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SER E TER

TER E SER
A resistência dos materiais
Greice Cohn
SER

TER E SER

TER
Greice Cohn

A RESISTÊNCIA DOS MATERIAIS


Ó Grande Quadrado
que não tem ângulos!

Ó Grande Círculo
cheio de cantos!
O devaneio de objetos é uma fidelidade ao objeto familiar
[...] o devaneio alimenta a familiaridade.

G. Bachelard
verso

A morte de um pai muito amado


Um apartamento a esvaziar
O encontro com um acervo imenso
Objetos acumulados se repetem a perder de vista
à vista, o testemunho de apegos, paixões, temores, crenças,
valores
a infinitude de seus 82 anos

Espremida pela urgência


por uma objetividade que me era impossível,
fui acudida pela subjetividade

Redenção

No encontro com as reminiscências,


com a resistência dos materiais
resisto eu também
re-existo

Seriar por temas


uma ideia, um caminho possível
uma luz
Passo a passo, instalo no chão um museu

Num cenário de vazio e cheios


o silêncio
dos discos empilhados, dos sapatos que não pisam,
dos chaveiros inertes, dos relógios sem tempo

tudo é ausência na presença devastadora dos objetos

Patrimônio pátrio
paitrimônio
sua presença a tudo habita
no encontro secreto,
na rotina que se cria,
um ritual de despedida
Em meio ao desmonte, criação!
Profanação
perdão

desafios

Como desapegar de seus apegos, meu pai?


Como não desrespeitar sua construção?
Como desapegar da herança dos apegos?

Preservo a ação
Preservo, na ação
serva, sirvo
enquanto circulo no casulo
enquanto gesto, no gesto
crio
e rio
Sorrio

no rio de objetos que circulam
no circu lar

24 mandalas

filhas da pregnância
das repetições
do assombro
do encontro
do encanto
conto
para cada conto, um canto
um tema
teima
tem mais
no assoalho, um epicentro: seu rosto
gesso branco, eternidade marmórea
sorriso largo
o bon vivant em meio a seu patrimônio
e sua construção se expande
em torno de ti

torno a ti
parto de ti
meu porto
meu parto
renasço

a arte tem vida própria


licença, painho

a bordo desse barco solitário, me sinto acompanhada, e guiada


nos movimentos dessa estranha maré
emerjo
submerjo
a bombordo
a estibordo
transbordo
e te desdobro

mar aberto
no peito, um aperto

no leme, Neme, o vento


um sussurro
um movimento
invento
inverto e reverto – sua ordem
e verto
em verso
Tempo do objeto
Onde quer que eu esteja
Alô
Pai luz
Ligado
Tudo sob controle
Guei nemen a but
Viajar é preciso
Olhe pra frente,
olhe o batente
The sound of music
Com lenço
com documento
Tira gosto
É de tirar o chapéu
Garboso
Construtor
Kik du
To fly
Retrato
Segurança
Inverso
universo perverso
Ser e ter
CiNeme
Shill
Pa(i)trimônio
Dar seu espaço poético a um objeto é dar-lhe mais espaço do que
aquele que ele tem objetivamente, ou melhor dizendo, é seguir a
expansão de seu espaço íntimo.

G. Bachelard
circulando
Olhando retroativamente para esse processo, percebo que, de maneira intuitiva, a escolha da mandala
como composição formal para trabalhar esse acervo agrega significados. Mandalas são espécies
de yantras (instrumentos, meios, emblemas) que em diversas línguas da península indostânica significam
círculos. Como diagramas geométricos rituais podem corresponder a um determinado atributo divino ou
usadas como instrumentos de pensamento e concentração para atingir estados superiores de meditação.
No budismo, a mandala é um tipo de diagrama que simboliza uma mansão sagrada, o palácio de uma
divindade. Os monges criam estas imagens arquetípicas para nos lembrar do ciclo de vida e morte. No
Tibet, o processo de se criar uma mandala é tão importante quanto a mandala em si. Levam-se anos de
preparação e treinamento para se ganhar a habilidade para pintar uma mandala. Seu desenho é
ritualmente preenchido com areia colorida, sendo depois destruído pelo vento ou varrido, como
representação da impermanência da vida.
Para Carl Jung as mandalas são movimentos em direção a um crescimento psicológico, expressando a
ideia de um refúgio seguro, de reconciliação interna. Como embarcações na qual projetamos nossa
psique, que retornam a nós como um caminho de restauração.
Ao retornar a esse material agora, um ano depois, na composição desse livro, percebo que ao colocar a
figura de meu pai no centro dessa forma circular crescente, fiz desse gesto um instrumento de
pensamento, que como um mantra foi me acolhendo no palácio sagrado da moradia familiar. Com as
mandalas, algo foi se construindo em meio à desconstrução que me atravessava. Um novo ninho foi se
formando na velha casa desfeita, me acalantando e me ajudando a processar o encontro brutal com a
morte, e com os objetos que a ela resistem, com o inexorável clico da vida. Nesse refúgio seguro, fui me
reconciliando internamente e descobrindo um caminho de restauração para minha própria alma em meio à
dor. Minhas mandalas não eram de areia, mas também se desmancharam ao vento. Desfeitas após
finalizadas, foram fiéis à impermanência que motivou sua criação.

Esse livro é uma homenagem a um homem que age – sempre agirá – na infinitude de sua existência. Em
nós. Enquanto o amor e a esperança tocarem a lembrança e a imaginação.
Greice Cohn
23 mandalas

1. Onde quer que eu esteja


Escultura em gesso; calçadeiras; cortadores de unhas; canetas; palitos de dente; chaves; relógios;
pentes.

2. Alô
Escultura em gesso; aparelhos de telefone

3. Pai-luz
Escultura em gesso; lâmpadas; lanternas; interruptores; luminárias; bocais.

4. Ligado
Escultura em gesso; fios; fones de ouvido; filtros de linha; benjamins.

5. Tudo sob controle


Escultura em gesso; relógios; cadeados; chaves; metros; correntes; óculos; radio-relógios; trenas;
travas para veículos.

6. Guei nemen a but (vá tomar banho)


Escultura em gesso; loção após barba; espuma para barbear; perfumes; sabonetes líquidos; colônias;
barbeadores; desodorantes; brilhantina; creme hidratante.

7. Viajar é preciso...
Escultura em gesso; malas; pochetes para viagem; bolsas de viagem; maletas de mão; passaporte;
etiquetas para malas.

8. Olhe pra frente, olhe o batente


Escultura em gesso; sapatos; sandálias chinelos; palmilhas; calçadeiras.

9. The sound of music (O som da música)


Escultura em gesso; LPs; CDs; fitas cassete; violino.

10. Com lenço e com documento


Escultura em gesso; lenços de bolso; documentos diversos.

11. Tira-gosto
Escultura em gesso; copos de vidro; cálices; taças, canecas; porta-copos; pratos de l ouça; talheres;
palitos de marfim; tábua de madeira; latas de cerveja; garrafa de licor; toalha de mesa rendada.
12. É de tirar o chapéu
Escultura em gesso; chapéus; bonés; viseiras.

13. Garboso
Escultura em gesso; gravatas.

14. Construtor
Escultura em gesso; ferramentas diversas; caixa de ferramentas; máquina furadeira; serradeira.

15. Kik du (veja você)


Escultura em gesso; óculos; binóculos; lentes de aumento; microscópio.

16. To fly (voar)


Escultura em gesso; cobertores; colheres; fones de ouvido; protetor de olhos; meias para usar no avião;
globo terrestre em plástico; bandeja de plástico; fita de vídeo.

17. Retrato
Escultura em gesso; envelopes de negativos; folhas de negativos; rolos de slides; projetores de slides;
câmeras fotográficas diversas; câmeras de filmar super 8 e 16mm; fitas de vídeo; mostrador de slides
portátil.

18. Segurança
Escultura em gesso; talões de cheques; cartões bancários; chaves; chaveiros; cadeados; moedas
estrangeiras.

19. Inverso, universo perverso


Escultura em gesso; radiografias; exames de ressonância magnética.

20. Ser e ter


Escultura em gesso; cartões bancários; etiquetas; placa de metal com nome gravado; cartões de visita.

21. CiNeme
Escultura em gesso; fitas de vídeo; filmes super 8; filmes 16mm; Dvds.

22. Shill (sinagoga)


Escultura em gesso; solidéus; talit (xale de oração); livros de reza; castiçais; guardanapos decorados;
travesseiros; tefilin (filactérios).

23. Pa(i)trimônio
Escultura em gesso; plantas de imóveis; registros de imóveis; escrituras de imóveis; livros de engenharia.
A menor fenda
de uma vidraça ou de um vaso
pode trazer a ventura de uma grande lembrança
os objetos nus
mostram sua fina aresta
cintilam de repente
ao sol
mas perdidos na noite
se fartam assim muitas horas
longas
ou breves.
Jean Foullain
A fotografia é o registro da memória
Sozinho, na casa fechada, com um
objeto eleito como companheiro de
solidão, que segurança de ser na
simples existência!
G.Bachelard

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