, ou seja, em como as estruturas locais interagem com os
processos econômicos e sociais globais; e, por fim, o rural é tomado como
representação social, que privilegia, na abordagem, os símbolos, ou seja,
os sinais e imagens pessoais que surgem quando os indivíduos pensam so­
bre o rural. A ruralidade aparece como um estado de espírito, como uma
identificação com o espaço rural. O rural não está apenas associado às
estatísticas, ele é caracterizado pelas pessoas que nele vivem e pelo modo
como elas se sentem habitando nesse espaço.

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Relações campo – cidade: uma leitura a partir do espaço rural fluminense

Dessa forma, o rural emerge como um espaço híbrido, que apre­


senta um complexo jogo de inter-relações com agentes naturais e sociais e
uma grande diversidade e dinamismo. No campo, são inúmeras as intera­
ções espaciais e redes geográficas, formadas pelas empresas que integram
os complexos agroindustriais, compostos por atores heterogêneos, como
empresas, produtores rurais, turistas. Esses atores encontram-se associa­
dos a uma gama variada de caminhos, sobretudo com a valorização do pa­
trimônio natural, histórico ou cultural.
Se admitirmos a possibilidade, no período atual, do hibridismo para
a caracterização do espaço rural, devemos tentar elencar algumas de suas
características. De acordo com Kayser, 1996, Diry 2004, Woods, 2005, Fer­
rão, 2000, o espaço rural apresenta baixa densidade populacional, predo­
mínio da atividade agrosilvopastoril (produção agropecuária e florestal),
modo de vida de seus habitantes caracterizados pelo pertencimento às co­
letividades e uma identidade fortemente marcada pela cultura camponesa.
Porém, essas não são as únicas características presentes nesse espaço, te­
mos as atividades não agrícolas e ligadas à indústria, comercio e serviços,
próximas às aglomerações urbanas.
Devemos também, nessa reflexão, ponderar sobre o papel do meio
natural, o papel da técnica, da herança histórica e da tradição e sobre o pa­
pel das grandes corporações, que articulam o local e o global. É necessário
também analisar quais são suas funções e como agem as grandes empre­
sas, em nível global e local e como suas estratégias globais são estabeleci­
das localmente.
Concordamos com Jean (2007), quando afirma que, na atualidade,
o espaço rural não se reduz unicamente à atividade agrícola. A agricultura
não corresponde ao foco estruturante do espaço rural, pois este apresenta
novas relações como, por exemplo, o crescimento do contingente popula­
cional em busca de vantagens comparativas, seja por meio de empregos
não agrícolas (vinculados ao setor industrial ou de serviços), seja na busca
de espaços residenciais. Assim, o espaço rural de uma função predominan­
temente agrícola passa a apresentar outras funções. Para Jean (2007), as­
sistimos ao renascimento do rural e de suas várias funções, fato que ocorre
também no espaço rural brasileiro.
Destarte, como caracterizar o espaço rural brasileiro em suas múl­
tiplas funções? Com atividades agrícolas e não agrícolas? Podemos iniciar
caracterizando o campo brasileiro a partir de suas grandes marcas como
os complexos agroindustriais, a produção familiar, a luta pela terra e como
se estabelecem as relações com a cidade.
A expansão dos complexos agroindustriais (CAIs) ocorreu devido à
incorporação de vastas extensões de terra, no caso da soja e das cadeias
produtivas de origem histórica como o café, o algodão, a pecuária bovi­
na, com a utilização de tecnologia, da mecanização da produção, priori­

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tariamente voltada para a exportação. Os complexos agroindustriais são


formados a partir da introdução da lógica capitalista no campo, capaz de
transformar a produção agrícola em agronegócio (industrialização da agri­
cultura). Foram incorporados ao processo produtivo, tratores, colheitadei­
ras, produtos químicos e sementes selecionadas, cuja produção foi orien­
tada para uma demanda de origem urbana e industrial. Esse é o caso da
produção de soja, laranja, café, cana de açúcar, entre outros produtos.
As noções de complexo agroindustrial, em suas conexões e interações
espaciais, formam uma rede que possibilita a produção em bases moder­
nas, pois, na atualidade, as empresas estabelecem conexões no território, de
forma a atuarem em todas as áreas de produção e comercialização dos pro­
dutos agrícolas. Nesse processo de expansão dos complexos agroindustriais
no território brasileiro, não podemos esquecer do papel do Estado, funda­
mental, para o financiamento da produção de pesquisa e para a implanta­
ção de uma logística no território, que permitiu a realização e circulação da
produção. Como afirma Moreira (2005), a noção de complexo agroindus­
trial estimula a fusão campo-cidade, pois os setores econômicos compõem
um único complexo, reorientando a divisão territorial do trabalho.
De acordo com Rua et al (1993, p. 111),

O fundamental é lembrar que a agricultura esta oligopolizada nos CAIs e


que mesmo uma pequena produção pouco tecnificada necessita, de alguma
maneira, de crédito (bancários ou particulares) para assegurar a manuten­
ção da produção familiar e, dessa maneira, acabar por se integrar aos CAIs,
pois, além da dependência financeira, depende de mecanismos de comer­
cialização, assistência etc. (...) A constituição dos CAIs e a industrialização
da agricultura passam a definir o ritmo da produção, as formas técnicas de
produzir e as relações sociais que passam a vigorar no campo brasileiro.

Assim, a produção agrícola brasileira, beneficiada pelas linhas de


crédito, destinada, principalmente, ao mercado externo e integrada às
grandes empresas internacionais, foi se expandindo e ocupando grandes
áreas de terra, uma forma imposta de gestão de produção e comercializa­
ção de alimentos em escala mundial, conforme afirma Achkar (2007).
Entretanto, além da produção moderna e integrada aos mercados
globalizados, temos também a presença expressiva da produção de base fa­
miliar no meio rural brasileiro. Na busca de sua reprodução e sobrevivên­
cia, a produção familiar tem apresentado características como o trabalho
em tempo parcial, em face de diminuição da jornada de trabalho (favore­
cida pela incorporação de tecnologias de produção), ou seja, há liberação
de membros da família para exercerem outras atividades, agrícolas e não
agrícolas, complementando assim a renda familiar. Esse fenômeno é de­
nominado pluriatividade. Ele se expandiu, entre outros fatores, devido à
revalorização do mundo rural nas atividades associadas aos setores indus­

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Relações campo – cidade: uma leitura a partir do espaço rural fluminense

triais e de serviços, que passaram a absorver, em suas atividades, trabalha­


dores oriundos de unidades de produção familiar. Acredita-se hoje que a
pluriatividade pode elevar a renda no meio rural, diversificar as fontes de
renda, contribuir para a geração de empregos, reduzir a migração campo
– cidade.
Entre as atividades não agrícolas presentes no campo, na atualida­
de, merecem destaque as atividades turísticas, devido à proliferação de
áreas de lazer no meio rural.
O desenvolvimento de atividades turísticas no espaço rural está as­
sociado ao processo de urbanização e ao transbordamento do espaço ur­
bano para o espaço rural (GRAZIANO DA SILVA, 1998). Para esse autor,
“novas” formas de ocupação passaram a proliferar no campo. Entre elas,
moradias de segunda residência; atividades de conservação; áreas de la­
zer (hotéis-fazenda, fazenda-hotéis, pesque-pague etc.). Destacam-se, nes­
se contexto um conjunto de profissões tidas como urbanas (trabalhadores
domésticos, mecânicos, secretárias etc). Essas “novas” atividades deman­
daram um número crescente de pessoas para dar sustentação à expansão
das atividades associadas aos setores secundários (etapas da produção in­
dustrial) e terciárias ( atividades turísticas) no espaço rural, o que possibi­
litou que os membros das famílias, liberados das atividades rotineiras da
exploração agrícola, pudessem ocupar as vagas geradas na expansão do
turismo rural.
Para Rua (2007), o espaço rural, há algum tempo, vem sendo perce­
bido como terra mercadoria capaz de gerar outras mercadorias. Surgem
novas territorialidades resultantes da interação campo-cidade. Essa hibri­
dez está presente nas diversas formas de ocupação que encontramos no
campo e está associada às atividades rurais. Ainda segundo o autor, exis­
tem duas vertentes da teoria social crítica que analisam as relações entre
o urbano e o rural. Uma procura trabalhar com a noção de urbanização
do rural, com a incorporação do rural ao urbano, associada à idéia de um
“continuum”, ou seja, haveria graus distintos de urbanização do território.
Outra, que postula a urbanização no rural e entende a manutenção de es­
pecificidades no espaço rural, mesmo com a impactação do urbano.
Essas reflexões servem para pensar a relação campo x cidade, uma
vez que legalmente a regulamentação do que é urbano no país está atrelada
à legislação. Conforme mostram Correa, Correa e Gerardi (2001), o poder
de decisão sobre o que é urbano reside na esfera municipal, que, muitas
vezes, impõe aos moradores do campo a cobrança de IPTU.
Nesse sentido, concordamos com Ferrão (2000) ao sinalizar que, na
atualidade, deveremos levar em consideração que o espaço rural não é so­
mente agrícola. Rompe-se deliberadamente e explicitamente com dois ele­
mentos secularmente associados ao rural: sua função principal não é mais,
necessariamente, a produção de alimentos e nem a atividade predominan­

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te é a agrícola, reforçando assim a noção de hibridez do espaço rural. A


dimensão não-agrícola vem aumentando, muitas vezes, associada à noção
de patrimônio, com a renaturalização da paisagem. Enfatiza-se a preser­
vação e a proteção da natureza, valoriza-se a busca da autenticidade dos
elementos paisagísticos locais, a conservação e a proteção dos patrimônios
históricos e culturais, o resgate da memória e da identidade. Dessa forma,
há a mercantilização das paisagens, com a consequente expansão das ati­
vidades de turismo e de lazer.
Assim, nós, que aprofundamos nossas investigações pelo viés do espa­
ço rural, devemos pensar o espaço rural brasileiro como híbrido, com múl­
tiplas funções, com a presença dos complexos agroindustriais, da produção
familiar, das atividades não agrícolas, de agricultores e não agricultores, que
interagem e criam conexões e interações espaciais. Esses sujeitos participam
de redes complexas e imprimem uma marca ao espaço rural.
As fronteiras entre o urbano e rural ficam cada vez mais difusas e
complementares. O grande desafio é o de investigar e contribuir com o deba­
te sobre as transformações socioespaciais em curso no campo brasileiro.

Relações campo – cidade: uma leitura a partir do espaço rural


fluminense

O Estado do Rio de Janeiro é o segundo polo industrial do Brasil,


produz cerca de 71% do petróleo nacional, também é o maior produtor de
gás natural do país. Além disso, sua produção de pescado é significativa as­
sim como a olericultura, horticultura e produção de leite. A sua paisagem
natural é bastante diversificada, porém bastante degradada devido às ati­
vidades socioeconômicas vivenciadas pelo Estado. Corresponde ao Estado
mais urbanizado do país, com 95% de sua população vivendo em áreas­
urbanas. De acordo com Rua (2007), o território fluminense é marcado
por eixos de urbanização, nos quais ocorre uma urbanização mais densa,
percebemos assim uma redistribuição populacional e das atividades pro­
dutivas (Limonad, 1996).
O Estado apresenta muitos problemas em relação ao meio rural. A
vasta concentração de população, de renda, de poupança, de condições de
desenvolvimento na Região Metropolitana do Rio de Janeiro gerou um forte
desequilíbrio inter-regional, com exclusão política e social de parte da po­
pulação do interior (MOREIRA, 2001). Segundo os resultados do Censo De­
mográfico 2000 (IBGE), aproximadamente 10.871.960 indivíduos residem
nos limites da área metropolitana, correspondendo a 75,6% da população
estadual. Constituída por vinte municípios, a Região Metropolitana ainda se
mantém como um marco polarizador de recursos (RIBEIRO, 2002).
Apesar da enorme concentração da população fluminense em sua
Região Metropolitana, surgiram nos anos 1990 algumas mudanças em re­

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Relações campo – cidade: uma leitura a partir do espaço rural fluminense

lação à dinâmica demográfica do Estado do Rio de Janeiro. A mais im­


portante refere-se à simultaneidade de um movimento tendente à despo­
larização espacial, com a emergência de novos centros de porte médio no
interior do Estado, e de outro, em sentido inverso, de consolidação dos
centros urbanos metropolitanos (SANTOS, 2003). Apesar da expansão de­
mográfica, nas bordas metropolitanas, manifestar-se desde, pelo menos, a
década de 1950, esse movimento não implicou uma desconcentração da
população em direção ao interior, resultando no aumento do número das
cidades médias, que eram 10 em 1980, e passaram para 17 em 2000. Des­
tas, 10 localizam-se fora da Região Metropolitana (SANTOS, 2003).
Rua (2002, p. 47-48) assinala que no Estado do Rio de Janeiro “pre­
valece a projeção da metrópole carioca que intensifica o processo de urba­
nização” e essa intensa urbanização marca intensamente o território flu­
minense nas “dimensões política, cultural, comportamental, econômica,
em que o significado dessa área urbana torna-se esmagador”. O Interior
Fluminense vem se destacando, não somente em termos de crescimento
demográfico (ainda pequeno), mas no abastecimento de produtos agrope­
cuários (hortigranjeiros, leite e produtos com nicho de mercado especiali­
zado como orgânicos, ervas-finas, leite de cabra, trutas etc), além de estar
servindo como área de lazer para a prática de turismo rural, com a prolife­
ração de hotéis-fazenda, pousadas, spas e casas de segunda residência.
De acordo com Ribeiro (2002, p. 21), apesar do estado do Rio de
Janeiro apresentar baixos totais, em relação aos totais nacionais, quan­
to às variáveis: pessoal ocupado, valor da produção, quantidade colhida e
modernização; o seu quadro agrário apresenta relevância e contrastes no
âmbito estadual. Estes contrastes são decorrentes de uma agropecuária
tradicional, que domina a maior porção do território fluminense, diante de
outra de caráter moderno. De um lado, produtos tradicionais, exemplifi­
cados pela cana-de-açúcar, além de cultivos de subsistência; do outro, cul­
turas que requerem técnicas aprimoradas, como o tomate, a horticultura,
a fruticultura e a olericultura, marcando o Cinturão Verde da metrópole,
nos municípios integrantes das Regiões Serrana, Centro-Sul, e Noroeste
Fluminense.
Os agricultores familiares, em grande maioria, passam por uma gra­
ve crise devido à concentração de renda e à falta de políticas agrícolas efe­
tivas. As grandes propriedades sempre ocuparam uma parcela considerá­
vel do Estado do Rio de Janeiro (representam 11,5% dos estabelecimentos
e ocupam uma área de 67,7% dos mesmos), tendo desempenhado papel
relevante nas exportações agrícolas do País. Entretanto, após encerrar os
ciclos fluminenses de exportação de açúcar, e café (respectivamente 1900-
1930 e 1970-1980), a maioria das grandes propriedades voltadas para a
comercialização desses produtos passou a caracterizar-se pela falta de di­
namismo das atividades agrárias nela desenvolvidas, devido à descapita­

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lização decorrente da decadência das grandes lavouras comerciais. Isso


contribuiu para que extensas áreas do Estado apresentassem um nível de
aproveitamento agrícola muito inferior ao potencial produtivo das terras,
podendo-se mencionar o Vale do Paraíba, onde predomina a pecuária bo­
vina caracterizada por índices muito baixos de produtividade.
Por outro lado, verifica-se que os pequenos proprietários – bastante
numerosos – têm poucas possibilidades de realizar investimentos em suas
terras, uma vez que operam com retornos muito reduzidos para permitir
a capitalização de suas unidades de produção. Esse é o caso dos pequenos
proprietários fornecedores de leite às Cooperativas do Noroeste Fluminen­
se, do Médio Vale e Centro Sul Fluminense, os quais, embora detenham
a propriedade da terra, têm uma forma de inserção na produção regional
que implica reduzida autonomia na condução do processo produtivo e li­
mitações quanto à possibilidade de investir em suas unidades de explora­
ção. Em outros casos, como na Região Serrana, onde há o predomínio da
produção de hortigranjeiros em pequenas propriedades, a pluriatividade
é adotada como alternativa de fonte de renda pelos agricultores. Muitos,
além de realizarem suas funções na propriedade agrícola, exercem ativi­
dades não-agrícolas (como caseiros, motoristas, empregados domésticos,
fiscais de rodovia etc) nas casas de veraneio, nos hotéis e para as prefeitu­
ras da Região.
Constata-se que, em território fluminense, as transformações no es­
paço rural, como a prática do turismo rural e a disseminação de empregos
não-agrícolas encontram-se associadas ao intenso processo de urbaniza­
ção, e que pode ser sintetizadas da seguinte forma: eixo que se desloca da
RMRJ em direção a Angra dos Reis e Paraty, a Região da Bahia da Ilha
Grande, também conhecida como Costa Verde, na qual se destacam as
atividades de turismo, que têm provocado imensas transformações, com
apelo intenso para o turismo de praia, histórico e ecológico. Esta região
concentra, em seu território, grandes reservas de Mata Atlântica, inúme­
ras ilhas (entre elas a Ilha Grande), cidades históricas como Paraty. Gran­
de parte do território integra áreas de proteção ambiental, o que inibe a
prática de atividades agrícolas. A intensa ocupação por grandes hotéis de
luxo e condomínios fechados provoca especulação imobiliária, expulsando
os produtores familiares de suas terras. A eles, resta inserir-se no merca­
do de trabalho urbano ou dedicar-se à prática da agricultura extrativista,
com a exploração da banana e do palmito, assessorados por técnicos go­
vernamentais da EMATER e IBAMA e exercerem atividades não-agrícolas,
trabalhando nos hotéis e condomínio. Outro eixo que tem no turismo um
forte vetor de crescimento é o que segue da RMRJ em direção a Cabo Frio,
Búzios e Macaé, a Região das Baixadas Litorâneas (Costa do Sol). Observa-
se um intenso crescimento de turismo de massa em direção ao litoral norte
do Rio de Janeiro, provocando uma intensa urbanização e a proliferação

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Relações campo – cidade: uma leitura a partir do espaço rural fluminense

de segundas residências, o que levou ao fracionamento da terra e à expul­


são das atividades agropecuárias para a criação de loteamentos e condomí­
nios. A presença da Petrobrás em Macaé representa na constatação de Rua
(2002 p. 48), “uma avassaladora especulação imobiliária com profundas
marcas de segregação socioespacial”.
Outro eixo de urbanização é o que ocorre no “topo da serra” (Rua,
2002) e os principais representantes desse eixo são os municípios de Nova
Friburgo, Petrópolis e Teresópolis. Essa área é marcada pela produção de
hortigranjeiros e flores, que abastece a RMRJ. Apresenta também um tra­
dicional e significativo polo industrial (com destaque para a moda íntima),
além da presença de inúmeros sitos de veraneio, casas de segunda residên­
cia, hotéis-fazenda, pousadas, spas, que associam seus estabelecimentos
aos aspectos naturais da região. Corresponde a uma área de turismo al­
ternativa ao turismo de praia da Costa Verde e do Sol. Nessa área, ocorre
uma intensa produção agrícola em bases familiares, centrada em peque­
nos estabelecimentos, na mão-de-obra-familiar e na baixa tecnificação da
lavoura. Esses produtores, na grande maioria das vezes, ficam à mercê dos
atravessadores que controlam o processo de comercialização da produção.
Produzem alface, brócolis, couve-flor, tomate etc e apresentam baixo ren­
dimento em suas atividades agrícolas. Para a complementação da renda
familiar, se inserem no mercado de trabalho não-agrícola, exercendo ati­
vidades de jardineiros, caseiros, domésticos, ou trabalhando em empresas
das cidades da região. Essa área também produz orgânicos e hidropônicos,
para um mercado consumidor restrito à zona sul da cidade do Rio de Ja­
neiro. Na Região Serrana Fluminense, nota-se a presença marcante de ati­
vidades relacionadas ao turismo rural contemporâneo e em sintonia com
a produção familiar.
As Regiões do Médio Vale do Paraíba e Centro Sul Fluminense, além
da produção leiteira, contribuem com a produção de hortigranjeiros para
o abastecimento da RMRJ, mas apresenta, como marca na paisagem, a ati­
vidade cafeeira, com presença das grandes casas nas sedes das fazendas,
o que levou os municípios da área a organizarem o “Festival do Vale do
Café”, porém não apresenta interatividade com os produtores familiares,
que continuam a buscar sua complementação de renda nas indústrias da
região, que concentram um grande número de empresas do setor metal-
mecânico.
As Regiões Norte e Noroeste Fluminense, em função do distancia­
mento da Área Metropolitana, apresentam fortes características rurais,
com a produção de leite, cana-de-açúcar, café e frutas. Esse quadro tem
sido alterado com a presença da Petrobrás ( e seus royalties), que propor­
ciona empregos também para os agricultores dessas regiões. O estabeleci­
mento de um roteiro turístico associado à atividade canavieira é incipiente
e encontra resistência por parte dos proprietários das fazendas.

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Gláucio Jose Marafon

A intensa urbanização e expansão da metropolização auxiliaram a


acirrar as particularidades e as singuliradades presentes no espaço rural
fluminense e a acirrar os conflitos fundiários no estado. Temos assim um
espaço rural em transformação, que na afirmação de Rua (2002: 24) en­
contra-se com a presença de “urbanidades no rural, que seriam todas as
manifestações do urbano em áreas rurais sem que se trate esses espaços
formalmente como urbanos”, mas que não se contrapõe à ruralidade, é en­
tendida como “um modo particular de utilização do espaço e da vida so­
cial” (MOREIRA, 2005: 21).

Considerações finais
No espaço rural, observam-se inúmeras atividades: as agrícolas, com
a produção de matérias primas para indústria, a produção de alimentos, a
presença de assentamentos e acampamentos de trabalhadores rurais; e as
não agrícolas, como a localização de indústrias, a procura de áreas com a
natureza preservada para a construção de residências, de hotéis e pousa­
das, que geram a necessidade de mão-de-obra e proporcionando a possibi­
lidade de empregos e de aumento da renda familiar aos produtores rurais
residentes. O aumento dessas atividades não agrícolas está associado à im­
plementação, pelo poder publico, da infra-estrutura de transporte e de co­
municação, que permite a circulação dos fluxos de pessoas, mercadorias,
informações e capital.
A maior parte das mudanças corresponde ao espaço rural não incor­
pora a produção dos complexos agroindustriais e, em sua grande maioria,
corresponde à produção familiar em pequena propriedade. É nesse espaço
não incorporado ao modelo hegemônico que ocorrem as maiores transfor­
mações, pois a procura por áreas que apresentam preservação da nature­
za e que podem ser transformados em áreas de lazer, com a construção de
sítios de final de semana, hotéis e pousadas atraem populações das áreas
urbanas e proporcionam empregos aos pequenos produtores rurais. Tal
fato oferece-lhes a possibilidade de exercer outras atividades, que não so­
mente as agrícolas. São nesses espaços que também ocorrem o incentivo
às práticas agroecológicas e alternativas, em detrimento da forma de pro­
dução tradicionalmente efetuada nas médias e grandes propriedades. Es­
ses locais correspondem ao espaço rural revalorizado em decorrência da
natureza mais preservada e que se torna uma mercadoria a ser consumida
pelas populações, sobretudo de origem urbana.
A concentração fundiária que provoca a exclusão de milhares de
brasileiros da terra, fomentando os movimentos sociais no campo, perma­
nece presente no espaço rural fluminense. Mudam as relações entre o cam­
po e a cidade, com a subordinação do campo à cidade, porém, ambos se
integram como espaços de consumo. Permanecem e mudam os espaços da

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Relações campo – cidade: uma leitura a partir do espaço rural fluminense

produção em base familiar, pois como afirma Monte-mór (2206, p. 7) “os


campos, por sua vez, tão diversos entre si, garantem diversidade dentro de
suas homogeneidades extensivas e escalas de produção quando tomados
de forma abrangente. Contêm também processos de competição e coope­
ração, mesmo gerenciados pelas cidades e limitados pela autossuficiência
relativos que mantêm”.

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Gláucio Jose Marafon

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Trajetórias e cenários de integração
das populações rurais: exemplos
do Brasil e da França

Martine Droulers1
CNRS, Université Paris 3 | martine.droulers@univ-paris3.fr

Nesse texto, queremos analisar o sentido das mudanças que estão


acontencendo no mundo rural. Essa análise será feita por meio das tra­
jetórias das populações rurais num país da Europa, a França, e num país
de economia emergente, o Brasil; os dois sendo grandes exportadores de
produtos agrícolas, segundo e terceiro na economia mundial, embora com
estruturas bem diferentes. De um lado, o Brasil dispõe de reservas fundiá­
rias e boas vantagens competitivas, do outro, a França e a União Europeia
estão se especializando em produtos de qualidade e de alto valor agrega­
do. Vamos analisar alguns momentos de evoluções fortes nas quais se ne­
gociam as (re)funcionalizações do setor rural nas sociedades em rápida
recomposição.
Esse trabalho representa uma tentativa de esclarecer o significado
das mudanças sociais, econômicas, políticas e ambientais occorendo no
mundo rural a partir de uma análise geohistórica das trajetórias das so­
ciedades rurais. Essas, não somente, respondem ao desafio do crescimen­
to urbano e da proteção do meio ambiente, como se posicionam para dar
conta do triplo desafio da evolução da agricultura num mundo que deve
1
Eu gostaria de agradecer aos promotores do XIX Encontro nacional de Geografia agrária e,
em particular, ao professor Júlio César Suzuki pela excelente organização do evento, bem
como pelo convite que me incentivou a retomar o tema dos meus primeiros anos de pesquisa
no Brasil. Essa apresentação seria também uma contribuição em relação ao Ano da França
no Brasil (21/04 a 15/11 de 2009).

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Trajetórias e cenários de integração das populações rurais:
exemplos do Brasil e da França

atingir 9 bilhões de habitantes em 2050: produzir mais, produzir outra coi­


sa, produzir de outra maneira2. A nossa posição de pesquisa inclue uma
análise dinâmica e uma comparação que abre perspectivas para um deba­
te mais amplo.
Após algumas reflexões sobre as trajetórias das populações rurais,
das “tradicionais” até as mais modernas, no contexto francês e brasileiro e
a evolução da noção de ruralidade, enfatizaremos algumas inovações insti­
tucionais e de mercado que permitem a integração dos pequenos produto­
res, como o exemplo da PAC (Política agrícola Comum da União Européia)
e suas reformas, para propôr no final um quadro com os três tipos de tra­
jetórias possíveis para as populações rurais tradicionais.

Trajetórias rurais diferenciadas


Qual é o futuro das populações rurais enquanto se deslineam novas
ruralidades? Quais são as grandes linhas de evolução? O ponto de partida
seriam as populações rurais tradicionais, pequenos produtores familiares
enraizados nos territórios rurais, pouco e mal integrados na economia de
mercado, denominados caboclos no Brasil. Estão em vias de desapareci­
mento no contexto das mutações/modernização que afetam tanto as ati­
vidades agrícolas, como as mudanças do uso do espaço rural; portanto,
elas representam ainda um estoque importante de populações rurais cujo
destino põe em jogo o porvir das nações e dos territórios. Podemos inda­
gar acerca das novas formas de ruralidades que estão aparecendo, cons­
tatando, pelos menos no mundo ocidental, que depois de um decréscimo
contínuo de meio século da população rural, estariamos chegando a certo
patamar de estabilidade desse mundo rural e mesmo das atividades agrí­
colas em via de estabilização. Desse quadro, a trajetória do Brasil se dife­
rencia, pois o país conhece ainda uma fase de abertura de novos espaços
rurais com instalação de novos agricultores, procurando também integrar
a sua sociedade camponesa. Os processos históricos e os ritmos de oscila­
ções crescimento/decréscimo são bem diferenciados entre o velho e o novo
mundo, sendo que alguns números vão ajudar a entender essas diferencia­
ções, mas a tendência geral vai ao sentido de estabelecer novas relações
entre o mundo rural e as sociedades nacionais.
Na França, a superfície agrícola depois de ter sido reduzida, desde
a Primeira Guerra Mundial, se estabilizou a pouco mais da metade do ter­
ritório (54%), ou seja, 32 milhões de hectares (com uma superfície média
por estabelecimento agrícola de 44 ha); as florestas ocupam 15 milhões de
hectares, bem fragmentadas, sendo que 2/3 são privadas (3,7 milhões de

2
Cf B. Chevassus-au-Louis, INRA et M. Griffon, Cirad, “La nouvelle modernité : une agricul­
ture productive à haute valeur écologique”, Déméter, p.7-48, 2008.

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Martine Droulers

pequenos proprietários) e o resto do território, 7 milhões de hectares, está


com outras atividades, com exceção da agricultura. A população agrícola
diminiu inexoravelmente até representar 5% (500 000 agricultores) da po­
pulação total, em 2002, enquanto a população rural, depois de ter diminuí­
do durante um século, parece se estabilizar a pouco mais de 20% da popu­
lação, ou seja, 13 milhões de pessoas.
No Brasil, país jovem, o número de estabelecimentos agrícolas con­
tinua crescendo pela conquista de novos espaços dedicados às atividades
agropecuárias. Segundo os dois últimos censos agropecuários do IBGE,
o Brasil, depois de uma forte diminuição no número de estabelecimentos
agropecuários, entre 1985 e 1995, passando de 5,8 a 4,8 milhões, retorna
o crescimento, ultrapassando os 5,2 milhões de estabelecimentos, com su­
perfície média de 70 ha, no último censo de 2006 por conta, em grande me­
dida, da abertura de novos assentamentos rurais.
O país tem margem para expansão dos seus estabelecimentos agro­
pecuários, ainda, porque apenas 43% do território, ou seja, 370 milhões de
hectares compõem a área de tais estabelecimentos. No entanto, segundo os
planos do governo, 40% do território deveria entrar na categoria de áreas
protegidas. Apesar do contexto de conquista agrícola, a proporção de po­
pulação rural continua diminuindo.
Para comparar esses dados com outras situações no mundo, vale a
pena ressaltar que, na Ásia, a população rural ainda é majoritária (Índia
com 70% e China, 60%), densa e com pequenas parcelas de terra agrí­
cola. Existem casos extremos como o Egito que possui uma superficie
agrícola total de apenas 3,7 milhões de hectares, o seja, 10% da super­
fície desse país da África é cultivável no vale do Nilo, onde a média de
terra é apenas de um hectare por produtor (3,7 milhões de camponeses).
Apesar desses contrastes mundiais, a tendência geral continua sendo o
êxodo rural com intensas migrações campo/cidade, em que as oportuni­
dades de renda são melhores.
Podemos considerar que o grande desafio mundial concernente ao
futuro do trabalho agrícola e da produção alimentar no contexto da dimi­
nuição do número de agricultores no mundo é como alimentar a humani­
dade de nosso planeta3. A esse desafio da alimentação mundial se acrescen­
tam as interrogações acerca do tipo de sistema agrícola suficientemente
produtivo, socialmente justo e ecologicamente sustentável. Até onde vai
continuar o processo de desaparecimento dos agricultores? Atualmente,
existem, no mundo, 1,3 bilhões de agricultores, dos quais 2/3 são chineses

3
M. Griffon Nourrir la planète, pour une révolution doublement verte, 2006. O autor, agrôno­
mo, defende a promoção da agroecologia. Na mesma linha, a Fundação Zeri promove uma
segunda revolução verde, procurando reproduzir os mecanismos da natureza e eliminar os
resíduos pelo uso total da biomassa (experiências no Paraná).

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Trajetórias e cenários de integração das populações rurais:
exemplos do Brasil e da França

e indianos, o que representa 43% da população ativa mundial que trabalha


na agricultura. Esses números estão diminuindo no mundo que se urbani­
za, já que a tendência é a de que os agricultores cuidem de mais espaco e
produzam mais. Entretanto, a evolução se diferencia segundo a estrutura
demográfica e a evolução política dos países. Por exemplo, na Europa de
Leste, observa-se uma tendência inversa, em que aumenta os produtores
rurais, assim, a Polônia4 conta com três vezes mais agricultores do que a
França, ou seja, dois milhões de estabelecimentos com tamanho médio de
8 ha. Do seu lado, a França continua perdendo população agrícola, restan­
do apenas 5%, enquanto o Brasil mantém ainda 20% de população agríco­
la e amplia o número de agricultores.
A nossa hipótese é que, na era da globalização, a inserção do mun­
do rural, nas sociedades nacionais, se opera de outra maneira, com novos
instrumentos institucionais e mercadológicos. A maioria dessas inovações
é múltipla, envolvendo vários segmentos da sociedade civil, o que conduz
para a ultrapassagem da clássica ligação sólida que existia entre os agricul­
tores e o Estado, na montagem de políticas agrícolas, sendo que a Política
Agrícola Comum foi um passo nessas mudanças das relações entre o Esta­
do e o mundo camponês.

A Política Agrícola Comum – PAC


A França conheceu um intenso processo de modernização agrícola
durante 45 anos, tendo como conseqüência uma queda de dois milhões
para 500.000 estabelecimentos agrícolas com tamanho médio de 45 hecta­
res. O setor continua perdendo 12.000 agricultores ao ano.
O período de modernização da produção se acelerou com a elabo­
ração da PAC (Política Agrícola Comum) a partir de 1962. Os objetivos
gerais no contexto dos anos 1960-70 visavam aumentar o rendimento
dos estabelecimentos agrícolas para oferecer uma alimentação a baixo
custo e obter uma maior produtividade a fim de liberar a mão de obra
para indústria e serviços. O objetivo específico dessa política era organi­
zar o mercado interno da Europa por cadeia produtiva com três idéias
básicas: mercado único, solidariedade financeira e preferência comuni­
tária. Como foi possível a aplicação dessas reformas na França? Algu­
mas explicações podem ser consideradas: o mundo agrícola era bastante
estruturado com um sindicato único (FNSEA); várias organizações pro­
fissionais fortes (carnes, leite, grãos, vinhos) agiram como interlocuto­
res importantes; o mundo rural, participativo do processo, gozava de
um real poder de pressão política (deputados e senadores defendendo o
mundo rural).

4
A Polônia tem uma superfície de 312 600 km2 e conta 38 milhões de habitantes.

172

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Martine Droulers

A dimensão sócio-política da modernização merece ser estudada,


pois a possibilidade de negociação entre os atores é fundamental nos pro­
cedimentos de incorporação política da população do campo. O modelo
de modernização agrícola posta em prática pela Comunidade Européia foi
considerado como muito bem sucedido dentre os dois outros modelos vi­
gentes na época: o americano e o soviético. Teve como resultado o salva­
mento de pelo menos uma geração de agricultores familiares, enquanto os
preços (superiores aos do mercado mundial) eram garantidos aos produ­
tores, o que assegurou a sustentabilidade social da agricultura familiar que
também gozava de subsídios5.
Apos trinta anos de investimentos produtivos, o funcionamento da
Política Agrícola Comum teve que ser reformulada por várias razões. O
modelo da PAC (Política Agrícola Comum) chegava a seus limites. De um
lado, o produtivismo gerou superprodução, de outro, tinha necessidade
de subsidiar as exportações, além do mais os danos ambientais se alastra­
vam. E, também, no contexto da mundialização era necessário diversificar
os sistemas de produção; já que as negociações do GATT avançavam no
sentido de reduzir as barreiras alfandegárias (por exemplo, a soja perto de
zero), porém entre os países da Europa apareceu um dissenso interno so­
bre o financiamento da PAC (sobretudo entre França e Reino Unido).
No mesmo período se concretizou o alargamento da União Euro­
péia com abertura a outros países que vinham com produtos agrícolas di­
ferentes e outros sistemas de vantagens. Isso teve como conseqüência a
supressão progressiva da preferência comunitária. As primeiras medidas
de reforma foram tomadas em meados dos anos 1980: quota leiteira e in­
centivos às terras em descanso voluntário (friche). Outras reformas de pro­
cessos ocorreram nos anos de 1992, 1999, 2003, com muita resistência do
mundo agrícola sobretudo na primeira fase. Estabeleceu-se uma nova cha­
ve de distribuição de subsídios: não haveria mais incentivos à produção,
mas segundo as áreas, o nível de renda dos agricultores e a aplicação de
medidas ambientais (MAE), dentre outros tipos de incentivos, como o da
agricultura orgânica, dos sistemas extensivos, das reservas de flora e fau­
na, de medidas de biodiversidade (retorno às raças rústicas), de proteção
dos recursos hídricos; com planos regionais de desenvolvimento rural por
zonas ou também com CADs (Contratos de Agricultura Sustentável) com
os agricultores que faziam previsões de rentabilidade e sustentabilidade.
Observa-se que, após a reforma da PAC, a diversificação dos sistemas pro­
dutivos se operou mais amplamente a partir dos territórios e de segmentos
de mercado específicos.
No final, a organização do mercado seria o ponto fundamental da
reforma da PAC, com alargamento, fluidez e estruturação por cadeias pro­

5
Na França, o estatuto de “fermier”, de 1946, favorecia quem trabalhava a terra.

173

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Trajetórias e cenários de integração das populações rurais:
exemplos do Brasil e da França

dutivas. Assim, na Europa, a organização Comum de Mercado mais forte


é a relativa aos grãos. A organização e a segmentação dos mercados são
elementos que, bem utilizados, podem favorecer a valorização dos recur­
sos territoriais pelo apelo à qualidade, à origem geográfica, à certificação.
A obtenção desses selos de qualidade significa caminhar para novas par­
cerias entre os atores dos territórios e das empresas; uma das finalidades
está sendo chegar a difícil preservação-valorização, em longo prazo, dos
recursos locais (bens comuns).

Interpretações e instrumentos da modernização agrícola


no Brasil

A modernização agrícola no Brasil foi chamada de modernização


conservadora, pois manteve a dicotomia entre os grandes e os pequenos pro­
dutores agrícolas. O principal instrumento governamental para implantar a
modernização agrícola foi o crédito subsidiado, associado com as ofertas de
assistência técnica, recursos públicos para a pesquisa (em que pese o papel
importante da EMBRAPA) e preparação de profissionais especializados. A
Confederação Nacional da Agricultura (CNA) afirma que o montante da dí­
vida agrícola (todas as linhas de crédito) chega à casa dos R$ 130 bilhões, o
equivalente a 24% do PIB do agronegócio de 2006 (Teixeira, 2007).
Mesmo com o agronegócio ganhando importância e funcionando
como empresas-âncoras para o desenvolvimento da agricultura familiar das
redondezas, ainda mais da metade dos estabelecimentos agrícolas estão no
nível da subsistência6. As interpretações sociológicas insistem em mostrar a
persistência dos conflitos agrários e da oposição de classes, ou seja, de um
lado os assalariados rurais, os posseiros, pequenos arrendatários e campo­
neses, com péssimas condições de vida e de trabalho7, e, do outro lado, a
burguesia agrária e o empresariado unidos em defesa do monopólio da pro­
priedade privada e da modernização agrícola violenta. Portanto, a partir de
meados dos anos 1980, a luta pela terra passou a ser conduzida por uma or­
ganização não sindical, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST), que delinea um feixe de trajetórias sociais, algumas de oposição à
política de colonização na Amazônia, outras de reafirmação da terra como
espaço de vida e de trabalho. Esta posição espaço-temporal configura, tanto
o existir como camponeses, quanto a cristalização de trajetórias de vários
grupos camponeses diferenciados (TAVARES DOS SANTOS, 1993). Ceden­
do à pressão dessas lutas, o Governo Federal ampliou o número de projetos

6
12% seriam empresários rurais e 30% agricultores familiares capitalizados inserindo seus
produtos nos mercados (INCRA-FAO, 2000)
7
“Foram tratadas como categorias atrasadas, como resquícios do passado, sem presença e
sem vontade histórica conseqüentes no cenário político brasileiro” (Martins, 1997).

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Martine Droulers

de assentamentos no país: de 7.800 para 900.000 assentados entre 1985 e


2005 (DATALUTA, 2006). Vamos expor quatro casos que revelam a dinâmi­
ca organizacional do mundo agrícola no Brasil.
Uma área em que a agricultura familiar vem crescendo fortemente
na última década é o estado do Para, mais especificamente na região de
Marabá, na qual foram implantados 380 projetos de assentamentos, totali­
zando mais de 80.000 famílias com aplicação de recursos da ordem de R$
96 milhões. Resultou que a agricultura familiar ocupa mais espaço (1,2 mi­
lhões de ha) do que a agricultura não-familiar (1,1 milhões de ha) (Oliveira
et alii, 2004). Pesquisas indicaram que o sistema produtivo mais adaptado
à economia regional está baseado na pecuária bovina com sistema cria/re­
cria que permite atingir níveis de renda maiores no contexto de uma dinâ­
mica regional incontestável. Desse novo quadro no campo, surgem inicia­
tivas e nascem estruturas organizativas inovadores da agricultura familiar,
como: centrais de associações de produtores rurais prestadoras de serviços
de assistência técnica e Federação das Cooperativas da Agricultura Fami­
liar do Sul do Pará (Fecat) que revelam a pluralidade das inovações insti­
tucionais numa região que, entretanto, sofre da instabilidade das políticas
públicas e das decisões que vem “de cima para baixo” (Veiga et alii, 2007).
Será que a existência da produção familiar (agricultura familiar)
exige uma agricultura altamente tecnificada, profissionalizada e inte­
grada a esquemas de comercialização, para garantir a sua sobrevivência
como defende Abramovay (1994)? O exemplo de dois sistemas de produ­
ção do café em Minas Gerais confirma essa necessária inserção nos mer­
cados. Assim, o alto grau de eficiência foi atingido por novas organizações
de cafeicultores, tanto na região de pequenos produtores tradicionais das
montanhas do sul de Minas, quanto dos produtores novos do Cerrado que
implementaram inovações técnicas para comercializar os cafés finos. De
um lado, 25.000 produtores em 16 cooperativas, do outro, 3.500 cafeicul­
tores reagrupados em oito associações leves e enxutas, reunidas no Con­
selho das Associações dos Cafeicultores do Cerrado – CACCER – que tem
um papel de representatividade política e comercial para assegurar o re­
conhecimento da marca “café do Cerrado” e a promoção das associações
de Patrocínio, Araguari, Coromandel etc. No Sul Minas, as duas princi­
pais cooperativas: a Cooxupé (Guaxupé) e a Cooparaiso (São Sebastião
do Paraíso) respondem também aos desafios dos novos mercados do café,
visando a melhoria da qualidade e a redução das perdas por falta de sele­
ção dos produtos. Com esses avanços, as regiões têm marcas registradas:
café do Sul de Minas, café do Cerrado, várias vezes premiados8. Duas ma­

8
O Brasil se mantém como o primeiro produtor e o primeiro exportador mundial de café,
com um setor cafeeiro que fornece 4% do valor das exportações brasileiras e reune mais de
250.000 produtores.

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Trajetórias e cenários de integração das populações rurais:
exemplos do Brasil e da França

neiras distintas de adaptação às mudanças globais de reorganização do


mercado pela mobilização dos parceiros da cadeia diante do afastamento
do Estado, cujo papel de regulador fica limitado, sobretudo depois do fi­
nal do Acordo Internacional do café de 1989, com a delimitação de regiões
produtoras (Broggio et alii, 1999).
Terceiro caso apresentado trata da proposta de criação de um indi­
cador de desenvolvimento rural para o estado de São Paulo (Kageyama,
2004) que, caracterizado pelo movimento de desconcentração espacial
das atividades econômicas, conhece um processo acentuado de “urbani­
zação no campo”. Esse fenômeno ressalta as novas faces do desenvolvi­
mento rural, dando ênfase à multifuncionalidade do espaço rural: fun­
ções produtivas, preservação da paisagem, atividades de recreação, o que
significa uma certa “desagrarização” do meio rural no sentido de fortale­
cer a diversificação de fontes de renda e fazer do agricultor um “empre­
sário rural”. Na construção de um indicador de desenvolvimento rural, a
inclusão da dimensão “meio ambiente” está tendo dificuldade de ser im­
plantada, pois ser contraditória ao mediar desenvolvimento econômico e
degradação ambiental. Por exemplo, o desafio é combinar um indicador
de monocultura e o indicador de conservação do solo9, finalmente a me­
todologia de cálculo de índice facilita as análises comparativas regionais
e dá subsídios às intervenções públicas no meio rural. Entretanto, o pro­
cesso de modernização no campo se confronta com a questão agrária do
estatuto da terra, mesmo em São Paulo. De acordo com o ITESP (Insti­
tuto de Terras do Estado de São Paulo), as terras podem ser classifica­
das em três grandes categorias: julgadas devolutas10, não discriminadas e
particulares. Existem casos notadamente não resolvidos como no Pontal
de Paranapanema.
O quarto caso vem do programa de pesquisa chamado Duramaz11,
com o qual tentamos medir a sustentabilidade das atividades rurais na

9
No estado de São Paulo, 437 municípios foram qualificados de monocultores, 127 com
40% da área total ocupada com soja, cana ou laranja, enquanto 310 com mais de 50% de
pastagens.
10
Terras devolutas é uma espécie de terra pública, visto que é aquela que em nenhum mo­
mento integrou o patrimônio particular, ainda que esteja irregularmente em posse de parti­
culares. Aliás, diga-se para argumentar, a palavra devoluta, dentro de sua semântica, inclui
o conceito de terra devolvida ou a ser devolvida ao Estado.
11
Programa DURAMAZ 2007-2009. Os determinantes geográficos, demográficos e socioeconô­
micos da sustentabilidade na Amazônia brasileira. CREDAL-Paris3, CDS/Unb, IRD UR169,
COSTEL, Uhb-Rennes. Martine Droulers e François-Michel Le Tourneau são seus coorde­
nadores (www.iheal.univ-paris3.fr). Esse programa visa analisar os parâmetros da
diversificação dos sistemas produtivos sustentáveis e o jogo dos atores por meio da análise
de 13 experiências de DS na Amazônia. A metodologia sistêmica e pluridisciplinar permite
a construção de indicadores sintéticos capazes de explicar a trajetória dos projetos de DS e
a estabilidade do povoamento.

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Martine Droulers

Amazônia brasileira pela construção de um sistema de indicadores, após


levantamentos aprofundados em campo em 13 localidades. Uma das di­
mensões pesquisadas se refere à melhoria das condições de vida das popu­
lações nas comunidades que se beneficiam de projetos de desenvolvimentos
sustentável (DS), que incluem avanços sociais, econômicos e ambientais.
Por exemplo, nos territórios de reservas de DS, podem operar empresas
compradoras de produtos da floresta associados a saberes tradicionais, no
caso do breu branco ou do óleo de castanha do Pará; alimentando fundos
de investimentos dedicados a projetos de desenvolvimento social sustentá­
vel com arranjos jurídicos e financeiros específicos. Por exemplo, na região
do Jarí, a comunidade de São Francisco de Iratapuru, com 37 famílias, se
beneficia da presença de duas empresas, a Orsa e a Natura, cujos fundos
promovem várias experiências de melhoria das condições de vida dos ha­
bitantes nas localidades. Essa prática deve ser proposta a outras comuni­
dades (Le Tourneau et alii, 2008).
Na abordagem desses casos, o papel das inovações institucionais,
surgidas das dinâmicas locais e que podem se desenvolver com ou sem
apoio das políticas governamentais, se revelou fundamental. Para que es­
sas inovações sejam implementadas, é necessário haver boas estruturas
organizacionais e recursos humanos qualificados a fim de assegurar o
acesso às informações das novas experiências, como, também, o acesso
ao crédito rural e aos instrumentos de regularização fundiária. Esse úl­
timo aspecto está sendo cada vez melhor estudado, assim como foi de­
monstrado pelo excelente trabalho do NERA e o Atlas da questão agrária
brasileira12.

Ruralidade contemporânea e cenários de integração


Além dos números que permitem situar os dados estruturais das
sociedades rurais da França e do Brasil, podemos, analisando a evolu­
ção do mundo rural, esboçar uma seqüência evolutiva e cumulativa dos
tipos de ruralidade, partindo de categorias sociais para chegar a catego­
rias espaciais, tendo, a cada etapa, a coexistência com o estágio prece­
dente. Além do mais, para cada tipo de ruralidade correspondem ações
do poder público que resultam em mecanismos socioespaciais especí­
ficos e diferenciados. O maior desafio atual reside no gerenciamento
do meio rural integrado e, também, dos espaços pouco povoados, sob
o risco da perda de vitalidade, o que requer estatutos e tipos de gestão
particulares.

12
De autoria de Eduardo P. Girardi , no site do Nera na Unesp-Presidente Prudente (SP).

177

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Trajetórias e cenários de integração das populações rurais:
exemplos do Brasil e da França

Comparação dos aspectos da ruralidade contemporânea

Tipo de Sociedade rural População rural População rural Meio rural Espaço rural
ruralidade tradicional13 tradicional atual integrado despovoado

Perda de
Comunidades rurais Integração
vitalidade

Tipo de pais PMA – em desenvolvimento – emergentes – desenvolvidos

Populações Gestão de
Natureza de
Assimilação/ cativas dos Desenvolvimento Organização espaços
intervenção
integração territórios pobres territorial rural regional (parques,
pública
Êxodo rural reservas)
20% do 25%
Ruralidade no 25% da
2% Ameríndios 5 a 7% território (40% na
Brasil população
nacional Amazônia)

40% do 35% do
Ruralidade na 20% da
Século XIX Até os anos 1960 território território
França população
nacional nacional

Para complementar a análise da evolução temporal e espacial das


populações rurais, podemos esboçar três cenários de evolução das relações
entre as comunidades rurais e seu meio ambiente. O primeiro tem como
elemento-chave as comunidades rurais capazes de desenvolver uma estra­
tégia autônoma, endógena. Na evolução atual, elas conseguiram o reco­
nhecimento de um estatuto particular num território específico, dando ên­
fase à preservação da bio e sociodiversidade. O segundo cenário se baseia
num projeto de desenvolvimento territorial local enraizado que facilita a
integração regional e nacional da sociedade rural, sendo que as implica­
ções para o meio ambiente são variáveis. O terceiro cenário caracteriza a
trajetória individualizada de evolução social baseada na mobilidade, num
êxodo rural em que a integração se faz por assimilação na sociedade glo­
bal. No contexto da passagem de uma lógica comunitária a uma lógica
individual, observa-se a progressiva perda da autonomia, o que tem como
conseqüência uma dinâmica territorial pouco sustentável, pois o confronto
com o novo valor do desenvolvimento sustentável revela como no cenário

13
As sociedades rurais tradicionais quase não existem mais, só alguns vestígios subsistem com
formas já degradadas da organização social antiga (Índios, caboclos). Na França, o processo
de destruição se acelerou na segundo parte do século XIX. Seria mais o político que o eco­
nômico que degrada sociedades rurais tradicionais (Broggio, 2008).

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Martine Droulers

de coesão comunitária, a sustentabilidade do território fica forte, enquan­


to no caso da perda de autonomia e de uma melhor inserção individual na
sociedade global, a sustentabilidade territorial fica enfraquecida.
Antes dessa análise das trajetórias das populações rurais, indaga-
se qual o processo de inserção desse grupo social vai pela “autonomia” ou
pela “integração” na sociedade global? Se olharmos mais de perto, a inte­
gração pode ser feita com assimilação. Esse caso supõe certa aculturação
e uma inserção forte na sociedade nacional; ou a integração pode ser feita
sem assimilação preservando uma capacidade de autonomia relativa. O
primeiro responde a princípios de exaustividade e de exclusividade, o se­
gundo ao princípio da diversidade, em que vários direitos e estatutos po­
dem coexistir no mesmo território.

Cenário de evolução das relações entre as comunidades camponesas e seu meio


ambiente

Modo de
Evolução da
Trajetória Características relação com a Sustentabilidade
sociedade rural
sociedade

1. Comunitária
Um território Autonomia Forte para o territórios
Autonomia Diferenciação
específico mantida Variável para os indivíduos
relativa

2. Coletiva Projeto de Processo de


Integração Variável para os territórios
Desenvolvimento desenvolvimento mistura cultural
valorizada Variável para os indivíduos
local baseado nos locais e contratos

Perda para a
Inserção na Mobilidade social Fraca para o territórios
3. Individual comunidade
sociedade global e espacial Forte para os indivíduos
Abandono

O fundamental de nossa análise das trajetórias das populações ru­


rais é a dimensão do conteúdo territorial que se diferencia segundo a com­
posição dos grupos de população, o seu grau de inserção na sociedade
global e a possibilidade de mobilizar os atores num projeto aplicado no
local com respaldo regional. A conquista da autonomia é um ponto chave
do processo, assim como as condições da integração das populações tradi­
cionais. O campo da negociação entra como um processo progressivo de
aceitação dos compromissos depois de saber quem e porque ganha e quem
e porque perde. Assim, a viabilidade de um sistema se deve a sua capacida­
de permanente de renovação, retroalimentação e pilotagem, colocando em
prática um funcionamento territorial eficiente.

179

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Trajetórias e cenários de integração das populações rurais:
exemplos do Brasil e da França

Inovações institucionais e mercadológicas


Assim, as vias da inserção positiva das populações rurais tradicio­
nais necessitam de duas condições primordiais, a primeira tem a ver com
as inovações institucionais e a segunda com a estrutura organizacional do
mercado.
Na França, algumas inovações institucionais fundamentais estavam
ligadas com o uso do solo, como a lei sobre terras improdutivas, com o Pla­
no de Ocupação do Solo (POS) ou com o Estatuto de arrendamento “Fer­
mage”, de 194614; ou a Reorganização fundiária foi executada pelas ope­
rações de remembramento e pelas SAFERs (Sociedades de Ordenamento
Fundiário e Estabelecimentos Rurais), destinada a favorecer a instalação
dos agricultores pela mobilização fundiária15. Atualmente, as inovações
principais estão ligadas às reformas da PAC e às mudanças no canal de
acesso aos subsídios que não são tão atribuídos para a produção intensiva,
mas para nichos de mercado qualificados ou ainda destinados aos novos
instrumentos de conservação do meio-ambiente.
No Brasil, existe uma dificuldade estrutural em mudar a situação
fundiária, levando a cidadania ao campo, apesar de vários textos legislati­
vos como o Estatuto da Terra (1964), o Funrural (1971), os dois Planos de
reforma agrária e a Constituição de 1988 que autoriza o reconhecimento
dos direitos diferenciados nos territórios. Para ilustrar a complexidade da
reorganização institucional e a dificuldade de aplicação das reformas, a
gestão do mundo rural se divide, no Brasil, entre três ministérios: um da
agricultura para os fazendeiros; um do desenvolvimento agrário para os
pequenos produtores, com a presença do INCRA, para os atuais e futuros
assentados; e, enfim, um ministério do meio ambiente para os povos da
floresta. Seriam benéficas medidas que permitissem o avanço no campo
da igualdade para romper o círculo das diferenças e os mecanismos de ex­
clusão social, estabelecendo a manutenção de instituições democráticas

14
O estatuto do arrendamento (statut du fermage) faz parte do código rural francês, estabele­
cendo que o período mínimo do contrato é de nove anos, tendo o rendeiro amplos benefí­
cios: prioridade na compra da terra, prioridade na renovação do contrato para que a terra
seja explorada por ele ou, em caso de impossibilidade, por seus descendentes. Esta lei foi
estabelecida depois da Segunda Guerra, com o princípio de proteger e incentivar o produtor
em detrimento do especulador fundiário.
15
As SAFERs, criadas em 1962, funcionam como observatório-participante dos movimentos
fundiarios. As missões principais são de dinamizar as atividades agropecuárias, favorecer a
instalação de jovems agricultores e proteger o meio ambiente. Elas têm direito de preemp­
ção sobre as terras à venda, comprando parcelas por parcelas, estocando-as (até 5 anos) an­
tes de retroceder a um agricultor jovem que se instala ou a um agricultor querendo ampliar
a fazenda, depois de pareceres tecnicos e políticos. Uma média de 80.000 ha é comprada e
vendida por ano (ou seja, 23% do mercado fundiario) e 18.000 ha são estocados para as co­
lectividades territoriais.

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Martine Droulers

(Bignotto, 2008:121). Alguns autores chamam atenção para a natureza não


moderna do processo de segmentação da cidadania no Brasil com os tra­
balhadores rurais sem direitos. Só a Constituição de 1988 mudou o padrão
de cidadania existente no país, tanto na cidade, quanto no campo, com
os primeiros instrumentos de universalização de direitos sociais: acesso à
saúde com a LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social) e um melhor aces­
so a terra, contribuindo para minimizar as contradições da cidadania rural
(Avritzer, 2008:159), mesmo que se avolumem, ainda, os casos de violência
e abuso do poder judiciário no campo16.
Como assegurar em cada país a inserção e a sobrevivência das popula­
ções rurais continuando a manter os espaços rurais organizados e atraentes?
Como cultivar a terra de maneira eficiente preservando a natureza? Os per­
cursos nacionais se diferenciam, no entanto, alguns exemplos da evolução do
mundo rural no Brasil e na França nos dão elementos úteis para esclarecer a
complexidade e propor uma leitura das trajetórias dessas populações.

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zonie brésilienne. Cybergeo (Paris), v. 2008, p. 20763, 2008.

16
500 assassinatos, no campo brasileiro, foram realizados entre os anos 1990 e 2000, sendo
que a maior parte não foi punida. (Gonçalves C. 2003)

181

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casos. Porto Alegre: UFRGS, 2007. p.109-135.

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Les rapports ville-campagne en Amérique
andine et en Afrique occidentale: Quelques
réflexions à partir d’une comparaison

Jean-Louis Chaléard
Université Paris 1| Panthéon-Sorbonne | jl.chaleard@noos.fr

La question des rapports ville-campagne dans les pays du Sud a fait


l’objet d’analyses théoriques générales, souvent contradictoires, posant a
priori les villes comme porteuses de progrès pour les campagnes ou fac­
teurs de blocages (Chaléard, Dubresson, 1999 ; Chaléard, 2006). Cette com­
munication à l’encontre de ces démarches veut partir de cas concrets pris
en Amérique andine et en Afrique occidentale (figure 1) pour s’interroger
sur les constantes et les différences selon les situations, dans des espaces
géographiques a priori dissemblables1. Tous les aspects ne seront pas étu­
diés, mais à partir de quelques exemples, on essaiera de dégager quelques
grands traits généraux.
Par ailleurs, les Andes ne représentent pas exactement l’Amérique
latine comme l’Afrique de l’ouest ne représente pas toute l’Afrique subsa­
harienne. Cependant, on y trouve les traits dominants de ces deux sous-
continents. Si bien que ces exemples peuvent nous servir pour poser une
comparaison plus large.
D’une façon générale, on s’aperçoit qu’il existe dans les deux cas, des
relations ville-campagne fortes. Toutefois, l’Afrique de l’ouest et l’Améri­
que andine présentent des niveaux de développement et d’urbanisation très

1
Les analyses s’appuient sur des cas pris en Équateur, en Bolivie et au Pérou pour l’Amérique
andine, en Côte d’Ivoire, au Burkina Faso, au Sénégal, en Guinée et au Cameroun pour
l’Afrique.

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Les rapports ville-campagne en Amérique andine et en Afrique
occidentale: Quelques réflexions à partir d’une comparaison

inégaux : l’Afrique occidentale est beaucoup plus pauvre ; elle est beaucoup
moins urbanisée. Ces différences ont des conséquences sur les relations vil­
le-campagne et opposent les deux ensembles régionaux.
Peut-on pour autant conclure à une opposition radicale Amérique
andine – Afrique de l’ouest ? En fait les situations sont plus compliquées :
il existe des grands types de relations entre villes et campagnes que l’on
trouve, avec des nuances, dans les deux ensembles géographiques  ; par
ailleurs, la globalisation est à l’origine d’évolutions que l’on perçoit de part
et d’autre de l’Atlantique. Faut-il alors radicalement opposer les situations
latino-américaines et africaines ? Ne faut-il pas plutôt voir des évolutions
communes et des différences qui parfois sont plus importantes d’une ré­
gion à l’autre ou d’un pays à l’autre que d’un continent à l’autre ?
Pour répondre à ces questions, on mettra en évidence, dans une
première partie, les similitudes : intensité des relations ville-campagne,
importance de la pluriactivité en milieu rural fondée sur des activités
« urbaines »…
En contrepoint, la seconde partie soulignera des distinctions liées à
des histoires et des situations socio-économiques très différentes qui influent
sur les relations entre les villes et les campagnes. La dernière partie essaiera
de dépasser les oppositions ou inégalités entre grands ensembles géographi­
ques et de voir certaines similitudes dans les évolutions actuelles.

Des relations intenses ville-campagne dans les andes et en


Afrique occidentale
Contrairement à ce qui est parfois écrit, les relations entre ville et
campagne sont fortes (Chaléard, Dubresson, 1999). Et il faut souligner que
les villes ne sont pas coupées des campagnes. Plus qu’à une rupture radi­
cale, on assiste en ville à des recompositions urbaines de pratiques rurales.
De ce point de vue, les situations en Amérique andine et en Afrique occi­
dentale présentent bien des points communs.
Le cas de l’alimentation est exemplaire. L’urbanisation entraîne des
transformations dans l’alimentation. Cependant, celles-ci sont moins im­
portantes que ce qu’ont écrit certains auteurs. Bairoch (1985) par exemple,
parle « d’extraversion » de la consommation alimentaire dans les villes des
pays en développement et de « mimétisme » à l’égard des comportements
alimentaires des pays du Nord. Mais les situations sont plus complexes.
L’urbanisation provoque effectivement des modifications des com­
portements alimentaires : augmentation de la consommation de produits
industriels (boissons comme la bière, conserves, etc.) ; augmentation de la
consommation de produits importés (pâtes alimentaires) ; augmentation
de la consommation de quelques produits faciles à préparer et peu chers
(comme le riz).

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Jean-Louis Chaléard

Mais dans les villes, on consomme encore des produits issus des
campagnes. Par exemple au Pérou (tableau 1) la consommation de pâtes
et de riz est certes importante. Mais celle de produits nationaux n’est pas
négligeable : tubercules cultivés dans les Andes (pomme de terre, olluco...),
haricots, etc. Cette consommation est plus forte dans les villes petites et
moyennes qu’à Lima car elles sont plus proches des campagnes. Dans l’en­
semble, la consommation de produits nationaux issus des campagnes est
importante parce qu’une part de la population a immigré et conserve en
partie les coutumes de sa région d’origine.

Quadro 1 – Consumo per-capita de alimentos andinos tradicionales y sustitutos (gramos


por mês)
Produção Consumo en Lima/Callao Consumo en cidades de Provincias
Olluco (pequena batata) 1260 1595
Quinua 1127 1746
Habas (feijão) 1522 2734
Papa (batatas) 7904 9823
Fideos (massas) 3076 2949
Arroz 8931 7054
Fonte: Stephen M. Smith y Carolina Trivelli, 2001.

En Afrique, les conclusions sont identiques. Ainsi, en Côte d’Ivoire,


des études ont montré que des produits étrangers comme le pain, les bois­
sons alcoolisées sont plus consommés en ville qu’à la campagne. Mais à
Abidjan (principale agglomération urbaine de Côte d’Ivoire qui dépasse 3
millions et demi d’habitants), les racines et tubercules locaux représentent
une part de l’alimentation supérieure au riz. La consommation de banane
est élevée2. Dans cette ville s’est développée la consommation d’attiéké, sor­
te de semoule de manioc, très populaire dans les campagnes autour de la
ville. Dans toute l’Afrique, on pourrait relever des situations proches (Cha­
léard, 1998).
Sur un autre plan, les campagnes sont très liées aux villes, de diffé­
rentes façons. Parfois une partie de la famille y a migré pour que certains
puissent rester au village (Cortes, 2004). Les ruraux peuvent diversifier
leurs sources de revenus en relation avec un centre urbain. Ainsi, au nord
de Quito, les campagnes présentent un aspect de prospérité lié à des genres
de vie mixtes : le chef de famille travaille à la ville voisine ; il rentre le soir
ou plus souvent en fin de semaine, tandis que sa femme et ses enfants res­
tent à la campagne ; cela permet d’économiser sur le coût du logement et
d’associer une activité agricole et un emploi urbain. En ce sens le paysage

2
Il s’agit d’une variété de banane différente de la banane-fruit exportée.

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Les rapports ville-campagne en Amérique andine et en Afrique
occidentale: Quelques réflexions à partir d’une comparaison

rural est trompeur : on a un paysage agricole, mais des revenus en majorité


d’origine urbaine. En Afrique occidentale, la demande en produits alimen­
taires pour ravitailler les centres urbains a souvent amené les femmes à dé­
velopper des activités de commerce alimentaire ou de transformation des
produits de base, source de revenus nouveaux. C’est le cas des productrices
d’attiéké en Côte d’Ivoire, qui vendent la semoule qu’elles ont élaborée.
Une des conséquences majeures de la croissance urbaine est l’appa­
rition de marchés urbains qui offrent de nouvelles possibilités aux produc­
teurs agricoles, particulièrement aux petits producteurs. Les campagnes de
plus en plus produisent pour les villes, ce qui procure de nouvelles sources
de revenus aux ruraux. Le plus souvent, les petits producteurs associent
des cultures d’exportation qui fournissent les revenus et des cultures vivriè­
res pour nourrir la famille : ils vendent leurs excédents de cultures vivrières
aux citadins.
Dans quelques cas, l’association cultures vivrières – cultures d’ex­
portation fonctionne bien. Ainsi, dans les régions pionnières d’Afrique oc­
cidentale chaude et humide, les cultivateurs associent les cacaoyers et les
cultures vivrières. La première année, ils défrichent une parcelle en forêt
sur laquelle ils font des cultures vivrières. Ensuite, ils plantent de jeunes ca­
caoyers qui poussent à l’ombre de ces cultures (notamment des bananiers).
Au fil des ans, les cultures vivrières disparaissent tandis que les cacaoyers
poussent. Pendant quatre à cinq ans, la production de denrées alimentaires
est forte et permet de vendre des surplus élevés dans les villes.
Sur la côte péruvienne, au nord de Chiclayo, les petits producteurs de
mangue cultivent du manioc ou du maïs entre les arbres, ce qui permet de
nourrir la famille et de fournir des revenus à diverses périodes de l’année (les
ventes de mangues pour l’exportation se font entre janvier et mars, celles de
maïs ou de manioc pour les marchés urbains beaucoup plus tard).
Dans certaines régions qui ne produisaient pas de denrées d’expor­
tation, l’essor des cultures pour les villes a offert une source de revenus aux
agriculteurs. Ainsi, dans le nord-est de la Côte d’Ivoire, les agriculteurs ont
développé la culture de l’igname : ils obtiennent des revenus équivalent à
ceux des producteurs de coton pour l’exportation des régions voisines.
Les marchés urbains offrent aussi d’autres opportunités et ce ne
sont pas seulement des cultures alimentaires qui sont produites. Dans le
nord du Pérou, sur le versant occidental des Andes, la production princi­
pale est le café. Mais les revenus tirés de cette culture ont baissé en raison
de la chute des cours mondiaux. Pour compenser ce déclin, les agriculteurs
étendent une variété de bambou (caña de Guyaquil), très demandée dans la
ville voisine de Chiclayo et qui fournit des revenus intéressants (Chaléard,
Mesclier, 2004).
Ainsi, en Amérique andine comme en Afrique occidentale, les rela­
tions entre villes et campagnes sont intenses et variées. La croissance ur­

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Jean-Louis Chaléard

baine a provoqué des évolutions communes, comme le montre l’exemple


des cultures pour les marchés urbains. Toutefois, les formes et l’importan­
ce des liens ville-campagne diffèrent entre les deux ensembles régionaux,
en raison de situations économiques et sociales très différentes.

Des différences importantes entre les andes et l’Afrique


occidentale

Des différences majeures viennent des taux d’urbanisation inégaux.


Comme le montre le tableau 2, les pays andins sont beaucoup plus urbani­
sés que l’Afrique occidentale. Cette dernière a connu une urbanisation plus
tardive que l’Amérique latine en général. Certes, on trouve des points com­
muns entre les deux ensembles, mais aussi des évolutions différentes.

Quadro 2 – Taxa de urbanização em 2005 e Evolução da população rural


% de population urbaine Taux de croissance urbaine (%)
2005 1995-2000 2000-2005
Bolivie 64 0,69 0,42
Équateur 64 0,30 - 0,55
Pérou 72 1,17 0,93
Burkina Faso 18 2,57 2,76
Côte d’Ivoire 47 1,83 0,52
Sénégal 42 2,29 1,99
Guinée Conakry 31 1,82 1,29
Fonte : United Nations, 2007.

Quadro 3 – Evolução da população rural na América do Sul e na África de Oeste


x1000 hab. Am. do Sul África de Oeste
1950 63 653 57 814
2000 71 662 146 512
2005 66 738 158 873
Fonte : United Nations, 2007.

En premier lieu, il convient de rappeler que l’explosion urbaine


qu’ont connue l’Afrique et l’Amérique du Sud ces dernières décennies, si
elle s’est largement produite grâce à l’afflux des ruraux en ville, n’a pas
véritablement dépeuplé les campagnes en raison, entre autres, de la forte
croissance naturelle en milieu rural (tableau 3). La population rurale a ce­
pendant augmenté beaucoup plus vite en Afrique occidentale qu’en Amé­

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Les rapports ville-campagne en Amérique andine et en Afrique
occidentale: Quelques réflexions à partir d’une comparaison

rique du Sud. Par ailleurs, alors qu’elle augmente encore rapidement en


Afrique notamment dans certains pays comme le Burkina Faso, elle tend
à diminuer depuis quelques années en Amérique du Sud. En Afrique, qui
reste encore très rurale, c’est le trop plein des campagnes qui se déverse en
ville. Dans un pays comme l’Équateur (tableau 2), en revanche, on observe
un déclin récent de la population rurale qui s’explique par une accélération
des migrations en ville (ou à l’étranger) et par la baisse des taux de natalité.
L’exode rural entraîne dans certains secteurs un déficit de main-d’œuvre
agricole.
Le caractère plus rural des sociétés africaines se traduit dans les vil­
les. Les petites villes de Guinée-Conakry, du Burkina Faso ont en général
plus de 30 % de population qui travaillent dans l’agriculture. Les champs
peuvent arriver jusqu’au cœur des villes. Même dans de grandes métropo­
les comme Abidjan, les cultures vivrières sont très présentes (Chaléard,
1998). Ce phénomène est beaucoup plus rare en Amérique latine où les em­
plois secondaires et tertiaires ont plus d’importance et où les cultures sont
plus systématiquement en périphérie des agglomérations urbaines.
L’importance inégale de la population urbaine a des conséquences
multiples. Par exemple, sur les marchés urbains. Dans l’ensemble, les mar­
chés urbains sont handicapés par la faiblesse des revenus des citadins, en
majorité pauvres, ce qui limite les quantités de produits que les agriculteurs
peuvent vendre et ce qui limite aussi les prix de vente des denrées agricoles.
Ces handicaps sont beaucoup plus prononcés en Afrique. D’abord parce
que la population est en moyenne beaucoup plus pauvre qu’en Amérique
andine, comme le met en évidence le Produit Intérieur Brut moyen par ha­
bitant en 2005 : alors qu’il dépasse 6000 $ au Pérou, il est inférieur à 2000
$ dans la plupart des pays d’Afrique de l’Ouest ; et il est en moyenne 4 fois
plus élevé en Amérique latine qu’en Afrique subsaharienne (United Na­
tions, 2008). En outre, les marchés sont limités en raison de la plus faible
urbanisation qu’en Amérique : au Burkina Faso, par exemple, il y a envi­
ron 2,6 millions de citadins en 2005, soit le tiers de la population d’une ville
comme Lima la capitale du Pérou, ou d’un pays comme l’Équateur pour­
tant moins peuplé (un peu moins de 14 millions d’habitants au Burkina
Faso, un peu plus de 13 millions en Équateur, en 2005). Dans les années
1990 (en 1994 notamment), les cultivateurs du Burkina Faso ont augmenté
la production de maïs pour compenser la baisse des prix du coton qui leur
fournissait leurs principaux revenus  ; mais ils ont connu des difficultés
pour vendre leur maïs en raison de la faiblesse des marchés urbains.
Sur un autre plan, la société rurale et la situation foncière sont très
différentes en Afrique de l’ouest et dans les Andes. En Équateur, par exem­
ple, une grande partie de la terre est appropriée à une minorité d’individus
ou de sociétés agro-industrielles : selon le recensement de 2000, 2,3% des
exploitations agricoles ont plus de 100 ha chacune et occupent 42,6 % des

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superficies cultivées, tandis que 75,5 % des exploitations (qui ont moins de
1 ha) occupent seulement 11,8 % des superficies cultivées (INEC, 2000).
D’une part, les petits producteurs ne peuvent pas produire pour les villes
dans de bonnes conditions faute de terres suffisantes, mais en plus, certai­
nes grandes exploitations concurrencent les petits producteurs sur les mar­
chés urbains pour des cultures rentables (huile de palme, riz par exemple,
développés sur la côte). En Bolivie, existent des phénomènes identiques :
les grands producteurs de blé de l’Oriente concurrencent les petits produc­
teurs de la montagne qui ne produisent pas dans les mêmes conditions et
ne peuvent pas vendre leurs produits.
En Afrique de l’ouest, il y a très peu de propriété privée. La terre ap­
partient à la grande famille ou au village. Elle est gérée par un chef de terre
au nom du groupe. Le développement des cultures d’exportation sous la
colonisation a été réalisé par des petits producteurs qui font souvent 1 à 3
ha de cultures d’exportation (café, cacao, coton…) et 1 à 3 ha de denrées
vivrières. On a ainsi une masse de petits producteurs qui peuvent tous pro­
duire pour les villes. La concurrente des grands producteurs sur le marché
national existe peu et il n’y a pas de grosses inégalités foncières.
Par ailleurs, les relations lignagères jouent un rôle très important en
Afrique de l’Ouest. Les ruraux qui émigrent en ville gardent des liens étroits
avec les gens de leur famille restée au village. Cela se traduit par des allers-
retours ville-campagne fréquents. En Côte d’Ivoire, beaucoup de citadins
originaires du sud du pays ont une petite parcelle de cacao dans leur village
qu’ils cultivent ou font cultiver par un frère ou un cousin. En échange, ils
envoient de l’argent ou rendent des services aux parents restés à la cam­
pagne. En ville, il existe des associations regroupant les originaires de la
même localité ou de la même région qui jouent un rôle très important pour
aider les nouveaux migrants et pour aider aussi leur village d’origine.
Ces phénomènes peuvent se retrouver, mais de manière moins fré­
quente, dans les Andes. Toutefois, les situations sont loin d’être homogènes
en Afrique occidentale comme en Amérique andine. Et la complexité des
situations conduit à s’interroger sur les oppositions actuelles.

La complexité de situations et des évolutions


Parallèlement à des distinctions continentales, d’autres distinctions
sont à faire. Sur le plan géographique, elles sont au moins de deux ordres :
selon les États, qui ont des histoires et des réseaux urbains différents, et en
fonction de la distance des campagnes à la ville.
D’abord, les différences sont fortes d’un pays à l’autre. Ainsi, dans les
Andes, la situation foncière du Pérou est très différente de celle de l’Équa­
teur ou de la Bolivie. Une réforme agraire radicale y a eu lieu en 1969, qui
a fait disparaître la grande propriété privée. Celle-ci tend à se reconstituer

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Les rapports ville-campagne en Amérique andine et en Afrique
occidentale: Quelques réflexions à partir d’une comparaison

dans les années 1990, avec les réformes libérales, mais on est loin des iné­
galités que l’on trouve en Équateur par exemple. Cela peut contribuer à
expliquer que la population rurale du Pérou augmente plus vite qu’en Bo­
livie et ne régresse pas comme en Équateur. En Afrique, la Côte d’Ivoire et
le Burkina Faso présentent des situations différentes : l’urbanisation plus
rapide de la Côte d’Ivoire et son insertion plus forte dans une économie
marchande expliquent un essor très fort des cultures vivrières pour les vil­
les ; l’agriculture d’exportation fondée sur la culture du cacao y a nourri
une relative prospérité urbaine qui a favorisé des synergies ville-campagne
fortes (Chaléard, Dubresson, 1999).
Par ailleurs, l’intensité des relations ville-campagne n’est pas iden­
tique selon la distance à la ville, quel que soit le continent. Près des agglo­
mérations urbaines, les relations sont plus conflictuelles et plus intenses.
L’agriculture recule partout devant l’avancée des villes. Toutefois, la proxi­
mité des marchés urbains favorise des productions à forte valeur ajoutée
comme les cultures maraîchères, que ce soit en Amérique ou en Afrique.
Par ailleurs, l’agriculture bénéficie des infrastructures de transport urbai­
nes. Autour de Quito se développent des cultures de roses pour l’expor­
tation. Elles bénéficient de conditions naturelles et économiques favora­
bles (ensoleillement, faible coût relatif de la terre et de la main-d’œuvre…),
mais aussi de la proximité de l’aéroport international pour expédier les
fleurs sur les marchés du Nord. Cette évolution se manifeste également en
Afrique, même si c’est de manière moins forte : près de Ouagadougou, la
capitale du Burkina Faso se développent des cultures maraîchères expé­
diées par avion en Europe ; de même, près d’Abidjan, la production d’ana­
nas bénéficie de la proximité de l’aéroport.
Dans l’ensemble, les régions bien reliées aux villes, en profitent pour
développer des activités en relation avec les centres urbains : agriculture
commerciale, artisanat... À l’inverse, les régions les plus éloignées des vil­
les, en général enclavées, sont les plus défavorisées. Dans certains secteurs
des montagnes du nord du Pérou ou de l’Équateur, les communications
sont difficiles. De mauvaises routes ou l’absence de routes ne permettent
pas de faire des cultures commerciales. Les habitants n’ont pour revenus
que les envois des migrants ou, dans le nord du Pérou, l’argent gagné dans
les régions productrices de coca. En Afrique de l’Ouest, le relief crée moins
d’obstacles aux communications. Cependant les régions enclavées sont les
plus pauvres : dans les Monts Mandara (nord du Cameroun), loin des cen­
tres urbains, les populations vivent de la migration vers les piémonts ou en
ville. Ces zones enclavées sont reliées aux centres urbains, mais de façon
indirecte : par l’envoi d’argent des migrants…
Sur un autre plan, l’Afrique occidentale connaît des évolutions qui
tendent à la rapprocher de l’Amérique andine. On y observe des mutations
foncières en rupture avec la situation ancienne. Dans de nombreux pays,

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on assiste à des tentatives de mainmise sur la terre de la part de la bour­


geoisie urbaine  : le phénomène a été observé en Guinée-Bissau dans les
années 1980-1990 (Chaléard, 19998), et plus récemment en Côte d’Ivoire.
En outre, dans ce dernier pays, on a assisté à la vente des grandes sociétés
d’État dans les années 1990  : celles-ci cultivaient des produits commer­
ciaux (palmier à huile par exemple) et aidaient les petits producteurs. La
vente à de grands groupes nationaux ou étrangers a conduit à une limita­
tion des aides aux petits producteurs et à l’apparition de grandes entrepri­
ses agro-industrielles privées. Ainsi, même si la situation foncière de l’Afri­
que occidentale est encore loin de celle de l’Amérique latine, des inégalités
foncières commencent à apparaître, en relation avec la domination de la
bourgeoisie urbaine et du capital étranger.
De façon générale, la globalisation entraîne des évolutions sembla­
bles dans les Andes et en Afrique de l’Ouest, qui sont peu favorables aux
campagnes et aux petits producteurs. Elles se traduisent par une augmen­
tation des importations pour ravitailler les villes, au détriment des exploi­
tations familiales.
En Afrique de l’Ouest, la politique d’importation de riz est exem­
plaire. Cet ensemble géographique est devenu une des plus importantes
régions d’importation du riz au monde. Pourtant, les agriculteurs d’Afri­
que occidentale produisent du riz depuis des siècles. Mais les gouverne­
ments ont favorisé les importations pour plusieurs raisons : le riz jusqu’à
2006 était un produit peu cher sur le marché mondial ; les importations
permettaient de faire rentrer de l’argent dans les caisses de l’État par le jeu
de taxes et de s’assurer la paix sociale en ville auprès des classes les plus
pauvres en vendant un riz à bas prix. En outre, cette politique favorise un
groupe d’importateurs souvent proches du pouvoir en place.

Quadro 4 – Evolução das importações de arroz na África de Oeste


x 1000 t. 1980 2006 Evolução (%)
Burkina Faso 23 195 730
Costa de Marfim 253 903 257
Guiné-Conakry 128 196 53
Senegal 303 706 133
África de Oeste 1607 5245 226
Fonte: FAO

C’est pourquoi la majorité des pays a vu ses importations fortement


augmenter (tableau 4). Cette évolution s’est faite au détriment des produc­
teurs locaux de riz, mais aussi des producteurs d’autres cultures comme la
banane ou le manioc, qui ont dû baisser leurs prix pour rester compétitifs.

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Les rapports ville-campagne en Amérique andine et en Afrique
occidentale: Quelques réflexions à partir d’une comparaison

De la même manière, la mise en place de politiques libérales dans les


années 1980-1990 dans les pays andins a favorisé les importations. L’exem­
ple du Pérou est significatif. Les importations de blé et de maïs ont consi­
dérablement augmenté durant les années 1990-2000 pour répondre à la
croissance de la consommation mais aussi parce que les produits importés
sont moins chers que les produits locaux (tableau 5).
Les importations ont diminué pour quelques produits dont le riz : ce
dernier bénéficie d’achats du PRONAA (organisme de lutte contre la pau­
vreté et la malnutrition qui organise des distributions de produits de base)
et d’une « taxe » à l’importation (une « frange de prix » variable en fonction
des cours mondiaux, de l’ordre de 15 %). Ces « aides » ont permis le main­
tien d’une production nationale rémunératrice pour les producteurs.

Quadro 5 – Evolução das importações de cereais no Peru


1990 2000 2005
Trigo 605 851 1285416 1468840
Milho 479 388 859196 1314930
Arroz 239 071 66400 125280
Fonte: FAO

On pourrait faire des observations du même ordre pour les autres


pays avec des nuances. Par exemple, en Équateur, les importations de maïs
et de blé ont fortement augmenté depuis les années 1990 (d’après la FAO).

Conclusion
Ainsi, dans les pays andins comme en Afrique de l’Ouest, les rela­
tions sont intenses entre villes et campagnes. La croissance urbaine a favo­
risé l’essor de cultures pour les marchés urbains qui parfois concurrencent
les cultures d’exportation chez les petits producteurs.
Les différences entre l’Afrique de l’Ouest et l’Amérique andine sont
importantes : elles tiennent aux écarts de niveau de vie, au degré d’urbani­
sation et à la situation sociale et foncière dans les campagnes. Toutefois,
il serait réducteur de se limiter à ces différences. D’autres lignes de cli­
vage, tout aussi importantes, existent entre pays et entre régions à l’inté­
rieur d’un même pays. De même, les évolutions actuelles tendent à rappro­
cher les situations des petits producteurs de part et d’autre de l’Atlantique :
l’ouverture libérale entraîne des importations croissantes qui se font au
détriment des agriculteurs locaux.
Finalement, l’intérêt de comparer les situations de deux ensembles a
priori très dissemblables est double. D’un côté, la comparaison permet de mon­
trer la diversité des situations et invite à la prudence face aux grandes théories

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Jean-Louis Chaléard

souvent réductrices. D’un autre côté, au-delà des situations singulières, appa­
raissent de grandes évolutions communes dans le contexte actuel d’ouverture
des marchés sur l’extérieur. Ce n’est pas seulement la croissance urbaine qui
change les relations ville-campagne. Les politiques libérales actuelles et la glo­
balisation, par leur influence sur la société et sur les productions agricoles,
contribuent à l’évolution des rapports entre les espaces ruraux et urbains.

Bibliographie:
BAKER J. (dir.)., 1997, Rural-Urban Dynamics in Francophone Africa,
Uppsala : Nordiska Afrikainstitutet, 201p.
BAIROCH P., 1985 – De Jericho à Mexico. Villes et économie dans l’histoire,
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CHALÉARD J. L., 1998 – «  Croissance urbaine et production vivrière en
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CHALEARD J.L., 2006 – « Cidades e campo nos países em desenvolvimen­
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193

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Les rapports ville-campagne en Amérique andine et en Afrique
occidentale: Quelques réflexions à partir d’une comparaison

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194

Territorialidades e diversidade.indd 194 3/24/11 1:35:14 PM


O novo tempo do capital globalizante
e as novas relações campo-cidade

Júlia Adão Bernardes


Professora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro­| Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Geografia
da Universidade Federal de Mato Grosso | Pesquisadora do CNPq

Introdução
Este trabalho se propõe a comentar algumas implicações sociais das
mudanças nos processos econômicos em curso na cadeia carne/grãos na
BR-163 mato-grossense associadas às transformações nas relações campo-
cidade.
O objetivo, portanto, é ressaltar as repercussões sociais de novos
processos produtivos que se instalam na região, embora tais processos não
tenham alcançado sua plenitude. Citando Aristóteles, Polanyi nos lembra
que “só podemos compreender a natureza de qualquer coisa quando ela al­
cança – e supera – a sua maturação” (Polanyi, 2000: 9). Na medida em que
as principais mudanças verificadas vêm ocorrendo há apenas três anos, é
difícil apreender neste momento seu significado mais profundo, sendo im­
possível iluminar todos os pontos escuros, o que nos leva a uma avaliação
mais de tendências em curso, para ser mais justa e rigorosa.

O novo tempo do capital no cerrado: constituição da cadeia


carne/grãos

Desde a década de 80 que o movimento de expansão da agricultura


moderna em Mato Grosso vem sendo contínuo, intensificando-se no de­
correr do tempo, obedecendo às oscilações do mercado e consolidando-se

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O novo tempo do capital globalizante e as novas relações campo-cidade

em algumas áreas. Tal expansão se iniciou com o processo de colonização


privada e o plantio do arroz, logo substituído pela soja e safrinha do milho,
incluindo o algodão a partir da segunda metade dos anos 90.
A BR-163 vem constituindo um dos principais fronts de expansão
da agricultura moderna em Mato Grosso, concentrando a maior produção
de grãos na área por nós denominada de consolidada, constituída por Sor­
riso, Lucas do Rio Verde, Nova Mutum, Nova Ubiratã, Diamantino e Ta­
purah, podendo-se observar, na tabela 1 que, em 2007, a produção de soja
desses seis municípios se situava ao redor de 4.968.294 toneladas, corres­
pondendo a 32,53% do total de Mato Grosso e a 8,59% do Brasil, que a pro­
dução de milho era aproximadamente de 2.412.904 toneladas e equivalia a
39,36% da produção do estado e a 4,63% do país e a produção de algodão
totalizava 422.985 toneladas, ou seja, 19,19 % de Mato Grosso.

Tabela 1 – Área, produção e rendimento médio da soja e do milho na área concentrada


da agricultura moderna na BR-163 – 2007
Área colhida Quantidade Rendimento médio
Municípios (hectares) (ton.) (kg/ha)
Milho Soja Milho Soja Milho Soja
Diamantino 49.898 276.660 179.273 796.147 3.592 2.877
Lucas do Rio Verde 175.073 215.535 709.221 623.758 4.051 2.893
Nova Mutum 101.333 310.000 424.660 970.610 4.190 3.131
Nova Ubiratã 63.070 205.557 206.624 576.382 3.276 2.804
Sorriso 228.266 543.000 755.678 1.662.666 3.310 3.062
Tapurah 38.180 112.274 137.448 338.731 3.600 3.017
Total 655.820 1.663.026 2.412.904 4.968.294 3.670 2.964
Mato Grosso 1.648.671 5.075.079 6.130.082 15.275.087 3.718 3.009
Brasil 13.767.431 20.565.279 52.112.217 57.857.172 3.785 2.813
Fonte: SIDRA/IBGE. Elaborado por: Marcos Vinícius Velozo da Costa.

Num contexto em que a economia de mercado se desenvolve segun­


do suas próprias leis, as oscilações de mercado afetam a organização da
produção, à qual o próprio mercado deu vida, ameaçando-a. É a tão pro­
palada “crise” que se abate sobre os produtores e a empresa agrícola indi­
vidual, ao serem afetados pelas mudanças nos preços do mercado interna­
cional devido à baixa no preço das commodities, como também em função
do aumento dos preços dos insumos, como fertilizantes, herbicidas, etc.,
além da elevação dos valores das máquinas agrícolas.
Ou seja: no âmbito do sistema de mercado, enquanto os preços das
commodities, especialmente da soja, caíam, os elementos de custo subiam,
o que se vincula à forma como se organiza o mercado auto-regulável e ao

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Júlia Adão Bernardes

sistema financeiro, com o apoio das classes comerciais, cientes de sua li­
derança e poder político. Segundo o discurso dos grandes empresários, a
crise se traduz principalmente na falta de diversificação da produção e de
agregação de valor à mesma.
As tensões que surgem entre os grupos sociais em jogo, melhor di­
zendo, entre produtores agrícolas/empresas agrícolas e os comercializado­
res da produção, favorecem o desenvolvimento de um novo movimento de
caráter econômico e político, que vai modelar um novo momento econô­
mico e uma nova organização social, representada pela implantação de ca­
deias agroindustriais, em sistemas muito organizados, como os de integra­
dos de suínos e aves, aproveitando a grande produção de grãos da região,
que deve ser industrializada, além da de bovinos, cadeias que incorporam
tecnologias com vistas a atender segmentos de consumo mais exigentes,
com instalação de frigoríficos de elevado padrão técnico.
A cadeia produtiva de carnes vai selecionar prioritariamente o con­
junto Lucas do Rio Verde, Nova Mutum e Sorriso, que apresenta signifi­
cativa produção de soja e milho, produzindo 3.257.034 toneladas de soja
em 2007, ou seja, 21,32% de Mato Grosso, além de 1.889.559 toneladas de
milho, correspondendo a 30,82% do estado, embora os demais municípios
da região sejam contemplados com impulsos do novo processo de moder­
nização.
Deve-se assinalar que a crise das commodities e o “aparente” fracas­
so da agricultura de exportação não destroem a autoridade de seus defen­
sores, mas possibilita que eles justifiquem que as causas das dificuldades
se encontram na aplicação incompleta dos princípios do mercado, argu­
mentando que não foram o sistema competitivo e o mercado auto-regulá­
vel os responsáveis pela crise, mas a necessidade de difusão mais ampla e
aprofundada do sistema de mercado, formulando propostas de industriali­
zação das matérias primas.
Como não era possível negar que os negócios eram prejudicados pe­
los preços das commodities no mercado internacional, agravado pelas di­
ficuldades de logística, pelo aumento dos custos dos insumos, instituições
privadas e públicas se empenharam em intervir criando condições para a
difusão e aprofundamento do sistema de mercado auto-regulável, procu­
rando remover os obstáculos ao funcionamento do sistema competitivo.
Desta forma, ao novo tempo trazido para os cerrados com a difusão
dos fronts agrícolas, um novo tempo se impõe na área concentrada da agri­
cultura moderna da BR-163, com difusão de objetos técnicos mais especia­
lizados que possibilitam ações mais racionais e velozes (Frederico, 2008).
A transferência de uma regulação da política agrícola brasileira, que
era exclusividade do Estado, que atuava como financiador do modelo, para
uma regulação controlada pelo mercado, constituiu elemento facilitador
de tais mudanças. Como acentua Frederico (2008), se até a década de 80 a

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O novo tempo do capital globalizante e as novas relações campo-cidade

atuação do Estado era considerada paternalista, a partir de então passa a


vigorar a ideologia do “Estado-mínimo”, delegando-se à iniciativa privada
a responsabilidade pela realização da política, com destaque para as polí­
ticas de financiamento agrícola.
Para que as empresas pudessem reduzir os custos para serem mais
competitivas, deveriam dispor na região de novos atores, como a Sadia e
a Perdigão, atraindo essas empresas principalmente pelas possibilidades
da escala de produção, como também aproveitando as vantagens da pro­
ximidade da produção de matérias primas, como a soja, o milho e o algo­
dão, para produzir ração a baixo custo, utilizando o substancial nível de
concentração técnica já existente, beneficiando-se ainda de substanciais
vantagens concedidas pelos governos locais, como oferta de grandes áreas
para suas instalações, infra-estrutura e isenção de impostos durante alguns
anos. Além disso, as novas estruturas estariam favorecidas por determina­
das condições naturais da região, como a altitude.
Trata-se do esgotamento do modelo tradicional de produção da ca­
deia carne/grãos no sul e sudeste do país e da implantação de um novo
modelo no cerrado do Centro Oeste, com aplicação de novos procedimen­
tos e métodos científicos, incorporando ciência, tecnologia e informação
com vistas ao aumento da produtividade do trabalho e redução dos custos
em escalas de produção nunca antes imagináveis, num contexto de trans­
formação radical das forças produtivas, proporcionando maior nível de
rentabilidade ao capital. Não obstante, essa passagem vai sendo gradativa,
como revelam os elevados índices de produção de aves e suínos da área
tradicional do país.

Tabela 2 – Evolução do abate de frangos 2006/2008


Estados 2006 2007 2008 (até SET) Var 2006-07
Paraná 994.091.304 1.103.671.923 928.420.662 11,02
Santa Catarina 720.103.418 825.434.432 662.397.014 14,63
Rio Grande do Sul 636.184.385 734.019.771 589.199.426 15,38
São Paulo 654.186.159 693.652.620 572.313.177 6,03
Minas Gerais 286.655.685 300.743.015 259.619.991 4,91
Goiás 195.832.747 208.897.827 187.416.310 6,67
Mato Grosso do Sul 110.603.254 125.862.323 101.310.035 13,80
Mato Grosso 92.032.385 106.203.616 95.017.146 15,40
Bahia 51.623.817 57.198.939 47.821.993 10,80
Distrito Federal 44.834.796 54.123.173 47.212.328 20,72
Total 3.786.147.950 4.209.807.639 3.490.728.082 11,19
Brasil 3.939.620.092 4.371.802.833 3.629.891.705 10,97
Fonte: SIDRA/IBGE. Elaborado por: Marcos Vinícius Velozo da Costa.

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Júlia Adão Bernardes

Na tabela 2 pode-se observar a permanência da concentração do


abate de frangos em 2007 nos estados do sul do país, sob a liderança
do Paraná, que abateu nesse ano 1.103.671.923 frangos, seguido a certa
distância por Santa Catarina, Rio Grande do Sul e São Paulo, correspon­
dendo o abate desse conjunto a 76,78% do total do país, enquanto Minas
Gerais, a Bahia e os estados do Centro-Oeste, que despontam como prin­
cipais áreas de expansão, apresentaram um abate equivalente a 19,51%
do total nacional, restando apenas 3,71% para os demais estados. O Dis­
trito Federal, acompanhado pelos estados de Rio Grande do Sul, Mato
Grosso e Santa Catarina, registraram as maiores variações entre 2006 e
2007, situadas entre 14% e 20%, e os valores detectados para 2008, ape­
sar de computados até setembro, apontam para totais que superam os
valores de 2007.
Em se tratando de suínos, como mostra a tabela 3, Santa Catarina
lidera o abate, acompanhado de perto pelo Rio Grande do Sul, guardando
ambos certa distância do Paraná e São Paulo, crescendo o abate dos esta­
dos líderes entre 2006 e 2007 respectivamente 9,87% e 7,47%. Esses dois
estados participaram em 2007 com 53% do abate total de suínos do país,
e o conjunto da região tradicional produtora, representada pelo sul e su­
deste, deteve 86%. A região de expansão recente contribuiu nesse ano com
11%, entretanto, cabe esclarecer que os projetos já em execução no Centro-
Oeste, em particular em Mato Grosso, apontam para significativas mudan­
ças no quadro nacional em curto espaço de tempo.

Tabela 3 – Evolução do abate de suínos 2006/2008


Estados 2006 2007 2008 (até set.) Variação 2006/07
Santa Catarina 7.245.809 7.961.056 6.302.776 9,87
Rio Grande do Sul 6.302.132 6.772.983 5.187.529 7,47
Paraná 3.979.548 4.302.743 3.424.305 8,12
Minas Gerais 2.606.916 2.826.240 2.274.045 8,41
São Paulo 1.581.701 1.736.706 1.128.353 9,80
Goiás 1.143.922 1.192.846 1.135.631 4,28
Mato Grosso 888.205 1.016.094 775.803 14,40
Mato Grosso do Sul 686.331 783.704 610.030 14,19
Total 24.434.564 26.592.372 20.838.472 8,83
Brasil 25.221.891 27.410.308 21.424.155 8,68
Fonte: SIDRA/IBGE. Elaborado por: Marcos Vinícius Velozo da Costa.

Como nos lembra Santos, “com o desenvolvimento das forças pro­


dutivas, a desigualdade regional cessa de ser o resultado das aptidões
naturais e está se tornando ao mesmo tempo mais profunda e mais es­
peculativa: existe uma maior necessidade de capitais crescentemente vo­

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O novo tempo do capital globalizante e as novas relações campo-cidade

lumosos; os recursos sociais também tendem a se concentrar em certos


locais onde a produtividade do capital é cada vez mais alta. Tudo está
ligado” (2003: 22).

O novo modelo produtivo: mudanças na estrutura do campo


e da cidade

A cadeia carne/grãos já vem participando da organização do territó­


rio mato-grossense há alguns anos, seja na produção de aves ou de suínos.
Entretanto, a transferência da sua concentração do sul para este estado
vem se intensificando desde 2006.

Tabela 4 – Evolução do efetivo de galos, frangos, frangas e pintos nos municípios


maiores produtores de MT
Município 2005 2006 2007 2006/2007 (%)
Campo Verde 5.487.329 5.831.852 8.889.816 52,44
Tangará da Serra 2.863.536 2.399.182 2.658.854 10,82
Nova Mutum 847.055 2.139.000 2.581.106 20,67
Nova Marilândia 1.720.285 1.806.299 1.440.000 -20,28
Dom Aquino 198.611 274.340 935.641 241,05
Vera 62.581 63.582 750.000 1.079,58
Sorriso 831.600 873.180 731.177 -16,26
Sinop 194.173 197.279 505.000 155,98
Chapada dos Guimarães 266.152 247.673 371.227 49,89
Jaciara 278.483 403.510 348.886 -13,53
Mirassol d’Oeste 393.314 342.819 330.987 -3,45
Reserva do Cabaçal 10.813 9.834 239.996 2.340,47
Diamantino 146.286 160.915 185.000 14,97
Lucas do Rio Verde 20.721 22.793 182.000 698,49
São José do Rio Claro 45.063 46.212 103.244 123,41
Total 13.366.002 14.818.470 20.252.934 36,67
Mato Grosso 15.959.146 17.451.063 22.378.109 28,23
Fonte: SIDRA/IBGE. Elaborado por: Marcos Vinícius Velozo da Costa.

Considerando os três períodos, a tabela 4 mostra que entre 2006 e


2007 ocorreram as maiores mudanças na evolução do efetivo de frangos,
apresentando o estado de Mato Grosso variação de 28,23% no período,
apontando para expressivo crescimento do mesmo em 2007 em Campo
Verde (52,44%), que permanece como o maior produtor, seguido por Tan­
gará da Serra. Em 2007 a BR-163 já aparece como importante área de ex­
pansão, particularmente os municípios de Nova Mutum, que surge como o

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terceiro maior produtor, além de Vera e Lucas do Rio Verde, que cresceram
no período respectivamente 1.079% e 698%.
No que tange ao rebanho suíno, a tabela 5 revela que a área concen­
trada da agricultura moderna detém o maior efetivo em 2007, liderado por
Nova Mutum, que apresenta o maior crescimento entre 2005 e 2007, sede da
Perdigão, seguido por Diamantino e Lucas do Rio Verde, tendo o conjunto
dos 12 maiores produtores aumentado seu efetivo no período em 11,90%.
Deve-se observar que não há fortes concentrações em termos da produção
de suínos, encontrando-se a mesma bastante disseminada pelo estado.

Tabela 5 – Evolução do efetivo de suínos nos municípios maiores produtores de MT


Município 2005 2006 2007 2005/2007 (%)
Nova Mutum 82.926 105.493 168.740 103,48
Diamantino 169.221 186.143 134.649 -20,43
Lucas do Rio Verde 86.362 94.990 107.000 23,90
Rondonópolis 64.904 65.437 65.757 1,31
Campo Verde 39.852 40.063 63.157 58,48
Sorriso 89.565 98.522 62.531 -30,18
Vera 29.030 36.531 41.296 42,25
Itiquira 27.161 27.297 27.356 0,72
Sinop 24.786 25.264 25.517 2,95
Pedra Preta 34.181 33.120 25.202 -26,27
Tapurah 19.898 21.888 23.865 19,94
Poxoréo 18.741 23.927 23.293 24,29
Total 686.627 758.675 768.363 11,90
Mato Grosso 1.359.824 1.439.626 1.392.424 2,40
Fonte: SIDRA/IBGE. Elaborado por: Marcos Vinícius Velozo da Costa.

A Integração Lavoura Pecuária (ILP) também constitui uma ativi­


dade em ascensão em Mato Grosso, particularmente no médio-norte da
BR-163, favorecida pela crescente demanda mundial por proteína animal.
Segundo o produtor Otaviano Pivetta, “nos 33 milhões de hectares de área
aberta em MT, cerca de 25 milhões são destinados à pecuária e, desse total,
aproximadamente 12 milhões têm vocação para a agricultura, isto é, pode­
riam ser utilizados para a ILP”( BAPTISTA, 2008: 38). Essa integração se
faz quase sempre com base na utilização do caroço do algodão e do milho
na ração animal.
Entre os 50 principais confinamentos do país em 2007, encontram-
se 7 de Mato Grosso, correspondendo a 19,41% do total, devendo-se des­

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O novo tempo do capital globalizante e as novas relações campo-cidade

tacar o Confinamento Guimarães com 85 mil animais em Lucas do Rio


Verde e Sorriso, e a Fazenda Melina, da Vanguarda do Brasil, com 49.698
cabeças em Nova Mutum (tabela 6).

Tabela 6 – Número de animais confinados nos 50 principais confinamentos do país em


2007
Nº de animais
Classif. Confinamentos Municípios
confinados
2 Confinamento Guimarães Lucas do Rio Verde e Sorriso 85.000
5 Vanguarda do Brasil S.A – Fazenda Melina Nova Mutum 49.698
9 Agropecuária Ponto Alto Sinop e Matupá 37.000
13 Confinamento Eldorado (Boitel Marca) Barra do Garças 30.000
16 Grupo Estância Bahia Água Boa e Cuiabá 26.000
31 Fazenda Mano Julio Ipiranga do Norte 8.500
36 Fazenda Talismã Rondonópolis 7.800
  Total Mato Grosso 243.998
  Total Brasil 1.257.063
Fonte: Pesquisa Top BeefPoint de Confinamentos 2007-08. Elaborado por: Marcos Vinícius
Velozo da Costa.

Na distribuição geográfica dos 50 principais confinamentos, segun­


do a Pesquisa Top BeefPoint de Confinamentos, em 2007/08 coube ao es­
tado de Goiás a maior participação, cerca de 48,58% do total, vindo em
segundo lugar São Paulo, com 21,85%, seguido de perto por Mato Grosso,
com 19,41%, e, com maior distância, os estados de Mato Grosso do Sul,
com 9%, e Minas Gerais com apenas 1%. Entretanto, o confinamento neste
último estado vem avançando rapidamente, significando possibilidades de
ampliação do crescimento do rebanho total.
Os projetos em execução na área concentradora da agricultura mo­
derna na BR-163 em 2007, principalmente em Lucas do Rio Verde, Nova
Mutum e Sorriso, seja na produção de aves, de suínos ou bovinos, anun­
ciam a constituição da maior cadeia carne/grãos da América Latina, desta­
cando-se a Sadia em Lucas do Rio Verde como o principal agente, devendo
produzir até final de 2008, um total de 375 mil frangos/dia, sendo a meta
atingir 500 mil frangos/dia em 2009, além da expressiva produção de aves
e suínos da Perdigão, que se encontra em fase de reestruturação, e de em­
presas como a Vanguarda S.A. na produção de suínos e confinamento de
bovinos. No caso dos suínos, a previsão é de 5.000 suínos/dia em 2008, com
indicadores de produtividade jamais vistos.
Embora a nova organização produtiva tenha sido induzida pelo
mercado, fator determinante das transformações, a introdução e o desen­
volvimento das novas cadeias produtivas implicou no desenvolvimento de

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Júlia Adão Bernardes

novas atividades no campo, a exemplo da implantação dos aviários, do


criatório de suínos e do confinamento de bovinos. No caso da criação de
aves foram instaladas 190 granjas, distribuídas num raio de 70 km, abri­
gando cada uma 4 galpões, totalizando 110 mil cabeças, equivalendo aqui
um módulo de criação de frangos a 7 de Santa Catarina. Tratando-se de
suínos, além da produção da Perdigão e da Sadia, destaca-se a Ideal Porc
Suinocultura com a mais alta qualidade genética e padrão de sanidade da
América Latina e, no caso de bovinos, a previsão da Fazenda Ribeiro do
Céu em 2007 era de 60 mil cabeças entre recria (120 a 140 dias) e engorda
(90 a 100 dias). Enquanto no sul do país os pequenos produtores são incor­
porados ao processo de criação de frangos e suínos na condição de integra­
dos, em Mato Grosso são os médios e grandes produtores os responsáveis
por tais atividades, significando abertura de postos de trabalho no campo
com certo nível de qualificação.
Tais transformações no espaço agrário estão associadas às novas im­
plantações industriais no espaço urbano, a exemplo da fábrica de rações
da Sadia, que deverá consumir 700 mil toneladas de milho e 200 mil tone­
ladas de farelo para produzir 1 milhão de toneladas de ração/ano, devendo
toda essa produção mobilizar 300 carretas diárias para escoar a produção
da empresa. Para alcançar tais valores, uma esmagadora do Grupo Mag­
gi, com capacidade para 3.000 ton./dia foi construída, associada também
à produção de biodiesel, além de obras para armazenamento com capaci­
dade para 132 mil toneladas de grãos. Fábricas de ração, armazéns, abate­
douros, frigoríficos e outros tipos de indústria vêm sendo implantados no
espaço urbano.
A reformulação dos espaços urbanos, associada à gestão das novas
necessidades da produção, da comercialização e da circulação, introduz
sofisticados sistemas de comunicação e de informações, que possibilitam
a redução do tempo e redefinem a espacialidade dos circuitos de produção.
Essa inovação materializada na forma de técnica, que se traduz no aumen­
to da produtividade, produz novas necessidades de trabalho vivo. Segundo
a Sadia, tais investimentos devem gerar mais de 7.000 empregos diretos,
dos quais 1.500 nos integrados.
Entretanto, apesar das necessidades de maior quantidade de mão
de obra com certo nível de qualificação, os salários continuam baixos, não
ultrapassando em média 550 reais para um operador, sendo a oferta de
trabalho superior à procura em função do elevado custo de vida na região
e do preço do solo urbano. Consequentemente, a contratação de trabalha­
dores está freqüentemente associada ao trabalho de alguns membros da
família, significando agravamento das relações de dependência.
Em suma, a cada novo impulso de modernização das forças produ­
tivas agrícolas e agroindustriais os sistemas urbanos se reorganizam, apre­
sentando maior complexidade, o que pode ser detectado através dos novos

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O novo tempo do capital globalizante e as novas relações campo-cidade

circuitos espaciais de produção e dos círculos de cooperação que se esta­


belecem entre campo e cidade. Ou seja, “quanto mais se difunde a agricul­
tura científica globalizada, mais urbana se torna a sua regulação” (ELIAS,
2006: 293), implicando no surgimento de novas funções, que são hegemô­
nicas, vinculadas ao atendimento das demandas da agricultura científica,
significando estabelecimento de novas relações entre o campo e a cidade.

Interesses de classe, mudança econômica e social


O aparecimento de técnicas especializadas na cadeia produtiva car­
ne/grãos, geradoras de economias de escala, implicou em alterações deci­
sivas nas relações agricultura, indústria e comercialização, envolvendo in­
vestimentos a médio e longo prazo, com também maiores riscos, exigindo
a garantia da continuidade da produção com certa margem de segurança,
o que está de acordo com as exigências de uma economia de mercado.
Nesse contexto, trabalho, terra e dinheiro são fundamentais: o dinheiro em
função dos vultosos investimentos, a terra que deve estar disponível para
economias de escala e o trabalho, cerne da extração da mais valia.
Tais fatores estavam disponíveis para a venda no mercado na área
concentrada de grãos da BR-163, e acentuaram-se enquanto “princípio or­
ganizador da sociedade”. Polanyi nos lembra que o trabalho se destaca por
constituir “as formas de vida do povo comum”, e as mudanças no sistema de
mercado promovem mudanças na organização do trabalho, tornando-se a
sociedade humana acessório do sistema econômico (POLANYI, 2000: 97).
Nessa direção é possível afirmar que a história do novo tempo do
capital, no sentido da implantação de novas atividades no cerrado, leia-se
cadeia carne/grãos, com o objetivo de ampliar as vendas de mercadorias,
está associado ao movimento de concentração da terra, envolvendo fusões,
centralização do capital, implicando na exclusão de pequenos e médios
produtores, de concentração capital e poder, que inclui o poder político.
Em relação ao trabalho, foram criados mecanismos para sua regu­
lação que escapavam ao funcionamento da lei de oferta e procura, já que
as novas atividades que se abriam e a escala em que funcionavam exigia
a presença de fortes contingentes de mão de obra, os quais, contraditoria­
mente, não podiam permanecer no local em função da incompatibilidade
salário/moradia/custo de vida. Oferecendo baixos salários, a forma de ad­
quirir mão de obra era a adição de paliativos, como moradia com financia­
mento a longo prazo para alguns.
Como assinala Polanyi (2000: 292), “embora seja da natureza das
coisas que os diferenciais salariais possam (e devam) continuar a desem­
penhar um papel essencial no sistema econômico, outras motivações, além
daquelas diretamente envolvidas nos rendimentos monetários, podem
compensar em muito o aspecto financeiro do trabalho”.

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Júlia Adão Bernardes

Em suma, para que a produção de carnes assumisse proporções ina­


creditáveis, foi essencial o estabelecimento de medidas e de uma rede de
integração de políticas que alimentassem processos de concentração e cen­
tralização, levando a mudanças na geografia dos grãos, a fenômenos de
inauguração de novos espaços produtivos, vinculados a novos potenciais,
assim como a fenômenos de eliminação de espaços com reduzida capaci­
dade diversificação.
Nesse sentido, a nova organização do capital nas novas cadeias pro­
dutivas implicou em substanciais níveis de investimentos, centralizando-
se a economia em menor número de empresas, levando ao aumento do
monopólio, levando as novas proporções do capital à instauração de no­
vas formas de relações entre empresas, entre lugares, de interações entre
o rural e o urbano, estabelecendo-se novas hierarquias entre os distintos
capitais e lugares.
Diagnosticar as utilidades técnicas e perceber quem pode dispor de
quê para ter uma produção racionalmente orientada, como fontes de ener­
gia, de água, saberes, instalações, infra-estruturas, etc, significa entender a
natureza desse poder que permite que a economia se realize. Significa ins­
tituir o futuro, que é uma característica da modernidade. Assim, as gran­
des empresas planejam, pensando no futuro com as condições do presente.
Constroem projetos e disputam o futuro que desejam, que pode ser alta­
mente competitivo, tecnificado. Logo, quem tem projeto decide, estabele­
ce as regras e implementa, pois, sem projeto, não se disputa a hegemonia
(RIBEIRO, 2002).
Estamos falando, portanto, das estratégias que contemplam grandes
ações, as quais devem ser sincronizadas, sendo as ordens e as regras en­
quadradas em tempos pré-definidos, e estas ordens, e estas regras se rela­
cionam com mecanismos de reprodução de poder.

Para finalizar
Até há pouco tempo a novidade no país era a expansão da agricultu­
ra moderna no cerrado, dos grãos. Hoje, o novo, é constituído pelos fronts
da cadeia de carnes, aproveitando a existência dos grãos da primeira fase
da fronteira, é a revolução genética na produção de frangos, suínos e bo­
vinos, é o confinamento de bovinos, são as tecnologias de ponta que hoje
produzem impactos no campo e na cidade, instituindo novas relações. A
partir do esgotamento do velho, surge um novo modelo, que implica em
novas técnicas, nova escala de produção, só encontrada no cerrado, mais
adequada às atuais necessidades da acumulação.
Como o modelo social vigente se sustenta nos pressupostos do de­
senvolvimento permanente, baseado na produção/comercialização contí­
nua sob os impulsos da competição, que estimula a criação de novos pro­

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O novo tempo do capital globalizante e as novas relações campo-cidade

dutos, de novas formas de produzir e consumir, com base na implantação


de novas tecnologias no campo e na cidade, num processo de realimenta­
ção permanente, a tecnologia acaba funcionando como fator condicionan­
te de novas relações campo/cidade.
É possível, portanto, falar, com base no processo de modernização,
do estabelecimento de novas relações campo/cidade, da existência de uma
relação direta entre reorganização territorial e a coordenação de novos
processos, procedimentos e ações que organizam e otimizam o funciona­
mento de novos setores produtivos e o movimento de seus produtos no âm­
bito da cadeia carne/grãos.
Nesse contexto, a divisão territorial do trabalho constitui uma nova
fragmentação do território, não sendo resultado da modernização, mas por
ela projetada (RIBEIRO, 2002), já que é necessária ao projeto de moderni­
zação dessa nova cadeia produtiva carne/grãos. Nesse sentido, a nova divi­
são do trabalho, que se expressa na divisão territorial do trabalho, consti­
tui um instrumento de expansão capitalista e condição para a acumulação
(SANTOS, 2003).

Referências:
BAPTISTA, Martha. Um norte para a pecuária. In: Produtor Rural, julho de
2008, Mato Grosso.
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. Crise no Agronegócio: novas ações. novos tempos, novas terri­
torialidades. In: OLIVEIRA, Márcio Piñon de; COELHO, Maria Cé­
lia Nunes; CORRÊA, Aureanice de Mello (Orgs.). O Brasil, a América
Latina e o mundo: espacialidades contemporâneas (II). Rio de Janei­
ro: Lamparina: Faperj, Anpege, 2008.
. Novos espaços urbanos no contexto da mudança tecnológica: ten­
dências e desafios socio-políticos. In: SILVA, Catia Antonia da; CAM­
POS, Andrelino (Orgs.). Metrópoles em Mutação: dinâmicas territoriais,
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ELIAS, Denise. Novas dinâmicas territoriais no Brasil agrícola. In: SPOSI­
TO, Eliseu Savério; SPOSITO, M. Encarnação Beltrão; SOBARZO,
Oscar (Orgs.). Cidades Médias: produção do espaço urbano e regional.
São Paulo: Ed. Expressão Popular, 2006.
FREDERICO, Samuel. O novo tempo do cerrado: expansão dos fronts agrí­
colas e controle do sistema de armazenamento de grãos. Tese de dou­
torado USP. São Paulo, 2008.

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Júlia Adão Bernardes

HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: AnnaBlume,


2005.
LEFEBVRE, Henri. De lo rural a lo urbano. Barcelona: Ediciones Penín­
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Janeiro: Elsevier, 2000.
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regionais contemporâneos. Anais do IV Colóquio sobre transforma­
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SÁNCHEZ, Joan-Eugeni. Comentarios a la división espacial del trabajo y de
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Contribuições teórico-metodológicas para
uma abordagem territorial multidimensional
em geografia agrária

Marcos Aurélio Saquet


Universidade Estadual do Oeste do Paraná | Campus de Francisco Beltrão |
Pesquisador­do Cnpq | saquetmarcos@hotmail.com

Apresentação
Nos últimos trinta anos, vários pesquisadores brasileiros têm, con­
juntamente com estudiosos do exterior, num diálogo continuado, recons­
truído a geografia no Brasil, sem desconsiderar, evidentemente, o movi­
mento anterior, também constante, de revisão da ciência geográfica. Em
especial, nos últimos 15 anos, muitos docentes-pesquisadores, envolven­
do discentes em diferentes níveis de ensino (graduação e pós-graduação),
têm assumido, cada vez mais, o território não apenas como uma noção ou
conceito, mas como uma categoria central para a análise e interpretação
geográfica.
É um movimento muito interessante e importante, pois revela mu­
danças epistemológicas e ontológicas substantivas nessa e em outras ciên­
cias e, também, na filosofia. Esse processo também mostra-nos, como
ocorreu em períodos anteriores, uma tentativa constante de explicação
dos processos sociais e espaciais por meio da revisão e atualização teórico-
metodológica. Existem, como já evidenciaram, cada qual ao seu modo, au­
tores como Moreira (2007), Moraes (2004), Saquet (2000 e 2007) e Suzuki
(2007), fatores internos e externos ao pensamento geográfico que determi­
nam sua renovação constante.
Renovação que passa, como já mencionamos, por uma revisão teóri­
co-metodológica ocorrida a partir dos anos 1960-70, envolvendo as teorias,

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Contribuições teórico-metodológicas para uma abordagem
territorial multidimensional em geografia agrária

os métodos, os conceitos e as técnicas de pesquisa, bem como os temas até


então estudados. Renovação que coloca no centro das atenções, debates
e pesquisas o caráter relacional do espaço, como produto e condição dos
processos sócio-espaciais, envolvendo relações de poder, controle e domi­
nação, o que possibilita a retomada, de maneira contundente, dos conceitos
de território e territorialidade. Alguns autores são pioneiros, na geografia,
na filosofia e noutras ciências, como Jean Gottmann, Giuseppe Dematteis,
Gilles Deleuze, Felix Guattari, Massimo Quaini, Claude Raffestin, Arnaldo
Bagnasco, Francesco Indovina, Alberto Magnaghi, Edward Soja, entre ou­
tros, possibilitando o delineamento de diferentes abordagens e concepções
e, ao mesmo tempo, distintas leituras de geografia, do espaço, do território
e da paisagem. De maneira geral, a relação espaço-tempo ganha centrali­
dade, juntamente com as relações sociais, ora compreendidas a partir de
princípios do materialismo histórico e dialético, ora da fenomenologia e,
em algumas situações, apreendidas por uma concepção híbrida, que ga­
nhará destaque mais tarde, ou seja, a partir dos anos 1990.
O texto e a argumentação de Hussy (2002), a partir de sua tese, é
uma demonstração muito clara desse movimento que envolve pesquisado­
res de vários países. Ao estudar a história dos conceitos de espaço, tempo,
território, limite e ritmo, ela produz uma teorização acerca do território e
da territorialidade como uma problemática relacional e híbrida. O territó­
rio e a territorialidade são complexos, objetivos e subjetivos, de maneira
similar ao que argumentamos em Saquet (2000).
A problemática do território, para Jocelyne Hussy, a partir da con­
cepção de Claude Raffestin, é uma problemática social e multidimensio­
nal. De uma abordagem do espaço absoluto, de localizações, medições e
cálculos precisos, passa-se a uma concepção relacional, centrada no mo­
vimento histórico dos processos sociais, substantivados por contradições,
lutas, transformações, controles, superações. A problemática do território
e da territorialidade é uma problemática relacional (Raffestin [1993/1980],
Hussy [2002] e Racine [2002]). Desde os anos 1970 e, sobretudo a partir
dos anos 1980-90, o território e a territorialidade ganham cada vez mais
centralidade em estudos de geografia, sucintamente, pela ambigüidade e
pela amplitude das abordagens que são possibilitadas.
O caráter multidimensional do território e da territorialidade per­
mite que se destaque os fatores e elementos econômicos ou culturais ou
políticos ou, ainda, imbricações dessas dimensões sociais e as redes de
circulação e comunicação. As possibilidades que se abrem são múltiplas,
de acordo com a multiplicidade e heterogeneidade de nossa vida cotidia­
na. Dessa forma, a problemática territorial também é uma problemática
social-cotidiana e vice-versa. É necessário conhecer as práticas cotidianas
para entender a territorialidade, os territórios, os lugares, a exploração, a
dominação, a degradação etc.

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Marcos Aurélio Saquet

O Por uma geografia do poder, de Claude Raffestin, por exemplo, nas


mãos e pesquisas de Jocelyne Hussy, transforma-se numa geografia da ter­
ritorialidade ou, nas pesquisas de Giuseppe Dematteis, Egidio Dansero e
Francesa Governa, numa geografia da territorialidade ativa, em virtude do
caráter político de transformação social assumido pela abordagem terri-
torial renovada, histórico-crítica, relacional e híbrida (pluri-discipli­
nar, no dizer de Hussy, 2002), ou seja, multidimensional, envolvendo as
dimensões sociais e a natureza na formação e explicação dos territórios e
das territorialidades. Estas, tornam-se um princípio explicativo e de orga­
nização política como ora defendemos.
Para nós, a territorialidade tem pelo menos um triplo sentido: a)
corresponde às relações sociais que efetivamos todos os dias; b) à apro­
priação e demarcação de certo espaço na forma de área, área-rede ou rede-
rede ou, ainda, de manchas com formatos regulares e/ou irregulares, de­
pendendo dos processos sócio-espaciais que estão em jogo e, c) ao caráter
organizativo de militância política e transformação em favor de uma socie­
dade mais justa. A territorialidade se constitui, dessa forma, numa proble­
mática multidimensional, ao mesmo tempo, complexa, territorial, espacial
e temporal: é substantivada por temporalidades (ritmos, desigualdades),
tempos, territórios, diferenças e identidades.

O território vem-a-ser, acontece em sua unidade interna e externa, numa re­


lação entre sujeitos historicamente condicionados. O território só se efetiva
quando os indivíduos são e estão em relação com outros indivíduos; signifi­
ca, por isso, interação plural, multiforme; relação, reciprocidade e unidade;
significa territorialidade(s). Há movimento do pensamento e no pensamen­
to e do território e no território; unidade de cada território e entre os terri­
tórios. (Saquet, 2007, p.163)

E é a partir desse pressuposto básico das relações, da interação e da


unidade, da processualidade histórica e relacional que estamos pensando
uma abordagem territorial híbrida-multidimensional da relação espa­
ço-tempo-território, do desenvolvimento e da questão agrária em unidade
com a questão urbana, como processos em contínuo movimento de conti­
nuidades e descontinuidades, saltos, superações.
No Brasil, a geografia agrária é uma das especificidades da geogra­
fia em que a discussão do território e da territorialidade mais tem se difun­
dido, como revelam os textos de Fernandes (1996, 2007 e 2008), Oliveira
(2002), Suzuki (2007) e Paulino (2008). Recentemente, Fernandes (2008),
numa instigante reflexão sobre a multidimensionalidade, identifica uma
tipologia de territórios, envolvendo: a) diferentes escalas: nacional, regio­
nal, estadual, municipal e distrital; b) diferentes tipos de propriedades par­
ticulares. Com uma concepção areal-relacional e histórico-crítica, para
Bernardo Mançano Fernandes, esses territórios correspondem a frações

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Contribuições teórico-metodológicas para uma abordagem
territorial multidimensional em geografia agrária

ou parcelas de um território (área) maior no qual se estabelecem relações


de poder, conflitos e fluxos. É uma conjugação importante, que concilia a
relação área-rede a partir da apropriação do espaço por indivíduos e gru­
pos sociais, como argumentamos em Saquet (2003/2001).
Dessa maneira há, conforme Fernandes (2008), por exemplo, terri­
tórios camponeses e capitalistas que se diferenciam tanto material como
imaterialmente, gerando paisagens também distintas. Há heterogeneida­
de: “A paisagem do território do agronegócio é homogênea, enquanto a
paisagem do território camponês é heterogênea” (Fernandes, 2008, 285).
De fato, a paisagem construída com o cultivo da soja em grandes áreas
é bem diferente das manifestações verificadas em territórios de agricul­
tores familiares, diversificados desde os cultivos e práticas criatórias até
as atividades culturais e edificações dos aglomerados de casas, escolas,
igrejas etc. A territorialização é diferente, com construções e relações dis­
tintas, embora ambos processos sejam envolvidos por princípios societá­
rios que perpassam esses grupos sociais, como argumentamos em Saquet
(2003/2001, 2006 e 2006a), inerentes ao movimento de reprodução do MCP
e da sociedade.
Apesar dessa correlação território-paisagem ser inovadora no Brasil
e instigante, queremos, agora, evidenciar o caráter heterogêneo dos pro­
cessos sociais e territoriais, conforme já insistimos em textos anteriores,
ao estudar e explicar os tempos e territórios da colonização italiana no Rio
Grande do Sul. A relação tempo-território, para nós, é fundamental para
identificarmos, apreendermos e explicarmos as territorialidades e os terri­
tórios que são efetivados todos os dias, com maior ou menor duração, por
elementos e processos identitários, desiguais e diferentes, isto é, multidi­
mensionais. As desigualdades e diferenças estão na base, contraditoria­
mente, da própria identidade e vice-versa, substantivando territorialida­
des, tempos (ritmos) e territórios.
Assim, por esse raciocínio, temos uma miríade de territórios, em di­
ferentes escalas que variam entre os níveis internacional e do lugar; multi­
dimensionais, ou seja, políticos e/ou econômicos e/ou culturais (E-P-C) e,
sobrepostos e coexistentes, revelando a intensa complexidade e os movi­
mentos da dialética sócio-espacial, como tentamos detalhar mais adiante,
neste texto.

Pensando na multidimensionalidade como unidade ontológica e


epistemológica

O processo de renovação da geografia ocorrido a partir dos anos


1960-70 envolve pesquisas, debates e conflitos que extrapolam essa ciên­
cia. Há uma reelaboração do pensamento de maneira interdisciplinar que
também é filosófica e envolve pesquisadores e estudantes de diferentes

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Marcos Aurélio Saquet

grupos, departamentos, universidades e países. A revisão e a reelabora­


ção consubstanciam claramente uma questão ontológica e epistemológica,
concomitantemente, reconhecendo a necessidade de retomar e, sobretudo
aprofundar a discussão sobre as teorias, métodos, categorias e conceitos
da geografia para explicar determinados processos. Movimento que per­
passa, como já mencionamos, a geografia e envolve diferentes conceitos
como espaço, território e paisagem, assumindo especificidades em distin­
tos países e contextos.
Moreira (2007/1992) já evidenciara alguns dos fatores e algumas das
características desse processo, por meio de uma concepção coerente, ou
seja, histórica e relacional da história e da epistemologia da geografia. Evi­
dencia aspectos e processos internos e externos ao pensamento geográfico,
especialmente a partir da intelectualidade de pesquisadores como Y. La­
coste, M. Santos, H. Lefebvre e M. Quaini. Este último, por exemplo, que
revisitamos (Saquet, 2007), enaltece justamente o caráter epistemológico
e ontológico da ciência geográfica por meio da reflexão sobre as relações
espaço-tempo-território e sociedade-natureza que se materializam na pai­
sagem (Quaini, 1973). É uma concepção elaborada no final dos anos 1960
e durante a década de 1970, baseada em princípios filosóficos e político-
ideológicos do materialismo histórico e dialético, predominante na geo­
grafia dos anos 1970-80, embora assumindo algumas singularidades em
alguns países.
Trata-se de uma opção importante que abre caminho para desdo­
bramentos fecundos sobre a relação espaço-tempo e a multiplicidade de
relações que se estabelecem na sociedade e entre esta e a natureza. Foi a
perspectiva predominante, porém, não única, pois se efetivam embates,
abordagens disciplinares, híbridas, fenomenológicas e neoweberianas, não
somente na geografia mas também em ciências como a sociologia e a an­
tropologia.
Assim, a tríade destacada por Moreira (2007/1992), com Yves La­
coste, Milton Santos e Massimo Quaini precisa, no mínimo, ser ampliada
com nomes igualmente importantes para a renovação da geografia no pe­
ríodo em questão, através de diferentes perspectivas elaboradas por David
Harvey, Giuseppe Dematteis e Jean Gottmann, estes dois últimos com es­
pecial atenção e contribuições sobre o território e a territorialidade. É um
movimento que envolve pesquisadores com diferentes perspectivas e de
distintos países, na geografia, como Paul Claval, Lucio Gambi e Eugenio
Turri, por exemplo, na França e na Itália, acrescidos por pesquisadores de
outras ciências e da filosofia, nesse período, como Arnaldo Bagnasco, Mi­
chel Foucault, Gilles Deleuze, Felix Guattari, Umberto Eco, entre outros. A
crítica e a abordagem de L. Gambi, por exemplo, antecede em vários anos
a historicidade do espaço elaborada e enaltecida por M. Santos no final da
década de 1970.

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Contribuições teórico-metodológicas para uma abordagem
territorial multidimensional em geografia agrária

As contradições e os “embriões” para os entrelaçamentos e hibridis­


mos estavam no “interior” da geografia, de outras ciências e da filosofia. É
um processo contraditório, histórico, relacional, ambíguo e multidimen­
sional. A própria geografia, ao ser definida como uma ciência social que
tem como objeto de estudos a construção do espaço geográfico, já assu­
mia, de maneira geral, um caráter interdisciplinar em virtude da multidi­
mensionalidade e complexidade da sociedade e da própria natureza. Há
campos disciplinares específicos com perspectivas bem definidas, no en­
tanto, são revistos e ampliados, sobretudo a partir do final dos anos 1990,
em busca de certa transposição das fronteiras disciplinares e de concep­
ções híbridas.
Multidimensionalidade sinalizada, por exemplo, no Brasil, pelo pró­
prio Ruy Moreira ainda no final da década de 1970, com uma abordagem
centrada no materialismo histórico e dialético. Com uma concepção for­
temente ancorada em obras e argumentações de Henri Lefebvre, em nos­
so entendimento, Ruy Moreira indica uma concepção estrutural e mul­
tidimensional da dialética espaço-tempo, através do estudo dos arranjos
econômicos, das instâncias superestruturais, do aparato jurídico-político
e dos processos culturais: “Assim, o Estado, por exemplo, não é uma parte
da formação econômico-social, mas uma forma específica de como o todo
se manifesta, sintetizando essa ‘parte’. O raciocínio é o mesmo para a cul­
tura, a política, a ideologia ou a economia” (Moreira, 2007/1979, p.71).
A multidimensionalidade corresponde à complexidade e às intera­
ções sociais, sem desconsiderar, para nós, a natureza exterior ao homem
como fator e processo contínuo de unidade com a sociedade. A multidi­
mensionalidade, dessa maneira, corresponde às territorialidades que efe­
tivamos todos os dias, tanto econômica, como cultural e politicamente em
interação e unidade com nossa natureza exterior. Essa problemática, assim,
é ontológica e epistemológica, simultaneamente e exige uma abordagem
e concepção múltipla e híbrida para sua apreensão e explicação, que tra­
duzimos numa questão ontológica-epistemológica-multidimensional, pois
pensamento e real estão em unidade processual, um está no outro. Idéia e
matéria estão em unidade, como já afirmamos em Saquet (2000). Pensar já
é viver e este já é pensar. A ontologia do ser social também é epistemologia;
nós é que damos sentidos e cores, por exemplo, à natureza e à sociedade.
Multidimensionalidade já enunciada e/ou demonstrada, quando
se trata dos territórios e das territorialidades, na geografia do pós-1950-
70, por autores como Gottmann (1947 e 1952), enaltecendo os processos
geopolíticos, as iconografias e a circulação na formação dos territórios;
Dematteis (1964) e Raffestin (1978 e 1993/1980), destacando o território
e a territorialidade como relação social; por Dematteis (1985), Dansero
(1996), Saquet (2003/2001), entre outros, evidenciando o território e o de­
senvolvimento.

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Marcos Aurélio Saquet

Michel Foucault é um dos pioneiros que, entre outros méritos, teori­


zou sobre a multidimensionalidade do poder, incorporado de forma inédi­
ta, inicialmente, na geografia, por Claude Raffestin. O poder corresponde
à uma rede de relações variáveis e multiformes; é exercido e se constitui
na relação, historicamente. Há poder sem o rei: “Com poder não quero di­
zer ‘o Poder’, como conjunto de instituições e de aparatos que garantem a
submissão dos cidadãos em um determinado Estado. (...) Com o termo po­
der me parece que se deve entender a multiplicidade de relações de forças
inerentes ao campo no qual se exercitam (...); o jogo que, através de lutas
incessantes, transforma-o, reforça-o, inverte-o; o apoio que estas relações
de forças encontram umas nas outras (...)” (Foucault, 1978, p. 82).
O poder é um processo social central na formação de cada território
e, por isso, apreendê-lo em suas múltiplas manifestações objetivas e sub­
jetivas (concreto-abstratas) é fundamental e significa um salto qualitativo
na apreensão e explicação dos processos territoriais, como indicamos em
Saquet (2003/2001, 2006, 2006a) voltando nossa reflexão para os processos
agrários, considerando as relações econômicas, políticas, culturais e pro­
cessos naturais, simultaneamente, que representamos com a abreviatura
E-P-C-N. Caráter (multidimensional) também evidenciado por Bernardo
Mançano Fernandes, considerando-o uma propriedade do significado do
conceito de território: “Cada território é uma totalidade (...). Essas tota­
lidades são multidimensionais e só são completas neste sentido, ou seja,
relacionando sempre a dimensão política com todas as outras dimensões:
social, ambiental, cultural, econômica etc.” (Fernandes, 2008, p. 279).
Enfim, conforme afirmamos em Saquet (2007), a (i)materialidade
ocorre na relação E-P-C-N, no território, na territorialidade, na vida. A
questão agrária é uma problemática histórica, relacional, territorial e do
desenvolvimento; há uma problemática do desenvolvimento que é terri­
torial (Saquet [2003/2001] e Pires [2007]). Desenvolvimento que é histo­
ricamente territorializado desigual e contraditoriamente, com interações,
conflitos, contradições, heterogeneidades e identidades, ritmos, continui­
dades e descontinuidades; o desenvolvimento e a questão agrária são mul­
tidimensionais e correspondem a uma problemática ontológica-epistemo­
lógica e territorial difícil de ser compreendida e explicitada.

Elementos para uma abordagem territorial multidimensional


em geografia agrária

Num dos últimos trabalhos que elaboramos, intitulado Por uma


abordagem territorial (Saquet, 2009), refletindo sobre a abordagem históri­
co-relacional híbrida do processo de territorialização, desterritorialização
e reterritorialização, evidenciamos alguns elementos que consideramos
fundamentais em geografia. Naquela oportunidade, estávamos atentos às

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Contribuições teórico-metodológicas para uma abordagem
territorial multidimensional em geografia agrária

questões mais gerais que fazem parte, tanto ontológica como epistemolo­
gicamente, da geografia. Por isso, destacamos alguns componentes que
precisam ser considerados tanto em estudos de geografia urbana, agrária,
econômica, cultural, política, enfim, em estudos de geografia.
Agora, estamos refletindo descrevendo e descrevendo refletindo so­
bre a abordagem territorial da questão agrária, processo ambíguo, multi­
forme, multidimensional, complexo e híbrido, porém, com algumas espe­
cificidades, em razão, como afirmamos em Saquet (2006 e 2006a) e como
argumenta Fernandes (2008), de singularidades inerentes aos processos
agrários, mais detidamente, à produção agropecuária familiar, com um
caráter histórico camponês, um dos temas e uma das problemáticas de
nossos estudos dos últimos 16 anos. Problemática da questão agrária que
precisa ser estudada e compreendida juntamente com a questão urbana.
Em estudos de geografia agrária, ou melhor, em processos especí­
ficos do rural-agrário articulado-combinado e em unidade com o urbano-
cidade, acreditamos que é fundamental reconhecer e explicar:
a) os indivíduos sociais (ou atores ou agentes se se preferir dessa for­
ma) e a multiplicidade de suas ações e reações (práticas objetivas
e subjetivas) cotidianas em forma de redes (circulação e comuni­
cação) que interligam diferentes escalas geográficas (para detalha­
mento, ver Saquet, Candiotto e Alves, 2010). Esses indivíduos são
os trabalhadores familiares, assalariados, meeiros, ocupantes, ren­
deiros; os jovens e as crianças; os aposentados que estão no espa­
ço rural, todos vivendo em sociedade, nas unidades produtivas e de
consumo que ora denominamos de unidades territoriais de vida no
espaço agrário.
b) as relações de poder e trabalho como consumo de energia, conhe­
cimentos, experiências, mercadorias, controle, exploração e domi­
nação, cada qual com suas especificidades e combinações (sincrôni­
cas e diacrônicas) em meio à reprodução da sociedade em geral e do
modo capitalista de produção.
c) as associações de produtores, os CAIs, as cooperativas de produ­
ção, comercialização e de crédito (solidárias e empresariais), como
organizações políticas e econômicas que também envolvem uma mi­
ríade de relações de poder e mediações.
d) as formas de apropriação simbólicas e materiais do espaço geográ­
fico, isto é, econômicas, políticas e culturais, incluindo aí institui-
ções importantes no espaço agrário, como as igrejas, as escolas, os
sindicatos de trabalhadores rurais, as organizações como o MST, as
ONGs e os sindicatos patronais. Esse quesito também envolve o uso
e a exploração econômica da terra, das águas e das florestas.

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Marcos Aurélio Saquet

e) as técnicas de manejo e as tecnologias, os instrumentos e máqui­


nas, os conhecimentos e as ciências, o saber fazer com caráter po­
pular, como mediações entre o homem-sociedade e o espaço na
apropriação e produção territorial. Isso significa, também, reconhe­
cer e explicar, pelo menos as principais relações que os homens (do
campo-rural e cidade-urbano) efetivam com sua natureza exterior
(inorgânica). Aí é importante identificar e explicar as principais ca­
racterísticas em termos de clima, vegetação, espécies animais (bio­
diversidade animal e vegetal), hidrografia, solo e relevo-declividade
(Adriano Saquet, 2008).
f) os objetivos, as metas e as finalidades dos indivíduos e grupos so­
ciais, sejam eles eminentemente rurais ou rurais-urbanos em suas
atividades econômicas, políticas e culturais.
g) o Estado nos níveis municipal, estadual e federal, as políticas públi­
cas e o mercado, evidenciando a circulação, a drenagem de renda,
as redes, o mecanismo de preços diferenciados praticado e a unida­
de Estado-capital como processo central na expansão do modo capi­
talista de produção.
h) a mobilidade dos indivíduos, o vai e vem cotidiano, seja no espaço
agrário, no urbano e entre ambos. Processos que acontecem no mes­
mo lugar ou entre lugares diferentes, no mesmo período ou entre pe­
ríodos históricos distintos.
i) as continuidades (permanências) e descontinuidades (mudan­
ças) historicamente condicionadas, econômicas, políticas, culturais
e ambientais, isto é, territoriais, como processos e fatores determi­
nantes do movimento de reprodução da vida. A definição de perío­
dos e/ou fases é um importante recurso didático, juntamente com a
escolha das variáveis que se quer pesquisar.
j) a heterogeneidade e os traços comuns, ou seja, as desigualdades
(ritmos, temporalidades) entre as unidades produtivas-territórios,
as diferenças político-culturais e as identidades. Estas, são histori­
camente constituídas, têm um caráter relacional e correspondem a
elementos ou características comuns que podem ser potencializadas
em projetos e programas alternativos de desenvolvimento territo-
rial, que envolvam os espaços urbano-cidade e agrário-rural.
k) as principais características (elementos e processos) que precisam
ser valorizadas (E-P-C-N), protegidas e possam ser dinamizadas/
aproveitadas em projetos de desenvolvimento com mais justiça so­
cial e com autonomia decisória para os grupos sociais, num movi­
mento contínuo de resistência ao processo de mundialização do ca­
pital.

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Contribuições teórico-metodológicas para uma abordagem
territorial multidimensional em geografia agrária

O estudo desses elementos e processos permite mostrar e explicar os


ritmos-temporalidades-desigualdades, as diferenças, as tradições-identida­
des-continuidades e as mudanças-descontinuidades, as relações de poder,
os conflitos, as contradições, a produção-circulação-troca-consumo, o ma­
nejo e uso da terra, a degradação da natureza, as técnicas e tecnologias, as
políticas públicas, enfim, aspectos fundamentais, tanto econômicos, como
políticos, culturais e ambientais do movimento perpétuo de territorializa­
ção, desterritorialização e reterritorialização, isto é, de formação de ter­
ritorialidades e territórios, tempos e temporalidades, processos multidi­
mensionais que estão sempre presentes na questão agrária, ou melhor, no
agrário-rural, na cidade-urbano e em suas relações. São territorialidades
existentes entre os sujeitos e destes com sua natureza exterior.
Há, para nós, diferentes níveis e formações territoriais, como acon­
tece nas unidades produtivas familiares, nas empresas rurais e/ou urbanas;
na organização dos banqueiros, na prostituição, no operariado; nas asso­
ciações e cooperativas; nos movimentos sociais como o MST; nas escolas
(nos diferentes níveis de ensino) e nas famílias. Há territórios e territoriali­
dades que se efetivam objetiva e subjetivamente desde o nível familiar, pas­
sando por processos mais amplos das ruas, bairros, “comunidades rurais”,
cidades, municípios, estados, regiões, nações até o nível internacional, por
meio de diferentes relações e redes de circulação e comunicação. Cada gru­
po social, com suas territorialidades específicas, define territórios singula­
res e distintos (Hussy, 2002), constituindo diferentes níveis espaciais de
territórios sobrepostos; alguns são mais amplos, outros mais restritos,
mas todos são concomitantes e multidimensionais.
E esses territórios assumem a forma de área, área-rede, rede-rede
ou, ainda, de manchas, como já mencionamos. A correlação território-rede-
lugar é bastante pertinente nessa abordagem: há territórios em rede e re­
des nos territórios, envolvendo tanto a cidade-urbano como o agrário-rural
e processos econômicos, políticos e culturais. Processos que precisam ser
compreendidos demonstrando a circulação, a exploração, a dependência e
a dominação existentes nas relações sociais em cada formação territorial.
Existem níveis espaciais de territórios e territorialidades que se efeti­
vam nas ruas, nas chamadas comunidades rurais, nas propriedades rurais
e urbanas, nas escolas, nas empresas, nas lojas, nos movimentos sociais...
enfim, há uma miríade de relações sociais e territoriais que caracterizam,
histórica e geograficamente, inúmeros territórios e territorialidades e, ao
mesmo tempo, temporalidades, como manifestações e determinações plu­
rais dessas relações no tempo histórico e coexistente.
Há uma unidade espaço-temporal, assim como há uma unidade
temporal, entre os tempos histórico e coexistente, ou seja, separamos esses
tempos por uma questão meramente didática. O movimento histórico é,
simultaneamente, relacional e coexistente, como já argumentaram autores

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Marcos Aurélio Saquet

como Dematteis (1964), Quaini (1973 e 1973a), Raffestin (1993[1980]), Oli­


veira (1982), Saquet (2000 e 2003[2001]), entre outros. O território, dessa
maneira, é multiescalar, multitemporal e multidimensional, pois envol­
ve diferentes níveis temporais e espaciais, imbricados pelas relações, arti­
culações, combinações, enfim, pelas contradições e pelo movimento que
está na base de sua unidade, tanto no agrário-rural como na cidade-urbano
e nas relações sociais (e naturais) que estão presentes entre esses espaços.
Por isso, a necessidade de uma abordagem histórica, relacional e híbrida-
multidimensional para sua compreensão.
Como estamos insistindo desde o início dos anos 1990, há uma he­
terogeneidade presente em cada país, estado, município, cidade, unidade
produtiva ou de serviço, rua, bairro, família, determinada pelas dimensões
da economia, política, cultura, natureza (E-P-C-N), pelas relações de tota­
lidade, isto é, pelo processo histórico e geográfico de sua constituição, ou,
dito de outra maneira, por mudanças e permanências, por temporalidades
e territorialidades que fazem parte do movimento geral de reprodução da
sociedade e da natureza. E é essa heterogeneidade que condiciona, para­
doxalmente, a identidade e, simultaneamente, os tempos, os territórios,
as territorialidades e as temporalidades numa relação de unidade futuro-
pretérito presente na unidade agrário-rural-urbano-cidade (Saquet, 2006).
Existem tempos, territórios e territorialidades e isso precisa ser demons­
trado e explicado juntamente com as identidades.
Recente reportagem publicada no Jornal Zero Hora (8/5/2008, “Plan­
tão”, http://zerohora.clicrbs.com.br), por exemplo, revela aspectos da terri­
torialização, no Estado do Rio Grande do Sul, do MST, através do bloqueio
de algumas rodovias: BR 285, em São Borja; RS 324, em Pontão; BR 158,
em Júlio de Castilhos e em Livramento; RS 040, em Viamão; BR 293, em
Hulha Negra e em Piratini. São trechos transformados em nós que interli­
gam, por sua vez, vários nós entre si, articulados em redes que extrapolam
os recortes políticos e administrativos do Estado, envolvendo e sendo en­
volvidos por relações transescalares nacionais e internacionais. São terri­
torialidades específicas, historicamente constituídas e multidimensionais,
extrapolando propriedades, cidades, municípios.
Num período anterior, entre os anos 1940 e 1970, no Rio Grande do
Sul, em Santa Catarina e no Paraná, os agricultores, de maneira geral, es­
tabeleciam relações com o urbano que se expandia lentamente, através de
contatos com alguns comerciantes e prestadores de serviços das cidades e
das vilas (chamadas comunidades rurais). As relações não eram diversifi­
cadas, complexas e velozes como atualmente, mas existiam e interligavam
distintas pessoas, famílias, propriedades e territórios. No Sudoeste do Pa­
raná, por exemplo, as pequeníssimas cidades exerciam o papel de media­
ção e nó, através da dinamização de algumas atividades, principalmente
mercantis (circulação simples de mercadorias).

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Contribuições teórico-metodológicas para uma abordagem
territorial multidimensional em geografia agrária

Além dos bodegueiros, de acordo com Corrêa (1970), as ligações


mercantis eram feitas por empresas regionais localizadas nas sedes munici­
pais, vilas e povoados; pelos motoristas de caminhões; atacadistas localiza­
dos em Curitiba e Rio de Janeiro (redes extra-locais); organizações varejis­
tas que comercializavam uma gama muito variada de produtos diretamente
ao consumidor, efetivando, também, redes extra-locais; empresas indus­
triais que compravam matérias-primas (fumo, suínos, soja), como a Souza
Cruz, a Tabacos Goldbeck, o Frigorífico Wilson do Brasil e o Frigorífico
Fritz Lorenz, através de filiais instaladas no Sudoeste do Paraná e, por ór­
gãos governamentais que financiavam, compravam e revendiam produtos
regionais. Havia uma rede de relações, contatos e normas que estavam so­
brepostas umas às outras, territorializadas e condicionavam a subordina­
ção e exploração dos agricultores pelos agentes do capital.
Atualmente, os mecanismos e os agentes sociais, bem como as ter­
ritorialidades são mais diversificadas, complexas e velozes, tanto no agrá­
rio-rural como na cidade-urbano. Esses mecanismos significam mudanças
importantes e têm base na complexidade social, nas técnicas e nas tecno­
logias. Os processos territoriais são mais complexos e heterogêneos, mul­
tiplicando as situações que se configuram como territórios. As unidades
da Sadia Concórdia, em Francisco Beltrão/PR e Dois Vizinhos/PR, a título
de ilustração, estão nestas cidades e no espaço rural, através da integra­
ção contratual efetuada e das redes que integram e subordinam produto­
res familiares através do mecanismo de preços diferenciados praticado no
mercado.
Há, aí, um processo de ligação entre o rural e o urbano, de domina­
ção econômica e política realizada, inclusive, por agentes sociais de outros
países, através da comercialização do frango, de insumos, financiamentos
etc. Em 1995, por exemplo, a Sadia de Francisco Beltrão exportou 5.077.178
kg de carne de frango (conforme relatório desta unidade da Sadia, esta ti­
nha clientes em 50 países, com escritórios em cidades como Tóquio, Milão,
Buenos Aires, Dubaí, Miami, Beijin e muitas unidades no Brasil: Porto Ale­
gre, Itajaí, Curitiba, São Paulo (capital), Santo André, Campinas, Ribeirão
Preto, Bauru, Duque de Caxias, Belo Horizonte, Vitória, Brasília, Salvador,
Recife, Fortaleza, Manaus, Campo Grande, Porto Velho, entre outras).
A ciranda mercantil exerce um papel central na produção do terri­
tório e na articulação territorial, em que as redes de circulação e comuni­
cação têm um papel contraditório, como alertara Raffestin (1993/1980) e
como demonstramos em Saquet (2003/2001), libertando e aprisionando,
ligando e desligando diferentes indivíduos e grupos sociais, de acordo com
sua situação social.
Detalhando um pouco nossa demonstração, é importante mencio­
nar, também, um processo semelhante, com contradições e articulações,
subordinação e controle, que ocorre na integração contratual efetivada na

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Marcos Aurélio Saquet

produção fumageira realizada pela empresa Souza Cruz S/A. Esta integra
e regula trabalhadores familiares, proprietários e arrendatários, fornecen­
do insumos como agrotóxicos, fertilizantes, sementes; prestando assistên­
cia técnica; efetivando financiamentos; comercializando o fumo e cigarros
no Brasil e no exterior, ou seja, através de relações de poder multidimen­
sionais. É uma empresa organizada territorialmente em rede e estabelece
uma trama de relações que interligam nós e indivíduos, famílias, lugares,
territórios e territorialidades. Isso também acontece nas cooperativas agrí­
colas de produção empresarialmente desenvolvidas que agem, no “inte­
rior” do processo denominado de modernização da agricultura, na media­
ção entre indivíduos e lugares, entre o rural e o urbano, e na drenagem de
parte considerável do sobretrabalho agrícola.
As cooperativas, muitas também organizadas em rede, através da
comercialização de insumos, da produção agrícola, de mercadorias em ge­
ral (mercados), instrumentos de trabalho, financiamentos etc., fazem a ar­
ticulação entre territórios e territorialidades, extrapolando os limites das
propriedades e político-administrativos dos municípios, estados e países.
Os limites e fronteiras são transpostos. Não há barreiras espaciais no pro­
cesso de reprodução ampliada do capital. Há, sim, integração com sujeição
e exploração de trabalhadores imediatos na ciranda mercantil. Isto é dife­
rente do que acontece nas redes de empresas do Centro-Nordeste italiano:
lá, há muitas redes de empresas, em ramos industriais como o têxtil, ele­
trônico, alimentos, bebidas etc. porém, com intensas diferenças do modelo
de desenvolvimento econômico implantado no Brasil. Na chamada Terza
Italia, há milhares de pequenas e médias empresas (localizadas nas cidades
e no espaço rural) e, assim, de patrões e, em muitos casos, também ocorre
o controle do processo produtivo, do cultivo, passando pela fabricação até
o transporte e a comercialização. De forma similar ao que ocorre na Ale­
manha na produção de cervejas, muitos produtores (de vinho) produzem
as uvas, fabricam e comercializam o vinho. É mais um processo histórico,
relacional e multidimensional, com fortes e específicas características cul­
turais, econômicas, políticas e ambientais.
Há associações de produtores agroecológicos, no Brasil, que tam­
bém estão organizados territorialmente em rede, como a Rede ECOVIDA,
promovendo, desde 1998, a conversão agroecológica e a certificação par­
ticipativa nos três estados do Sul do Brasil. Somente no Sudoeste do Pa­
raná, são 19 associações envolvendo centenas de produtores de alimentos
orgânicos dos municípios de Francisco Beltrão, Verê, Capanema, Pérola
d’Oeste, Dois Vizinhos, Coronel Vivida, Planalto, Honório Serpa, Chopinzi­
nho, Marmeleiro, São Jorge d’Oeste, Flor da Serra do Sul e Clevelândia. Na
organização territorial da Rede ECOVIDA, o Sudoeste do Paraná corres­
ponde a um dos 7 núcleos existentes no Paraná, juntamente com outros 9
núcleos do Rio Grande do Sul e 8 de Santa Catarina: há uma trama territo­

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Contribuições teórico-metodológicas para uma abordagem
territorial multidimensional em geografia agrária

rial de relações, redes e nós, também multidimensional e histórica, desde o


cultivo e manejo até a comercialização e certificação da produção.
Também existem territórios efetivados pelos partidos políticos e sin­
dicatos dos trabalhadores rurais; são organizações políticas em rede e, por
esse raciocínio, também acontecem relações de poder no “interior” de cada
família, geralmente patriarcais, bem como nas associações de moradores
de bairro. Muitas destas também estão organizadas em rede com outras
associações da mesma cidade. Também há, em muitas cidades pequenas,
médias e grandes, açougues e mercados de bairros, bem como, no espaço
rural-agrário, ainda subsistem muitos negociantes/comerciantes que con­
trolam seus territórios mercantis com mecanismos de subordinação e ex­
tração de sobretrabalho.
Os capitalistas do espaço agrário (especuladores, plantadores e cria­
dores de gado), que muitas vezes moram nas cidades, efetivam práticas so­
ciais e territoriais avassaladoras, de controle, expropriação e degradação.
Há um processo violento de territorialização e dominação. A igreja católica,
ao mesmo tempo, envolve e cristaliza seu território por meio de uma or­
ganização em matrizes e paróquias, tanto no espaço rural-agrário como no
urbano-cidade, estabelecendo uma complexa trama de relações de controle,
influência e regulação da vida cotidiana. Enfim, como estamos insistindo,
há uma gama variada e multidimensional de territorialidades e territórios,
coexistentes e sobrepostos; diferentes níveis espaciais de territórios.
As próprias articulações e redes são, elas mesmas, determinações e
produto de uma realidade concreta, (i)materialmente:

Há redes de territórios e territórios em redes, território nas redes e redes no


território, num único movimento; territórios e territorialidades nas redes e
interconexões e estas nos territórios e territorialidades, em movimento e no
movimento, no trabalho, na família, no lazer, na associação, enfim, há vida
em tramas [...] (Saquet, 2007, p.161).

Considerações finais
Optar por essa abordagem e concepção nos remete a pensar, neces­
sariamente, em processos de organização política, desenvolvimento e au­
tonomia, num movimento contínuo de construção de uma sociedade mais
justa, que estamos denominando de desenvolvimento territorial a partir
de reflexões, pesquisas e argumentações feitas por autores como Raffestin
(1993/1980 e 1993), Dematteis (2001), Hussy (2002), Quaini (2004), Saquet
e Sposito (2008) e nossas, Saquet (2006a e 2007). Tanto no espaço agrário
como no urbano e nas suas relações, efetiva-se um processo multidimen­
sional com descontinuidades e continuidades, no tempo e no território,
que denominamos de temporalidades e territorialidades vividas, senti­
das, percebidas, representadas.

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Marcos Aurélio Saquet

Com base nesta concepção, no espaço agrário brasileiro, há hetero­


geneidade e identidades, isto é, nem todos são proprietários ou arrenda­
tários, nem todos são camponeses, nem todos são capitalistas ou empre­
sários rurais. Há desigualdades e diferenças, ritmos, diferentes níveis de
desenvolvimento e, ao mesmo tempo, distintos níveis de inserção no mer­
cado, de mecanização, de comercialização, de organização política etc., ou
seja, movimento do tempo (com temporalidades) no território e, deste, no
tempo (com territorialidades)!
Há tempos e territórios, como argumentamos em Saquet
(2003/2001), no urbano e no rural e em suas múltiplas relações, múltiplas
territorialidades. A abordagem territorial multidimensional, da manei­
ra como colocamos, consubstancia-se numa possibilidade para compre­
ender a miríade de processos, redes, relações, heterogeneidades, contra­
dições e identidades, reconhecendo a (i)materialidade do mundo da vida.
Os territórios acontecem em diferentes níveis espaciais-escalares, nas for­
mas de área, área-rede e rede-rede, níveis que precisam ser apreendidos,
representados e explicados; articulam-se, ligam-se e são sobrepostos; estão
em conexão e unidade; podem suceder-se no tempo ou ser concomitantes,
espaço e temporalmente. Há territorialidades e temporalidades em nossa
vida diária e na formação do território, singulares e universais, com iden­
tidades e diversidades, simultaneamente.
O movimento e a formação dos territórios e territorialidades,
tempos e temporalidades, é resultado e condicionante de determina­
ções territoriais (sociais-naturais), que são (i)materiais-multidimen-
sionais. A territorialidade é multidimensional e significa, por isso, (i)
materialidade e vice-versa, num movimento relacional-processual con­
tínuo que precisa ser compreendido da melhor maneira possível para
que possamos subsidiar e orientar novas relações sociais e territórios
onde as pessoas possam viver com melhores condições de vida, consi­
derando, evidentemente, a recuperação dos espaços degradados e a pre­
servação da natureza, bem como do conjunto formado pelo patrimônio
territorial.
A abordagem territorial, dessa maneira, também se configura numa
possibilidade para avaliar a existência das condições favoráveis em cada
território, rede de territórios e territórios em rede, que possam ser otimi­
zadas para o desenvolvimento com mais justiça social e fortalecimento das
(e/ou criação de novas) atividades democráticas, como demonstramos em
Saquet et al (2010).

Referências:
CORRÊA, R. Lobato. Cidade e região no Sudoeste paranaense. RBG, v. 32,
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Marcos Aurélio Saquet

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QUAINI, Massimo. L’elogio dei luoghi e la voglia di pre-moderno. Rifles­
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Territorialidades e diversidade.indd 225 3/24/11 1:35:17 PM


Contribuições teórico-metodológicas para uma abordagem
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volvimento: diferentes perspectivas no nível internacional e no Bra­
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ritoriais: análises espaço-temporais. São Paulo: Expressão Popular,
2010. p.53-68.
SAQUET, Marcos et al. A agroecologia como estratégia de inclusão social e
desenvolvimento territorial. In: SAQUET, M. e SANTOS, R. (Orgs.).
Geografia agrária, território e desenvolvimento. São Paulo: Expressão
Popular, 2010. p.237-254.
SUZUKI, Julio C. Geografia agrária: gênese e diversidade. In: MARAFON,
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cas em geografia agrária. RJ: EdUERJ, 2007. p.17-39.

226

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Mercado de terras: estrangeirização,
disputas territoriais e ações governamentais
no Brasil

Sérgio Sauer
Doutor em Sociologia e Mestre em Filosofia | Professor da Universidade de
Brasília­(UnB) na Faculdade de Planaltina (FUP) e no Propaga (FAV/UnB) |
Relator­Nacional do Direito Humano a Terra, Território e Alimentação da
Plataforma­DhESCA Brasil

Introdução
É possível afirmar que uma das principais metáforas fundadoras
do pensamento moderno, profundamente influenciada pelo Iluminismo
do século XIX, é a idéia de progresso, a qual é resultado de uma ênfase na
centralidade do tempo e da história. Segundo Hegel, um filósofo da moder­
nidade, o tempo é a “inquietação pura da vida” e o espírito é a história.
O final do século XX e o início do século XXI, no entanto, estão sen­
do marcados por um renascimento do espaço, dando centralidade a mo­
dos de pensar que privilegiam a dimensão espacial, o lugar como um olhar
para o mundo. Generalizando, é possível afirmar que, diferente da moder­
nidade do século XX, uma característica fundamental da cultura contem­
porânea é a centralidade do espaço, especialmente pelo que poderia ser
denominado de “projeto de globalização”.
O advento da globalização – ou mesmo a utilização da noção de glo­
balização para explicar mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais
recentes – retomou a dimensão do espaço e do território na sociedade con­
temporânea. Este “projeto da globalização” (MASSEY, 2008) tem sido basea­
do em noções como rompimento de fronteiras, desterritorialização, advento
da dimensão global, novas relações entre local e global (GIDDENS, 1995).
A globalização deu legitimidade a categorias espaciais. Na verdade,
a noção de lugar adquiriu uma “ressonância totêmica” (MASSEY, 2008)

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Mercado de terras: estrangeirização, disputas territoriais
e ações governamentais no Brasil

na globalização, muito mais pela sua negação, apesar das constantes re­
definições ou re-elaborações como, por exemplo, os processos de dester­
ritorialização sendo acompanhados de análises sobre reterritorialização.
Discursos políticos e elaborações teóricas pregam (ou pregavam) o fim do
espaço, das fronteiras e da própria Geografia, como uma ciência ou área
do conhecimento.
É necessário reconhecer que esse “projeto de globalização” está bas­
tante desgastado, especialmente a partir da segunda metade da primeira
década do século XXI, especialmente pós 11 de setembro e da crise finan­
ceira mundial. Isso significa que o uso deste referencial de interpretação
das mudanças sociais e culturais também arrefeceu recentemente. Mesmo
assim, Massey afirma que o discurso da “inevitabilidade da globalização”
é uma proposição que “transforma a geografia em história, o espaço em
tempo” (2008, p. 24).
Apesar do discurso hegemônico de desterritorialização, o campo bra­
sileiro foi, historicamente, palco de disputas territoriais, não só devido às re­
sistências à expropriação e ações e demandas populares pelo acesso à terra.
As ações e bandeiras das organizações patronais sempre explicitaram essa
disputa, dando especial valor ao território. Mais recentemente, esse é o em­
bate político, por exemplo, nas propostas parlamentares de mudança do Có­
digo Florestal – sendo que o grande objetivo é liberar terra para a expansão
agropecuária – ou a oposição ferrenha à demarcação de terras indígenas e
ao reconhecimento de territórios quilombolas (QUEIROZ, 2010).
Associado aos acontecimentos globais, especialmente à crise cam­
bial de 2008 e às disputas territoriais, outro fenômeno está colocando em
xeque o discurso da inexorabilidade da globalização e seus processos de
desterritorialização, ou seja, o crescente investimento na compra de terras.
Obviamente, as transações de compra e venda de terras não são exatamen­
te uma novidade, nem a tal “estrangeirização”, pois basta lembrarmos a in­
vasão de brasileiros às terras do Paraguai e do Uruguai, ou mesmo da Bo­
lívia. No entanto, há uma “corrida mundial” recente por terras, acelerada
pós-crise de 2008, trazendo à tona preocupações como soberania nacional
(domínio sobre o território), inclusive sobre limites de faixa de fronteira,
entre outras preocupações.
De acordo com notícias veiculadas pela grande imprensa, o interes­
se de pessoas e empresas estrangeiras por terras brasileiras vêm aumenta­
do velozmente desde meados dos anos 2000 (ARRUDA, 2006). De acordo
com várias reportagens, as transações de compra estão associadas aos pro­
jetos de produção de biocombustível, atraindo até fundos de investimen­
tos, mas essas representam apenas uma parte dos negócios de terras no
Brasil (ARRUDA, 2006; DUARTE, 2008; ZANATTA, 2010).
Este embate ou disputa pelo território é o pano de fundo das refle­
xões que seguem. Apesar da preocupação com a crescente demanda ou

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Sérgio Sauer

“corrida por terra” e o conseqüente processo de “estrangeirização” das ter­


ras no Brasil – como vem sendo chamado, apesar de não ser um fenômeno
novo –, um dos objetivos é discutir o significado da terra, além da noção de
meio de produção (item 1). Nesse sentido, apoiando em Bourdieu (1998)
e sua noção de região – a qual implica o “poder de di-visão” – e das rela­
ções que Augé (1994) estabelece entre lugar e identidade, discutir alguns
conceitos como terra, território, lugar e espaço, buscando inserir estas re­
flexões no debate contemporâneo sobre globalização e desenvolvimento
territorial.
O objetivo é também sistematizar informações sobre a demanda
crescente por terras no mundo e no Brasil (item 2). Como há poucos estu­
dos e informações sistematizadas, lanço mão de estudo do Banco Mundial
(2010) e alguns levantamento em nível de Brasil (ALVIM, 2009; PRETTO,
2009), encomendados pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA),
além de informações da grande imprensa. A partir dos dados disponíveis,
a preocupação é com razões e causas dessa “corrida por terra” e suas con­
seqüências – desde a defesa da aceleração do crescimento resultante do
aporte de capital versus a “estrangeirização” das terras –, inclusive como
explicitação de uma contradição da lógica da “improdutividade na imobi­
lização do capital”.
A partir desse levantamento, a terceira parte (item 3) é dedicada a
analisar as ações governamentais sobre a tal “estrangeirização”. Várias no­
tícias foram veiculadas, desde 2007, de que a aceleração dos investimentos
em terras acendeu as luzes de alerta de setores do Executivo Federal (SCO­
LESE, 2008; ODILLA, 2010). O resultado desta preocupação foi a edição
de um novo parecer da Advocacia Geral da União, em 2010, resgatando
termos de uma lei do início dos anos 1970. Além das preocupações com
a aquisição de terras, esta parte procura avaliar também outras ações go­
vernamentais – ou a falta de tais ações – em relação a demandas históricas
pela demarcação de terras indígenas e reconhecimento de territórios qui­
lombolas, como parte de um direito humano fundamental de “apropriação
territorial”, reprodução social e qualidade de vida no campo.

1. Terra, território e lugar: tradição ou modernidade?


Conforme já mencionado, Massey afirma que a noção de lugar ad­
quiriu uma “ressonância totêmica” na globalização (2008, p. 24), ou seja,
uma noção simbólica freqüentemente mobilizada como chave teórica para
explicações políticas. Neste contexto global, as noções tendem a fazer crí­
ticas aos avanços totalizantes da globalização, estabelecendo um contra­
ponto com o lugar como a “fonte geográfica de significado” (2008, p. 24)
ou como um “refugio” espacial. Ainda segundo a autora, esta concepção
de lugar se constitui em um “local da negação, da tentativa da remoção da

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Mercado de terras: estrangeirização, disputas territoriais
e ações governamentais no Brasil

invasão/diferença. É um refúgio, politicamente conservador...” (MASSEY,


2008, p. 25).
Para além dos embates teóricos e disputas conceituais com defenso­
res da noção de globalização, essa concepção de lugar reforça uma inter­
pretação distorcida das lutas por território, por exemplo, das comunidades
quilombolas ou dos povos indígenas. Na contraposição entre lugar e glo­
balização, as lutas por território são, em última instância, ações conserva­
doras, pois materializam a resistência de “comunidades tradicionais” que
não querem mudanças, que resistem ao progresso e às mudanças provoca­
das pela modernidade e globalização (SAUER, 2010).
Nas lutas pelo direito ao território, essa interpretação é reforçada
pelo uso de conceitos e noções como ancestralidade, anterioridade, prece­
dência, mas especialmente pelo constante apelo à tradição. Daqui derivam
noções como comunidades tradicionais ou mesmo terras tradicionalmente
ocupadas (BRASIL, 2007), as quais dão autoridade e/ou legitimidade às re­
sistências e demandas populares por extensões de terra, sem a necessidade
de usar a noção constitucional de propriedades improdutivas.
É importante observar aqui que, a princípio, a definição legal não
sustenta essa ênfase excessiva na tradição. A definição identitária é posta
na diferenciação, pois o Decreto nº 6.040 define povos e comunidades tra­
dicionais (art. 3º, inciso I) como “grupos culturalmente diferenciados e que
se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização
social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição
para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, uti­
lizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela
tradição” (BRASIL, 2007 – ênfases adicionadas).
Seguindo a trilha de Massey (2008), é fundamental rejeitar a distin­
ção – ou mesmo contraposição – teórica entre a noção de espaço (como
uma noção do universal, abstrato, divisão regional) e de lugar, como o lo­
cal concreto, fechado, coerente, integrado, homogêneo. Esta distinção está
equivocada, pois os lugares não são homogêneos e sim espaços que com­
portam a diversidade, portanto, é necessário recusar essa distinção entre
lugar (como espaço vivido) e espaço, como exterior ou abstrato (MASSEY,
2008, p. 25).
Segundo Marc Augé,1 um lugar deve ser definido como “identitário,
relacional e histórico” (1994, p. 73). Essa definição, no entanto, está calca­
da na diferenciação, e não na exclusão, pois é fundamental a dimensão re­
lacional, inclusive na definição de identidade. Em outras palavras, a terra

1
A preocupação de Augé (1994) é entender a sociedade contemporânea ou supermodernida­
de, conforme sua definição, especialmente a produção de “não-lugares”. Segundo este autor,
espaços com aeroportos, supermercados e shopping são exemplos típicos, pois não possuem
identidade ou história, portanto, são “não-lugares”.

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Sérgio Sauer

e a luta pela terra materializam “a busca por um lugar, geograficamente lo­


calizado e delimitado, recolocando a dimensão da espacialidade” (SAUER,
2010, p. 59) nas experiências humanas cotidianas, sem que o estabelecimen­
to de fronteiras e limites represente a constituição de espaços hermetica­
mente fechados e avessos a mudanças (MASSEY, 2008).
Bourdieu (1998), em suas reflexões sobre a noção de região (em um
momento histórico em que o conceito de território não tinha peso socio­
lógico), afirma que o estabelecimento de fronteiras é uma definição social
e política legítima, resultante de lutas pelo “poder de ver e fazer crer”. Se­
gundo ele, fronteiras são “produto de uma divisão a que se atribuirá maior
ou menor fundamento na ‘realidade’” (BOURDIEU, 1998, p. 114), sendo
produto de diferenças culturais. Essas fronteiras dão características pró­
prias a uma região ou a um lugar, estabelecendo divisões do mundo social
e gerando identidades (BOURDIEU, 1996), sem que isto signifique, auto­
maticamente, isolamento ou aversão ao outro (SAUER, 2010).
Adoto aqui, portanto, as preposições ou pressupostos de Massey
(2008, p. 29) sobre a relação entre espaço e lugar: a) espaço como produto
de inter-relações (constituído por interações); b) espaço como a esfera da
possibilidade da existência da multiplicidade (pluralidade contemporânea
em que distintas trajetórias coexistem; coexistência da heterogeneidade) e,
c) espaço como algo sempre em construção (produto de relações que estão,
necessariamente, embutidas em práticas materiais, portanto, em constru­
ção). Se o espaço é fruto de inter-relações, deve estar calcado na pluralida­
de, ou seja, “sem espaço, não há multiplicidade; sem multiplicidade, não
há espaço” (MASSEY, 2008, p. 29).
A preocupação central é a distinção – em parte derivada desta distin­
ção entre lugar e espaço – entre as noções de terra e território.2 Explícita ou
implicitamente, a primeira está sempre associada à categoria de meio (e
lugar) de produção e a segunda entendida como lugar de vida. Entre outras
razões, a redução da terra a um meio de produção é fruto da introdução do
conceito de “terra produtiva” na Constituição de 1998, como um mecanis­
mo de bloquear avanços na reforma agrária (MARTINS, 1993).
Conforme já mencionado, a autodefinição ou o autorreconhecimen­
to (no sentido de assumir uma identidade social) é critério fundamental
para reconhecer direitos territoriais. Isso fica claro na Convenção 169, da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), em seu artigo 1º: “a cons­
ciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como
critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as dis­

2
A preocupação aqui é menos com o debate se é útil ou certo fazer distinção entre espaço e
território, como defende Raffestin (2010), retomando a importância da paisagem na geogra­
fia política e da dimensão imaterial do território, e mais com os processos sociais que esta
distinção provoca no Brasil.

231

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Mercado de terras: estrangeirização, disputas territoriais
e ações governamentais no Brasil

posições da presente Convenção”, portanto, o critério da autodefinição


(também presente na Legislação brasileira) deve ser acolhido como uma
conquista de cidadania (DALLARI, 2010).
Ratificada pelo Brasil,3 essa Convenção consubstancia o artigo 231
da Constituição (que reconhece os direitos indígenas, inclusive os “direi­
tos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”) e o artigo
68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que reconhece di­
reito de propriedade definitiva das terras ocupadas pelos remanescentes
das comunidades dos quilombos. Na mesma linha, o Decreto nº 6.040, de
2007, define territórios tradicionais como sendo “os espaços necessários a
reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradi­
cionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária” (inciso
II, do art. 3º).
Mesmo que a Convenção 169 da OIT utilize o termo “terras” (nos
art. 15 e 16, por exemplo) como sinônimo de “território” (como o espaço
que “abrange a totalidade do habitat das regiões que os povos interessa­
dos ocupam ou utilizam de alguma outra forma”, art. 13, item 2), há uma
diferença na compreensão legal e conceitual, por exemplo, entre as luta e
demandas sociais por terra (ou lutas por reforma agrária) e a reivindica­
ção dos direitos territoriais. Como já mencionado, parte significativa desta
distinção consta do próprio texto constitucional ao estabelecer que a pro­
priedade produtiva é insuscetível de desapropriação para fins de reforma
agrária (inciso II, do art. 185).
Essa trava constitucional, ao restringir a noção de função social à
sua dimensão econômica (o único critério utilizado para a desapropria­
ção para fins de reforma agrária é a avaliação do uso racional das terras),
distanciou as noções de terra (meio e lugar de produção) e de territó­
rio (lugar da identidade, do auto-reconhecimento, da ocupação histórica,
etc.). Essa distinção deu diferentes significados às lutas por terra (fre­
qüentemente, vistas apenas como ocupações de terras improdutivas) e
por território (resistência de populações tradicionais à invasão de suas
terras), inclusive as constantes críticas e oposições aos programas de re­
forma agrária são sempre baseadas na suposta baixa produtividade e pro­
dução dos assentamentos.
As demandas populares e mobilizações sociais estão transforman­
do o campo brasileiro, resultando em uma “práxis social emancipatória”
(SOJA, 1993). Mobilizações, lutas e conquistas de agricultores familiares
camponeses, quilombolas, indígenas e populações rurais são parte de
um “processo social de ‘reinvenção’ do campo no Brasil sendo que a luta

3
A Convenção 169 da OIT foi ratificada pelo Senado em 2002 (Decreto Legislativo nº 143, de
20 de junho de 2002) e pela Presidência da República, em 2004 (Decreto nº 5.051, de 19 de
abril de 2004).

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Sérgio Sauer

pela terra materializa esta recriação, agregando novos elementos e pers­


pectivas à vida no meio rural, criando uma nova ruralidade” (SAUER,
2010, p. 37).
A luta pela terra, no entanto, é entendida restrita à luta e reivindica­
ções de acesso a um meio de produção e, por extensão, ao trabalho (MAR­
TINS, 1993). Aliás, este vínculo com o direito ao trabalho é o único na rela­
ção com o direito à terra por parte das populações do campo, não definidas
como “populações tradicionais”. Em outros termos, a luta pela terra não é
uma luta por direitos como de moradia (um lugar para viver), de identida­
de (como camponês, produtor rural, agricultor familiar), mas apenas por
produção e, no máximo, pelo direito ao trabalho (SAUER, 2010). O direito
dos agricultores familiares camponeses não se justifica pelo direito de ser
e de reprodução social, mas apenas pelo fator produção.
Por sua vez, as populações tradicionais têm direito ao território
porque é visto como local de vida e preservação da identidade, sendo que,
a princípio, o critério não passa pela produção ou finalidade produtiva
da terra, como no caso dos agricultores familiares camponeses. O espí­
rito constitucional é de, nos termos de Dallari (2010), corrigir “injusti­
ças históricas”, portanto dar meios legais e jurídicos para que “segmentos
populacionais tradicionalmente marginalizados ou discriminados obte­
nham, pacificamente, o reconhecimento de sua dignidade essencial de se­
res humanos e a garantia da possibilidade de acesso aos direitos funda­
mentais”.
Apesar dos freqüentes vínculos entre terra e identidade (SARMEN­
TO, 2008), a ênfase sobre o direito ao território, no entanto, recai na repro­
dução dos meios tradicionais de vida, na tradição. Essa então está sempre
contraposição à modernidade, ao progresso e ao desenvolvimento (rural).
Em outros termos, a luta por territórios está restrita às “comunidades tra­
dicionais” e é uma luta pelo atraso, especialmente quando disputam áreas
em regiões de expansão do agronegócio (ARRUDA, 2010).
Essa distinção conceitual e jurídico-legal não estabelece diferentes
sujeitos nas disputas territoriais, ou melhor, as ações dos setores patro­
nais rurais abarcam as “diferentes lutas” por terra e território no Brasil.
Conforme mencionado na introdução (QUEIROZ, 2010), a agenda deste
setor – bem presente nas manifestações da Confederação da Agricultura e
Pecuá­ria do Brasil, a CNA – não se restringem à resistência absoluta aos
programas de reforma agrária, mas incluem a negação do direito aos terri­
tórios quilombolas e indígenas (as reações à demarcação das terras Raposa
Serra do Sol são notórias neste sentido).
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) nº 3.239, movida
pelo então Partido da Frente Liberal (PFL) hoje Democratas (DEM), con­
testando o Decreto nº 4.887, de 2003, que estabelece as regras para a de­
marcação de território quilombola, é um bom exemplo dessa disputa por

233

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Mercado de terras: estrangeirização, disputas territoriais
e ações governamentais no Brasil

território. Essa peça jurídica, além de contestar a auto-definição (como se


esta estivesse contrária a noção constitucional de “remanescência”) e argu­
mentar que o referido decreto cria uma “nova modalidade de desapropria­
ção”, defende a inconstitucionalidade do Decreto, contestando a caracte­
rização das terras quilombolas como aquelas utilizadas para “reprodução
física, social, econômica e cultural do grupo étnico” (art. 2º, § 2º do Decreto
4.887/03) como muito ampla (PELUSO, s/d).
Esses embates e disputas territoriais são resultantes de vários fato­
res, inclusive do histórico patrimonialismo brasileiro, ou seja, da estreita
relação entre propriedade da terra e poder político (MARTINS, 1993). Essa
relação só é possível graças, entre outros fatores, a uma “histórica negli­
gência” na tributação da terra, permitindo a especulação imobiliária e a
geração da renda fundiária (ganhos e acumulação sem a necessária produ­
ção e exploração do trabalho). O crescimento recente do interesse e busca
efetiva por terras tem outras variáveis como, por exemplo, a demanda cres­
cente por alimentos e matérias primas, como veremos a seguir.

2. Demanda por terras no mundo e no Brasil


Segundo estudo do Banco Mundial (2010), a demanda mundial por
terras tem sido enorme, especialmente a partir de 2008, tornando a “dis­
puta territorial”, histórica no Brasil e na América Latina, um fenômeno
global. Segundo este estudo do BIRD, comparativamente, a transferência
de terras agricultáveis (ou terras cultivadas) era da ordem de quatro (4)
milhões de hectares por ano antes de 2008. Só em 2009, mais precisamen­
te entre outubro de 2008 e agosto de 2009, foram comercializadas mais de
45 milhões de hectares, sendo que 75% destes foram na África (BANCO,
2010, p. vi).
Quando da divulgação deste estudo do Banco Mundial, em setem­
bro de 2010, a imprensa nacional deu ampla repercussão aos principais
resultados, demonstrando que o assunto gerou interesse e atenção da opi­
nião pública. Segundo uma das reportagens veiculadas à época,

Dos 46,6 milhões de hectares vendidos, 3,6 milhões de hectares estavam no


Brasil e Argentina. Há ainda o fenômeno de empresas brasileiras e argentinas
adquirindo terras no Paraguai, Bolívia e Uruguai. Mas a projeção é de que a
América Latina (em especial o Brasil) seja alvo dessa estratégia de investido­
res nos próximos anos. Dos 464 projetos de investimentos identificados no úl­
timo ano, 21% deles ocorreram já no Brasil e Argentina (CHADE, 2010).

Uma constatação fundamental do estudo do Banco Mundial é que


o crescimento da produção agrícola e, conseqüentemente, das demandas
e transações de compra de terras, se concentra na expansão de apenas oito
(08) commodities. Estas commodities são milho, dendê (óleo), arroz, canola,

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Sérgio Sauer

soja, girassol, cana de açúcar e floresta plantada (BANCO, 2010, p. 8).4 Me­
lhores preços dos agrocombustíveis e os subsídios governamentais levaram
a expansão desses cultivos. Em 2008, a estimativa era de 36 milhões de hec­
tares a área total cultivada com matérias-prima para os agrocombustíveis,5
área duas vezes maior que em 2004 (BANCO, 2010, p. 8).6
Segundo esse levantamento do BIRD (2010), em torno de 23% da
expansão da produção agrícola mundial (quantidade produzida) se deu
em função da expansão das fronteiras agrícolas, apesar de que o aumento
mais expressivo (cerca de 70% do aumento) da produção é resultado da
incorporação de tecnologias. O estudo apontou que as razões ou fatores
da expansão da produção (e também das demandas e transações de terras)
foram: a) demanda por alimentos, ração, celulose e outras matérias primas
industriais, em conseqüência do aumento populacional e da renda; b) de­
manda por matérias-primas para os biocombustíveis (reflexo das políticas
e demandas dos principais países consumidores) e, c) deslocamento da
produção de commodities para regiões de terra abundante, onde a terra é
mais barata e as possibilidades de crescimento da produtividade são maio­
res (BANCO, 2010, p. 7).
Um dos dados mais significativos neste estudo do Banco Mundial é a
caracterização dos atuais demandantes de terras no mundo. Segundo o mes­
mo, são três os tipos os demandantes por terra no momento: a) governos pre­
ocupados com a demanda interna e sua incapacidade de produzir alimentos
suficientes para a população, especialmente a partir da crise alimentar de
2008; b) empresas financeiras que, na conjuntura atual, acham vantagens
comparativas na aquisição de terras7 e, c) empresas do setor (agroindustrial,
agronegócio) que, devido ao alto nível de concentração do comércio e pro­
cessamento, procuram expandir seus negócios (BANCO, 2010, p. 3).
Após a crise dos preços dos alimentos, em 2008, e das previsões de
demanda futura, não é surpreendente o crescente interesse de governos –

4
De acordo com o estudo do Banco Mundial (BIRD), o Brasil contribui com a produção de três
commodities: milho, soja e cana de açúcar (2010, p. 8), sendo que usa metade de seu cultivo
anual de cana para a produção de álcool e parte significativa do óleo de soja para o biodiesel
(mais de 80% da produção nacional de biodiesel tem o óleo como matéria prima básica).
5
Segundo projeções do Ministério da Agricultura haverá um acréscimo de sete (7) milhões
de hectares no cultivo da cana até a safra de 2018/2019, dobrando a extensão de terras culti­
vadas em relação à área plantada com cana (7,8 milhões de hectares) em 2008/2009 (MAPA,
2009, p. 13).
6
Destes 36 milhões de hectares, 8,3 milhões de hectares estão na União Européia (quase só
com cultivo de canola), 7,5 milhões nos Estados Unidos (milho) e 6,4 milhões de hectares na
América Latina (basicamente com cultivos de cana) (BANCO, 2010, p. 8), portanto, só con­
tabilizou a área cultivada no Brasil.
7
O grupo britânico Clean Energy Brazil desembolsou US$214 milhões no setor sucroalcoo­
leiro do Brasil em cerca de um ano (2008), com a aquisição de participações acionárias ou o
controle total de três usinas de etanol, açúcar e energia (DUARTE, 2008).

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Mercado de terras: estrangeirização, disputas territoriais
e ações governamentais no Brasil

puxados pela China e por vários países árabes – pela aquisição de terras
para a produção de alimentos para satisfazer as demandas internas. Cha­
ma a atenção, no entanto, os investimentos do setor financeiro, um setor
historicamente avesso à imobilização de capital, especialmente na compra
de terra, um mercado caracterizado pela baixa liquidez.
Ainda segundo o BIRD, o crescimento populacional, o aumento da
renda e a urbanização vão continuar pressionando a demanda por alimen­
tos, especialmente óleo vegetal e carnes, provocando o crescimento da de­
manda por ração e produtos industriais. O resultado é que a corrida por
terra não vai diminuir nos próximos anos (BANCO, 2010, p. 9), criando a
necessidade de estabelecer “princípios para agro-investimentos responsá­
veis”, incluindo “o respeito aos direitos à terra e aos recursos [naturais]”
(BANCO, 2010, p. X).
Na mesma perspectiva do levantamento do Banco Mundial, estudos
encomendados pelo Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Ru­
ral (NEAD) mostram que houve um crescimento significativo de investi­
mentos estrangeiros no Brasil a partir de 2002. Segundo estes estudos do
NEAD, ligado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), os inves­
timentos estrangeiros diretos (IEDs) totais cresceram 107% entre 2002 e
2008, “passando de 4,33 bilhões de dólares em 2002 a 8,98 bilhões de dóla­
res em 2008” (ALVIM, 2009, p. 52).8
Seguindo a tendência de aumento dos investimentos estrangeiros
no Brasil nos últimos anos, houve crescimento da participação externa nas
atividades agropecuárias9 como, por exemplo, no cultivo da cana-de-açú­
car e da soja e na produção de álcool e biocombustíveis (ALVIM, 2009, p.
53). Uma parte significativa destes investimentos foi utilizada para compra
e fusões de empresas já existentes (ALVIM, 2009, p. 52), sendo que “o to­
tal de IED realizado no agronegócio foi de 46,95 bilhões de dólares”, entre
2002 e 2008 (ALVIM, 2009, p. 47).
Segundo Alvim,

...a produção industrial de biocombustíveis foi a atividade que apresentou


uma tendência clara de crescimento na captação de investimentos estran­
geiros no Brasil, sendo esta concentrada preponderantemente nos estados
do sudeste. Os IEDs em álcool e biocombustíveis passaram de 4 milhões de
dólares em 2002 para 1,64 bilhões de dólares em 2008 (2009, p. 55).

8
Segundo O Globo, o IPEA mostrou que os investimentos estrangeiros diretos (IEDs) no setor
primário brasileiro passaram de US$2,4 bi, em 2000, para US$13,1 bi, em 2007, sendo que
a alta de 445% foi puxada pela mineração que respondeu por 71% do total recebido naquele
ano (DUARTE, 2008).
9
Até 2000, o setor primário participava com apenas 2,3% do total dos recursos estrangeiros in­
vestidos no Brasil, sendo que, em 2007, chegou a quase 14%, enquanto a expansão dos inves­
timentos estrangeiros no setor industrial foi de 33,4% no mesmo período (DUARTE, 2008).

236

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Sérgio Sauer

Não há levantamentos mais sistemáticos, mas é possível concluir


que esses investimentos estrangeiros no setor primário brasileiro resul­
tam também na aquisição de muitas terras. Retomando o estudo do Banco
Mundial (2010), a conclusão é de 3,6 milhões de hectares comercializados
no período estavam no Brasil e Argentina (CHADE, 2010). No entanto, há
outras informações, também publicadas pela grande imprensa.
De acordo com levantamento, de 2008, no Sistema Nacional de
Cadastro Rural (SNCR) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA),10 existiam 34.632 registros de imóveis em mãos de es­
trangeiros em 2008. Esses registros abarcavam uma área total de 4.037.667
hectares (PRETTO, 2009, p. 10), o que são números expressivos conside­
rando que não abarcou o “período da corrida por terras” após crise de
2008.11
Apesar da limitação destes dados, ou da falta de informações no
SNCR após 1994 (PRETTO, 2009), o perfil destes registros espelha a clás­
sica concentração fundiária brasileira. Segundo o levantamento, apenas
5.627 registros (16,2% do total) podem ser classificados como médias (4 a
15 módulos) e grandes propriedades (acima de 15 módulos). Estas, por sua
vez, abarcam 3.357.741 hectares (PRETTO, 2009, p. 11), ou seja, mais de
83% da área total, cadastrada no SNCR como pertencente a estrangeiros.
Utilizando diferentes fontes de informações, inclusive pesquisas no
SNCR, mas também empresas de consultoria no ramo, entre outras fontes,
os jornais de circulação nacional vêm publicando dados sobre este pro­
cesso de aquisição de terras por estrangeiros no Brasil. Já em meados dos
anos 2000, os principais jornais brasileiros publicavam reportagens sobre
o processo de “estrangeirização” das terras no Brasil (SCOLESE, 2008;
CHADE, 2010).
Em 2010, a partir de análises do Cadastro do INCRA, a Folha divul­
gou dados sobre o avanço nas terras brasileiras pelo capital estrangeiro.
Segundo essa reportagem, “empresas e pessoas de outros países compram
o equivalente a 22 campos de futebol em terras no Brasil a cada uma hora.
Em dois anos e meio, os estrangeiros adquiriram 1.152 imóveis, num total
de 515,1 mil hectares” (ODILLA, 2010).

10
Dois aspectos importantes nesse levantamento feito por Pretto (2009): a) desde 1994 não era
mais obrigado declarar tais aquisições, portanto, o Cadastro do INCRA estava desatualizado
e, b) este levantamento das informações do Cadastro foi feito até junho de 2008 (de 1909 a
2008), portanto, não abarca a corrida recente por terras após a crise alimentar mundial de
2008, conforme apontado pelo estudo do Banco Mundial (2010).
11
Há muitos dados sendo divulgados, mas nada sistematizado. Segundo notícia, “estatísticas
cadastrais inéditas mantidas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (In­
cra) mostram que o número de imóveis sob domínio de empresas nacionais passou de 67 mil,
em 1998, para 131 mil em 2008. O total da área registrada saltou de 80 milhões para 177,2
milhões de hectares nesses dez anos – um aumento de 121%” (ZANATTA, 2010, p. A2).

237

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Mercado de terras: estrangeirização, disputas territoriais
e ações governamentais no Brasil

Este interesse global pelas terras (relativamente abundantes) da


América Latina (especial destaque ao Brasil, Argentina e Uruguai) e da
África subsaariana tem provocado um aumento dos preços. Constatado
pelo estudo do Banco Mundial (2010), esse aumento de preço das terras
brasileiras também vem sendo regularmente anunciado pela grande im­
prensa. No entanto, não há estudos sistemáticos capazes de oferecer um
panorama nacional – ou mesmo regional – das transações e preços, sendo
que as notícias são ilustradas com levantamentos de casos exemplares e
dados locais, municipais ou regionais.
Segundo O Valor, os projetos sucroalcooleiros implantados entre
2008 e 2010 provocaram a valorização das terras nas regiões de expansão
dos cultivos de cana-de-açúcar, especialmente nas novas fronteiras, loca­
lizadas principalmente nos Estados de Tocantins, Goiás, Mato Grosso do
Sul e Minas Gerais (BATISTA, 2010, p. B12). Segundo essa reportagem, es­
tudo feito pela NAI Commercial Properties, multinacional americana espe­
cializada no mercado imobiliário, mostra que os preços das terras tiveram
forte alta desde 2009, com índices de até 33% de aumento no município de
Pedro Afonso (TO). Ainda segundo o jornal,

Algumas regiões de Goiás também registraram uma das maiores valoriza­


ções puxadas pela cana. Estudo de mercado feito pela NAI na região do mu­
nicípio de Edeia identificou que o hectare, que valia R$ 8,5 mil em 2009,
está sendo negociado agora no mercado a R$ 10 mil, aumento de 17%. É no
município de Edea que está o projeto da usina Tropical, sociedade entre a
petroleira British Petroleum, com o grupo Maeda – agora vendido ao fun­
do Arion Capital – e da Santelisa Vale, agora controlada pela francesa Louis
Dreyfus (BATISTA, 2010, p. B12).

Esse aumento dos preços impacta sobre outras políticas (além da


política agrícola de incentivos ao setor), mas especialmente sobre as políti­
cas agrárias. Além de acirrar as disputas territoriais, as políticas fundiárias
são prejudicadas porque, entre outros fatores, fica mais caro desapropriar
e indenizar terras para fins de reforma agrária (implantar assentamentos)
(ADAMS, 2010, p. 2).
Por outro lado, é fundamental ter presente que parte significati­
va dos investimentos estrangeiros são financiados com recursos públicos
(SAUER, 2010a), especialmente recursos do Banco Nacional de Desenvol­
vimento Econômico e Social (BNDES) e do Fundo Constitucional do Cen­
tro Oeste (FCO). Estes empréstimos e incentivos fiscais estão sendo aloca­
dos principalmente em região de expansão do cultivo de cana e produção
de etanol (Centro Oeste) e soja (Centro Oeste, Amazônia, Bahia e Tocan­
tins) (PIETRAFESA, SAUER e SANTOS, 2010).
De acordo com a revista O Focus (2010), o BNDES é o maior forne­
cedor de crédito para o setor sucroalcooleiro para a produção de etanol.

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Sérgio Sauer

Segundo esta revista, nos anos de 2007 e 2008, o BNDES “financiou 59


projetos de etanol e boa parte dos financiamentos destinaram-se à com­
pra de equipamentos de co-geração de energia elétrica a partir do bagaço,
muitos deles em regiões de expansão da cana como Mato Grosso do Sul e
Goiás” (O FOCUS, 2010).
Essa “corrida pela terra” tem assustado até representantes do agro­
negócio, como foi o caso de Glauber Silveira, presidente da Associação dos
Produtores de Soja (Apeosoja – Brasil). Ao tomar posse como presidente da
Apeosoja, em maio passado, Silveira estimou que um (01) milhão de hecta­
res de terras brasileiras (cultivadas com soja) estão em mãos estrangeiras.
Segundo ele, “mesmo que seja vantajoso financeiramente ao produtor que
arrenda a terra, a investida estrangeira é preocupante, pois ela elimina o
competidor brasileiro do negócio e permite a ocupação territorial do Bra­
sil” (TAVARES, 2010).
Nessa mesma perspectiva, o editorial do jornal O Estado de São
Paulo, sob o título “China compra terras no Brasil” afirmou:

O ex-ministro Antônio Delfim Netto tem razão quando recomenda cuida­


do com as vendas de terras a empresas da China, controladas pelo Estado
ou com participação estatal. Investimentos estrangeiros são de modo geral
bem-vindos e podem trazer contribuições importantes ao crescimento do
País. Grupos estrangeiros podem fazer bons negócios e ao mesmo tempo
fortalecer a economia brasileira com recursos adicionais e, ocasionalmen­
te, com aporte de tecnologia. Mas os ‘negócios’ mudam de sentido quando o
investimento é subordinado a razões estratégicas de um Estado estrangeiro.
No caso de recursos naturais, e de terras para a agropecuária, avaliar corre­
tamente essa estratégia é uma questão de segurança (2010, p. A3).

Apesar de certo consenso de que é necessário cautela diante da vora­


cidade dos investimentos estrangeiros, não há qualquer acordo sobre me­
didas concretas a serem adotadas. Mesmo expressando sobressaltos diante
de tal voracidade, as posições vão de uma constante defesa da livre circula­
ção de capital (mesmo para a compra de terras), passando por proposições
de criação de instituições e regras visando restringir a transferência para o
exterior de ganhos (NASSAR, 2010), até demandas de maior controle pelo
Estado (ALFONSIN, 2010).

3. Estrangeirização de terras e ações governamentais


A partir da constatação de que “a demanda por terra tem sido enor­
me” (BANCO, 2010, p. vi) e de que “é improvável que a ‘corrida por ter­
ra’ desacelere” (BANCO, 2010, p. 9), o Banco Mundial fez uma série de
recomendações. Como o BIRD entende essa demanda como uma “opor­
tunidade de negócios”, a sua preocupação central é dar sustentabilidade

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Mercado de terras: estrangeirização, disputas territoriais
e ações governamentais no Brasil

a essa oportunidade, promovendo investimentos de forma “responsável”


(BANCO­, 2010, p. X).
Analisando o documento do Banco Mundial, Nassar (2010) corro­
bora as conclusões do mesmo, salientando essa demanda crescente como
uma importante “janela de oportunidades”. Usando os exemplos dos se­
tores de comunicação e financeiro, Nassar também defende mecanismos
de regulação para garantir que o investidor estrangeiro preste serviços no
País. Segundo ele,

Da mesma forma, podem ser criadas medidas que obriguem o investidor em


terra a gerar renda e emprego, não concentrar a posse da terra, cumprir, aci­
ma da média do setor, suas obrigações ambientais e promover transferência
de tecnologia para produtores menos preparados. Com incentivos corretos,
o investidor estrangeiro pode se transformar em exemplo para o setor agrí­
cola (NASSAR, 2010).

Em uma perspectiva distinta, o Executivo Federal, a partir da preo­


cupação com uma possível perda de soberania territorial e de posições do
INCRA, solicitou que a Advocacia Geral da União (AGU) fizesse uma revi­
são do Parecer GQ nº 181. Este Parecer, publicado em 1998, desmobilizou
“qualquer forma de controle efetivo sobre a aquisição de terras por parte
de empresas estrangeiras no Brasil” (PRETTO, 2009, p. 7).
Esta perda de controle é explicitamente reconhecida no novo Pare­
cer. De acordo com os termos do referido documento, desde os pareceres
anteriores, de 1994 e 1998,

... o Estado brasileiro perdera as condições objetivas de proceder a controle


efetivo sobre a aquisição e o arrendamento de terras realizadas por empre­
sas brasileiras cujo controle acionário e controle de gestão estivessem nas
mãos de estrangeiros não-residentes no território nacional (ADAMS, 2010,
p. 2, item 6).

Diante da conjuntura atual de uma crescente demanda por terras


e da constatação de que o INCRA não possui mecanismos concretos para
efetuar um controle adequado das compras de terras (ADAMS, 2010, p. 3),
o grupo de trabalho formado para avaliar tal situação concluiu que era ne­
cessária a “revisão dos pareceres de modo a dotar o Estado brasileiro de
melhores condições de fiscalização sobre a compra de terras realizada por
empresas brasileiras controladas por estrangeiros” (ADAMS, 2010, p. 3).
Em 2010, a AGU publicou então o Parecer nº LA-01, de 19 de agosto
de 2010, o qual re-estabeleceu possibilidades para limitar, ou melhor, para
regulamentar os processos de estrangeirização das terras no Brasil. Este
documento legal retoma a Lei nº 5.709, de 1971, afirmando que a mesma
deve ser acolhida pela Constituição de 1988. Esta lei foi criada para regula­
mentar a compra de terras por estrangeiros, estabelecendo o limite máxi­

240

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Sérgio Sauer

mo de compra em 50 módulos (art. 3º), sendo que a soma das propriedades


de uma pessoa estrangeira não pode ultrapassar a um quarto (¼) da área
do município (art. 12) (ADAMS, 2010, p. 4).12
Alfonsin (2010), ao emitir sua avaliação sobre a validade e a abran­
gência do Parecer da AGU em tela, argumenta que a própria Constituição
explicita “dois direitos fundamentais, ligados ao território nacional e titu­
lados pelo seu povo: o primeiro, por óbvio, da soberania sobre a sua terra
(art. 1° parágrafo único da C.F) e o segundo, o do reflexo necessário des­
sa soberania na segurança nacional” (2010, p. 4).13 A partir desse preceito
constitucional, Alfonsin afirma que “o Parecer aprovado pela Presidência
da República, publicado no dia 23 de agosto passado, não teve outro esco­
po que não o de reconhecer a eficácia das normas constitucionais que de­
fendem e protegem o nosso território e a nossa gente” (2010, p. 20), portan­
to, é fundamental a adoção de medidas de controle por parte do Estado.
Sem desmerecer a importância jurídico-legal de tal parecer, a solu­
ção do problema não se materializa com a referida publicação. Primeiro,
há problemas no próprio conteúdo da Lei 5.709/71 como, por exemplo, o
limite de 50 módulos ou a restrição a um quarto da área do município, pois
há municípios imensos no Brasil, especialmente nas regiões Norte e Cen­
tro Oeste, principais alvos da busca por terras e expansão do agronegócio.
Em segundo lugar, a problemática fundiária transcende em muito
ao problema que se convencionou denominar “arresto de terras agrícolas”
(tradução da expressão “farmland grab”), uma “reação aos efeitos nega­
tivos” (NASSAR, 2010) da corrida por terra e a conseqüente estrangeiri­
zação. É fundamental não esquecer os históricos níveis de concentração
da propriedade da terra no Brasil, novamente corroborados pelo Censo
Agropecuário de 2006. Essa concentração fundiária não será revertida com
adoção mecanismos de controle da aquisição de terras por estrangeiros,
pois a esmagadora maioria das grandes áreas está nas mãos de poucos
brasileiros.
Por outro lado, a inoperância do Estado na não implantação da polí­
tica de reforma agrária (poucas desapropriações de áreas que não cumprem
a função social, poucas famílias assentadas em projetos de assentamentos,
etc.), na morosidade no reconhecimento dos territórios quilombolas e na
demarcação das terras indígenas deve ser contabilizado nesse processo.
Em relação aos direitos territoriais quilombolas, por exemplo, há um

12
É importante observar que a Lei 5.709, em seu art. 7º, também trata da aquisição de terras
na faixa de fronteira, outro tema importante em debate, especialmente no Congresso onde
há pressões para revisar a lei que regulamenta as fronteiras do Brasil.
13
A retirada do controle sobre a aquisição de terras no Brasil se deu, em parte, pela aprovação
da PEC nº 6, que revogou o art. 171, inciso I, da Constituição, que definia empresa nacio­
nal, mas também pelos Pareceres de 1994 e 1998, os quais afirmavam a não recepção da Lei
7.509, de 1971 pela Constituição de 1988.

241

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Mercado de terras: estrangeirização, disputas territoriais
e ações governamentais no Brasil

total descaso por parte dos órgãos governamentais responsáveis (SAUER e


FLORÊNCIO, 2010). Segundo relatório de missão sobre violações de direi­
tos humanos no sertão do Estado de Pernambuco,

No que tange à região do Sertão de São Francisco de Pernambuco, a Mi­


crorregião de Petrolina possui 18 comunidades quilombolas reconhecidas
e/ou em processo de reconhecimento [pela Fundação Palmares], totalizan­
do 1.807 famílias. Dentre elas, nenhuma possui título territorial, e algumas
sequer possuem procedimento de titulação territorial aberto no INCRA...
(SAUER e FLORÊNCIO, 2010, p. 6).

Ainda mais, há muitos casos de violações de direitos territoriais re­


sultantes de investimentos públicos em obras de infra-estrutura. O caso
mais emblemático no semi-árido nordestino é o quilombo Negros de Gilu
(Município de Itacuruba), afetado pela construção da Usina Hidrelétri­
ca de Luiz Gonzaga em 1988, quando as famílias perderam suas terras
para o Lago de Itaparica. Após 22 anos de espera, essas famílias não fo­
ram indenizadas e continuam como um “quilombo sem terra” (SAUER e
FLORÊNCIO­, 2010, p. 7).
Agora, novas obras de infra-estrutura, como as obras de transpo­
sição das águas do rio São Francisco e as da barragem de Riacho Seco,
financiadas com recursos federais, ameaçam outras comunidades qui­
lombolas, camponesas e povos indígenas. O canal da transposição corta o
assentamento Jibóia (Município de Cabrobó), afetando toda área de pre­
servação, mas não garante água para as famílias assentadas. Apesar das
promessas de obras de compensação, as famílias não receberam nem a
instalação da irrigação para produção, ou seja, não foram instalados os
equipamentos para irrigar 0,5 hectare por gotejamento e 0,5 hectare por
micro-aspersão para cada família, segundo acordo com o Ministério da In­
tegração (SAUER e FLORÊNCIO, 2010, p. 13).
Por outro lado, a construção da Barragem de Riacho Seco vai afe­
tar diretamente quatro comunidades quilombolas, Serrote, Cupira e Inha­
nhum, localizadas no município de Santa Maria da Boa Vista (PE) e Nova
Jatobá, localizada em Curaçá (BA). A Comunidade Quilombola de Cupi­
ra terá seu território completamente inundado (SAUER e FLORÊNCIO,
2010, p. 11). Segundo informações da missão,

A Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF), responsável pela exe­


cução das obras, conduziu estudos para a execução dos trabalhos sem ob­
servância dos dispositivos legais que garantem direitos às comunidades qui­
lombolas e indígenas... (SAUER e FLORÊNCIO, 2010, p. 12).14

14
Não foi realizada a Consulta Prévia, como prevê o art. 6º da Convenção 169 da OIT, segun­
do o qual “os governos deverão a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos
apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que

242

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Sérgio Sauer

O direito ao território já é um direito assegurado em tratados inter­


nacionais, a exemplo da já mencionada Convenção 169, da OIT, ratificada
pelo Brasil, bem como na Constituição Federal brasileira. É fundamen­
tal, no entanto, que esse direito territorial seja efetivamente garantido nas
ações governamentais, porque

... a terra possui um significado completamente diferente da que ele apre­


senta para a cultura ocidental de massas. Não se trata apenas da moradia,
que pode ser trocada pelo indivíduo sem maiores traumas, mas sim do elo
que mantém a união do grupo, e que permite a sua continuidade no tempo
através de sucessivas gerações... (SARMENTO, 2008, p. 7).

A mesma compreensão deve ser estendida para as demais popula­


ções do campo que lutam pelo direito de acesso à terra. Para essas, assim
como o território, a terra não representa apenas um meio de produção e
sim um lugar de vida e de construção identitária (ser um trabalhador rural,
por exemplo). Nesse sentido, é fundamental aprofundar o debate sobre o
“direito dos agricultores familiares camponeses” como um direito humano
fundamental de reprodução social e qualidade de vida no campo.

Anotações para uma conclusão


Foucault trabalha com o conceito de heterotopias, ou outros luga­
res, em vez de “não-lugares” ou utopias. Essas heterotopias constituem-se
em “espaços singulares que são encontrados em certos espaços sociais, dos
quais as funções são diferentes ou mesmo opostas a outros” (FOUCAULT,
1984, p. 252).
O autor utiliza este conceito para definir algo como contra-lugares,
ou seja, lugares e espaços qualitativamente distintos, que funcionam como
contestação, simbólica e real, dos espaços hegemônicos. São espaços que
se contrapõem à dominação e à homogeneidade espacial, sendo lugares de
resistência e liberdade, construídos a partir de perspectivas e relações so­
ciais distintas das relações de dominação (SAUER, 2010).
Utilizando essa noção de Foucault, a luta pela terra e as conquistas
de território é um processo de construção (constituição) de lugares, de es­
paços de vida e identidade. Nesse sentido, terra e território são lugares de
morada, endereços e referenciais identitários, materializando, mesmo que
provisoriamente, heterotopias para camponeses, quilombolas, indígenas,
comunidades tradicionais (SAUER, 2010).

sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;


b) estabelecer os meios através do quais os povos interessados possam participar livremente,
pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na ado­
ção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza
responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes...” (BRASIL, 2004).

243

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Mercado de terras: estrangeirização, disputas territoriais
e ações governamentais no Brasil

Os embates territoriais, as resistências à expropriação das popula­


ções do campo, “tradicionais” ou não, não se restringem a uma reação con­
tra as demandas crescentes do mercado de terras. Essa demanda apenas
explicita que a terra deve ser entendida além de um meio e lugar de produ­
ção, pois é um bem finito e deve ser entendida como um lugar “identitário,
relacional e histórico”, construído nas lutas e processos sociais das comu­
nidades que aí vivem e se reproduzem.

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Mercado de terras: estrangeirização, disputas territoriais
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246

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Mercado da terra e diferentes formas
1
de apropriação territorial

Márcia Yukari Mizusaki


Professora dos Cursos de Graduação e Mestrado em Geografia da UFGD
| Coordenadora­do Grupo TERRHA (Grupo de Estudos sobre Território e
Reprodução­Social) E-mail: marciamizusaki@ufgd.edu.br

Introdução
Para tratarmos da temática que nos foi proposta para essa mesa re­
donda, situamos a reflexão no contexto das discussões sobre a dinâmica do
território na atualidade. O pressuposto de que partimos foi compreendê-la
enquanto produto das relações sociedade-espaço-tempo, mediadas dessa for­
ma, por diferentes relações espaço-temporais, que ao se territorializarem,
transformam e/ou entram em conflito com outras territorialidades, num con­
tínuo processo de territorialização/deterritorialização (HAESBAERT, 2007).
A partir desse pressuposto, para tratarmos, então, do Mercado da ter­
ra e nas diferentes formas de apropriação territorial, pensamos inicialmen­
te quais são os principais agentes que se destacam – no atual estágio de
desenvolvimento capitalista – na dinâmica do território, produzindo uma
questão agrária. A partir desse contexto, podemos compreender, no nosso
modo de entender, as diferentes formas de apropriação territorial.
Na atualidade, a territorialização dessa dinâmica se inscreve no es­
paço geográfico, tendo na propriedade privada da terra o elemento de me­

1
O presente artigo é resultado das reflexões decorrentes de nossa participação na mesa-re­
donda Mercado da terra e diferentes formas de apropriação territorial, do XX ENGA (Encon­
tro Nacional de Geografia Agrária), realizado no período de 25 a 29 de outubro de 2010, em
Francisco Beltrão-PR.

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Mercado da terra e diferentes formas de apropriação territorial

diação. Partimos, então, do pressuposto de que a propriedade privada da


terra contém, conforme já lembrado por Martins (1995), uma relação so­
cial e a sua apropriação se dá a partir de interesses que são antagônicos,
ou seja, se dá a partir do lugar social que os sujeitos ocupam na estrutura
de classes.
Nesse sentido, os proprietários de terra, os capitalistas e os traba­
lhadores assalariados, além dos sujeitos que se expressam sob relações não
capitalistas de produção, como os camponeses e os indígenas, constituem-
se em agentes que se apropriam distintamente do território, cujas relações
são mediadas por diferentes concepções de propriedade e de interesses de
classe.
É no contexto dessa discussão que faremos algumas considerações
sobre a realidade agrária brasileira, em especial o Estado de Mato Grosso
do Sul, que é o lugar onde temos desenvolvido nossos estudos.
Certamente não esgotaremos a discussão, nem tampouco conside­
ramos que a perspectiva adotada seja a única forma de entendimento da
dinâmica do território, mas que no nosso modo de entender, são questões
que consideramos relevantes para o entendimento da temática proposta.

Ofensiva do capital e apropriação territorial: tensões e


contradições na dinâmica do território

No atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, em que as for­


ças produtivas se encontram sob o imperativo do capital monopolista, ex­
presso nas grandes corporações transnacionais, a territorialização dessa
dinâmica produz, reproduz e/ou destrói diferentes formações territoriais,
cada vez mais dinâmicas e complexas, produzindo territórios cada vez
mais conflituosos, onde o local e o mundial inter-relacionam-se sob dife­
rentes facetas.
Diante desse cenário, verifica-se uma ofensiva do capital nas suas
formas de realização, revelando que eles vêm atuando estrategicamente
em vários seguimentos do setor produtivo, rearticulando-se. Por meio da
formação de grandes conglomerados, atuam em várias frentes, formando
redes de dominação, apropriação e controle, não somente no sentido de
romper as barreiras impostas pela propriedade fundiária, mas também por
interesses geopolíticos para o controle da própria vida. É o que se verifica
atualmente na estratégia por parte de empresas transnacionais, no controle
de sementes, da biotecnologia e da água2. Trata-se de um modelo de produ­
ção estreitamente articulado a uma racionalidade técnico-científica, cujo
conhecimento é cada vez mais monopolizado pelas grandes corporações.

2
Em relação ao debate sobre a questão da água, importantes contribuições têm sido feitas
por Gonçalves (2008) e Thomaz Jr. (2010).

248

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Márcia Yukari Mizusaki

Uma dessas ofensivas diz respeito ao ADPIC (Aspectos dos Direitos


de Propriedade Intelectual). Por meio desse acordo, garantiu-se a patente
sobre seres vivos, sementes, que, aliada à biopirataria, vem permitindo que
multinacionais tenham o controle do mercado de alimentos no mundo. Se­
gundo Robin (2008), a questão sobre os direitos de propriedade intelectual
foi introduzida na rodada Uruguai do GATT (Acordo Geral sobre Tarifas
Aduaneiras e o Comércio), pelo governo norte-americano e concebido por
um comitê (IPC – Comitê de Propriedade Intelectual) que é composto por
treze multinacionais, dentre elas, a Du Pont, Pfizer, Johnson and Johnson,
IBM e Monsanto. Essa mudança, juntamente com outros itens que foram
integrados (agricultura, investimentos e serviços) alteraram tanto o seu pa­
pel que culminaram na extinção do GATT, surgindo, em seu lugar, a OMC
(Organização Mundial do Comércio) em 1995.
Embora na Convenção de Biodiversidade se reconheça que os recur­
sos genéticos sejam de propriedade dos Estados, os Estados Unidos, prin­
cipal país a sediar as multinacionais, não assinaram a Convenção (ROBIN,
2008). Quando se cria a lei de patentes sobre sementes e organismos vivos,
criam-se também, limites para o seu uso. Lamentavelmente, o Brasil, se­
gundo declarações do próprio presidente da Pioneer noticiada no ano de
2010, é o país onde eles mais crescem com transgênicos3.
Outra frente de ação dos grandes grupos econômicos tem sido a mo­
nopolização do mercado. Por meio de fusões e aquisições, os grandes gru­
pos vêm se expandindo mundialmente. Segundo Ribeiro (2003), há vinte
anos, havia milhares de empresas sementeiras e atualmente as dez maio­
res empresas controlam 1/3 do comércio mundial. Da mesma forma, havia
65 empresas agroquímicas no mundo, e atualmente, apenas 10.
Fato importante a destacar também é que, apesar de as empresas ex­
pandirem mundialmente seus negócios, as decisões concentram-se nos paí­
ses sede das empresas. Das 25 principais corporações mundiais na atualida­
de, 70% estão nos EUA, 26% na Europa e 4% no Japão (PETRAS, 2010).
É importante destacar também que tem havido uma ofensiva do ca­
pital para o domínio territorial dos corpos d’água. Nesse contexto, verifica-
se que 2/3 da água disponível no mundo está na África, na América e na
Ásia, o que pode explicar o avanço de empresas estrangeiras para essas
regiões. O modelo de sociedade urbana e industrial que se configura na
atuali­dade, vem tornando a água um problema geopolítico. Se conside­
rarmos que 70% do consumo de água no mundo provém da agricultura
dá para termos uma ideia do impacto causado pelo modelo produtivo do
agronegócio (GONÇALVES, 2008). O crescimento da mercantilização da
água pode ser expresso no aumento da participação de grandes multina­
cionais na sua comercialização.

3
In: http://pratoslimpos.org.br/?p=1741. Acesso em 31/10/2010.

249

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Mercado da terra e diferentes formas de apropriação territorial

É a partir desse cenário que, quando pensamos as formas de apropria­


ção do território, verifica-se que o que está em questão é o controle do terri­
tório, conforme já tem sido enfatizado por autores como Gonçalves (2006,
p. 287)4, Haesbaert (2007), Fernandes (2008)5, cuja dinâmica exprime uma
desigual correlação de forças entre os agentes envolvidos no processo.
Nessa relação predatória que os capitalistas estabelecem com a na­
tureza, Gonçalves (2006) ressalta que o tempo do capital entra em tensão
também com o tempo da natureza. Nessa preocupação que autor tem le­
vantado em seus textos, lembra-nos que no sistema produtivo “... o ciclo da
produção não se esgota no consumo” (GONÇALVES, 2008, p. 199). Nesse
sentido, os seus rejeitos, que são lançados na terra, na água, no ar (e na
sociedade), potencializam contradições de toda ordem, nessa desigual re­
lação dos homens entre si e com a natureza.
Esse modelo predatório vem apresentando sinais de esgotamento
colocando em cheque o próprio caráter de reprodução ampliada do capi­
tal, pois sendo a terra meio de produção, se encontra quase que totalmente
ocupada na superfície terrestre, dentro desse modelo de propriedade priva­
da, à exceção das áreas de desertos, geleiras e grandes florestas, conforme
tem sido divulgado, inclusive pela imprensa6.
Se o domínio científico e tecnológico, que se encontra concentra­
do nos países-sede das grandes corporações internacionais é o fator que
permite e impulsiona o deslocamento das grandes empresas para os cha­
mados países “em desenvolvimento”, a água “disponível”, além de outros
fatores, como terra, mão de obra barata e questões ambientais, é claro, são
fatores que atraem. É nesse contexto que se torna importante considerar
esses fatores como elementos a impulsionar o deslocamento de grandes
empresas transnacionais para a América Latina7.
4
O autor destaca a cientista social mexicana Ana Ester Ceceña, como autora que coloca a
importância da tecnologia e do território como pilares da competição internacional. In: CE­
CEÑA, A.E. La territorialidad de la dominación. Estados Unidos y America Latina. Revista
Chiapas. México: UAM, 2001, n. 12.
5
Na Geografia Agrária brasileira, a idéia de territórios em disputa ganhou destaque no SIN­
GA (Simpósio Internacional de Geografia Agrária) de 2007, realizado em Londrina-PR e que
ficou expresso no livro que foi lançado, com o título Campesinato e territórios em disputa,
especialmente a análise de Bernardo Mançano Fernandes (2008) em seu texto Entrando nos
territórios do Território.
6
As florestas geladas do Canadá e da Rússia, os planaltos elevados do Tibete e da Mongólia,
a Amazônia, dentre outros, significariam apenas 17% da superfície da Terra. O restante da
área do Planeta, 83%, já estaria sendo utilizado para o sustento da humanidade, através da
agricultura, mineração ou extrativismo (Folha de S.Paulo, 23/10/02).
7
O desenvolvimento da avicultura de corte em escala industrial, por exemplo, devido ao seu
elevado consumo de água, só é possível em países onde há abundância de recursos hídricos.
Países da Europa e Japão, por exemplo, vêm preferindo comprar frango no mercado mun­
dial, não somente pelo limitador da água, mas também, para transferir para os outros paí­
ses, problemas ambientais (MIZUSAKI, 2003).

250

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Márcia Yukari Mizusaki

Essas mudanças ocorridas no processo produtivo têm produzido,


no campo, uma desigual correlação de forças. Assim, no Brasil, as barrei­
ras impostas pela propriedade privada da terra8 ao capital na sua ofensiva
para o controle do território têm sido eliminadas com a participação do
Estado9, por exemplo, via incentivos fiscais, crédito facilitado, como já tem
destacado Martins (1995). A partir da Constituição de 1988, por exemplo,
foram criados os Fundos Constitucionais de Financiamento, que destina
3% do PIB para financiar “... atividades produtivas nos setores agrope­
cuário, mineral, industrial, agroindustrial, turístico, comercial e de servi­
ços das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste”10. Oliveira (2006) destaca
também que os maiores clientes do Banco do Brasil são as multinacionais:
a Bunge movimentou, em 2006, 370 milhões de reais enquanto a ADM (Ar­
cher Daniels Midland), 401 milhões de dólares.
Por sua vez, a classe dos proprietários de terra, cujo monopólio tem
se mantido sob a roupagem do agronegócio, tem conseguido, com apoio
da bancada ruralista, colocar o Estado refém de seus interesses, demons­
trando sua força. No Brasil, segundo dados do INCRA de 2003, levantados
por Ariovaldo Umbelino de Oliveira (2008, p. 6), “... há cerca de 180 mi­
lhões de hectares do solo nacional cercados indevidamente por grileiros”,
sem que até o momento tenha havido governo em condições de fazer o de­
vido enfrentamento.
Reforçamos a ideia da força dessa classe, que, tendo parte da sua
renda sujeita ao capital industrial (através da dependência de insumos
agrícolas e da venda às indústrias de processamento, como os produto­
res de soja) tem, por outro lado, se utilizado de outros mecanismos para
burlar as forças que se apropriam da sua renda. Como exemplo, pode­
mos citar os “calotes” em bancos11, securitização da dívida, sonegação de
ITR (Imposto Territorial Rural), cujo não pagamento, ou pagamento fa­
cilitado, caracteriza, conforme Oliveira (2006), uma espécie de subsídio
disfarçado.

8
A propriedade privada da terra representa uma barreira à expansão do capital no campo,
pois seu proprietário cobra um tributo para o seu uso, a renda da terra (MARTINS, 1995).
9
Em 1996, por exemplo, tivemos a Lei Kandir, isentando de ICMS para exportação de produ­
tos primários e semi-elaborados. Essa lei, que visava estimular a exportação desses produ­
tos para equilibrar a balança comercial, tem beneficiado os grandes proprietários e o setor
agroindustrial. Quando, em 1999, o Ministério da Fazenda considerou a possibilidade de
alterar a lei por pressão de governadores, houve outra mobilização por parte de representan­
tes dos produtores rurais, agroindústrias e cooperativas do país – como a ABAG (Associação
Brasileira de Agronegócios), a ANEC (Associação Nacional dos Exportadores de Cereais); a
CNA (Confederação Nacional da Agricultura); a SRB (Sociedade Rural Brasileira) entre ou­
tros – para não terem de pagar mais esse tributo ao Estado (MIZUSAKI, 2003).
10
http://www.mi.gov.br/fundos/fundos_constitucionais.
11
Já têm sido divulgadas, em revistas de circulação nacional, informações sobre os maiores
“caloteiros” do Brasil, entre os quais figuram grandes proprietários de terra.

251

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Mercado da terra e diferentes formas de apropriação territorial

No Brasil, sabe-se que quem mais se apropria das facilidades credi­


tícias é o grande capital e a classe dos proprietários de terra. Se conside­
rarmos a liberação de recursos do FCO no Estado de Mato Grosso do Sul,
por exemplo, por categoria de produtor, veremos que os mini e pequenos
produtores, conforme classificação do Banco do Brasil12 têm sido os me­
nos favorecidos conforme indica o Gráfico 01.

Gráfico 1 – Estado de Mato Grosso do Sul. FCO rural – percentual contratado por
categoria de produtor –1999 a 2001

Fonte: Banco do Brasil. Org.: Mizusaki, 2003.

Consideramos, então, que a relação proprietário de terra – renda da


terra – e fundo público13 precisa ser considerada na análise desse processo
de disputa, pois, se parte da renda do proprietário de terra é subordinada
ao capital industrial, ele apropria-se, por sua vez, de parte do fundo públi­
co (MIZUSAKI, 2005).
O campesinato, principalmente por meio dos movimentos sociais
organizados, também tem se destacado como importante agente na dis­
puta por territórios. Para Fernandes (2008, p. 274) “... a luta pela terra é
a luta por um determinado tipo de território: o território campesino”. O
autor chega a essa proposição a partir de estudos que realiza sobre o Mo­
vimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e dos seus trabalhos
sobre a Via Campesina. Ocorre, nessa perspectiva, uma disputa territorial
entre capital e campesinato, que promovem, a partir de diferentes formas
de propriedade privada, diferentes modelos de desenvolvimento:

Estamos nos referindo especialmente aos modelos de desenvolvimento do


agronegócio, resumidamente a partir da produção de monoculturas em

12
O Banco do Brasil classifica os produtores conforme sua renda, que varia dependendo do
período analisado. Na Tabela 01, os mini produtores são aqueles que possuem renda anual
de até R$ 40 mil. Os pequenos são os que possuem renda entre R$ 40 mil e R$ 80 mil.
13
Mais informações sobre o fundo público, ver Oliveira (1998).

252

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Márcia Yukari Mizusaki

grande escala, com trabalho assalariado, intensamente mecanizado e com


utilização de agrotóxicos e sementes transgênicas. E ao modelo de desenvol­
vimento do campesinato ou agricultura familiar, resumidamente a partir da
produção de policulturas, em pequena escala, com predominância do traba­
lho familiar, com baixa mecanização, em sua maior parte, com base na bio­
diversidade se a utilização de agrotóxicos (FERNANDES, 2008, p. 281-2).

Nesse desigual e contraditório processo de disputa por território, te­


mos o processo de criação, recriação e muitas vezes, de exclusão do cam­
pesinato. Assim, o campesinato pode se recriar sob diferentes formas, seja
pela sujeição da renda da terra ao capital, seja pela ocupação da terra. O
autor já tem destacado que a maior parte dos assentamentos de reforma
agrária é resultado, não de uma política de reforma agrária, mas sim da
luta pela terra e ao se territorializarem, os camponeses se fazem sujeitos e
constroem as suas existências (FERNANDES, 1996, 2000). Segundo fontes
do Dataluta14, entre os anos de 2000 e 2006 foram registrados 86 diferen­
tes movimentos socioterritoriais e no período compreendido entre 1988
e 2006, houve 7.009 ocupações de terra, envolvendo 1.047.320 famílias,
7.230 assentamentos, 807.268 famílias assentadas e 57.305.522 hectares de
terra, ou, 6,7% do território nacional, na sua maioria, conquistados pelos
movimentos sociais.
Uma outra face dessa perversa dinâmica de (re)produção e disputa
pelo território, diz respeito à territorialidade indígena. A ocupação colonial
de seus territórios tem sido marcada pela resistência, levando vários gru­
pos étnicos à sua quase total extinção, como os índios Guaikuru, Guató,
Ofayé. Especial destaque darei aqui ao povo Guarani15, que tem uma parte
da sua população vivendo no sul do Estado de Mato Grosso do Sul.
A disputa pelo território com os Guaranis começa a ocorrer à me­
dida em que os proprietários de terra e capitalistas foram se apropriando
privadamente do seu território, tornando a terra uma mercadoria. Os ín­
dios foram sendo dizimados e/ou colocados em reservas, para que a sua
concepção de terra, enquanto bem sagrado, enquanto meio de reprodução
da vida, tivesse um limite territorial definido (pelo não índio) de forma que
não prejudicasse o avanço capitalista16. Segundo Brand (1993), de 1915 a
1928, tivemos o confinamento da população indígena em oito reservas no

14
Dataluta. In: http://www4.fct.unesp.br/nera.
15
Segundo Martins (2002), os Guarani pertencem à família linguística Tupi-guarani. Vieram
da região Amazônica e se espalharam pelas terras férteis da bacia Platina, sendo que no sé­
culo XVI, estima-se que havia mais de 1 milhão de índios em toda a bacia.
Em Mato Grosso do Sul, vivem atualmente 25 mil índios guaranis (In: http://www.trilhasde­
conhecimentos.etc.br/mato_grosso_do_sul/guarani.htm. Acesso em 20/10/2010).
16
No Estado de Mato Grosso do Sul, por exemplo, a primeira reserva indígena Kaiowá, localiza­
da no município de Amambaí, data de 1915, no mesmo período em que a propriedade privada
da terra avança no sul do Estado, região pioneiramente ocupada pelos guarani Kaiowá.

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sul do Estado, e que hoje, é a raiz de conflitos de terras na região, pois já


não dispõem de condições para a realização do seu modo de vida.
Assim, a propriedade privada da terra foi, cada vez mais, impondo
limites de uso, o que agravou-se com a implantação das Colônias Agríco­
las, especialmente a CAND (Colônia Agrícola Nacional de Dourados), pois,
segundo Brand (1993), os Guarani que ainda viviam em aldeias passam a
ser compulsoriamente “descarregados” nas oito Reservas anteriormente
mencionadas.
No caso da Reserva Indígena Jaguapiru, no município de Dourados,
soma-se o agravante de que ela situa-se próxima à área urbana de Doura­
dos, distando aproximadamente 10 km do centro urbano da cidade. Isso
redefine o seu modo de ser, de viver e de se relacionar com o território, ou
seja, redefine, de forma mais ampla, o próprio sentido da vida.
Essa dinâmica perversa de (re)produção do território, que objetivou
aprisionar o povo Guarani em reservas, buscando delimitar territorialmen­
te a sua concepção de natureza17, tem comprometido a realização do seu
modo de ser tradicional, seu tekohá, uma vez que para eles, a natureza não
é vista como recurso natural, como o é para a sociedade capitalista. Essa
condição vem afetando seus costumes, valores, crenças, submetendo essa
população à mendicância, ao subemprego, à exploração, seja nas usinas da
região ou mesmo em empregos domésticos, gerando conflitos e revelando,
assim, as formas perversas de reprodução da vida a que foram submeti­
dos os povos indígenas. Nesse processo, seus valores, necessidades, desejos
nem sempre são possíveis de serem realizados.
Contudo, a partir do final da década de 1970, quando o modelo do
monocultivo assentado da soja começa a se expandir no Estado de Mato
Grosso do Sul, os Guarani começam a resistir e a lutar, através da recu­
peração de seus territórios, forjando uma nova territorialidade. Segundo
Brand, Ferreira e Azambuja (2008), 11 novas terras indígenas já foram re­
cuperadas e demarcadas, totalizando, juntas, 22.450 hectares.
Se, do ponto de vista da extensão territorial do Estado de Mato Gros­
so do Sul, essa área pode ainda não representar muito, a recuperação de
mais de 22 mil hectares, num Estado em que predomina a força política
dos grandes proprietários de terra e do agronegócio, essa conquista expres­
sa a determinação desses povos na recuperação de suas terras. O nível de
gravidade em que a questão agrária se encontra no Estado está expressa
nos enfrentamentos, mortes e conflitos que têm acompanhado todo esse
processo.

17
“O povo Guarani não se considera dono da terra, nem daquilo que vive nela. O que entende é
que receberam de Deus o direito ao usufruto da terra, que deve ser feito de forma respeitosa,
equilibrada e limitada, vigiado pelos deuses e os outros Guarani”. (www.campanhaguarani.
org.br/historia/economia/htm). Acesso em 18/10/2010.

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Márcia Yukari Mizusaki

No Gráfico 2 temos dados referentes aos assassinatos de povos in­


dígenas no Brasil e no Mato Grosso do Sul. É interessante observar que
enquanto os conflitos de terra diminuíram nos outros estados entre 2003 e
2005, no Mato Grosso do Sul eles aumentaram. E a partir de 2007, temos
um aumento de 89,3% dos conflitos em Mato Grosso do Sul (e 30% nos
demais estados), coincidentemente após a elaboração do Termo de Ajusta­
mento de Conduta (TAC) da FUNAI, em 2007 para identificação e demar­
cação das terras indígenas. Confinados, vivem em situação de tensões, o
que tem sido acompanhado também do número elevado de suicídios. Se­
gundo dados da FUNASA, entre 2000 e 2004 houve 212 suicídios indígenas
no estado18.

Gráfico 02 – Assassinatos indígenas no Brasil e no Mato Grosso do Sul

Fonte: Relatório CIMI, 2008. Org.: Mizusaki, 2010.

Além da luta pela recuperação de suas terras, verifica-se também a


estratégia de afirmação étnica, o que pode ser observado na avaliação de
Martins (2002, p. 43):

Estudos demográficos indicam que, no presente, os índices de crescimento


populacional vêm superando os das populações “brancas” vizinhas às Terras
Indígenas. Paralelamente a essa recente expansão demográfica, estimulados
pelas suas próprias lideranças e pela ação de entidades indigenistas, os Gua­
rani estão readquirindo antigos hábitos culturais que estavam em desuso,
isto como forma de resistência e afirmação étnica.

Ao fazerem-se sujeitos da história, diríamos que os Guarani não so­


mente vêm readquirindo antigos hábitos culturais, mas também, vêm arti­

18
Conforme assessoria de imprensa do CIMI (Conselho Indigenista Missionário). In: CARVA­
LHO, Priscila. In: www.cimi.org.br acesso em 09/05/2008.

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Mercado da terra e diferentes formas de apropriação territorial

culando-os a manifestações sociais culturais contemporâneas para expres­


sarem-se e lutarem pela sua existência. Na Reserva Indígena de Dourados,
podemos citar como exemplo, o grupo de rap indígena, Brô Mc’s, formado
a partir do interesse de um grupo de jovens guaranis.
Eles vêm realizando apresentações em eventos com suas músicas,
cujas letras buscam, não somente retratar suas realidades, mas “... dar voz
aos anseios e luta dos povos indígenas Guarani Kaiowá, bem como de todas
as etnias indígenas do Brasil”, conforme divulgado na capa do próprio CD
gravado (Figura 1).

Figura 1 – Capa do CD do Grupo Brô Mc´s.

Os Guarani incorporaram o estilo musical do rap, parte do estereó­


tipo, mas as letras revelam questões relativas ao cotidiano vivido pelo povo
guarani na atualidade. Preconceito, opressão pela perda do seu tekohá e
cansaço pelas frequentes intervenções que se tem na Aldeia e que são de
toda ordem, clareza do que querem e do que aconteceu com eles, são con­
teúdos revelados nas músicas.
Nesse processo, verificamos que a estratégia guarani, externaliza sua
articulação ao nível mais amplo das relações sociais, nesse caso, incorporan­
do características de uma cultura popular de origem jamaicana/americana.
Os Guarani revelam, desse modo, formas contemporâneas de exis­
tir/resistir numa sociedade que possui uma lógica contrária à sua, forjando
uma nova territorialidade, potencializando assim, uma nova territorializa­
ção, ao darem fluidez à fronteira imposta a partir dos limites que lhes são

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Márcia Yukari Mizusaki

colocados pela propriedade privada da terra e pelas relações de poder que


permeiam a realização desse modo de vida. Em outras palavras, os não ín­
dios não conseguiram aprisionar os Guarani no interior da Reserva (e jun­
tamente com eles a sua concepção de natureza).
Apesar da territorialização perversa que se inscreve a partir da ação
do grande capital e dos proprietários de terra, os Guarani têm se mostrado,
assim, sujeitos que lutam, demonstrando enorme capacidade de recriação
e de resistência.

Considerações finais
Na análise ora proposta, finalizamos considerando que nessa desi­
gual disputa pelo território, os territórios conquistados por camponeses e
indígenas têm demonstrado que a territorialização do capital não é uma
via de mão única, ou seja, tem demonstrado que é possível construir outras
formas de apropriação do território. Para entendê-las, é necessário pensá-
las a partir do pressuposto de que os diferentes interesses de classe trazem
consigo diferentes concepções de propriedade e, dessa forma, diferentes
formas de apropriação territorial.
Nesse processo, acentuam-se as tensões que os homens estabelecem
entre si e destes com a natureza, na medida em que se trata de relações que
envolvem diferentes formas de uso do território.
Destacamos, dessa forma, a reafirmação do território como instância
de análise, bem como, a sua complexidade e multidimensionalidade, ou seja,
o processo de reorganização e articulação do capital precisa ser compreen­
dido também enquanto expressão territorial na sua multiplicidade de deter­
minações espaço-temporais, que se produz e reproduz de acordo com a di­
nâmica contraditória que move essas relações. Nesse sentido, assim como a
sociedade se complexifica, assim como o capital se articula em vários setores
da economia, essas relações também se territorializam de forma complexa.
Essas diferentes temporalidades em tensão ressignificam o conceito
de natureza e de sociedade, conforme destaca Carlos Walter:

À democracia se coloca, assim, a necessidade, sobretudo, de discutir os tem­


pos para que possamos debater seriamente a questão das territorialidades
que, enfim, é a questão das relações que homens e mulheres socialmente
estabelecem entre si e com a natureza num espaço-tempo determinado que,
cada vez mais, implica a imbricação de diversas escalas. Afinal, é no espa­
ço concreto que cada ser, com sua temporalidade, não somente está como é
(GONÇALVES, 2006, p. 278-9. Grifo do autor).

Essa situação descrita nos coloca a necessidade de pensar o terri­


tório, a partir do conteúdo das suas relações, pois são diferentes escalas e
mediações que se conflituam na dialética de apropriação do território.

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Mercado da terra e diferentes formas de apropriação territorial

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Márcia Yukari Mizusaki

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Acumulação flexível, precarização e
empreendedorismo no espaço agrário
brasileiro

Prof°. Dr. Jacob Binsztok


Universidade Federal Fluminense | jacob.binsztok@terra.com.br

Apresentação
O trabalho investiga os espaços ocupados pela informalidade e pelo
trabalho precarizado no campo, decorrentes da expansão do processo de
acumulação flexível que predomina no desenvolvimento capitalista con­
temporâneo. Assim, foram investigadas diferentes formas de precarização,
como a informalidade, trabalho feminino, infantil e escravo. A pesquisa
analisa iniciativas, como o empreendedorismo rural e a agricultura orgâ­
nica, que pretendem reduzir os impactos proporcionados pela precariza­
ção, e contraditoriamente, acabam contribuindo para a dinamização do
processo de acumulação flexível, pois enfatizam procedimentos pautados
pelas políticas neoliberais, como o sobretrabalho familiar e ausência de
proteção social e trabalhista.
O estudo incorpora referenciais teóricos preconizados pelos pesqui­
sadores que estudaram o espaço agrário do país, seguindo as orientações
teóricas de MARTINS (1979), ABRAMOVAY (1992), OLIVEIRA (1993),
GRAZIANO DA SILVA (1997), que entre outros, pautaram seus trabalhos
investigando a capacidade do sistema em destruir, criar e recriar relações
sociais antagônicas ao próprio desenvolvimento capitalista.
Com o objetivo de aprofundar as questões teóricas, utilizaremos ain­
da contribuições que assinalaram os recentes impactos sociais proporcio­
nados pelo processo de acumulação flexível tanto no campo quanto na

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no espaço agrário brasileiro

cidade, representados por SOJA (1990), SANTOS (1996), POCHMANN


(2003) e HARVEY (2007), enfatizando abordagens sobre o acirramento da
informalidade, precarização e do empreendedorismo como categorias in­
dispensáveis para expansão do desenvolvimento capitalista contemporâ­
neo. Assim, pretendemos efetuar um cruzamento entre os estudos que ana­
lisaram as contradições e as desigualdades, do desenvolvimento capitalista
no campo, com as contribuições que mostraram os impactos decorrentes
da reestruturação produtiva promovida pelo processo de acumulação fle­
xível, decorrente do predomínio das políticas neoliberais adotadas a partir
da década de 90 no país.
A proposta de POCHMANN (2003) analisa a origem rural do agrega­
do social, porém, transfere e adapta esta categoria para o universo do tra­
balho precarizado urbano na sociedade brasileira. Concordamos, parcial­
mente com POCHMANN (2003), na abordagem desta questão, contudo,
investigaremos a permanência e as mudanças ocorridas com este agrega­
do nas atividades agrárias, particularmente localizados nos interstícios do
rural e do urbano, como no caso dos espaços metropolitanos e das cidades
médias do país.

Informalidade
Os espaços ocupados pela a agropecuária caracterizada pelo traba­
lho familiar informal, localizados principalmente na periferia das cidades
médias e grandes, não desapareceram, ao contrário, coexistem com o pro­
cesso de urbanização acelerada, típico da sociedade brasileira. Em virtude
do reduzido custo e proximidade de grandes adensamentos populacionais,
estes precarizados produtores, em linhas gerais, resistem, conseguindo ob­
ter razoáveis níveis de articulação com o mercado.
Os produtores informais, particularmente os que se dedicam à produ­
ção de leite nos espaços metropolitanos do país, chegam em alguns momen­
tos a abandonar esta atividade no período de entressafra, vendendo o redu­
zido rebanho para o abate, e deslocando-se para funções urbanas, como a
construção civil e o comércio ambulante, conforme menciona de forma am­
pla GRAZIANO DA SILVA (1997). Alguns produtores adotam uma divisão
do trabalho, enquanto membros da família se dedicam à obtenção de valor
agregado, fabricando queijo, outros ficam encarregados da venda do produ­
to em estabelecimentos comerciais ou em feiras livres. Na busca pelo valor
agregado, constatamos a fabricação de um tipo de queijo coalho, que embo­
ra de origem nordestina, é produzido em pequenos laticínios informais, lo­
calizados em municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Uma característica importante destes produtores é o seu profundo
conhecimento da geografia dos espaços ociosos, localizados dos loteamen­
tos das áreas metropolitanas e de determinadas cidades médias do país,

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Jacob Binsztok

possibilitando sua rápida locomoção em caminhos que geralmente se en­


contram em péssimo estado de conservação, conseguindo ludibriar e ar­
mar verdadeiros “quebra-cabeças” para a fiscalização. Outra característica
deste grupo é a sua rejeição a qualquer tipo de mobilização para o associa­
tivismo entendido como ameaça, a sua sobrevivência na medida em que
a informalidade é considerada vital para sua permanência e conseqüente
geração de renda. Os movimentos sociais mais combativos como o MST,
Via Campesina, sindicatos rurais e associações de moradores, também não
conseguiram mobilizar estes produtores.
Apesar das dificuldades, o segmento consegue articular um siste­
ma de rotação de pastos, estacionando seus pequenos rebanhos, durante
dois a três dias, em áreas previamente acordadas com pequenos e médios
proprietários, detentores de terras ociosas à espera de valorização. Nos
acordos, não existe pagamento em dinheiro, pois o aluguel destas pasta­
gens é realizado de forma indireta, mediante o conserto de cercas e outros
reparos feitos na propriedade. Os referidos acordos podem escamotear a
existência de terras improdutivas, pois a presença temporária destes reba­
nhos consegue transformá-las em produtivas, respaldando qualquer tipo
de questionamento relativo ao uso social da propriedade.
A retórica contrária aos “currais clandestinos” assumida, principal­
mente, pelas autoridades municipais, denunciando suas precárias condi­
ções sanitárias, não se apresenta consistente, pois a permanência e a ex­
pansão deste segmento só pode ser explicada pela anuência das esferas do
poder, que utiliza estas ocupações para troca de favores, obtendo a fideli­
dade destes produtores e o conseqüente fortalecimento de determinadas
lideranças locais.
Analisando os impactos nas relações de trabalho, proporcionados
pela reestruturação do setor produtivo dos anos 90, de cunho neoliberal,
verificamos o aparecimento de uma nova categoria de produtores precari­
zados, apoiada pelo paternalismo e pelo clientelismo do setor público local,
que estaria se formando nas grandes metrópoles e em cidades pequenas e
médias, envolvendo setores de aposentados urbanos e rurais, desempre­
gados autônomos, empregados domésticos e trabalhadores de sítios de la­
zer, situados na periferia das cidades constituindo, segundo POCHMANN
(2003), uma nova categoria de agregado social no país.
Segundo SOJA (1990), POCHMANN (2003) e HARVEY (2007), a su­
bordinação destes produtores ao poder dos chefes locais, e conseqüente­
mente das classes superiores impedem qualquer tipo de mobilização para
o avanço de reivindicações coletivas, prevalecendo a posição da melhoria
individual decorrente das necessidades de curto prazo que atingem o refe­
rido segmento.
O clientelismo e o assistencialismo, nos últimos anos, foi politica­
mente utilizado pelas municipalidades, que construíram casas nas áreas

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Acumulação flexível, precarização e empreendedorismo
no espaço agrário brasileiro

periféricas para serem concedidas aos produtores familiares que abando­


nam o campo em virtude das periódicas crises com que se defronta o setor
agrícola. As populações que recebem a casa própria apóiaram politicamen­
te à municipalidade, que em função do êxodo, reduziu sua intervenção na
manutenção da infraestrutura das áreas rurais dos municípios.
Estudo realizado sobre os precarizados, LOPES e ROCHA (2005)
da Fundação Getúlio Vargas (FGV), propõe seu enquadramento como “re­
sidentes rurais”, não os considerando como componentes da agricultura
familiar, pois não exercem mais esta atividade, garantindo renda através
de mecanismos externos à atividade agrícola, reafirmando considerações
feitas por GRAZIANO DA SILVA (1997). O trabalho das pesquisadoras, em
nossa opinião utiliza questionáveis critérios de geração de renda urbana,
recomendando uma revisão da metodologia censitária para a inclusão da
categoria de “residentes rurais”, que ficariam impedidos de obterem quais­
quer tipos de benefícios vinculados ao setor agrícola. Segundo o trabalho
o advento destas medidas eliminaria cerca de dois milhões de estabeleci­
mentos atualmente enquadrados na condição de agricultores familiares.
Procurando encontrar uma posição intermediária entre o corte
proposto pela Fundação Getúlio Vargas e a eficiência do crédito agríco­
la concedido aos agricultores familiares, Carlos Eduardo Guanzirolli, da
Universidade Federal Fluminense (UFF), não mencionando diretamente a
presença dos precarizados, considera porém, as constantes renegociações
dos empréstimos que ficaram em atraso ou inadimplentes, como um dos
pontos críticos do Programa Nacional da Agricultura Familiar (PRONAF).
Visando superar o problema, o pesquisador sugere redirecionar o Progra­
ma nas faixas A e B, separando 40% dos recursos que podem ser perdoados
e consignando-os como transferência de renda e mantendo o crédito para
quem efetivamente trabalha na produção agrícola.
A busca pela eficiência do crédito concedido aos pequenos produto­
res familiares, mostra que os pesquisadores da FGV e da UFF, acabaram
ignorando a capacidade dos precarizados em realizar práticas de seguran­
ça alimentar e que mediante a adoção de programas específicos podem re­
tornar paulatinamente a produção de alimentos para o mercado local.
Os referidos autores não assinalaram as dívidas contraídas nas ope­
rações de crédito rural pelos grandes produtores que conseguem captar vo­
lumosos recursos ofertando garantias nem sempre reais. Neste sentido o
Congresso Nacional, recentemente, autorizou a renegociação de dívidas do
crédito rural no valor de 87 bilhões de reais, abrangendo 400.000 contratos.
Adotando um procedimento típico da modernização conservadora, a ban­
cada ruralista, colocou as reivindicações dos pequenos produtores na frente
e alongou no final débitos dos grandes empresários rurais inadimplentes.
Investigando a funcionalidade das populações precarizadas concen­
tradas na periferia dos espaços metropolitanos, SANTOS (1996) amplia a

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Jacob Binsztok

dimensão do problema, destacando a presença de zonas “opacas” respon­


sáveis pela presença de uma flexibilidade tropical. Esta é caracterizada
“por uma variedade infinita de ofícios, uma multiplicidade de combina­
ções em movimento permanente, dotadas de grande capacidade de adap­
tação e sustentadas no seu próprio meio geográfico, tomada como forma-
conteúdo, um híbrido de materialidade e relações sociais”, formando um
contraponto com as zonas “luminosas”, comandada pela modernidade.
As populações das zonas “opacas”, presentes em grande parte das ci­
dades brasileiras, lutam pela sua sobrevivência cotidiana e, em função do
elevado nível de concorrência, são obrigadas a serem mais criativas que as
residentes das zonas “luminosas”, dominadas pela rotina da racionalidade
e reduzida capacidade prospectiva. Estas áreas são, atualmente, alvo das
ações desencadeadas pelo empreendedorismo social, fomentado pelo Es­
tado ou pelas organizações não governamentais (ONGs).

Trabalho Feminino, Infantil e Escravo


Um grande número de estudos apontam para preconceito existente
em relação ao trabalho feminino no campo, mostrando inclusive a dificul­
dade das mulheres em freqüentar as associações de produtores, ouvindo
palestras e participando de assembléias em espaços externos às associa­
ções. O fato levou algumas entidades mais dinâmicas do associativismo ru­
ral, a criarem departamentos femininos, onde as mulheres se destacaram
pelo envolvimento nos debates das questões de saúde e educação, quando
eram tradicionalmente solicitadas para cuidar exclusivamente da alimen­
tação, nos eventos promovidos pelas associações.
No entanto, é importante ressaltar que o trabalho feminino no cam­
po, ainda não apresenta grande visibilidade, pois a mulher possui menos
liberdade que o homem, que atua como provedor e administrador, não
precisando permanecer em casa para cuidar de crianças e das demais tare­
fas domésticas. A mulher trabalha com o homem nas atividades agrícolas
e também em atividades suplementares como a ordenha, a caça e a pesca,
suas tarefas, no entanto, são consideradas apenas como uma forma de co­
laboração com o trabalho masculino.
Observamos, que as mulheres participam da comercialização dos
produtos diretamente relacionados ao seu trabalho, como nos negócios
provenientes na venda de pequenos animais, cabendo ao homem a rea­
lização das transações envolvendo: café, gado, leite e legumes. A invisi­
bilidade mascara a presença do sobretrabalho feminino. No entanto, é
relevante ressaltar que apesar destas limitações, as mulheres respondem
por cerca de 20% da agricultura familiar, inclusive nas áreas mais moder­
nizadas do país.
A mobilização do trabalho feminino no campo é tradicionalmente
realizada pelas EMATER’s, que por intermédio de cursos incentivam as

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Acumulação flexível, precarização e empreendedorismo
no espaço agrário brasileiro

mulheres para a confecção de doces, pães e conservas artesanais, dentro


das recomendações preconizadas pela economia doméstica. Com o adven­
to da acumulação flexível e a redução do papel do Estado, o SEBRAE e as
ONG’s também passaram a mobilizar o trabalho feminino, oferecendo pro­
gramações similares às EMATER’s, porém dirigidas para o empreendedo­
rismo, recomendando iniciativas vinculadas ao micro-crédito, economia
solidária e o ecoturismo.
A atuação do SEBRAE e das ONG’s estão em linhas gerais em conso­
nância com as orientações de Mohamed Yunus, teórico da economia soli­
dária e do micro-crédito em Bangladesh. Segundo o economista, o fomen­
to ao trabalho feminino é imprescindível para o desenvolvimento rural nas
áreas pobres, pois as mulheres estariam mais aptas a administrar os redu­
zidos recursos das populações de baixa renda. Em virtude de estarem fora
dos circuitos comerciais sempre foram excluídas das operações de crédito,
e ao receberem seus pequenos empréstimos, geralmente conseguem ser
bem sucedidas, inserindo-se rapidamente nos circuitos comerciais.
Yunus critica os manuais da teoria econômica, defendendo uma
controvertida tese onde todos são empreendedores, inclusive as mulheres
mais pobres, necessitando apenas de uma oportunidade para desenvolver
seu potencial para os negócios, em detrimento do ideário schumpeteria­
no, onde o empreendedor é uma pessoa especial e inovadora indispensável
para a expansão do desenvolvimento capitalista. No entanto, o “banqueiro
dos pobres”, como é conhecido Yunus, não menciona as formas de preca­
rização encontradas no empreendedorismo, como sobretrabalho familiar,
a ausência de proteção social e trabalhista e as elevadas taxas de juros pra­
ticadas nas operações de micro-crédito. Segundo SOJA (2003) e HARVEY
(2007), estes procedimentos mostram que o empreendedorismo feminino
não pode ser considerado como um movimento de emancipação do grupo,
mas apenas como mais um procedimento de fortalecimento da acumula­
ção flexível que caracteriza o desenvolvimento capitalista contemporâneo,
tanto no campo quanto na cidade.
Shanin (2008), ressalta as duras condições do trabalho feminino no
campo como responsáveis pela pressão que as mulheres exercem nos ho­
mens para migrarem com a família para as cidades. O sociólogo adverte
para o fato de que, as mulheres atraídas pelo trabalho doméstico urbano
realizado em condições menos adversas, ameaçam abandonar seus cônju­
ges colocando em risco a estabilidade familiar, caso não consigam migrar
para as cidades. O autor destaca a necessidade de não colocar em risco esta
estabilidade, como também assegurar direitos aos camponeses em relação
a mobilidade espacial, no momento que decidirem migrar para as cidades
ou quando optarem pelo retorno ao campo.
Procurando acrescentar a dimensão política, SAMPAIO e FLORES
(2002) mostraram a necessidade de incentivarem formas de empodera­

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mento dos agricultores familiares, do trabalho feminino e dos trabalhado­


res assalariados, que estão em desvantagem ou marginalizados pelos siste­
mas convencionais de comércio.
A questão do empoderamento passou a ser considerada relevante
para a valorização do trabalho feminino no campo, como mostra decisão
da Confederação Nacional de Trabalhadores da Agricultura (CONTAG),
determinando que 30% dos cargos das diretorias dos sindicatos filiados se­
jam obrigatoriamente preenchidas por mulheres provenientes de associa­
ções de agricultores familiares. Esta atitude está possibilitando uma mu­
dança na gestão das associações, na medida em que um número razoável
de mulheres está paulatinamente assumindo a direção destas organiza­
ções, prerrogativa anteriormente concedida somente aos agricultores do
sexo masculino.
O empoderamento realizado pela CONTAG, não ficou restrito ao
trabalho feminino, também tenta inserir a terceira idade, e ainda os jovens
agricultores, reservando 10% dos cargos de diretoria dos sindicatos filia­
dos para cada uma destas categorias. Estas medidas são importantes, prin­
cipalmente, para a cafeicultura, que possui uma das mais elevadas pro­
porções de agricultores idosos, em virtude dos jovens não se encontrarem
motivados para permanecerem no campo, e muitos considerarem penoso
o trabalho agrícola.
A utilização do trabalho infantil típico da organização camponesa,
principalmente na cafeicultura, é constatada em vários depoimentos de
alunos de escolas rurais, que declararam, colaborar nas tarefas familiares,
apanhando café, cuidando de irmãos, capinando, desbastando, enchen­
do vasilhas, varrendo a casa e fervendo o leite para fazer doces. Segundo
BINSZTOK (2002), estas atividades estão inseridas na lógica de produção
e da reprodução da unidade familiar camponesa, não podendo ser confun­
dida como exploração ou sobretrabalho infantil, comumente utilizado em
setores da atividade agrícola empresarial.
Em algumas cidades estão sendo implantados Programas de Erra­
dicação de Trabalho Infantil (PETI), com municípios formando conselhos
encarregados de proceder à fiscalização e punir os infratores. Estas práti­
cas estão desagradando os agricultores familiares que temem ser adverti­
dos ou punidos pela colaboração de seus filhos no trabalho agrícola. Do­
centes de escolas rurais alegam que o trabalho infantil no campo é penoso
e prejudica o rendimento dos alunos, reforçando a ação dos programas
de erradicação. Esta questão foi levantada também por DOLLFUS (1972),
quando analisava o envelhecimento e a significativa parcela de aposenta­
dos existentes na população rural européia, particularmente na França.
Os posicionamentos assumidos pela Organização Internacional do
Trabalho (OIT), pelo Programa da ONU para o Meio Ambiente (PNUMA)
e pela Comissão Econômica da América Latina (CEPAL), condenando de

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Acumulação flexível, precarização e empreendedorismo
no espaço agrário brasileiro

forma veemente o trabalho infantil no campo, também reforçaram os obs­


táculos para a continuidade do aprendizado dos jovens nas propriedades
dirigidas pelos seus familiares.
A necessidade de mobilizar jovens residentes nas áreas rurais para
as atividades agrícolas torna-se urgente na medida em que se constata pela
leitura dos dados censitários o rápido envelhecimento dos agricultores fami­
liares, como no caso da cafeicultura paulista, onde a idade média dos produ­
tores está atingindo a faixa dos 55 anos, colocando em risco a continuidade
deste importante setor, responsável pela geração de um elevado número de
empregos e expressivas parcelas de renda no espaço agrário brasileiro.
A acumulação flexível convive, também, com os setores que utili­
zam amplamente o trabalho escravo, contando inclusive com o apoio de
órgãos estatais, como a BR Distribuidora, que adquire álcool de destilarias
incluídas na “lista suja” elaborada pelo Ministério do Trabalho e do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que finan­
cia frigoríficos denunciados pelo incentivo ao desmatamento na fronteira
agrícola da Amazônia e pelo emprego de trabalhadores em regime de tra­
balho forçado. Estas empresas, como as destilarias, assinaram e não cum­
priram o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, elaborado
pelo Instituto Ethos de Responsabilidade Social, conseguindo desta forma,
serem atrativas pelos preços competitivos ofertados aos seus clientes, pos­
sibilitando a reprodução do capital ampliado dos empreendimentos envol­
vidos nestas transações.
O fato comprova a fragilidade das ONGs encarregadas de conceder
o denominado “selo verde”, incapazes de enfrentar as pressões exercidas
pela aliança entre o Estado e os grandes grupos empresariais nacionais
e estrangeiros. Esta situação revela questionamentos sobre os fundamen­
tos da sustentabilidade social e ambiental dos programas governamentais,
como dos biocombustíveis, lançado recentemente no país.
A erradicação do trabalho escravo e infantil, a eliminação das dis­
criminações de raça, gênero e religião, preservação da saúde e do meio-
ambiente, respeito aos direitos trabalhistas, identidades históricas e cultu­
rais, locais e regionais, são proposta enunciadas pelo comércio justo, ético
e solidário. Atuando também, sobre questões relativas à gestão do processo
produtivo, como a eliminação da intermediação comercial especulativa,
garantia de pagamento justo aos pequenos produtores, estímulo à criação
de associações e cooperativas e de instrumentos destinados à obtenção de
informações difundidas para todos os atores envolvidos.

Empreendedorismo
Analisando a trajetória do comércio justo e solidário, GRÜNINGER
e URIARTE (2002), mostraram a origem do chamado fair trade, revelando

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que a partir na década de 60, mobilizou-se grupos de europeus e norte-


americanos pertencentes à instituições filantrópicas e de consumidores,
com o objetivo de auxiliar comercialmente pequenos produtores pobres e
isolados.
Estes autores destacaram a falta de oportunidades econômicas dos
pequenos produtores de países pobres em relação ao acesso ao capital,
mercados e informação, como também a sua vulnerabilidade às flutuações
de preços e a apropriação de grande parte do seu trabalho pelas redes de
intermediários locais e internacionais, segundo pesquisas realizadas por
ABRAMOVAY (1992). O quadro retrata com fidelidade a problemática dos
agricultores familiares dedicados, principalmente à cafeicultura em todo
o país.
O comércio justo pode ser visto ainda como uma parceria entre pro­
dutores e consumidores que trabalham para ultrapassar as dificuldades
enfrentadas pelos primeiros, para aumentar o seu acesso ao mercado e
para promover o processo de desenvolvimento sustentado.
O movimento para implantação do comércio justo e da economia
solidária no país nos anos 80 foi organizado pelos setores progressistas da
Igreja Católica, preocupados com o avanço do desmatamento, com a con­
taminação da água e dos solos pelos agrotóxicos e também pela prolifera­
ção de doenças decorrentes das precárias condições de saneamento básico
das comunidades rurais. As lideranças deste movimento decidiram investir
no fortalecimento dos agricultores familiares como forma de preservar a
biodiversidade, incentivando práticas de agricultura orgânica e de procedi­
mentos alternativos de saúde pública, com o objetivo de contribuir para o
aumento da qualidade de vida e da geração de trabalho e renda do campo.
Visando efetivar estas propostas, lideranças comunitárias religiosas
articularam-se com constituições católicas internacionais de ajuda aos paí­
ses pobres, como a MISEROR da Alemanha e a CAFOD da Inglaterra, con­
seguindo obter recursos a fundo perdido para o financiamento de ONG’s
e de projetos especiais destinados ao fomento da agricultura orgânica, do
comércio justo e da economia solidária em diferentes comunidades rurais
do país.
Segundo o Centro para o Desenvolvimento Global (CGD), uma or­
ganização de estudos privados de Washington, que elabora o Índice de
Compromisso do Desenvolvimento, a cooperação internacional está se am­
pliando com a Holanda, seguida da Dinamarca, Suécia, Noruega, Nova
Zelândia, Austrália e Finlândia, na liderança dos países que mais colabo­
raram com as áreas pobres na redução das desigualdades comerciais e nas
iniciativas de proteção ao meio ambiente em 2006, tornando-se incentiva­
dores e parceiros do comércio justo e solidário.
Para esta instituição, apesar da melhoria do compromisso dos paí­
ses ricos em ajudar o comércio igualitário, os subsídios concedidos por

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Acumulação flexível, precarização e empreendedorismo
no espaço agrário brasileiro

exemplo pela Suíça investindo U$ 1000,00 anuais na manutenção de uma


vaca e U$ 140,00 anuais na manutenção de um suíno e somente U$ 0,61
concedido a uma pessoa pobre nas áreas em desenvolvimento, colaboram
para permanência dos obstáculos para o funcionamento do comércio justo
e solidário.
Estes procedimentos mostram que apesar propostas igualitárias, as
relações do comércio justo ainda se apresentam assimétricas, pois enquan­
to representantes dos consumidores europeus visitam com freqüência as
áreas produtoras, os agricultores brasileiros raramente entram em contato
com países estrangeiros. Com o objetivo de aperfeiçoar o funcionamento
do setor, as lideranças estão criando a Articulação Nacional de Produtores
do Comércio Justo e Solidário com sede em Brasília, visando a elaboração
do Sistema Nacional de Comércio Justo. A exportação somente é atrativa
para o comércio justo quando os preços do mercado interno estão em que­
da, em caso contrário esta opção precisa ser rapidamente reformulada.
A economia solidária, o comércio justo e a agricultura orgânica es­
tão em linhas gerais acompanhando os movimentos contraditórios e desi­
guais, preconizados por OLIVEIRA (1993), caracterizando o desenvolvi­
mento capitalista no espaço agrário brasileiro. De um lado, as iniciativas
realizadas pelas entidades filantrópicas e organizações progressistas volta­
das principalmente para o resgate de práticas camponesas, como o traba­
lho solidário e a valorização do saber tradicional. De outro, verificamos o
envolvimento dos agricultores familiares com grandes corporações multi­
nacionais, utilizando técnicas de marketing em parceria com corporações
como a Cia. Cacique de Café Solúvel, maior exportadora mundial do pro­
duto, que adquire parte da produção de cooperativas, reeditando antigos
métodos utilizados pelo capital monopolista industrial, na apropriação da
renda do trabalho familiar.
A apropriação do trabalho familiar, realizado pelas grandes corpora­
ções, na cafeicultura orgânica, reproduz o Complexo Agroindustrial (CAI),
mostra que o capital empresarial não está interessado em expropriar a ter­
ra dos pequenos produtores, e sim explorar seu trabalho, por intermédio
da fixação de preços mínimos para adquirir o produto, confirmando os es­
tudos de OLIVEIRA (1993) e MARTINS (1980).
O interesse das grandes corporações em participar da agricultura
orgânica e do comércio justo no país (não se restringe somente a Cia. Caci­
que de Café Solúvel) é ainda observado pela presença do Grupo Odebrecht,
que atua junto aos agricultores familiares no Programa de Desenvolvimen­
to Integrado e Sustentável do Baixo Sul da Bahia. Esta iniciativa obteve o
apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que exige o en­
quadramento da produção às exigências de Certificados, como ISO 9000,
ISO 14000, S.A 8000 e 750.500, inacessíveis a realidade da grande maioria
dos agricultores familiares do país. Estas exigências somente podem ser

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cumpridas somente pelas grandes corporações, que por intermédio destes


certificados conseguem se apropriar de grande parte da renda gerada pelos
agricultores familiares.
A atuação das grandes corporações na cafeicultura orgânica, coloca
em risco a permanência dos agricultores familiares nos enfrentamentos
destas crises, pois, são instituições altamente capitalizadas que obedecem
à lógica empresarial, e podem de forma abrupta encerrar suas atividades,
transferindo-as para setores e locais mais lucrativos, ao contrário dos agri­
cultores familiares que não possuem estas opções para o enfrentamento
das periódicas crises com que se defronta a agricultura. No entanto, as
grandes corporações, em função dos elevados custos, não conseguem ser
mais resistentes que os agricultores familiares às sucessivas crises sofridas
pela cafeicultura no país.

Considerações finais
As iniciativas do empreendedorismo orgânico e do comércio justo
realizadas pelos agricultores familiares, apesar de surgirem no contexto do
processo de acumulação flexível e do trabalho precarizado, são importan­
tes para a preservação da biodiversidade, constituindo-se em alternativas
para conter a expansão predatória dos recursos naturais. No entanto, exis­
tem problemas que dificultam o pleno desenvolvimento destas propostas,
como: dificuldades de inserção no mercado em virtude de fragilidades ge­
renciais; baixa competitividade e produção em escala reduzida.
Estes agricultores sofrem bloqueios impostos pelas tradicionais ca­
deias de comercialização, onde prevalecem verdadeiros cartéis atuando na
fixação de preços dos produtos agrícolas. A persistência destes obstáculos
contribui para que um expressivo contingente de produtores orgânicos,
abandonem paulatinamente este nicho de mercado e ingresse no Comple­
xo Agro-Industrial (CAI), subordinando-se aos interesses das grandes redes
monopolistas da produção agrícola. Observamos que somente os agricul­
tores mais conscientizados e realmente preocupados com a qualidade dos
alimentos para a saúde humana, apesar das dificuldades permanecem na
cadeia da produção orgânica, onde inclusive os canais de comercialização
dos produtos são realizados pelas cooperativas convencionais.
A recente expansão do CAI, pode ser observada quando verifica­
mos que corporações, como a Aracruz Celulose, iniciaram a formação de
uma rede de produtores integrados, mobilizando agricultores familiares,
quilombolas e grupos indígenas, localizados no norte do Espírito Santo,
para o plantio de eucaliptos em pequenas propriedades com a finalidade
de abastecer a unidade de processamento industrial da empresa. O referi­
do procedimento mostrou como a corporação reagiu às pressões exercidas
pela rede dos movimentos ambientalistas locais, socializando, entre os pe­

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Acumulação flexível, precarização e empreendedorismo
no espaço agrário brasileiro

quenos produtores, seu grande passivo ambiental obtido pela degradação


dos recursos naturais provenientes da exploração indiscriminada de suas
terras pela monocultura do eucalipto.
Recentemente, notamos movimentos que sinalizam novas reestru­
turações produtivas no campo, ressignificando, inclusive, a lógica de pro­
dução camponesa. No campo internacional, que poderá provocar impac­
tos no país, como no caso da UNILEVER, que decidiu não adquirir ovos
oriundos de produtores do Leste Europeu, para a industrialização de sub­
produtos. A empresa determinou que as aves não fossem confinadas, obe­
decendo às recomendações da Organização Mundial do Comércio (OMC),
visando a adoção de práticas sobre “dieta satisfatória” e redução de “estres­
se” dos animais. Estas medidas procuram aparentemente demonstrar que
o bem-estar dos animais aumenta a qualidade dos alimentos.
A Humane Society International estima que, em 2007, 63 bilhões de
animais foram criados para consumo humano, com o Brasil, China e Índia
tendo sido denunciados em virtude de utilizarem sistemas inadequados
de processamento de aves e suínos. Estas medidas, segundo depoimentos
de técnicos nacionais e internacionais, mostram um determinado tipo de
vínculo entre as recomendações da OMC para o bem-estar animal e a for­
mação de discretas barreiras comerciais, erguidas, principalmente, pelos
países da União Européia.
O trabalho precarizado, a informalidade e o empreendedorismo po­
dem também ser considerados, formas de enfrentamento para os dese­
quilíbrios proporcionados pelo desemprego estrutural, determinado pelo
processo de acumulação flexível, contraditoriamente, o significativo con­
tingente populacional envolvido nestas atividades, consegue auferir algum
tipo de renda, escamoteando desta forma, os resultados das políticas de ge­
ração de emprego no país, na medida em que os produtores inseridos nesta
categoria não figuram como desempregados nas estatísticas oficiais.

Referências:
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Hucitec – Ampocs – SP/RJ/Campinas: Editora da Unicamp.
BINSZTOK, Jacob. Cacoal: Campesinato e Cafeicultura na Fronteira Agrí­
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198-200
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GRAZIANO DA SILVA, José. O novo rural brasileiro. Revista Nova Econo­
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Jacob Binsztok

GRÜNINGER, B.; URIARTE, A.(2002) Fair Trade: Uma Introdução e Al­


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LOPES, Ignez Vidigal e ROCHA, Daniela de Paula. Agricultura Familiar:
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LUXEMBURG, R. (1976). Acumulação do Capital. RJ: Zahar Editores.
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SAMPAIO,F; FLORES, M. (2002). Comércio Ético e Solidário e Agricultura
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SHANIN, Teodor, in: Campesinato e territórios em disputa. PAULINO, E.
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2008. v. 01. 496 p.
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A agricultura familiar no contexto
do rural contemporâneo

Prof. Dr. Luciano Zanetti Pessôa Candiotto


UNIOESTE, campus de Francisco Beltrão | lucianocandiotto@yahoo.com.br

Introdução
O debate acadêmico em torno da “agricultura familiar” vem sendo
intenso, sobretudo a partir da década de 1990, momento em que o gover­
no federal brasileiro reconhece, na esfera político-institucional, a relevân­
cia das unidades de produção familiares, e, influenciado por experiências
européias, bem como pelas transformações socioespaciais decorrentes da
disseminação e incorporação de técnicas avançadas no campo – refletidas
na redução da oferta de emprego na agricultura e pecuária – passa a evi­
denciar novas funções para o rural brasileiro.
Apesar da atualidade do uso do termo agricultura familiar, esta está
profundamente influenciada ao debate clássico em torno da questão agrá­
ria no mundo. A origem do termo agricultor familiar remonta ao campo­
nês, uma categoria social existente desde o feudalismo, que para alguns
autores permanece atual, e para outros, se encontra ultrapassada e distan­
te da realidade brasileira. Entendemos que, independente do uso do termo
camponês, pequeno produtor, minifundiário, produtor familiar ou agricul­
tor familiar, o que mantém atualizado o debate sobre essa categoria social
é o fato desses agricultores persistirem na grande maioria dos países do
mundo, adaptando-se ou resistindo ao capitalismo.
São suas características singulares de posse da terra, trabalho e gestão
familiar que fazem da agricultura familiar uma categoria social com possibi­
lidades de maior autonomia, e, portanto, de relevante interesse para análises

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A agricultura familiar no contexto do rural contemporâneo

acadêmicas, seja da Geografia, Sociologia, Economia, Antropologia, entre


outras ciências. A crescente importância do agricultor familiar nas discus­
sões sobre segurança alimentar, sustentabilidade ambiental, reforma agrá­
ria e desenvolvimento rural, amplia os interesses de estudantes, professores,
pesquisadores, e demais profissionais envolvidos com a questão agrária.
Novos temas surgem para estudo da agricultura familiar, como a
agroecologia, a multifuncionalidade dos territórios rurais e a pluriativida­
de. Tais assuntos provocam novos questionamentos e reflexões em torno
da agricultura familiar, remetendo os pesquisadores, à reformulação de
teo­rias, proposição de conceitos e intensificação de estudos empíricos.
Nesse sentido, este texto procura discorrer sobre o conceito de agri­
cultura familiar, apontando visões acerca do conceito e relacionando-o ao
conceito de camponês. Considerando que na Geografia Agrária brasileira
há uma diferenciação entre esses dois conceitos, procuramos aqui apre­
sentar elementos que fundamentam tal diferenciação e, refletir sobre as­
pectos que caracterizam o agricultor familiar no Brasil, com base no PRO­
NAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar).

Agronegócio e agricultura familiar


De forma geral e simplificada, o debate em torno dos atores rurais
na atualidade se dá por meio de uma polarização entre dois grandes mode­
los de organização da agricultura que, apesar de serem apresentados como
antagônicas, vem se combinando de formas diferenciadas no espaço geo­
gráfico. De um lado, temos o denominado agronegócio, caracterizado pela
tecnicização e predomínio das relações capitalistas no campo, e de outro,
a chamada agricultura familiar, marcada pela junção entre posse/proprie­
dade de pequenos lotes de terra, trabalho e gestão familiar e, predomínio
de atividades agropecuárias no trabalho e na renda da família.
Segundo Elesbão (2006), o agronegócio provém do modelo de organi­
zação patronal, onde toda a produção agropecuária é direcionada à expor­
tação. Já a agricultura familiar, tem como principal objetivo a sobrevivên­
cia da família rural, seja através da produção agropecuária para consumo
próprio, seja com a comercialização dos excedentes produzidos na unidade
familiar. Para Muñoz, Nodari e Zanella (2006, p. 139), “não há como não re­
conhecer a dicotomia que ocorre quando se pensa no desenvolvimento agrí­
cola brasileiro. Duas realidades se distinguem e se contrapõem em quase
todas as dimensões: o agronegócio e a agricultura familiar.”

[...] o agronegócio é um modelo de agricultura capitalista, onde os grandes


latifúndios são utilizados para uma produção em larga escala com o pro­
pósito de atingir o mercado internacional. O modelo de desenvolvimento
do agronegócio não incorpora mudanças sociais em sua base, pelo contrá­

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Luciano Zanetti Pessôa Candiotto

rio, ele tende a agravar o processo de exclusão social e do meio ambiente,


através do uso de tecnologias que degradam os recursos naturais. (MUÑOZ,
NODARI­E ZANELLA, 2006, p. 139)
Apesar de concordarmos com a existência dessa polaridade entre
agronegócio e agricultura familiar, não vemos essas duas realidades como
contrapostas, pois é visível a incorporação de técnicas e métodos de cultivo
e manejo agropecuário provenientes do agronegócio, por parte de diversas
unidades produtivas familiares. Como exemplo, tem-se a integração dos
agricultores familiares com grandes agroindústrias, para a criação de aves,
suínos, leite, fumo, entre outros produtos. Desta forma, não podemos ne­
gar que o agronegócio vem influenciando as atividades e o modo de vida
familiar e, que há uma tendência de ampliação desta influência.
No entanto, essa divisão não deixa de ser salutar, pois historicamen­
te, a agricultura patronal e o agronegócio foram priorizados nas políticas
públicas brasileiras, enquanto a agricultura familiar, até a década de 1990,
foi considerada símbolo de atraso e de algo que deveria ser superado pela
modernização da agricultura e pela industrialização e urbanização do Bra­
sil. É somente a partir da década de 1990, que a agricultura familiar passa
a ser reconhecida como categoria social importante para o país.

Estudos clássicos e reflexões sobre o campesinato


Apesar do longo período de existência do camponês, que remonta o
feudalismo, o debate teórico em torno do papel do campesinato e/ou das uni­
dades de produção familiares, teve início na Europa no final do século XIX.
Impulsionados pelas reflexões e proposições sobre o modo de produção capi­
talista, presentes nas obras de Marx, dois autores (e militantes políticos) pro­
curaram interpretar a dinâmica agrária e, especificamente o campesinato.
Lênin, com sua obra “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia”,
e Kautsky, com “A questão agrária”, ambas publicadas em 1899, debru­
çaram-se respectivamente sobre a situação do campesinato na Rússia e
Alemanha, no sentido de analisá-las com o aporte teórico do marxismo e
avançar no debate em torno do campesinato.
Marx, que mesmo concentrando-se na definição e explicação de duas
categorias-chave: proletário e proletariado, chega a considerar o camponês
e faz referência a este. Contudo, entende que o mesmo será indubitavel­
mente transformado em proletário ou proletariado, conforme sua inserção
nas relações capitalistas.

[...] o artesão ou camponês que produz com seus próprios meios de produção, ou
será transformado gradualmente num pequeno capitalista que também explora
o trabalho alheio, ou sofrerá a perda de seus meios de produção e será transfor­
mado em trabalhador assalariado. (MARX apud ABRAMOVAY, 1992, p.35).

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A agricultura familiar no contexto do rural contemporâneo

Enquanto Lênin concentrou-se na idéia de diferenciação social do


campesinato, sugerindo seis classes para o camponês, Kautsky eviden­
ciou o papel da inserção da grande exploração capitalista (industrializa­
ção da agricultura) como determinante para a futura e inevitável extinção
do campesinato. Engels também foi outro pensador que, ao interpretar o
campesinato na França e na Alemanha e a expansão da forma capitalista
de produção na pequena exploração agrícola, condenou o campesinato ao
desaparecimento.
Um aspecto em comum nos estudos de Lênin, Kautsky e Engels foi
a utilização de uma fundamentação teórica pautada em premissas do mar­
xismo, principalmente em relação ao método de pesquisa, que partia de
elementos gerais (macroestruturais) para a explicação de fenômenos loca­
lizados. No caso da agricultura, a tendência de tecnicização e industriali­
zação da mesma seria um fator preponderante em relação às escolhas das
famílias camponesas. Portanto, a penetração do modo de produção capita­
lista na agricultura era um fenômeno incontestável e, consequentemente,
o modo de vida camponês estaria fadado ao desaparecimento.
Durante o século XX, surge outra corrente para a interpretação
do campesinato, que evidenciava os conhecimentos e a racionalidade do
camponês considerando sua função social. Os principais expoentes des­
sa corrente, baseada na valorização das dinâmicas internas da unidade e,
consequentemente, nas decisões tomadas pela família camponesa, foram
Chayanov, Tepicht e Shanin. Entre as obras clássicas do pensamento sobre
o campesinato, “La organización de la unidad económica campesina”, publi­
cada em 1976 por Chayanov, é referência fundamental.
Segundo Sampaio (2002, p. 2), os chamados Chayanovianos formam
uma “corrente pautada na dinâmica interna da agricultura camponesa e
das comunidades na qual ela se insere, no sentido de perceber os mecanis­
mos fundamentais da reprodução e preservação do grupo”.
Apesar de fazer referência às influências externas (macroestrutu­
rais) no campesinato, Chayanov entende que as variáveis internas à unida­
de familiar (microestruturais) são fundamentais para explicar a economia
camponesa, principalmente a composição da família e suas decisões sobre
a quantidade de trabalho a ser despendida e as necessidades de consumo
de seus membros. Chayanov apud. Lamarche (1993) define os seguintes
princípios do modelo camponês: a) há inter-relação entre a organização
da produção e as necessidades de consumo; b) o trabalho é familiar e não
pode ser avaliado em termos de lucro; c) os objetivos da produção são os
de produzir valores de uso e não valores de troca.
Chayanov atribui diferenças entre a unidade de produção familiar
agrícola e a capitalista, de modo que na unidade de produção familiar
agrícola não há apropriação de trabalho alheio à família para a produção.
(SAMPAIO, 2002).

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A unidade econômica familiar deve ser vista como um conjunto indissociá­


vel, no qual o trabalho, a terra e o capital são variáveis dependentes. A famí­
lia camponesa para Chayanov, não contrata mão-de-obra fora, possui seus
próprios meios de produção e, às vezes precisa empregar parte de sua força
de trabalho em atividades não agrícolas. (WILKINSON, 1986, p.47).

Na visão de Chayanov, a inexistência do trabalho assalariado foi


central para a predominância da economia camponesa não capitalista,
pois ao se contratar trabalho, uma lógica capitalista penetraria na uni­
dade familiar. Entretanto, fundamentado em seu conhecimento empírico,
Chayanov percebe que nos períodos de maior necessidade trabalho, como
nas épocas de plantio e colheita, é comum a contratação temporária de
diaristas na economia camponesa. A contratação desse diarista esporádico
deveria ser separada da contratação permanente de trabalho assalariado.
Assim, Chayanov apud. Wilkinson (1986) sugere uma distinção entre tra­
balho contratado para auxiliar o trabalho familiar e trabalho contratado para
produzir lucro.
Apesar de enfatizar as dinâmicas internas à unidade camponesa,
Chayanov mostra-se atento e até pessimista em relação ao futuro dos cam­
poneses, em virtude da crescente concentração das atividades agrícolas
nas mãos das grandes empresas, através do capital financeiro. Ao relatar a
dependência do camponês em relação ao processo de comercialização e ao
capital financeiro, Chayanov apud. Wilkinson (1986, p. 62), aponta:

A máquina comercial começa a interferir diretamente na organização da


produção. Ela dita as condições técnicas, fornece sementes e fertilizantes,
determina os sistemas de rotação e converte seus fornecedores em executo­
res técnicos de seus objetivos e de seu plano econômico. [...] a agricultura é
transformada num sistema econômico concentrado nas mãos de uma série
de grandes empresas, através das quais ela é integrada às mais avançadas
formas do capital financeiro.

Outro autor de suma importância nos estudos sobre o campesinato


foi Tepicht, que concentrou sua análise no campesinato polonês. Segun­
do Sampaio (2002, p. 3), Tepicht descreve o caráter familiar da economia
camponesa, através de características como o coletivismo interno, o indi­
vidualismo externo, a subordinação dos integrantes ao interesse da peque­
na empresa familiar e a noção de patrimônio familiar. Para Tepicht apud.
Abramovay (1992), o campesinato tem as seguintes características univer­
sais: a) unidade indissolúvel entre empreendimento agrícola e a família; b)
uso intensivo de trabalho; c) natureza patriarcal da organização social.
Sampaio (2002) destaca outro pensador relevante para os estudos
sobre o campesinato, que foi Shanin. Em 1980, Shanin introduziu uma
dimensão política ao conceito de camponês e atribuiu as seguintes carac­
terísticas ao campesinato: a) a unidade familiar é a unidade básica multi­

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A agricultura familiar no contexto do rural contemporâneo

funcional de organização social; b) trabalho e terra aliado a criação de ani­


mais são os principais meios de subsistência; c) cultura tradicional ligada
ao modo de vida das pequenas comunidades rurais; d) sujeição multidire­
cional a poderes exteriores1.
De forma geral, independente da matriz de interpretação do campe­
sinato, os autores clássicos da questão agrária afirmam que a ampliação
e intensificação das relações capitalistas no campo tendem a provocar a
extinção do campesinato. Apesar disso, existe toda uma heterogeneidade
no que diz respeito às unidades de produção familiares e as comunidades
camponesas no mundo, haja vista que estas variam conforme a localiza­
ção geográfica e diferenciam-se segundo critérios políticos, econômicos,
socioculturais, ambientais, institucionais e normativos. Tais critérios, por
sua vez, modificam-se conforme o tempo histórico, e influenciam/transfor­
mam a dinâmica territorial, numa relação dialética.
Como vimos acima, o termo camponês carrega consigo toda uma
trajetória histórica de lutas e resistência de uma classe social frente a ex­
ploração da terra e da força de trabalho no campo dentro do modo de
produção capitalista. Essa historicidade do campesinato e a defesa de um
“Paradigma da Questão Agrária” em contraposição ao chamado “Paradig­
ma do capitalismo agrário”, incentiva muitos autores [Oliveira (1991), Fer­
nandes (2010), Bombardi (2003), Fabrini (2004), Fernandes e Leal (2002),
entre outros] a continuarem utilizando o camponês como categoria social
viável para explicação dos fenômenos contemporâneos no campo.
Além do conceito de camponês, outras denominações foram criadas
e utilizadas com o objetivo de evidenciar uma categoria social marcada
pelo vínculo entre família, trabalho eminentemente agrícola (com agricul­
tura de subsistência), propriedade da terra e dos meios de produção. Uma
dessas denominações é a de “Agricultura Familiar”, utilizada em vários
paí­ses, e muito difundida no Brasil a partir da década de 1990, especial­
mente pelos órgãos governamentais (federal, estadual e municipal), e con­
sequentemente, no meio acadêmico e no senso comum.
Para Fernandes (2010) a figura do camponês e a utilização deste ter­
mo estariam ligados aos entusiastas do “Paradigma da Questão Agrária”,
onde a Reforma Agrária seria o principal objetivo a ser alcançado pelos
camponeses, através da luta pela terra e pela permanência no campo. Os
camponeses, apesar de vivenciarem relações capitalistas, buscariam resis­
tir ao modo de produção capitalista e, os acampamentos e assentamentos
rurais fruto da luta dos movimentos sociais do campo, representariam os
territórios camponeses. Já os agricultores familiares representariam o “Pa­
radigma do Capitalismo Agrário”, pois a institucionalização da “agricul­
tura familiar” nas políticas públicas do Governo Federal brasileiro teria

1
Percebe-se aqui, uma evidência à questão cultural, bem como à subordinação dos camponeses.

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como objetivo intensificar e otimizar a inserção dos pequenos agricultores


em mercados e, consequentemente em relações capitalistas.
Assim, alguns autores defensores da resistência camponesa ao capi­
talismo, rechaçam a utilização do termo agricultura familiar, por entender
que a simples menção ao termo conduz a uma aceitação e até adoção do
“Paradigma do Capitalismo Agrário”.

Campesinato ou agricultura familiar?


Historicamente, a unidade de exploração familiar e sua manutenção
tiveram importância estratégica em lutas políticas e sociais. No entanto,
tanto os estudos clássicos de Kautsky, Lênin e Chayanov, como as publi­
cações mais recentes sobre o Brasil, enfatizam a situação de miséria e su­
perexploração dos camponeses frente à lógica do modo de produção capi­
talista. Apesar desta superexploração do trabalho agrícola familiar, existe
também uma história de resistência por parte dos camponeses/agriculto­
res familiares.
Na análise de Marafon (2006), existem duas posições em torno da
produção familiar, sendo a centrada na categoria Agricultura Familiar, e a
que preconiza a atualidade e eficácia do conceito de campesinato. Segun­
do Germer apud Marafon (2006), a denominação de agricultura familiar,
popularizada no Brasil a partir da década de 1990, deriva da concepção
norte-americana de produção familiar, na qual o chamado produtor “fa­
miliar” representava o pequeno produtor ousado, o pequeno industrial
inovador. Já a noção de campesinato, deriva da concepção européia de
produção familiar baseado em Chayanov, no qual a produção familiar é
vista como dotada de uma lógica própria e capaz de resistir à transforma­
ção capitalista.
Sampaio (2002), afirma que para a compreensão da agricultura fa­
miliar, é importante estudar as formas de produção e reprodução da mesma.
A autora considera que o conceito de agricultura familiar absorve con­
ceitos anteriores como campesinato e produtor familiar, pois a agricultu­
ra familiar engloba traços predominantes da agricultura camponesa que
permanecem, como a organização do trabalho predominantemente fami­
liar e a relação com a terra como meio de trabalho. Portanto, a agricultura
camponesa seria “uma das formas sociais da agricultura familiar”. (SAM­
PAIO, 2002, p. 2). Assim, a agricultura camponesa seria parte da agricul­
tura familiar.
Para Lamarche (1993), a exploração camponesa é familiar, mas nem
todas as explorações familiares são camponesas. Portanto, em sua visão,
o campesinato está inserido nas explorações familiares, pois estas podem
apresentar outras formas de organização e outros objetivos distintos dos
do camponês. Para o camponês, o fundamental é garantir a sobrevivência

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A agricultura familiar no contexto do rural contemporâneo

e certo conforto para família, enquanto por outro lado, existem explora­
ções familiares que visam eminentemente lucro, e atuam por meio de di­
versas relações capitalistas com os mercados2.
Hespanhol e Costa (2002) colocam que, nas diversas conceituações
sobre agricultura familiar, há em comum o vínculo existente entre traba­
lho, terra e família. Carneiro (1999), também destaca que, apesar das di­
vergências na definição de agricultura familiar, há um consenso sobre a
ligação entre trabalho, terra e família na unidade de produção.
Lamarche (1993) e Wanderley (1996) apud Hespanhol e Costa (2002),
entendem que a agricultura familiar é extremamente genérica, e não deve
ser considerada uma categoria social recente, mas sim o resultado de um
processo de continuidade em relação aos camponeses e outros tipos tradi­
cionais de produção familiar. Assim, os autores vêem a agricultura familiar
como uma forma de produção camponesa.
Em contrapartida, Veiga (1991) e Abramovay (1992) apud Hespa­
nhol e Costa (2002), entendem que a agricultura familiar contemporânea é
resultado do processo de modernização da agricultura, e consequentemen­
te, consiste numa ruptura com formas tradicionais como o campesinato.
Segundo Abramovay (1992, p.21), “uma agricultura familiar, altamente in­
tegrada ao mercado, capaz de incorporar os principais avanços técnicos e
de responder às políticas governamentais não pode ser nem de longe ca­
racterizada como camponesa”.
Já Fernandes (2010), Fabrini (2004), Bombardi (2003) e outros geó­
grafos, atribuem um papel de destaque para o conceito de camponês, ao
entender que o conceito de agricultor familiar vem sendo disseminado e
utilizado para justificar a ampliação da lógica mercantil/empresarial no
campo. Para Fernandes e Leal (2002), os teóricos da agricultura familiar,
como Abramovay e Veiga, apresentam uma série de argumentos e elemen­
tos para diferenciar o agricultor familiar do camponês, como a integração
ao mercado, o papel determinante do Estado no desenvolvimento de po­
líticas públicas e a incorporação de tecnologias. Fernandes e Leal (2002)
ainda apontam que os defensores de uma agricultura familiar moderna e
inserida na lógica mercantil têm construído a compreensão e a percepção
que o camponês representa o velho e o atraso, enquanto o agricultor fami­
liar traduz o novo, o progresso.
Assim como Fernandes, Bombardi (2003) reafirma o uso do con­
ceito de camponês, ao entender que o termo agricultura familiar está as­
sociado à idéia de que estes são pequenos empresários do setor agrícola,
2
Em amplo estudo empírico realizado em vários países com o apoio de diversos pesquisado­
res, Lamarche (1993), determinou diferentes formas de agricultura familiar em relação ao
grau de dependência do mercado e ao peso da família na lógica de funcionamento da explo­
ração, tendo como resultado, quatro modelos: empresa agrícola, empresa familiar, agricultura
camponesa/de subsistência, e agricultura familiar moderna.

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estando eles altamente integrados ao mercado. Apesar de considerar que o


campesinato se reproduz no interior do capitalismo e é uma classe social
também deste modo de produção, a autora aponta que, para o camponês,
predomina outro universo de valores, onde os laços de solidariedade são
extremos, de modo que predomina a coletividade sobre os individualis­
mos3. Segundo Bombardi (2003), a racionalidade econômica predominan­
te e adotada por diversos agricultores familiares, não faz parte dos valores
morais do camponês, apesar deste participar de relações capitalistas há
muito tempo. Consequentemente, a incorporação da lógica economicista/
mercantil, teria poucas contribuições para a afirmação e expansão da au­
tonomia das unidades familiares.
Fabrini (2004) apresenta uma interessante síntese da abordagem em
torno do campesinato, e afirma que “o que está colocado na discussão sobre
o campesinato é a sua participação enquanto sujeitos sociais na construção
de sua autonomia e libertação da subordinação ao sistema capitalista de
produção” (p. 129). Nesse sentido, entendemos que a possibilidade de ter al­
guma autonomia frente o sistema capitalista é uma característica potencial
dos camponeses e, de certa forma, também dos agricultores familiares, pois
estes costumam ser proprietários de suas terras, dependem de mão de obra
familiar e são responsáveis pela gestão de seus estabelecimentos rurais.
Apesar da preferência pelo conceito de camponês e dos questiona­
mentos às políticas públicas de apoio à agricultura familiar, Fernandes e
Leal (2002), não condenam o uso do conceito de agricultura familiar como
sinônimo ao conceito de camponês. Assim, a crítica desses autores, resi­
de na recente adoção do governo federal (a partir de 1996) do conceito de
agricultura familiar, e na perspectiva de incorporação desses agricultores
ao agronegócio e a uma lógica empresarial, fato que certamente tende a
reduzir a autonomia da agricultura familiar, aspecto tão importante no de­
bate sobre a questão agrária. Desta forma, conforme mostra Felício (2006,
p. 28), para esses autores vinculados ao fortalecimento da autonomia do
campesinato/agricultura familiar, chamado por Fernandes de paradigma
da questão agrária,

[...] não há diferença entre agricultor familiar e camponês, pois, ambos são
assim definidos por terem a família e o trabalho familiar por característica,
pois, ao mesmo tempo em que a família é proprietária dos meios de produ­
ção, assume o trabalho no estabelecimento produtivo.

Na visão de Fernandes (2010), atualmente o maior diferencial do


camponês em relação ao agricultor familiar, reside em sua organização

3
Fabrini (2004) reforça essa questão da solidariedade camponesa, ao colocar que muitas de
suas ações comunitárias “não são ações caracterizadas por vínculos ideológicos e políticos,
mas pela solidariedade entre as pessoas”. (p. 132).

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A agricultura familiar no contexto do rural contemporâneo

coletiva e na luta pela terra. Portanto, os movimentos sociais do campo,


com destaque para o MST, seriam o foco da existência (e resistência) cam­
ponesa.
Assim como Sampaio e Lamarche, Marafon (2006) entende que a
agricultura familiar é um conceito genérico e o campesinato correspon­
de a uma das formas da agricultura familiar. Dentro desse debate sobre
a atualidade ou não do uso do termo camponês, amplamente substituí­
do pelo agricultor familiar, concordamos com Hespanhol e Costa (2002) e
com Sampaio (2002), ao colocarem que a agricultura familiar é um con­
ceito fundamentado no campesinato, mas que evoluiu e foi modificado
com base em acontecimentos históricos. Desta forma, optamos pelo uso do
conceito de agricultura familiar, não como aceitação da transformação do
camponês e do agricultor familiar em empresários e empregados do agro­
negócio, mas em virtude da constatação apontada por Sampaio (2002),
Marafon (2006), entre outros, de que o conceito de agricultura familiar
engloba os camponeses e outros tipos de agricultores, que apesar de esta­
rem inseridos nos mercados e em relações capitalistas, tem como caracte­
rísticas definidoras o vínculo entre trabalho, terra e família. [Hespanhol e
Costa (2002), Carneiro (1999)].
Nesse sentido, considerando o contexto de heterogeneidade que per­
meia as Unidades de Produção e Vida Familiares (UPVF’s), temos desde
aqueles agricultores familiares inseridos nos mercados e com forte racio­
nalidade empresarial, até os agricultores familiares/camponeses que bus­
cam resistir à dependência do capital e à subordinação a empresas e indús­
trias e, fortalecer sua autonomia. Cabe ressaltar que mesmo estes últimos,
têm a necessidade de estabelecer relações com os mercados, porém, na
tentativa de reduzir a exploração e apropriação de seu trabalho, buscam
alternativas por meio de diversas práticas vinculadas à economia solidária
e a um mercado mais justo. A produção costuma ser para a subsistência,
porém os excedentes são comercializados para gerar alguma renda à famí­
lia camponesa/agricultora.
Portanto, podemos estabelecer uma diferenciação entre os agricul­
tores familiares considerados modernos e inseridos nos mercados a partir
da incorporação da racionalidade produtivista e economicista vigente, que
tende a levar à dependência cada vez maior destes; e os agricultores fami­
liares que vivem e trabalham a partir de uma racionalidade onde predo­
minam outros valores para além do econômico. Entre esses valores estão
a solidariedade, a organização coletiva, o respeito, a busca da autonomia,
além da preocupação com a saúde da família e, às vezes, com suas mani­
festações culturais e com o meio ambiente. Assim, estes últimos, seriam
agricultores familiares mais próximos aos preceitos do campesinato.
Outro aspecto a ressaltar, é a preferência de alguns autores pelo uso
do termo unidades de produção familiares no lugar de agricultura fami­

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liar. Lima et al apud Blum (1999, p.63) conceituam unidades de produção


familiares como:

(...) unidades essencialmente distintas da empresa capitalista típica, pois, a


partir de uma base material e social específica e da forma como se inserem
no meio físico e socioeconômico, buscam se reproduzir social e economica­
mente, organizando e realizando a produção basicamente através da força
de trabalho familiar.

Cabe ressaltar que o conceito de unidade de produção familiar pri­


vilegia a dimensão produtiva/econômica das propriedades familiares. No
entanto, a unidade produtiva não pode ser desvinculada da unidade do­
méstica, isto é, do núcleo familiar, haja vista que é a família quem toma as
decisões em relação às estratégias de sobrevivência e às atividades produti­
vas desenvolvidas. Desta forma, na tentativa de abarcar os aspectos econô­
micos e sociais da agricultura familiar, Schneider (2003) sugere interpretar
tanto a unidade de produção quanto a unidade doméstica. Concordando
com a proposta de Schneider, optamos por utilizar o conceito de Unidade
de Produção e Vida Familiar (UPVF), que vem sendo empregado por algu­
mas Organizações Não-governamentais e Movimentos Sociais do campo.
Assim como Schneider (2003), Carneiro (1999), também ressalta a
importância de considerar as dimensões plurais de uma unidade familiar,
ou seja, a econômica/produtiva com a social/cultural, apesar da pesquisa­
dora se concentrar nos aspectos sociológios da agricultura familiar.
Existem autores que, impulsionados pelas transformações socioespa­
ciais decorrentes da tecnicização do campo e da diversificação das atividades
laborais (agrícolas e não-agrícolas), vem discutindo as características do que
chamam de agricultura familiar moderna. Um dos aspectos centrais para a
definição de um agricultor familiar moderno, reside na necessidade de em­
preendedorismo por parte deste, atribuída sobretudo aos membro jovens da
família, que teriam melhores condições para se qualificar e adaptar-se à lógi­
ca empresarial, que deverá predominar nas políticas públicas neo-liberais de
vários países, inclusive do Brasil4. É a essa concepção de agricultura familiar
que se direcionam as críticas de autores como Oliveria (1991), Fernandes e
Leal (2002), Bombardi (2003), Fabrini (2004), entre outros.

Agricultura familiar no Brasil


No contexto brasileiro, a expressão agricultura familiar passou
a ser utilizada com maior ênfase a partir do final da década de 1980.

4
O próprio governo federal, no documento Plano Nacional de Desenvolvimento Rural Sus­
tentável (2002), faz alusão à necessidade da incorporação de um caráter empreendedor do
jovem que vive no campo.

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A agricultura familiar no contexto do rural contemporâneo

No campo político, a adoção do termo está relacionada às pressões dos


movimentos sociais da América Latina, e à realização de trabalhos aca­
dêmicos que introduziram a expressão. Contudo, foram as entidades
de representação dos agricultores que unificaram o discurso em defesa
dos interesses dos agricultores familiares, formando uma nova catego­
ria política, que abarcava os pequenos proprietários rurais, os assen­
tados, os arrendatários e os agricultores integrados às agroindústrias.
(SCHNEIDER, 2003)
Ainda na década de 1980, soma-se ao conceito de pequena produção,
as noções de integração – para caracterizar os produtores vinculados às
agroindústrias e aos mercados consumidores – e exclusão – para aqueles
que haviam sido marginalizados do processo de modernização conserva­
dora. (PORTO E SIQUEIRA, 1994). Nesse sentido, a partir dos anos 1980, a
ampliação e consolidação dos complexos agroindustriais no Brasil, apoia­
dos por políticas governamentais, permitiram à agricultura uma integra­
ção à indústria, propagada como benéfica e necessária para a moderniza­
ção do rural brasileiro. Entretanto, tal integração trouxe consigo todo um
processo de subordinação da agricultura à indústria e, consequentemten­
te, do agricultor ao capital.
A década de 1990 é marcada pela emergência do debate sobre a le­
gitimação da agricultura familiar por parte do governo federal. De um
lado, havia a pressão dos movimentos sociais do campo, com destaque
para a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (CON­
TAG), que exigiam políticas específicas para os produtores familiares. De
outro, a Conferência sobre meio ambiente e desenvolvimento, promovida
pela ONU, e realizada no Rio de Janeiro em 1992, que teve como questão
central o desenvolvimento sustentável e a valorização da biodiversidade
brasileira, fez com que as questões ambientais se popularizassem no país.
Consequentemente, assuntos como agroecologia, uso e manejo racional
dos ecossistemas, conservação da biodiversidade, agricultura orgânica, re­
florestamento, entre outros, passaram a fazer parte da agenda de debate
em diversos setores.
Nesse contexto, a partir da década de 1990, o agricultor familiar
vem sendo visto como um ator fundamental para a incorporação de prá­
ticas vinculadas à sustentabilidade no Brasil. Com base nas experiências
européias, e entendendo a importância da agricultura familiar como pos­
sível promotora de ações direcionadas ao “desenvolvimento sustentável”, o
governo federal incorpora o discurso da sustentabilidade, aliado à agricul­
tura familiar. Porém, contraditoriamente, incentiva a inserção dos agricul­
tores familiares em relações capitalistas, através do discurso do empreen­
dedorismo e da profissionalização destes agricultores.
Uma pesquisa fundamental para a consolidação da agricultura fa­
miliar nas políticas governamentais foi desenvolvida na década de 1990

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Luciano Zanetti Pessôa Candiotto

por uma parceria entre a Organização das Nações Unidas para Alimen­
tação e Agricultura (FAO) e o Instituto de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA). Um dos resultados dessa pesquisa foi a publicação do documen­
to “Diretrizes de política agrária e desenvolvimento sustentável”, de 1994.
Nas diretrizes, a agricultura familiar é tida como estratégica para o desen­
volvimento rural. O documento classifica os agricultores entre patronais
e familiares, de modo que os agricultores familiares são subdivididos em
consolidados, fragilizados e periféricos5.
Em documento de 1996, publicado pela parceria FAO/INCRA, são
apontadas as características do agricultor familiar6. Com base nesse estu­
do da FAO/INCRA, em 1996 é instituído o Programa Nacional de Fortaleci­
mento da Agricultura Familiar (PRONAF), através do Decreto Presidencial
nº. 1.946, sendo a primeira política específica para o agricultor familiar.
Apesar de ser um marco político, o Pronaf limitou-se à oferta de linhas
de crédito a juros baixos para os agricultores familiares denominados em
transição7, apostando na ampliação da inserção destes nos mercados. O
discurso do desenvolvimento sustentável também foi incorporado no Pro­
naf, e em seguida, surgiram outras ações e documentos do governo com o
objetivo de promover o desenvolvimento sustentável, como o Plano Nacio­
nal de Desenvolvimento Rural Sustentável, de 20028.
O governo federal definiu no PRONAF (1996), os seguintes critérios
para definir quem é agricultor familiar, e consequentemente, para liberar
as linhas de crédito do programa: – a renda familiar bruta não pode ultra­
passar R$ 27.500,00, sendo 80% do total, proveniente da exploração agrí­
cola; – a propriedade não pode ser maior do que quatro módulos fiscais9;
– mantenha no máximo dois empregados permanentes, sendo admitida a
ajuda de terceiros, quando a natureza sazonal da atividade exigir.
5
Os agricultores patronais seriam caracterizados pelas seguintes características: completa
separação entre gestão e trabalho; organização descentralizada; ênfase na especialização e
padronização da produção; predomínio do trabalho assalariado; e incorporação de tecno­
logias direcionadas à eliminação das decisões pautadas no senso comum. Já os agricultores
familiares são aqueles que apresentam vínculo entre trabalho e gestão por parte dos proprie­
tários; ênfase na diversificação da produção, na durabilidade dos recursos e na qualidade de
vida; uso do trabalho assalariado de forma complementar, e tomada de decisões imediatas.
6
(...) o agricultor familiar é todo aquele que tem na agricultura sua principal fonte de renda
(+ 80%) e cuja força de trabalho utilizada no estabelecimento venha fundamentalmente de
membros da família. É permitido o emprego de terceiros temporariamente, quando a ati­
vidade agrícola assim necessitar. Em caso de contratação de força de trabalho permanente
externo à família, a mão-de-obra familiar deve ser igual ou superior a 75% do total utilizado
no estabelecimento. (FAO/INCRA apud. BLUM, 1999, p. 62)
7
Correspondente a categoria fragilizados proposta pela FAO/INCRA.
8
Para maiores detalhes sobre a trajetória do PRONAF e a adoção da retórica da sustentabili­
dade por parte do governo federal, consultar Candiotto e Corrêa (2004).
9
No que diz respeito às dimensões de um módulo fiscal, no estado do Paraná, um módulo
fiscal corresponde a 10 hectares.

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A agricultura familiar no contexto do rural contemporâneo

Com a mudança do governo FHC para o governo Lula, a agricultura


familiar passou a receber maior apoio financeiro e técnico do governo fe­
deral. A criação da Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Ru­
ral, a ampliação de recursos para agricultura familiar, e a formulação da lei
nº. 11.326/2006, que estabelece a Política Nacional da Agricultura Familiar
e Empreendimentos Familiares Rurais, são marcos do atual governo.
Com o intuito de ampliar as linhas de atuação e de adequar os cri­
térios de classificação de agricultor familiar ao público-alvo almejado pelo
governo, o PRONAF foi passando por alterações. Além dos agricultores,
silvicultores, aquicultores, extrativistas e pescadores foram incluídos como
beneficiários do PRONAF.
Em publicação de 2004, Schneider, Cazella e Mattei (2004) relacio­
nam os beneficiários do PRONAF em seis categorias, definidas pela resolu­
ção nº. 2.692/99, tendo como parâmetro, a renda bruta anual da família:
Grupo A: agricultores assentados da reforma agrária;
Grupo B: agricultores familiares e remanescentes de quilombos, trabalha­
dores rurais e indígenas com renda bruta anual de até R$ 2.000,00;
Grupo C: agricultores familiares com renda bruta anual entre
R$ 2.000,00 e R$ 14.000,00;
Grupo A/C: agricultores oriundos do processo de reforma agrária e que
passam a receber o primeiro crédito de custeio após terem obtido o
crédito de investimento inicial;
Grupo D: agricultores familiares com renda bruta anual entre
R$ 14.000,00 e R$ 40.000,00;
Grupo E: agricultores familiares com renda bruta anual entre
R$ 40.000,00 e R$ 60.000,00;

Ao fazer uma avaliação dos dez anos do PRONAF, Guanziroli (2006)


demonstra um crescimento do montante de recursos para o PRONAF a
partir de 2000. Entre 2000 e 2005 passou-se de uma liberação de R$ 2.189
milhões para R$ 6.300 milhões. No entanto, o autor recorre a outras pes­
quisas, direcionadas a avaliar a aplicação desses recursos. Mattei (2006)
indica uma relativa concentração de recursos para o Sul do país, e destaca
a concentração dos recursos nos grupos C, D e E, correspondente a 74% do
total dos recursos disponibilizados em 2006. Petrelli e Silva (2004), afirma
que os maiores benefícios vêm sendo destinados ao grupo de agriculto­
res economicamente integrados à produção agroindustrial e de exportação
(destaca soja e fumo), em detrimento de menores recursos para o mercado
interno (arroz, feijão, etc). Na visão de Schneider, Cazella e Mattei (2004),
o PRONAF continua financiando o padrão de desenvolvimento vigente,
pautado na lógica economicista.

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Luciano Zanetti Pessôa Candiotto

Em 2006, o presidente Lula sancionou a lei nº. 11.326, que estabelece


as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar
e Empreendimentos Familiares Rurais. A lei define os conceitos de agricultor
familiar e prevê a descentralização – com a participação de municípios, esta­
dos, Governo Federal e produtores rurais – no desenvolvimento e gestão dos
programas agrários. No entanto, há uma maior flexibilização nos critérios de
definição, e uma associação entre agricultor familiar e empreendedor. Tal as­
sociação parece ter dois vieses complementares: permitir o acesso a crédito
e outros benefícios provenientes das políticas públicas para a agricultura fa­
miliar, aos empreendimentos rurais de propriedade de não agricultores, mui­
tas vezes sem agricultura e gerenciados a partir de uma lógica economicista/
mercantil e incentivar os agricultores familiares a se tornarem empreende­
dores e a administrarem suas UPVF’s como empresas, contribuindo também
para a propagação da racionalidade hegemônica predominante.
Pela referida lei, no artigo 3º, são considerados agricultores familia­
res e empreendedores familiares rurais aqueles que praticam atividades no
meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos:
• não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módu­
los fiscais;
• utilize predominantemente mão de obra da própria família nas ati­
vidades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento;
• tenha renda familiar predominantemente originada de atividades eco­
nômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento;
• dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família.

Apesar de manter o tamanho da unidade e a exigência de gestão


familiar, a lei, não determina mais a quantidade de assalariados permiti­
da, mas deixa claro que mais de 50% da mão-de-obra deve ser da família.
Mesmo existindo a exigência de que mais de 50% da renda familiar venha
do estabelecimento, não há nenhuma exigência referente à necessidade do
desenvolvimento de atividades agropecuárias e sequer um destaque para
a agricultura. Ademais, o governo também não exige a residência do agri­
cultor familiar no estabelecimento, ou mesmo na zona rural. Portanto, a
lei incorpora nesse segmento social (da agricultura familiar), empreendi­
mentos não-agrícolas, que podem ser de propriedade e administrados por
pequenos empresários urbanos e neorrurais.
Achamos pertinente ressaltar que o PRONAF incorporou recente­
mente linhas de crédito destinadas ao fortalecimento do turismo rural na
agricultura familiar. Entendendo o turismo como ferramenta capaz de
proporcionar a diversificação da renda, a valorização da cultura local, a
comercialização da produção pelos próprios agricultores familiares, e ain­
da estimular o resgate da auto-estima dessas populações, a partir de 2003,

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A agricultura familiar no contexto do rural contemporâneo

o MDA destinou recursos para os agricultores dos Grupos C e D investirem


em atividades de lazer e turismo em suas unidades. (www.mda.gov.br)
No estado do Paraná, em 2005 foi criada uma lei estadual (nº. 361/2005),
que especifica as atividades de Turismo Rural na Agricultura Familiar no Pa­
raná, e considera Agricultura Familiar, as unidades produtivas rurais com as
seguintes características: – possuam até 50 (cinqüenta) hectares de área (se­
jam proprietários ou não); – desenvolvam atividades agropecuárias de sub­
sistência; – os produtores sejam os administradores diretos da propriedade.
Aqui, percebemos que o estado do Paraná, também é bem flexível nos critérios
de classificação de agricultor familiar. O critério que exige alguma atividade
de subsistência na unidade é muito vago, de modo que um empreendimento
com apenas uma pequena horta destinada ao consumo dos proprietários e/
ou dos visitantes, pode ser considerado da agricultura familiar. Nesses crité­
rios, também não há nenhuma referência sobre trabalho familiar, renda pro­
veniente do empreendimento, residência no rural e emprego assalariado.
Da mesma forma que na lei federal nº. 11.326/2006, a lei estadual nº.
361/2005 ratifica a permissão e incentivo do Estado para a entrada de atores
exógenos e sem vínculos com o rural em atividades caracterizadas da agricul­
tura familiar, como o turismo rural na agricultura familiar, haja vista a espe­
cificidade dessa submodalidade de turismo, inserida no turismo rural. Outra
preocupação reside no mau direcionamento e utilização de créditos, isenções
e outros benefícios que deveriam chegar até os agricultores familiares, mas
que através de brechas como essas da lei acabam sendo apropriados por ou­
tros atores economicamente consolidados, que não deveriam ter acesso a tais
recursos públicos, haja vista a situação de pobreza e miséria e, as diversas ne­
cessidades dos camponeses e agricultores familiares brasileiros.
Apesar das críticas apresentadas às duas leis citadas, procuramos
identificar parâmetros para identificar empiricamente os agricultores que
seriam representantes da “agricultura familiar”. Optamos por nos pautar
na lei federal nº 11.326/2006, em virtude de sua importância no reconhe­
cimento institucional da agricultura familiar no Brasil, e também na lei nº
361/2005 do estado do Paraná. Ao associar os critérios dessas leis, chega­
mos às seguintes características:
• propriedades de até 50 hectares (proprietários ou não); (lei n.
361/2005);
• desenvolvimento de atividades agropecuárias de subsistência; (lei n.
361/2005);
• maior parte da mão-de-obra na UPVF proveniente da família; (lei n.
11.326/2006);
• maior parte da renda familiar proveniente de atividades internas à
UPVF; (lei n. 11.326/2006);
• gestão feita pela família (lei n. 361/2005 e lei n. 11.326/2006).

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Luciano Zanetti Pessôa Candiotto

Ademais, achamos pertinente, adicionar dois elementos para iden­


tificar os agricultores familiares em pesquisas empíricas. O primeiro seria
possuir mais de 50% da renda interna a UPVF, a partir de atividades agrí­
colas e para-agrícolas, pois seria um indicador de que a atividade agrícola
não foi secundarizada. Outro aspecto não incluído em nenhuma das duas
leis, e que achamos importante, diz respeito à residência da maior parte
dos membros da família na UPVF, haja vista que a manutenção do núcleo
familiar na unidade familiar é apontada por autores como Carneiro (1999)
e Schneider (2003) como um elemento fundamental de manutenção da
agricultura familiar.
Portanto, além desses cinco critérios, incluímos o critério de 50% da
renda interna a UPVF ser proveniente de atividades agrícolas e para-agrí­
colas, e o critério de residência da maior parte da família (50%) na UPVF,
de modo que selecionamos sete critérios para identificação de agricultores
familiares.

Pressupostos teórico-metodológicos para apreender


a agricultura familiar

Ao resgatar algumas questões teóricas e conceituais em torno do de­


bate sobre o campesinato/agricultura familiar, percebemos que a influên­
cia de duas correntes de pensamento, predominaram no meio acadêmico,
sendo uma fundamentada na teoria marxista, representada pelos estudos
clássicos de Lênin e Kautsky, que destaca a preponderância dos elementos
macroestruturais inerentes ao modo de produção capitalista frente à orga­
nização das unidades de produção familiares; e outra, na qual destaca-se
a proposta teórica de Chayanov, que evidencia as variáveis internas à uni­
dade de produção familiar como principais determinantes da organização
do campesinato. Entretanto, percebe-se que ambas correntes tiveram con­
tribuição fundamental para a evolução dos estudos agrários, de modo que
nos dias atuais, a consideração tanto de elementos externos/macroestrutu­
rais, como de elementos internos/microestruturais à unidade familiar, per­
mite uma abordagem integrada e mais complexa sobre as características
do agricultor familiar.
Com base na abordagem geográfica de Santos (1996), para apreen­
der a dinâmica socioespacial faz-se necessário à busca pela interpretação
dos eventos, relacionando de forma dialética o local e o global, pois ambos
fazem parte de uma mesma realidade. Para tanto, o geógrafo deve partir
do local, isto é, buscar a realização do evento em um lugar, e, relacioná-
lo à origem do evento, que geralmente é global. Todavia, faz-se necessário
identificar e verificar ações e normas de indivíduos, instituições públicas,
privadas, ONG’s e firmas, de influência e atuação em outras escalas geo­
gráficas – como a micro e macrorregional, estadual e nacional – que tam­

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A agricultura familiar no contexto do rural contemporâneo

bém condicionam a dinâmica do espaço geográfico e, conseqüentemente,


do lugar a ser pesquisado.
Além da proposta geográfica de Milton Santos (1996), os pressupos­
tos teórico-metodológicos da sociologia rural para o estudo da agricultura
familiar apontados por Schneider (2003), indicam que cabe apreender a
dinâmica da agricultura familiar a partir dos elementos internos da uni­
dade familiar, considerando a unidade de produção familiar (estabeleci­
mento rural produtivo), mas principalmente a unidade doméstica (grupo
familiar), haja vista que as estratégias produtivas/econômicas das famílias
dependem do contexto social das famílias (hierarquia familiar, formação
pedagógica/técnica, acesso à informação e à assistência técnica, atividades
laborais, relações sociais dos indivíduos na comunidade, crenças e regras).
Apesar da ênfase à dinâmica endógena da unidade familiar, os autores su­
pracitados não deixam de apontar que o endógeno sofre influência de ele­
mentos exógenos, de modo que há uma relação dialética entre o particular
e o geral, entre o local e o global. Nesse sentido nos remetemos a Froehlich
e Rodrigues (2005, p. 91), que ressaltam a necessidade de apreender a arti­
culação entre as forças internas e externas atuantes no rural.

[...] no estudo do espaço agrário contemporâneo, é necessário trazer à refle­


xão os elementos que circulam na produção da realidade de outros espaços
sociais, muitas vezes longínquos, e que atravessam as sociedades, num pro­
cesso hoje cada vez mais ligado aos fenômenos do poder. Tal dinâmica tem a
peculiaridade da articulação entre forças locais e forças “externas”, globais,
que dão especificidade aos fenômenos sociais, produzidos historicamente
em um dado espaço social.

Assim, para o estudo do rural e da agricultura familiar, a apreensão


integrada dos fenômenos na escala micro (unidades familiares, comunida­
des de agricultores, distritos e aglomerações rurais); meso (instituições ad­
ministrativas regionais, estados), bem como, de ações, políticas, normas,
e outras determinações de escalas macro (instituições e governos federais,
mercado financeiro, corporações transnacionais, inovações tecnológicas),
é de suma importância para a interpretação do papel, características e di­
versas situações que permeiam todo o universo de agricultores denomina­
dos familiares. Porém, tal apreensão deverá ocorrer a partir do lugar, ou
seja, da unidade de produção e vida familiar.
Para Schneider (2003, p.95),

[...] o elemento central da agricultura familiar é a natureza familiar dessas


unidades, assentadas nas relações de parentesco e de herança entre os mem­
bros das famílias. É no interior da própria família e do grupo doméstico,
[...] que se localizam as principais razões que explicam a persistência e a
reprodução de um certo conjunto de unidades e a desagregação e desapare­
cimento de outras.

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Luciano Zanetti Pessôa Candiotto

Carneiro (1999) privilegia o debruçar sobre a unidade familiar, en­


tendendo que devemos eleger como unidade de observação e intervenção,
a família, levando em conta os aspectos culturais e o caráter simbólico em­
butido nas práticas sociais do grupo familiar. A autora chama a atenção
para não limitar as abordagens sobre a unidade familiar à racionalidade
econômica, pois a tradição cultural, o saber fazer, e a rede de sociabilidade,
se colocam como elementos definidores das estratégias familares. Assim,
estas vão depender, além do capital econômico disponível, das capacidades
(individuais e coletivas) existentes para enfrentar a situação de queda do
rendimento familiar e, então, inovar ou reinventar a tradição.
Para a socióloga, a unidade familiar tem a capacidade de diversi­
ficar suas estratégias e se adaptar às condições econômicas e sociais; e o
caráter familiar permite certa margem de autonomia em relação às estra­
tégias reprodutivas e na articulação com as condições externas. Porém,
Carneiro enfatiza:

[...] a idéia de autonomia não implica a formulação consciente das estra­


tégias a serem implementadas pelo grupo familiar nem a independência
em relação às condições internas. Mas, diferentemente do trabalhador as­
salariado, a unidade familiar de produção, por ser sustentada pela intima
relação entre relações de trabalho e laços de parentesco, apresenta maior
margem de negociação interna na elaboração de caminhos alternativos de
reprodução social. (CARNEIRO, 1999, p. 327)

Em relação à autonomia das famílias para elaborarem suas estraté­


gias de reprodução, entendemos que a unidade familiar tanto pode elaborar
novas estratégias a partir de conhecimentos adquiridos, como também pode
aceitar e implementar estratégias exógenas (provenientes de outros atores so­
ciais), desde que sejam convencidas pelos atores interessados. Apesar de a de­
cisão final ser da família – ou de algum(s) membro(s) desta – cada indivíduo
da família é, de alguma forma, influenciado pelas relações sociais que estabe­
lece, e sua forma de pensar e de agir irá influenciar nas decisões da família.
Acreditamos que o elemento central que fundamenta diversos estu­
dos sobre a agricultura familiar seja este, referente a uma relativa autono­
mia dos agricultores familiares, pois a posse da terra, o trabalho familiar,
o vínculo com a terra e o predomínio de ruralidades na identidade dos
agricultores familiares permitem a estes poderem decidir as estratégias a
serem seguidas, tanto do ponto de vista produtivo como na gestão geral
da propriedade. No entanto, é preciso verificar empiricamente como se dá
essa autonomia e até que ponto ela existe, identificando seus aspectos de
enfraquecimento e de fortalecimento.
Na tentativa de compreender melhor os elementos que fundamen­
tariam a autonomia dos camponeses/agricultores familiares, procuramos
elencar o que entendemos ser alguns indicadores dessa autonomia:

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A agricultura familiar no contexto do rural contemporâneo

• propriedade da terra e dos meios de produção;


• produção para o consumo familiar, garantindo uma produção agro­
pecuária diversificada e a segurança alimentar da família;
• gestão familiar da UPVF, que permite à família decidir sobre as ati­
vidades produtivas (agrícolas e não-agrícolas) da UPVF;
• não ser subordinado a um patrão ou empregador, apesar de muitos
terem relações mercantis e obrigações contratuais;
• não depender de trabalho assalariado externo;
• não depender de técnicas e métodos de cultivo convencionais pro­
pagados pelas grandes empresas do setor agropecuário (máquinas,
insumos, defensivos, etc.).

Ao discorrer sobre as estratégias de reprodução das famílias rurais,


Carneiro (1999) diz existir uma tendência ascendente e uma descendente
em relação ao peso da agricultura na unidade familiar. A ascendente está
vinculada à busca de manutenção da agricultura como atividade principal,
enquanto a descendente, à diminuição do peso da agricultura na renda fa­
miliar, seguida de uma reorientação no uso da propriedade e da mão-de-
obra. A pesquisadora coloca que a partir da interação com valores urbanos
decorrentes da unificação dos mercados, acelera-se o processo de individua­
lização no interior da família e a transformação definitiva da terra em mer­
cadoria. Por conseguinte, a ruptura dos laços entre família, propriedade e
trabalho, abre espaço para novos usos e novas identidades no meio rural.
Carneiro (1999) aponta três estratégias descendentes, que levam à se­
cundarização da atividade agrícola, e até ao seu abandono: – saída dos filhos
da unidade familiar e permanência apenas dos pais, que muitas vezes não
tem mais condições de produzir; – investir na formação educacional dos fi­
lhos longe do meio rural pode fazer com que os filhos percam o interesse em
manter a exploração agrícola, buscando novas alternativas de renda; – diver­
sificar as atividades, incluindo comércio ou prestação de serviços.
Considerando que as atividades não-agrícolas vêm aumentando en­
tre os agricultores, sejam eles familiares ou não, e que tais atividades vêm
modificando e complexificando o espaço rural e a análise sobre a agricul­
tura familiar, Carneiro (1999) ressalta a importância de reconhecer tanto
as famílias pluriativas quanto as não-pluriativas, pois ambas exprimem
a diversidade de possíveis inserções no mercado (comércio, prestação de
serviços, turismo, manufaturas, artesanatos, agroindústrias, etc).

Considerações finais
Após a explanação da visão de alguns pesquisadores, podemos afir­
mar que o conceito de agricultura familiar é fundamentado no campesi­

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Luciano Zanetti Pessôa Candiotto

nato, e apresenta como pontos em comum com o camponês, o fato de o


trabalho, a gestão e a propriedade da terra e dos meios de produção serem
vinculados à família. No entanto, mesmo considerando que o agricultor fa­
miliar possui características do camponês, entendemos que são conceitos
distintos, pois referem-se a períodos históricos diferentes.
O conceito de agricultor familiar é mais recente que o de camponês,
e em nossa opinião, está vinculado a um período histórico onde as relações
capitalistas são, indubitavelmente, muito mais intensas e complexas que no
período de início da fundamentação teórica em torno do campesinato. A re­
sistência de diversos pesquisadores ao uso do conceito de agricultura fami­
liar, dá-se sobretudo pelo fato destes entenderem que tal conceito foi criado
por organismos internacionais vinculados ao modo de produção capitalista
e à lógica do neo-liberalismo, possuindo portanto, um forte viés político.
Quanto ao modo de vida e de produzir do camponês e do agricultor
familiar, existem várias semelhanças, pois o agricultor familiar tem sua
gênese no camponês, e mantém características como a propriedade de pe­
quenos lotes de terra, o trabalho para reprodução da família, residência no
campo, entre outros.
Cabe ressaltar, que a agricultura familiar no Brasil é extremamente
heterogênea, de modo que existem vários tipos de agricultores dentro do
termo agricultura familiar. As distintas características históricas, físicas,
sociais, econômicas e políticas presentes no território brasileiro, devem ser
consideradas nas pesquisas, pois nos remetem a formas distintas de explo­
ração familiar. Para Schneider (2003), o mais importante é analisar como
se dá o processo de interação social e inserção econômica das formas fa­
miliares de produção.
Dentro do amplo conceito de agricultura familiar, existem famílias com
relações sociais e econômicas diversificadas, desde famílias camponesas, até
as integradas às agroindústrias e as pluriativas. Muitas destas, ao obterem
sucesso financeiro com as atividades agrícolas e sobretudo, não-agrícolas de­
senvolvidas, vão se tornando famílias empreendedoras, ampliam suas rela­
ções capitalistas e suas rendas, deixando de ser autônomas para se tornarem
assalariadas. Alguns desses estabelecimentos familiares são transformados
em empresas, de modo que os membros destas famílias passam a adotar
uma racionalidade empresarial e economicista, modificando suas funções e
intencionalidades. Não obstante, o correto enquadramento dos agricultores
familiares por parte do governo federal é de suma importância para garantir
que agricultores-empresários e atores sociais de caráter empresarial presen­
tes no espaço rural não se apropriem dos recursos e benefícios das políticas
públicas direcionadas à agricultura familiar. Porém, como ficou evidente na
lei n. 11.326/2006, o governo vem incentivando o empreendedorismo no es­
paço rural e na agricultura familiar, entendendo que a inserção nos mercados
é o melhor caminho para o fortalecimento da agricultura familiar.

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A agricultura familiar no contexto do rural contemporâneo

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As territorialidades da produção fumageira:
o caso da Empresa Souza Cruz

Luís Carlos Braga


Mestre em Geografia pela UNIOESTE, Campus de Francisco Beltrão |
karlos2009@hotmail.com

Introdução
Com o objetivo de explicar traços que julgamos fundamentais no
processo de integração e subordinação dos trabalhadores familiares ru­
rais, apresentamos, no presente texto, alguns resultados da nossa pesqui­
sa sobre a territorialização do capital em espaços de agricultura familiar,
mais detidamente sobre as estratégias da empresa fumageira Souza Cruz,
Para analisarmos as principais modificações provocadas pelas es­
tratégias da empresa fumageira, utilizaremos elementos da abordagem
territorial.
Segundo Saquet:

[...] a abordagem territorial consubstancia-se numa das formas para se com­


preender a miríade de processos, redes, rearranjos, a heterogeneidade, con­
tradições, os tempos e os territórios de maneira a contemplar a (i)materiali­
dade do mundo da vida. (SAQUET, 2007, p.183)

Para a realização da pesquisa, efetivamos levantamento bibliográfi­


co, de obras e artigos que tratam principalmente da temática do território
e da questão agrária. Coletamos dados secundários do IBGE e dos órgãos
ligados a produção fumageira.
No texto que segue trataremos da territorialização da Souza Cruz,
ela que é uma empresa transnacional e faz parte do conglomerado da Bri­
tish American Tobacco (BAT), um dos maiores grupos mundiais do seg­

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As territorialidades da produção fumageira: o caso da Empresa Souza Cruz

mento de cigarros, que atua em 40 países. Apresentaremos as principais


estratégias territoriais da empresa, a sua capacidade de reorganizar, sobre­
por e dar fluidez aos territórios. Analisaremos também a problemática que
envolve a produção do fumo, constituindo-se esta na causa de vários pro­
blemas para a sociedade, desde o agricultor que produz a matéria-prima
com uma longa jornada de trabalho, manuseando com produtos químicos
não possui influência na cadeia produtiva até o consumo do produto final,
por sua vez causador, de problemas de saúde aos fumantes; ao mesmo tem­
po, os tributos gerados pela atividade são significativos para o Estado e o
número de famílias integradas.

Dados da produção de fumo e da empresa fumageira Souza Cruz


Fundada em 1912, a British American Tobacco (BAT) é um dos
maiores grupos do segmento de produção de tabaco, atuando em mais de
180 mercados. É o segundo maior grupo da indústria de tabaco, perdendo
apenas para a Universal Leaf Tobaccos. Em relação à produção de cigarros,
possui mais de 300 marcas em seu portfólio; do total de 1 bilhão de fuman­
tes existentes em todos continentes, um em cada sete fumantes, fuma uma
marca da BAT. Possui 47 fábricas em 40 países; entre eles destacam-se os
Estados Unidos, Canadá, Japão, Coréia do Sul, Inglaterra, Alemanha, Ho­
landa, Itália, Rússia, França, China, Índia, África do Sul, Líbano, Turquia,
Nigéria, Argentina, Venezuela, Peru, Chile, México, Brasil; emprega direta­
mente, nesses países, mais de 90 mil empregados, (Souza Cruz, 2008).
Para alcançar seus objetivos, o grupo BAT procura expandir-se tanto
organicamente, ou seja, através da expansão das indústrias que já fazem
parte do grupo como também através de fusões e de aquisições de outras
empresas.
A BAT busca a redução de custos, aumento da qualidade dos seus
produtos, chegada cada vez mais rápida dos seus produtos ao mercado,
aumento da eficácia dos seus “colaboradores”, que ultrapassam 53 mil em
vários países, além dos mais de 280 mil produtores agrícolas integrados às
suas corporações. A colocação dessas ações em prática proporcionaram,
em 2003, uma economia de 64 milhões de libras e, em 2004, 89 milhões
(Souza Cruz, 2009).
A BAT atua desde o processo de produção do tabaco em folha até a
fabricação do cigarro. Entre as suas marcas internacionais, a organização
concentra foco e recursos em quatro delas: Lucky Strike, Kent, Dunhill e
Pall Mall. As vendas destas quatro marcas representam 44% das vendas
das marcas internacionais da BAT e cerca de 24% do volume total de ven­
das do grupo (AFUBRA, 2009).
A BAT possui a sede em Londres, Inglaterra, e atua em todos os con­
tinentes; na América Latina, seu território de ação direta é Brasil, Argen­

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tina, Venezuela, Peru, Chile e México. No Brasil, a principal representante


da BAT é a Souza Cruz. O controle da Souza Cruz pela BAT proporciona
recursos financeiros e uma forte integração no mercado internacional do
fumo (Corrêa, 1992).
As ações da BAT, no Brasil, através da Cia. Souza Cruz, foram fun­
damentais para a expansão da produção brasileira de fumo, principalmen­
te da região Sul do país. A cidade de Santa Cruz do Sul, no Rio Grande
do Sul, considerada a capital do fumo não só do Brasil, mas da Ameri­
ca Latina, começou a produzir no inicio do século XX, porém, foi com a
instalação da BAT, no parque industrial da cidade, no ano de 1917, que a
produção começou a ganhar maiores proporções através da atuação do
capital monopolista, que intensificou e difundiu esse processo, resultando
na modificação e reorganização do território regional (Silveira, 2007). As
ações da BAT também modificaram a base técnica da produção do fumo
em todo o Sul do Brasil, pois a empresa implementou/padronizou inova­
ções tecnológicas.
Para ter a garantia da produção da matéria-prima, a Souza Cruz
integra cerca de 40 mil famílias de agricultores, principalmente nos três
estados do Sul do Brasil. Nesta região, a soma do número de famílias in­
tegradas, considerando todas as empresas fumageiras, chega a 182 mil,
ocupando na safra 2007/08, uma área de 354 mil ha, sendo 83,4 mil ha de
produtores integrados a Souza Cruz, envolvendo cerca de 800 mil agri­
cultores; destes, 240 mil são integrados a Souza Cruz e venderam para a
empresa 164 mil toneladas de fumo, o que corresponde a 22,7% da produ­
ção nacional. Na safra 2007/08, a produção do Sul do Brasil chegou a 720
mil toneladas, superando o total da produção nacional da safra 2006/07,
de 700 mil toneladas. Desse total produzido, 85% é destinado para expor­
tação, abastecendo cerca de 100 países com o tabaco brasileiro. O fumo
mantém-se na posição de terceiro produto agrícola na pauta de exporta­
ções primárias do Brasil, superado apenas pela soja e pelo café, e participa
com cerca de 1,4% do total das vendas externas do país. O aumento gra­
dativo da produção, até 2004 (como podemos conferir na tabela 1), deu-se
devido ás inovações tecnológicas e ao aumento no número de agricultores
integrados. Entre os anos de 2004 e 2007, houve uma queda na produção.
Já a exportação apresentou queda somente na safra 2005/06, mas na safra
seguinte obteve um aumento na exportação que passou de 581.380 tonela­
das para 710.150 toneladas.
No processo de expansão da produção fumageira há forças econô­
micas e políticas muito fortes. A produção fumageira e a integração inte­
ressam ao Estado. A título de ilustração, cabe mencionar que só a Souza
Cruz arrecadou, em 2007, R$ 5.5 bilhões, 54% da sua receita líquida, e ob­
teve, no mesmo ano, um lucro líquido de 908 milhões, ocupando a empre­
sa a 5º posição entre as empresas privadas que mais pagam impostos.

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As territorialidades da produção fumageira: o caso da Empresa Souza Cruz

Tabela 1. Produção e exportação de fumo no Brasil.


Ano Produção Exportação
1980 372.970 129.900
1990 447.980 198.040
2000 577.110 353.020
2001 544.780 443.900
2002 669.950 474.470
2003 635.820 477.540
2004 882.650 592.850
2005 876.430 629.630
2006 803.540 581.380
2007 792.390 710.150
Fonte: AFUBRA (2009), organizada pelo autor.

Devido a isso, as empresas exercem pressão sobre o Estado, como


aconteceu no Rio Grande do Sul, onde, devido à crise financeira viven­
ciada pelo Estado, o governo criou um decreto estadual, em dezembro de
2004, que previa a limitação da transferência de grande parte dos crédi­
tos de ICMS para as grandes empresas exportadoras nele localizadas. Isso
teve como resultado para as empresas do setor fumageiro, o aumento do
custo de produção e a diminuição dos lucros. Em reação a essa norma, as
empresas mobilizaram as lideranças políticas regionais e a opinião públi­
ca para conseguirem o recebimento dos créditos devidos, referentes aos
anos de 2003 e 2004, que correspondiam a um valor de 330 milhões de
reais. Além dessa mobilização, as principais empresas fumageiras, den­
tre elas a Souza Cruz, passaram a rever seus projetos de investimentos no
Rio Grande do Sul. A Universal Leaf Tabaco Ltda. cancelou investimen­
tos no município de Venâncio Aires, da ordem de 10 milhões de reais, o
que resultou na perda de 1700 novos empregos diretos. O investimento
foi realizado no município de Joinvile em Santa Catarina, onde se cons­
truiu uma nova linha de processamento, resultando na instalação de um
novo nó do território fumageiro. Diante dessa forte pressão, em 2006, os
prefeitos municipais aceitaram devolver parceladamente os créditos do
ICMS (Silveira, 2007).
Os tributos gerados pelas empresas também promovem uma “guer­
ra” fiscal entre os municípios e estados; essa disputa é favorável aos inte­
resses das empresas, que vêem a possibilidade de conseguir isenções de
impostos e outras vantagens.
Além disso, as indústrias fumageiras empregam, no Sul do Brasil
cerca de 30 mil funcionários; destes, 7500, número considerável de em­
pregados, são da Souza Cruz. Por isso, quando são apresentados projetos

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Luís Carlos Braga

como o da Convenção Quadro1, há muita polêmica, pois como não são


apresentadas outras formas de produção menos degradantes e subordina­
doras, já que a redução e o fim da produção do fumo deixariam milhares
de famílias sem uma das suas principais atividades econômicas. Isso é pre­
ocupante, pois, atualmente, não se discute mais a exploração no trabalho,
mas a falta dessa exploração, ou seja, o desemprego. Vale lembrar que a
falta de outras perspectivas de produção deve-se também à falta de organi­
zação e a certa comodidade por parte dos agricultores familiares. A produ­
ção orgânica, por exemplo, seria uma boa alternativa, desde que houvesse
a constituição de uma rede de produção e distribuição própria, sem comer­
cializar a produção nas redes industriais, para que elas não se apropriem
de parte da produção.
No caso da produção do fumo questiona-se também a falta de or­
ganização dos agricultores em reivindicar preço melhor, porém, isso seria
uma solução paliativa já que os agricultores continuariam dependentes da
empresa, trabalhando com agrotóxicos e em uma atividade fisicamente
desgastante.

A territorialização e as territorialidades da empresa Souza Cruz


Um dos argumentos da empresa para que esses 40 mil agricultores
espalhados por 700  municípios, nos três estados da região Sul, continuem
na produção do fumo, seria o fato de que o fumo é, no Brasil, um dos pou­
cos produtos agrícolas que, devido ao sistema integrado de produção,  têm
a venda de toda a produção garantida e os preços estabelecidos antes da
safra. Porém, a empresa é quem estipula a estimativa de produção de cada
produtor e, apesar dos valores do fumo serem estabelecidos antes da safra,
a empresa possui um sistema de classificação que regula o preço do fumo
pela sua qualidade; tal classificação é realizada longe do estabelecimento
sem a participação dos agricultores.

1
A Convenção-Quadro é o primeiro tratado internacional de saúde pública. Seu objeti­
vo é reduzir a prevalência do tabagismo no mundo, por meio da regulamentação em di­
ferentes segmentos. O tratado propõe uma política de preços e tributos mais eleva­
dos; a total proibição do fumo em ambientes fechados e logradouros públicos; o fim
de diferenciais em embalagens que induzem à errônea impressão de que certos tipos
de tabaco causam menos males – como light, ultra light ou mild; a total proibição de
toda a forma de publicidade, promoção e patrocínio do fumo; a proibição de fabrica­
ção e a venda de doces, comestíveis, brinquedos ou qualquer outro objeto com o forma­
to de produtos de tabaco que possam ser atraentes para menores; entre outros pontos.
A Convenção entrou em vigor em 27 de fevereiro de 2005 [...] sem a ratificação do Brasil.
Vale destacar que mais de 70 países membros da Organização Mundial de Saúde (OMS) já
estão comprometidos a aplicá-la em seus territórios, inclusive alguns dos maiores produto­
res mundiais de fumo, como a China, a Índia e a Turquia.(TABACCO ZERO apud TERRA
DE DIRITOS, 2007).

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As territorialidades da produção fumageira: o caso da Empresa Souza Cruz

O capital social da Souza Cruz é composto exclusivamente de ações


ordinárias, sendo o acionista controlador o grupo BAT com 75, 3% do to­
tal; o restante, ou seja, 24,7% das ações são negociadas no mercado, per­
tencendo a fundos de pensão, pessoas jurídicas e pessoas físicas tanto do
Brasil como do exterior.
A Souza Cruz foi fundada, em 1903, pelo português Albino Sou­
za Cruz. Em 1914, a empresa passou a ter o controle acionário da BAT,
permanecendo o seu fundador como presidente até 1962, (SOUZA CRUZ,
2009). A BAT, através da Souza Cruz, foi a única empresa estrangeira no
país até 1968; a partir daí, várias empresas renderam-se ao capital estran­
geiro devido à crise dos anos 1962-67 e à falta de apoio maior pelo Sis­
tema Nacional de Crédito e também porque a maior parte das empresas
fumageiras nacionais não conseguiram mais acompanhar a velocidade de
crescimento e desenvolvimento tecnológico da Cia. Souza Cruz. A trans­
nacionalização das empresas aconteceu de forma gradual: inicialmente a
multinacional injetava recursos em uma determinada empresa após ad­
quirir parte das ações dessa, assumia o controle acionário, majoritário ou
total; na maioria dos casos eram mantidos, nas funções administrativas, os
antigos proprietários. A partir daí os agricultores perderam ainda mais da
autonomia na produção, pois, antes utilizavam adubos orgânicos dos seus
estabelecimentos, fabricavam soluções/caldas de forma artesanal para o
controle das pragas, trabalhavam sem vigilância, plantavam a quantidade
de pés que entendiam como suficiente e trabalhavam em ritmo por eles de­
finido. Porém, dependiam do comerciante local para a comercialização da
produção e aquisição dos insumos, fato que os condicionou a terem jorna­
das de trabalho e atividades orientadas e relativamente controladas.
A Souza Cruz possui uma complexa territorialidade, que é represen­
tada através das suas unidades espalhadas pelo território nacional. Todas
essas centrais administrativas, de beneficiamento, desenvolvimento, usi­
nas, fazendas além dos milhares de veículos da empresa que circulam por
todo o território nacional, mais os agricultores fumicultores, representam
o poderio econômico e político, ou seja, são a expressão do território da
Souza Cruz historicamente constituído.
A Cia. Souza Cruz começou a exportar fumo em 1969, tendo a pri­
meira venda 25 toneladas como destino a Inglaterra. Em 2007, a empresa
exportou 121 mil toneladas (gerando um faturamento de 2 bilhões de dóla­
res) para 79 clientes localizados em 52 países diferentes nos 5 continentes;
76% da produção para a exportação é produzida no Rio Grande do Sul; o
estado é responsável por 39% do total da produção da Souza Cruz, ficando
à frente de Santa Catarina que é responsável por 31% e Paraná que ven­
de para a empresa 30% da produção de tabaco (AFUBRA, 2009). A região
Sul possui ampla vantagem na produção do tabaco em relação à região
Nordeste, segunda maior produtora, enquanto a primeira produziu, na sa­

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Luís Carlos Braga

fra 2007/08, 713.870 toneladas a segunda produziu na mesma safra 33.


810 toneladas. . Assim, a produção de fumo em folha concentra-se nessas
duas regiões; a região Sudeste, terceira maior produtora, produziu, segun­
do dados do IBGE (1996), 1397 toneladas; a região Norte 711 toneladas;
a Centro-Oeste 71, toneladas. Um dos fatores que consolidou o Sul como
principal produtora foi a sua estrutura fundiária, baseada em minifúndios,
utilizando mão-de-obra familiar. A produção do fumo movimenta cerca de
10 bilhões ao ano na região Sul.
A Souza Cruz é responsável por uma parcela significativa da produ­
ção brasileira, já que a empresa é a 3º maior exportadora de fumo, fican­
do atrás das multinacionais Universal Leaf Tabacos Ltda (que é líder do
ranking das exportações) e da Aliance One. A Souza Cruz possui o 6° maior
faturamento dentre as empresas do agronegócio (Souza Cruz, 2009), con­
tribuindo para que o Brasil seja, atualmente, o segundo maior produtor –
perdendo apenas para a China – e o maior exportador de fumo do mundo,
ocupando esta posição desde 1993 (AFUBRA, 2009), conforme podemos
conferir na tabela 2.

Tabela 2. Dados da produção e exportação dos principais países produtores de fumo


(safra 2007/08).
País Produção (toneladas) Exportação (toneladas)
China 2350 160
Brasil 834 690
Ìndia 740 178
Malaw 236 68
EUA 289 150
Argentina 161 29
Fonte: SINDIFUMO (2009), organizada pelo autor.

Para o Brasil alcançar este posto, além do desenvolvimento tec­


nológico e da subordinação dos agricultores, que possibilita à empresa
comprar a matéria-prima por um valor muito baixo, houve outros fato­
res importantes: a) aumento do consumo de cigarros nos países do Leste
europeu e do Sudeste asiático principalmente no Japão e na China, e b)
o bloqueio comercial declarado à Rodésia (Zimbabwe), em 1965, que, há
muitos anos fornecia fumo para o comércio europeu principalmente a
variedade Virginia.
A China é a maior produtor e o maior consumidor mundial de cigar­
ros, por isso, apesar da produção brasileira representar pouco mais de 1/3
da produção chinesa, o Brasil é o maior exportador mundial de tabaco. O
concorrente mais próximo do Brasil é a Ìndia.

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As territorialidades da produção fumageira: o caso da Empresa Souza Cruz

A Souza Cruz possui a liderança absoluta do mercado brasileiro de


cigarros, com 75% do mercado; entre as 10 marcas mais vendidas no Bra­
sil, 6 são da empresa e as principais são: Derby, Free, Hollyood e Carlton;
além destas, a Souza Cruz também comercializa as marcas da BAT. Todas
as marcas são distribuídas diretamente pela empresa em mais de 200 mil
varejos espalhados por todo o Brasil. Isso se deve ao exercício da prática do
monopólio sobre toda a cadeia produtiva do fumo desde o agricultor até o
comerciante. Segundo Oliveira, “[...] nem mesmo os chamados comercian­
tes locais escaparam de seu domínio, e foram transformados em simples
comissionários da indústria que, assim, têm toda a estrutura de preço do
produto controlada” (1981, p. 44).
A capacidade da Souza Cruz manter o monopólio deve-se ao seu
complexo território, que permite a circulação de informação da matéria-
prima e das outras mercadorias, pois, segundo Raffestin (1993), para a
dominação de um território é necessário a circulação da informação. Para
fazer a informação circular é preciso energia, então, a amplitude dessa do­
minação vai depender da quantidade de energia que se tem à disposição.
Podemos dizer que a energia da Souza Cruz vem do seu poderio econômi­
co e sua influência na cadeia produtiva que lhe permite subordinar os fu­
micultores, monopolizar a comercialização e agir junto ao Estado.
Atualmente, para uma multinacional – como é o caso da Cia. fu­
mageira que estamos estudando – a circulação da informação pelo seu
território é praticamente instantânea, já a circulação das mercadorias de­
manda mais custo e tempo. Para conseguir fazer com que a circulação da
informação seja instantânea, a Souza Cruz desenvolveu uma complexa e
sofisticada rede de comunicação e distribuição que atende mais de 240 mil
pontos de venda. A estrutura de comunicação da Souza Cruz conta com 6
modernas Centrais Integradas de Distribuição (as CIDs) – as quais ficam
no Rio de Janeiro, São Paulo, Contagem-MG, Curitiba, Porto Alegre e Re­
cife – 24 Centros de Distribuição e mais de 80 Postos de Abastecimento, lo­
cais próprios ou terceirizados, os quais possuem posição estratégica, ace­
lerando a circulação das informações. Isso demonstra o extenso território
de relações da empresa, mantido através de uma sofisticada estrutura de
marketing e comercialização. Para que as empresas, como a Souza Cruz,
controle todo o seu território “[...] não é necessário que todos os processos
produtivos estejam localizados em um mesmo lugar, mas sim que a cone­
xão entre as unidades de produção seja rápida e eficiente [...]” (SPOSITO,
2008, p.90). A empresa é considerada um exemplo internacional de opera­
ção logística, entre as empresas de bens de consumo em massa, devido à
distribuição das suas sedes no território (Souza Cruz, 2009).
Assim, “a dimensão de uma malha nunca é – ou quase nunca – alea­
tória, pois cristaliza todo um conjunto de fatores dos quais uns são físicos,
outros humanos econômicos, políticos, sociais e/ou culturais.” (RAFFES­

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TIN, 1993, p. 155). Nesse sentido, segundo Corrêa (1992), essa complexa
espacialidade da Cia. Souza Cruz foi construída pouco a pouco através de
um conjunto de práticas espaciais que atuam de forma combinada para
selecionar o território de acordo com os atributos que são de interesse da
empresa.
Tais práticas espaciais também estão presentes no sistema territorial,
elaborado por Raffestin (1993), que se tornou um conceito importante para
a compreensão do território e da sua dinâmica, podendo ser chamado de
“essencial visível” das práticas espaciais, em que os atores procedem à re­
partição das superfícies em malhas, implantam nós e constroem redes para
efetuar as ligações econômicas, políticas e culturais entre os territórios.

Esses sistemas de tessituras, de nós e de redes organizadas hierarquica­


mente permitem assegurar o controle sobre aquilo que pode ser distribuí­
do, alocado e/ou possuído. (...) Esses sistemas constituem o invólucro no
qual se originam as relações de poder. Tessituras, nós e redes podem ser
muito diferentes de uma sociedade para outra, mas estão sempre presentes.
(RAFFESTIN­, 1993, p.151)

Assim, o sistema é construído pelos atores e suas relações de poder,


os quais produzem dinâmicas sociais que imprimem as características de
cada território, determinando as limitações, mas também as transposições
desses limites políticos e administrativos através das ligações em redes.

A realidade do externo depende, todavia, do interno. Nenhuma variável ex­


terna se integra numa situação, se esta não tem internamente as condições
para poder aceitá-la. A presença local de certas condições aparece, pois,
como indispensável à internalização de fatos externos. Dessa forma, as
variá­veis externas, num momento dado não podem inserir-se em todos os
lugares [...]. (SANTOS, 1997, p.97)

Dessa forma, para selecionar o território que melhor lhe convém,


a Souza Cruz age através de um conjunto de práticas sociais e territoriais,
por exemplo, a seletividade espacial, onde a empresa seleciona as regiões
que lhe proporcionem a maior quantidade de atributos considerados de
valor. O conhecimento espacial é fundamental nesse processo, pois a partir
de sua avaliação define-se a potencialidade e a fragilidade a serem explora­
das (Corrêa, 1992). Na fragmentação, a empresa divide o espaço em razão
da intensificação da atuação da corporação. No remembreamento, reúne
as suas unidades territoriais. Os fatores que levam a empresa a fragmentar
ou remembrear o seu território são diminuição ou o aumento da oferta de
produção numa determinada região bem como a queda dos rendimentos
e dos incentivos.
É importante lembrar que, com o desenvolvimento tecnológico e cien­
tífico, as empresas fumageiras podem criar alguns dos atributos necessários

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As territorialidades da produção fumageira: o caso da Empresa Souza Cruz

para a produção, em lugares onde estes não existem, por exemplo, o desen­
volvimento de sementes e insumos químicos adaptados aos fatores climáti­
cos de determinada região “Os recursos estratégicos são cada vez menos re­
cursos dados e cada vez mais recursos construídos: competências, pesquisa,
infra-estruturas materiais e sociais.” (SPOSITO, 2008, p.90)
No caso do fumo, por ser uma atividade pouco mecanizada, a pro­
dução ainda necessita de regiões com características particulares como,
por exemplo, uma região com alta fragmentação fundiária e baseada na
mão-de-obra familiar. Evidentemente, com o desenvolvimento tecnológi­
co, com a melhoria na fluidez do território tanto para a circulação de in­
formações como de mercadorias, hoje, a produção está presente em áreas
que, historicamente, não apresentavam condições para a produção.
Quando os lugares são atingidos de modo direto ou indireto pelas
necessidades dos processos produtivos, surgem seletividades e hierarquias,
ocorrendo uma reorganização das funções entre as diferentes frações do
território; cada espaço torna-se importante efetiva ou potencialmente, de­
vido as suas virtualidades naturais ou sociais (Santos 1997).
Dentre as práticas espaciais utilizadas pela Souza Cruz, destacamos
a seletividade espacial, pois ela foi fundamental no processo histórico de
organização do Complexo Agroindustrial (CAI) Fumageiro, principalmen­
te no Sul do Brasil, já que a empresa selecionou as áreas para a produção,
conforme os atributos de cada região. Um exemplo disso foi a escolha da
região do Vale do Rio Pardo como capital multinacional fumageira. Isso
se deu pela existência de condições ambientais favoráveis à produção do
fumo assim como outros atributos territoriais favoráveis, que já existiam,
como a estrutura minifundiária, o predomínio da força de trabalho fami­
liar, além da produção de fumo ser tradicional na região, iniciando com
os indígenas e tendo continuidade com os imigrantes. Outro aspecto que
atraiu as multinacionais fumageiras foi a estrutura, já existente de comer­
cialização e de processamento do fumo, a mão-de-obra disponível e a in­
fra-estrutura urbana mínima já instalada, principalmente em Santa Cruz
do Sul e em Venâncio Aires, (Silveira, 2007).
Podemos, então, dizer que a distribuição dos atributos sociais das
formas de produção é anterior à produção. Segundo Marx, a distribuição,
antes de ser a concepção banal da repartição dos produtos, é: “[...] distri­
buição dos instrumentos de produção e, [...] distribuição dos membros da
sociedade pelos diferentes gêneros de produção [...]” (1983, p.214); deve-se
levar em conta essa distribuição porque “[...] a distribuição dos produtos é
implicada por esta distribuição, que constitui na origem um fator de pro­
dução [...]” (1983, p. 214).

[...] Se, partindo do princípio de que a produção tem necessariamente o seu


ponto de partida numa determinada distribuição dos instrumentos de produ­

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ção, concluíssemos que a distribuição, pelo menos neste sentido, precede a


produção, constituindo a sua condição prévia, poderíamos responder, à ques­
tão posta afirmando que a produção tem efetivamente as suas próprias condi­
ções e premissas, que constituem os seus fatores. Estes podem surgir a prin­
cípio como dados naturais. O próprio processo da produção transforma estes
dados naturais em dados históricos e se é certo que surgem num determinado
período como premissas naturais da produção, num outro período foram o
seu resultado histórico. São constantemente modificados no próprio quadro
da produção. A máquina, por exemplo, modificou tanto a distribuição dos
instrumentos de produção como a dos produtos. A grande propriedade lati­
fundiária moderna é o resultado não só do comércio e da indústria modernos,
como da aplicação desta última à agricultura. (MARX, 1983, p. 215)

Percebemos alguns desses aspectos na organização logística das re­


des de produção e circulação da Souza Cruz como os já citados atributos
favoráveis à produção do fumo no Vale do Rio Pardo, os quais atraíram as
indústrias fumageiras; percebemos também no Sudoeste do Paraná. Con­
forme dados do IBGE (1995/96), na maioria dos municípios, há predomi­
nância de minifúndio e mão-de-obra familiar. A Souza Cruz, no Sudoeste
paranaense, iniciou a construção da infra-estrutura para a produção do
fumo na década de 1950, durante o período mais intenso da migração gaú­
cha para região, mesmo ela não apresentando todas as condições favorá­
veis para a produção, a empresa designou um inspetor para iniciar a orga­
nização da produção fumageira.
O sistema capitalista utiliza cada espaço conforme os atributos que
ele tem a oferecer em determinado momento. Atualmente, os centros de
pesquisa, desenvolvimento, departamento gráfico e interacion da Souza
Cruz, estão localizados no Rio de Janeiro e o centro administrativo em
São Paulo; isso pode estar ligado ao fato de as duas cidades serem cen­
tros urbanos dinâmicos e, principalmente, no caso de São Paulo, por ser o
maior centro econômico e tecnológico do Brasil, uma metrópole mundial,
que permite maior integração ao mercado pela estrutura que possui, como
os principais aeroportos, por exemplo. Das quatro usinas que recebem a
produção dos agricultores, três ficam no Sul do Brasil, pois é onde se con­
centra a maior parte da produção; localizam-se em: Blumenau (SC), Patos
(PB), Rio Negro (PR), Santa Cruz do Sul (RS), Santa Cruz do Sul (RS) e
Rio Negro (PR). Algumas das outras sedes são: Cachoeirinha (RS), Uber­
lândia (MG); as centrais integradas de distribuição: Contagem (MG), Curi­
tiba (PR), Porto Alegre (RS), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ), São Paulo
(SP); as fazendas de reflorestamento: Pântano Grande (RS), Prata (MG),
Rio Negrinho (PR).
Essa organização demonstra que a produção de fumo da Souza Cruz
pode ter constituído um território de produção, distribuição das sedes e das
áreas agrícolas produtoras, em função da distribuição dos instrumentos de

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As territorialidades da produção fumageira: o caso da Empresa Souza Cruz

produção. Porém, o desenvolvimento tecnológico e científico modificou a


distribuição dos instrumentos de produção, como, por exemplo, a Souza
Cruz desenvolveu sementes de fumo – acompanhadas de um pacote de insu­
mos químicos – que se adaptam a lugares, onde antes não era muito propício
à produção de certas qualidades de fumo, devido às condições ambientais.
Com a instalação da BAT, através da Souza Cruz, no Sul do Brasil, a
indústria fumageira implementou inovações tecnológicas no plantio de fumo
como o uso de estufas de cura do fumo e o emprego de adubos químicos,
além de proporcionar, através do sistema de integração, inovações nos siste­
mas organizacionais e trazer outras variedades de fumo como o Virgínea2 .
Com isso percebemos que a indústria do fumo utiliza-se das carac­
terísticas espaciais pré-existentes, principalmente do trabalho familiar
nos pequenos estabelecimentos, que utiliza algumas práticas tradicionais
como a tração animal e trabalho braçal. Ela se utiliza destas atividades
tradicionais incorporando-as com as inovações tecnológicas. O principal
motivo dessa incorporação deve-se á produção de fumo ser uma atividade
pouca mecanizada e demandar muita mão-de-obra. Assim, a moderniza­
ção da agricultura não é homogênea, uma vez que “[...] o velho não é su­
primido, eliminado, mas superado, permanecendo, parcialmente, no novo
[...] O novo contém em si o velho [...] ”(SAQUET, 2007, p.163).
A indústria fumageira apropria-se do conhecimento dos agricultores
no trato com a terra e repassam para eles somente o desenvolvimento tecno­
lógico necessário para a produção. Segundo Raffestin (1993), as empresas
multinacionais, como a Souza Cruz, produzem o conhecimento de uma for­
ma espacializada; o desenvolvimento da pesquisa é realizado nos países de
origem e as informações são transmitidas internamente das matrizes para
as filiais, garantindo a exclusividade do conhecimento do desenvolvimen­
to tecnológico. Nos centros secundários, também são realizadas pesquisas,
mas somente as matrizes têm os resultados. Para aperfeiçoar a produção
fumageira, as empresas realizam pesquisas sobre as melhores variedades de
produtos a serem utilizadas e os resultados da pesquisa são repassados para
o departamento responsável pelo desenvolvimento das variedades. As multi­
nacionais não descentralizam os locais onde são geradas as inovações.
As grandes corporações não transferem a tecnologia para países me­
nos desenvolvidos (Raffestin, 1993), entretanto, expandem o seu território

2
A qualidade de fumo denominado Virgínia representa, segundo dados da Souza Cruz, 80%
da produção nacional. Essa espécie de fumo tem algumas particularidades em relação ao
fumo Burley, o Virginia, no momento da colheita, tem as folhas tiradas do seu caule, progres­
sivamente, conforme elas forem madurando, não é cortado todo o pé de uma vez só como
na colheita do Burley, outra particularidade é que ele é curado em estufas com fornos a le­
nha. Em nossa pesquisa enfocaremos a produção do fumo Burley (que corresponde a 15%
da produção da Souza Cruz) e a do fumo Comum (o qual corresponde a 5% da produção da
Souza Cruz) que são as variedades produzidas na Linha Itaíba.

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Luís Carlos Braga

para os países menos desenvolvidos, para obterem a matéria-prima, a qual


não precisa de uma boa qualificação técnica para a produção, assim é pos­
sível explorar a mão-de-obra barata.
Na produção de fumo, podemos distinguir as três formas de tecno­
logias apresentadas por Raffestin:
a) “tecnologia; alienada, cedida em virtude de um acordo particular,
que é a informação não-livre, secreta, cristalizada de uma forma complexa
nos produtos, capitalizados nos bens intermediários e nos bens de capital”
(1993, p. 247). Essa tecnologia na produção do fumo é passada através dos
pacotes tecnológicos que contêm os insumos, os quais são utilizados pelo
produtor sem a compreensão de como foram geradas e quais são os seus
reais efeitos; b) a “tecnologia socializada, disponível sem restrição, que é a
informação livre” (1993, p. 247); seria passada aos produtores através dos
técnicos e materiais de orientação; tais orientações fazem com que o pro­
dutor cumpra as etapas da produção do fumo. c) A “tecnologia encarnada,
o conhecimento de base, o saber-fazer assimilado pelos homens” (1993,
p. 247); a indústria fumageira aproveita o conhecimento que os agriculto­
res já possuem no trato com a terra.
A concentração da tecnologia faz com que as empresas tenham o
poder de manter e articular o seu território. Os agentes econômicos, po­
líticos e culturais rearranjam, remodelam o território conforme os seus
interesses, por isso ele é superposto, contínuo e descontínuo; o que era
estável para a maioria é desestabilizado/destruído e reorganizado/recons­
truído de outra forma pela minoria que detém a maior parte do capital.
A Souza Cruz organiza o seu território de uma forma racional (para ela),
com o propósito de reproduzir o seu território e, consequentemente, acu­
mular capital.
Nesse sentido, as indústrias fumageiras organizaram e reorganizam
o seu território; em algumas regiões, as influências por elas proporciona­
das são mais perceptíveis impactantes em um período menor de tempo; em
outras regiões, as ações da Souza Cruz são mais gradativas e quase não são
perceptíveis. Os investimentos, na região Sul, nas décadas de 1980 e 90:

[...] resultaram na compra, ou na ampliação, ou na construção e/ou na mo­


dernização de um conjunto de objetos técnicos demandados diretamente
pelo capital fumageiro, como novas plantas industriais – usinas de benefi­
ciamento e fábricas de cigarro -, novas instalações de apoio à produção e à
circulação, como centros de pesquisa, pontos de compra de fumo, centros
logísticos e de distribuição de insumos, de fumo e de cigarros. Investimentos
esses que também foram importantes na aquisição de equipamentos, ma­
quinários, no funcionamento de novas linhas de processamento, bem como
possibilitaram a promoção [...] a inovação tecnológica no plantio, na cura,
no beneficiamento e na comercialização do fumo, o aumento no número de
produtores rurais integrados [...]. (SILVEIRA, 2007, P. 386)

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As territorialidades da produção fumageira: o caso da Empresa Souza Cruz

Desse modo, algumas regiões sofreram modificações mais bruscas


como o caso das cidades de Venâncio Aires e de Santa Cruz do Sul, pois foi
nessas cidades que as empresas fumageiras instalaram suas sedes, deman­
dando mão-de-obra para as fábricas, propiciando a circulação de pessoas
de várias regiões do mundo, aumentando a circulação de veículos das em­
presas e de caminhões trazendo a produção assim como a concentração
de órgãos ligados à produção de fumo como sindicatos, por exemplo, que
passaram a situar-se nessa região. Aumentou também a produção de fumo
nas áreas agrícolas mais próximas devido à possibilidade de fornecimento
de insumos e à comercialização da produção.
No Sudoeste do Paraná, as ações da Souza Cruz deram-se de for­
ma mais lenta, e o território da empresa não é tão visivelmente percebido,
pois ela não possui nem uma sede na região. A expressão do território da
empresa nessa região, dá-se pelas construções nos estabelecimentos des­
tinadas a produção, pelas relações dos agricultores com a empresa e pe­
las modificações ocorridas na rotina cotidiana (daqueles), muitas vezes,
subjetivamente abstraídas pelos agricultores. Os representantes diretos da
Souza Cruz são os técnicos agrícolas e agrônomos da empresa; são 10 no
Sudoeste paranaense, cada um possui uma estimativa de produção de 500
toneladas por safra. Esses representantes são os técnicos agrícolas, res­
ponsáveis pelas orientações técnicas, pelo estabelecimento dos contratos,
pedidos de insumos, financiamentos, ou seja, são os intermediários entre
a empresa e os fumicultores. A função do técnico está especificada no con­
trato da seguinte forma:

Considerando que a COMPRADORA desenvolveu, ao longo do tempo, téc­


nicas agrícolas especificas para o cultivo do fumo, que serão disponibili­
zadas para o produtor através de orientação prestada por profissionais
qualificados para tanto, (grifo nosso) bem como venderá e/ou recomen­
dará os insumos agrícolas necessários, adequados e aprovados para o cul­
tivo do fumo, tudo no intuito de buscar melhores resultados em termos de
produtividade e qualidade da produção de fumo do PRODUTOR de forma
a atender as exigências da COMPRADORA para produção de seus cigarros
e o atendimento de seus clientes no exterior. (Contrato de integração safra
2008/09)

Outro aspecto perceptível é a existência de pequenos núcleos de pro­


dução de fumo dispersos pela região, não existe uma grande concentração
de estabelecimentos produtores de fumo. Isso pode estar relacionado à dis­
tribuição dos instrumentos de produção ou, conforme Corrêa (1992), essa
desconcentração das áreas de produção seria uma estratégia da empresa
para que não ocorra agrupamentos de grande número de agricultores pos­
sibilitando mobilizações para reivindicação de melhorias na relação entre
fumicultor e empresa.

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Luís Carlos Braga

Dessa forma, as áreas agrícolas produtoras de fumo no Sudoeste do


Paraná fazem parte do território da Souza Cruz, e consequentemente, da
BAT. A diferença está na função, na dinâmica do tempo e também nos as­
pectos da economia, cultura, política, produção de cada área que faz parte
do território da empresa.
Essa integração ao território das indústrias fumageiras faz com os
agricultores sejam influenciados em suas atividades por fatores endóge­
nos, mesmo que, na maioria das vezes, não haja a presença materializada
desses fatores: “É possível dominar sem estar presente.” (SAQUET, 2008,
p. 169). Assim, os fumicultores fazem parte do território das empresas que
fabricam cigarros e importam do Brasil, através da Souza Cruz, a maté­
ria-prima; mesmo não estando presentes materialmente e a maioria dos
agricultores não tendo conhecimento de quais sejam, elas exercem forte
influência sobre os agricultores, pois são elas que determinam quais as ca­
racterísticas do fumo para o mercado.
Desse modo, os fumicultores produzem o fumo conforme a padro­
nização destas fábricas e, no momento da classificação, se não estiver nos
padrões indicados, ocorre uma queda significativa no preço do quilo de
fumo. Assim, os agricultores fazem parte de vários territórios ao mesmo
tempo; em alguns momentos, estão mais ligados a determinados territó­
rios e desligados de outros, mas são influenciados, controlados a todo mo­
mento, devido às relações, à sobreposição dos territórios dos agentes eco­
nômicos. Nessa conflitualidade de interesses entre os agentes envolvidos
na produção do fumo, os fumicultores são os mais vulneráveis, relativa­
mente passivos e subordinados. Eles mal compreendem a dimensão da
complexidade das relações de subordinação nas quais estão envolvidos,
não percebem que a sua autonomia, em relação aos meios de produção e a
mão-de-obra, foi parcialmente rompida.
Os territórios são superpostos, heterogêneos e descontínuos mas
também são contínuos e interligados com outras redes e territórios de es­
cala maior e movidos pela lógica do capital da dominação social e política
cuja dimensão cultural é envolvida pelos fluxos mercantis (Saquet, 2003 e
2007).
Assim, todo esse circuito da produção integra vários lugares, todavia
isso não significa a homogeneidade dos tempos e espaços, mesmo diante
do fato da sociedade estar cada vez mais mundializada.
Apesar da globalização ser uma realidade, as estruturas profundas
da nação jamais serão mundializadas completamente, pois apesar de as
instituições estarem presentes em todos os países, as classes ainda são de­
finidas territorialmente. E os inúmeros Estados, definidos em função de
suas heranças históricas, são, assim, uma porta de entrada e uma barreira
para as influências exógenas. Vivemos uma globalização inacabada, porém
que afeta todos os aspectos da vida (Santos, 1997). Segundo Santos:

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As territorialidades da produção fumageira: o caso da Empresa Souza Cruz

Numa situação em movimento, os atores não têm o mesmo ritmo, movem-


se segundo ritmos diversos. Portanto, se tomarmos apenas um momento,
perdemos a noção do todo em movimento. Os cortes no tempo nos dão
situações em um determinado momento. Não captam o movimento, são,
apenas, uma fotografia. Já o movimento é diacrônico, e sem isso não há
historia. Não haveria dialética se o movimento dos elementos se desse de
maneira sincrônica [...] Cada lugar tem, pois, variáveis internas e externas.
A organização da vida em qualquer parte do território depende da imbrica­
ção desses fatores. As variáveis externas se internalizam, incorporando-se à
escala local. Até o momento no qual impactam sobre o lugar são externas,
mas o processo de espacialização é, também, um processo de internalização.
(SANTOS, 1997, p. 95-97)

As relações entre o interno e o externo, entre as unidades que for­


mam a totalidade dão origem a um desenvolvimento desigual entre os lu­
gares, pois cada espaço apresenta um ritmo diferente de tempo, já que as
inovações e o “desenvolvimento” não chegam instantaneamente a todos
os lugares. O tempo é formado por tempos lentos e tempos mais rápidos
(Saquet, 2000) e, nesse processo, ocorre a interligação de espaços e tempos
heterogêneos.
Cada espaço possui um ritmo diferenciado de tempo. Segundo SAN­
TOS (1997), “O espaço total é constituído de subespaços: agrícolas, urba­
nos, mineiros, estratégicos etc.” (p. 112).

Há um processo histórico e articulações escalares [...] Cada indivíduo age,


ao mesmo tempo, em diversas redes, participando com objetivos, formas,
intensidades e significados distintos, no mesmo ou entre diferentes lugares.
(SAQUET, 2007, p. 15)

Cada fração do espaço mundial só pode ser compreendido em fun­


ção do espaço global. Ou seja:

[...] a multiplicação das ações que fazem do espaço um campo de forças


multidirecional e multicomplexas, onde cada lugar é extremamente distin­
to do outro, mas também claramente ligado a todos os demais por um nexo
único, dado pelas forças motrizes do modo de acumulação hegemonicamen­
te universal. (SANTOS, 1997, p. 34)

O complexo fumageiro é organizado/articulado à agricultura fami­


liar, na sua forma capitalista mais avançada; “donos” localizam-se nos pa­
íses desenvolvidos e as processadoras, articuladas aos agricultores fami­
liares, estão localizadas nos países menos desenvolvidos, onde é possível
explorar a mão-de-obra barata, extraindo a mais-valia absoluta, para a pro­
dução da matéria-prima.
Nesse processo de integração entre as diferentes escalas, são uti­
lizadas técnicas – em todos os lugares – sem haver consideração pelos

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Luís Carlos Braga

sistemas locais de recursos naturais e humanos, ocorre a sobreposição


de realidades econômicas e sociais diferentes, resultando em processos
distorcidos e desiguais em todos os lugares. Desse modo, o problema está
em reconhecer o efeito dessas superposições sobre a existência de cada
sociedade (Santos, 1997).
O que está ocorrendo é um progressivo aumento da participação
dos países periféricos tanto na produção do fumo como no consumo do
cigarro.
Ao se territorializar nesses novos espaços para o capital, as indús­
trias fumageiras aprofundam as relações capitalistas, contribuindo para a
mundialização do capital, além de destruírem e/ou redefinirem as formas
antigas de produção e a cultura.

É por isso que no capitalismo, o princípio básico do intercâmbio com a natu­


reza, como forma de satisfazer as necessidades de consumo ganha novos con­
tornos, já que as necessidades passam a ser dimensionadas não mais a partir
do parâmetro das necessidades vitais, como alimentação, vestuário e abrigo,
mas com a mediação de um motor de propulsão de necessidades, a fim de in­
tensificar o consumo de mercadorias, condição indispensável para a acumu­
lação. [...] Se nos demais modos de produção, os mecanismos de exploração
tinham como fundamento o desfrute de maior quantidade e qualidade de ali­
mentos, vestuário, entre outros, sem que para isso os membros dominantes
da sociedade necessitam despender trabalho, no capitalismo a regra das ne­
cessidades é reiteradamente alterada, para que sejam criadas oportunidades
produtivas das quais depende o funcionamento do sistema. Cria-se, assim, um
ciclo em que a imposição de novas necessidades de consumo sustenta o ritmo
da produção de mercadorias. (PAULINO, 2008, p. 227)

Na produção do fumo percebemos esse ciclo na subordinação da


renda da terra ao capital monopolista, através de um duplo movimento de
circulação;

[...] circulação de insumos agrícolas do setor industrial para o setor agrí­


cola e circulação da matéria-prima do setor agrícola para o industrial. No
primeiro movimento, quando a indústria fornece insumos agrícolas moder­
nos, define-se a posição subordinada do pequeno produtor no processo de
produção e comercialização de fumo, e, no segundo movimento, dá-se apro­
priação, pela indústria, do excedente econômico gerado pelo produtor. Na
verdade, neste tipo de articulação indústria/agricultura ou grande/pequeno
produtor agrícola, tanto a propriedade privada da terra como o caráter mer­
cantil da produção agrícola descaracterizam-se diante da posição subordi­
nada ao capital industrial. (OLIVEIRA, 1980, p. 45)

Esse duplo movimento é proporcionado pelo sistema de integração,


por sua vez, viabilizado pelo contrato. A lucratividade da empresa está em
comprar o fumo por preço o mais baixo possível, deixando para o produtor

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As territorialidades da produção fumageira: o caso da Empresa Souza Cruz

uma renda média, que apenas possibilita a sua sobrevivência, sem a possi­
bilidade de acumular capital.
Nesse processo, a Souza Cruz tem o controle a montante e a jusante
da produção, visto que, por um lado, ela torna os fumicultores dependentes
do seu pacote tecnológico de insumos químicos, pois a maioria dos produ­
tos dificilmente serão encontrados no mercado, já que são desenvolvidos
especificamente para a produção do fumo, por exemplo, sementes, adubos
químicos, fungicidas e inseticidas. Além da dependência em relação à as­
sistência financeira (para o financiamento da construção da infra-estrutu­
ra e compra de implementos para a produção) e da assistência técnica para
a realização das etapas da produção, ambas prestadas pela empresa. Esse
monopólio de insumos é tão centralizado que algumas variedades de se­
mentes mais desenvolvidas cientificamente somente a Souza Cruz possui a
patente. Essa dependência é oficializada no contrato que permite ao fumi­
cultor só comprar os insumos da empresa à qual está integrado.
Na outra ponta, ela torna os fumicultores dependentes em relação à
comercialização, pois não há comercialização local da produção, e o con­
trato prevê que o fumo só pode ser entregue à empresa à qual o produtor
está integrado; além disso, a Souza Cruz possui um sistema de classifica­
ção das folhas muito complexo, realizando essa classificação na fábrica
sem a participação do agricultor.
Em relação à comercialização da produção, é importante lembrar­
mos que, nas últimas duas safras 2006/07 e 2007/08, no Sudoeste/PR, al­
guns agricultores venderam a produção para os chamados “atravessado­
res”, os quais revendem a produção para outras empresas a maioria nos
países vizinhos, principalmente Argentina e Paraguai, ou para a própria
Souza Cruz. Os fumicultores são atraídos pela oferta de melhor preço e
pelo fato de que, na comercialização com os “atravessadores”, não, há des­
conto de impostos, de transporte, nem amortização das dívidas, a classifi­
cação/negociação do preço do quilo do fumo e o pagamento são realizados
nos estabelecimentos, no momento do carregamento. Além dos “atravessa­
dores”, representantes de empresas concorrentes da Souza Cruz também
compraram fumo de agricultores integrados a ela, desrespeitando o acor­
do existente entre as empresas. Tal acordo prevê que uma empresa não
deve entrar no território da outra; esse acordo existe, segundo informações
de um dos representantes da empresa no Sudoeste paranaense, e é respon­
sabilidade (deste) “fiscalizar” para que isso não ocorra, pois o representan­
te tem uma estimativa de produção a entregar, é pressionado para atingi-
la, e a pressão sofrida por ele é repassada aos fumicultores, porquanto para
estes também são estipuladas estimativas de produção.
O mercado informal de cigarros, segundo dados da Souza Cruz
(2009), atualmente, corresponde há quase 30% do mercado de cigarros. A
oferta de cigarros ilegais deveu-se à expansão das fábricas principalmente

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no Paraguai e no Uruguai, onde, entre os anos de 1993 e 2004, o número


de fábricas de cigarros aumentou de 5 para 33 (Silveira, 2007). A diferen­
ça de preços entre os cigarros comercializados no mercado formal e no
informal é da ordem de 48%. Os produtos informais ficam à margem de
qualquer tipo de regulamentação, fiscalização ou controle sanitário. Para
os agricultores a compra do fumo pelos “atravessadores” é um ponto po­
sitivo, pois proporciona uma concorrência com a empresa integradora. A
Souza Cruz sempre adota medidas para tentar evitar essa comercializa­
ção como, por exemplo, a cláusula contratual que prevê uma multa para o
produtor que não entregar a estimativa de produção prevista no início da
safra. Para burlar essa cláusula, os fumicultores plantam uma quantidade
de fumo a mais, além daquela quantidade prevista no contrato. Para con­
seguir plantar essa quantia a mais, os agricultores pedem mais insumos
(principalmente sementes), alegando que houve alguma perda na produ­
ção por ataque de pragas ou doenças e é necessário replantar. Ao mesmo
tempo, o mercado informal gera concorrência e sonega impostos. O agri­
cultor considera mais importante a situação que lhe proporcione um re­
torno mais imediato; neste caso, ele desconsidera a sonegação dos impos­
tos, pois para ele o importante é conseguir receber um pouco de dinheiro
a mais. Para os agricultores,

[...] o espaço cotidiano dos trabalhadores diretos, sejam assalariados ou não,


corresponde ao aqui onde vivo, aquilo que faço, ao lugar propriamente dito.
E o tempo cotidiano daqueles indivíduos corresponde ao agora, ao imediato,
ao presente somente. (SAQUET, 1996, p. 74)

Nas produções capitalistas que visam somente o lucro, os agriculto­


res têm somente a impressão que vão conseguir acumular capital, quando
na verdade essa integração ao capitalismo hegemônico pode ser a “porta”
de entrada para a expropriação e a subordinação dos agricultores. Sendo
assim, a maioria não conseguem sobreviver produzindo somente para o
mercado, necessitam conjugar a produção para o mercado com formas de
produções tradicionais ou alternativas.

Considerações finais
A explanação sobre os processos da produção fumageira, demons­
tram que as territorialidades são geradas pelos atores e suas relações de
poder, os quais produzem dinâmicas sociais que imprimem as característi­
cas de cada território, determinando limitações mas também transposições
desses limites políticos e administrativos através de ligações em redes.
Os territórios da produção do setor agroindustrial fumageiro são
resultados espaciais da unidade contraditória entre as etapas de produção,
de distribuição, de troca e de consumo. Esses territórios são a expressão

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As territorialidades da produção fumageira: o caso da Empresa Souza Cruz

do desenvolvimento tecnológico, científico e da informação que moderni­


zaram os processos produtivos do fumo e do cigarro, também são resulta­
dos das estratégias adotadas pelo capital monopolista fumageiro, que age
tanto na escala nacional como na internacional. As malhas dos circuitos
são resultados das várias relações sociais e espaciais, estabelecidas entre
as diferentes escalas geográficas, que envolvem distintas articulações, eco­
nômicas, políticas e culturais.
O conflito territorial que percebemos, neste caso, aumenta cada vez
mais devido à lógica capitalista presente na sociedade. É um processo con­
traditório que implica interesses mercantis, ao mesmo tempo, necessida­
des e desejos referentes à simples sobrevivência de cada família agriculto­
ra. Há um campo de forças que envolve as famílias e os condiciona cada
vez mais a se inserirem no modo capitalista de produção como força de
trabalho subordinada para produzir alimentos e matérias-primas a baixos
preços.
Diante do exposto, ao nosso ver, a produção do fumo não pode ser
indicado como uma produção que apresente um projeto de futuro em que
o agricultor possa continuar a produzir, por todas as questões de subordi­
nação apresentadas e também porque existem campanhas anti-tabagistas,
realizadas inclusive pelo Estado que, conseqüentemente, poderão influen­
ciar diretamente na produção.

Referências:
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em: 20 jan. 2009.
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Luís Carlos Braga

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Desafios do desenvolvimento territorial
1
para a agricultura familiar

Prof.ª Dr ª. Roselí Alves dos Santos


UNIOESTE | roseliasantos@gmail.com

Falar de território é fazer uma referência implícita à noção de limite que,


mesmo não sendo traçado, como em geral ocorre, exprime a relação que um
grupo [ou um indivíduo] com uma porção do espaço. A ação desse grupo
gera, de imediato, a delimitação. [...] Sendo a ação sempre comandada por
um objetivo, este é também uma delimitação em relação a outros objetivos
possíveis. (RAFFESTIN, 1993, p.153)

É com base na leitura realizada por Raffestin e outros autores que é


utilizado o conceito de território como lócus de formas de poder seja ela do
Estado ou de outras formas de organização. É sobre esta perspectiva que o
território se constitui no conceito central para esta proposta de análise do
desenvolvimento, em especial o da agricultura familiar.
Neste sentido, a busca de uma apreensão do território deve primar
pelo reconhecimento como destaca Saquet (2009, p.73) dos processos si­
multâneos e sucessivos de apropriação, dominação e produção destes.

(...) assim como as relações de poder, as identidades simbólico-culturais


(traços comuns), as contradições, as desigualdades (ritmos lentos e rápi­
dos), as diferenças, as mudanças (descontinuidades), as permanências (con­

1
Texto elaborado a partir da comunicação livre apresentada no XIX Encontro Nacional de
Geografia Agrária.

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Desafios do desenvolvimento territorial para a agricultura familiar

tinuidades), as redes de circulação, de comunicação e a natureza interior e


exterior ao homem como ser genérico (biológica e socialmente) (SAQUET,
2009, p.73).

A identidade é uma construção processual, ligada a estrutura tem­


po-espaço, e implica relações multidimensionais. Na geografia agrária um
conceito muito presente, porém não unânime entre seus estudiosos é o de
agricultura familiar, no caso do sudoeste do Paraná essa organização terri­
torial se constitui a base de identificação territorial. Assim, a compreensão
e abordagem territorial a partir da qual buscamos apoiar nossas ações nos
tem revelado um ponto de unidade, que permite distinguir processos terri­
toriais singulares que possibilita ratificar o que na prática as organizações
populares têm denominado de território da agricultura familiar.
Esse território se distingue pelo seu processo histórico de intensa
organização política de homens e mulheres em torno de uma agricultura
de base familiar, fundamentada na produção da policultura e, muitas ve­
zes, na produção integrada, na própria monocultura do pacote tecnológico,
como destaca Santos (2008), distinguindo-se de outras formas de organiza­
ção pela lógica que a norteia que é a garantia deste espaço como condição e
modo de vida, o qual se constitui em um embate cotidiano com outras lógi­
cas estruturantes, que se embrenham a partir de suas fragilidades.
A concepção de território é compreendida no caso da agricultura
familiar como uma forma de resistência e sobrevivência, para homens e
mulheres que desde a década de 1940 tem construído sobre este espaço
relações de apoderamento do espaço a partir da política, da economia, da
cultura e também de acordo com as condições naturais.
Assim, o território é definido como o lugar onde se estabelecem as
relações de poder e tem sua singularidade expressa pela sua identidade,
embora o território possa ser composto de múltiplos territórios e territo­
rialidades. É nele que se constroem e se destroem ou ainda se sobrepõem
as diferentes formas de desenvolvimento e, nesse contexto, são edificadas
as condições materiais para construção de uma outra forma de desenvol­
vimento para a agricultura familiar, capaz de garantir a integração das di­
mensões econômicas, políticas, culturais e naturais, nas quais os sujeitos
são protagonistas empoderados para a tomada de decisão que beneficiam
o coletivo da sociedade. Assim, a identidade é um elemento fundamental
para definição do território, porém, é importante destacar que tal singu­
laridade não impõe a ele um isolamento, ao contrário, a constituição em
rede é outra característica basilar na sua constituição, uma vez que as rela­
ções de poder que marcam e demarcam o território acontecem a partir da
articulação de diferentes escalas e sujeitos sociais.
A compreensão do território vem atrelada a de desenvolvimento
territorial, que ocorre a partir da potencialização das condições naturais

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Roselí Alves dos Santos

e sociais que são construídas e reconstruídas neste espaço. A utilização


da abordagem territorial na compreensão do espaço agrário do território
da agricultura familiar faz sentido na medida que contribua para uma
visão mais integrada do espaço, percebendo suas mutifacetas, ao mesmo
tempo em que tem na sua identidade territorial um elo que permita sua
dinamização.
Quando se faz referência ao desenvolvimento territorial como uma
possibilidade de melhoria das condições para a agricultura familiar no
Brasil se considera sua importância como produtora de alimentos, gera­
dora de emprego, além de apresentar potencialidade para a maior auto­
nomia dos agricultores e agricultora decorrente das dinâmicas internas
de produção agrícola, das parcerias em sistemas de economia solidária
seja produção, comercialização ou assistência técnica. Evidentemente, que
o conceito de agricultura familiar utilizado engloba formas de produção
com dependência total do mercado e que se caracteriza pelo trabalho e
gerenciamento familiar da unidade de produção agrícola, a qual possui
grupo mais ou menos estruturado. Mas empregabilidade do conceito da
agricultura familiar é utilizado a partir da concepção de um grupo de pe­
quenos agricultores que produz com base no trabalho familiar e que a vida
no campo não se restringe ao processo produtivo, apesar da relevância des­
te o que pode ser verificado com o aumento da participação da agricultura
familiar na produção de alimentos, mas que ao mesmo tempo estabelece
vínculos multidimensionais que permite a sua compreensão como um ter­
ritório específico. Assim como destaca Santos (2008), a agricultura fami­
liar envolve a produção agropecuária que se estrutura pela organização da
vida em comunidades, na organização de uma família patriarcal, na ade­
quação técnica utilizando técnicas consideradas rudimentares, na divisão
do trabalho pela família, nas praticas e ações solidárias, na organização
política em torno do crédito, ATER, produção e comercialização as quais
revelam uma especificidade territorial, que a caracteriza para além da di­
mensão econômica, porém o estudo desta é dificultado justamente pela
sua singularidade territorial, cujos estudos quando baseados em dados não
expressão a sua concretude, exigindo assim uma leitura mais específica de
sua dinâmica territorial.
A especificidade territorial (que não é sinônimo de locacional) da
agricultura familiar brasileira exige um esforço de compreensão para as
diferentes áreas do conhecimento que se debruçam a compreendê-la, as­
sim como as diferentes organizações governamentais e não-governamen­
tais que objetivam a melhoria das condições de vida dos agricultoras e
agricultoras familiares pelo desenvolvimento ou não se ações solidárias.
Os diferentes focos de pesquisa e de atuação, no geral, convergem para a
importância que a agricultura familiar representa ao país e destacam a ne­
cessidade da sua dinamização.

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Desafios do desenvolvimento territorial para a agricultura familiar

Neste contexto, considera-se que a construção de uma política de


desen­volvimento territorial é fundamental, que considere o espaço voltado
para produção agropecuária para além da produção econômica, ou seja, uma
política de desenvolvimento territorial e não apenas setorial como a que está
em curso no país desde a implantação do Brasil moderno. Mas o abarcar
desta realidade da agricultura familiar, consiste justamente na dificuldade
encontrada entre o embate teórico e prático. O uso do conceito de território
exprime simultaneamente sua condição de relevância e de dificuldade.
A construção do conceito e a sua aplicabilidade são fundamentais.
Para a geografia a concepção de espaço e território não é considerada si­
nônima, como destaca Saquet (2009), pois assume significâncias distin­
tas. Essas distinções são mais perceptíveis quando buscamos aplicá-las na
compreensão das relações cotidianas que nos envolvem. No uso da abor­
dagem territorial a concepção do território e sua expressão política tomam
relevância. Os estudos de geografia agrária no Brasil nos últimos anos têm
buscado compreender a realidade a partir da concepção de território, jus­
tamente pelo seu caráter dinâmico e relacional entre campo – cidade, entre
os setores da economia e a articulação entre a dimensão interna e externa
ao território. Nesse aspecto a definição da escala é fundamental em uma
abordagem territorial para o desenvolvimento da agricultura familiar.
A concepção da geografia agrária como a área da geografia que se
ocupa dos processos de organização do espaço agrário a partir dos proces­
sos produtivos, suas dinâmicas e desdobramentos territoriais (políticos,
econômicos, culturais e naturais), seja a partir das análises de resistência
a formas dominantes expressas na luta de classes ou ainda de leituras que
se fundam na estruturação produtiva, sem um teor político explicito, tem
encontrado no conceito de território um aporte de sustentação, principal­
mente para os pesquisadores que apresentam uma concepção política de
contraposição à exploração da classe trabalhadora pelo capital.
A concepção de território possibilita a superação da visão fragmen­
tada baseada na divisão setorial, a qual tem sido predominante na estrutu­
ração concreta da agricultura brasileira. A geografia agrária ao se apoiar
na concepção de território para compreender a diferentes relações de po­
der que configuram o espaço agrário, contribui de certa forma com a pos­
sibilidade de mudança da sociedade e assume um compromisso político,
enquanto uma ciência social cuja efetivação de suas ações contribuem
para o desenvolvimento, assim como o fazem outras ciências.
Neste sentido, Silva (2001, p.46) afirma:

Nossos trabalhos mostram que a busca do desenvolvimento da agricultura


mediante uma abordagem eminentemente setorial não é suficiente para le­
var ao desenvolvimento de uma região. Mostraram também que a falta de
organização social – especialmente da sociedade civil – tem se caracterizado

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Roselí Alves dos Santos

como uma barreira tão ou mais forte que a miséria das populações rurais,
especialmente no momento em que a globalização revaloriza os espaços lo­
cais como arenas de participação política, econômica e social para grupos
organizados.
Há concordância com o autor quando este afirma que uma aborda­
gem estritamente setorial não potencializa o desenvolvimento, assim como
uma abordagem territorial que não seja construída a partir de uma visão
endógena integradora e participativa dos atores do território também não
o atinja.
No Brasil a discussão sobre desenvolvimento territorial, como um
caminho alternativo ao desenvolvimento, tomou corpo a partir da década
de 1990. A discussão tem extrapolado a academia e se constituído enquan­
to política pública conduzida pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário
que tem por missão criar oportunidades para que as populações rurais al­
cancem plena cidadania, tornando referência na inclusão social. Este fato
demonstra em qual contexto se insere a discussão sobre desenvolvimento
territorial, pois é visto como meio de dinamizar e potencializar as áreas de
pobreza rural.
Neste contexto, Graziano Silva (2001) apresenta os velhos mitos do
rural brasileiro com a mudança da base técnica da produção e o cresci­
mento das ocupações rurais não-agrícolas. Discute também o surgimento
de novos mitos a partir desta realidade. Entre eles o de que “o desenvolvi­
mento local leva automaticamente ao desenvolvimento”.
Pensar o território implica em estar além do setor, mesmo em uma
região em que a agricultura familiar é predominante, como é o caso do
sudoeste do Paraná, onde os sujeitos do campo não se constituem por si.
Verifica-se o discurso do empoderamento do agricultor familiar, mas isto
implica o domínio das relações econômicas, políticas e culturais, de modo
a reorganizar sua produção e sua unidade de vida.
É fundamental, como afirma Silva (2001), a organização dos atores
sociais, principalmente daqueles que são, geralmente, excluídos, porém é
preciso o desenvolvimento destes em todas as dimensões. Neste caso, o
desenvolvimento territorial urge por uma organização que não descarta a
ação do Estado, ao contrário, esta tende a potencializá-la visando o desen­
volvimento local.
A concepção de desenvolvimento territorial vem atrelada a concep­
ção de sustentabilidade, que tem sido apoderado pelos movimentos po­
pulares com vistas a construção de sociedades mais equitativas, mas é
também um termo que tem feita parte da pauta de discussão de outros
segmentos da sociedade, inclusive o empresarial, como destaca Santos e
Marschner (2008). Para os autores a implementação de um desenvolvi­
mento mais equitativo, depende de uma revisão da concepção do próprio
conceito de desenvolvimento.

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Desafios do desenvolvimento territorial para a agricultura familiar

Para Silva (2001), o desenvolvimento rural sustentável precisa ser


concebido a partir de uma visão integradora entre o rural e o urbano nas
suas diferentes dimensões e com os diversos atores que os compõem. Nes­
ta concepção acredita se que o desenvolvimento rural deva ser construído
a partir de uma dinâmica de desenvolvimento territorial, o qual de fato in­
tegra as diferentes dimensões do território.
Novaes (2001), por exemplo, questiona os problemas sociais e am­
bientais decorrentes do uso do “pacote tecnológico” implantado com a “re­
volução verde”. O autor assevera sobre a importância de escolhas endóge­
nas para solução destes problemas, pois o referido pacote atende a uma
realidade e a interesses exógenos e propõe a constituição de um processo
que envolva diferentes atores e segmentos na construção de uma “sustenta­
bilidade progressiva”. Nesse caso, seria fundamental a definição da forma
de inserção do Brasil no mercado internacional, pois sem a explicitação
dos conflitos não se alcançam os objetivos.
Assim Novais (2001, p.56) destaca que:

Para que seja possível avançar, será preciso começar por definições estraté­
gicas que explicitem qual a inserção internacional desejada pelo país e suas
repercussões na área do desenvolvimento agrário. Essas definições envol­
veriam negociações em vários foros, entre eles os da Organização Mundial
do Comércio, Mercosul, ALCA, FAO – para citar alguns – incluindo questões
como subsídios, legislação de patentes, normas de controle sanitário, meca­
nismo de formação de preços, absorção de custos ambientais (inclusive per­
da da biodiversidade) e energéticos etc.

Sachs (2001), por sua vez, afirma que a agricultura familiar se cons­
titui em um elo central para o desenvolvimento de uma economia susten­
tável, pois além da produção agrícola esta é responsável pela diversidade e
preservação ambiental.
Seguindo esta perspectiva apontada pelo autor, inferi se que a agri­
cultura familiar se constitui num dos elementos de unicidade e favorável ao
desenvolvimento territorial. Diante desta questão, pensar o desenvolvimento
territorial, da agricultura familiar, a partir dos sujeitos do campo é uma po­
sição coerente, embora se compreenda que o desenvolvimento não se limite
a ele. “Em outras palavras, a agricultura familiar afigura-se como uma peça-
chave, embora não exclusiva, do desenvolvimento integrado e sustentável, a
ser definido em escala local, tornando-se como unidade territorial o municí­
pio ou eventualmente consórcio de municípios” (Sachs, 2001, p.79).
A criação de uma política territorial por si também não garante a
efetividade do uso de uma abordagem territorial, pois os mecanismos uti­
lizados são muitas vezes setoriais. No Brasil a política de construção dos
territórios rurais implementadas pelo Mistério de Desenvolvimento Agrá­
rio (MDA) incita a organização de organizações governamentais e não go­

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Roselí Alves dos Santos

vernamentais a realizar a gestão territorial destes espaços. No entanto, os


mecanismos utilizados não se pautam por uma abordagem territorial, in­
clusive pelo desconhecimento desta como uma metodologia de aplicação.
Cada um dos territoriais rurais se constitui de um grupo de gestão coorde­
nado por representantes das entidades que dele participam e são abertos a
outras participações desde que mantida a paridade entre setores governa­
mentais e não governamentais. Apesar da fragilidade se constitui em um
avanço no sentido de possibilitar o debate sobre os rumos do desenvolvi­
mento territorial, imprimindo a necessidade de estabelecer acordos e con­
sensos territoriais para atingir o objetivo territorial traçado, o qual nem
sempre é alcançado.
Mas a política nacional de organização de territórios rurais ou da
cidadania az parte do contexto nacional de diminuição de recursos esta­
tais e de racionalização de recursos. Também, a flexibilização do processo
produtivo é uma característica da atualidade e uma questão implícita a ela
é a reestruturação política, na qual o Estado Nacional é minimizado e sua
gestão, principalmente no que se refere às políticas sociais, é partilhada via
parcerias com governos locais e outras instituições governamentais e não
governamentais. Nesse contexto, à medida que os sujeitos sociais definem
o direcionamento das políticas locais e a aplicação dos recursos, assumem,
em certa medida, para si uma responsabilidade de regulação antes desem­
penhada pelo Estado.
Embora a política de desenvolvimento territorial possa significar
um avanço, por possibilitar a inserção dos atores sociais na construção
das políticas que atendam, ao menos parcialmente suas demandas, por ou­
tro lado, podem significar um recuo por eximir o Estado do cumprimento
do seu papel, enquanto agente social.
Schneider (2004) reforça a tese de Graziano Silva de que a flexibili­
zação produtiva e a descentralização decorrente fazem com que o campo
não seja apenas o lugar da produção agropecuária, mas o espaço no qual
são realizados atividades não agrícolas ou cuja renda não advenha do setor
primário. No entanto, esta realidade em alguns lugares não é expressiva,
como aponta Santos (2008) no sudoeste do Paraná, território de expressiva
organização de agricultores familiares no Brasil, a renda agrícola ainda é
significante, embora os dados apontem para a participação expressiva do
Pronaf e das aposentadorias na constituição da renda das famílias.
Schneider (2004) aventa que tanto no Brasil, como no exterior a
discussão de desenvolvimento rural a partir de uma abordagem territorial
tem quatro elementos: a pobreza rural, a protagonização dos atores so­
ciais, o território como unidade de referência e a questão ambiental. Nesse
contexto há convergência para compreensão do território como base para
o desenvolvimento local, a partir da inclusão e participação efetiva dos
atores sociais.

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Desafios do desenvolvimento territorial para a agricultura familiar

Entretanto, o desenvolvimento do território não ocorre apenas local­


mente, existe uma articulação das relações de poder em rede, as quais reme­
tem, muitas vezes, a uma inserção extra-local em decorrência das dimensio­
nalidades que se pretendem atingir com o desenvolvimento territorial.
Para o referido autor à utilização da abordagem territorial se justifica
pela necessidade de substituição da abordagem regional e seus planejamen­
tos insuficientes diante um contexto de neoliberalização econômica e mini­
mização da ação estatal. O uso dessa abordagem é também justificado pelos
problemas não solucionados por uma abordagem de perspectiva setorial,
além do papel que vem assumindo o desenvolvimento endógeno, no qual se
articulam novas e velhas formas de produção com o modo de vida local. Po­
rém o desenvolvimento territorial não deve desobrigar a ação do Estado.
O fortalecimento da abordagem territorial promove uma releitura
do antagonismo campo – cidade, promovendo um entendimento integrado
por meio da constituição territorial.

À medida que a noção de desenvolvimento territorial se foi fortalecendo, as


discussões sobre o papel da agricultura e do espaço rural também se modi­
ficaram. Na verdade, a abordagem territorial promoveu a superação do en­
foque setorial das atividades econômicas (agricultura, indústria, comércio,
serviços, etc.) e suplantou a dicotomia espacial entre o rural versus urbano
ou o campo versus cidade. Na perspectiva territorial, as dicotomias e os an­
tagonismos são substituídos pelo escrutínio da diversidade de ações, estraté­
gias e trajetórias que os atores (indivíduos, empresas ou instituições) adotam
visando sua reprodução social e econômica. Não há determinismo de qual­
quer ordem ou evolução predeterminada, pois a viabilização dos atores e dos
territórios dependerá do modo particular e específico de cada tipo de intera­
ção, das decisões e racionalidades. Como resultado, emergem a diversidade
e a heterogeneidade social e econômica dos territórios, que se constituem no
traço característico dos distintos caminhos e trajetórias que podem ser segui­
dos em direção ao desenvolvimento. (SCHNEIDER, 2004, p. 104- 105).

O território é uma forma de repensar e redimensionar o desenvol­


vimento, mas a organização dos territórios rurais, pode significar outra
forma de setorialização. Por exemplo, na construção do Plano Territorial
de Desenvolvimento Rural Sustentável do Sudoeste do Paraná (PTDRS) os
sujeitos eram, majoritariamente, vinculados a agricultura, deixando expli­
cito que o antagonismo entre o urbano e o rural não foi superado, mas é
um obstáculo a ser vencido. Ao mesmo tempo, no caso desse PTDRS, as
análises realizadas explicitam um antagonismo entre o agronegócio e a
agricultura familiar.
Esse antagonismo decorre além da participação expressa de repre­
sentantes de segmentos da agricultura familiar, do fato de que no Brasil
as suas diferentes identidades culturais, decorrem de um longo processo
histórico de exploração e exclusão da classe trabalhadora e de pequenos

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Roselí Alves dos Santos

agricultores. Outra conseqüência para tal antagonismo deriva do agrone­


gócio tem por base a produção para exportação, pautada em uma lógica
produtiva constituída pelos complexos agroindustriais e em uma forma de
agricultura patronal, considerada antagônicas a lógica da produção fami­
liar. Todavia, compreende-se que o agronegócio é também uma atividade
praticada pela agricultura familiar, porém em condições de menor retor­
nos econômicos, sociais e político.
Uma das criticas referente à prática do agronegócio na agricultura
familiar decorre do fato desta não ter possibilitado o desenvolvimento ru­
ral, nos mesmos patamares que fomentou o crescimento agrícola. É justa­
mente esta realidade que motiva a compreender de que forma o desenvol­
vimento territorial pode promover o desenvolvimento rural, mesmo tendo
clareza que na prática em curso no Brasil, constituída a partir da política
de estruturação de territórios, o desenvolvimento territorial permanece na
perspectiva de um desenvolvimento setorial espacializado, pois visa aten­
der, no Brasil, as regiões rurais de menor desenvolvimento econômico cons­
tituídas, geralmente, pelos agricultores familiares menos capitalizados.
Para Schejtman e Berdegué (2004, p.4), são necessários considerar
os seguintes elementos para um desenvolvimento rural com base no desen­
volvimento territorial:
1. La competitividad determinada por la amplia difusión del progreso
técnico y el conocimiento, es una condición necesaria de sobrevi­
vencia de las unidades productivas.
2. La innovación tecnológica que eleva la productividad del trabajo es
una determinante crítica del mejoramiento de los ingresos de la po­
blación pobre rural.
3. La competitividad es un fenómeno sistémico, es decir, no es un atri­
buto de empresas o unidades de producción individuales o aisladas,
sino que se funda y depende de las características de los entornos en
que están insertas.
4. La demanda externa al territorio es el motor de las transformacio­
nes productivas y, por lo tanto, es esencial para los incrementos de
la productividad y el ingreso.
5. Los vínculos urbano-rurales son esenciales para el desarrollo de las
actividades agrícolas y no agrícolas en el interior del territorio.
6. El desarrollo institucional tiene una importancia crítica para el de­
sarrollo territorial.
7. El territorio no es un espacio físico “objetivamente existente”, sino
una construcción social, es decir, un conjunto de relaciones socia­
les que dan origen y a la vez expresan una identidad y un sentido de
propósito compartidos por múltiples agentes públicos y privados.

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Desafios do desenvolvimento territorial para a agricultura familiar

Os elementos sugeridos pelos autores deixam explicitos que o desen­


volvimento territorial não ocorre em um sistema de ilha, ao contrário, a
articulação em redes de diferentes escalas é fundamental para que os obje­
tivos sejam atingidos. O conceito de desenvolvimento territorial ao mesmo
tempo em que prima por um desenvolvimento integral das dimensões eco­
nômicas, política, cultural e natural contraditoriamente o visualiza ocor­
rendo na sociedade capitalista atual. A contradição consiste, justamente,
no fato desta sociedade se organizar e se desenvolver a partir de um pro­
cesso de exploração. Uma pratica que provocou a existência de lugares ca­
rentes de desenvolvimento.
O desenvolvimento territorial pode ser considerado como uma for­
ma de construção social do desenvolvimento, na qual a dimensão econô­
mica, política, cultural e a natureza estão presentes, principalmente a par­
tir das potencialidades e fragilidades do local.
Neste contexto quando se propõe um desenvolvimento territorial o
conflito é eminente, quer pelos representantes e segmentos mais organi­
zados na perspectiva da modernização e formação dos complexos agroin­
dustriais brasileiros, quer pelas instituições governamentais e não gover­
namentais que se estruturaram para dar subsidio a tal estrutura. Assim o
empoderamento, como elemento fundante, para o desenvolvimento terri­
torial é gestado a partir de conflitos, do qual não se exclui o Estado.
Construir o desenvolvimento a partir de uma perspectiva territorial
implica na existência de uma identidade local, na capacidade de organi­
zação social do atores de determinado território, em uma gestão partici­
pativa desses sujeitos emponderados e com domínio do conhecimento da
realidade na qual se inserem, além de uma gestão mais descentralizada e
participativa, rompendo com uma lógica política praticada há séculos no
país, baseada no paternalismo e no clientelismo. São esses elementos cen­
trais para garantir o desenvolvimento territorial.
Assim para a efetivação de um desenvolvimento territorial é impor­
tante a existência de políticas que potencializem a sua construção e um
Estado forte para subsidiar tais ações. A participação efetiva dos sujeitos
sociais não deve substituir a ação do Estado, ao contrário, essa forma de
desenvolvimento necessita que este se adapte para atender de forma mais
rápida e mais efetiva as demandas produzidas pelos atores sociais de de­
terminado território, sejam elas políticas ou econômicas. O Estado deve­
rá agir como intermediador, via políticas, dos conflitos existentes, assim
como deve institucionalizar meios para possibilitar a participação e a des­
centralização política do território de forma sustentável.
Nesta concepção o desenvolvimento territorial pode ter por base,
tanto um território construído a partir da capacidade de organização so­
cial, como pelo próprio Estado, como é o caso da política de desenvol­
vimento territorial do MDA. Porém a capacidade de organização é fun­

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Roselí Alves dos Santos

damental para garantir a implementação e superar as barreiras que os


conflitos com uma política conservadora local.
Embora haja concordância com a concepção na qual o território
pode ser construído, inclusive através de políticas especificas, é necessário
observar que a constituição via decreto deve considerar a realidade e o ele­
mento da identidade local. Este tipo de constituição oficial de um territó­
rio, enquanto espaço de articulação política para o desenvolvimento terri­
torial via iniciativa de Estado, ocorreu inicialmente no sudoeste do Paraná.
Entretanto, é possível reverter esta situação de um território sem sujeitos
e sem desenvolvimento, desde que às organizações internas ligadas ao ter­
ritório que compõem o grupo responsável pela sua gestão a realize a partir
de demandas coletivas procurando observar as potencialidades e fragilida­
des que lhe são inerentes, estruturando assim o desenvolvimento territorial
de acordo com as identidades apresentadas nas diferentes dimensões. No
caso do território do sudoeste do Paraná, ele foi sendo estruturado a partir
de um grupo pré-definido se ampliando à medida que se desenvolviam as
discussões e a sua construção se efetivava. O que tem ocorrido neste caso
é uma edificação marcada pelos conflitos entre as entidades e instituições
que passaram a compor a gestão do território, enquanto um organismo
para o desenvolvimento territorial.
A valorização interna do território é salutar, assim como as rela­
ções com outras escalas territoriais, as quais, muitas vezes, servem como
meios para potencializar suas condições materiais e a sua mercantiliza­
ção, promovendo um redimensionamento econômico. Este é um aspecto
que significa uma linha muito tênue para não transformar a política de
desenvolvimento territorial, que considera as diferentes dimensões do de­
senvolvimento social e ambiental, em mais uma forma de rentabilidade
do local. Nesse caso, não haveria diferença do modelo de desenvolvimento
existente.
Dessa forma Flores (2006, p.7) afirma, “a exploração da territoriali­
dade ocorre de forma predatória e insustentável no longo prazo, tendendo
a destruir o capital social local e o meio ambiente”.Por outro lado, destaca
que a valorização local permite o surgimento da solidariedade e da coope­
ração, considerados elementos fundamentais para o desenvolvimento, o
sucesso desta cooperação na construção do desenvolvimento dependeria
das redes de relações que são estabelecidas pelas pessoas e também pelas
instituições que compõem o território.
Para Flores (2006, p. 10):

A possibilidade de construção de processos baseados na inovação e na


coope­ração, fortalecendo estratégias territoriais de fortalecimento da eco­
nomia local, está vinculada à capacidade de se produzir negociações a
partir dos conflitos existentes. Por esse motivo, entende-se que, antes de

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Desafios do desenvolvimento territorial para a agricultura familiar

tudo, é importante a explicitação dos conflitos existentes localmente para


que, a seguir, procure-se formas de entendimento, negociadas, em busca
da construção de processos de cooperação que sejam significativos para
todos os atores.
No Brasil o desenvolvimento territorial se apresenta como uma con­
traposição em relação ao desenvolvimento agrícola implementado a par­
tir de 1960, pois um dos pilares, além da identidade e empoderamento
dos atores sociais locais, é o chamado desenvolvimento sustentável. Neste
aspecto a modernização da agricultura brasileira via pacote tecnológico
representa um sério impacto ambiental, significando, inclusive, uma in­
sustentabilidade no que se refere à utilização intensiva do uso do solo, das
alterações climáticas, do assoreamento e contaminação das águas etc.
O desenvolvimento territorial, por ser multidimensional é efetiva­
mente uma forma de desenvolvimento sustentável e neste o domínio do co­
nhecimento sobre a realidade do território é fundamental, assim como das
tecnologias que a ele se adaptem. Assim a educação, a ciência, a pesquisa
e a assistência técnica que seguem a lógica de potencializar as condições
locais, redimindo conflitos e empoderando homens e mulheres em sua ca­
pacidade de organização é mister para alcançar os objetivos de desenvolvi­
mento das dimensões econômicas, políticas, culturais e naturais.
De acordo com PAULILLO (2000) apud Flores (2006, p. 13):
Muitos processos de construção de territórios, e suas estratégias de desen­
volvimento possuem dinâmicas de poder e riqueza que dependem “da ca­
pacidade de interação estratégica entre atores políticos, recursos humanos,
infra-estrutura tecnológica e inovação organizacional”. Define que a institu­
cionalidade, os recursos de poder, a confiança e a cooperação ou recipro­
cidade são os fatores que determinam a construção social e o processo de
desenvolvimento que se implementa. Desse modo, quando há imposição de
grupos nas negociações, os processos resultantes possuem limites que impe­
dem a construção social sustentável do desenvolvimento, seja por exclusão
social, apropriação de recursos naturais e da renda territorial por determi­
nados grupos sociais, degradação de recursos naturais, dentre inúmeras ou­
tras possibilidades.

A política de desenvolvimento territorial, embora seja mais abran­


gente, não exclui a política de desenvolvimento setorial. Em alguns casos
elas podem ser complementares, inclusive porque diante a diversidade exis­
tente na agricultura brasileira, tanto em nível de produtos quanto de produ­
tores, a maior parte destas políticas não atinge a todos eles de forma seme­
lhante. No caso brasileiro Abramovay et al apud FLORES (2006, p.22):

A formação de territórios a partir de uma iniciativa centralizada, como é


o caso no Brasil, envolve o risco de que os atores mais importantes de sua
dinâmica econômica, social, política e cultural estejam ausentes de suas or­

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ganizações animadoras. Este risco aumenta quando a política de desenvol­


vimento territorial vem de um ministério específico e não corresponde, de
fato, a uma decisão incorporada por uma variedade de agências governa­
mentais.
Apesar da constituição do território do sudoeste do Paraná e da per­
manência de muitos elementos da perspectiva setorial, a prática de cons­
trução do PTDRS, bem como da própria organização do território (articu­
lado por um grupo Gestor) tem possibilitado um debate mais transparente
entre as diferentes organizações da agricultura familiar. Além da busca de
processos formativos que incluem várias dimensões do desenvolvimento,
embora a predominante seja a econômica, mas percebe-se a discussão de
gênero e de juventude tomando corpo.
Mas para o avanço na perspectiva da construção de uma prática ter­
ritorial é necessária a compreensão da concepção de território, com a qual
a geografia tem a contribuir a partir de estudos de geógrafos como Claude
Raffestin, Massimo Quaini, Giuseppe Dematteis, Marcos Saquet, Rogério
Haesbaert, Marcelo de Souza, entre outros. Como destacam esses autores,
a compreensão do território é resultado de uma construção histórica e re­
lacional constituída a partir das relações de poder multidimensionais, ar­
ticuladas em um sistema de redes, mas apresentando singularidades com­
preendidas como identidades territoriais. Cada território exige, portanto,
uma leitura singular de suas territorialidades e temporalidades e a tarefa
que se impõe aos geógrafos e outros profissionais que adotam o concei­
to de território, consiste no aprofundamento dos estudos das abordagens
para apreensão da realidade.

Referências:
FLORES, Murilo. A identidade cultural do território como base de estratégias
de desenvolvimento – uma visão do estado da arte, http://www.fida­
merica.cl/admin/docdescargas/centrodoc/centrodoc_236.pdf, aces­
sado em 10/07/2008.
Novais, Fernando A. O Brasil nos quadros do antigo sistema colonial. IN:
Mota, Carlos Guilherme (Org). Brasil em perspectiva.São Paulo: Di­
fel, 1982.
TERRITÓRIO SUDOESTE DO PARAnÁ – Plano Territorial de Desenvolvi­
mento Rural Sustentável do Sudoeste do Paraná. Francisco Beltrão,
2007.
Raffestin, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993;
SACHS, Ignacy. Brasil rural: da redescoberta à invenção, Estud. av., São
Paulo, v. 15, n. 43, 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scie­
lo.php?

333

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Desafios do desenvolvimento territorial para a agricultura familiar

Saquet, Marcos. Os tempos e os territórios da colonização italiana. Porto


Alegre: EST Edições, 2003.
. Por uma abordagem territorial. IN: Saquet, Marcos Aurélio e
SPOSITO, Eliseu Savério.Territórios e territorialidades – teorias , pro­
cessos e conflitos. São Paulo, Expressão Popular, 2009.
SANTOS, Roselí Alves dos. O processo de modernização da agricultura no
sudoeste do Paraná. (tese de doutorado) UNESP, Programa de Pós-
graduação em geografia, Presidente Prudente, 2008.
SANTOS, Roselí Alves dos e MARSCHNER, Walter Roberto. Identidade
Territorial e desenvolvimento: a formulação de um plano territo­
rial de desenvolvimento rural sustentável do território do sudoeste
do Paraná. In: ALVES, Adilson; CARRIJO, Beatriz Rodrigues; CAN­
DIOTTO, Luciano Zanetti Pessoa(orgs). Desenvolvimento territorial
e agroecologia. São Paulo, Expressão Popular, 2008.
Schejtman, Alexander y Berdegué, Julio A. Desarrollo territorial ru­
ral. Marzo 2004. Disponível em :<http://www.rimisp.org/getdoc.
php?docid=870 >Acesso em: 25/10/2006.
SCHNEIDER, Sérgio. A abordagem territorial do desenvolvimento rural
e suas articulações externas, Sociologias, Porto Alegre, ano 6, nº 11,
jan/jun 2004, p. 88-125
SILVA, José Graziano. Velhos e novos mitos do rural brasileiro. Estudos
Avançados, vol.15, nº 43. São Paulo, set/dez. 2001, p. 37-50. 

334

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Alternativas de desarrollo regional
endógeno en la región periférica
surcolombiana

Luis Carlos Jiménez Reyes


Doctor en Geografía | Docente de la Universidad Nacional de Colombia,
Departamento­de Geografía | lcjimenezre@bt.unal.edu.co

La región colombiana que se ha denominado en este texto como sur­


colombiana no tiene existencia administrativa en Colombia, pero si recoge
una serie de iniciativas y procesos políticos y territoriales propios de la vida
nacional colombiana, de su historia y de su génesis territorial. Reúne una se­
rie de procesos territoriales fragmentados y discordantes, a los que se suma
la gran diversidad y heterogeneidad de su geografía física, así como una ten­
dencia traumática y circunstancial en el diseño de la infraestructura para
la comunicación entre sus subregiones: ocupación prehispánica, conquista,
colonia, repúblicas y tiempos modernos han dejado su huella, superponién­
dose y conjugándose con su gran diversidad y heterogeneidad natural.
En la región surcolombiana se fueron sumando una serie de proce­
sos territoriales que la configuran hoy como un espacio fronterizo, mar­
ginal, periférico, deprimido, conflictivo y violento, desde el punto de vista
social y económico. Este texto contiene una descripción de una propues­
ta de investigación que tiene como propósito elaborar las bases teóricas y
conceptuales que fundamentan un modelo de desarrollo alternativo que se
sustenta en la complementariedad de las relaciones campo-ciudad y en los
conceptos de “archipiélago vertical” y “transversalidad”.

Descripción de la Problemática
Vale resaltar un hecho político significante que identifica a ésta re­
gión. Cerca del año 2000 se conforma lo que se ha denominado como la

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Alternativas de desarrollo regional endógeno
en la región periférica surcolombiana

“Alianza del sur”, concebida por los entonces gobernadores de los depar­
tamentos de Tolima, Huila, Caquetá, Putumayo, Cauca y Nariño, quienes
emprenderían la realización de un plan denominado “plan sur colombia­
no” como contrapeso y rechazo a las acciones del Plan Colombia1 al que
iban a ser sometidos sus territorios por cuenta del gobierno central en Bo­
gotá. El “plan sur colombiano” sería “una alternativa desde la región para
la paz, el desarrollo y la conservación de los ecosistemas” (Tovar 2003), y
no una opción de guerra y erradicación como si está planteado con el Plan
Colombia.
Colombia tiene tres corredores urbanos de influencia andina, orien­
tados y alineados e influenciados por la orientación de las tres cordilleras y
consecuentemente de sus dos valles interandinos2; son: el andino occiden­
tal, el andino oriental y el piedemontano oriental (Jiménez Reyes 1999). La
región objeto de estudio alberga lo más periférico hacia el sur, el extremo
meridional, de estos tres corredores; al tiempo que se localiza marginal­
mente respecto de la posibilidad de aprovechar las ventajas competitivas
que ofrece el llamado triangulo de oro colombiano3, posee infraestructura
vial y de comunicaciones precaria y deficitaria lo que le impide la comu­
nicación entre sus subregiones, así como también comunicarse favorable­
mente con el resto del país y con un sistema de puertos marítimos hacia el
Pacífico o fluviales hacia el Pacífico y la región amazónica.
Dos de los departamentos, Nariño y Putumayo, son fronterizos
con el vecino país del Ecuador. Están espacial e históricamente alejados
del centro político y económico Nacional, aunque el último de ellos re­
presente hoy para Colombia el aprovechamiento de importantes reser­
vas de crudo de petróleo. Estos dos departamentos enmarcan una par­
ticularidad fisiográfica: son la parte más angosta del sistema andino en
territorio colombiano, puesto que aún no aparecen las tres cordilleras

1
Plan Colombia: Estrategia de los últimos gobiernos colombianos, auspiciada por gobiernos
estadounidenses, iniciada en 1999 bajo los gobiernos de los presidentes Pastrana y Clinton,
la cual tiene como propósito erradicar los cultivos ilícitos mediante la fumigación aérea, lu­
char contra el narcotráfico y la insurgencia mediante fortalecimiento de la guerra. Tanto la
erradicación como la guerra tienen como escenario de desarrollo áreas de interés ecológico
estratégico para Colombia, la presencia de campesinado, regiones marginales y periféricas
en los departamentos de Cauca, Nariño, Putumayo, Caquetá, Huila y sur del Tolima; así
como la más grande concentración de población indígena existente hoy en Colombia.
2
Vale la pena resaltar que la casi perfectamente linealidad de los tres corredores urbanos no
esta determinado por la orientación de las tres cordilleras, aunque éstas si se constituyen en
parte explicativa con otros factores.
3
“Triangulo de oro” corresponde a una expresión empleada comúnmente en la academia co­
lombiana para describir la concentración de las actividades económicas más importantes,
industrias, fenómeno urbano-metropolitano y desarrollo, al interior e inmediaciones de la
forma geométrica triangular cuyos vértices son las tres ciudad mayores: Bogotá, Cali y Me­
dellín.

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Luis Carlos Jiménez Reyes

colombianas (se conservan las características del resto del sistema andi­
no suramericano), lo que “facilita” relativamente la comunicación entre
la costa del Pacífico en Colombia y selva amazónica. Se afirma, sin em­
bargo, que el eje de comunicación entre la zona petrolera piedemonta­
na, Pasto en el altiplano y el puerto de Tumaco en el Pacífico concentran
hoy uno de los comercios más activos en sustancias ilícitas, entretejien­
do abundancia de recursos naturales, conflicto armado, desplazamiento
y pobreza.
Estos dos departamentos están fragmentados del resto de la región
como consecuencia de la presencia de accidentes geográficos importantes:
el cañón del río Patía y el surgimiento de un sistema cordillerano relativa­
mente de menor altura (2.000 msnm aprox.), que va dando lugar al naci­
miento de la cordillera Oriental, “en la bota caucana”; claro, esa no es la
única razón explicativa de su aislamiento y marginalidad, de lo contrario
se caería un determinismo geográfico. La hipótesis central que invita a la
realización de esta investigación es que, antes que el medio natural, lo que
explica la presencia de tales condiciones de marginalidad y fragmentación
obedece mas bien a la inercia y tendencia en la forma como el Estado y los
gobiernos colombianos han acentuando el centralismo y las desigualdades
espaciales de desarrollo.
Por su parte, el departamento de Cauca, al norte de Nariño, es un de­
partamento aislado y relicto colonial, sin salida al océano Pacífico. Es uno
de los departamentos más heterogéneo, con mayor diversidad étnica en
Colombia: mestizos, blancos, afrodescendiente ribereños, afrodescendien­
tes urbanos de plantación e indígenas de varios grupos lingüísticos quié­
nes ejercen sus propias territorialidades en el Cauca. Sin embargo, tiene al
norte la ciudad de Cali y su proceso metropolitano con un sistema urbano
bien estructurado, que se constituye en parte explicativa de su aislamiento
y fraccionamiento. Importantes contrastes en las características de Cauca
y Valle del Cauca; a pesar de ser vecinos.
Hacia el piedemonte amazónico en los departamentos de Putuma­
yo y Caquetá está una parte del corredor urbano piedemontano oriental.
Corresponde a una parte marginal y periférica, desconectada del resto del
sistema y de corredores urbanos en Colombia (Jiménez Reyes and Mon­
toya 2003). Este sistema está fragmentado del valle del río Magdalena por
la presencia de la cordillera Oriental y fragmentado del piedemonte llane­
ro por la presencia de una área muy poco poblada, montañosa y boscosa,
que ha sido escenario del surgimiento y acción de guerrillas, constituyen­
do además una de las áreas de reserva natural (parques nacionales) más
grande de Colombia. Incrustado entre el corredor andino occidental y el
piedemontano, aparece como una cuña que fragmenta, la parte más peri­
férica del andino oriental, coincidente con el alto valle del río Magdalena y
el departamento del Huila.

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Alternativas de desarrollo regional endógeno
en la región periférica surcolombiana

La propuesta
La propuesta parte de hacer un análisis geopolítico de la organiza­
ción espacial y de la génesis de la región surcolombiana, enfatizando en la
identificación de territorialidades, de las áreas productivas, los intercam­
bios de productos, los vínculos actuales y potenciales; así como estudiar las
razones de la fragmentación, el aislamiento y la marginalidad, endógenas
y en el contexto nacional. Es necesario, diferenciar la fragmentación del
aislamiento, en el sentido que el fraccionamiento tiene explicaciones de
tipo natural, mientras que el aislamiento y la marginalidad pueden estar
asociados más bien con la aplicación de políticas públicas o por la ausen­
cia de las mismas.
La fragmentación y el aislamiento de los espacios subregionales que
conforman la región surcolombiana, así como las alternativas para su de­
sarrollo regional, pueden estar siendo vistas de manera restringida, sola­
mente bajo la lógica y la óptica del centralismo en Bogotá; y desde los pro­
pósitos de inserción en la economía global. Las alternativas de desarrollo
deben partir del reconocimiento justamente de la heterogeneidad del me­
dio natural, la diversidad cultural, la fragilidad de los recursos naturales;
en otras palabras, se podría partir de una propuesta en el sentido del endo­
genismo contextual sustentada por Orlando Fals Borda.
Históricamente los esfuerzos de los gobiernos nacionales se han en­
caminado hacia la construcción principalmente de infraestructuras que
fortalecen la inserción de Colombia en el mercado internacional; aunque
hay algunos esfuerzos para conectar áreas productoras con los centros ur­
banos consumidores4 (Instituto Nacional de Vías 2008). Tal esquema debe
complementarse con formas que permitan la comunicación interregional,
que generen el sentido transversal inexistente en las comunicaciones de tal
forma que se complemente la tendencia colombiana de desarrollar sus flu­
jos y dinámicas en sentido predominantemente meridional; así como con­
cretar un modelo de desarrollo endógeno que incorpore las comunidades
campesinas, antes que propiciar su extinción o desarraigo y que se susten­
te en los siguientes principios:

4
El gobierno colombiano en los últimos cinco años ha emprendido un plan de mejoramiento
y construcción de la infraestructura vial, el cual resulta insuficiente ante la precariedad de la
red vial en las regiones periféricas de Colombia: “El Programa de Infraestructura Vial para
el Desarrollo Regional, Plan 2500, tiene como objeto la pavimentación de 3.159,74 km de
carreteras del orden primaria, secundario y terciario, distribuidas en 31 departamentos del
territorio nacional, incluido el Archipiélago de San Andrés y Providencia, cuya finalidad es
propender por la accesibilidad y conectividad desde y hacia regiones apartadas con lo cual
se contribuye al desarrollo e integración regional. que resulta limitado”. Instituto Nacional
de Vías, 2009. Consultado en: http://www.invias.gov.co en enero de 2009.

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Luis Carlos Jiménez Reyes

Verticalidad. El sistema urbano regional colombiano está insertado


casi predominantemente al interior del sistema andino montañoso, en los
dos valles interandinos del Cauca y Magdalena. Las ciudades están, com­
parativamente con otros sistemas urbanos en el mundo, alejadas de los
bordes costeros. Esto no es un problema, por el contrario es lo que ha sus­
tentado la ciudad colombiana por siglos. Las vertientes, la diferencia de
altura, la oferta de pisos bioclimáticos y la verticalidad conforman un es­
quema valioso para asegurar el aprovisionamiento de productos demanda­
dos por los centros urbanos y la incorporación de población rural a activi­
dades productivas bajo principios de racionalidad ambiental. Un concepto
de archipiélago vertical fue descrito para comunidades en la cordillera de
los Andes del Perú (Murra 1974); las cuales establecieron importantes rela­
ciones familiares y comerciales entre los habitantes de las vertientes y los
de las ciudades.
Transversalidad y conectividad. El esquema territorial colombiano
ha tenido como una de sus estructuras dominantes la meridionalidad (De­
ler 2001), quiere decir que la infraestructura vial ha tendido a direccionar­
se de manera dominante desde las ciudades de Cali, Medellín y Bogotá en
dirección sur-norte, como mirando hacia sus mercados en Europa y en
Estados Unidos. Tal meridiionalidad ha generado que queden bastas por­
ciones del territorio al oriente del país (selva y llanos), en el andén Pacífico
y en las áreas de alta montaña desconectas y por fuera de los mayores cir­
cuitos internos comerciales; generando un verdadero archipiélago, como
se le ha calificado también a la estructura territorial colombiana, caracte­
rizada por la fragmentación y la desconexión territorial. Para contrarres­
tar tal tendencia es necesario imaginar esquemas infraestructurales que
rompan el archipiélago y la meridionlidad, buscando la transversalidad y
la conectividad.
Múltiples fronteras. Este espacio regional surcolombiano es al mis­
mo tiempo marginal y periférico: marginal puesto que además de conte­
ner economías de enclave y el manejo de negocios ilícitos supremamente
rentables, es una de las regiones más pobres del país. Periferia porque es
la frontera con el vecino país del Ecuador, en contacto con la selva amazó­
nica y con la costa Pacifica. Históricamente este territorio ha jugado como
margen y periferia: durante la expansión del imperio incaico, durante la
ocupación hispánica, durante los primeros años de vida republicana, hasta
hoy. Para completar tal situación, es una de las regiones con mayores even­
tos catastróficos naturales en Colombia, golpeada por tsunamis, actividad
volcánica, avalanchas y deslizamientos; así como presenta parte de la in­
fraestructura vial más precaria del país que implica riesgos para la vida y
las actividades productivas de sus pobladores.
Cuestionamiento sobre el modelo de desarrollo. El modelo de desarro­
llo existente en la región surcolombiana es capitalista extractivo, depen­

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Alternativas de desarrollo regional endógeno
en la región periférica surcolombiana

diente y extravertido (que mira hacia fuera); es un modelo volcado hacia


la colación en el mercado exterior colombiano de productos derivados de
la explotación de recursos naturales y recientemente se afianza como área
agroindustrial capitalista al incorporar grandes extensiones de tierras, en
los piedemonte y llanuras que dan al océano Pacífico, para el cultivo inten­
sivo de palma para la producción de agrocombustibles. Bosquejando, se
tiene que es un área productora de:
Petróleo (exportación de crudo, para luego importar sus derivados);
cultivo de coca (base para la producción de la cocaína que ha servido en
Colombia para el tráfico internacional de ilícitos, con serias consecuen­
cias de violencia, guerras y corrupciones internas); y amapola, base para
la producción del látex que contiene el opio, ha convertido a Colombia en
algunos momentos como principal productor a nivel internacional de la
sustancia alcaloide; y agronegocio, producción de combustibles y alimen­
tos para animales o humanos a partir de la producción agroindustrial y ae­
rocomercial intensiva, ocupando grandes extensiones otrora ocupados por
selvas vírgenes o a la producción agrícola campesina.

Consecuencias
El desarrollo de economías mafiosas que buscan el control territorial
y expansión de sus negocios.
Violencias y guerras con serios efectos en pérdidas de vidas humanas
como consecuencia del control territorial y la presión por el acceso a las
tierras que desde el punto de vista competitivo sean más convenientes. Pa­
ramilitarismo, narcotráfico, guerrilla, grupos económicos y todos los mati­
ces de mezcla entre los anteriores, se disputan el control territorial de estos
territorios estratégicos e importantes desde el punto de vista geopolítico y
geoeconómico.
Desplazamiento de población desde el campo hacia la ciudad; repli­
cando la cadena de expropiación, desalojo de campesinado y apropiación
de la tierra en manos de los agentes generadores de violencia y concentra­
dores de riqueza. En Colombia autores como (Aprile Gniset 1992) afirma­
ron para la década de los 70 que “la ciudad colombiana era un problema
agrario no resuelto”; esa afirmación sigue siendo hoy vigente. La ciudad
colombiana y la sociedad colombiana se desenvuelven en un ambiente par­
ticular de violencia sistémica y estructural que vacía el campo y acrecienta
las ciudades.
Graves consecuencias ambientales: Gran parte del suroccidente y sur
colombiano han sido devastado en sus condiciones naturales para dar paso
a grandes extensiones dedicadas a los cultivos de coca y amapola, así como
a su fumigación manual y aérea; al reemplazo de la selva y los bosques para
dar paso a la producción pecuaria, de ilícitos o a la agrícola intensiva.

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Luis Carlos Jiménez Reyes

Pérdida de la posibilidad de seguridad alimentaria y provisión de ali­


mentos para la poca población rural y la creciente población urbana; como
consecuencia aumento de la dependencia en la provisión de alimento y de
la extinción de los campesinos.

En contraste
Un modelo de desarrollo regional endógeno alternativo debería pri­
vilegiar unas relaciones campo ciudad de tipo complementarias, cuestio­
narse sobre las relaciones sociedad naturaleza y sobre el modelo de rela­
ciones entre los seres humanos considerando entre otras sus diferencias
etnolingüísticas.
Claro, las relaciones de clase no desaparecerán. Se ha de mirar el
caso del funcionamiento socioespacial de algunas sociedades incaicas, tal
como lo muestra Murra (1972), con el concepto de archipiélago vertical.
Se trataba del intercambio de productos al interior de un mismo grupo
familiar provenientes del acceso cuidadoso y preparado a productos muy
diversos según pisos climáticos y nichos ecológicos ofrecidos por las ver­
tientes, por los microclimas y las grandes diferencias de altitud. Lo intere­
sante es que según registran los arqueólogos y antropólogos no existía en
sentido estricto la plaza de mercado, sino que el intercambio se establecía
a manera de trueque. Lo interesante de esto es que a pesar de la no existen­
cia del mercado como se conoce o al menos de los mecanismos acordados
o convenidos en sociedades contemporáneas para el intercambio, si había
diferenciación social. Es decir que la diferenciación social la daba no el
tipo de intercambio sino al orden cronológico de llegada para controlar los
recursos naturales, en otras palabra quien se asía a los nichos ecológicos
mas interesantes lograba un mayor poder social.
La propuesta debe ser una que concilie las características y particu­
laridades de las poblaciones comprometidas o que se pretende intervenir.
Debe ser un modelo que concilie la alternatividad y el “endogenismo con­
textual”. Las opciones teóricas de Manfred Max Neef sobre la economía
descalza o economía a escala humana son parte de los sustentos concep­
túales del modelo. El modelo exige utopías y el compromiso de los gobier­
nos colombianos por dar fin al con`licto armado, al control paraestatal y el
desarrollo de actividades ilícitas.

Bibliografía:
Aprile Gniset, Jacques. 1992. La ciudad colombiana : siglo XIX y siglo XX, la
formación espacial agraria 1850-1950. Bogotá, Colombia: Biblioteca
Banco Popular.

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Alternativas de desarrollo regional endógeno
en la región periférica surcolombiana

Deler, Jean-Paul. 2001. Estructuras y dinámicas del espacio colombiano.


Cuadernos de Geografía X (1):165-180.
Instituto Nacional de Vías, Colombia. Programa de Infraestructura Vial para
el Desarrollo Regional, Plan 2500 2008 [cited 1. Available from http://
www.invias.gov.co.
Jiménez Reyes, Luis Carlos. 1999. Organisation de l’espace et politiques
publiques dans le sud-ouest de la colombie: peuvent-elles les actions
de l’état dans le département du Cauca conduire a une réduction des
inegalités spatiales du développement?, REGARD, CNRS, Université
de Bordeaux 3, Michel de Montaigne, Bordeaux, Fr.
Jiménez Reyes, Luis Carlos, and Jhon Williams Montoya. 2003. Organi­
zación espacial en el piedemonte amazónico colombiano: elemento
clave para la cohesión nacional y el desarrollo regional. Revista Cua­
dernos de Geografía XII, No. 1-2 (Universidad Nacional de Colombia,
Bogotá, Col.):83-109.
Murra, John. 1972. El “control vertical” de un máximo de pisos ecológicos
en la economía de las sociedades andinas. In? buscar en la BLAA.
Murra, John W. 1974. Los límites y las limitaciones del “archipiélago ver­
tical” en los Andes. In Memorias del segundo congreso peruano del
hombre y la cultura andina. Lima.
Tovar, Bernardo. 2003. El Huila, el ordenamiento territorial y la región
surcolombiana. In Insurgentes: construir región desde abajo, edited
by W. F. Torres, B. Tovar and L. E. Lasso. Bogotá, D.C.: Universidad
Surcolombiana.

342

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Los movimientos antisistemicos de
America Latina y su lucha por la tierra
en el siglo XXI
1

Carlos Antonio Aguirre Rojas

“... que en esta tierra vivimos todos, y que entre todos y todas deberíamos
pensar cómo es que va a ser en beneficio para nosotros, sin que nadie sea su
dueño, y eso es lo que hay que ir ya pensando”.
Teniente Coronel Insurgente Moisés, Discurso en el Primer Festival Mundial
de la Digna Rabia, 5 de enero de 2009.

Introducción
La lucha de los campesinos por la defensa, la propiedad, la conquis­
ta o la recuperación de la tierra, es una lucha milenaria de larga duración,
que atraviesa y recorre gran parte del entero periplo de la historia de la es­
pecie humana. Pues a partir de que los hombres pasan de la etapa nómada
a la etapa sedentaria, con la revolución neolítica, y a partir de que se for­
jan las primeras figuras de las comunidades rurales, el vínculo de los seres
humanos con la tierra comienza a volverse una de las relaciones sociales
centrales y esenciales de todas las estructuras sociales posibles2.

1
Este texto recoge, bajo una forma escrita, las tesis que hemos expuesto en forma oral en la
Conferencia Magistral Inaugural impartida en la Universidade de São Paulo, el 2 de febrero
de 2009 en el XIX Encuentro Nacional de Geografía Agraria de Brasil, organizado por el Dr.
Julio Suzuki. En esta versión escrita hemos tenido en cuenta los comentarios y preguntas
planteados al final de esa Conferencia, los que agradecemos aquí públicamente.
2
Marx ha estudiado muy agudamente las diversas implicaciones de este paso del nomadismo al
sedentarismo, y junto con él del tránsito de las comunidades humanas basadas en vínculos de

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Los movimientos antisistemicos de America Latina
y su lucha por la tierra en el siglo XXI

Así, desde la etapa misma de predominio de las estructuras sociales


comunitarias, y mucho más conflictivamente, a partir del nacimiento de la
propiedad de la tierra, primero como propiedad colectiva y luego como pro­
piedad privada de esa misma tierra, la conexión entre los productores agríco­
las y la tierra, que entre otras cosas importantes es su principal instrumento
de producción, ha sido una fuente compleja y diversa de múltiples relaciones
sociales, que abarcan desde la configuración social específica del metabolis­
mo entre el hombre y la naturaleza, o la generación de mitos, cosmogonías,
cosmovisiones y formas simbólicas del más variado tipo, hasta distintas for­
mas jurídicas de la propiedad, diversos usos políticos de la propia tierra, di­
ferentes esquemas de estructuración de la relación campo-ciudad, o variadas
formas de ciertas relaciones económicas y sociales en particular.
Entonces, si la lucha por la tierra es una constante que atraviesa los si­
glos y los milenios de vida de las sociedades humanas más diversas, ella cam­
bia también sus formas, sus contenidos, sus objetivos, sus sujetos sociales y
hasta su sentido y significado general, de acuerdo a los distintos tiempos y
momentos históricos en que se hace presente, y según los variados contextos
geográficos, sociales, o civilizatorios en los cuales se despliega y afirma.
Por eso, y dada esta centralidad recurrente de esta lucha por la tie­
rra, dentro del vasto abanico de las formas de la protesta y de la lucha so­
cial en general, vale la pena preguntarse que modalidades reviste ahora
esta lucha por la tierra en la América Latina actual. Es decir, cómo ella se
encarna hoy dentro de este escenario latinoamericano, el que en los lus­
tros más recientes ha comenzado a vivir profundos y radicales procesos de
transformación social global3.
Lucha por la tierra en esta América Latina de los comienzos del siglo
XXI cronológico, que siendo protagonizada por múltiples grupos, clases
y movimientos sociales, ha sido también planteada como uno de sus ejes
centrales, por parte de los movimientos específicamente antisistémicos de
esta misma Latinoamérica, constituyéndose así, en uno de los varios nú­
cleos del debate y de la reflexión general de estos mismos movimientos. Y

sangre a las nuevas comunidades rurales, construidas precisamente a partir de este vínculo del
hombre con la tierra. Al respecto cfr. Karl Marx, Los apuntes etnológicos de Karl Marx, Coedición
Ed. Pablo Iglesias y Ed. Siglo XXI España, Madrid, 1988, El porvenir de la comuna rural rusa, Ed.
Pasado y Presente, México, 1980, y también Elementos fundamentales para la crítica de la econo­
mía política. Grundrisse, 3 volúmenes, Ed. Siglo XXI, México, 1971-1976 (en especial el célebre
fragmento “Formas que preceden a la producción capitalista” en el vol. 1, p. 433-477). Véase
también nuestros ensayos, Carlos Antonio Aguirre Rojas, “La comuna rural de tipo germánico”
en Boletín de Antropología Americana, núm. 17, México, 1988 y “Germanische Gemainde” en el
libro Historisch-Kritisches Wörterbuch des Marxismus, Ed. Argument, tomo 5, Berlín, 2001.
3
Sobre la situación actual de América Latina, y sobre los movimientos antisistémicos que se
desarrollan en su seno, cfr. Raúl Zibechi, Autonomías y emancipación. América Latina en
movimiento, Coedición Bajo Tierra Ediciones y Sísifo Ediciones, México, 2008, y Carlos An­
tonio Aguirre Rojas, L’Amérique Latine rébelle, Ed. L’Harmattan, París, 2008.

344

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Carlos Antonio Aguirre Rojas

dando lugar a novedosas e importantes iniciativas, de convocatoria y de


proyección intercontinental, como la de la celebración de varias Mesas en
torno al tema de la Defensa de la Tierra y el Territorio, que tuvieron lugar
en la ciudad de México y en Chiapas, en julio de 2007, convocadas por el
digno movimiento neozapatista mexicano, en vísperas y dentro del propio
Segundo Encuentro de los Pueblos Zapatistas con los Pueblos del Mundo4.
Entonces, y acotando más precisamente nuestro problema, quisié­
ramos preguntarnos cómo es que ha sido concretada en los hechos y con­
cebida en la reflexión, esta lucha por la tierra impulsada por esos nuevos
movimientos antisistémicos de América Latina, durante los últimos tres o
cuatro lustros recién vividos. Lo que, en nuestra opinión, no sólo nos dará
algunas claves importantes para comprender la peculiar configuración que
las luchas sociales y los combates antisistémicos adoptan ahora dentro de
nuestra cambiante y cada día más rebelde América Latina, sino que tam­
bién nos proveerá de algunas pistas importantes, para comprender las ra­
zones por las cuales nuestro semicontinente latinoamericano constituye
hoy en día, el verdadero frente de vanguardia mundial del vasto conjunto de
la protesta anticapitalista y antisistémica planetaria.

El contexto global y epocal de la actual lucha por la tierra


en America Latina

Si queremos comprender adecuadamente el carácter que tiene esta


lucha por la tierra que hoy se despliega en América Latina, debemos co­
menzar por entender cuál es la etapa específica que hoy atraviesa el capi­
talismo mundial. Y esa etapa no es ni la de la “globalización” ni la de la
“mundialización”, y mucho menos la del etéreo e indefinido “Imperio”,
sino más bien la etapa de la crisis terminal o estructural del propio siste­
ma capitalista mundial, el que habiendo comenzado su vida histórica hace
aproximadamente cinco siglos, está llegando ahora y frente a nuestra pro­
pia mirada, a la etapa conclusiva o final de su largo ciclo histórico global.
Pues lejos de esa falsa y supuesta “globalización” o “mundialización”5,
que no son más que las encubridoras denominaciones ideológicas del ver­
4
Sobre la celebración de estas Mesas en torno a las actuales luchas por la Defensa de la Tierra y el
Territorio, en las que participaron, entre otros y junto a los propios indígenas neozapatistas me­
xicanos, el Movimiento de los Sin Tierra brasileño, y varios otros grupos de la organización Vía
Campesina, provenientes de Corea, Canadá, Madagascar, India, Estados Unidos, etc., puede con­
sultarse el sitio en Internet del Ejército Zapatista de Liberación Nacional: http://www.ezln.org.mx
5
Sobre este carácter ideológico del supuesto concepto de la globalización (y de su versión ge­
mela de la “mundialización”), cfr. Immanuel Wallerstein, “¿Globalización o Era de Transici­
ón?” en la revista Eseconomía, núm. 1, México, 2002, y también “La globalización no es algo
nuevo” en el libro La crisis estructural del capitalismo, Ed. Contrahistorias, México, 2005.
Cfr. también Carlos Antonio Aguirre Rojas, “’Globalization’ and ‘Mondialization’: a Critical
Historical Perspective” en la revista Stiinte Politice, tomo 2, Iasi, Rumania, 2007.

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Los movimientos antisistemicos de America Latina
y su lucha por la tierra en el siglo XXI

dadero caos sistémico que ahora presenciamos, lo que el capitalismo vive


hoy es esa etapa terminal en la que todas sus estructuras principales co­
mienzan a desestructurarse y a colapsar irremisiblemente, al mismo tiem­
po en que se generan, de modo sólo embrionario y germinal pero muy evi­
dente, las primeras nuevas formas posibles de un muy otro orden social
global distinto al capitalista.
Crisis sistémica global del capitalismo mundial, que es la que expli­
ca, lo mismo la crisis ecológica profunda que hoy vivimos, y el riesgo de
una catástrofe ecológica planetaria que ya confrontamos, o la crisis econó­
mica estructural cada vez más extendida y evidente – manifestada en las
quiebras de bancos y empresas, en el desempleo irrefrenable, o en el au­
mento indetenible de la llamada economía negra, o paralela, o informal, o
subterránea –, que la crisis y descomposición de todo el tejido social en ge­
neral, que desencadena y multiplica la violencia social dispersa y ubicua en
todo el cuerpo social, junto a la bancarrota evidente de todos los Estados
del planeta y de todas las clases políticas que los acompañan, sin excepción
alguna, y a la pérdida galopante de valores, de referentes éticos o de mar­
cos culturales sólidos, que funcionen como puntos de apoyo estables para
esta misma dimensión cultural.
Crisis múltiple de todas las estructuras capitalistas, sin excepción
alguna, que lo mismo hace decaer la vigencia de los mitos nacionales y de
todos los valores relativos a los Estados-nación, que derrumba las viejas
estructuras del saber académico y los saberes en general, cuestionando lo
mismo nuestras formas tradicionales de aproximarnos y conectarnos con
la naturaleza, que nuestras cosmovisiones o Weltanschauung en general,
entre muchas otras de sus variadas y diversas manifestaciones.
Y que también, replantea las formas, el carácter, los objetivos y la
naturaleza toda que pueden tener hoy los movimientos sociales de todo
tipo, y las distintas formas de la protesta social en general, desde las más
simples manifestaciones de oposición intrasistémica o prosistémica, hasta
los más radicales movimientos genuinamente anticapitalistas y esencial­
mente antisistémicos.
Pues a tono con esta nueva situación de bifurcación histórica, abier­
ta por esa crisis terminal del capitalismo, han mutado también de modo
radical y a partir de la gran fractura histórico-planetaria simbolizada en
la revolución cultural mundial de 19686, tanto las bases sociales como las

6
Sobre las diversas y profundas implicaciones de esta revolución cultural mundial de 1968,
cfr. Fernand Braudel, “Renacimiento, Reforma, 1968: revoluciones culturales de larga du­
ración” en La Jornada Semanal, núm. 226, octubre de 1993, Immanuel Wallerstein, “1968:
revolución en el sistema-mundo. Tesis e interrogantes” en Estudios Sociológicos, núm. 20,
1989, y Carlos Antonio Aguirre Rojas, “Repensando los movimientos de 1968 en el mundo”,
en el libro Para comprender el siglo XXI, Ed. El Viejo Topo, Barcelona, 2005, y “La revolución
mundial de 1968, cuatro décadas después”, en Contrahistorias núm. 11, 2008.

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Carlos Antonio Aguirre Rojas

demandas específicas de todos esos movimientos anticapitalistas y anti­


sistémicos, los que en estas cuatro últimas décadas, han modificado des­
de sus objetivos generales y sus estrategias más globales, hasta sus formas
de organización interna y sus métodos y tácticas de lucha, para adaptarse
así, a esta nueva circunstancia histórica de la crisis terminal del capitalis­
mo mundial.
Y con ello, naturalmente, se ha modificado también profundamen­
te la forma y el sentido en el que se despliega y afirma la lucha por la tie­
rra, por parte de esos nuevos movimientos antisistémicos en general, e
igualmente, por parte de los movimientos antisistémicos de América La­
tina en particular7. Nuevos movimientos anticapitalistas y antisistémicos
latinoamericanos, que al afirmarse como movimientos sociales que po­
seen una presencia social contundente dentro de sus respectivos países,
y al haber ya avanzado enormemente en términos de los esfuerzos de la
construcción social de mundos nuevos, muy otros que el capitalista, se
ubican precisamente en la posiciones de vanguardia de esa lucha antisis­
témica mundial.
Pues es sólo en América Latina, en donde hoy esos movimientos
antisistémicos son capaces de derrocar pacíficamente gobiernos locales y
hasta gobiernos nacionales, paralizando ciudades, Estados o países ente­
ros, y determinando el rumbo todo de las políticas nacionales, en ciertos
momentos o coyunturas históricas específicas. Y es sólo aquí, en Latino­
américa, donde hoy se multiplican y prosperan esos extraordinarios expe­
rimentos de crear nuevos mundos y nuevas relaciones sociales globales, en
los Caracoles Neozapatistas, en los Asentamientos de los Sin Tierra Brasi­
leños, en algunos barrios piqueteros argentinos, o en ciertas comunidades
indígenas radicales de Bolivia o Ecuador, entre otros. Lo que, entre muchas
otras consecuencias, explica también la centralidad que ha tenido América
Latina para la gestación y el desarrollo de la iniciativa de organización de
los varios Foros Sociales Mundiales hasta hoy celebrados, así como para
todo el movimiento altermundista planetario, que hoy se encuentra aún en
una grande y expansiva actividad general.
Fuerza excepcional y protagonismo avanzado de estos movimien­
tos antisistémicos de América Latina, que también explican en parte, ese
nuevo carácter que hoy adquiere, en estos territorios latinoamericanos,
esa secular y milenaria lucha por la tierra que aquí intentamos radio­
grafiar.

7
Sobre estos nuevos movimientos antisistémicos de América Latina, cfr. Raúl Zibechi, Amé­
rica Latina: periferias urbanas, territorios en resistencia, Ed. Desde Abajo, Bogotá, 2008, y
Carlos Antonio Aguirre Rojas, “Les nouveaux mouvements antisystémiques en Amérique
Latine: une brève radiographie générale” en Review, vol. XXXI, núm. 1, 2008.

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Los movimientos antisistemicos de America Latina
y su lucha por la tierra en el siglo XXI

Luchas sociales y luchas anticapitalistas y antisistemicas


por la tierra

Para poder comprender cuál es la naturaleza específica que hoy, en


este siglo XXI cronológico, y dentro de Latinoamérica, tiene esa lucha por
la tierra enarbolada por los nuevos movimientos antisistémicos latinoame­
ricanos, hace falta entender primero, la diferencia entre un simple movi­
miento social, de un lado, y del otro, un movimiento genuinamente anti­
capitalista y antisistémico. Pues si no es lo mismo una movilización social
efímera que un movimiento social organizado y más permanente, y si tam­
poco coinciden un movimiento social procapitalista y prosistémico, con un
movimiento realmente antisistémico y anticapitalista8, entonces también
serán diferentes las luchas por la tierra que desplegarán esos diversos mo­
vimientos sociales, sea procapitalistas y prosistémicos, sea genuinamente
anticapitalistas y antisistémicos.
Lo que entonces puede darle sentidos muy diferentes a una misma
consigna, por ejemplo, la del reparto agrario o incluso la de la reforma
agraria. Pues es pertinente recordar que la Revolución Francesa y luego
Napoleón, llevaron a cabo una profunda y radical reforma agraria en la
Francia de finales del siglo XVIII y principios del XIX, reforma que no sólo
no atacaba los fundamentos principales del sistema social capitalista, sino
que, por el contrario, hizo posible el vasto y firme desarrollo del capitalis­
mo francés de los dos últimos siglos transcurridos. Algo similar a lo que
sucedió en México con la Revolución Mexicana, la que también irá acom­
pañada de una contradictoria y desigual reforma agraria, que redundará
específicamente en el fortalecimiento e impulso del desarrollo del capita­
lismo mexicano, a todo lo largo del siglo XX cronológico9.
De modo que si esta lucha por la reforma agraria o por el reparto agra­
rio puede ser totalmente prosistémica, y por lo tanto compatible y hasta benefi­

8
Para un desarrollo más amplio de este punto, de las diferencias entre las distintas formas
de la protesta social, cfr. Edward P. Thompson, Costumbres en común, Ed. Crítica, Barce­
lona, 1995 (en especial, su brillante ensayo “La economía moral de la multitud”), Ranajit
Guha, Elementary Aspects of Peasant Insurgency in Colonial India, Ed. Duke University Press,
Durham, 1999, y nuestro Prefacio, Carlos Antonio Aguirre Rojas, “Planeta Tierra: los movi­
mientos antisistémicos hoy”, incluido en el libro de Immanuel Wallerstein, Historia y dile­
mas de los movimientos antisistémicos, Ed. Contrahistorias, México, 2008.
9
Sobre este punto, vale la pena volver a releer los brillantes textos de Marx sobre la historia de
Francia en el siglo XIX, en donde explica ese impacto de la reforma agraria llevada a cabo por
la Revolución Francesa, sobre la naturaleza particular del capitalismo francés del siglo XIX.
Esos textos han sido compilados y concentrados en el libro, Karl Marx, Les luttes de classes en
France, Ed. Gallimard, París, 2007. Sobre el caso específico de la Revolución Mexicana, cfr.
Friederich Katz, La guerra secreta en México, Ed. Era, México, 1982, y Nuevos ensayos mexica­
nos, Ed. Era, México, 2006, y también Carlos Antonio Aguirre Rojas, “Mercado interno, guerra
y revolución en México. 1870-1920” en Revista Mexicana de Sociología, año 52, núm. 2, 1990.

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Carlos Antonio Aguirre Rojas

ciosa para el capitalismo nacional de un cierto país determinado, ella también


puede adquirir un sentido y un carácter radicalmente diverso, anticapitalista y
antisistémico, cuando se le reivindica, por ejemplo, sólo como parte y premi­
sa necesaria de una lucha más global por el socialismo, tal y como lo plantea
ahora en Brasil el Movimiento de los Sin Tierra. O también, tal y como lo con­
cibe el digno movimiento neozapatista mexicano, el que interpreta su deman­
da de “Tierra”, en el sentido radical de la recuperación y de la defensa de la
“Madre Tierra”, y con ello, de su necesaria desmercantilización total y radical,
con todas sus múltiples consecuencias, como veremos más adelante.
Entonces, y reconociendo claramente la divergencia entre estas dos
modalidades de lucha por la tierra, la intrasistémica y procapitalista de un
lado, y del otro la lucha anticapitalista y antisistémica en pos de esa mis­
ma tierra, resulta más fácil evaluar, de modo crítico, las políticas que cier­
tos gobiernos supuestamente de izquierda en América Latina, han estado
llevando a cabo durante los años más recientes de la historia latinoame­
ricana. Pues lo mismo Hugo Chávez que Lula, e igualmente Evo Morales
que Rafael Correa o Fernando Lugo, han hablado de expropiar las tierras
ociosas de los grandes latifundistas de Venezuela, Brasil, Bolivia, Ecuador
o Paraguay, para dárselas a los campesinos pobres y sin tierra, y volverlas
con ello tierras realmente productivas. Pero al mismo tiempo que atacan y
expropian esas tierras ociosas, todos esos mismos gobernantes menciona­
dos aceptan y defienden la propiedad privada de aquellas tierras que sí es­
tán activas, y que sí están produciendo productos, pero sobre todo ganan­
cias y beneficios para otros latifundistas, a pesar de que estos últimos sean
igualmente activos explotadores de la fuerza de trabajo de centenas y miles
de trabajadores, de todas esas mismas naciones latinoamericanas.
Con lo cual, es claro que todos esos repartos agrarios de dichos go­
biernos supuestamente de izquierda, son en esencia procesos completa­
mente prosistémicos y procapitalistas, que en los hechos cumplen la misma
función que el reparto napoleónico de tierras entre los campesinos france­
ses revolucionarios, impulsando un mejor y más amplio desarrollo de las
relaciones agrarias capitalistas en la Venezuela o en el Brasil actuales, lo
mismo que en la Bolivia, el Ecuador o el Paraguay de hoy. Lo que no se mo­
difica para nada, aunque vaya acompañado de la retórica de la construc­
ción del “Socialismo del Siglo XXI”, “socialismo” que al respetar la propie­
dad privada de los medios de producción, y por ende también de la tierra, y
al coexistir armónicamente y sin problemas con el poder social, económico
e ideológico de los capitalistas, y al definirse como idéntico o cuasi idén­
tico al cristianismo en el ámbito cultural, termina por perder todo posible
sentido emancipador o realmente anticapitalista y antisistémico10.

10
Sobre las enormes limitaciones de este proyecto del supuesto “Socialismo del Siglo XXI”, cfr.
el libro colectivo Ecuador y América Latina. El Socialismo del Siglo XXI, Ed. CONBAIE, Qui­

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Los movimientos antisistemicos de America Latina
y su lucha por la tierra en el siglo XXI

En cambio, y en las antípodas de estas políticas en torno a la tierra,


llevadas a cabo por esos gobiernos socialdemócratas y tibiamente progre­
sistas mencionados, se afirman las posturas radicalmente anticapitalistas
y antisistémicas, por ejemplo de la actual CONAIE ecuatoriana, que exige
que la autonomía indígena sea autonomía integral sobre sus territorios y
sobre todos los recursos y riquezas naturales que ese territorio incluye, o
también el Movimiento Pachakutic de Bolivia, que reclama la devolución
integral de todas las tierras y los territorios de esa nación a los indígenas
bolivianos, oponiéndose entonces, tanto en Ecuador como en Bolivia, a
esas políticas prosistémicas referidas, y reivindicando frente a ellas, una
“lucha por la tierra” radical y profundamente anticapitalista y antisistémi­
ca11. Lucha radicalmente anticapitalista por la tierra, cuyos perfiles gene­
rales vale la pena revisar ahora con más detenimiento.

Los perfiles generales de la lucha realmente antisistémica


por la tierra en la america latina actual

Como ya hemos señalado antes, el periodo histórico que hoy atra­


viesa la humanidad, es un periodo histórico que se caracteriza por poseer
una excepcional y en ciertos sentidos incluso inédita densidad histórica es­
pecífica. Pues a partir de la fecha simbólica de 1968, y de la serie de revo­
luciones culturales que en esos años cubrieron toda la superficie del globo,
se abre una etapa histórica que combinaba, junto a una clásica fase B del
Kondratiev, y al lado de la fase descendente del ciclo hegemónico norte­
americano, también el proceso de desgaste y decadencia del predominio
de la ideología liberal como geocultura del entero sistema capitalista mun­
dial, y más en profundidad, el ya referido proceso de la crisis terminal del
capitalismo mundial.
Es decir que para comprender estos últimos cuarenta años transcu­
rridos, no basta con remontarse a 1945, inicio del ciclo Kondratiev 1945-
2005, ni a 1870, fecha de arranque del ciclo hegemónico de Estados Uni­
dos que se prolonga hasta hoy, sino que hace falta también remontarse a

to, 2007, que incluye textos de Rafael Correa, presidente de Ecuador, Álvaro García Linera,
vicepresidente de Bolivia, y Fernando Lugo, presidente de Paraguay. Véase también los dos
volúmenes Ideas para debatir el Socialismo del Siglo XXI, coordinado por Margarita López
Maya, Ed. Alfa, Caracas, tomo 1, 2007, y tomo 2, 2009. Para una crítica de este proyecto del
“Socialismo del Siglo XXI”, y también para una caracterización más detenida y matizada de
los cinco gobiernos mencionados, que explica tanto sus similitudes como sus diferencias,
cfr. nuestro libro, Carlos Antonio Aguirre Rojas, América Latina en la encrucijada, séptima
edición corregida y aumentada, Ed. Contrahistorias, México, 2009.
11
Sobre estas posturas mencionadas, cfr. Marlon Santi, “Un nuevo giro a la izquierda. La Con­
federación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador. Entrevista a Marlon Santi”, en Con­
trahistorias, núm. 11, México, 2008, y Felipe Quispe, “Bolivia en la encrucijada. Entrevista a
Felipe Quispe”, en Contrahistorias, núm. 12, México, 2009.

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Carlos Antonio Aguirre Rojas

1789, como momento inicial del ciclo de vida de la hoy declinante ideolo­
gía liberal burguesa a nivel mundial, y a 1492, como fecha simbólica del
nacimiento de la agonizante pero todavía viva era capitalista de la historia
humana12.
Pero también y en un nivel aún más profundo, 1968 no es sólo el
punto de partida de la crisis terminal del capitalismo, sino también y como
lo explicó Marx hace más de 150 años, el punto de partida de la crisis ter­
minal de toda la vasta familia de sociedades humanas divididas en clases
sociales, junto al fin simultáneo de la larguísima y milenaria “prehistoria
de la humanidad”. Lo que, en la línea ya planteada, significa que los par­
ticulares pasados relevantes que permiten explicar real y adecuadamente
los procesos humanos vividos en las cuatro últimas décadas, nos remite
no sólo a 1945, 1870, 1789 y 1492, sino también y simultáneamente, a los
propios orígenes de las sociedades humanas divididas en clases sociales, e
incluso y más allá, a los propios orígenes del hombre en tanto especie13.
Densidad histórica excepcional, que combina y superpone entre
otros, estos seis procesos importantes recién mencionados, que explica
también los nuevos perfiles generales que hoy adopta esa lucha realmen­
te antisistémica por la tierra, que hoy se afirma dentro de América Lati­
na. Lucha que ha modificado desde los sujetos o actores que la enarbolan,
hasta la concepción misma de lo que hoy debemos comprender bajo esta
noción de “la tierra”, junto al sentido concreto que esta lucha tiene dentro
del conjunto de las luchas sociales más globales, y a los propios objetivos,
inmediatos y mediatos, de dicha lucha por la tierra.
Ya que ahora, en estos inicios del tercer milenio cronológico, los
sujetos que hoy luchan por la tierra son sujetos que antes no existían, o
también, actores que aunque existían no eran reconocidos ni por el sistema
social dominante, ni tampoco por los propios movimientos sociales antica­
pitalistas anteriores a la fecha emblemática de 1968. Es decir, sujetos real­

12
Para comprender más cabalmente estos procesos de la fase b del ciclo Kondratiev, de la etapa
descendente del ciclo hegemónico norteamericano, del colapso hoy en curso del liberalismo,
y de la crisis terminal del capitalismo, cfr. Immanuel Wallerstein, Después del liberalismo, Ed.
Siglo XXI, México, 1996, y La crisis estructural del capitalismo, antes citado. También Carlos
Antonio Aguirre Rojas, Immanuel Wallerstein: crítica del sistema-mundo capitalista, Ed. Era,
segunda reimpresión, México, 2007, y también Para comprender el siglo XXI, antes ya citado.
13
Sobre este fin de las sociedades de clases y de la misma prehistoria humana, siempre es
útil releer a Marx, por ejemplo El Capital, Ed. Siglo XXI, 8 volúmenes, México, 1975-1981,
Elementos fundamentales para la crítica de la economía política. Grundrisse, antes citado, y
Crítica del programa de Gotha, Ediciones en Lenguas Extranjeras, Pekín, 1978. Véase tam­
bién nuestra participación en el Primer Festival Mundial de la Digna Rabia, Carlos Antonio
Aguirre Rojas, “La digna rabia, tan anticapitalista como radicalmente antisistémica”, en el
sitio del EZLN: http://www.ezln.org.mx, discurso en donde recuperamos este argumento de
Marx, para explicar, además, la naturaleza singular de los actuales movimientos anticapita­
listas, y sobre todo antisistémicos de todo el planeta.

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Los movimientos antisistemicos de America Latina
y su lucha por la tierra en el siglo XXI

mente inexistentes, o en otro caso, sujetos recurrentemente invisibilizados


e ignorados por el conjunto de la sociedad en que ellos vivían.
Así, quienes hoy luchan por la tierra, por ejemplo en Brasil, son los
“sin tierra”, es decir personas que no son necesariamente campesinos, y
que pueden ser más bien pobres de la ciudad, o hijos de campesinos que
nunca tuvieron tierra propia, u obreros que desean retornar al campo y
reconvertirse en campesinos, etc. (aunque también, a veces, sí se trata de
campesinos que han sido expulsados de sus tierras, o despojados injusta­
mente de las mismas). Gente entonces “sin tierra”, a veces proveniente de
los espacios y de los sectores sociales urbanos, que al luchar hoy por con­
quistar esa tierra campesina y vincularse con ella, a veces por vez primera
en su vida, subvierte de un golpe y en los hechos, el mito tenaz de que el
campo representa el atraso social y la falta de desarrollo, mientras que la
ciudad encarna el progreso y el mayor desarrollo social global en general.
Nuevos actores que nunca han poseído la tierra, y que no han definido su
identidad social original en función de dicha tierra, que por libre elección,
deciden ahora tratar de pelear y de conquistar esa misma tierra, para acce­
der entonces a la creación de una nueva identidad propia, ahora campesi­
na y claramente rural14.
Y vale la pena subrayar el hecho de que lo que unifica, en un primer
momento, a este movimiento social anticapitalista de los “Sin Tierra”, es
más su condición negativa que positiva, pues más allá de su origen, prove­
niente de varios sectores y grupos sociales muy diversos, lo que lo estruc­
tura inicialmente es su condición compartida de no tener la tierra, de no
tener acceso a su disfrute y de ser entonces un sin tierra. Condición nega­
tiva similar a la de los piqueteros argentinos, que son al inicio los “sin tra­
bajo”, los que comparten el estatuto del desempleo y de la falta de trabajo.
Y condición también semejante a la de los inmigrantes ilegales de Estados
Unidos o de Europa, que son los “sin papeles”, o a los habitantes pobres de
origen árabe de los suburbios franceses, que son los “sin reconocimiento”
de su igualdad y de sus derechos frente a los ciudadanos de origen francés,
o a los indígenas de México, o de Perú, o Ecuador, o Bolivia, que son los sin
identidad indígena reconocida, y los sin autonomía verdadera sobre todas
sus tierras y territorios ancestrales.
Sectores pues definidos en sus comienzos – lo que más adelante se
transforma, para dar paso a una clara unidad en torno de razones y ele­
mentos positivos, nacidos justamente de sus luchas anticapitalistas y anti­

14
Sobre el Movimiento de los Sin Tierra de Brasil, vale la pena revisar, por ejemplo, Joao Pe­
dro Stedile, Brava Gente, Ed. Desde Abajo, Bogotá, 2003, Bernardo Mançano, A formação do
MST no Brasil, Ed. Vozes, Petrópolis, 2000, Martha Harnecker, Sin tierra. Construyendo mo­
vimiento social, Ed. Siglo XXI, Madrid, 2002, Sue Branford y Jan Rocha, Rompendo a cerca.
A historia do MST, Ed. Casa Amarela, São Paulo, 2004, y Mitsue Morissawa, A história da
luta pela terra e o MST, Ed. Expressão Popular, São Paulo, 2001.

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Carlos Antonio Aguirre Rojas

sistémicas –, por una condición negativa, que habrían sido imposibles de ser
concebidos como sujetos transformadores antes de 1968, cuando todos los
movimientos anticapitalistas definían la relevancia de los diversos grupos
y sectores sociales, solamente en función de su cercanía, lejanía, o víncu­
lo específico con los procesos productivos concretos de plusvalía, y cuan­
do el único actor considerado realmente revolucionario, en virtud de esta
idea, era precisamente la clase obrera industrial. En cambio ahora, y con
la emergencia posterior a 1968 de múltiples nuevos sujetos y actores revo­
lucionarios, se afirman también nuevos sujetos que luchan por la tierra, y
entre ellos, estos sectores urbanos de los autodenominados “sin tierra”.
Y junto a estos sectores urbanos, “sin tierra”, que desean cambiar
su identidad urbana para volverse campesinos con tierra, existen también
otros “nuevos” sujetos, también urbanos, que luchan hoy por la tierra, pero
en este caso por la propia tierra urbana, por los territorios urbanos de sus
barrios, de sus colonias, de sus espacios vitales, y de sus vastas y extendi­
das periferias, que son ahora los inmensos cinturones que rodean y envuel­
ven a muchas de las grandes ciudades latinoamericanas. Sujetos sociales
que tampoco existían antes de la revolución mundial de 1968, o que exis­
tían de modo sólo marginal y minoritario, y que en los últimos cuarenta
años han construido, sobre todo en América Latina, potentes y cada vez
más visibles movimientos urbanos populares, los que entre sus múltiples
demandas y reivindicaciones incluyen también ahora la de la conquista y
defensa de esa tierra urbana, de sus propios territorios urbanos, en los que
no sólo afirman su propia presencia material como movimientos sociales
fuertes, e incluso a veces claramente antisistémicos y anticapitalistas, sino
también comienzan a edificar, en esos espacios urbanos controlados por
ellos, interesantes experimentos de reconstrucción social no capitalista, es
decir, experiencias en pequeña escala de formas económicas no regidas por
la lógica de la acumulación de capital, junto a relaciones sociales solidarias
y fraternas, y a proyectos de una salud, una educación, una cultura y una
convivencia social, realmente alternativas a las formas burguesas capitalis­
tas aún hoy dominantes15.

15
Sobre esta lucha por la tierra y el territorio urbanos, cfr. Raúl Zibechi, América Latina: perife­
rias urbanas, territorios en resistencia, ya citado, en donde se analizan con detalle las experien­
cias de Perú, Chile, Uruguay, Colombia y México. Y vale la pena señalar que en algunos casos,
esta construcción de espacios propios por parte de los movimientos sociales, puede llegar
hasta las dimensiones de construir toda una ciudad paralela, como en el caso de la Ciudad de
El Alto en Bolivia, sobre la cual vale la pena ver, también, el libro de Raúl Zibechi, Dispersar
el poder, Ed. Taller Editorial la Casa del Mago, Guadalajara, 2006. En términos más genera­
les, cfr. también de Raúl Zibechi, “Espacios, territorios y regiones: la creatividad social de los
nuevos movimientos sociales en América Latina” en Contrahistorias, núm. 5, México, 2005, y
“La revolución de 1968: cuando el sótano dijo ¡basta!” en Contrahistorias, núm. 11, México,
2008, y Carlos Antonio Aguirre Rojas, “América Latina hoje: um olhar na longa duraçao”, en
el libro América Latina. História e presente, Ed. Papirus, São Paulo, 2004.

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Los movimientos antisistemicos de America Latina
y su lucha por la tierra en el siglo XXI

Sujetos urbanos que luchan hoy, de modo antisistémico, por la tie­


rra rural o por la tierra urbana, que simplemente no existían en tanto tales
sujetos que luchan por la tierra, antes del quiebre histórico de 1968. Como
tampoco parecían existir, aunque si existieran, los indígenas que hoy lu­
chan por la tierra, y a los que antes de 1968 se les consideraba exclusiva­
mente como campesinos, pero no como campesinos que además de serlo,
eran también singularmente indígenas, es decir campesinos-indígenas, con
una identidad específica que no era ni idéntica ni reductible a la de los
campesinos no indígenas.
Y de la misma manera que las mujeres, o que los jóvenes, o que los
homosexuales, así también los indígenas eran claramente invisibilizados
antes de 1968, subsumiéndolos en la clase social de los campesinos, o con­
siderándolos, paternalista y despreciativamente, como simples resabios
del pasado destinados prontamente a desaparecer. Pero después de 1968,
primero lentamente y con mucho más fuerza y vigor después del 1 de enero
de 1994, estos mismos indígenas, que también son en su inmensa mayoría
campesinos, han comenzado a luchar igualmente por la tierra, pero ahora
ya no solamente desde su perspectiva campesina en general, sino también
y más específicamente, desde su singular cosmovisión indígena de lo que
es, y sobre todo de lo que debe ser, esa misma tierra.
Cosmovisión indígena que no concibe a la tierra en términos pura­
mente instrumentales, como sí lo hacen muchos campesinos del mundo al
asumirla solamente como su instrumento de producción principal, sino que
la asume como “Madre Tierra”, como “Pacha Mama”, o sea como la fuente
primera y nutricia de toda la vida humana, y en esta vía, como pilar central
y origen general de las sociedades humanas y de toda vida social posible16.
Concepción de la tierra defendida por los movimientos indígenas de México,
Ecuador, Bolivia, Chile, Colombia, Perú, Guatemala, etc., que no sólo trans­
forma radicalmente todos los modos concretos de entender la secular y mile­
naria “lucha por la tierra”, sino también el sentido todo y la perspectiva general
de aquello por lo que se “lucha”, del objeto, el objetivo, las acciones y la signi­
ficación de lo que está en juego en estos nuevos combates “por la tierra”, en
virtud de la profunda modificación que ahora ha sufrido el contenido mismo
de lo que incluye esta cambiante y peculiar noción de lo que es la “tierra”17.
Cambio profundo de lo que abarca este término “tierra”, que a tono
con esos nuevos sujetos y actores que hoy luchan por ella, va también a

16
Sobre esta concepción de la tierra como “Madre Tierra”, cuyas implicaciones generales re­
visaremos un poco más adelante, y que es una concepción que se encuentra presente en la
gran mayoría de las civilizaciones humanas, cfr. Mircea Eliade, Tratado de historia de las re­
ligiones, Ed. Era, México, 2004.
17
Sobre las diversas implicaciones que para el movimiento neozapatista mexicano tiene esta
lucha por la Madre Tierra, cfr. Carlos Antonio Aguirre Rojas, Mandar obedeciendo. Las lec­
ciones políticas del neozapatismo mexicano, Ed. Prohistoria, cuarta edición, Rosario, 2009.

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Carlos Antonio Aguirre Rojas

mudar el enfoque mismo y el carácter de lo que se reclama y reivindica, por


parte de esos nuevos movimientos antisistémicos de América Latina. Pues
hoy, no se lucha solamente por la tierra, sino también por el territorio, com­
prendiendo bajo este término complejo, a los lagos, los ríos, los manantia­
les y las cascadas, a las montañas, los bosques, los valles, los recursos del
suelo y el subsuelo, al medio ambiente con todos sus componentes, y tam­
bién a la flora y la fauna integrales de esos espacios territoriales, es decir,
a todos los componentes de lo que Fernand Braudel llamó el componente
o basamento geohistórico de las civilizaciones, y de lo que Marx y Hegel
llamaron, en su momento, la base geográfica de la historia universal18. Que
es lo mismo a lo que los indígenas bolivianos designan hoy, más resumida­
mente, bajo los términos de “el subsuelo, el suelo y el vuelo”.
Lucha por la tierra, concebida ahora en estas vastas dimensiones
como lucha y defensa del territorio, que es la que explica, entre muchos
otros ejemplos, la famosa ‘guerra del agua’ llevada a cabo por los indígenas
bolivianos, pero también la defensa de los bosques y de los lagos que hoy
despliegan, firmemente, los pueblos neozapatistas de Chiapas, junto a la
confrontación actual de la CONAIE ecuatoriana en contra de Rafael Co­
rrea, en torno de la explotación o no de los recursos minerales y del petró­
leo que subyacen a los territorios indígenas amazónicos de Ecuador, o a la
lucha de los mapuches chilenos contra las trasnacionales y contra el Esta­
do chileno, por la defensa de su medio ambiente y de sus territorios.
Combate múltiple y complejo, en torno de todo este vasto conjunto
de elementos que hoy abarca la noción de tierra-territorio, que además,
no es una disputa sólo por la posesión o no, o el control general o no de
esos elementos, sino, mucho más profundamente, por la definición misma
de sus usos, su gestión, su administración, su reproducción y su manteni­
miento general. Es decir, una lucha que incluye, por ejemplo, la definición
de lo que debe o no cultivarse, como en el caso de la guerra de los cocale­
ros bolivianos y de su defensa del sentido histórico-simbólico del cultivo y
del consumo de la hoja de coca, lo mismo que sobre la decisión del uso o
no de agentes químicos tóxicos para la fertilización del suelo, uso que está
completamente prohibido en todos los territorios neozapatistas del Estado
de Chiapas en México. O también, la decisión sobre el consumo o destino

18
Sobre este punto cfr. Fernand Braudel, “¿Hay una geografía del individuo biológico?”, en el
libro Escritos sobre historia, Ed. Fondo de Cultura Económica, México, 1991, y El Mediterrá­
neo y el mundo mediterráneo en la época de Felipe II, Ed. Fondo de Cultura Económica, Méxi­
co, 1953 (en especial el punto “Geohistoria y determinismo” en el tomo 1, pp. 317-327), Car­
los Marx, La ideología alemana, Ediciones de Cultura Popular, México, 1974, G. H. F. Hegel,
Lecciones sobre la filosofía de la historia universal, Ed. Revista de Occidente, Madrid, 1974,
y Carlos Antonio Aguirre Rojas, Fernand Braudel et les sciences humanies, Ed. L’Harmattan,
París, 2004, y “Between Marx and Braudel: making history, knowing history”, en Review, vol.
XV, núm. 2, 1992.

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Los movimientos antisistemicos de America Latina
y su lucha por la tierra en el siglo XXI

de lo que ya ha sido producido, como en el combate del movimiento de los


Sin Tierra brasileños, en contra del uso de los cereales para la producción
de los biocombustibles. Pero incluso y más allá, no solo en torno a la defi­
nición de tal o cual producto en particular, sino mas en general, en torno
a la estrategia general de la utilización misma de la tierra, que en lugar de
consagrarse a la producción de un solo producto comercial altamente ren­
table y confinarse así en el monocultivo, puede más bien orientarse a la
promoción constante de una agricultura concebida desde la lógica del in­
cremento creciente y del logro sostenido de una verdadera autosuficiencia
alimentaria, tal y como lo defienden igualmente los campesinos brasileños
del Movimiento de los Sin Tierra.
Una lucha amplia y vasta por el territorio-tierra, que como ya he­
mos mencionado, no es sólo la lucha por el territorio rural, sino también
y en ocasiones, una lucha por los territorios urbanos. Como en el caso de
Bolivia, en donde esta lucha por la tierra urbana llega hasta el punto de
construir toda una ciudad entera, la Ciudad de El Alto, que es contigua y
paralela a la ciudad de La Paz, y que siendo una ciudad de población exclu­
sivamente indígena, posee ochocientos mil habitantes, teniendo su propia
Universidad y sus propias autoridades de gobierno, con su propia policía,
sus leyes, sus Juntas Vecinales, sus comercios y su organización propia,
en un modelo que apunta claramente hacia la autogestión y la autonomía
completa, de esta enorme comunidad indígena y rebelde. Comunidad de El
Alto que tuvo un rol protagónico de primera fila, tanto en el derrocamiento
del “gringo” Gonzalo Sánchez de Losada en octubre de 2003, como tam­
bién en el colapso del gobierno de Carlos Mesa en mayo y junio de 200519.
Nuevas luchas y nuevas conquistas por la tierra y el territorio
urbanos, que junto a la lucha por los territorios rurales, y a partir de los
nuevos actores o sujetos que la llevan a cabo, constituyen algunos de los
nuevos perfiles principales de esta lucha por la tierra, desarrollada por los
nuevos movimientos antisistémicos de América Latina.

Los nuevos horizontes de la lucha antisistémica latinoamericana


por la tierra y el territorio

A partir de estos nuevos perfiles que hoy presenta la lucha por la


tierra y el territorio en América Latina se derivan también otros rasgos,
igualmente novedosos e inéditos, que definen a esta misma lucha por el
territorio como una lucha genuinamente radical, anticapitalista y antisis­

19
Sobre este pueblo o comunidad de la Ciudad de El Alto, cfr. Raúl Zibechi, Dispersar el poder,
antes ya citado, Luis Gómez, El Alto de pie. Una insurrección aymara en Bolivia, Ed. Comuna,
La Paz, 2004, y Carlos Antonio Aguirre Rojas, “Bolivia rebelde. Las lecciones de los sucesos
de mayo y junio de 2005 en perspectiva histórica”, en Contrahistorias, núm. 5, México, 2005.

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Carlos Antonio Aguirre Rojas

témica, y con ello, como una lucha inserta dentro de un nuevo horizonte
general, que es precisamente el de la etapa de transición histórica o bifur­
cación sistémica que ahora vive el capitalismo mundial, y al cual ya hemos
aludido anteriormente.
Porque si observamos con cuidado aquellos movimientos latinoa­
mericanos que hoy podemos calificar como los principales movimientos
antisistémicos de nuestro semicontinente – es decir, el neozapatismo mexi­
cano, el Movimiento de los Sin Tierra en Brasil, un sector del movimien­
to piquetero argentino, y ciertos grupos o tendencias de los movimientos
indígenas de Ecuador y de Bolivia20 –, y los contrastamos con otros movi­
mientos sociales de América Latina, podremos comprender fácilmente que
los primeros se distinguen de los segundos por todo un conjunto de rasgos
que, en lo general, se vinculan precisamente a la asunción de este horizon­
te de la crisis terminal del capitalismo, y por lo tanto, a una reconocida y
explícita vocación anticapitalista y antisistémica profundas.
Por ejemplo, y en primer lugar, al hecho de que todos estos movi­
mientos antisistémicos conciben a esa “lucha por el territorio y la tierra”
sólo como una parte de una lucha obligadamente más global, que es una lu­
cha por la supresión integral del capitalismo y por la construcción de una
sociedad nueva, muy otra que la capitalista. Entonces, y a diferencia de los
movimientos prosistémicos por el territorio, que al conquistar el reparto de
la tierra o la reforma agraria se dan por satisfechos y contentos, esta lucha
antisistémica por la tierra se percibe, siempre, sólo como uno de los frentes
o espacios de una totalidad mayor que la engloba y la subsume, integrándola
dentro de ese combate antisistémico y anticapitalista mucho más global.
Lo que se hace evidente, por ejemplo, en el planteamiento del MST
brasileño, el que siempre ha insistido en que su lucha por una reforma
agraria en Brasil, sólo puede ser realmente exitosa y cumplida si lo es como
parte de una transformación social global y radical de toda la sociedad bra­
sileña, y por ende, como parte de la construcción del socialismo en Brasil21.

20
Pensamos que estos cinco movimientos enlistados, son los cinco más importantes movimien­
tos antisistémicos de América Latina, teniendo todos ellos una presencia nacional indudable
en sus respectivos países, y habiendo desplegado también todos ellos, en ciertos momentos o
coyunturas históricas, acciones de impacto nacional, e incluso, muchas veces, de consecuen­
cias y proyección internacionales. No obstante, no se nos escapa el hecho de que, a todo lo
largo y ancho de América Latina, existen también otros movimientos antisistémicos impor­
tantes, como los mapuches chilenos o los indígenas nasa de Colombia, o el movimiento de la
APPO en Oaxaca, México, o etc. Pero pensamos que se trata, al menos por ahora, de movi­
mientos de alcance más local, o regional, o de existencia más efímera y coyuntural. Lo que,
sin duda, no demerita en nada su profunda importancia, tal y como hemos tratado de mos­
trarlo, para el caso específico de México, en nuestro ensayo, Carlos Antonio Aguirre Rojas,
“México 2005-2010: Obra en trece actos”, en Contrahistorias, núm. 12, México, 2009.
21
Sobre este punto véanse los textos citados en la nota 14, y también, por mencionar sólo dos
ejemplos posibles entre muchos, Gilmar Mauro, “Situación y perspectivas del movimiento

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Los movimientos antisistemicos de America Latina
y su lucha por la tierra en el siglo XXI

O también en el caso del neozapatismo mexicano, el que desde el principio


incluyó su lucha por la “Tierra”, sólo como una de las once y después trece
demandas generales de su lucha global, demandas que ahora están en pro­
ceso de redefinición, para integrarse dentro del Programa Nacional de Lu­
cha que muy pronto habrá de elaborar, desde abajo y a la izquierda, todo el
vasto movimiento nacional mexicano de La Otra Campaña22.
Lucha por el territorio y tierra, que también para la CONAIE ecua­
toriana, o para el Movimiento Pachakutic de Bolivia, es tan sólo una parte
de una lucha más global por la instauración de una sociedad basada en el
principio indígena del “buen vivir”, y por la instauración de un gobierno
auténticamente indio, lo mismo que una lucha en contra de la tibieza y
moderación de los gobiernos de Rafael Correa y de Evo Morales respecti­
vamente, y en contra de las trasnacionales y de los capitalistas y el capita­
lismo ecuatoriano o boliviano, según los casos23.
E igualmente, en el caso de los sectores autonomistas piqueteros, los
que junto a la defensa de su tierra y territorios urbanos, pelean también
por la autogestión y la autonomía integrales de sus propios barrios, recons­
truyendo formas económicas de trueque o de intercambio justo, y relacio­
nes sociales de solidaridad y apoyo mutuo, que confrontan radicalmente al
neoliberalismo y al capitalismo argentinos hoy todavía dominantes24.
Nueva lucha antisistémica por la tierra y el territorio, que siendo
siempre reencuadrada e integrada dentro de la lucha más global en contra
del sistema capitalista en su conjunto, es compartida por los cinco princi­
pales movimientos antisistémicos de la América Latina actual.
Un segundo trazo compartido por varios de los movimientos antisis­
témicos latinoamericanos, aunque no por todos, es el que se vincula a la es­

de los Sin Tierra en Brasil. Entrevista a Gilmar Mauro”, en Contrahistorias núm. 10, México,
2008, y también el Boletín núm. 165 de la publicación en Internet “MST Informa”, del 16 de
abril de 2009, en el sitio del MST: http://www.mst.org.br
22
Sobre las once y luego trece demandas neozapatistas, y sobre su significado e implicacio­
nes en general, cfr. los cinco tomos de la obra EZLN. Documentos y comunicados, cinco vo­
lúmenes, Ed. Era, México, 1994-2003. Sobre el movimiento de La Otra Campaña y sobre el
proyecto del Programa Nacional de Lucha, cfr. Contrahistorias núm. 6, México, 2006, núm.
8, México, 2007 y núm. 10, México, 2008. También, Carlos Antonio Aguirre Rojas, Chiapas,
Planeta Tierra, Ed. El Perro y la Rana, Caracas, 2007, y Mandar obedeciendo. Las lecciones
políticas del neozapatismo mexicano, antes ya citado.
23
Sobre este punto, cfr. Propuesta Agraria de la CONAIE, Ed. CONAIE, Quito, 2007, Propuesta
de la CONAIE frente a la Asamblea Constituyente, Ed. CONAIE, Quito, 2007, y Proyecto polí­
tico de las Nacionalidades Indígenas del Ecuador, Ed. CONAIE, Quito, 2007, además de los
textos de la nota 11.
24
Sobre este movimiento de los piqueteros argentinos, cfr. Maristella Svampa y Sebastián Pe­
reyra, Entre la ruta y el barrio, 2ª edición, Ed. Biblos, Buenos Aires, 2004, Gabriela Delamata,
Los barrios desbordados, Ed. Eudeba, Buenos Aires, 2004, Miguel Mazzeo, Piqueteros. Notas
para una tipología, Ed. Manuel Suárez, Rosario, 2004, y Raúl Isman, Los piquetes de La Ma­
tanza, Ed. Nuevos Tiempos, Buenos Aires, 2004.

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Carlos Antonio Aguirre Rojas

pecífica concepción que los pueblos indígenas de nuestro semicontinente,


tienen aún de lo que es esa tierra y ese territorio por los que actualmente
combaten. Pues para ellos, como ya lo hemos mencionado, la tierra-territo­
rio es la Tierra-Madre, la Pacha-Mama o la Madre Tierra, e incluso, a veces,
la madre naturaleza. Lo que significa que su visión de ese territorio-tierra
no es para nada una visión instrumental, que concibe a la tierra como algo
inerte, muerto, y completamente ajeno y exterior al hombre, sino más bien
una visión compleja, dialógica, simbólica y cargada de múltiples sentidos,
que asimila a esa tierra-naturaleza-territorio como una realidad viva y ac­
tiva, con la que el hombre dialoga, intercambia y se compenetra, dentro de
un complejo metabolismo orgánico y dialéctico, en el que fluyen y refluyen,
permanentemente, acciones y reacciones múltiples de muy diversos tipos.
Porque si la tierra es la Madre-Tierra, entonces ella es la fuente úl­
tima de toda nuestra vida y de todo nuestro existir, y con ello, el origen de
nuestro ser corpóreo, el lugar en el que estar, el hábitat de nuestro cobijo
y nuestro techo, la que produce nuestros alimentos, la que provee los ma­
teriales de nuestras casas y de nuestras ciudades, la que genera las plantas
que nos curan, la que conserva, reproduce y modifica el frío y el calor, o
la que da las materias primas con las que nos cubrimos y vestimos. Pero
también ella es la fuente de los sonidos, de los colores y de las imágenes, de
las piedras, de los movimientos y de los ritmos, así como de las figuras, los
gestos y las situaciones, y con ello, el origen de todas las artes.
E igualmente, esa Madre-Tierra-Naturaleza, es el lugar primero de
los espacios, de las figuras, de las líneas y de los puntos, lo mismo que la
matriz de las sustancias, de los precipitados, de las bases, de los elementos,
de los ácidos y de los minerales, los que además, coinciden con las mil y un
formas de la vida vegetal y animal que ella también genera y reproduce. Y
por esta vía, también ella es el origen del pensamiento, de la reflexión, de
la filosofía, del lenguaje, de las matemáticas, de la biología, de la química,
y de todas las ciencias posibles.
Verdades estas obvias y elementales, que sin embargo tienden a ol­
vidarse cuando se vive en las grandes y en las pequeñas ciudades, en esos
medios sociales casi totalmente artificiales, y absurdamente separados y
lejanos de esa Madre Tierra y de esa Madre Naturaleza. Lo que además, es
un dato más que reciente, porque es un hecho histórico evidente que hasta
el siglo XVIII, la inmensa y abrumadora mayoría de la humanidad vivió
más que sumergida en esa vida campesina, y en contacto directo con la
Madre Tierra, situación que sólo comenzó a quebrarse, masivamente y en
gran escala, a partir de los muy cercanos procesos de urbanización e indus­
trialización generalizados de las sociedades, que datan tan solo de los dos
últimos siglos transcurridos.
Concepción entonces rica, compleja, y sutil, de la Madre Tierra, que
al oponerse radicalmente a la concepción capitalista instrumental de esa

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Los movimientos antisistemicos de America Latina
y su lucha por la tierra en el siglo XXI

misma tierra, revela todo el enorme potencial anticapitalista y antisisté­


mico que ella misma encierra. Pues si la tierra es la Pacha Mama o Madre
Tierra, entonces los nuevos movimientos antisistémicos no están luchan­
do simple y limitadamente por un reparto agrario, o por la conquista in­
dividual de la propiedad individual de esa tierra. Pues cuando varios hijos
comparten a una misma madre, ellos no se la reparten en pedazos, sino
que conviven colectivamente con ella, gozando comunitaria y simultánea­
mente de su compañía. Lo que explica el hecho de que, cuando los indí­
genas neozapatistas recuperan la tierra, arrancándosela a los latifundis­
tas, ellos no la reparten en parcelas y propiedades individuales, sino que la
conservan y trabajan de manera colectiva, compartida y simultánea. Con
lo cual, no existe ni el reparto agrario ni la centralidad hegemónica de la
propiedad individual de la tierra, en el seno de esas dignas comunidades
rebeldes neozapatistas de Chiapas25.
Pero si la lucha genuinamente antisistémica no es por el simple re­
parto agrario ni tampoco por la conquista de la limitada propiedad indivi­
dual de la tierra, tampoco lo es por la conquista de la propiedad colectiva
de la tierra, sino por algo mucho más profundo y mucho más radicalmente
anticapitalista y antisistémico. Pues si la tierra es nuestra Madre Tierra,
es lógico que a la tierra, como a la madre, ni se le vende ni se le compra,
e incluso y más allá, tampoco se la apropia uno como se apropia de los
objetos y de las cosas. Lo que entonces, nos permite comprender la sabia
afirmación de los compañeros neozapatistas mexicanos, cuando plantean
que debemos preguntarnos cómo vamos a poder vivir armónicamente y
disfrutar todos juntos a esta tierra, pero “sin que nadie sea su dueño”, tal y
como lo dijo sabiamente el Teniente Coronel Insurgente Moisés, en el Pri­
mer Festival Mundial dela Digna Rabia celebrado en diciembre de 2008 y
enero de 2009.
Lo que implica que si prolongamos hasta sus últimas consecuencias
esta noción de la tierra como Madre Tierra, entonces desembocamos en la
consigna de la necesaria y obligada desmercantilización absoluta de la tie­
rra. Pues la tierra, madre y fuente de nuestra vida, de nuestra reproducción

25
Aunque entre los neozapatistas existe a veces la propiedad individual de la tierra, esta es más
un efecto derivado de los quinientos años de colonización y de dominación que han sufrido
los pueblos indígenas, que un elemento central de su vida social en general. Pues entre los
indígenas neozapatistas, – como también en muchos pueblos indígenas de Bolivia y de Ecu­
ador, lo mismo que de otros países de América Latina –, se ha conservado hasta hoy el claro
predominio del nosotros colectivo sobre el “yo” aislado, solitario y egoísta. Lo que también
se conecta, coherentemente, con esa visión de la tierra como Madre Tierra, como madre co­
lectiva del nosotros comunitario. Sobre este interesante punto, que no podemos desarrollar
más ampliamente aquí, cfr. Carlos Lenkersdorf, Los hombres verdaderos, Ed. Siglo XXI, Mé­
xico, 1996, y Filosofar en clave tojolabal, Ed. Miguel Ángel Porrúa, México, 2002, y también
Carlos Antonio Aguirre Rojas, Mandar obedeciendo. Las lecciones políticas del neozapatismo
mexicano, ya antes referido.

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Carlos Antonio Aguirre Rojas

material, de las artes, y de las ciencias, no debería nunca de ser una mer­
cancía, y por lo tanto, no debería poder comprarse ni venderse, lo que im­
plica que eliminemos y suprimamos por completo toda posible propiedad
privada de la tierra, sea individual, colectiva, estatal, o social. Supresión de
toda posible propiedad privada de la tierra, que no sólo hace imposible la
existencia del capitalismo, sino también de cualquier posible sociedad di­
vidida en clases sociales, e incluso y complementariamente, también hace
obsoleto e inútil el esquema mismo del patriarcado y de la familia patriar­
cal, en todas sus variantes posibles26.
Y si debemos abolir toda posible propiedad de esa Madre Tierra,
también debemos abandonar la idea de su “apropiación” por parte nues­
tra. Pues tampoco nos “apropiamos” de nuestra madre, no pretendemos
ser sus “dueños”, sino que establecemos con ella una relación dialógica
de intercambio y de afecto, en la que ninguno de los elementos domina
sobre el otro, y ninguno es apropiado por el otro. Así, no sólo hace falta
desmercantilizar la tierra, sino que también es necesario suprimir y supe­
rar la idea limitada y escasa (en tanto nacida de la relación de escasez de
la que habló tan brillantemente Jean Paul Sartre), de que el metabolismo
y el vínculo entre el hombre y la naturaleza, o la tierra, debe estar marca­
do por la asimetría y por la dominación de alguno de estos dos elementos
sobre el otro.
Lo que se vuelve posible, si renunciamos a la idea de la propiedad de
la tierra, a su condición como mercancía, e incluso a la estrategia de ‘apro­
piación’ de ella por parte nuestra. Pues si la tierra se vuelve patrimonio co­
mún de la humanidad, es decir, un bien compartido por todos, que perte­
nece a todos y por ende no pertenece a nadie, como el aire que respiramos
o como el cielo que contemplamos, entonces es posible superar, al mismo
tiempo, de un lado la relación escasa en que la naturaleza domina al hom­
bre, y lo castiga con sequías, malas cosechas, hambrunas, terremotos, pla­
gas, epidemias, o catástrofes de todo tipo, como del otro lado también la
relación capitalista absurda y prepotente que concibe al hombre como “amo
y señor de la naturaleza”, con todas las terribles consecuencias de desastre
ecológico que esta posición ha acarreado. Renuncia a la idea de “apropia­
ción” de la Madre Tierra, que no es sólo anticapitalista, sino también y al
mismo tiempo profundamente antisistémica y superadora de la larguísima

26
Para comprender los vínculos que existen entre el proceso de nacimiento de la propiedad
privada de la tierra, y el desarrollo de la génesis de las sociedades divididas en clases socia­
les, y para entender también cómo la monopolización total de esa tierra fue una condici­
ón del nacimiento del capitalismo, siempre es útil volver a leer los textos clásicos de Marx,
como El Capital, antes citado o los Elementos fundamentales para la crítica de la economía
política. Grundrisse, también ya referido. Para el vínculo que existe entre el nacimiento de la
propiedad privada y el patriarcado, cfr. también el texto de Federico Engels, El origen de la
familia, la propiedad privada y el Estado, Ed. Progreso, Moscú, sin fecha de edición.

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Los movimientos antisistemicos de America Latina
y su lucha por la tierra en el siglo XXI

y milenaria condición prehistórica de la humanidad, hoy todavía vigente. Y


que abre, por vez primera en la historia humana, la posibilidad de buscar
una nueva e inédita relación de equilibrio armónico, dialógico y fraterno,
entre el hombre y la tierra, entre el hombre y la madre naturaleza.
Finalmente, un corolario obligado de todos estos cambios referidos
de la actual lucha antisistémica por la tierra, y que es también un tercer
trazo compartido por varios de los principales movimientos antisistémicos
de América Latina, es el de obligarnos a repensar el posible futuro inme­
diato de la milenaria contraposición humana entre el campo y la ciudad.
Y si ya Marx señaló, en su momento, que el carácter que presenta
esta relación campo-ciudad es uno de los ejes nucleares de toda la historia
económica del hombre, y vaticinó que con la eliminación del capitalismo
y de las clases sociales en general, se acabaría también esa antitesis en­
tre el campo y la ciudad, entonces es lógico que la acción y la concepción
de estos movimientos antisistémicos, apunte también hacia este problema
fundamental de lo que habrá de acontecer, en el futuro cercano, con dicha
configuración de los espacios y territorios humanos, que aún hoy sigue or­
ganizándose desde esa división entre lo rural y lo urbano.
Pues al equiparar la lucha por la tierra rural con la lucha por los te­
rritorios urbanos, y al incorporar a sujetos urbanos, no campesinos, en esa
lucha por la tierra rural, lo mismo que al abrir la noción de tierra hacia el
mucho más vasto universo de lo que incluye el territorio, o al recordarnos
que la tierra es la Madre Tierra, fuente de la vida en general, y por lo tanto,
también de la vida citadina en particular, o al extender la noción de la Ma­
dre Tierra a la de la Madre Naturaleza, lo que esos nuevos movimientos an­
tisistémicos de América Latina hacen, es invitarnos a repensar en términos
radicalmente nuevos y antisistémicos cómo es que sería posible trascender
esa antítesis entre el campo y la ciudad, para reconstruir otros modos, dis­
tintos y muy otros de los actuales, de esa distribución y organización de las
poblaciones humanas, sobre las tierras emergidas del globo terráqueo27.
Replanteamiento radical de la relación y la dialéctica entre el campo
y la ciudad, que no sólo debería romper con el mutuo aislamiento y con la
ajenidad profunda que hoy existe entre ambos espacios y universos, sino
que debería también de cuestionar, radicalmente, la falsa jerarquía que co­
loca a la ciudad por encima del campo. Algo que, por ejemplo, había sido
planteado y discutido durante la revolución cultural china, la que no sólo
se preguntaba como quebrar la también milenaria antítesis entre trabajo
manual e intelectual, sino también cómo romper y superar esa antítesis

27
Sobre este punto, vale la pena leer con cuidado el texto de las palabras del Teniente Coronel
Insurgente Moisés, pronunciadas en el Primer Festival Mundial de la Digna Rabia, y publi­
cadas bajo el título “El campo y la ciudad. Intervención en el Primer Festival Mundial de la
Digna Rabia” en la revista Contrahistorias, núm. 12, México, 2009.

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Carlos Antonio Aguirre Rojas

entre campo y ciudad, llevando la industria y la Universidad, la ciencia y el


arte urbanos, a los campos, y trayendo la agricultura, el saber campesino y
popular, el amor, el conocimiento y el cuidado hacia la naturaleza, y el arte
campesino, a las ciudades. Experiencias muy interesantes y novedosas,
que sin embargo fueron interrumpidas con la muerte de Mao Tse Tung, y
con los cambios regresivos que ha vivido China en las últimas décadas.
Cuestionamiento radical del posible futuro de esta relación y con­
figuración campo/ciudad que, entre muchas otras tareas, tendría que ser
también abordada por esos nuevos movimientos antisistémicos de lucha
por la tierra en América Latina. Movimientos que hoy, como hace siglos y
milenios, siguen afirmándose en toda la geografía de nuestro cada vez más
pequeño Planeta Tierra.
Pero que hoy, en estas vísperas del fin de la prehistoria humana, y
del predominio del reino de la necesidad que ahora vivimos, están mucho
más cerca de la verdadera conquista, del tan anhelado y perseguido por to­
dos, reino humano de la verdadera libertad.

Ciudad de México, 7 de mayo de 2009.

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Da luta pela posse da terra à formação
territorial: construção do éthos da
agricultura familiar e os desafios
contemporâneos

Adilson Francelino Alves


Unioeste – Campus de Francisco Beltrão | adilsonfalves@gmail.com

Este texto objetiva descrever aspectos e componentes que atuaram


na constituição do éthos do Sudoeste do Paraná e abrange o período de
1940 a 2000. O acesso a estes elementos permitirá identificar a base social,
cultural e histórica construída no processo de colonização. A intenção é ve­
rificar como e quais destes elementos constitutivos da história são mobili­
zados pelos atores para construir as suas estratégias de atuação no cenário
presente. Não se pretende esgotar todas as variáveis da constituição dessa
história, mas, sim, acessar alguns ângulos que consideramos relevantes
para a análise em foco, bem como verificar os aspectos eleitos e utilizados
pelos atores para a sua interpretação dessa história.

As instituições do Sudoeste do Paraná: suas formações


históricas, culturais e políticas

Quem caminha pelo Bairro da Cango, em Francisco Beltrão, se de­


para com um complexo de símbolos regionais que se mesclam no espaço
com instituições nacionais. O primeiro é o monumento aos colonos, criado
em 2002 durante as comemorações dos 50 anos de Francisco Beltrão. Na
frente desse monumento, dividindo a mesma praça, o “esqueleto” amarelo
da patrola pertencente à Colônia Agrícola General Osório (CANGO), sim­
bolizando a chegada do progresso.
Defronte à praça do monumento, encontra-se o prédio do Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) construído em li­

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Da luta pela posse da terra à formação territorial: construção
do éthos da agricultura familiar e os desafios contemporâneos

nhas retas, no estilo modernista despojado e austero, sua monotonia só é


quebrada pela presença de agricultores sem terra com as suas bandeiras
vermelhas; a pouco mais de cem metros dali, aos pés do Morro do Calvá­
rio, a sede da Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural
(ASSESOAR), o Sistema Cresol de Cooperativas de Crédito Rural com
Interação Solidária  (CRESOL) e a União Nacional das Cooperativas da
Agricultura Familiar e Economia Solidária (UNICAFES- Paraná).
Vemos nessas entidades a cristalização de muitas das questões cru­
ciais da história da posse da terra no Sudoeste do Paraná, desde o seu princí­
pio original até os seus desafios presentes, desafios dentre os quais se podem
destacar a construção de uma identidade política e autonomia dos agriculto­
res frente ao mercado e à sociedade que se transformam rapidamente.
Esse quadrilátero representa, também em termos simbólicos e ins­
titucionais, o passado e o presente da região Sudoeste do Paraná. No pas­
sado, a promessa da posse da terra como solução para os problemas dos
agricultores do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Eram agricultores
cujo destino se vinculava ao processo de desenvolvimento que estava em
marcha no Brasil, em que a colonização do Sudoeste paranaense se articu­
lava ao projeto nacional de demarcação de fronteiras e a questões da segu­
rança nacional. No presente, o INCRA e o desafio de enfrentar a questão
da reforma agrária e da eterna luta pela terra e das entidades da agricultu­
ra familiar na formação de lideranças e na construção de experiências de
desenvolvimento.
A formação dessas instituições, bem como a constituição territorial
da região, está articulada fundamentalmente à questão da posse da terra e
nos desafios de mantê-la. A constituição dessas mesmas instituições con­
grega em si a síntese da história do Sudoeste, história que está, por sua
vez, articulada a um conjunto de fatores singulares da história recente do
Brasil. Muitas das instituições políticas, movimentos sociais, experiências
de gestão e projetos de desenvolvimento do Sudoeste do Paraná estão co­
nectados aos atores ligados à agricultura familiar, contudo ele não é homo­
gêneo. No Sudoeste do Paraná, um amplo rol de correntes, visões adminis­
trativas, jogos de poder e interesses específicos se formaram no entorno da
agricultura familiar; diversos outros atores atualmente disputam a hege­
monia nesse cenário. Atores esses que colocam diante de si a tarefa de pen­
sar os diversos desafios por que passa essa agricultura no Brasil, gerando,
nessa reflexão e atuação, um conjunto expressivo de reflexões que não po­
dem ser analisadas descoladas do cenário histórico que as constituiu.
Para procurar entender alguns aspectos da importância que as espe­
cificidades da formação histórica local tiveram para a formação do éthos
regional, construímos este texto em três partes distintas e complementares
entre si: a primeira focará alguns poucos aspectos gerais e estatísticos da
região; na segunda parte abordaremos elementos da formação socioterri­

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torial e da história do Sudoeste do Paraná; finalmente, numa tentativa de


estabelecer um diálogo com os itens anteriores, abordaremos alguns dados
da economia regional.

Dados estatísticos do Sudoeste do Paraná


O Sudoeste paranaense compreende a microrregião homogênea 289,
segundo a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE). Na classificação do IBGE, ela é composta por 37 municípios. Na
esfera política são adicionados mais cinco municípios, totalizando 42. O
critério é definido pela política regional e a sua articulação é determinada
pela Associação dos Municípios do Sudoeste do Paraná (AMSOP). Comu­
mente os movimentos populares também adotam a segunda composição.

O Sudoeste paranaense tem uma extensão de 17.438.214 km² de


área, o que representa 8,43% do Paraná e é composto por aproximadamen­
te 55.000 estabelecimentos agrícolas. A população do Sudoeste totaliza em
2010 pouco menos de 570.000 habitantes, o que corresponde a aproxima­
damente 6% da população do Paraná. A mesorregião Sudoeste possui uma

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Da luta pela posse da terra à formação territorial: construção
do éthos da agricultura familiar e os desafios contemporâneos

das menores taxa de urbanização do Paraná, considerando que, enquanto


no Estado esta taxa era de 81,4% em 2000, no Sudoeste ela era de 59,9%.
As taxas geométricas de crescimento entre 1991/2000 foram de –0,13% da
população total, 2,48% na população urbana e –3,08% na população ru­
ral. Dos municípios que compõem a região, 22 possuíam menos de 10 mil
habitantes, 29% deles tinham entre 10 e 20 mil habitantes; 12%, de 20 a
36 mil habitantes; e apenas 4% com mais 50 mil habitantes, dos quais ne­
nhum possuía mais de 70 mil. Segundos dados da EMATER-PR (2005),
existem 47.842 estabelecimentos da agricultura familiar, estabelecimentos
dos quais 19.356 (40,45%) têm baixa renda ou não possuem renda. Exis­
tem 44 assentamentos rurais com 2.771 famílias assentadas e uma popula­
ção indígena de 2.267 pessoas.

Os atores e o cenário inicial da colonização do Sudoeste


do Paraná: os caboclos

A descrição histórica de uma região é um processo que se constitui


em generalizações episódicas e factuais. O processo de tessitura das tra­
mas históricas dá-se no cotidiano, nos intrincados processos sociais, onde
os atores se posicionam, processam e negociam os seus interesses.
A capacidade dos atores depende do conjunto das suas relações so­
ciais e das redes a que estão integrados e articulados. A amplitude das re­
des, por sua vez, está articulada às interpretações que os atores elaboram
das suas experiências em contato com outros atores e redes. No início do
século XX, os caboclos eram soberanos, dividindo com os índios guaranis
um vasto território, contudo, apesar da presença de indígenas e caboclos,
e da importância que esses primeiros habitantes desempenharão para os
colonos que chegavam à região na década 1940 e seguintes, um discurso
construído após a década de 1970 considerará a região como “terra de nin­
guém”. Essa ideia será construída como um dos elementos do discurso do
pioneirismo como uma interpretação da história oficial.
Com a chegada dos colonos, os caboclos e indígenas passam a en­
trar mais freqüentemente em contato com sistemas e redes mais amplas e
complexas.
Até o final da década de 1940 havia uma baixíssima densidade popu­
lacional na região. Esse território era considerado um “sertão bravo”. Tal
condição é fundamental para a reprodução do modo de vida caboclo. Em
1900 havia apenas 3.000 habitantes (Wachowicz, 1987). Ocorre, contudo,
que, no período de apenas 20 anos (1900-1920), a população do Sudoes­
te dobrou, passando para aproximadamente 6.000 habitantes. Uma das
suspeitas é a de que esta migração deu-se em função de posseiros refugia­
dos da região do Contestado, expulsos das terras da Brasil Railway Co; e
da imigração europeia que começa a chegar no Rio Grande do Sul a par­

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tir de 1874, dentro da política colonial de branqueamento da população,


como uma das primeiras políticas efetivas após a Lei de Terras de 1850 e
que expulsa os caboclos para regiões propicias à reprodução do seu modo
de vida. Os caboclos não possuíam a propriedade da terra que ocupavam
devido, em parte, ao modelo de agricultura que praticavam, onde, muito
da tecnologia utilizada por eles foi aprendida das populações indígenas.
Como posseiros, faziam as suas queimadas e marchavam sempre adian­
te, logo que a produtividade da antiga terra desse sinal de esgotamento
e, como extratores de erva-mate, eles abrem caminhos pelo território que
ocupam e estabelecem pequenas trocas por produtos que não fabricam.
A economia do caboclo era basicamente de subsistência dependia
da caça, pesca, coleta de erva-mate, mel e a existência de uma floresta rica
em matéria vegetal, que era própria para uma agricultura baseada no siste­
ma de pousio, o pouco excedente era trocado por tecidos, sal e outros pro­
dutos que ele não fabricava. Segundo Wachowicz (1987), para a escolha do
local da posse pelo caboclo um dos critérios fundamentais era que a terra
devia ser abundante em água. Esta necessidade, juntamente com a práti­
ca constante de caçadas, fez com que os caboclos mapeassem a região à
procura dos recursos necessários à reprodução do seu modo de vida. Esse
conhecimento posteriormente será fundamental para a fixação de colonos
não atendidos pela GANGO. O contato dos colonos com essa população
colocaria em cheque as condições para sua reprodução, pois se, para a eco­
nomia cabocla, a terra servia apenas enquanto veículo para a viabilização
da sua sobrevivência, então, desse modo, ao caboclo não convinha o parce­
lamento da floresta em lotes individuais fixos. Para o colono que chegava,
no entanto, este era o fator fundamental para sua ocupação e fixação.
Assim, pelo modo como os caboclos concebiam e lidavam com pos­
se da terra, os novos colonizadores não encontraram resistência por parte
dos moradores já residentes para se fixarem. O avanço constante flores­
ta adentro e o comércio, mesmo que incipiente, de mate, couro e porcos,
desenvolvidos pelos caboclos, foram fundamentais no processo inicial da
colonização regional. Embora insipiente, os colonos absorveram boa par­
te da economia cabocla e, a partir desta base inicial, intensificaram a ve­
locidade das trocas e ampliaram as rotas e caminhos desenvolvidos ante­
riormente. Além disso, a base fundiária mantida pelo caboclo foi adotada
pelo colono durante o processo inicial de ocupação e muito dessa estrutura
agrária permanece ainda hoje no Sudoeste.
Assim, a base econômica, a receptividade, o modo como eram posses
eram feitas, a rede de caminhos e de localidades que os caboclos criaram,
dentre outros fatores, são contribuições para a constituição do Sudoes­te
do Paraná que os colonos receberão dessa população.
A nova base de organização familiar vai aos poucos eliminando o
trabalho coletivo, a propriedade da terra e a vinculação com o mercado

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Da luta pela posse da terra à formação territorial: construção
do éthos da agricultura familiar e os desafios contemporâneos

consumidor vão substituindo o antigo sistema. Complementarmente à fi­


xação dos colonos em lotes produtivos, uma nova estrutura social toma
corpo na região e as funções desenhadas para eles, pelo governo do Estado
Novo, vão sendo consolidadas.

Preencher a fronteira com gente e construir uma classe média


próspera e dócil: a tarefa da CANGO

Como vimos, apesar da presença dos caboclos, o Sudoeste do Para­


ná, no início do século XX até a década de 1940 era considerado um “ter­
ritório sem dono”. Situado em um espaço de fronteira disputado no nível
internacional pelos interesses da Argentina e do Brasil. No cenário domés­
tico, diversas pendências se sobrepunham, como: a atuação da companhia
norte-americana Brasil Railway Company, as disputas territoriais dos Es­
tados do Paraná e de Santa Catarina, havia também conflitos jurídicos e
políticos que tem início na transição da monarquia para a república.
Com a subida do Estado Novo ao poder, o Brasil aprofunda a sua
orientação por um conjunto de ideologias positivistas e expansionistas,
que dão novos rumos o país como um todo é afetado e em particular algu­
mas regiões de fronteira, que passam a ser analisadas sob o ponto de vista
da segurança nacional e do desenvolvimento econômico.
A ocupação das fronteiras demarcadas no final do Império passa a ter
uma importância cada vez mais crescente. A forma mais segura e barata de
ocupação era a expansão das fronteiras agrícolas para esses espaços, mesmo
que isso significasse o deslocamento de enormes contingentes populacionais.
Para cumprir essa função, Getúlio Vargas, em 1943, cria diversos territórios:
Território Federal do Iguaçu, Guaporé, Ponta Porã, Acre, Roraima, Amapá,
Fernando de Noronha, a Colônia Agrícola Nacional de Goiás (CANG) e, no
mesmo ano, cria a Companhia Agrícola General Osório­– CANGO.
No seu planejamento original, a CANGO promoveria a colonização
por meio de pequenas propriedades, sem ônus para os agricultores, com
serviço de infraestrutura (abertura de estradas, construção de pontes, es­
colas, etc.) e assistência à saúde e educação. Isto atraiu, em poucos anos,
milhares de famílias para a região. O objetivo desse modelo era criar uma
numerosa classe média rural, politicamente dócil e capaz de produzir ex­
cedentes alimentares para um mercado consumidor cada vez maior nas ci­
dades, e transformaria uma região inóspita em uma próspera comunidade.
Na origem da colonização do Sudoeste paranaense está também a questão
da segurança nacional.
A criação da CANGO estava circunscrita à articulação de uma série
de fatores correlatos, dentre os quais podemos destacar: 1) a pressão social
estabelecida no Rio Grande do Sul pelo esgotamento do modelo adotado
em 1850 pela lei de terras; 2) a necessidade apontada pelo movimento te­

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nentista de ocupar e proteger as áreas de fronteira que o Brasil tinha com


Argentina e o Paraguai; 3) a necessidade de produção de alimentos para a
crescente demanda de um setor urbano cada vez maior; 4) A produção de
matérias- primas para abastecer as indústrias que se expandem no período
pós-guerra; 5) o atendimento das reivindicações de reservistas gaúchos por
terra para plantar e, 6) a necessidade de ocupar as glebas Missões e Cho­
pim para pôr fim aos infindáveis litígios sobre a sua posse.
Segundo Colnaghi (apud Feres, 1990 p. 498), dentro desse quadro,
o território deveria ser ocupado por agricultores cujos pré-requisitos espe­
rados e necessários eram: serem socialmente calmos, politicamente con­
servadores e articulados com o mercado. Esse tipo de ocupação visava im­
plementar um rápido e pacífico processo de desenvolvimento econômico e
social na região, com o objetivo de criar uma barreira contra as infiltrações
de contrabandistas argentinos e paraguaios na região.
A propaganda positiva, as inúmeras vantagens que se ofereciam,
aliadas ao excedente populacional no sul, fez com que, a partir da década
de 1940, um grande número de agricultores começasse a chegar à região.
A propaganda boca-a-boca formava uma corrente, em que os mais ousados
se aventuravam em conhecer as terras e, verificando a veracidade da pro­
paganda, voltavam às suas terras de origem e buscavam a própria família
e levavam a notícia para parentes e conhecidos. Apesar das dificuldades
enfrentadas, a mata fechada e as precárias condições de infra-estrutura re­
gional, a GANGO atraiu um grande contingente de colonos. O povoado de
Marrecas que posteriormente deu origem à Francisco Beltrão já em 1948
contava com uma população cadastrada de 2.529 pessoas, dois anos depois
este número era de 7.147, a região totalizava 76.373 habitantes. Em 1956, o
mesmo núcleo, agora denominado Francisco Beltrão, contava com 15.284
e a região 230.379 habitantes.
Essa população era constituída, na sua maioria, por jovens agriculto­
res pobres que não encontravam terras nas suas localidades de origem para
se reproduzirem socialmente. Havia uma confiança na atuação assistencia­
lista do Estado fator que, somado ao prestígio das novas terras, estimulava o
fluxo de migrantes, que, por sua vez, era alimentado por redes de parentes­
co e por um forte sentimento de solidariedade e coesão familiar. Parte desse
último aspecto pode ser visto na tipologia das comunidades espalhadas pela
região, nas quais se formam pequenos aglomerados de casas onde morado­
res, quase todos de um mesmo sobrenome, compõem uma minúscula vila.
Se procedermos a uma estratificação da corrente migratória que po­
voou a região, observaremos que ela era composta, basicamente, por famí­
lias de origem européia provinda do norte do Rio Grande do Sul e do oeste
de Santa Catarina, principalmente Itália (40%), Alemanha (13%), de outros
países europeus (24%). Apenas 18% se declararam de origem luso-brasilei­
ra (caboclos, na maioria). Entre as características do colono que ocupou

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Da luta pela posse da terra à formação territorial: construção
do éthos da agricultura familiar e os desafios contemporâneos

essa região pode-se destacar a prole numerosa, o seu intenso catolicismo


e o seu espírito de trabalho voltado para atividades agrícolas lucrativas.
Do ponto de vista socioeconômico, a maioria dos colonos caracterizava-se
pela escassez de capital e pela pequena propriedade agrícola, em que a uni­
dade produtiva se confundia com a unidade familiar. A disponibilidade de
mão-de-obra existente, na própria família, condicionava, em grande parte,
a intensidade da atuação econômica.

Esgotamento da capacidade da CANGO de organizar o processo


de colonização

A afluência de imigrantes era bem maior que a capacidade de assis­


tência que a CANGO podia oferecer, além dos colonos já residentes, havia
um cadastro de mais de oito mil famílias que solicitavam terras à compa­
nhia. Para dar conta da demanda por terras, a CANGO distribuía gratuita­
mente lotes que variavam entre 25 a 50 ha por propriedade dependendo da
topografia do terreno. Nesse cenário de demanda crescente e de limitada
capacidade de atendimento, boa parte do povoamento do Sudoeste do Pa­
raná será feito de modo espontâneo, sem a assistência e o planejamento
da CANGO, fora do controle do Estado, mas com a participação ativa dos
caboclos. A atuação da CANGO, articulada ao modo como os caboclos re­
cepcionaram os colonos, imprimirá a identidade da atual estrutura agrária
da região. Das propriedades rurais existentes 90% possuem menos de 100
hectares, sendo 65% delas abaixo de dez hectares.
A estrutura agrária estabelecida pelo Estado, com a cessão de títulos
de terras para pequenas propriedades, foi determinante para a construção
da identidade regional. Esta diretiva criou uma economia baseada na pro­
priedade da terra em um modelo de agricultura constituído por unidades
de produção familiares que, diferentemente dos caboclos, tinham o mer­
cado consumidor como o seu objetivo prioritário. Não havia, até esse mo­
mento, a demonstração de protagonismo por parte dos colonos, pois a sua
atuação era a de coadjuvantes de um processo que não dominavam e do
qual, na verdade, sabiam muito pouco.
O processo colonizador teve, contudo, também capítulos em que a
atuação da população desempenhou um papel fundamental na formação
do éthos regional. O fato mais significativo nesse sentido foi a luta dos co­
lonos contra os jagunços das companhias colonizadoras, principalmente
da Companhia Clevelândia Industrial Territorial Ltda. (CITLA), que grilou
uma vasta área e tentou obrigar os colonos a comprarem as terras em que
moravam e plantavam. Este evento, que ficou conhecido como a “Revolta
de 1957”, aos poucos vai se tornando o elemento fundante de uma identida­
de regional, valorizada e reificada pelo poder público local como símbolo
do pioneirismo e de bravura. A revolta também é reconstruída por parte dos

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movimentos populares ligados à luta pela terra. Sua interpretação é, contu­


do, elaborada com outra roupagem, ela é mostrada como um dos elementos
centrais da capacidade popular de resistência aos avanços do capital.

Quadro 1 – Tamanho das propriedades no Sudoeste


Tamanhos das propriedades da Região Sudoeste (ha) Número Área (ha)
Menos de 10 9.141 60.776
Menos de 1 377 176
1 a menos de 2 571 822
2 a menos de 5 3.370 12.631
5 a menos de 10 4.823 37.146
10 a menos de 100 17.487 526.162
10 a menos de 20 6.867 100.490
20 a menos de 50 5.170 256.504
50 a menos de 100 2.450 169.159
100 a menos de 1.000 1.426 341.243
100 a menos de 200 837 115.425
200 a menos de 500 470 143.413
500 a menos de 1.000 118 82.405
1.000 a menos de 10.000 103 196.079
1.000 a menos de 2.000 76 104.698
2.000 a menos de 5.000 24 66.216
5.000 a menos de 10.000 3 23.166
TOTAL 28.158 1.114.249
Fonte: Sudoeste do Paraná – Condição do produtor proprietário, Censo de 1995.

No braço com armas, a formação do éthos regional:


um patrimônio mobilizado pelos atores

Até 1950 os processos que se desenvolviam no Sudoeste do Paraná


eram marcados pela regularidade e pela tranqüilidade. O caboclo não ofe­
receu obstáculo ao colono e a CANGO trabalhava no sentido de atender às
necessidades dos recém-chegados. Ocorre, contudo, segundo Wachowicz
(op. cit.), que tudo era ilegal, uma vez que a terra (Gleba Missões) esta­
va sub judice. Havia uma contenda jurídica entre o Estado do Paraná e a
União. Esta pendência jurídica impedia legalmente o governo federal de
dar escritura definitiva aos colonos; em seu lugar, os agricultores recebiam
da GANGO apenas títulos provisórios e, numa fase posterior, deixa, inclu­
sive, de fornecer até mesmo os títulos em caráter de provisoriedade.

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Da luta pela posse da terra à formação territorial: construção
do éthos da agricultura familiar e os desafios contemporâneos

As sobreposições de interesses e os problemas jurídicos na região se


constituirão no embrião para um movimento que ficou conhecido como
a Revolta de 1957. A revolta em si e os desdobramentos que se seguiram
irão fornecer os elementos e os materiais que moldarão a identidade regio­
nal. Nesse acontecimento se cristalizarão, além das lideranças e das insti­
tuições, um forte imaginário popular. Esse imaginário será utilizado para
construir uma identidade de protagonismo até então inexistente. A abran­
gência regional e a grande participação dos colonos levarão histórias de
heroísmo e protagonismo para cada município e a cada lar da região. Estes
elementos se transformarão no núcleo a ser utilizado posteriormente por
diversos atores locais para a tessitura do imaginário regional.

Os embriões da Revolta de 1957


A Revolta de 1957 foi o desfecho de uma sucessão de disputas terri­
toriais sobrepostas por constantes confusões jurídicas e políticas. A porção
de terras hoje conhecida como Sudoeste do Paraná era objeto de diversas
doações que se iniciaram no Império com uma outorga feita em 1889 por
D. Pedro II ao engenheiro João Teixeira Soares, para a companhia que
viesse a construir uma estrada de ferro ligando Itararé (SP) a Santa Maria
da Boca do Monte (RS) até o rio Iguaçu. A concessão dava direito a apro­
priação de 30 quilômetros de terras devolutas para cada lado do eixo das
linhas (Lazier, 1998, p. 25). Em apenas quatro anos a concessão sofreu
uma alteração contratual e duas transferências, sendo a última para o gru­
po americano denominado Sindicato Farquhar que, em 1893, organiza a
Companhia Estrada de Ferro São Paulo Rio Grande (EFSPRG).

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Na região Sudoeste do Paraná, a EFSPRG teve as suas terras titu­


ladas em duas etapas: em 1913, com a gleba Chopim (715.080.142 m2) e,
depois, em 1920, com a incorporação da gleba Missões (4.257.100.000 m2).
A Brazil Railway Co. detinha, Paraná em torno de 2,1 milhões de hectares
ou o equivalente a 10,43 por cento de todo o Estado.
A instabilidade política do período de transição do Império para a
República faz com que a conjuntura política mude muito rapidamente e
o Estado brasileiro rescinda os contratos com a EFSPRG. Um dos primei­
ros atos nesse sentido será realizado pelo interventor do Estado Novo no
Paraná, ato que anulará algumas das concessões territoriais feitas à Brazil
Railway Co. A empresa começará então uma disputa jurídica com o Estado­
do Paraná.
Em 1940 Getúlio Vargas dá o golpe definitivo, nacionalizando o pa­
trimônio da Brazil Railway Co., companhia que, naquele momento, era
um trust detentor de diversas empresas em todo o território nacional. O
governo federal, para administrar o capital nacionalizado, criou a Superin­
tendência das Empresas Incorporadas ao Patrimônio da União (SEIPU),
que se responsabilizou também pela administração das glebas Chopim e
Missões (Rego, 1979, p. 94, apud Abramovay, 1981 p. 42). Mais tarde, os
interesses dos atores nacionais e a administração da SEIPU serão os res­
ponsáveis pelo agravamento da crise regional.
Outra sobreposição de posse de terras do Sudoeste do Paraná deveu-
se às disputas pelo controle territorial, da região, entre os Estados de Santa
Catarina e do Paraná. No início do século XX, o governo de Santa Catarina
concedeu a José Rupp, o direito de explorar madeira e erva-mate em terras
no território reivindicado pelos dois Estados. Rupp passa então a disputar
as terras com a EFSPRG, tituladas em 1913 e 1920. Rupp perdeu em di­
versas instâncias até que, em 1938, o Supremo Tribunal Federal confirmou
que as reivindicações de Rupp eram justas. Tendo em vista os prejuízos
que tivera, Rupp passa a exigir na Justiça uma indenização da EFSPRG.
Entretanto, como vimos, a EFSPRG foi nacionalizada em 1940 juntamente
com todos os ativos e passivos do patrimônio da Brazil Railway Co. Desse
modo, Rupp se vê credor da União, que se recusa a pagar a indenização
(Abramovay, 1981, Lazier, 1998, Martins, 1985, Feres, 1990).
Rupp decide vender os seus direitos. Em 26/7/1950 transfere o seu
crédito para a Clevelândia Industrial e Territorial Ltda. (CITLA), de quem
um dos sócios era o governador do Paraná Moisés Lupion, do Partido So­
cial Democrático (PSD), o mesmo partido que elegeria Juscelino Kubits­
chek presidente do Brasil em 1955. Diante do novo credor, a dívida passa a
ter um tratamento diferente. O que era recusado a José Rupp passa a tra­
mitar e a ser solucionado nos meandros da burocracia.
Este fato inaugura outro capítulo na posse de terras do Sudoeste
paranaense. Resolvidas as questões entre Brasil e Argentina; e entre Para­

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Da luta pela posse da terra à formação territorial: construção
do éthos da agricultura familiar e os desafios contemporâneos

ná e Santa Catarina, havia um novo problema a ser enfrentado, ou seja, o


das colonizadoras. Para o pagamento do crédito de José Rupp a empresa
de Moisés Lupion recebeu cerca de 500 mil hectares em terras férteis com
enormes riquezas naturais, dentre as quais 3 milhões de pés de pinheiros
adultos além de rios com potencial hidroelétrico.
O processo todo foi denunciado pela oposição, principalmente o
PTB, o que teve grande repercussão na imprensa nacional. A repercussão
negativa foi tanta que, segundo Feres (op. cit., p. 505), o Tribunal de Contas
da União negou o registro da escritura das novas terras da CITLA, alegan­
do inconstitucionalidade da operação por quatro motivos: 1) era proibida
a venda ou concessão de terras na faixa de fronteira (as terras administra­
das pela CANGO), sem permissão prévia do Conselho de Segurança Nacio­
nal; 2) não era permitida a venda ou concessão de áreas de terras públicas
superiores a 10.000 ha sem a permissão do Senado Federal; 3) a SEIPU
não podia vender terras sem concorrência pública; 4) as terras alienadas
estavam sub judice, não podendo ser objeto de negócio.
Além das irregularidades apontadas pelo Tribunal de Contas da
União, pesavam também dois outros problemas que foram levantados pela
oposição. O primeiro se refere ao fato de que as indenizações devidas a
Rupp haviam sofrido uma enorme majoração muito acima do montante
fixado pela Justiça; o segundo é atinente ao processo de escrituração das
terras, em que a suspeita pesava sobre a validade dessa escrituração, pois
a minuta da escritura da SEIPU foi modificada quando do seu registro em
cartório. O negócio todo foi feito em um cartório de propriedade do sogro
do superintendente da SEIPU, Antônio Vieira de Melo, responsável direto
pela transação das glebas Missões e Chopim.
Diante disso, a pedido do Instituto Nacional de Imigração e Coloni­
zação (INIC), de quem a CANGO era subsidiária, e da preocupação com
a região de fronteira, que era jurisdição do Conselho de Segurança Nacio­
nal (CSN), este conselho emitiu um ofício circular a todos os cartórios da
região, para que a escritura da CITLA não fosse registrada (Wachowicz,
1987, Feres, 1990 e Lazier 1998). Para contornar esta proibição, a CITLA
conseguiu, através da sua influência na Assembléia Legislativa do Paraná,
o desmembramento de um cartório do Sudoeste do Paraná, instalando-o
em Santo Antonio do Sudoeste e, antes que o ofício chegasse até o referido
cartório, num primeiro ato, a escritura foi registrada. Imediatamente a CI­
TLA passa a agir na região, instalando escritórios da empresa em Francis­
co Beltrão e Santo Antônio do Sudoeste. Com a atuação da CITLA, o equi­
líbrio político e social da região será profundamente alterado.
Segundo Abramovay (1981), mais importante que a lesão aos cofres
públicos era o fato de que, com a entrada da CITLA, os agricultores deve­
riam pagar por aquilo que já haviam recebido de graça da CANGO. Indi­
ferentes a esse processo e estimulados pelo Partido Trabalhista Brasileiro

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Adilson Francelino Alves

(PTB), que tinha interesses no aumento populacional da região, novos co­


lonos continuavam a chegar. A CITLA, sabedora de que a pretendida pos­
se das terras, das glebas Missões e Chopim, seria duramente questionada,
passa imediatamente a exigir pagamentos dos colonos.
O resultado das eleições municipais de 1954 coloca o PSD nas maio­
res prefeituras da região. Com essa presença quase hegemônica no poder
local e, com o governo do Estado do Paraná nas mãos de Lupion, a CITLA
tinha apoio quase irrestrito do poder estadual. No terreno jurídico, entre­
tanto, o processo era inverso, pois havia interposições da maioria dos ór­
gãos federais que mantinham interesses na região, todos contrários à atu­
ação da CITLA.

A situação dos colonos frente à nova situação das terras


A insegurança dos colonos frente às companhias colonizadoras era
enorme. A sua situação se assemelhava à dos caboclos. Sem o título das
terras, eles sabiam que, na prática, as terras não lhes pertenciam. Os títu­
los provisórios dados pela CANGO eram ilegais. A situação dos colonos era
bastante delicada, pois envolvia as complicadas disputas jurídicas.
O processo se arrasta por diversos anos até 10 de outubro de 1957
quando os colonos ocuparam várias cidades e localidades do Sudoeste, entre
elas Francisco Beltrão, Pato Branco, Santo Antônio do Sudoeste, Capanema
e Barracão. Em Francisco Beltrão, sede da CITLA, mais de 4.000 agriculto­
res se concentram e, de armas em mãos, liderados pelo médico Walter Pe­
cóits, comerciantes, membros da CANGO e sob o acompanhamento e pro­
teção do exército, ocuparam a cidade, expulsam os jagunços e os grileiros,
destroem sede da companhia e queimam os documentos das companhias.
Segundo relatos os colonos orgulham-se do caráter pacífico da re­
volta, pois em nenhum momento da ocupação foi necessário o uso das
armas que carregavam, o que sinaliza, segundo Abramovay, que o colono
lutava pela lei e pela propriedade. Não se constituía em uma revolução po­
lítica. Os revoltosos não queriam ocupar definitivamente as cidades, o que
queriam era ver as garantias da posse da terra, tanto que, após um acordo
com o governo estadual, houve um retorno imediato às propriedades e o
abandono das cidades ocupadas. A revolta dá início a um novo capítulo na
história da posse da terra da região Sudoeste do Paraná, com a criação do
Grupo Executivo para as Terras do Sudoeste do Paraná (GETSOP).

A regularização das terras pelo GETSOP e o esgotamento


do modelo colonizador

O problema da legalização da posse a terra começará a ser solucio­


nado apenas em 1961, quando começa a funcionar o GETSOP, órgão cria­

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Da luta pela posse da terra à formação territorial: construção
do éthos da agricultura familiar e os desafios contemporâneos

do pelo presidente João Goulart especialmente para demarcar e emitir os


títulos de posse no Sudoeste do Paraná.
O GETSOP trabalhou até 25 de agosto de 1972, e expediu 35.856
títulos de posse. Destes, 30.221 foram para a área rural. Os levantamen­
tos efetuados pelo GETSOP foram bem mais amplos, pois foram medidos
56.917 lotes, dos quais 30.256 rurais e, destes, 7.133 eram abaixo de cinco
hectares, o que representava 22,11% dos lotes rurais.
A atuação do GETSOP, contudo, recebeu duras críticas do INCRA,
pois a sua jurisdição se sobrepunha às funções daquele órgão. As críticas
tinham dois pontos principais e complementares. De um lado, criticava o
modo como se operacionalizou o parcelamento, atividade em que não fo­
ram adotados critérios técnicos de viabilidade econômica para a divisão
dos lotes. De outro, o processo foi considerado populista, pois o colono di­
zia de quantos hectares era a sua propriedade e o GETSOP demarcava as
terras. Desse modo, grande parte da estrutura, herdada dos caboclos pelos
posseiros, permaneceu inalterada após a solução do conflito de 1957.
O GETSOP deixa uma herança híbrida na região. Ao mesmo tempo
em que resolve a questão da posse da terra todo o processo é executado de
forma populista, não obedecendo a critérios técnicos necessários à viabili­
dade das propriedades rurais. Obviamente, é preciso dizer que a ocupação,
no momento em que o GETSOP age na região, já estava toda truncada pela
atuação de “agentes familiares” que subdividiam seus lotes distribuindo-os
a parentes e conhecidos, e por interesses políticos e econômicos construí­
dos nos anos anteriores e solidificados na revolta de 1957.
O fato é que apenas pouco mais de dez anos após o término dos tra­
balhos do GETSOP, em 1984, a ASSESOAR apontava que 40% dos agricul­
tores do Sudoeste do Paraná eram sem terra ou a terra de que dispunham
era insuficiente para a sua reprodução.
No próximo tópico procuraremos evidenciar algumas transformações
econômicas ocorridas no Sudoeste do Paraná após a titulação das terras em
1972, período marcado por mudanças radicais na sociedade brasileira.

Transformações econômicas da década de 1980 e 1990: o cenário


dos novos desafios para a agricultura familiar

Além da estrutura agrária deixada pelos caboclos e pelo GETSOP,


muito da agenda e das inquietações da agricultura familiar do Sudoeste do
Paraná têm origem nas alterações que vêm ocorrendo na economia regio­
nal a partir do processo da Revolução Verde.
As transformações sociais, econômicas e políticas decorrentes da
ampliação do contato com os agentes e políticas da Revolução Verde irão
impactar de modos bastante diferentes no Sudoeste. Em certas regiões esse
contato será tardio, mas, no geral, a partir da década de 1970 ocorrem al­

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Adilson Francelino Alves

terações expressivas, como a utilização de tratores, cuja utilização tem um


aumento de mais de 16 vezes em apenas 10 anos, passando de 380 em 1970
para 6.325 em 1980 (Alves et alli, 2004, p. 165). No sentido de focarmos a
nossa análise, passaremos agora a aspectos da economia do Sudoeste para­
naense após a atuação do GETSOP. A interconexão decorrente das transfor­
mações econômicas e tecnológicas terá impactos na forma como os atores
locais reagirão e se organizarão para enfrentar os problemas decorrentes
destas alterações. Será então na interação destes aspectos sociais e econô­
micos que se formarão as entidades da agricultura familiar da região, com
o seu modo específico de atuação e de leitura da realidade local.

Economia
Como vimos anteriormente, pelas características históricas e pelos
problemas enfrentados nos anos iniciais da formação do Sudoeste do Pa­
raná, a economia praticada teve uma forte orientação para o consumo lo­
cal e regional. Apenas gradualmente ela se volta nacional e externo. Do
ponto de vista estritamente econômico, a história da região pode ser divi­
dida em quatro fases.
Na primeira fase há um processo de incorporação da economia ca­
bocla, onde a base é predominantemente a extração de madeira, o extrati­
vismo da erva-mate e a criação de porcos, contudo, diferentemente dos ca­
boclos, há uma maior amplitude e integração com o mercado. Isso ocorre
porque os colonos possuem redes mais amplas e as conexões de troca são
mais intensas, em que o tempo é acelerado pela abertura de novas estra­
das, e em que, além disso, os atores políticos e econômicos estão conecta­
dos a um projeto nacional de desenvolvimento.
Numa fase subseqüente há um processo diversificação, onde são in­
troduzidas as culturas do feijão e do milho, atividades aliadas à criação de
animais para o trabalho e para o transporte. Nesse momento novos atores
sociais, políticos e econômicos tomam forma, ocorrendo a fase em que os
bodegueiros são os principais agentes econômicos e é através deles que os
produtos chegam a um mercado mais amplo. Assim, novas conexões são
estabelecidas e os atores que iniciaram as suas atividades na fase anterior
tomam formas mais definidas, sobretudo após a resolução do conflito pela
posse da terra.
A terceira fase se inicia com processo da revolução verde, que come­
ça a penetrar na região a partir dos anos de 1970. Nessa fase, o Sudoeste
começa a produzir também para o mercado externo. Com o crescimen­
to da cultura da soja há o início de nova diversificação econômica e ou­
tros atores são introduzidos no cenário, como: agentes financeiros, técni­
cos agrícolas, cooperativas. No âmbito interno, os agricultores começam a
criar atores e mecanismos de representação.

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Da luta pela posse da terra à formação territorial: construção
do éthos da agricultura familiar e os desafios contemporâneos

Por fim, nos anos de 1980 haverá uma intensificação do processo


de modernização da agricultura, modernização que leva a um processo de
êxodo rural que produz a emergência de uma profunda crise social que se
estabelece na região. Este processo fez diminuir a participação relativa da
região na área colhida do Estado, que passou de 10,5% para 8,7% no perío­
do. (IPARDES, 2002). Em meados dessa década essa crise conduz ao sur­
gimento de movimentos de agricultores sem terra, trabalhadores os quais
terão na ASSESOAR (juntamente o Sindicato de Trabalhadores Rurais e a
Igreja Católica) um apoio importante, pois essa entidade assumirá papel
na organização do movimento e na formação de lideranças políticas dos
agricultores.
É necessário fazer uma conexão com os dados apresentados pela
Emater em 2005. Segundo esse órgão, em 2000, 40% dos estabelecimentos
da agricultura familiar do Sudoeste do Paraná não geravam renda sufi­
ciente para se viabilizaram na agricultura. Por outro lado, esses dados po­
dem estar apontando para uma especialização produtiva na região, voltada
principalmente para a produção de proteína animal. O IPARDES aponta
que a produção animal é responsável por 58% do Valor Bruto da Produ­
ção (VBP), enquanto a produção agrícola extensiva corresponde a 35%.
Em 1999, os cinco principais municípios em termos de VBP foram Fran­
cisco Beltrão (9,3%), Dois Vizinhos (8,5%), Pato Branco (4,5%), Chopin­
zinho (4,1%) e Capanema (3,6%). Estes cinco municípios representavam
30,0% da produção da mesorregião. Estes processos de redução e altera­
ção da estrutura produtiva têm impactos na população do sudoeste para­
naense. Nos dados do IBGE, a dinâmica populacional da mesorregião Su­
doeste paranaense apresentou uma pequena redução na população total
(-0,13%) no período 1991-2000. Segundo o IPARDES, esse desempenho
foi influenciado pela redução expressiva e contínua de população rural,
com taxas negativas anuais de -2,9% no período de 1991-1996, sendo que,
na segunda metade da década de 1990 (1996-2000) houve um aumento de
meio ponto percentual na saída da população rural, passando para -3,4%.
Parte dessa população rural está migrando para as cidades com maior es­
trutura industrial à procura de emprego nas indústrias, notadamente nas
agroindústrias.

Agroindústrias no Sudoeste paranaense


No que se refere às agroindústrias, é preciso estabelecer duas verten­
tes de análise, uma que se vincula às grandes empresas do setor e outra que
aponta para a diversificação da agricultura familiar regional. A primeira
vertente será analisada com bases mais seguras, pois a sua evolução, além
de monitorada constantemente pelos institutos de pesquisas, também o
é pelos mecanismos de controle governamentais. Por outro lado, na últi­

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Adilson Francelino Alves

ma década, diversas experiências de agroindústrias familiares (coletivas


ou não) têm surgido no Sudoeste do Paraná. O elevado grau de informali­
dade, pulverização territorial, dificuldade gerencial e morte precoce dessas
experiências dificultam a análise medição dos resultados. No conjunto dos
movimentos populares ligados à agricultura familiar do Sudoeste do Para­
ná, o tema da agregação de valor e de geração de renda tem tomado corpo
nos últimos anos.
Segundo o IPARDES, em 1990, a indústria de transformação do Su­
doeste paranaense empregava 8.883 trabalhadores em 840 estabelecimen­
tos, o que correspondia a 3,3% e 5,5% do total dessa indústria no Estado.
Em 1999, essa indústria passou a empregar 14.267 trabalhadores em 775
estabelecimentos. É necessário destacar que tanto Francisco Beltrão como
Dois Vizinhos têm uma unidade de abates da Sadia. O setor de transforma­
ção de alimentos, segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais
(RAIS), empregava, em 2001, 4.257 pessoas, das quais 3.052 (58%) nos mu­
nicípios de Dois Vizinhos e Francisco Beltrão.
O setor industrial da região está bastante integrado ao mercado pa­
ranaense. Assim, do total de insumos necessários por parte da agroindús­
tria, 79% das compras em 1999 foram efetuadas no mercado paranaense,
20% com fornecedores de outros Estados e apenas 1% com o exterior. Ou­
tro aspecto dessa integração local é o fato de que o principal destino da
produção da agroindústria é o próprio Estado, que absorve 71% do que é
produzido; em seguida vem o mercado nacional, com 21%; e do mercado
externo, com 8%. A evolução dos indicadores de crescimento industrial, de
redução de área plantada e de empobrecimento dos estabelecimentos da
agricultura familiar (EMATER,2005) aponta para diversos elementos que
atuam simultaneamente nos desafios a serem enfrentados pelos agricul­
tores familiares na gestão de suas propriedades, dentre os quais pode-se
destacar: a) a diversificação da base produtiva da região; b) a importância
crescente dos segmentos vinculados à proteína animal; c) transformações
na base produtiva que criam impactos na forma como se processa a ge­
ração de renda; d) a capacidade de investimento e adequação tecnológica
necessárias às permanentes demandas do mercado. Para os atores vincu­
lados à questões da agricultura familiar, as transformações em curso se
apresentam como um enorme desafio. Os novos arranjos produtivos e as
alterações econômicas e sociais tendem a conduzir os atores a desafios e
problemas à medida que as mudanças e a inserção de novos atores e tec­
nologias se colocam no cenário econômico e social.
Para os atores vinculados a questões da agricultura familiar, as
transformações em curso se apresentavam como um enorme desafio cujo
enfrentamento se dá em várias frentes. Os arranjos produtivos e as altera­
ções econômicas e sociais tendem a conduzir os atores a desafios e proble­
mas à medida que as mudanças e a inserção de novos atores e tecnologias

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Da luta pela posse da terra à formação territorial: construção
do éthos da agricultura familiar e os desafios contemporâneos

se colocam no cenário econômico e social. A forma ou modelo adotado


para enfrentar essa intervenção será moldada pelas características políti­
cas das instituições existentes. Entre os anos de 1980 e 1990, estimulados
pela Assesoar, diversas entidades e associações dos agricultores foram cria­
das para atender a ampliação das frentes de lutas específicas dos agricul­
tores (comercialização, crédito, assistência técnica, cooperativas, política,
etc.). Contudo, apenas em meados desta década elas começam a se conso­
lidar, e reunir condições de propor estratégias de desenvolvimento rural
alternativas ao modelo atual, mas este cenário ainda esta longe de serem
completamente construídas as transformações locais em curso são o novo
grande desafio para os agricultores e suas lideranças.

Referências:
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Paulo – Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filoso­
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Adilson Francelino Alves

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Educação do campo e formação política

Helana Célia de Abreu Freitas


Doutora em Sociologia Política – UFSC | Professora da Universidade de Brasília –
UnB | Helana-freitas@uol.com.br

As raízes da Educação do Campo estão nas práticas educativas dos


movimentos sociais, os quais passaram a reconhecer a centralidade do pro­
cesso formativo dos agricultores para o fortalecimento da luta no campo. A
partir desta constatação este artigo tem por finalidade analisar a formação
política inerente ao movimento pela Educação do Campo.
Como nos ensina o mestre Paulo Freire, toda educação é política.
Nenhuma ação educativa é neutra, mesmo quando temos a ilusão de que
apenas estamos repassando conhecimentos científicos sem nenhum víncu­
lo social, econômico ou político. Segundo Freire,

não pode existir uma prática educativa neutra, descomprometida, apolítica.


A diretividade educativa que a faz transbordar sempre de si mesma e perse­
guir um certo fim, um sonho, uma utopia, não permite sua neutralidade (...)
não sendo neutra, a prática educativa, a formação humana, implica opções,
rupturas, decisões, estar com e pôr-se contra, a favor de algum sonho ou
contra outro, a favor de alguém e contra alguém (Freire, 2001, p. 21).

Esta assertiva leva-nos a compreender que em todo processo forma­


tivo, nos mais diversos tempos e espaços, há explicita ou implicitamente
uma intenção política. E se há uma intenção política, consequentemente
há uma formação política.
A Educação do Campo, tendo sua origem no processo de luta dos
movimentos sociais do campo, traz de forma clara e presente a sua inten­
cionalidade: a construção de uma sociedade menos desigual, mais solidá­

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Educação do campo e formação política

ria. Ela se vincula a construção de um modelo de desenvolvimento rural


que considere os diversos segmentos sociais do campo, isto é, que se con­
traponha ao modelo de desenvolvimento capitalista que sempre privilegiou
os interesses dos grandes proprietários de terra e que gerou conseqüências
nefastas à possibilidade de o Brasil rural ser um espaço com relações so­
ciais, econômicas, políticas e ambientais mais humanas.
Porém, se as raízes da Educação do Campo evidenciam sobremanei­
ra o seu vínculo com as lutas sociais do campo e a sua intenção política,
a sua materialização não se dá sem conflitos e incontáveis debates. A sua
construção nas últimas décadas é marcada pela presença de uma multipli­
cidade de movimentos sociais que ressurgem ou que nascem a partir do
final da década de 70 no Brasil e também pela sua entrada na esfera gover­
namental, a partir da década de 90, com a criação do Programa Nacional
de Educação na Reforma Agrária (PRONERA).
Neste quadro, destaca-se o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem-Terra (MST) pela centralidade que foi dada, desde o início da sua cria­
ção, à formação política dos acampados e assentados da reforma agrária.
Diante deste quadro este artigo pretende analisar as seguintes ques­
tões: como vem se construindo o paradigma da Educação do Campo? Qual
o papel dos movimentos sociais neste processo? A formação política pre­
tendida pelos movimentos sociais é viável no momento histórico em que
estamos vivendo? Ao entrar na esfera governamental, é possível manter a
formação política defendida pelos movimentos sociais do campo?
Para tentarmos responder as questões levantadas, na primeira parte
do texto traremos o percurso da construção do movimento pela Educação
do Campo, o papel dos movimentos sociais nesse processo, os princípios
e os debates que orientam essa construção. Na segunda parte, focaremos
na entrada da Educação do Campo na esfera governamental, como os pro­
gramas governamentais incorporam ou não os princípios da Educação do
Campo; a viabilidade da formação política pretendida pelos movimentos
sociais do campo e os desafios atuais da Educação do Campo.

Raízes da Educação do Campo: os movimentos sociais


A década de 80 no contexto global foi marcada pelo fortalecimento
dos movimentos sociais. Para Santos (2008), no que se refere à questão da
participação social e política dos cidadãos e dos grupos sociais, em movi­
mentos sociais,
o mínimo que se pode dizer é que a década de 80 se reabilitou de maneira
surpreendente e mesmo brilhante. Foi a década dos movimentos sociais e
da democracia, do fim do comunismo autoritário e do apartheid, do fim do
conflito Leste-Oeste e de um certo abrandamento (momentâneo?) da amea­
ça nuclear (Santos, 2008, p. 18).

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Helana Célia de Abreu Freitas

Para Santos (2008), porém, a identidade entre movimentos sociais dos


países centrais e os que surgiram na América Latina era apenas parcial. Na
América Latina não havia movimentos sociais “puros” ou claramente defini­
dos, devido às diversas configurações não apenas das relações sociais, como
também dos próprios sentidos da ação coletiva. E nessa “impureza” estaria a
verdadeira novidade dos novos movimentos sociais na América Latina.
Mesmo com uma história conturbada dos antigos movimentos
sociais, o Brasil, nas décadas de setenta e oitenta, foi também palco de
surgimento de novos movimentos sociais ou de movimentos populares.
Provavelmente devido ao caráter semiperiférico da sociedade brasileira,
combinaram-se nela movimentos semelhantes aos que são típicos dos paí­
ses centrais como os movimento ecológico, movimento feminista, com
movimentos próprios orientados para a reivindicação da democracia e
das necessidades básicas: comunidades eclesiais de base, movimentos dos
sem-terra, movimento de favelados (Santos, 2008, p. 263).
Dentro do contexto de fortalecimento dos movimentos sociais da
década de 70 e 80, começaram a se reestruturar as lutas pela questão da
terra e diversos outros problemas políticos, sociais e econômicos do meio
rural no Brasil. Em conseqüência dessas lutas, novos movimentos sociais
do campo começaram a se articular no período. Depois de duas décadas
de forte repressão e desestruturação dos movimentos sociais organizados
no campo, o final da década de 70 já anunciava mudanças nesse panorama
(Grzybowski, 1987; Fernandes, 2000).
Esse quadro surge em resposta ao recrudescimento dos conflitos
por terra em várias regiões nas décadas de 60 e 70 no país, resultado do
intenso processo de desterritorialização sofrido pelos agricultores naquele
período. Estas décadas foram marcadas pelo avanço sem precedentes do
capitalismo no campo, aos agricultores restava o abandono do meio rural
ou a permanência em condições aviltantes. Os projetos implantados pelos
governos militares aumentaram enormemente a concentração de renda,
levando a imensa maioria da população do campo à miséria, intensifican­
do à concentração fundiária e promovendo o maior êxodo rural da história
do Brasil (Fernandes, acessado em 03/03/10)
Em resposta a esse quadro, no final da década de 70 os movimentos
sociais do campo começam a se reestruturar. Em 1984 foi criado o Movi­
mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o qual assumiu o pro­
tagonismo da luta pela reforma agrária no Brasil. As experiências com as
ocupações de terra iniciadas no final dos anos 70 nos estados do Sul, São
Paulo e Mato Grosso do Sul reuniram os trabalhadores que iniciaram a
formação do MST, o qual se tornou o mais amplo movimento de luta pela
terra da história do Brasil (Fernandes, 2000).
Além do MST, outros movimentos começaram a surgir nesse perío­
do resultado da grande diversidade de organizações sociais do campo

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Educação do campo e formação política

no Brasil. Essas organizações se constituíram em forças sociais, mes­


mo considerando as diferentes formas de ação e de estruturação e de
relações distintas com as instâncias de poder. Dessa forma, elas não re­
presentaram apenas simples respostas a problemas localizados, pois as
práticas dessas organizações alteraram padrões tradicionais de relações
políticas com os centros de poder e com as instâncias de legitimação.
(Carvalho, 2005).
Nas palavras de Arroyo,

Movimento social no campo representa uma nova consciência do direito à


terra, ao trabalho, à justiça, à igualdade, ao conhecimento, à cultura, à saú­
de e à educação (Arroyo, 2008, p.73).

A centralidade da educação para os sujeitos do campo foi logo per­


cebida pelo MST e se tornou uma prioridade para o Movimento (Morisa­
wa, 2001). Nos anos de 1980, com a ampliação do número de ocupações e
assentamentos organizados, os problemas ligados à educação se tornaram
bastante visíveis. O número limitado de escolas e o trabalho com conteú­
dos caracterizados pela ideologia do Brasil urbano fizeram com que o MST
criasse experiências de formação em acampamentos e assentamentos de
reforma agrária (Sousa, 2008; Caldart, 1997).
As primeiras preocupações surgiram em torno das crianças dos
acampamentos e dos assentamentos, evidenciando a necessidade de cons­
trução de escolas e da inserção das crianças no ambiente da educação for­
mal. Posteriormente, as reflexões sobre a prática educativa foram ocupan­
do espaço e gerando formulações sobre o movimento social como espaço
educativo (Fernandes, 2006; Sousa, 2008).
Com a criação do Setor de Educação, o MST passou então por um
processo de fortalecimento na demanda e proposição de ações ligadas à
educação. Este Setor assumiu o compromisso de organizar e sistematizar
as propostas e práticas pedagógicas nas escolas localizadas nos assenta­
mentos da reforma agrária e nos acampamentos,. A educação foi ocupan­
do lugar no interior do próprio MST, que tinha as estratégias políticas e a
ocupação da terra como prioridades.
Ainda no processo de fortalecimento da educação no MST foi se
compreendendo o papel educativo do movimento social. Para Caldart
(2006), nos movimentos sociais, entre eles o MST, a matriz formadora bá­
sica dos sujeitos é a combinação da luta social com a organização coletiva
à qual se misturam outras matrizes pedagógicas. Enfatiza que a luta social
é educativa, permitindo às pessoas integrarem-se no movimento concreto
das tensões, contradições, enfrentamentos, avanços, recuos etc que for­
mam esses processos e que, no mesmo movimento, podem levar à constru­
ção coletiva de uma organização com o objetivo de garantir e sustentar a
luta (Caldart, 2006, p. 138-139).

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Helana Célia de Abreu Freitas

Ainda para Martins (2009), o reconhecimento do MST como um


movimento educativo, não significa a negação da importância da escola
como espaço necessário para o acesso ao conhecimento sistematizado,
historicamente negado aos trabalhadores, especialmente aos trabalhado­
res rurais. Porém, o Movimento recusa as práticas escolares tradicionais
e sua pretensa neutralidade e luta por uma escola que corresponda aos
seus interesses, o que significa uma escola preocupada com a formação
política de crianças e jovens bem como ligada à luta dos movimentos so­
ciais rurais.
Portanto, na aprendizagem coletiva dos movimentos sociais do
campo, na experiência da luta, da organização, na busca por uma escola
comprometida com a realidade dos trabalhadores do campo foi se confi­
gurando um processo educativo. Os movimentos sociais no campo, dentre
esses o caso emblemático do MST, mas também os movimentos contra as
barragens, da economia solidária, quilombolas, seringueiros, indígenas, ri­
beirinhos e muitos outros, se tornaram espaços de construção de um novo
modelo de educação que se contrapunha à educação rural com sua visão
do suposto “atraso rural”, que permeava os programas e projetos educacio­
nais desenvolvidos nas áreas rurais do Brasil e que corroborou para que se
perpetuassem as desigualdades sociais no campo (Freitas, 2007).

O surgimento e os Desafios da Educação do Campo


A partir do final dos anos 90, os múltiplos movimentos sociais que
surgiram no espaço rural com suas diferentes demandas e formas de luta
constituíram um movimento em torno de uma política de educação para
os povos do campo. Este movimento teve como referência as lutas, a cul­
tura, os modos de vida próprios e de práticas educativas que, no transcur­
so da luta dos movimentos, foram construindo uma pedagogia, especial­
mente pelo MST (Sousa, 2008; Batista, 2007; Molina, 2009). Para Caldart
(2008), portanto

a materialidade de origem da Educação do Campo está nos processos for­


madores dos sujeitos coletivos da produção e das lutas sociais do campo
(Caldart, 2008, p. 69).

Neste momento, os processos educativos que estavam acontecendo,


desde a década de 80, no espaço dos movimentos sociais e havia ocupado
alguns espaços acadêmicos, entra na esfera governamental e se constitui
em um novo caminho que busca romper com o velho paradigma da edu­
cação rural.
A articulação dos movimentos sociais culminou coma realização em
2007 do 1º Encontro Nacional de Educação na reforma Agrária e a I Con­
ferência Nacional por uma Educação Básica do Campo em 1998. A I Con­

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Educação do campo e formação política

ferência teve a participação dos movimentos sociais, organizações gover­


namentais e não-governamentais como apoio da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB), da Organização das Nações Unidas para Educa­
ção, Ciência e Cultura (UNESCO), do Fundo das Nações Unidas para a In­
fância (UNICEF) e da Universidade de Brasília (UNB).
A realização da I Conferência Nacional por uma Educação Básica
do Campo fortaleceu o processo de inserção da Educação do Campo na
agenda política. Durante a realização da Conferência, as entidades promo­
toras assumiram o compromisso de sensibilizar e mobilizar a sociedade
e os órgãos governamentais para a formulação de políticas públicas que
garantissem o direito à educação para a população do campo. A luta por
políticas públicas específicas e por um projeto educativo próprio para os
sujeitos do campo foi legitimada (Molina, 2004).
Em 1998, em resposta à forte mobilização gerada pelos movimentos
sociais do campo, foi criado o Programa Nacional de Educação na Refor­
ma Agrária (PRONERA), para implementar ações educativas para as popu­
lações dos acampamentos e assentamentos rurais. Com o elevado número
de projetos realizados, o PRONERA passou a provocar tanto a aceleração
do debate quanto das ações da Educação do Campo (Molina, 2004).
Ao ter como premissa básica para a realização de seus cursos a pre­
sença de movimentos sociais do campo, universidades e do Instituto Na­
cional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o PRONERA garantiu
a presença dos princípios formativos preconizados pelos movimentos so­
ciais do campo, fundamentalmente do MST, o qual teve um papel central
na construção das propostas do PRONERA (Freitas, 2007)
Embora o Manual do Programa assegure a participação de todos os
movimentos sociais do campo, constata-se que o MST, desde o início da
construção do PRONERA, conseguiu tornar presentes a sua visão de edu­
cação, o processo de formação política e a forma como organizam os pro­
cessos pedagógicos nos assentamentos. A trajetória e os princípios educa­
tivos do MST tiveram, portanto, um papel fundamental na elaboração das
propostas do PRONERA e na execução dos projetos (Freitas, 2007).
A princípio o PRONERA teve como foco a escolarização inicial de
jovens e adultos, devido ao elevado número de analfabetos nas áreas de
reforma agrária. Porém logo se percebeu que havia uma forte demanda
também por outros níveis de ensino, como o técnico e o superior, diante
da carência de profissionais desses níveis que tivessem um vínculo com
a realidade do campo (Freitas, 2010). Entre 1998 e 2009, passaram pelas
propostas educativas do PRONERA aproximadamente 500 mil alunos, da
Educação de Jovens e Adultos até cursos de especialização, passando pelas
formações de nível médio, técnico e superior.
Apesar da presença dos movimentos sociais e dos seus princípios
formativos, a realização desses cursos ainda ocupa um espaço reduzido

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Helana Célia de Abreu Freitas

dentro das universidades e gera conflitos de diversas ordens. Isso se deve


à dificuldade das instituições de ensino superior em lidar com diferentes
sujeitos, com inovadoras lógicas de construção do conhecimento e com
diferentes saberes. Deve-se ainda ao fato de a maioria dos cursos não
terem uma continuidade, já que são criados projetos específicos que se
enquadram em programas provisórios que se mantêm como um espaço
a parte no espaço acadêmico. Assim, embora os projetos do PRONERA
tenham conseguido manter em grande parte a formação política preten­
dida pelos movimentos sociais, a relação e as dificuldades com os diver­
sos sujeitos envolvidos no Programa trouxeram novos elementos para a
Educação do Campo.
As dificuldades apontadas acima fazem com que, embora a forma­
ção pretendida pelos movimentos sociais do campo esteja presente nas
propostas educativas do PRONERA, ela passou por transformações. Ao
envolver outros sujeitos como professores e alunos de instituições de ensi­
no superior e técnicos do INCRA, com diferentes visões de educação e de
sociedade, muitas vezes conflitantes a construção da Educação do Campo
se amplia, se transforma e se modifica (Freitas, 2007).
Na esteira da entrada da Educação do Campo na esfera governa­
mental, em 2004, foi criada a Coordenação Geral de Educação do Cam­
po (CGEC), no Ministério da Educação (MEC), no âmbito da Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD). Ainda,
no MEC, foi organizado o Grupo Permanente de Trabalho (GPT) sobre
Educação do Campo e foi elaborado o documento intitulado “Referên­
cias para uma política nacional de Educação do Campo”. Posteriormen­
te, o GPT foi transformado na Comissão Nacional de Educação do Cam­
po do MEC.
Com a criação da CGEC, a discussão sobre a Educação do Campo se
amplia e toma novos rumos. São criados os programas Escola Ativa, Projo­
vem Campo – Saberes da Terra e Procampo, voltados especificamente para
as questões da educação escolar no meio rural. Embora ela receba a deno­
minação de Educação do Campo e venha ampliando a oferta de formação
voltada para a agricultura familiar, em alguns programas observamos o
afastamento da forma como os movimentos sociais vinham construindo
os processos educativos em seus espaços.
Entre os programas desenvolvidos pela CGEC, que buscam manter
uma aproximação com os movimentos sociais, encontra-se o Programa
de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo
(Procampo). Este Programa tem por objetivo apoiar a implementação de
cursos regulares de Licenciatura em Educação do Campo nas Instituições
Públicas de Ensino Superior de todo o país, voltados especificamente para
a formação de educadores para a docência das séries finais do ensino fun­
damental e médio nas escolas rurais. Para Mourão (2010),

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Educação do campo e formação política

Neste sentido, as políticas de formação de educadores que resultaram das lu­


tas sociais dos povos do campo por direito à educação representam um fato
singular no contexto histórico da universidade pública no Brasil, incidindo
de maneira contra-hegemônica sobre as práticas acadêmicas de cunho po­
sitivista e neoliberal. No contexto hegemônico das políticas de alinhamen­
to com o projeto de educação neoliberal nos últimos 10 anos, o movimento
contra hegemônico da Educação do Campo desafia a universidade pública
a repensar suas prioridades na formação de sujeitos individuais e coletivos
capazes de protagonizar a transformação social. (p. 11).

Em 2007, foram criadas quatro experiências piloto na Universidades


de Brasília (UNB), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Univer­
sidade Federal da Bahia (UFBA) e Universidade Federal de Sergipe (UFS),
com uma média de 50 alunos.
Na Universidade de Brasília, a Licenciatura em Educação do Cam­
po já se tornou um curso regular tendo um ingresso anual de 50 alunos da
região Centro-Oeste. Os alunos são vinculados a diversos movimentos so­
ciais do campo: MST, Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agri­
cultura (CONTAG), Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD),
comunidade quilombola e professores da rede de ensino que lecionam em
escolas do meio rural.
A Licenciatura em Educação do Campo apresenta uma proposta pe­
dagógica multidisciplinar de trabalho docente, organizando os componen­
tes curriculares em quatro áreas do conhecimento: Linguagens; Ciências
Humanas e Sociais; Ciências da Natureza e Matemática; Ciências Agrárias.
A formação por área visa contribuir com a construção de processos capa­
zes de desencadear mudanças na lógica de utilização e, principalmente, de
produção de conhecimento no campo. Busca desencadear a ruptura com
as tradicionais visões fragmentadas do processo de produção do conheci­
mento, com a disciplinarização da complexa realidade socioeconômica do
meio rural na atualidade (Molina, 2009).
O curso tem ainda a intenção de preparar educadores para uma atua­
ção profissional que vai além da docência, dando conta da gestão dos proces­
sos educativos que acontecem na escola e no seu entorno. Todos os aspectos
referentes aos projetos de vida desses sujeitos no contexto do desenvolvi­
mento rural local e regional devem ser considerados na formação desses
educadores, para que estes desenvolvam uma visão clara e objetiva de suas
potencialidades e possibilidades como sujeitos individuais e coletivos.
A organização curricular se constitui pelo princípio da Alternância,
em Tempo Escola e Tempo Comunidade. A proposta de Alternância integra
o aluno à atuação na construção dos conhecimentos necessários à sua for­
mação como professor do campo, não se restringindo aos espaços educativos
escolares, mas também os tempos educativos comunitários, culturais, psíqui­
cos e político-organizacionais onde se encontram as escolas do meio rural.

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Helana Célia de Abreu Freitas

Embora o exemplo acima evidencie a busca da formação de edu­


cadores em consonância com a formação política pretendida pelos movi­
mentos sociais, houve uma ampliação significativa no número de institui­
ções de ensino superior ofertando o curso de licenciatura em Educação do
Campo (em 2010, envolve 33 instituições de ensino superior , totalizando
56 turmas), o que pode gerar um afastamento dos princípios políticos de­
fendidos pelos movimentos sociais.
Embora esses programas signifiquem um avanço na luta dos movi­
mentos sociais do campo por políticas públicas de educação para o meio
rural, muitas são as críticas por se distanciarem do tripé campo-política
pública-educação, perspectiva de campo trazida pelos movimentos sociais.
Como conseqüência, afastam-se dos princípios que orientam a formação
política nos movimentos sociais.
No âmbito das secretarias estaduais e municipais também há certa
resistência quanto à inserção da Educação do Campo na agenda política,
devido à dificuldade em se incorporar os princípios educativos defendidos
pelos movimentos sociais, em especial do MST. Para Sousa (2008),

As secretarias municipais de educação “olham” com ressalvas para a produ­


ção do MST ou pouco conhecem dela. Os professores não tiveram contato
com tais materiais nos cursos de Magistério ou de educação superior. Assim,
boa parte das reflexões produzidas pelos movimentos sociais sobre Educa­
ção do Campo não chega até aqueles que de fato, fazem a realidade escolar
(Sousa, 2008, p. 1100).

Apesar das mudanças que vêm ocorrendo, para Munarim (2008) o


Movimento Nacional de Educação do Campo se fortalece por meio de uma
rede social, composta pelos sujeitos coletivos que trabalham com Educa­
ção do Campo e que dela se aproximam. Nessa rede encontramos ONGs,
universidades, secretarias estaduais e municipais de educação, movimen­
to sindical, movimentos e organizações sociais, centros familiares de for­
mação de alternância. Ainda que o MST seja o sujeito forte na rede social,
ele irradia o debate da Educação do Campo e atrai os sujeitos que com ela
trabalham, fortalecendo assim a sua própria atuação política na organiza­
ção de uma proposta pedagógica que valoriza a “cultura camponesa” e que
questiona as relações de classe que marcam, particularmente, a realidade
do campo brasileiro (Sousa, 2008, p.1098).
Neste debate, é preciso considerar que os movimentos sociais tam­
bém vêm se transformando. Gohn (2010) afirma que os movimentos so­
ciais atuais são distintos dos movimentos que surgiram a partir do final
da década de 70 e parte dos anos 80. Embora muitos dos atuais movimen­
tos sejam herdeiros daquelas décadas, houve uma ampliação dos sujeitos
sócio-políticos em cena e mudanças nas formas de mobilizações – as quais
em períodos anteriores partia de grupos da sociedade civil organizada.

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Educação do campo e formação política

Atualmente, há mudanças nas formas de mobilização, estas ocorrem tam­


bém de cima para baixo e há mudança também na forma de atuação dos
movimentos, agora em redes. Houve ainda uma ampliação das fronteiras
dos conflitos e tensões sociais em função da nova geopolítica que a globali­
zação econômica e cultural vem gerando (Gohn, 2010, p. 66-67)

Considerações Finais
Podemos concluir do exposto acima que desde o período de ges­
tação na experiência dos movimentos sociais do campo até os seus onze
anos de existência formal, a Educação do Campo vem se consolidando,
se transformando e já alça vôos mais altos. Daí pode-se depreender que a
Educação do Campo nasce da hibridização da formação empreendida pe­
los movimentos sociais com outros atores, principalmente das universida­
des públicas.
Porém, apesar das mudanças que vêm ocorrendo no âmbito da Edu­
cação do Campo fazerem parte do processo de consolidação do movimen­
to, a luta empreendida pelos movimentos sociais não pode se tornar secun­
dária, sob o risco de se desfigurar o próprio movimento.
É preciso manter a luta política pelo campo: espaço dos graves con­
flitos, das lutas sociais, da luta pela terra, pelo trabalho, de sujeitos huma­
nos e sociais concretos; e contra a lógica do campo como lugar de negócio,
que expulsa as famílias, que não precisa de educação nem de escolas.

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Educação do campo e formação política

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A Educação do Campo no território
institucional da Secretaria de Estado
da Educação do Paraná (SEED/PR):
1
algumas considerações

Willian Simões
Mestre em Geografia pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG, 2009) |
Professor de Geografia da rede estadual de ensino e membro da Coordenação
da Educação do Campo na Secretaria de Estado da Educação do Paraná (2005 –
2010) | E-mail: profewillian@hotmail.com

Introdução
A Educação do Campo nasce com os movimentos sociais campone­
ses, no contexto da luta pela Reforma Agrária, por direitos sociais e por
uma melhoria da qualidade de vida dos sujeitos que habitam e se mani­
festam nos territórios rurais dos municípios brasileiros. Trata-se de uma
concepção/proposta de educação, que se contrapõe à lógica educacional
que, historicamente (desde as missões jesuíticas), se constituiu de tal for­
ma, que veio excluindo ou colocando à margem do direito a uma educação
pública e de qualidade uma importante parcela da sociedade. Esta passou
a ser conhecida como Educação Rural.
A Educação Rural é movida por uma lógica economicista, pautada
pelos interesses dos grandes latifundiários, e veio contribuindo ao longo da
história para o fechamento das escolas públicas no rural e a territorialização
de uma enorme rede de transporte escolar, fortalecendo uma pedagogia ur­
banocêntrica, potencializando relações de preconceito territorial e geracio­
nal entre os estudantes e profissionais da educação, fortalecendo um projeto
de organização da sociedade a partir de uma lógica urbano-industrial.

1
Esse texto é uma síntese de uma apresentação desenvolvida durante a mesa redonda intitu­
lada “Educação do/no Campo e Organização Política, realizada no XX Encontro Nacional
de Geografia Agrária – ENGA, UNIOESTE – Francisco Beltrão, Paraná, 2010.

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A Educação do Campo no território institucional da Secretaria
de Estado da Educação do Paraná (SEED/PR): algumas considerações

Ao nascer, no seio dos movimentos sociais, a Educação do Campo é


permeada por uma solidariedade orgânica, pensada a partir da base huma­
na que demanda processos de ensino-aprendizagem com princípios peda­
gógicos que respeitam as múltiplas dimensões territoriais (política, econô­
mica, cultural e socioambiental) em que se inserem os sujeitos do campo,
sejam eles os quilombolas, os faxinalenses, os acampados e os assentados
das áreas de Reforma Agrária, os pescadores artesanais, os ilhéus e ribei­
rinhos, os pequenos agricultores, os povos da floresta, as quebradeiras de
coco, entre outros.
Nessa reflexão, cabe dizer que fazer acontecer uma Educação do
Campo, como bem lembram diferentes pensadores/pesquisadores (FER­
NANDES, 2002; 2005; SCHWENDLER, 2004; CALDART, 2005; MOLINA,
2005; GHEDINI, 2007; SIMÕES, 2009; SOUZA, 2010; entre outros) é con­
siderar o contexto em que a vida dos sujeitos se desenvolvem, na inter-re­
lação campo-cidade, em um processo permanente de diálogo e respeito às
suas especificidades que não foram consideradas no processo de universa­
lização da educação formal, que não fazem parte ou foram marginalizadas
na história oficial da nação brasileira ou nos documentos oficiais do Esta­
do e, por consequência, ficaram ou estão de fora da gestão e do atendimen­
to das políticas públicas educacionais.
A Educação do Campo, nesse sentido, levanta outra bandeira teóri­
co-epistemológica, exigindo ressignificações, renovações e inovações con­
ceituais, novas práticas e posturas na gestão administrativa e pedagógica
das escolas (na organização do trabalho pedagógico) e do poder público,
na formação de professores (inicial e continuada), na organização da pro­
dução do conhecimento científico (a relação entre os saberes tradicionais
das comunidades e os saberes escolares), na ação dos movimentos sociais
de base popular (no contexto do próprio movimento e na relação com o
Estado), entre outras.
Uma das questões que deve estar permanentemente em nossos de­
bates é o fato da Educação do Campo passar a ser entendida pelos mo­
vimentos sociais, em particular pelo Movimento dos Trabalhadores Ru­
rais Sem Terra, desde o final dos anos de 1990, no I Encontro Nacional
dos Educadores da Reforma Agrária (Enera – 1997) realizado em Brasília,
como um direito de todos e um dever do Estado.
Nessa primeira década do século XXI, a Educação do Campo foi
ocupando diferentes espaços institucionais, ora em Organizações Não
Governamentais, ora no Estado em suas diferentes instâncias de poder
(União, Estados e Municípios), mas não eliminou a Educação Rural, pelo
contrário, elas coexistem. Dessa forma, precisamos aprofundar nossos es­
tudos acerca dos impactos desses processos de institucionalização, pois,
estariam os princípios e diretrizes da Educação do Campo, originadas no
contexto dos movimentos sociais, sendo respeitados? Em que medida, o

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Willian Simões

que está sendo chamado de Educação do Campo, não se trata de uma Edu­
cação Rural renovada?
Assim, este artigo, oriundo de uma apresentação realizada duran­
te uma mesa redonda sobre Educação do Campo e Organização Política,
no contexto do XX Encontro Nacional de Geografia Agrária, traz algu­
mas considerações sobre o processo de institucionalização da Educação
do Campo no território institucional da Secretaria de Estado da Educação
do Paraná, quando foi criada a Coordenação Estadual da Educação do
Campo, assim como objetiva apresentar alguns resultados (qualitativos e
quantitativos) do trabalho realizado nesses últimos oito anos de gestão de
políticas públicas educacionais voltadas aos sujeitos do campo.

No território institucional da Secretaria de Estado da Educação


do Paraná, a existência da Coordenação Estadual da Educação do
Campo
No ano 2000, diferentes representações de base política compostas
por sujeitos do campo do Paraná se reuniram no município de Porto Bar­
reiro, sudoeste do estado paranaense, para realizar a “II Conferência Para­
naense: por uma Educação Básica do Campo”. O objetivo geral do evento
era “criar um espaço, de educadores e educadoras do campo, para reflexão
de uma Educação Básica vinculada a um projeto de desenvolvimento do
Campo” (COLETIVO, 2000, p. 35).
Entre as reflexões e atividades realizadas pelos 600 participantes des­
sa conferência, foi elaborada a chamada Carta de Porto Barreiro, trazendo
apontamentos importantes sobre a realidade vivida pelos sujeitos do campo
no processo de escolarização de suas famílias. A carta denuncia que

[...] a maior parte da população do campo sofre com a ausência de políticas


públicas adequadas para suprir suas demandas. Além do impedimento do
acesso à terra, há grandes dificuldades para conquista de uma política agrí­
cola e de infraestrutura básica para o campo. Inexiste na maioria dos mu­
nicípios: eletrificação do campo, saneamento básico, telefonia, transporte
coletivo, saúde, escolas, correios, centros de cultura, esporte e lazer (COLE­
TIVO, 2000, p. 44).

É no contexto dessa conferência que nasce a Articulação Paranaen­


se “Por uma Educação do Campo”, cujo coletivo de participantes passou a
pautar o Estado para incorporar as concepções e propostas da Educação
do Campo. Um diálogo com o Estado, em suas diferentes escalas de poder,
é estabelecido para (re)formulações do modo de desenvolver políticas pú­
blicas educacionais.
Entre os reflexos desse movimento nasce, dentro do território insti­
tucional da Secretaria de Estado da Educação do Paraná (SEED/PR), no

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A Educação do Campo no território institucional da Secretaria
de Estado da Educação do Paraná (SEED/PR): algumas considerações

ano de 2003, a Coordenação da Educação do Campo. Esta coordenação


passa a disseminar a concepção de Educação do Campo dentro da rede de
Educação Básica e a desenvolver, em parceria com movimentos de base
popular, com ênfase no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST), experiências afirmativas que demonstram outras possibilidades de
promover o processo de escolarização, de gestão escolar e de políticas pú­
blicas educacionais.
No governo Lula, também como fruto das demandas oriundas de
diferentes movimentos camponeses, o Ministério da Educação criou a Se­
cretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), e
dentro da Secad, a Coordenação Nacional da Educação do Campo. Cabe
salientar que, antes dessa coordenação nacional, um trabalho na concep­
ção de Educação do Campo já existia dentro do Programa Nacional dos
Educadores da Reforma Agrária (Pronera).
Assim, considerando esses processos de institucionalização da
Educação do Campo, entre outros processos que devem ter se tornado
realidade nos âmbitos políticos e administrativos dos estados e municí­
pios, cabe retomar as indagações presentes na introdução deste artigo,
ou seja, em que medida a Educação do Campo mantém os princípios e
as diretrizes pedagógicas defendidas pelos movimentos camponeses? Es­
taria, de fato, o Estado, se propondo a desenvolver uma política de Edu­
cação do Campo?
No Paraná, o movimento institucional estatal da Coordenação Es­
tadual da Educação do Campo saiu em defesa da Escola Itinerante do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (pelo menos no perío­
do entre 2003-2010), elaborou diretrizes curriculares, materiais de apoio
pedagógico e formou inúmeros grupos de estudos para organizar o tra­
balho pedagógico nas Escolas Públicas do Campo, promoveu cursos de
Formação Continuada de Professores com objetivo de formar um movi­
mento docente, potencializar as possibilidades de transformação comu­
nitária e de qualificar a formação cultural dos sujeitos do campo para­
naense.
A realização de tais ações, não significa que a concepção de Educa­
ção do Campo predominou no território institucional da SEED/PR, uma
vez que, como vimos anteriormente, a Educação Rural ao longo da história
da educação, articulada com a história latifundiária deste país, veio conso­
lidando suas bases na gestão de políticas públicas.
Tal fato pode ser evidenciado a partir do lugar em que a Coorde­
nação Estadual da Educação do Campo passou a ocupar, nesses últimos
anos, no território institucional da SEED/PR. Vejamos o organograma des­
se território (Figura 01):

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Willian Simões

Figura 1 – Organograma da Secretaria de Estado da Educação do Paraná (2010).

Fonte: www.diaadiaeducacao.pr.gov.br, acesso em 19/12/10.

No organograma, a CEC está dentro do Departamento da Diversi­


dade (Dedi), num sistema que é verticalizado. Percebam que o DEDI está
em um mesmo patamar (famoso escalão) que outras demandas apresen­
tadas pela sociedade ao Estado e que já estão mais consolidadas na gestão
de políticas públicas educacionais: o Departamento de Educação e Traba­
lho, muito conhecido como Ensino Profissional (DET), do Departamento
de Educação Especial e Inclusão (Deein) e o Departamento da Educação
Básica (DEB).
Cabe salientar que o Departamento da Diversidade está mais liga­
do à chamada Superintendência da Educação (Sued), que tem um caráter
mais pedagógico, próximo das demandas que objetivam qualificar a orga­
nização pedagógica da escola (documentos de orientação curricular, orien­
tações metodológicas de abordagem dos conteúdos, formação continuada
de professores, aquisição e/ou elaboração de material didático-pedagógico,
entre outros).

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A Educação do Campo no território institucional da Secretaria
de Estado da Educação do Paraná (SEED/PR): algumas considerações

Ainda no organograma, a Superintendência de Desenvolvimento


Educacional (Sude) se encontra do outro lado desse sistema, distante do
Dedi e do CEC, cuja responsabilidade é de contribuir nas políticas voltadas
à construção, ampliação e reforma das escolas, a qualidade estrutural dos
ambientes escolares (salas, laboratórios, bibliotecas etc.), transporte esco­
lar, merenda, entre outras ações.
Percebe-se, assim, além de uma fragmentação das ações (ainda
que necessária), a existência de uma dicotomia entre as políticas de cará­
ter pedagógico e de infraestrutura (ainda que essa não fosse a ideia dos
gestores).
Para além disso, dado que o sistema é verticalizado, tendo no topo
do poder das decisões o(a) Secretário(a) de Estado da Educação, cabe sa­
lientar que desenvolver políticas públicas educacionais que tenham como
concepção/proposta pedagógica a Educação do Campo resulta de um com­
binado que deve agir concomitantemente, pois qualquer ação, decisão ou
encaminhamento dentro do referido organograma (sistema) passa por
múltiplas relações de poder que começam com os coordenadores(as), pas­
sando pelas chefias de departamentos, superintendências, secretário(a) e,
dependendo da ação, até o(a) governador(a).
A partir das análises de experiências vividas na gestão de políticas
públicas educacionais, pode-se dizer que o referido combinado é composto
por quatro fatores que considero fundamentais para que uma política pú­
blica seja elaborada, implementada e tenha continuidade: 1) Vontade polí­
tica dos governantes; 2) Corpo qualificado de profissionais; 3) Arcabouço
teórico-jurídico; 4) Movimentos Sociais populares.
A vontade política dos governantes é fundamental, uma vez que, são
os governos (representações partidárias), que dão forma ao Estado, que fa­
zem a gestão das políticas públicas voltadas ao povo (uno para o Estado)
que habita o território. Não basta a sociedade apresentar uma demanda,
a experiência visível nos diz que essas demandas devem ser apropriadas
pelos governantes, para que existam as condições de execução das ações:
local de trabalho, financiamento, recursos humanos, infraestrutura, entre
outros), caso contrário, a ação pode até ser elaborada em uma folha de pa­
pel, prometida à sociedade, porém, não se concretiza na realidade vivida.
Além da vontade política dos(as) governantes, a existência de um
corpo qualificado de profissionais é essencial, pois para o trabalho com a
Educação do Campo, torna-se necessário um conjunto de conhecimentos
e práticas diferenciadas (diálogo com os movimentos sociais, respeito às
especificidades territoriais presentes na diversidade dos sujeitos do cam­
po, compromisso com a Escola Pública, uma educação gratuita e de qua­
lidade, entre outros).
Somado tudo isso, necessita-se de um arcabouço teórico-jurídico,
pois todo o processo estatal que visa a efetivação de uma política pública

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educacional dentro da SEED/PR, por exemplo, precisa ser fundamenta­


do teoricamente e juridicamente. A legislação existente é ponto de partida
para qualquer justificativa; as fundamentações teóricas que resultam dos
trabalhos científicos de pesquisa nas universidades, dos grupos de estu­
dos, entre outros, torna-se parte de qualquer apresentação; inclui-se aqui
dados quantitativos e qualitativos apresentados pela sociedade civil sobre
as realidades vividas, estas, que passam a compor relatórios, entre outros
documentos.
E, por fim, a ação dos movimentos sociais camponeses, que não po­
dem perder de vista o papel de fomentar, instigar e/ou provocar o sistema
de gestão das políticas públicas educacionais, ainda que suas demandas
sejam atendidas pelos gestores. Os movimentos sociais não se reduzem
a movimentos sindicais, associações ou das organizações não governa­
mentais, cabe considerar também como movimento as organizações dos
professores(as) para que uma ação na escola aconteça, a comunidade reu­
nida em prol da necessidade de efetivação de uma política, a ação dos gru­
pos de pesquisa e trabalho das universidades, entre outros.
Nesse sentido, considerando essa lógica do combinado, qualquer
disfunção entre os seus referidos fatores pode e deve gerar um conjunto de
conflitos, sejam eles dentro do próprio território institucional ou de fora
do institucional, partindo dos movimentos sociais, ou seja, da sociedade
civil, dos intelectuais, do jurídico, entre outros.
A história tem nos dado inúmeros exemplos de tensões, para citar
os mais recentes: a constituinte de 1988, a aprovação do texto das Leis de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, a apresentação das de­
mandas da Educação do Campo em 1997 (Enera) para o governo federal,
que levaram à publicação das diretrizes operacionais e o decreto federal
da Educação do Campo, as ocupações dos sem-terrinhas na Secretaria de
Estado da Educação do Rio Grande do Sul no governo da Yeda Crusius
(PSDB), entre outros. Quero incluir aqui os movimentos de elaboração
das diretrizes curriculares, do Parecer da Educação do Campo junto ao
Conselho Estadual de Educação do Paraná (aprovado por unanimidade),
a Resolução Secretarial que instituiu a Educação do Campo como política
pública.
Por fim, cabe dizer o quanto é importante aprofundarmos nossa
compreensão sobre os territórios institucionais em que a Educação do
Campo se apresenta como concepção/proposta pedagógica. Uma análise
mais aprofundada pode consolidar a afirmação que, o Paraná, por exem­
plo, dadas todas as peculiaridades territoriais (fragmentação e dicotomiza­
ção das políticas pedagógicas e de infraestrutura) exploradas nessas consi­
derações, avançou muito nas políticas de caráter pedagógico, tornando o
avanço nas políticas de infraestrutura ainda um desafio, ou ainda, se hou­
ve de fato nesse processo uma Educação do Campo, ou se essa educação,

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A Educação do Campo no território institucional da Secretaria
de Estado da Educação do Paraná (SEED/PR): algumas considerações

apesar de todo o esforço realizado por alguns militantes institucionais, não


passou dentro do sistema, de uma Educação Rural renovada.

O movimento por uma Escola Pública do Campo


No Paraná, embora as contradições estivessem instaladas, tornou-se
possível, a partir da Coordenação Estadual da Educação do Campo, arti­
culada a um corpo de intelectuais orgânicos (educadores(as) das Escolas
Públicas do Campo, dos Núcleos Regionais de Educação, professores/pes­
quisadores das universidades estaduais e federais, dos movimentos sociais,
entre outros) desenvolver um trabalho em quatro eixos: Eixo I – Formação
Continuada de professores(as); Eixo II – Infraestrutura e Administração
Escolar; Eixo III – Programas específicos; Eixo IV – Documentos políticos-
pedagógicos.
O Eixo I agrega trabalhos como a realização de simpósios, seminá­
rios, reuniões técnicas e encontros centralizados e descentralizados, objeti­
vando a qualificação profissional dos educadores(as) das Escolas Públicas
que atuam em Escolas do Campo. Passaram por formações continuadas,
segundo relatório de Gestão (2003-2010), mais de 14.000 profissionais.
No Eixo II, os principais avanços se deram na retomada da iden­
tidade das escolas do campo, nos acompanhamentos e nos pareceres re­
alizados em processos de abertura e fechamento de turmas que se quer
passavam pela coordenação, na manutenção das Escolas Itinerantes dos
acampamentos do MST, na abertura e qualificação das Escolas das Ilhas,
entre outros.
Com relação ao Eixo III, destaca-se a implementação do Programa
ProJovem Campo Saberes da Terra do governo federal (Educação de Jovens
e Adultos com Qualificação Profissional), o Programa Escola Ativa (Quali­
ficação profissional dos educadores(as) das Escolas Municipais multisse­
riadas) e as contribuições na qualificação profissional e na manutenção de
infraestrutura das Escolas Itinerantes dos acampamentos do MST.
Por fim, no Eixo IV, os trabalhos se fixaram na elaboração das Dire­
trizes Curriculares da Educação do Campo, a partir dela, na elaboração de
Cadernos Temáticos, Propostas Pedagógicas Específicas (Escola das Ilhas,
Escolas Base das Escolas Itinerantes do MST, Programa ProJovem Cam­
po Saberes da Terra, entre outros), o Parecer (CEE/CEB no 1.011/10) que
orienta a Gestão de Políticas Públicas da Educação do Campo, a Resolução
Secretarial que institui a Educação do Campo enquanto Política Pública,
entre outros.
Todo esse trabalho procurou qualificar o atendimento nas 584 Es­
colas Públicas do Campo do Estado do Paraná, buscando fortalecer e con­
solidar a Educação do Campo, dar visibilidade à existência de um campo
com vidas e conhecimentos, buscando retomar uma identidade negada e/

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ou marginalizada de um campo como possibilidade de continuidade dos


modos de vida das sociedades rurais.
Para a continuidade desses trabalhos, cabe considerar que:
• em 2000, havia 318 estabelecimentos públicos estaduais; em 2008 o
Censo Escolar registrou a existência de pelo menos 423 estabeleci­
mentos. A CEC está praticamente bancando a existência de 584 es­
tabelecimentos, pois o Campo é considerado um espaço para além
dos perímetros rurais dos municípios. Com relação às Escolas Mu­
nicipais, em 2000 havia 2.725 estabelecimentos públicos municipais
considerados do campo, em 2008, o Censo Escolar registrou a redu­
ção para 1.332, ou seja, houve uma redução de pelo menos 48%;
• das 584 Escolas Públicas do Campo, pelo menos 452 estão em re­
gime compartilhado (dividem a administração do estabelecimento
com os governos municipais);
• pode-se afirmar a existência de, pelo menos, 131 mil estudantes nas
Escolas Públicas do Campo;
• o maior impacto no aumento da oferta foi, sem dúvida, na amplia­
ção do atendimento ao Ensino Médio. O Censo Escolar registrava,
em 2000, o atendimento a 3.363 estudantes e, atualmente (Censo
Escolar, 2008), já se registra o atendimento de aproximadamente
15.000 estudantes, ou seja, um aumento de 357% no atendimento;
• há que se investir mais na qualificação profissional na concepção da
Educação do Campo, pois o Censo Escolar de 2008 registrou que,
do total de estudantes no Ensino Médio, 14.051 destes estavam ma­
triculados no Ensino Médio Regular, o que corresponde percentual­
mente a 91% do atendimento, outros 8% estavam matriculados no
chamado Ensino Médio Integrado (Ensino Médio e Profissional) e
1% no Ensino Médio Normal (formação de professores);
• o transporte escolar é uma das principais estratégias para garantir o
atendimento aos diferentes sujeitos do campo. Os dados do Institu­
to Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep, 2007)
sinalizou que no Paraná há, pelo menos, 42.181 estudantes matricu­
lados nas Escolas Públicas do Campo e que habitam os territórios
rurais dos municípios e outros 152.695 estudantes que moram no
rural e estudam em escolas localizadas nas sedes dos municípios;
• se somarmos os sujeitos do campo que estudam nas Escolas Públicas
do Campo (131.108), com os estudantes que moram no campo mas se
deslocam para estudar nas sedes dos municípios (152.695), podemos
afirmar a existência de 283.803 sujeitos do campo atendidos;
• em um universo de 558 Escolas Públicas Estaduais, foi encontra­
da, aproximadamente, a atuação de 8.635 professores(as), destes,

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A Educação do Campo no território institucional da Secretaria
de Estado da Educação do Paraná (SEED/PR): algumas considerações

49,60% se declararam como sendo do Quadro Próprio do Magistério


(concursado) e 50,40% se declararam como sendo contratados pelo
Processo Seletivo Simplificado (contrato temporário);
• ainda em relação aos professores(as), 7.992 se declararam morado­
res das sedes dos municípios, se deslocando em um raio aproximado
que varia de 5 a 63,8 quilômetros de distância das escolas em que
trabalham;

Assim, a partir destes dados e informações, pode-se dizer que o tra­


balho apenas começou e que precisa de maior atenção. Dessa forma, fica
o desafio para os próximos governos, se é que esses acreditam na possibi­
lidade de uma Educação do Campo.

Considerações finais
Primeiramente, gostaria de registrar a minha satisfação em ter par­
ticipado dessa mesa de debate com essa temática que ainda é muito jovem
no Brasil, não muito comum entre os geógrafos e que precisa estar perma­
nentemente em nossas agendas: a Educação do Campo.
A Geografia Agrária tem muito a contribuir com a Educação do
Campo, pois a ciência geográfica tem um arcabouço teórico-conceitual que
avançou muito na compreensão dos impactos das políticas públicas em co­
munidades rurais, sobre os modos de vidas das diversidades de sujeitos e
territórios existentes no espaço rural brasileiro e paranaense, assim como
com os demais debates que giram em torno da questão agrária brasileira.
Sobre a política de Educação do Campo, em particular no Estado do
Paraná, estamos passando por um período de transição político-partidária
(2010-2011). Isso quer dizer que um novo governo tomará posse do Estado
e novos protagonistas devem tomar os postos de trabalho. Isso significa que
poderá ou não haver mudanças, mas creio que os resultados do trabalhado
realizado nesses últimos oito anos é fundamental para que a sociedade civil
possa, no exercício da cidadania, garantir a permanência de ações.
Por fim, a Educação do Campo é uma de nossas utopias agrárias, ela
continuará existindo (independentemente do reconhecimento dos gover­
nos/Estado) porque ainda muito se tem a fazer para garantir uma educa­
ção pública e de qualidade aos sujeitos do campo, no contexto da luta pela
Reforma Agrária, pelo reconhecimento e respeito aos povos e comunida­
des tradicionais, por um país e um mundo mais democrático e humano.

Referências:
CALDART, Roseli Salete. Elementos para a construção de um projeto po­
lítico e pedagógico da Educação do Campo. In. MOLINA, Mônica

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Willian Simões

Castagna; JESUS, Sonia Meire Santos Azevedo de. (Orgs) Educação


do Campo: contribuições para a Construção de um Projeto de Edu­
cação do Campo. Articulação Nacional “Por uma Educação do Cam­
po”. Brasília, 2005.
COLETIVO. Carta de Porto Barreiro. Porto Barreiro, 2000.
FERNANDES, Bernardo Mançano. Diretrizes de uma Caminhada. In.
KOLLING, Edgar Jorge (Org.) Educação do Campo: Identidade e Po­
líticas Públicas. Coleção por uma Educação do Campo, nº 4. Brasí­
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FERNANDES, Bernardo Mançano; MOLINA, Mônica Castagna. Contri­
buições para a Construção de um Projeto de Educação do Campo.
In. MOLINA, Mônica Castagna; JESUS Sonia Meire Santos Azevedo
de. (Org.) Contribuições para a Construção de um Projeto de Educa­
ção do Campo. Coleção por uma Educação do Campo, nº 5. Brasília,
2005.
GHEDINI, Cecília M. A formação de educadores no espaço dos movimen­
tos sociais do campo – um estudo a partir da I Turma de Pedagogia
da Terra da Via Campesina/Brasil. Dissertação de Mestrado. UFPR.
Paraná, 2007.
SCHWENDLER, Sônia Fátima. Principais Problemas e Desafios da Educa­
ção do Campo no Brasil e no Paraná, Cadernos Temáticos: Educação
do Campo. Secretaria de Estado da Educação. Superintendência da
Educação. Departamento de Ensino Fundamental. SEED. Curitiba,
2005.
SIMÕES, Willian. Comunidades Tradicionais de Faxinais e Gestão de Po­
líticas Públicas Educacionais no Estado do Paraná: compreendendo
territórios e territorialidades. Dissertação de Mestrado. UEPG. Para­
ná, 2009.
SOUZA, Maria Antônia de. Educação e Movimentos Sociais do Campo: a
produção do conhecimento no período entre 1987 a 2007. Ed. UFPR.
Curitiba, 2010.

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