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“REGIS DE MORAIS (Org.

)
Pontifícia Universidade Católica de Campinas — PUCCAMP
Universidade Estadual de Campinas — UNICAMP

SALA DE AULA |
Que espaço é esse? |

LUo S
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A TURMA DE TRÁS
CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (%)

Na cabeça de quase todo mundo a sala de aulas

( professor
admite espacialmente uma única oposição:
versus o lugar coletivo dos alunos. Necessá-
a mesa do

ria ou perversa, esta divisão ancestral dos lugares de


ofício que ocupam esses cúmplices e rivais ha sala de
aulas tem sido ultimamente posta em questão, seja para
criticar o verticalismo autoritário que ela enuncia, seja,
simplesmente para lembrar que chegou afinal o tempo
de inovações arquitetônicas e pedagógicas quanto ao
assunto.
Creio que a sala de aula é um. | espaço múltiplo quie
sempre comportou outras Telações e. oposições impor-
tantes e, no entanto, esquecidas por não serem possi-
velmente tão visíveis, do ponto de vista “da ortodoxia,
pedagógica. É a respeito delas que desejo falar aqui. Mas
pelo fato de que fui habitante: costumeiro de uma, de
suas. partes mais desvalorizadas e também porque. de-
sejo falar a partir de algumas memórias absolutamente
pessoais, permitam que mê apresente.

Eu, mau aluno


Meus pais se encontraram no Rio de Janeiro. Minhá
mãe veio de uma família gaúcha, pobre, de São José do
(*) Doutor em Ciências Sociais pela USP, professor da UNICAMP, poeta,
autor de muitas obras antropológicas, pedagógicas e literárias,

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Norte, que a despeito do ita próxima à fronteira
meus tempos de fregiientador da “turma de trás” nas
com o Uruguai. Seu pai era farmacêutico e delegado.
Conta minha avó que ele “gastou tudo na política”.
salas de aula. Falo, portanto, de um usuário também
das antigas expulsões de classe, das listas de suspensão,
Quando morreu ela vendeu o que sobrou, pegou um na-
dos candidatos costumeiros a “conversas com .o dire-
vio com os quatro filhos e veio viver entre parentes no
Rio de Janeiro. Foi dona de pensão (de muito respeito)
tor”, do - “pessoal da segunda época” e dos eventuais
“reprovados”.
no Leme e minha mãe trabalhou desde jovem. Meu pai
nasceu em Mogi das Cruzes. Seu pai foi engenheiro da Se narro sem muitos detalhes alguns momentos de
Central do Brasil e se cnamava Joaquim Augusto Suza- minha inesquecível péssima trajetória de estudante de
no Brandão. Embora não tenha feito nada de impor- “primário e ginásio”, é para emendar, a partir da segun-
tante, acabou dando o nome à estaçãozinha que muitos da parte desta conversa nada exemplar sobre a sala de
anos depois virou a cidade de Suzano, em São Paulo. Os aula, algumas reflexões também nada ortodoxas. justa-
“paulistas” de minha família vieram aos bandos para mente sobre ela.
o Rio de Janeiro e se estabeleceram em Copacabana, Não me lembro bem de todos os colégios por onde
onde eu nasci em 1940 e onde vivi uma infância abso- andei. Foram muitos e de todos os tipos. Primeiro estive
lutamente feliz e mal comportada até os 10 anos, quan- no Colégio Paulista, que parece que ficava em algum
do fui para a Gávea, viver uma adolescência melhor e canto perto da Praia de Copacabana. Dele só me lembro
menos alegremente confessável ainda. de algumas “festinhas” que, sendo escolares e, ainda
Fui muito cedo para a escola, naquele tempo, creio por cima, “paulistas”, nunca foram muito animadas.
que por volta de cinco ou seis anos. Estudei em vários Depois andei pelo Guy de Fontgaland, também em Co-
colégios e até perto dos 18 anos fui um típico “mau alu- pacabana. Um colégio católico extremamente caridoso.
no” carioca em todos eles. Depois, até hoje não sei bem Ainda fui do tempo em que aluno com boletim execrá-
porque, eu me converti. De um ano para o outro virei um vel ajoelhava em caroço de milho no estrado do pro-
estudante exemplar e foi assim que fiz o meu Curso fessor. Vinha um padre e ia distribuindo os. boletins
Clássico no Colégio Andrews, na Praia de Botafogo (ele por ordem decrescente de classificação. Mês sim, mês
está lá do mesmo jeito, pintado com o mesmo cor-de- não, ele acenava pra mim o último boletim e me apon-
rosa e branco até hoje). As muitas peripécias da vida tava o estrado maldito. Mas o colégio tinha uma prática
universitária entre 1961 e 1966 me devolveram a uma invejável. No fim do ano, dos primeiros aos últimos alu-
relativa lucidez, e eu vivi os meus anos de “PUC do Rio” nos, todos ganhavam alguma, coisa. Os três primeiros
a meio caminho entre o que havia sido antes e o que medalhas de ouro; até os sete seguintes, medalhas de
fora depois de minha virada de vida. prata; até perto dos cinco últimos, medalhas de bronze
(ganhei delas, orgulhosamente, uma vez); a turma da
Mas como os “bons alunos” são exemplarmente cha-
lanterna ficava com pequeninos santos amarrados em
tos e em geral não têm nada para contar de efetivamente fitas verde-e-amarelas. Eu tinha uma pequena coleção
bom a respeito de sua vida de estudante, quero falar dos
delas. Depois fui para o colégio São Bento, no centro da
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cidade. Uma glória para a família, mas por pouco tem- “sozinho, dono dê mim, arriscado a tocar com as maos às
po, porque nele eu colecionei todas as punições dignas estrelas... isso fazia o meu estilo.
de uma memorável instituição beneditina. Ao final do Vivi na EPC Ar, onde fui o “5621 — Brandão”, um
meu segundo ano ali, meus pais receberam uma carta não
tempo de trotes violentos e brincadeiras entre nos
gentil que pedia a eles que por favor não me rematri- a
menos furiosas. Tínhamos que ser duros e “machos
culassem lá no ano seguinte. Era a forma mais polida
todo o custo. Não sei se consegui, mas aprontei de novo
do que, ao tempo, se cnamava de “expulsão da escola”.
grandes farras, dentro e fora das salas de aulas. Às pu-
Sorte minha, não fosse o imenso pesar de meu pai, que
nições na escola eram as seguintes: sustamento (uso
hunca se acostumou a ver no filho o espelho invertido
poder sair dos limites da EPC Ar no fim-de-semana);
do que ele foi quando estudante.
detenção (não poder sair nem do reduto dos alojamen-
Sorte, porque eu fui aceito no Colégio Andrews. Fi- tos nos mesmos dias); prisão (ficar detido em uma, casa,
nalmente um colégio leigo, com menos espaços e cantos especial, nas horas livres e durante à noite, tantos dias
escondidos para as farras ocultas, mas ao mesmo tempo úteis ou fins-de-semana quanto atingisse a pena indis-
sério e mais tolerante. Pela primeira vez, também, eu cutível do oficial de dia). Fui useiro das três. Até 20 dias
ns qnd
ingressava em um “colégio misto”, uma das melhores de prisão o aluno permanecia no “bom
invenções da pedagogia to”, ao completar o 21.º ingressava, no insuficiente
ocidental. Estudei lá vários
comportamento” (“insulfa”, para os intimos ), ao a
anos; dei muito trabalho, bem sei, mas aos trancos e às

pletar 30 dias “de cadeia”, o aluno ingressava no “mau


TI]DJ——————

custas de “segundas épocas” ia passando e completan-


excluído da,
e

do aos poucos o “ginásio”, Saí um ano antes para ir comportamento” e era automaticamente
estudar de novo em Copacabana, agora no Mallet Soa- escola”. Terminei o meu primeiro e único ano “de mi-
res, porque havia ali, no começo da noite, um “cursinho
litar” com 23 dias de cadeia e reprovado (“répi”, também
para os íntimos) em matemática, física e espanhol (o
preparatório” de candidatos aos colégios militares das
professor era maluco).
três armas: o “Naval”, as academias do exército e a
= o mem [DD

Escola de Cadetes do Ar, em Barbacena. Qualquer das punições usuais era terrível, não pela
Ninguém na família conseguiu até hoje explicar “mancha” que deixava “na ficha do aluno”, mas por-
que depois de uma semana duríssima, com aulas intra-
como um vagabundo de carreira, como eu, conseguiu
gáveis, ginásticas para animais e ordens unidas absolu-
ser aprovado para o Colégio Naval e para a EPC Ar.
tamentê aborrecidas, o paraíso era a pequena e cati-
Minha parentela sempre gostou muito de ter engenhei-
vante Barbacena, com tantas moças tão bonitas e com
ros, médicos e oficiais de marinha. Mas eu consegui ser três “casas de zona” razoáveis, para o poder aquisiti-
moderadamente rebelde uma vez mais e acabei resol- vo de alunos que, como eu, fora o “soldo mensal” do
vendo ir para a “aeronáutica”, contra a vontade de governo, recebiam muito pouca “ajuda de casa”. Os seus
todos. Acho que era o mais lúcido da família. Jamais nomes eram: Casa Verde, Navio Negreiro e Cabana do
saberia comandar um navio, mas um avião lá em cima, Pai Tomás. Aos sábados saíamos vestidos de terno e
108 109
ponto de encontro
e (muitos voltavam nã t com “ camofas”, as “ moça
podíamos beber moderadament
ças s perdi
perdidas
das
muros detrás) e “ir à do lugar); frequentar os bailes do
glória do “porre,” pulando os
Hotelea PalaR ce E :
na enfermaria e pedir ao
zona”, Devíamos então passar
? , 1 E s la pr Ç :

“nrofil”. Era um pe
envelo
enfermeiro de plantão um
us, uma pomada profi- ar Nas féri a pipa prim
branco com uma camisa de vên eiro ano eu fráturei graves
imei
impressas e uma meia E
lática com as armas da república o tgulhando em um ribeirão em Ita-
s higiênicas para “antes, Dema Ena operação no Hospital. da Aeronáu-
folha: de papel com as instruçõe isso
e depois de”. Ninguém as seguia, porque e eses engessado e escapei da vida e do
durante
O profilático nós usáva- mn ne
seria uma verdadeira vergonha. fiquei bom, voltei lá e mergu-
a pala do quepe dos co- ra gar (agora com mais inteligência);
mos para bordar de molecagem
legas, na calada. da noite. Às cam
isas eram infladas como nica CA E o ita e, depois, guia de escala.
uma das três “casas”, Du olégio Andrews e me tornei, como disse
balões e enfeitavam os cantos de
que todo homem E no exemplar”, Inconformados com a
quando além de irmos a ela fazer “o mi
o sábado a “fazer zona na ança, os amigos queridos da Rua Cedro
faz”, resolviamos dedicar mei
ga por lá, dançar com Gávea, dizem até hoj Je
zona”, que consistia em peber pin
” 3:
i :
ue a
oas para algumas putas
Ego
do rio onde bati com a RARE Ra,
“as moças da casa” e soluçar mág
as melhotes conselhei-
mais velhas, reconhecidamente do
: Fiz o “clássico”
E no Andrews e, no últi
Qlti m
ojeto de Regimento j
ras da cidade. Não escritas no “Pr OS
pda ii cursinho” para, enredo E
Corpo de Alunos”, hav ia quatro regras básicas para, a es meses antes que tinha uma inteligência
ício”: 1.2) passar em
frequentadores “do baixo meretr Re e matemática, física, química e biologia, as
da Vila dos Oficiais (ca- as POR
silêncio e com respeito pela rua eq ca
dus concurso pata “filosofia
às três casas): 22) não
minho obrigatório para chegar m, ma nosano seguinte in
3.2) em absoluto, não apa-
provocar brigas com 08 civis; adresseSê E Curso de Formaçãoã de etodtogo
e Eee a a ;
se briga; 4.2) não pegar
nhar dos “paisanos”, caso houves 80 e passo metade do meu tempo “livre” a
era sempre obedecida. À.
doença venérea. À primeira E ndo “comuni munidades cami
bonesas” ”» de Goiás, Minas. é
tiga E R
segunda muitas vezes não. A
terceira era a menos per- São Paulo.
se corrigia com a confissão
doável, se ocorresse. A quarta
ntão e O confinamento na Eternizar o recreio
voluntária ao médico de pla
enfermaria até a cura completa. p : :
os. um bando de jo- | f ni ri antigos habitant es das últimas carteiras da,
Aos domingos saíamos fardad mi- RA
a quem então se per à, o melhor do colégio sempre foi “a hora
vens pássaros vestidos de azul, ras áreas gi (ah! Inesquecíveis bondes que iam do Plam
dg
tia estar apenas pelo centro da cidade ou out 5
dois cinemas familiares (O vea, arrebanhando, de colégio em colégio a
“de respeito”, ir a um dos
era “mal frequentado” e
Apolo só aos sábados, porque
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110
ntrada no colégio”, só mesmo a da
Pior que a hor a da “e e entre
na sa 1a de aul a”. Por isso sempre houv
“ent ra da o que era eia
mes findo
imo de trazer para ela Renas é moças puderani
eles o empenho seriss en as ha sala começar
“vida do recreio de aúla, ; com o no Andrews
possível do espaço € da a + não era recomendável
ndrews ouou ho
hi
r coro isso a Ve a uma meniha ina ij il
Mas antes de desereve O habitar os redutos perversos
her óic os que OS ME ae a E perto da, “parede do
raro com ris cos es DANDO li”
que seria. útil a ni de glória maravilha,
compre en de ra m, cre io
ferencialmente dis
Pois da idade em que as meninas Porque sobretudo de-
corpo de alunos era di isa não terá | deixam de Ser coleti-
Muita co isa
paço da sala, naquele s tempos.
égios.
mudado em muitos col s
ão era, aleatória e era nele
Em alguns à distribuiç em que a vocação do
is facilidade, aquel es
que, com ma Va,
do estudo
aior do qu e o desejo do
er costumava ser m es individuais,
Possivel, se não pelo me
nos Perto de uma meni
imas carteiras, às vez na b it
Dn iadoanê pelas últ ijmeirceas” = para a quem se queria “n
amorar”, Os olhos vig
vam entãão as ca
outras vezes duplas. Fi , a quem à P 0 pie Gean TE é
as regras sexuais
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mpediam qualquer experi do tempo Pa
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rio ss” e € es tu
os alunos “se P
do pr of es so r € do quadro negro era SE as moças dos meus colégi ência mai E
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rioso que em alguns i os er
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mente indispensável, Cu ReAp Iata
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“pagou -passon”, inha até mendes, Co ue HOS colégi
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eram convocados à ! as que “deixavam nas-
ra. Os “bons alunos” id eram Sar a mão”, delícia impe
in ti mi da de co m O professor e OS nsável no Andrews
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a da me tade pa ú and a: Ens ae é Pessoas mais
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forçados à di st ri pu ir amigas “fora da sala”
Ai a adem do colégio ; costu e
égios e professores

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in cí pi o co lé gi os mi st os se paravam 08 meni na ee Sce no São Bento e na EPC
No pr à esquerda. :
ni na s, un s à di re ita da sala, outros lvertido. Havia jogos permi mit
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das me ão es colar à. guma em qu
e versasa alegres sob as vi
stas dos ins
mb ro de si tu aç Í petore
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Mas não me le a divisão de “cla
e” den- ntos ocultos — Parque Mas nos ore-
e ss
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s, mato, retiros e fu
.

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houvesse entre as me ndos de


nor
“caia na prova”, fingiam atenção por momentos, e até
muros no São Bento e na EPC do Ar, o amplo “canto do
a praticavam volta e meia. Bagunça pura e simples era
Banheiro” no Andrews — havia de tudo. Ali, se fumava
o mais arriscado, porque o mais visível e, portanto, pas-
às escondidas, ali se marcavam as brigas que a diploma-
sível de punição. Imitar um galo cantando, por exem-
cia da molecagem estudantil não conseguia resolver,
plo, soltar uma gaivota na sala, atirar bolinhas de papel
ali se liam os “livros de sacanagem” (não havia revisti-
nhas idem, naquele tempo) e volta e meia, alguém orga- molhado com saliva nã cabeça dos outros, levantar à
nizava até um “campeonato de punheta” (= masturba- tampa da carteira. (algumas tinham) e soltá-la, violen-
ção, ganhava quem gozava primeiro, sem truques, de tamente, levantar a mão e fazer uma pergunta absolu-
preferência). tamente imbecil ao professor, levantar do lugar e tazer;
A missão dos alunos de trás não era fácil. Trans- em cena, uma “palhaçada” inesperada, ete.!”
gredir com sabedoria as regras de “comportamento” es- A categoria “conversa fiada” era a mais usual e me-
tabelecidas pelos regimentos dos colégios para as salas díocre. Falávamos, todo o tempo, de tudo o que iião
de aulas, e cuidadosamente protegidas pela trindade fosse sério. Assuntos como futebol (havia ênormes riva-
maldita: diretores, professores, inspetores. Na aeronáu- lidades e nas segundas-feiras nada mais deplorável do
tica recebíamos o professor com um rápido e preciso que ser torcedor “de um time que perdeu”), sacanagem
levantar da carteira em posição de sentido, até que ele desbragada, tipos de meninas e modalidades de suas per-
comandasse: “à vontade”. À vontade coisa nenhuma: missividades (tinha gente que tinha listas de vários co-
silêncio absoluto, obediência e empenho no estudo. Nos légios das redondezas), namoros “(quando já andáva-
colégios religiosos, assim como na própria PUC do Rio,
quando o professor era padre, O recebíamos ficando de 1. (única). Mas já éramos uma geração decadente. Nossos pais na Rua Cedro
contavam, de seu tempo de estudantes, histórias absolutamente invejáveis.
pé e orando uma “Ave Maria”. Nos leigos simplesmen- Grandes conflitos entre colégios inteiros, como os do Pedro II versus Colé-
te ficávamos de pé, sem sentido e sem fé. gio Militar; grandes bagunças de recreio que envolviam quase todo O corpo
de alunos de um colégio inteiro (chegamos a fazer isso, moderadamente,
Mal sentados, enquanto os das filas da frente no Andrews); grandes algazarras de toda uma “classe”, que se insúrgia

abriam livros e cadernos, os das de trás começavam a


coletivamente contra a norma da ordem, por minutos gloriosos que, fossem,
ou contra um professor “carrasco”, Conto um caso exemplar, mas no final
praticar as artimanhas do prazer, combinadas desde da história traio os meus companheiros de destino escolar e louvo a inte-
ligência do professor em questão. Passou-se no Pedro II, nos seus melhores
antes, no intervalo, ou.resolvidas ali mesmo, ad hoc. tempos, segundo quem contou. Antes da aula de um professor de Mate-
Não sei bem como classificá-las, mas poderia tentar: mática (de resto, conhecidíssimo), a primeira do día, os alunos initrodi-
ziram por um portão de trás do pátio do colégio, um burro. Conseguirim
a) bagunça pura e simples; D) conversa fiada; c) jogos a custo colocá-lo no centro da sala de aula, no círculo que abriram Com
e diversões; d) transgressões intelectuais. Haveria mais o empurrar de carteiras. Ficaram espiando os acontecimentos futuros" pelas
frestas de janelas fechadas. O professor veio, viu o que, havia. Se se espan:
alguma? tou, disfarçou, Fez a chamada como de costume, escreveu no quadro nekro

Claró que não éramos perfeitos. Pelo menos os me-


a síntese da matéria e deu a aula inteira, palavra por palavra. Termihadá,
virou-se para o atento animal a quem dirigiu o ensino, todo .o fempo,; &
nos “incorrigíveis”, de vez em quando “copiavam a ma- disse: “agora você vai e avisa aos 'seus colegas que a aula de hoje é matéria
. para a prova de amanhã”,
téria”, principalmente quando se anunciava que ela
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-mos mais velhos e mais decadentes; alguns começavam tais das carteiras individuais e fazer movimentos para
a ficar quietos e até migravam pelo menos para a zona a frente e para trás. Esta era uma brincadeira chamada
neutra das “carteiras do meio”, por exigência de uma automovinho, perigosa e próxima à categoria “bagun--
eventual namorada “da mesma sala”), assuntos ligados ca”. Havia outras, mas não seria fácil lembrá-las.
a rivalidades entre grupos na sala ou no colégio, des- As “transgressões intelectuais” aumentavam à me--
mandos orais e ameaças de brigas entre dois colegas, dida em que íamos ficando mais velhos e sérios. Ler
ali mesmo, mas sempre adiadas para o recreio e reali- livros de sacanagem; fazer desenhos do mesmo teor (tive
-zadas nos cantos omissos ou no recanto do banheiro, no amigos que foram e serão por certo, ainda hoje, verda-
Andrews, com assistência e todo o ritual. Tais eram os deiros artistas no ramo), escrever “jornaizinhos” com
nossos assuntos de preferência. fofocas e malandragens que circulavam gostosamenite
Nos jogos e divertimentos é onde havia mais inven- entre nós (vocações promissoras terão começado ali),
tiva. Era mais ali do que em qualquer outra situação redigir bilhetes de gozação entre colegas, ou, mais sérios
que traziamos para a sala de aulas a continuidade do e às vezes até comprometedores, às meninas.
recreio. Havia jogos banais, “que até as meninas joga- Entre vítimas ou algozes, também os professores
vam”, como o “da velha” e semelhantes. Havia o futebol eram classificados pelo corpo de militantes da turma de
de carteira, que consistia em empurrar com petelecos trás. O mesmo ocorria com os funestos inspetores, quan-
uma bolinha de papel, ou um pequeno botão, em dire-. do eles ainda existiam em algum colégio, triste espécie
ção ao buraco das carteiras duplas onde, no tempo dos em extinção. Valia também para diretores e outros furi-
nossos avós, houve um tinteiro. Durante algum tempo, cionários diretos da hierarquia da ordem escolar.
no Andrews, inventamos um campeonato de “cravar” Havia os professores temidos, Duros e francamente
no chão as canetas, então de penas afiadas nas pontas punitivos, rigorosos quanto à disciplina, vigilantes im-
(pena de metal, nova geração!). O prejuízo era muito placáveis das “colas”, costumavam ser respeitados, e
grande e a coisa durou pouco. Alguns jogos eram coisa de
fazer “bagunça” ou colar em suas aulas e provas erá um ,
momento e duravam empolgadamente semanas ou até reconhecido ato de bravura, admirado em silêncio às
meses, como a “Batalha Naval”. Havia também cam- vezes até pelos alunos mais “aplicados”. No extremo
peonatos. Jogo de “terreno”: dividir com um traço oposto, havia uma categoria de professores tolerantes,
vertical a carteira dupla, marcar com tinta um dos seja porque eram, naquele tempo, emissários pioneiros
lados da borracha (também usada volta e meia para ser de teorias e atitudes de “atividade e participação”, seja
jogada com fúria na cabeça de algum “chato” das pri- porque simplesmente “não estavam nem aí” quanto à
meiras filas, que andasse nos dedando), jogá-la suave- questões de disciplina. Reservavam-se aos alunos dili-
mente no lado do inimigo; se ela caísse do lado marcado gentes das carteiras da frente e deixavam “o pau que-
você podia riscar uma fatia correspondente do terreno brar” do meio da sala para trás. Puniam moderadamen-
dele para o seu lado; ganhava quem deixava o outro te alguns desvios insuportáveis, mas em maioria eram
“sem terreno”. Colocar quatro lápis nas hastes horizon- hábeis em estabelecer uma relativa cumplicidade com
11%
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os “bagunceiros”. No limite oposto deste extremo, havia tolerante, “amigão”, bom de prova + bom professor +
até mesmo professores que, também moderadamente, de História ou Geografia. No entanto tive no Andrews
incentivavam certas pequenas indisciplinas individuais um duro e sábio professor de Latim e um sábio e tole-
ou coletivas. Pedagogicamente dividiam, então, com a rante professor de Química que raramente precisaváin
própria turma de trás, o ritual da transgressão. Alguns, “chamar a atenção” da turma de trás.
como um que se tornou famoso por muitos anos em
todo o Andrews, ritualizavam momentos segientes de
Em síntese, para os “maus alunos”, o tempo de salá
de aula sempre foi um dilema a resolver. Ele era neces-
“aula série” com os de “bagunça organizada”, e toma-
vam a seu cargo o controle da desordem, tornando-a sariamente dividido entre um mínimo de cumprimento
às tarefas escolares; um tédio infinito, quando o profes-
um momento fértil da vida da aula.
sor era temível e terrível o bastante para desafiar o
Alguns professores eram tidos como “bons”, mesmo nosso coletivo poder de transgressão (alguns ficaram
quando severos. Falo aqui, com respeito, da categoria de famosos em todo o Rio de Janeiro) e as atividades, orga-
sujeitos de docência, cuja capacidade de comunicar o nizadas e criativas, de transferência dos princípios e
saber da matéria era inteligente e atrativa o bastante práticas do “recreio” para a sala de aulas.
para sobrepor, ao interesse da transgressão, o da aten-
Aos olhos do observador formal (sempre uma amea-
ção coletiva. Não houve turma ou colégio por onde eu
ca nas diversas áreas da Educação) esta face tribal,
tenha passado que não congregasse professores de pra-
desbragada e não visivelmente estruturada, como o
ticamente todas as categorias, cujas diferentes mas
são as “práticas de ensino”, correm como inexistentes,
previsíveis formas de interação com os diversos tipos de
ou são simplesmente profanas e profanadoras o bas-
alunos, tornavam o rito das aulas uma coleção repetida
tante, para merecerem não ser consideradas. No en-
de situações pouco variantes. Tal como eles próprios,
tanto, na dinâmica cotidiana da sala de aula e mesmo
suas aulas eram também, desde as primeiras semanas
da vida do colégio, este conjunto absolutâmente orde- .

DA esaO in
letivas de estudo, classificadas e exercidas pelo corpo de
nado, regrado e criativo de práticas escolares, dutônoma

e
alunos. Havia as aulas chatas e severas; as severas, mas
e transgressivamente pedagógicas, interagia com as
interessantes; as livres e chatas; as livres e interessan-
“atividades planejadas”. Em boa medida, sempre foi da

-
tes; as intoleráveis e as de franca bagunça. É evidente
interação justamente entre esse lado livre e permissivo
que a composição dos termos dependia de mais fatores
da iniciativa discente, e os mecanismos pedagógicos de
do que a pura e simples “personalidade” do professor, controle docente, que a própria vida real da sala de aula
ou da qualidade afetiva de suas relações com o corpo de
RO
se cumpria como uma realidade social e culturalmente
alunos. Assim, por exemplo, era muito mais difícil uma existente, e não apenas pedagógica e formalmente pen- .
aula de História Geral ser “chata” do que uma de Mate- sada.
RA

mática. A pior combinação sempre foi: um mau profes- Alunos como eu fui durante muitos anos, eram em
sor + severo nas aulas e terrível nas provas + de Mate- pouco tempo classificados, seja na cultura oral dos pro-
mática. A melhor combinação sempre foi: um professor fessores e outros agentes da ordem escolar, seja nos
118 19.
autos oficiais e nos boletins escolares (onde as “notas as regras “da turma”, outros por temor ao seu pode.
vermelhas”, misturadas com as raras azuis davam à de punição (os “maus alunos” são sempre mais fortes,
eles uma colorida alegria perversa que os dos “bons mais violentos e mais criativos), o costume era que se
alunos” nunca ostentavam), como: “problemas”, “maus silenciasse, Me lembro de várias vezes em que toda uma
alunos”, “bagunceiros”, “indisciplinados” (este qualifi- turma do Andrews, do São Bento ou do Mallet Soares
cador depreciativo era usadíssimo, antes que os orien- era coletivamente punida, porque ninguém quis ou pode
tadores educacionais inventassem outros mais suaves) acusar um transgressor além “dos limites”. Não era
e, por certo, assumiam a sua identidade. uma possível punição física a maior ameaça. Quem,
As antigas (atuais?) repartições formais e espon- mesmo entre os menos recuperáveis, se atreveria a
tâneas dos usos da sala de aula refletem internalizações “bater numa menina.?”. Era o risco da transgressão das
|de papéis escolares ou culturais trazidos para dentro normas estabelecidas, entre colegas, pelo círculo dos
da escola. Para nós, os da “fila de trás”, a oposição fun- transgressores. O risco da perda de credibilidade, que
damental do lugar sagrado do estudo não era aquela recaía inevitavelmente sobre a pior das pessoas no mun-
entre o professor e os alunos, em geral, mas uma outra. do escolar de meu tempo: “o cagúeteiro”.
Era uma divisão entre o lado da norma versus o lado da Divididos os espaços, internalizados os papéis,
transgressão. Situados à frente (o professor de frente culturalmente estabelecidas e consagradas as identida-
para nós todos, os alunos “aplicados” de costas) da sala, des, constituídos os grupos e subgrupos entre colegas
os ocupantes do espaço reservado ao cumprimento das de ofício por um ano ou mais, a “classe” funcionava
tarefas previstas. Após a zona neutra dos estudantes não como o corpo simples de alunos-e-professor, regidos.
do “meio da sala”, o lugar social da transgressão peda- por princípios igualmente simples que regram a chatice
gógica. Não me tomem em termos absolutos. Durante necessária das atividades pedagógicas. Ela organizava a
odo o tempo desta descrição de memórias, chamei a | sua vida a partir de uma complexa trama de relações
atenção para diferenças e situações particulares. de aliança e conflito, de imposição de normas e estraté-
Viva e atuante, a parcela relativamente transgres- gias individuais ou coletivas de transgressão, de acordos
sora estabelecia também os seus espaços, definia nor- (entre categorias de colegas, entre alunos e professores,
mas de relações entre os seus partidários; entre eles é entre professores “chapas” e a direção do colégio). A
os “outros alunos”; entre grupos de rivais; entre “me- própria “atividade escolar”, como o “dar a aula”, “ensi-
ninos e meninas”; entre todos e o corpo de emissários nar”, “fazer a prova”, era apenas um breve corte, no en-
da norma da escola. Um exemplo comum era a fideli- tanto poderoso e impositivo, que interagia, determinava
dade à proteção do transgressor. Muitas vezes um ousa- relações e era determinada por relações sociais, ao mes-
do solitário, ou um par de “bagunceiros”, “aprontava mo tempo internas e externas aos limites da norma pe-
uma”. O professor, voltado para o quadro, não sabia dagógica.
“quem fez”. Cobrava do criminoso a auto-acusação. Si- à Apenas em momentos breves, como os das “maté-
lêncio. Cobrava da classe a delação. Uns por fidelidade
Fias interessantes”, ou o das aulas de professores excep-
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cionalmente inteligentes e criativos, o que se fazia (se
faz ainda?) no interior da sala de aulas, conspirava
contra o desejo coletivo de crianças e adolescentes que
obrigados a suportá-la horas sem conta, por dias sem

SALA DE ÁULA: DA ANGÚSTIA DEADELABIRINTO.


limite, durante anos sem fim, respondiam, produtiva e
organizadamente, incorporando ao seu espaço o limite
da possibilidade do prazer.
À FUNDAÇÃO DA LIBERD
E eu penso que, em boa medida, todo o esforço, às NEWTON AQUILES VON ZUBEN €*)
vezes inteligente, outras desesperado, das pedagogias
modernas, não quer mais do que aprender, com a sabe-
Em um de seus ensaios Walter Benjamin relata, a
doria dos transgressores, os princípios e estratégias de
e,
relações entre as pessoas que tornem o domínio da nor- parábola de um velho que, no momento de sua mort
ma escolar pelo menos suportável. revela a seus filhos a existência de um tesouro enter-
rado em seus vinhedos. Pouco tempo depois os filhos
Campinas, 8 de janeiro de 1986 põem-se a cavar, mas não descobrem qualquer vestígio
sábado de Carnaval. (Quem diria?) do tesouro. Com a chegada do outono, porém, às vinhas
produzem mais que qualquer outra da região. Só então
que o pai lhes havia transmitido uma,
compreenderam
mãs
certa experiência: “a felicidade não está no ouro,
no trabalho”. (“Experiência e pobreza”).
O que pretendo neste texto não é conktruir uma
teoria sobre a educação formal da instituição “escola”
ou sobre a aprendizagem que deve estar presente nã
(mé-
sala de aula; ou ainda investigar quais os passos
ivo de
todos) mais adequados para se alcançar um objet
pes-
uma determinada proposta pedagógica. Isso cabe à
sto:
quisa “séria e objetiva”. Meu intuito é mais mode
além das:
buscar possível pista para pensar, aquém ou
a de
pesquisas e suas exigências de rigor, à experiênci
convi -
um evento marcante na vida de todo indivíduo,
dando o leitor a se desfazer, talve z, de.evidên e dey-
cia s
xa de lido preconceitos, para. desco brir, quem sabe, algo,
Bélgica.
(*) Mestre e Doutor em Filosofia pela Universidade de LOUVAIN,
Professor da Faculdade de Educação da UNICAMP.
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