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ENSINO E BIBLIOTECA: DIÁLOGO POSSÍVEL 63

ARTIGO

Ensino e biblioteca: diálogo possível

Teaching and library: a possible dialog

César Augusto CASTRO1

RESUMO

Análise da trajetória histórica da relação ensino e biblioteca. Enfoca-se a


contribuição das bibliotecas dos jesuítas e as maneiras pelas quais estas
serviram para atender suas funções educacionais e catequéticas. Trata-se das
transformações no diálogo biblioteca e ensino com a chegada da família real e
o fortalecimento do mesmo nas últimas décadas na Segunda República e o
envolvimento da classe professoral. Discute-se a relevante contribuição dos
escolanovistas para a criação de bibliotecas escolares no Brasil. Analisa-se o
papel das bibliotecas no período populista. Conclui-se que o diálogo escola e
biblioteca depende sobremaneira do momento histórico, político e social, que
pode constituir-se em relações de plena efervescência ou de total superfi-
cialidade.

Palavras-chave: biblioteca escolar, história das bibliotecas, relação ensino e


biblioteca.

ABSTRACT

An analysis of the historical trajectory of the relation between teaching and library.
Focussing on the contribution of the Jesuit libraries and the way it helped its
educational and catechetical functions. It is also considered the transformation

1
Professor, Departamento de Biblioteconomia e do Mestrado em Educação, Centro de Ciências Sociais, Universidade
Federal do Maranhão – UFMA. Av. dos Portugueses, s/n, Campus do Bacanga, 65080-000, São Luís, MA.
Brasil. E-mail: ccampin@terra.com.br
Recebido para publicação em 28/4/2003 e aceito em 10/9/2003.

Transinformação, Campinas, 15(1):63-72, jan./abr., 2003


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in the dialog between library and teaching since the royal family arrival and the
strengthening of it in the past decades during the Second Republic, and the
tutorial category involvement. It is discussed the important contribution of the
“escolanovistas” for the creation of libraries in Brazil. Also analysing the role
of the libraries during the Populist period. It is concluded that the dialog
between school and library depends on the historical, political and social
moment, that consists of a relationship of absolute effervescence or total
superficiality.

Key words: school library, history of libraries, relations between teaching and
library.

INTRODUÇÃO da educação, na perspectiva de compreender


como o ensino se processou em tempos e
Diante de todo o processo de transfor- espaços determinados. Ao fazermos esta incur-
mação que vem ocorrendo na sociedade brasileira são historiográfica e até para melhor delineá-la,
em todos os níveis, em especial, no campo transitamos, também, pela história cultural.
educacional, da educação básica à educação
Portanto, essa deliberada intenção é
superior, face aos atuais paradigmas advindos
inspirada na forma atual de praticar a história
com as tecnologias de informação e comunica-
que é justamente mostrar a possibilidade do
ção, o conceito de escola e de biblioteca tem
diálogo entre um dos objetos menos tratados na
sido (re)significado. Escola entendida como o
história da educação e, por que não afirmar, na
espaço de mediação e troca de conhecimentos
história da biblioteconomia: a instituição
e de (re) construção do saber e a biblioteca como
bibliotecária. Este velho objeto pode ganhar
centro convergente de informação que cumpre
novas dimensões, novos diálogos, na medida em
um papel essencial na aprendizagem dos alunos,
que traz à tona, na fronteira da pesquisa,
nas tarefas docentes, com o seu entorno social
aspectos ignorados ou secundarizados. O
e cultural.
interesse pelo diálogo entre ensino e biblioteca,
Tratarmos do diálogo entre escola e como instituições mediadoras de práticas
biblioteca é concebê-las como partes interde- culturais, é o “[...] exemplo mais claro da invasão
pendentes e indissociáveis. Daí, negarmos da produção da nova história cultural sobre o
qualquer tipo de classificação, tipologização ou campo tradicionalmente ocupado pela história
hierarquização comum, quando tratamos quer da educação” (NUNES,1992, p.153).
de biblioteca, quer de escola, na medida em que, Este detour, acreditamos, seja a ma-
em todos os níveis de ensino, do infantil ao neira de compreendermos o diálogo possível,
superior – em qualquer modalidade – formal, ensino e biblioteca, a partir de experiências
informal ou semi-formal – a biblioteca constitui- acumuladas e ações realizadas, sem, contudo,
se em um lugar de encontro e intercâmbio dos cairmos no reducionismo de vê-los como determi-
saberes professados e dos produzidos por nísticos ou destituídos de intencionalidades que,
gerações passadas e atuais, em diferentes algumas vezes, extrapolam o campo educacional
contextos, armazenados em diferentes meios e e assumem status de discursos único e
transmitidos por diversificados canais. verdadeiros a serviço da classe dominante.
Para compreendermos o diálogo ensino Nesta perspectiva, construímos esse
e biblioteca, neste trabalho, recorremos à história texto sobre duas direções: da historiografia ao

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diálogo entre ensino e biblioteca; com base na clássicas. Em contrapartida, a vida dos santos
primeira, compreendermos este diálogo na e as Sagradas Escrituras eram leituras
sociedade atual. obrigatórias por todos os alunos e constituíam a
maioria dos livros das bibliotecas ( LESSA,1946;
AUTO, 1973).
Acordes do diálogo entre Ensino e Com a expulsão dos jesuítas, em 1759,
Biblioteca os colégios são fechados, as bibliotecas desa-
parecem e os livros ganham outras finalidades,
No Brasil, desde os jesuítas que insti-
por exemplo, como papel de embrulho (MORAES,
tuíram os primeiros sistemas de ensino, têm-se
1979). Esse quadro se transforma, a partir de
notícias de bibliotecas que serviam de suporte
1808, com a criação da Biblioteca Nacional, com
às atividades docentes e catequéticas (MO-
a instalação da Imprensa Régia, com a expansão
RAES, 1979). Os primeiros impressos, material
da oferta de ensino primário e secundário e com
básico do processo ensino-aprendizagem, por
a criação dos primeiros cursos superiores no
sua insuficiência, eram copiados à mão pelos
Brasil, o que marca a ampliação das bibliotecas
membros-docentes da Ordem, de modo a
escolares e o aparecimento das primeiras
atenderem às necessidades de leitura e escrita
bibliotecas universitárias (ELLIS,1975).
(LEITE,1950). Estas foram as primeiras obras
de cunho didático que possuíram os estudantes O diálogo ensino e biblioteca expan-
brasileiros. diu-se no país, nos momentos de desenvolvi-
Pela escassez de livros na Colônia e as mento econômico, cultural e político e, a reboque
dificuldades financeiras da Companhia de Jesus, destes, o educacional.
os acervos das bibliotecas dos colégios eram As [...] bibliotecas florescem
“esmolados”, isto é, doados à biblioteca quando geralmente em sociedade em
da morte de algum padre. Esta dificuldade que prevalece a prosperidade
inviabilizava qualquer tipo de empréstimo aos econômica, em que a população
escolares, pois acreditavam que “para arruinar-se é estável e instruída.[...], onde há
em pouco tempo uma biblioteca, basta emprestar grandes áreas urbanas e onde o
os livros” (MORAES,1979). Esse fato propiciou comércio livreiro está bem
a ordenação, em 1589, de todos os livros existen- organizado (GOMES, 1983, p.34).
tes nas bibliotecas dos colégios, “[...] estivessem Os responsáveis pela criação e zelo
todos em ordem e numerados da ‘banda de fora’, dessas bibliotecas eram geralmente pessoas
para que facilmente se saiba quando falta algum” moral e intelectualmente respeitadas, em
(MORAES, 1979). especial, professores.
Esse controle não se dava somente para Ao tratarmos do diálogo ensino e
evitar danos e furtos, mas, principalmente, para biblioteca, na Primeira República “[...] não se
se saber quais livros deveriam ser lidos pelos
pode deixar de ter em mente que essas bibliote-
alunos, de maneira que obras obscenas e
cas não se constituíram mérito do governo, mas
heréticas, prejudiciais à edificação e aos bons
de alguns professores idealistas que lutaram
costumes, eram eliminadas ou corrigidas antes
para fazer vingar a idéia de biblioteca” (GOMES,
de serem incorporadas ao acervo da biblioteca.
1983).
Dentre essas obras proibidas, encontravam-se
as poéticas e as escritas em romance, pois Contudo, as bibliotecas e escolas, de
causavam devaneios nas mentes dos jovens e todos os níveis, prescindiam de materiais bi-
obstáculos ao cultivo do latim e das obras bliográficos pela quase inexistência de um

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comércio e indústria livreira no país que subsi- 30, quando os escolanovistas, notadamente
diassem as iniciativas desses professores, em Lourenço Filho, Fernando de Azevedo e Anísio
criarem e manterem o diálogo ensino e biblioteca. Teixeira, ao empreenderem reformas no ensino
O idealismo desses professores pode ser do Distrito Federal, defendem a idéia de que
evidenciado em diversas obras publicadas em ensino e biblioteca não se excluem, comple-
vários períodos. Neste texto, ilustramos um tam-se. Estes educadores foram influenciados,
trabalho de Raspantini, publicado na Revista em relação ao diálogo escola e biblioteca, pelas
Educação, em 1935 e o livro O Ensino em São idéias de Lorenzo Luzuriaga, Manuel Barroso e
Paulo, de autoria de José Feliciano de Oliveira, Guimarães Menegale.
publicado em 1932. O primeiro defendia a idéia Luzuriaga (1927), no texto Bibliotecas
que: Escolares, trata a biblioteca como um trabalho
As bibliotecas desempenham, de ação pedagógica na escola, cujo papel é
conjuntamente com os labora- despertar o interesse das crianças pelos livros,
tórios de química, gabinetes de pelas leituras livres e espontâneas, servindo de
física, museus, observatórios complemento e afirmação ao trabalho docente.
astronômicos e outros estabele- Barroso (1934) em La Biblioteca en la Escuela,
cimentos científicos, vasto campo aborda a importância que as bibliotecas escola-
propício às elucubrações de res têm na Educação Nova e traz sugestões que
todos que consideram ‘o gosto deveriam ser observadas pelos professores, para
das coisas intelectuais’ como
incentivar o trabalho pedagógico na biblioteca, a
parte integrante da vida...
exemplo da criação de associação de leitores,
(RASPANTINI, 1935, p.5).
incorporação de discentes na direção e gestão
Mas é em Oliveira (1932, p.21), que o da biblioteca, conferências, criação de uma
idealismo do diálogo entre ensino e biblioteca é revista criada e mantida pela biblioteca e
mais incisivo e mostra o seu desapontamento organizada por professores e alunos e promoção
com este diálogo: de atividades artísticas e culturais. Menegale
De mim que tive por cinco annos (1932), em O que é que deve ser a Biblioteca
uma biblioteca [da Escola Pública, alerta para o fato de que não havia mais
Caetano de Campos] bem razão para vedar o acesso das crianças à
carpintejada, bem torneada, com biblioteca; cabia aos professores incentivarem o
galerias em todos os seus seu uso, mediante estratégias para incrementar
commodos, apesar do espaço a literatura infantil na biblioteca e em sala de
pouco amplo em que ella foi
aula.
colocada. Pouco amplo para
minhas ambições [de] uns dez A influência dos escolanovistas contribui
mil volumes, que ahi devem estar de modo significativo no fortalecimento do
(se as traças não os devoraram, diálogo entre ensino e biblioteca, tanto para
como ia dolorosamente verifi- atender aos alunos no processo de aprendi-
cando, nos últimos annos que zagem, como para auxiliar na formação de
passei na Escola, depois que professores.
deixei de ser bibliotecário).
Ao assumir a direção geral da
Todavia, o número de bibliotecas dos Instrução Pública do Distrito Fe-
estabelecimentos de ensino, apesar de amplia- deral, Fernando de Azevedo, entre
das, restringiam-se em guardar e conservar outras coisas, preocupou-se em
livros, quadro que sofre alteração na década de organizar bibliotecas escolares.

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A partir de 1928, cada escola era formado por livros em diferentes idiomas e
primária carioca ficaria obrigada com periódicos nacionais e estrangeiros.
a manter duas bibliotecas: uma
Destaca-se, também, na gestão deste
para os alunos (as) e outra para
professores(as). [...] Trimestral- educador, a ampliação da biblioteca do Instituto
mente, o responsável pelas de Educação tendo por objetivos estimular
bibliotecas, geralmente um(a) práticas leitoras de professores e contribuir na
professor(a) da escola, auxiliado aquisição de conhecimentos através da
por alunos(as), tinham por investigação e da pesquisa que eram seguidas
incumbência efetuar uma estatís- com debates e análise acerca do material
tica dos livros de preferência do coletado. Além disso, para assegurar a freqüên-
corpo docente remetendo à cia dos alunos foi providenciado, a partir do Ciclo
diretoria o mapa do movimento Complementar, que nos horários escolares
bibliotecal (VIDAL, 2000, p.13). estivessem previstos tempos destinados à leitura
Enquanto Fernando de Azevedo lança as na biblioteca. Toda essa movimentação em torno
bases para a organização de bibliotecas nas da relação biblioteca e ensino dava-se em função
escolas cariocas, Anísio Teixeira, ao substi- de o ensino centrar-se em seminários, portanto,
tuí-lo na direção da Instrução Pública, deu-lhe a pesquisa bibliográfica “como forma de aquisição
maior impulso, ao criar a Biblioteca Central de de conhecimentos transparecia nos programas
Educação (BCE), em 1932, a Biblioteca Infantil, da Escola de Educação (VIDAL, 1995) com
em 1934 e ao ampliar o acervo da Biblioteca da especial significância”.
antiga Escola Normal. Nunes (1987, p.354), O processo ensino-aprendizagem cen-
quando trata da gestão de Anísio Teixeira, afirma trado na biblioteca não prescindia de investi-
que: mentos financeiros anuais significativos que nem
[...] a ênfase na especificidade do sempre eram disponíveis. Essa dificuldade era
espaço escolar levava a gestão compensada pelas doações de particulares,
de Anísio Teixeira a considerar instituições bibliotecas públicas e por intercâm-
com especial atenção as bi- bios com outras bibliotecas (CARVALHO; VIDAL,
bliotecas, tão ou mais importan- 2000).
tes que o rádio, na obra de ‘des-
Com o Estado Novo, toda esta movimen-
bravamento moral e intelectual’
tação em torno do ensino centrado na biblioteca
que a geração de educandos e
encerra-se. A censura instala-se no Instituto de
reformadores acreditavam reali-
Educação, em especial, na biblioteca, por acre-
zar.
ditarem que no seu acervo havia livros subver-
A Biblioteca Central de Educação tinha sivos, ou seja, todo o empenho de Anísio Teixeira
como objetivo coordenar e orientar a distribuição deixara, posteriormente, de existir.
de livros para os estudantes e oferecer aos Segundo Vidal (1995, p.143),
professores da rede pública melhores condições
O rigor no combate a ideologias
de aprimoramento profissional e cultural, além
‘subversivas’ dirigiu a ofensiva
de funcionar como estimuladora das atividades
contra o livro. Em 1939, o secre-
das bibliotecas e cinematecas criadas nas
tário geral da educação, José Pio
unidades escolares. Mesmo funcionando com Borges de Castro, realizou o
precariedade, prestou serviços relevantes à expurgo de 6.000 volumes das
comunidade escolar como cursos de idiomas e bibliotecas escolares [cariocas]
uso de aparelhos cinematográficos. Seu acervo (‘pejadas de livros inconvenien-

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tes’), e propôs um concurso de tos de Cultura Popular (MCPs) e


livros infantis visando à ‘exalta- o Movimento de Educação de Ba-
ção das qualidades distintas das se (MEB) formam os grandes
almas nobres, probas e pa- protagonistas das ações de vá-
trióticas'. rias tendências e de grupos de
esquerda [liberais progressistas,
Paralelo à censura aos livros e às
esquerdas marxistas, social- de-
bibliotecas, Getúlio Vargas incentiva e
mocrata, esquerda-cristãs, etc.]
implementa a política assistencialista de
preocupados com a problemática
distribuição de livros às escolas e às bibliotecas cultural das classes trabalha-
públicas, através do Instituto Nacional do Livro doras.
(INL).
No bojo desse processo de redemo-
Com atribuições diversas, o INL assume cratização do país, na promoção da cultura e da
o papel de disseminador, produtor e coordenador educação popular, o diálogo entre biblioteca e
das políticas para as bibliotecas escolares e escola reacende, alicerçado na Pedagogia
públicas. Certamente, neste campo, a sua Libertadora freireana, que objetivava libertar o
atuação foi mais relevante, apesar do momento povo de seu tradicional mutismo político, social
político autoritário, moralizador em que são e cultural resultante de uma “educação bancária”
criadas as bibliotecas ligadas aos Centros que se caracterizava como excludente,
Cívicos, cuja finalidade era “[...]despertar a verbalista, memoricista, alienadora, a serviço de
comunidade para participação da vida cultural uma estrutura burocratizadora, anacrônica e
[...] com vistas à integração social, à elevação alheia aos problemas circunstanciais dos
do nível educativo e cultural, conseqüentemente educandos.
influindo no desenvolvimento econômico e na
A Pedagogia Libertadora insistia
segurança nacional” (ARAÚJO, 1991, p.67).
na idéia de que todo ato educativo
Com a deposição de Vargas, ocorrem é um ato político e que o educador
vários movimentos para redemocratização do ‘humanista revolucionário’, ‘om-
país: os partidos de esquerda são (re) breado com os oprimidos’, deve-
organizados, crescem os movimentos populares, ria colocar sua ação político-pe-
aumenta a oferta de cursos gratuitos de jovens dagógica a serviço da transforma-
ção da sociedade e da criação
e adultos e a defesa da escola pública que
do ‘homem novo’. Essa educa-
culminou com aprovação da Lei de Diretrizes e
ção, ao contrário da ‘educação
Bases da Educação Nacional (LDBEN) 4024/61
bancária’, deveria problematizar
(RIBEIRO, 2000, p.47).
as situações vividas pelos edu-
Sobre a efervescência ideológica nos candos, promovendo a passa-
quatro anos da década de 60, afirma Ghiraldelli gem da ‘consciência ingênua’
Júnior (2000, p.120-121) que: para a ‘consciência crítica’ (GHI-
RALDELLI JÚNIOR, 2000, p.24).
[...] cresceram organizações que
trabalharam com a promoção da Escola e a biblioteca, nesse período,
cultura popular, a educação po- ocupam papel de destaque no processo de
pular, a desanalfabetização e a desalienação popular, através da oferta de
conscientização da população amplos e diversificados materiais de leitura, tanto
sobre a realidade dos problemas nas ações desenvolvidas pelo Movimento Eclesial
nacionais. Os Centros Populares de Base (MEB), pelos Centros Populares de
de Cultura (CPCs), os Movimen- Cultura (CPC) como pelos Movimentos de Cultura

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Popular (MCP). Entretanto, parece-nos que foi rasga-rasga de livros. Ainda a propósito, os
na Campanha de Pé no Chão Também se jornais fizeram publicar seguidamente matérias
Aprende a Ler, realizada em Natal, por iniciativa sobre os livros apreendidos” (GERMANO,1989,
de Djalma Maranhão, prefeito desta capital, que p.159).
o diálogo biblioteca e ensino foi mais significativo Durante a ditadura militar, o diálogo ensi-
e intenso (CASTRO,1999, p.71). no e biblioteca assume conotações diferentes
As bibliotecas ocuparam um espaço ao momento anterior; agora volta-se para a
relevante em toda essa campanha, posto que acomodação e para a alienação sócio-informa-
foram criadas inúmeras delas, nas mais diferen- cional, igualando-se ao período ditatorial de
tes localidades e nas escolas desta Capital. Vargas. A partir de então, a distribuição de livros
Funcionavam nos acampanhamentos, em para as bibliotecas públicas e escolares é
sistema de rodízio, através de pequenas caixas- assumida pelo INL, pelo Movimento Brasileiro
estantes (para atender professores e alunos), em de Alfabetização (MOBRAL) e, principalmente,
torno das quais eram realizados círculos de pela Comissão do Livro Técnico e do Livro
leitura. “No primeiro caso [aos professores] Didático (COLTED).
tratava-se de estudar e discutir, mais especifica- A COLTED, subordinada ao Ministério de
mente, questões atinentes à educação, como Educação e Cultura, apoiada pelo Sindicato
forma de aperfeiçoar a formação de grupo de Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e pela
professores; no segundo caso [aos alunos], United for International Develepment (USAID),
tratava-se de realização de leitura, em comum, tinha como objetivo executar o Programa
de literatura infantil”(GERMANO, 1989, p.17). Nacional do Livro Didático, ou seja, adquirir livros
Além dessas bibliotecas, foram instala- das editoras e distribuí-los para as bibliotecas
das as chamadas bibliotecas populares que “[...] escolares e universitárias. Todavia, a COLTED
funcionavam bem mais como postos de contribui muito mais para ampliar os lucros das
empréstimo de livros do que bibliotecas mesmo, editoras do que para dotar escolas e bibliotecas
porque não havia espaço suficiente” (GERMANO, de recursos bibliográficos necessários ao
1989, p.117). Essas bibliotecas eram pequenas processo de ensino e aprendizagem. Esse fato
barracas de madeira que se mantinham abertas fez com que observadores internacionais
o dia e a noite, cada uma com uma média de 2 solicitassem ao governo federal a sua extinção,
mil livros e um número de empréstimo diário de em 1971.
80 a 120 livros, além do que cada biblioteca É nessa década que o diálogo ensino e
dispunha de um jornal mural fixado na sua parte biblioteca, em toda a história do Brasil, é objeto
externa, o que possibilitava à população carente da mais forte repressão e censura. Censura que
o acesso à leitura pública dos jornais. rasteia o que deveria ser lido, estudado ou
Tanto as bibliotecas públicas quanto as pesquisado, da educação infantil à educação
bibliotecas escolares, instaladas por esta superior. O Decreto 1077, de 6 de janeiro de 1971,
Campanha, finalizaram quando da ditadura militar. do Ministro da Justiça Alfredo Buzaid, determi-
Elas foram abandonadas e seus acervos tiveram nava que a divulgação, leitura e acesso a livros e
os mais diferentes fins, pois se tornaram alvo periódicos (nacionais e estrangeiros), em todos
principal da repressão das “forças militares que os níveis de ensino e em todas as bibliotecas,
penetraram nas bibliotecas [do centro de forma- ficariam subordinados à verificação prévia da
ção de professores] e provocaram autêntico Polícia Federal a quem caberia analisar a

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existência de matéria ofensiva à moral e aos bons educacional brasileiro, outros níveis de signifi-
costumes. cância que partem, em princípio, dos próprios
Com a abertura política que se processa gestores que atuam no processo de formação e
lentamente, a partir da década de 80, o diálogo de informação - alunos, bibliotecários e professo-
entre ensino e bibliotecas não reacendeu da res, dentre outros.
mesma maneira quando do término dos períodos Bibliotecas que se transformem em um
ditatoriais anteriores. Projetos desconexos e sem centro dinâmico no processo de ensino e aprendi-
continuidade têm sido engendrados pelo Estado, zagem e não em um simples apêndice necessá-
o que nos autoriza a afirmar que, no âmbito rio. Processo de transformação que converge para
governamental, não há qualquer ação efetiva para a formação acadêmica do bibliotecário, onde as
o fortalecimento do diálogo entre ensino e bibliotecas são tratadas como receptáculos de
biblioteca. Através de um discurso pseudo-mo- informação cujos procedimentos para tratá-las
derno vivencia-se, atualmente, uma deturpação e disseminá-las constituem-se no cerne do
do conceito de ensino, de escola e de biblioteca, processo de ensino e aprendizagem. Esse
agora traduzido sob o binômio máquina-infor- processo deveria ser concebido como um tempo,
mação. um contexto, uma organização e vida. O bibliote-
cário, ao invés de ser considerado um simples
processador de informação, deve tornar-se um
CONSIDERAÇÕES FINAIS mediador entre o universo da informação
produzida em diferentes tempos e espaços, a
Com base nos referenciais históricos
sociedade global e a do seu entorno.
discutidos anteriormente, podemos afirmar que
o diálogo ensino e biblioteca assumiu diferentes Uma forma possível de mudança do
possibilidades de concretização, de acordo com paradigma entre ensino e biblioteca que,
o momento sócio-histórico, político e educacional historicamente se caracteriza pelo distanciamen-
por que passou a sociedade brasileira em suas to, seria a inclusão nos Cursos de Pedagogia, e
diferentes épocas. Isso nos possibilita compreen- áreas correlatas, de conteúdos relativos ao
der este diálogo, no presente contexto, da So- campo da Biblioteconomia e, neste, dos saberes
ciedade da Informação, sem, contudo, deixar- relativos à Educação. Desse modo, acreditamos
mos de vê-lo como alvo de constantes e possíveis que os professores e bibliotecários, ao intercam-
rupturas diante da instabilidade, de toda ordem, biarem saberes e práticas, assumirão outras
posturas frente à escola e à biblioteca.
ocorrida no país.
Isso significa uma mudança na con-
Ao refletirmos sobre este diálogo na
cepção, no papel da biblioteca e da escola e no
Sociedade da Informação, é preciso, a priori,
modo de intervenção do bibliotecário no processo
entendermos as dicotomias existentes nela e o
de ensino e aprendizagem e do professor, nas
processo de descontinuidade sócio- histórica da
políticas, desde as mais simples às mais com-
relação escola e biblioteca. Cabe-nos perguntar:
plexas, das Unidades de Informação. Evidente,
que tipo de escola e biblioteca queremos? Qual
que esta ação assume diferentes delineamentos
o papel que devem assumir no contexto social?
e proporções, mediante o tipo de biblioteca, o
E que tipo de homem e de sociedade almejamos
nível de ensino, a natureza da instituição onde
formar?
esta se insere e o público com quem mediatiza
Para que isso se concretize, escola e informação. Todavia, o diálogo ensino e biblioteca
biblioteca precisam assumir, dentro do contexto se tornará possível quando esta for concebida

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como um lugar de aprendizagem, de encontro e de construção de uma sociedade justa e


comunicação integrada ao processo pedagógico, igualitária, forças contrárias terão maior
que possa apoiar os programas de ensino e dificuldade em romper os elos estabelecidos.
aprendizagem e estimular as trocas educativas, As descontinuidades históricas deste
que assegurem o acesso a uma variedade de diálogo foram rompidas, certamente porque estes
recursos e serviços informacionais, independente profissionais, apesar de exercerem suas
do suporte, formato, ou meios e que possa atividades em um mesmo contexto, atuavam de
proclamar a idéia de que a liberdade intelectual maneira isolada: um preocupado em apenas
e o acesso à informação são indispensáveis à transmitir conteúdos escolares e o outro em
aquisição de uma cidadania responsável e executar atividades técnicas, na esperança de
participativa. que aquele, ao recorrer à biblioteca, reconhe-
Apesar de termos consciência de que cesse o seu esmero com o livro, com os catálo-
este diálogo não é neutro nem destituído de gos. Agora, com os sistemas automatizados, é
intencionalidades, acreditamos que, se profes- estabelecido mais um diálogo de reconheci-
sores e bibliotecários conceberem a escola e mento de competência do que um diálogo de
biblioteca como partes importantes no processo ação – reflexão – ação.

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