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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

Aluno Francisco Savoi de Araujo


Disciplina Seminário de Métodos de Produção e Análise em Etnografia
Prof. Luis Nicolau Parés
2018.2

Atividade: Resenha 1 - FAVRET-SAADA, Jeanne. 2005. “Ser afetado” In. Cadernos de


campo, 13(1): 155-161.

Contribuições de Favret-Saada para o fazer etnográfico

Desde seu surgimento, a Antropologia tem transitado, nas suas diferentes escolas,
entre fazer ou não fazer etnografia, a pesquisa de campo. Por muito tempo, mesmo aquela
Antropologia que realizou tal empreendimento se ateve aos modelos cientifico-positivistas
tão em voga dentro da disciplina. A objetividade científica, com sua abordagem que trata as
sociedades como coisas, se atém à elaboração de leis gerais que possam explicar o
funcionamento e a estrutura das sociedades de forma atemporal. Indo na contramão das
fundamentações cientificistas que durante muito tempo sustentaram as metodologias de
trabalho do antropólogo – como a neutralidade e o pragmatismo – as quais partem da
premissa de se ignorar a subjetividade do antropólogo enquanto fonte de produção de
conhecimento, Favret-Saada (2005) propõe uma Antropologia repensada, em que “ser
afetado” adquire sua devida importância na prática etnográfica, trazendo à tona a importância
das experiências e sensibilidades subjetivas do pesquisador como elementos centrais para
uma compreensão aprofundada de uma cultura em estudo.

A antropologia clássica realizada na França e Inglaterra, segundo Favret-Saada, situa


a dimensão da afetividade como simples constructo cultural - como um registro, uma
expressão das representações coletivas - quando não a renega ao desaparecimento para ser
superada pela ciência e seu mar de representações. Sobre a produção antropológica feita até
então, a crítica que Favret-Saada tece aos franceses–etnólogos é a sua total ausência de
empiria, em que os dados se apresentam de maneira bastante superficial e distorcida, devido à
metodologia cujo propósito serviu para fortalecer o etnocentrismo compartilhado pelos
estudiosos da época. Já os britânicos–etnógrafos, em sua observação participante, praticavam
uma vivência em campo; contudo a ideia deste método, segundo Favret-Saada, era que se
participasse somente o necessário para que uma observação da realidade, com o mínimo de
interferência do antropólogo-pesquisador, fosse possível. Para isso, tem-se como parte da
metodologia a utilização de informantes pontuais cujas contribuições à pesquisa se limitariam
àquilo que a cultura em estudo apresenta de mais “senso comum”, ou seja, superficial, o que
Favret-Saada chama de “discursos de conveniência”.

Seja como for, entre franceses e britânicos, a Antropologia esteve de fato imbricada
com o empreendimento colonial, uma vez que ao Outro - o nativo - cabia o registro pelo
Antropólogo para que não desaparecesse em seu processo de aculturação pela civilização.
Favret-Saada, por outro lado, com seu trabalho de campo sobre feitiçaria rural na região de
Bocage, França, no final da década de 1960, revela que de fato a realidade era outra: em vez
de aculturação, a comunidade de Bocage apresenta-se em toda sua vivacidade e
dinamicidade, com um potencial criativo de transformação e adaptação quanto ao contato
com outras realidades culturais. Considerando a chamada “Grande Divisão”, conforme
denominada pela autora, entre um “nós” que representa a ciência, a verdade e a civilização e
um “eles” que se encontra imerso em superstições típicas de uma mentalidade atrasada, o
“saber nativo” é desqualificado em benefício da manutenção de uma suposta “verdade
científica”. Foi assim que a feitiçaria se tornou um tabu em Bocage:

“Os camponeses do Bocage recusaram-se obstinadamente a jogar a Grande Divisão comigo,


sabendo bem onde isso deveria terminar: eu ficaria com o melhor lugar (aquele do saber, da ciência,
da verdade, do real, quiçá algo ainda mais alto), e eles, com o pior. A Imprensa, a Televisão, a
Igreja, a Escola, a Medicina, todas as instâncias nacionais de controle ideológico os colocavam à
margem da nação sempre que um caso de feitiçaria terminava mal: durante alguns dias, a feitiçaria
era apresentada como o cúmulo do campesinato, e este como o cúmulo do atraso ou da
imbecilidade.” (Favret-Saada, 2005: 157)

Nesse sentido, os moradores de Bocage estrategicamente evitavam falar sobre


feitiçaria com pessoas de fora da comunidade para não serem rotulados e estigmatizados
como atrasados. No entanto, entre discurso e prática Favret-Saada percebeu uma significativa
discrepância, a partir do momento em que começou a apresentar sinais de que ela própria fora
enfeitiçada. Favret-Saada, uma vez “afetada” pela feitiçaria, foi mais a fundo que aqueles
estudos que observam a feitiçaria em sua dinâmica de acusações e contra-acusações -
dimensões empiricamente observáveis, segundo Favret-Saada, desta prática. Num primeiro
momento de uma observação superficial, a autora poderia atribuir aos rituais de
desenfeitiçamento certa centralidade sociocultural, devido à sua espetacularização; percebeu,
porém, que por trás de todo este “espetáculo” atuam forças de um “dispositivo terapêutico”
que curam as pessoas somente se consideradas as suas influências antes e depois do ritual, só
possíveis de serem compreendidas se forem sensação e afeto, como partes de uma
experiência vivida: a da antropóloga, inserida em uma comunidade de iguais que vivenciaram
experiências semelhantes e, assim, possíveis de serem compartilhadas.

Para além das “representações coletivas”, o etnógrafo que experiencia a realidade


toma contato com as diferentes dimensões de sensações e afetividades presentes em campo;
no caso específico de Favret-Saada em Bocage, a partir do momento em que ela se percebeu
e foi percebida enfeitiçada ela “estava justamente no lugar do nativo [...] Esse lugar e as
intensidades [não significáveis] que lhe são ligadas têm então que ser experimentados: é a
única maneira de aproximá-los” (Favret-Saada, 2005: 159). Aceitar ocupar o lugar do nativo
possibilitou à Favret-Saada a abertura de uma comunicação mais espontânea, em que a ela
lhe foi dada (ou conquistada) a oportunidade de se relacionar entre iguais, compartilhando
valores e experiências com pessoas, assim como ela, “igualmente afetadas”. As fronteiras
entre Eu e o Outro se diluem, num contexto em que a antropóloga adquire capacidade de
comunicação daquilo que não é representável, mas experienciado. Até mesmo porque uma
experiência nunca se dá de forma isolada, mas sempre em relação e influência mútua com as
experiências de outras pessoas; nesse sentido, fica evidente a importância em se considerar a
fundamental importância da troca de experiências entre antropólogo e nativo como fonte de
produção de conhecimento no trabalho etnográfico.

Ao antropólogo é possível, ainda, se distanciar de sua própria cultura com vistas a lhe
tecer críticas, contribuindo para a reflexão sobre o enriquecimento cultural que a troca de
experiências acarreta. O encontro entre diferentes lógicas de realidade possibilita a abertura
para uma transformação da experiência do antropólogo, que pode ser discutida
antropologicamente. Considera-se aí toda a capacidade adaptativa do pesquisador, como ser-
humano que é, sendo que o distanciamento metodológico prezado pela antropologia clássica
entra aí praticamente em colapso, e a sociedade não mais considerada simplesmente como
“coisa”, mas constituída por sujeitos conscientes de sua capacidade de agenciamento ativo na
realidade em que estão inseridos.

Desta forma, o engajamento pessoal do pesquisador em campo aparece indissociável


da produção de conhecimento. Segundo Favret-Saada, nas situações etnográficas relevantes
em que tal engajamento era requisitado tudo o que se fazia era deixar-se levar pela
experiência - que poderia adquirir um alto grau de intensidade - sem a preocupação de
racionalizar e interpretar intelectualmente sobre aquele acontecimento. Somente após passar
pela experiência que a autora escreveria algo sobre em seu diário de campo, precisamente
organizado para que uma “operação de conhecimento” pudesse ser realizada sobre tais notas.

“No começo, não parei de oscilar entre esses dois obstáculos: se eu ‘participasse’, o trabalho
de campo se tornaria uma aventura pessoal, isto é, o contrário de trabalho; mas se tentasse
‘observar’, quer dizer, manter-me à distância, não acharia nada para ‘observar’. No primeiro
caso, meu projeto de conhecimento estava ameaçado, no segundo, arruinado” (Favret-Saada,
2005: 157).

Na comunidade camponesa de Bocage pesquisada por Favret-Saada difundiu-se o


costume de não se falar com pessoas estranhas – aquelas oriundas da civilização - sobre
assuntos relacionados à feitiçaria, devido aos (pré) conceitos pejorativos atribuídos a esta.
Nesse sentido, seu fazer antropológico em campo, quando o assunto era feitiçaria, só foi
eficiente quando as pessoas da comunidade perceberam que ela tinha sido enfeitiçada. Na
separação civilização/selvageria, em que está implícita uma relação de dominação da segunda
pela primeira, a antropologia serviu por muito tempo como forma de exotizar os selvagens,
reforçando tal dicotomia fundada em um darwinismo social. Contudo, o trabalho de Favret-
Saada deixa claro como que, na prática, a sabedoria popular utiliza de diferentes estratégias
de resistência para sobreviver à violência simbólica que sofre face ao eurocentrismo
contornando as imposições ideológicas as quais é submetida.

Referência

FAVRET-SAADA, Jeanne. 2005. “Ser afetado” In. Cadernos de campo, 13(1): 155-161.

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