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Resenha. Favret-Saada - Ser Afetado
Resenha. Favret-Saada - Ser Afetado
Desde seu surgimento, a Antropologia tem transitado, nas suas diferentes escolas,
entre fazer ou não fazer etnografia, a pesquisa de campo. Por muito tempo, mesmo aquela
Antropologia que realizou tal empreendimento se ateve aos modelos cientifico-positivistas
tão em voga dentro da disciplina. A objetividade científica, com sua abordagem que trata as
sociedades como coisas, se atém à elaboração de leis gerais que possam explicar o
funcionamento e a estrutura das sociedades de forma atemporal. Indo na contramão das
fundamentações cientificistas que durante muito tempo sustentaram as metodologias de
trabalho do antropólogo – como a neutralidade e o pragmatismo – as quais partem da
premissa de se ignorar a subjetividade do antropólogo enquanto fonte de produção de
conhecimento, Favret-Saada (2005) propõe uma Antropologia repensada, em que “ser
afetado” adquire sua devida importância na prática etnográfica, trazendo à tona a importância
das experiências e sensibilidades subjetivas do pesquisador como elementos centrais para
uma compreensão aprofundada de uma cultura em estudo.
Seja como for, entre franceses e britânicos, a Antropologia esteve de fato imbricada
com o empreendimento colonial, uma vez que ao Outro - o nativo - cabia o registro pelo
Antropólogo para que não desaparecesse em seu processo de aculturação pela civilização.
Favret-Saada, por outro lado, com seu trabalho de campo sobre feitiçaria rural na região de
Bocage, França, no final da década de 1960, revela que de fato a realidade era outra: em vez
de aculturação, a comunidade de Bocage apresenta-se em toda sua vivacidade e
dinamicidade, com um potencial criativo de transformação e adaptação quanto ao contato
com outras realidades culturais. Considerando a chamada “Grande Divisão”, conforme
denominada pela autora, entre um “nós” que representa a ciência, a verdade e a civilização e
um “eles” que se encontra imerso em superstições típicas de uma mentalidade atrasada, o
“saber nativo” é desqualificado em benefício da manutenção de uma suposta “verdade
científica”. Foi assim que a feitiçaria se tornou um tabu em Bocage:
Ao antropólogo é possível, ainda, se distanciar de sua própria cultura com vistas a lhe
tecer críticas, contribuindo para a reflexão sobre o enriquecimento cultural que a troca de
experiências acarreta. O encontro entre diferentes lógicas de realidade possibilita a abertura
para uma transformação da experiência do antropólogo, que pode ser discutida
antropologicamente. Considera-se aí toda a capacidade adaptativa do pesquisador, como ser-
humano que é, sendo que o distanciamento metodológico prezado pela antropologia clássica
entra aí praticamente em colapso, e a sociedade não mais considerada simplesmente como
“coisa”, mas constituída por sujeitos conscientes de sua capacidade de agenciamento ativo na
realidade em que estão inseridos.
“No começo, não parei de oscilar entre esses dois obstáculos: se eu ‘participasse’, o trabalho
de campo se tornaria uma aventura pessoal, isto é, o contrário de trabalho; mas se tentasse
‘observar’, quer dizer, manter-me à distância, não acharia nada para ‘observar’. No primeiro
caso, meu projeto de conhecimento estava ameaçado, no segundo, arruinado” (Favret-Saada,
2005: 157).
Referência
FAVRET-SAADA, Jeanne. 2005. “Ser afetado” In. Cadernos de campo, 13(1): 155-161.