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piauí
CLUBE DE REVISTAS

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Clara Costa reconstitui a trama
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por policiais, é Javier
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golpear a àdemocracia
Casa Rosada

OA fraude
resgatedodoséculo dinossauro
Bernardo Esteves relata a volta ao Brasil
Consuelo Dieguez revela os bastidores
do fóssil contrabandeado
da Americanas para a Alemanha
e desmoralização do mais
festejado trio de capitalistas do país
A viúva de Gal
O cupinzeiro
Thallys Braga investiga asfatal..
astúcias .
da misteriosa empresária da cantora
Breno Pires faz o inventário das falcatruas
do governo Bolsonaro na área da saúde
Ti-ti-ti
 
e sururu no teatrão
Angélica Santa Cruz debulha os rolos
infindos do Municipal de São Paulo

Um historiador em alerta
Como Timothy Snyder virou o intérprete
da nossa época, por Robert P. Baird

Maiakóvski made in USA


Astier Basílio traduz três poemas
do georgiano, inéditos no Brasil

E mais:
A vida e obra de Arthur Lira, por Fernando de Barros e Silva
As omissões na morte da menina Sophia, por João Batista Jr.
Paulo Peregrino conta como seu câncer sumiu
Anne Carson discute os desprezos e os lucros
Um conto de Wesley Barbosa
Arthur Nestrovski se despede de Astrud Gilberto
Diário do Geraldo: “Agora minha companheira é Libelu Alckmin”

piauí_202_R$ 32,00_ano 17_julho_2023


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UM DOS PRIMEIROS JUDEUS QUE CONSEGUIRAM FUGIR DE AUSCHWITZ.
UM HERÓI ESQUECIDO, QUE FINALMENTE TEM SUA HISTÓRIA CONTADA.
Em 1944, Rudolf Vrba produziu o relato mais completo sobre os horrores
do nazismo. Depois dele, o Holocausto não poderia mais ser ignorado.

“Um livro brilhante e comovente,


“A história de Rudolf Vrba
com lições universais e oportunas “A história mais
deve ser contada e lida: um
sobre o poder da informação — e da extraordinária sobre
homem corajoso que fez
desinformação. Contar a verdade pode o Holocausto, que
seu melhor para alertar um
impedir o assassinato em massa?” você nunca ouviu…”
mundo que não o escutaria.”
— YUVAL NOAH HARARI, AUTOR DE SAPIENS: — THE GUARDIAN
— FINANCIAL TIMES
UMA BREVE HISTÓRIA DA HUMANIDADE
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piauí 202 _
capa O rei quase nu, de Caio Borges
colaboradores_4 Quem fez o quê na edição de julho
imagens Caio Borges

ARTHUR LIRA, VIDA E OBRA


questões vultosas_6 Conhecereis a verdade do orçamento secreto e a verdade vos condenará
Fernando de Barros e Silva + imagem Allan Sieber

Apreciada pelo agronegócio, a artista plástica Renata Egreja passou a ser hostilizada depois
esquina_8 de fazer o L; líder do MST acolhe o segmento evangélico do movimento; a Biblioteca Nacional
volta a ter um presidente respeitável; o estranho legado turístico do narcotraficante Pablo
Escobar; depois de encalhar em Angra, ela não manda mais notícias; um documentarista
indígena sonha com o Oscar; um artista de Salvador se consagra esculpindo orixás
imagens Andrés Sandoval

EL PROVOCADOR
vultos latino-americanos_14 Quem é Javier Milei, o deputado de ultradireita que quer ser presidente da Argentina
Sylvia Colombo + imagem JHG

AGORA MINHA COMPANHEIRA É LIBELU ALCKMIN


diário do geraldo_18 “Vocabulário é construção de classe”
Renato Terra + imagem Caco Galhardo

INFORTÚNIOS EM SÉRIE
anais operísticos_20 Como uma teia de egos, intrigas, denúncias e falta de visão pública
estrangula o Theatro Municipal de São Paulo
Angélica Santa Cruz + imagem Kleber Sales

A VIÚVA
anais da microfonia_30 As astúcias da misteriosa mulher com quem Gal Costa viveu durante quase trinta anos
Thallys Braga + imagem Edson Ruiz

UM HISTORIADOR EM TEMPOS SOMBRIOS


vultos intelectuais_40 Como Timothy Snyder se tornou um dos principais intérpretes de nosso tempo
Robert P. Baird

A VOLTA DO UBIRAJARA
questões decoloniais_46 A devolução de um fóssil brasileiro de dinossauro contrabandeado para um museu alemão
Bernardo Esteves + imagem Felipe Pinheiro
JEAN MANZON

MEU CORPO ERA PÓLVORA COM PAVIO


diário_54 O publicitário conta sua luta contra o câncer – até fazer
um tratamento inovador do SUS, com resultado excepcional
Paulo Peregrino + imagem Egberto Nogueira

AS VÁRIAS MORTES DE SOPHIA


questões criminais_60 A história de uma sucessão de omissões e um assassinato brutal
João Batista Jr. + imagem Valter Patrial

DESPREZOS
questões venais_66 Um estudo sobre o que é e o que não é lucro em Homero, Moravia e Godard
Anne Carson

O REBENTO DO ÓDIO
ficção_70 Não conhecia o perdão e tampouco apreciava os mandamentos do livro sagrado
Wesley Barbosa + imagem João Pinheiro

MAIAKÓVSKI, O AMERICANO
poesia_73 Três poemas escritos nos Estados Unidos pelo poeta georgiano, nascido há 130 anos
Poesia e imagens Vladímir Maiakóvski + apresentação e tradução Astier Basílio

cartas_80 A teia do golpe e a fraude titânica em questão


A capa é inspirada na foto do deputado
Edmundo Barreto Pinto (1900-72), que
posou de cueca para a revista O Cruzeiro
DISCRIÇÃO FULGURANTE
em 1946, achando que a imagem seria despedida_82 O charme de Astrud Gilberto residia, paradoxalmente, num quase apagamento de sua personalidade
publicada apenas da cintura para cima Arthur Nestrovski

piauí_julho 3
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colaboradores_ julho

CAIO BORGES
João Batista Jr. Anne Carson Thallys Braga Angélica Santa Cruz Wesley Barbosa Sylvia Colombo

Caio Borges [Capa] é artista gráfico. e Uma Noite em 67. Publicou Diário e autor do livro Domingo É Dia de Ciência Wesley Barbosa [O rebento do ódio,
Ilustrou o livro De A a Z, Eróticas, de da Dilma (Companhia das Letras). (Azougue Editorial). p. 70] é escritor, ex-ambulante e autor
Sheila Hafez, pelo selo Laranja Original Ilustração de Caco Galhardo. de Viela Ensanguentada (Ficções) e Pode
(Neotropica). Paulo Peregrino [Meu corpo era pólvora Me Chamar de Fernando (Numa Editoria),
Angélica Santa Cruz [Infortúnios em série, com pavio, p. 54] é publicitário. entre outros. Ilustração de João Pinheiro.
Fernando de Barros e Silva [Arthur Lira, p. 20] é jornalista da piauí. Ilustração de Texto escrito em colaboração com
vida e obra, p. 6] é repórter da piauí e Kleber Sales. João Batista Jr., repórter da piauí. Vladímir Maiakóvski (1893-1930) [Poesia,
apresentador do podcast Foro de Teresina. Fotografia de Egberto Nogueira. p. 73], poeta e dramaturgo georgiano.
Ilustração de Allan Sieber. Thallys Braga [A viúva, p. 30] é repórter Seleção e tradução de Astier Basílio, poeta,
da piauí. João Batista Jr. [As várias mortes tradutor e dramaturgo, autor de Maquinista,
Sylvia Colombo [El provocador, p. 14], de Sophia, p. 60], repórter da piauí, Prêmio Funarte de Dramaturgia em 2014.
colunista da Folha de S.Paulo e do canal Robert P. Baird [Um historiador em publicou A Beleza da Vida: A Biografia
MyNews, é cofundadora do podcast tempos sombrios, p. 40], escritor e editor de Marco Antonio de Biaggi (Abril). Arthur Nestrovski [Discrição fulgurante,
Américas. independente, é colaborador de veículos Foto de Valter Patrial. p. 82] é violonista e compositor. Foi diretor
como The New Yorker, The New York artístico da Osesp entre 2010 e 2022.
Vitor Massao [Cartuns a partir da p. 16] é Times e London Review of Books. Artigo Anne Carson [Desprezos, p. 66] é escritora, Autor do livro Tudo Tem a Ver (Todavia),
chargista, cartunista e educador comunitário originalmente publicado no jornal The poeta e tradutora canadense. O texto lançou os álbuns Violão Violão e
dedicado à área de direitos humanos. Guardian. Tradução de Rogério Galindo. integra o livro Sobre Aquilo em que Sarabanda (Selo Circus), entre outros.
Eu Mais Penso: Ensaios, organizado Seus vídeos sobre João Gilberto estão
Renato Terra [Agora minha companheira é Bernardo Esteves [A volta do Ubirajara, por Sofia Nestrovski e Danilo Hora, disponíveis no site da piauí.
Libelu Alckmin, p.18] é colunista da Folha p. 46], repórter da piauí, é apresentador traduzido por Sofia Nestrovski, a ser
de S.Paulo e diretor de Narciso em Férias do podcast A Terra é Redonda (Mesmo) lançado neste mês pela Editora 34. Ilustrações de Esquina por Andrés Sandoval.

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CLUBE DE REVISTAS

COMO SOBREVIVER À VIOLÊNCIA


SEM DEIXAR DE SONHAR?

Viena, 1938. Samuel Adler tem cinco anos


quando seu pai desaparece durante a Noite dos
Cristais - a noite em que sua família perde tudo.
Sua mãe consegue uma vaga para ele no trem
Kindertransport, da Áustria nazista para a Ingla-
terra. Sozinho, o menino embarca levando
apenas seu violino.

Arizona, 2019. Oito décadas depois, Anita


Díaz e sua mãe embarcam em um trem, fugindo
dos perigos iminentes em El Salvador e em busca
de refúgio nos Estados Unidos. Mas a chegada
delas coincide com a nova política de separação
familiar, e Anita, de sete anos, se vê sozinha em
um acampamento para crianças refugiadas.

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Em novo livro de Isabel Allende, autora de A casa dos espíritos,


passado e presente se entrelaçam para contar uma história
sobre as feridas profundas que a migração forçada produz.
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questões vultosas

ALLAN SIEBER_2023
ARTHUR LIRA,
VIDA E OBRA
Conhecereis a verdade do orçamento
secreto e a verdade vos condenará

FERNANDO DE BARROS E SILVA

O
nome de Arthur Lira circulou da Megalic, Edmundo Catunda e Rober- sável pelos registros contábeis cuidava Com riqueza de detalhes, ele acusava
bastante no último mês. Vi- ta Lins, são próximos de Lira. Catunda de muita coisa para Lira e seus familiares. Eduardo Cunha de ter cobrado 5 milhões
mos o deputado falar de go- tem um filho que é vereador em Maceió. O motorista disse à pf que as anotações de dólares de propina por contratos com
vernabilidade, defender o Foi investigando transferências e sa- se referem a pagamentos que ele próprio a Petrobras. O então presidente da Câma-
semipresidencialismo, sair ques suspeitos de dinheiro dos sócios da realizou a mando de Luciano Cavalcan- ra não hesitou: alardeou que estava sendo
em defesa das emendas parlamentares, Megalic que a pf chegou a Luciano te, que é também o dono do Corolla perseguido por razões políticas e acusou
desmerecer a articulação política do go- Cavalcante. Guarde este nome. Caval- onde os documentos foram encontrados. o procurador-geral, Rodrigo Janot, de agir
verno Lula e tensionar ao máximo a cante está para Lira assim como Fabri- Com Jesus, a polícia apreendeu ainda a mando do Planalto. Anunciou ainda
corda com o Executivo. O presidente da cio Queiroz e o tenente-coronel Mauro 150 mil reais em espécie, dos quais 110 mil que estava rompendo com o governo Dil-
Câmara sabe como poucos criar dificul- Cid estão para Bolsonaro. Ele era o faz- estavam numa mochila dentro do porta- ma e passava a integrar a oposição.
dades para vender facilidades. A Medida tudo da família. Começou em 2003 malas do carro de Cavalcante. Sabemos o fim da história. Cunha se-
Provisória que redesenhava a Esplana- como assessor parlamentar do deputado Diante do que já se sabe, pode-se ima- ria cassado mais de um ano depois, mas
da, enviada ao Congresso logo no início Benedito de Lira, o Biu, pai do atual ginar o seguinte roteiro: o dinheiro que não sem antes ter cumprido sua missão
do mandato, se transformou nas mãos presidente da Câmara. Em 2017, foi tra- saiu do Ministério da Educação, por obra como artífice do impeachment. Todos
de Lira num poderoso instrumento de balhar com o filho Arthur, então líder de uma emenda do relator, e deveria servir os que endossaram o processo àquela
chantagem. O que é uma prerrogativa do Partido Progressistas na Câmara. Ali à compra de equipamentos para alunos altura estavam cansados de saber quem
de quem vence a eleição – reorganizar a permaneceu até o mês passado. em escolas do interior de Alagoas onde ele era – um corrupto contumaz. Isso
estrutura de poder – se converteu em O pp dispensou os serviços de Caval- falta até água encanada, foi usado para não impediu que fosse legitimado como
ocasião para ameaçar implodir o gover- cante depois que polícia cumpriu man- pagar a estadia de Arthur Lira no Hotel condutor do processo. Em seu livro re-
no, o que não aconteceu por um triz. dados de busca e apreensão nas casas dele Emiliano em São Paulo. Conhecereis a cém-lançado, Operação Impeachment:
Mas o estadista do Centrão também e de seu motorista, Wanderson Ribeiro verdade do orçamento secreto e a verdade Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato, o
frequentou o noticiário policial. Junho Josino de Jesus. A pf suspeita que Caval- vos condenará. Está tudo desenhado. cientista político Fernando Limongi dedi-
começou com uma operação da Polícia cante e sua mulher, Glaucia, que traba- ca um capítulo inteiro à análise do papel

É
Federal, deflagrada logo no dia 1°, para lhou no gabinete de Lira entre 2015 e claro que devemos respeitar o prin- desempenhado por Eduardo Cunha na-
investigar fraudes na compra de material 2016, sejam os “prováveis beneficiários cípio constitucional da presunção quela quadra histórica. O título: O Chan-
escolar por prefeituras de Alagoas, esta- finais do fluxo de dinheiro originado na de inocência. Mas existe outro tipo tagista-Mor da República.
do de origem do clã Lira. Vale a pena empresa Megalic”. de presunção, aquela que é sinônimo de É essa a escola de Arthur Lira. O ala-
entender esse escândalo mais de perto. No último dia 25, o site da piauí pu- opinião demasiado boa e lisonjeira so- goano foi fiel ao padrinho político até o
Ele começou a ser conhecido há mais blicou uma reportagem do jornalista bre si mesmo; imodéstia; pretensão; vai- fim, mesmo depois do afastamento de
de um ano, em abril de 2022, quando Breno Pires como seguinte título: Inves- dade; confiança excessiva em si mesmo. Dilma, quando Cunha perdeu seu valor
uma reportagem da Folha de S.Paulo re- tigação da PF sobre assessor de Arthur Todos esses sentidos que o Houaiss dá à de uso (ou de troca) e seguiu sua sina la-
velou que o governo Jair Bolsonaro havia Lira descobre onze pagamentos para “Ar- palavra cabem a Arthur Lira. deira abaixo. Nada menos que 450 depu-
destinado 26 milhões de reais para que thur”. O texto explicava que os policiais Logo que a operação foi deflagrada, ele tados votaram por sua cassação, e apenas
municípios alagoanos comprassem kits apreenderam no endereço de Jesus um procurou o diretor-geral da pf, o ministro dez gatos pingados ficaram a seu lado,
de robótica destinados à educação. Os caderno-caixa com anotações manus- da Justiça e até Lula, que o recebeu para apertando “não”. Arthur Lira era um deles.
recursos foram transferidos pelo Fundo critas, mostrando saldos, repasses, desti- um café da manhã no Palácio da Alvora- As condições de temperatura e pressão
Nacional de Desenvolvimento da Educa- natários e datas. Nessas notas, referentes da, fora de sua agenda oficial. Divulgou-se da política hoje são diferentes. O impeach-
ção (fnde) e eram oriundos das chamadas aos meses de abril e maio deste ano, o na ocasião que Lira teria reclamado do ment de Lula não é uma hipótese que
emendas de relator, ou seja, do orçamen- nome “Arthur” aparece onze vezes como vazamento da operação. Foi mais do que esteja no horizonte. E Lira ainda é o rei-
to secreto controlado por Lira. beneficiário de valores que totalizam isso: Lira está convencido de que a ação da zinho que foi aclamado outro dia presi-
Todas as sete cidades alagoanas con- pouco mais de 265 mil reais. No mesmo pf foi uma retaliação às dificuldades que dente da Câmara com 464 votos. O mais
templadas tinham contrato com a mesma dia, a Folha também publicou reporta- ele vem criando para Lula na Câmara. provável é que as coisas se arrastem em
empresa sediada em Maceió. A Megalic gem com os registros entre dezembro Ninguém, no entanto, o ouviu dizendo banho-maria, como se a pf não tivesse
comprava os kits por 2,7 mil reais para de 2022 e março deste ano. O nome isso publicamente. Por enquanto. colocado um elefante na sala da Repúbli-
revendê-los às prefeituras por 14 mil reais “Arthur” aparece ao lado de pagamentos Em julho de 2015, quando o persona- ca. Não faz mau negócio quem apostar
– uma diferença de 420% para interme- que totalizam 650 mil reais. gem visado era o pai espiritual de Lira, as num acordão, com Hotel Emiliano, com
diar o negócio. Tal aberração só foi possí- Gastos comezinhos, dinheiro para re- coisas foram diferentes. Naquela ocasião, tudo. A culpa pelo desfalque no dinheiro
vel, soube-se depois, porque houve fraude feições e bebidas, hospedagens em hotéis vazou para a imprensa o teor da delação que deveria ir para a educação das crian-
na licitação para beneficiá-la. Os donos de luxo – o conjunto sugere que o respon- de um empresário preso pela Lava Jato. ças – isso fica na conta de Jesus. J

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CLUBE DE REVISTAS

ALEXANDRE, um podcast sobre a eleição mais acirrada


da nossa democracia e seu principal personagem.
Apresentado por Thais Bilenky.
Em seis episódios, a partir de 31 de julho
nas principais plataformas de áudio.
Uma série original da Trovão Mídia em parceria com a revista piauí.

ALEXANDRE
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CLUBE DE REVISTAS
esquina

ANDRÉS SANDOVAL_2023
TONS DE VERMELHO NO CAMPO
Apreciada pelo agronegócio, a artista plástica Renata Egreja
passou a ser hostilizada depois de fazer o L

E
m 30 de outubro de 2022, dia do já era representada pela Zipper Galeria,
segundo turno da eleição presiden- em São Paulo. Seus trabalhos haviam ra-
cial, um incêndio atingiu o cana- pidamente conquistado um círculo de
vial localizado ao fundo do ateliê da admiradores, o que a permitiu montar um
artista plástica Renata Egreja, de 39 anos, ateliê na capital paulista e viver da arte.
que vive e pinta seus quadros na fazenda Muitos dos compradores que presti-
de sua família, em Ipaussu, no interior de giam Egreja são do agronegócio. Ao longo
São Paulo. O fogo foi rapidamente apa- do governo Bolsonaro, com a crescente
gado e não causou maiores danos. onda reacionária, alguns deles deixaram
Egreja, que na ocasião estava em São de buscar seus quadros. Mas não todos:
Paulo comemorando a vitória de Lula ela diz que nunca vendeu tanto quanto na
na Avenida Paulista, achou estranho o pandemia, que foi um período de alta do
incidente. O período de secas chegava mercado de arte. Hoje representada pela
ao fim, e não havia queimadas na pro- Galeria Lume, em São Paulo, Egreja diz
priedade. Ela suspeitou que pudesse ser que as mulheres são as principais interes-
um incêndio criminoso, mas não che- sadas em suas pinturas. Vick Zuffo, sócia
gou a fazer um boletim de ocorrência. da Lume – que representa artistas como
Naqueles dias, ela vinha recebendo Nazareno, Claudio Edinger e Carlos Na-
ameaças de morte e xingamentos nas re- der –, conta que o trabalho de Egreja é um
des sociais, por causa de seu apoio ao dos que mais despertam o interesse do mer-
candidato do pt. Em Ipaussu, cidade de cado. “Na pandemia, as pessoas começa-
15 mil habitantes que vive do agronegó- ram a criar seus próprios oásis. E com a
cio, Jair Bolsonaro recebeu 62% dos votos. Renata foi muito intenso o modo como as
“Burguesa socialista” e “idiota” estavam pessoas pediam as obras dela”, diz a gale-
entre os epítetos mais gentis dirigidos rista. Um trabalho da artista pode custar
à artista. Um comentário no Instagram até 50 mil reais.
dizia que “feminista e socialista [que se A associação de seu nome com o
preze] não vive de mesada da mamãezi- agronegócio não constrange Egreja: “Eu
nha” e mandava Egreja “plantar cana”. não tenho vergonha. Tenho orgulho.”
“Triste é saber e conhecer a sua família e Bem estabelecida no mercado de arte, ela
ancestrais e me deparar como você está poderia deixar o interior, mas deseja criar
hoje”, dizia outra postagem. no campo as duas filhas, de 6 e 8 anos.
“Sou apaixonada pelo interior. Eu amo

E
greja vem de uma família de proprie- a terra, o Sol”, diz. A artista cultiva a sim-
tários rurais e pinta desde criança. plicidade rural e encontra felicidade, por
Nos anos 2000, quando estudava exemplo, na fartura de mangas que suas
artes na Fundação Armando Alvares Pen- árvores deram neste ano.
teado (Faap), em São Paulo, ganhou uma Na arte, Egreja encontrou a indepen-
bolsa para concluir a graduação na Escola dência financeira que a libertou da roti-
Nacional Superior de Belas-Artes, em Pa- na regida apenas pela vida doméstica. No
ris. A família torceu o nariz para a ideia, fim das contas, até achou um “bom par-
mas ela foi mesmo assim. Acabou fazendo tido”, mas não no meio rural: seu marido, “As mudanças estão acontecendo, mas Frustrada por Lula não ter indicado
também o mestrado na França. “Fui cria- pai de suas filhas, é um arquiteto francês precisa de diálogo.” uma mulher para o stf, nem por isso
da numa sociedade em que mulher tinha radicado em São Paulo. Antes de ir de Egreja acredita que uma formação cul- Egreja se arrepende de ter “feito o L”.
que casar, de preferência com um ‘bom mala e cuia para o campo, a família vi- tural melhor poderia até motivar produto- Com o aquecimento do mercado de arte
partido’, com aspas. Aí a pessoa vai para a veu por cinco anos em Ubatuba. res rurais a buscar novas formas de lidar durante a pandemia, ela contratou pro-
Europa e vira feminista”, diz. com a terra: “Com a tecnologia, é possível dutores para criarem projetos de capta-

A
Para compensar o cinza dos dias chu-  artista atribui o conservadorismo dobrar a produtividade sem desmatar um ção de recursos para exposições gratuitas
vosos em Paris, Egreja começou a acres- predominante no interior ao déficit alqueire. Mas falta conhecimento, falta em museus do interior de São Paulo, e
centar purpurina e mica às suas pinturas cultural. “Falta um aparato de cul- cultura.” Ela entende do assunto: moti- agora está feliz com a retomada dos in-
de cores vivas, feitas a óleo, com tinta acrí- tura. Falta contato com a subjetividade vada por um episódio do podcast Maria vestimentos do governo em cultura.
lica ou aquarela. Aqueles materiais pro- da vida”, diz. Seus trabalhos circulam Vai Com as Outras (feito pela piauí e a Rá- Dessa iniciativa resultou a mostra
duzem as texturas singulares de seus sobretudo em museus de cidades médias dio Novelo), matriculou-se num mba na Cores do Interior, que passará pelo Fa-
trabalhos, que são percebidas quando se do estado de São Paulo, como Ribeirão Escola Superior de Agricultura Luiz de ma Museu, em Itu, e pelo Museu de
vê os quadros ao vivo, mas não em reprodu- Preto, Itu, Sorocaba e Botucatu, o que a Queiroz, da Universidade de São Paulo Arte de Ribeirão Preto (Marp), no se-
ções fotográficas. A natureza e o universo leva a acreditar que existe uma insuspei- (Esalq-usp). E aponta a necessidade de gundo semestre – um contraponto à sua
feminino são seus temas recorrentes, e ta demanda por arte longe da capital. mais mulheres no setor agrícola. “Mais exposição encerrada em junho na gale-
ela cita Leda Catunda, Beatriz Milhazes “Há muita gente aberta a pensar diferen- de 90% das propriedades rurais estão nas ria Cassia Bomeny, em Ipanema, no Rio
e Tarsila do Amaral como inspirações.  te”, diz. “Marília Mendonça, na música, mãos de homens. E há essa metáfora da de Janeiro, de caráter mais comercial.
Ainda na época de estudante, Egreja conquistou um público imenso dentro e terra como corpo feminino e do abuso “Quando a obra fica no apartamento
encontrou compradores para seus quadros, fora do agro justamente cantando a pers- desse corpo, de só tirar e nunca devolver de alguém, não cumpre seu papel so-
muitos deles conhecidos seus, no interior pectiva da mulher.” Ela lembra que o pri- nada à terra. O olhar do homem para a cial. Tem que estar disponível numa
paulista. Concluído o curso na França, ela meiro casamento gay a que compareceu terra é muito parecido com o olhar para o instituição pública, gratuita. Só assim
voltou ao Brasil e, em menos de um ano, foi em uma cidade vizinha a Ipaussu. corpo de uma mulher.” a arte transforma.”

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CLUBE DE REVISTAS
Os ataques a Egreja não arrefeceram vo Articulação de Evangélicos e Evan- sou a organizar ocupações como dirigente a participação dos fiéis nas atividades
depois das eleições. “Tem lugares que eu gélicas Pastor Martin Luther King. estadual. Foi então que a igreja voltou à do movimento. Alegam que o mst ensi-
não posso frequentar mais. Pessoas que não sua vida, em meio à tristeza pela doença na as mulheres a desrespeitar os mari-

A
falam mais comigo”, lamenta. Nas ruas de s origens do mst, que completa qua- do marido, que morreu em 2018. dos e incita a rebeldia dos jovens.
sua cidade natal, há quem a olhe com ódio. renta anos em 2024, bebem da No mesmo ano, ela participou da cons- A distância entre as igrejas evangélicas
Criada em uma família de ideias políticas Teologia da Libertação, da Igreja trução do acampamento Hugo Chávez, e o mst aprofundou-se no governo de Jair
pouco conservadoras e matriarcal – sua Católica. Padres e freiras dessa corrente em Marabá, que chegou a ter 1,2 mil pes- Bolsonaro, que cooptou segmentos desses
mãe, que é economista, toca os negócios progressista foram perseguidos na região soas. A ocupação foi conturbada por dispu- credos, inclusive dentro do próprio movi-
e incentivou a sua carreira artística –, Egre- amazônica, durante a ditadura. A partir tas judiciais e despejos. Soares relata que, mento. Desde 2020, Soares está estudando
ja estranha sobretudo a hostilidade das dos anos 1990, as igrejas neopentecos- em uma madrugada, um grupo armado esse fenômeno para a dissertação de mes-
mulheres. “Ser artista e ser mulher é o que tais começaram a crescer na região. No não identificado entrou no acampamento trado em história que pretende defender
me atravessa. E tenho duas filhas mu- Brasil, os evangélicos, que eram 9% da procurando seus líderes. Um pistoleiro na Universidade Federal do Sul e Sudeste
lheres”, diz a artista, que não consegue população em 1990, hoje são por volta chegou a apontar uma arma para a sua do Pará. O título será “Do Reino dos Céus
entender como uma mulher pode apoiar de 30%. “A maioria dos evangélicos são filha de 2 anos, que estava no berço – ao Reino da Terra: o Evangelho segundo
Bolsonaro e seu discurso misógino. mulheres pobres da periferia, as mes- Soares estava fora do barraco da família o mst”. Nas entrevistas que tem feito com
Egreja não cogita silenciar suas opi- mas pessoas que vão para as ocupa- naquele momento. O grupo incendiou evangélicos, ela vem encontrando expe-
niões políticas: “Se eu não puder falar, o ções”, diz Polliane Soares. uma caminhonete, e um homem amea- riências diversas: há igrejas que apoiavam
que eu estou fazendo como artista?” Suas Ela se vinculou ao mst aos 13 anos, çou jogar a criança no fogo se a mãe não o pt, mas hoje são bolsonaristas; fiéis que
posições encontram resistência agressiva quando sua mãe – que era espírita – dei- aparecesse. Um acampado aproveitou-se votaram em Bolsonaro em 2018, mas não
até no meio artístico interiorano. Ela xou a periferia de Eldorado dos Carajás, de um descuido e recuperou a menina. em 2022; e evangélicos que votaram no
lembra que, em 2018, o museu de Ouri- também no sudeste do Pará, para se ins- pt, mas não contam isso em suas igrejas.

U
nhos, também no estado de São Paulo, talar em um assentamento da região, o ma ocupação é como qualquer po- O coletivo Articulação de Evangélicos
pediu uma de suas obras emprestada 17 de Abril. Os pais de Soares, naturais do voado humano, com estabeleci- e Evangélicas Pastor Martin Luther King
para uma exposição. O empréstimo foi Maranhão e da Bahia, haviam se muda- mentos diversos para atender as tem promovido eventos e rodas de con-
feito, mas Egreja sequer foi convidada do para o Pará no final da década de 1970, necessidades dos moradores: casas de co- versa – com foco “naqueles que não fo-
para a abertura. Indignada, foi até lá co- em busca de trabalho na Transamazôni- mércio, restaurantes e igrejas. Há regras ram completamente capturados pelo
brar explicações. “Agora é Bolsonaro”, res- ca. Nas terras desmatadas no entorno da específicas, como a que determina que bolsonarismo”, diz Soares. “Se queremos
pondeu o diretor do museu. J rodovia, o pai dela empregou-se na coleta a escola é a primeira coisa a ser instala- sobreviver mais quarenta anos, não pode-
Ana Clara Costa de castanha-do-pará e depois como pisto- da, e “bares e prostíbulos são proibidos”, mos negar a espiritualidade do povo.” J
leiro em uma fazenda de gado. diz Soares. Mas o resto chega livremen- Carolina Unzelte
Quando a fazenda faliu, a família foi te. “O acampamento Hugo Chávez foi o
TERRA PROMETIDA para Eldorado dos Carajás, onde dezeno- primeiro que eu soube que não teve ne-
Líder do MST acolhe o segmento ve militantes do mst foram assassinados nhuma igreja católica. Vieram só evangé- DEPOIS DO DESERTO
evangélico do movimento pela polícia em 17 de abril de 1996. Soa- licas”, ela recorda. Uma delas acolheu o A Biblioteca Nacional volta a ter
res conheceu sobreviventes do massacre coração da professora. “Quando me per- um presidente respeitável

S
ob o Sol forte de março, Polliane – foi seu primeiro contato com o movi- guntam ‘Por que você é evangélica?’, eu

O
Barbosa Soares, de 38 anos, despe- mento. Também em Eldorado, come- respondo que é porque a fé me salvou. Foi celular tocou uma, duas, três vezes.
de-se das amigas em um acampa- çou a frequentar a Igreja Adventista do na fé, na igreja, em Deus, que encontrei Era uma ligação do Brasil, de um
mento do Movimento dos Trabalhadores Sétimo Dia. Quando o pai morreu, um paz, conforto para a dor.” número não identificado – e Mar-
Rurais Sem Terra (mst), em Marabá, ano depois da mudança de cidade, mãe Na avaliação de Soares, o mst e as igre- co Lucchesi não atendeu. Ele estava em
sudeste do Pará: “Tchau, minhas irmãs, e filha foram acolhidas pelo mst. jas evangélicas têm muito em comum: Florença, a caminho de uma praça onde
fiquem com Deus.” De cabelos escuros No Assentamento 17 de Abril, Soares “São lugares que abrem as portas para encontraria um amigo. Então chegou
longos e vestindo uma saia comprida deixou de frequentar templos. Cursou acolher quem está necessitado. O que os um áudio pelo WhatsApp, enviado por
roçando o chão de cascalho, Soares pas- magistério e se tornou educadora em es- distancia é o fundamentalismo.” Quando aquele mesmo contato desconhecido.
sou as últimas horas conversando com colas do mst. Pelo Programa Nacional de alguém precisa de comida ou conserto A voz – ele demorou a reconhecer –
mulheres na ocupação. Educação na Reforma Agrária, fez gra- para o seu barraco, diz Soares, há um mu- era de Margareth Menezes, a nova mi-
O acampamento, batizado de Helenira duação em história na Universidade Fe- tirão para ajudar – composto por compa- nistra da Cultura. “Fiquei andando em
Resende – em homenagem à militante do deral da Paraíba, quando já estava casada nheiros do mst, por irmãos da igreja ou círculos no meio da rua”, recorda o escri-
Partido Comunista do Brasil desaparecida e tivera dois de seus cinco filhos. Forma- por ambos. Alguns pastores de igrejas em tor e crítico de 59 anos na sala de sua
na Guerrilha do Araguaia –, começou em da, voltou para Marabá e, em 2014, pas- ocupações, porém, nem sempre apoiam casa no bairro de Itacoatiara, em Niterói.
2009 e hoje abriga cerca de setecentas fa- Naquele dia 30 de dezembro, foi obriga-
mílias. Tem duas igrejas evangélicas. Soa- do a desmarcar o passeio com o amigo
res, além de líder do mst, é diaconisa em italiano. “Preciso voltar já para o Brasil”,
uma unidade da Assembleia de Deus. comunicou. Lucchesi tinha acabado de
“É bom ouvir a Polli, a gente aprende ser convidado para presidir a Fundação
tanta coisa”, diz uma mulher baixinha Biblioteca Nacional.
que também veste saia comprida. Soares Na sede da mais antiga instituição cul-
falou sobre a luta por terra – e pelo Céu. tural em atividade no país (remonta ao
Há quase dez anos, três acontecimentos século xix), os funcionários festejaram.
definiram seu futuro: o marido adoeceu, Depois de a presidência da biblioteca ser
ela voltou a frequentar uma igreja evangé- entregue a um discípulo do guru Olavo
lica e se tornou dirigente estadual do mst. de Carvalho e a um católico ultraconser-
“Ser de esquerda não é pecado”, diz vador, finalmente tinha terminado a lon-
ela. “A leitura bíblica fundamentalista ga e funesta noite da entidade.
desconsidera a gente, mas os evangéli-

L
cos estão nos nossos territórios e preci- ucchesi, que é carioca, frequenta a
sam de acolhimento.” Soares estima que sede da Biblioteca Nacional, no Cen-
metade dos participantes de acampa- tro do Rio, desde os 15 anos. De al-
mentos e assentamentos do mst no Pará guns funcionários, diz saber “até o nome
são evangélicos. Em dezembro de 2022, dos filhos”. Foi na juventude que estreitou
ela organizou o primeiro seminário evan- sua convivência com o mundo literário.
gélico do movimento, intitulado Resistir Com 19 anos, iniciou uma correspondên-
com Fé. Durante o evento, com trinta cia com Carlos Drummond de Andrade,
lideranças do estado, foi criado o coleti- depois de enviar ao poeta mineiro um li-

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CLUBE DE REVISTAS

ANDRÉS SANDOVAL_2023
vro que escrevera sobre Dante Alighieri, Outros bolsonaristas também figura-
uma de suas especialidades. Em 1987, vam na lista.
quando morreu Maria Julieta Drum- Lucchesi foi o primeiro a rejeitar a
mond de Andrade, filha do poeta, Luc- medalha. Outros escritores e intelec-
chesi foi ao enterro. Ele se recorda dos tuais fizeram o mesmo logo depois. Ele
olhos congelados de Drummond, “que afirmou que a homenagem a Silveira
parecia uma estátua de pedra”. fazia parte de um “projeto de sequestro”
Depois de se formar em história pela das instituições culturais pelo governo
Universidade Federal Fluminense, in- Bolsonaro. “Acabaram com o Ministé-
gressou no mestrado e no doutorado em rio da Cultura, depois alvejaram a Lei
ciência da literatura pela ufrj, da qual Rouanet com um ódio infernal, anacrô-
se tornou professor. Emendou um está- nico e deplorável”, diz. “Isso Bolsonaro
gio de pós-doutoramento em filosofia conseguiu: o processo de destruição foi
da Renascença na Universidade de Co- coerente com o seu discurso.”
lônia, na Alemanha. Como poeta, pu- HIPOPÓTAMOS DO PÓ como se fosse um macho alfa). “Logo

M
blicou dezenas de livros, entre os quais esmo antes de sua posse, em 30 de O estranho legado turístico do que encontraram Vanessa, ela foi levada
Meridiano Celeste & Bestiário, que ga- maio, Lucchesi já tinha atividade narcotraficante Pablo Escobar para um hábitat próprio, com lago. Eu
nhou o Prêmio Alphonsus de Guima- institucional. Em março, acom- ficava o dia todo lá. Dava banho nela,

À
raens da Biblioteca Nacional em 2006 panhou a ministra Rosa Weber, do stf, s cinco da manhã, os guias começa- depois brincávamos, e assim começa-
e foi finalista do Prêmio Jabuti em em uma viagem ao Amazonas, para um ram a animar os turistas no ônibus mos a domesticá-la”, conta a funcionária
2007. Também escreveu um grande nú- encontro do povo indígena Marubo, no que saía de Medellín, na Colômbia, Shirley Rivera, que trabalha na Hacien-
mero de ensaios e três romances. Vale do Javari. Aonde quer que vá, Weber com destino ao Parque Temático Hacien- da desde 2007, cuidando dos animais.
Em 2011, foi eleito para a Academia costuma levar exemplares da Constitui- da Nápoles, a propriedade de 3 mil hecta- “Eu falava com Vanessa como se fosse
Brasileira de Letras (abl). Seis anos de- ção de 1988 para dar de presente às pes- res que já foi o luxuoso refúgio de Pablo com uma pessoa, e assim ela foi se acos-
pois, tornou-se, aos 54 anos, o presidente soas. No avião, ela estendeu o livro para Escobar. A menção ao narcotraficante mais tumando comigo e com minha voz.”
mais jovem da instituição, que enfrentava Lucchesi e perguntou em qual idioma famoso do mundo logo despertou a curio- Vanessa, que tem 16 anos, hoje aten-
então uma severa crise financeira. Luc- ele gostaria de ver a Carta Magna do país sidade dos sonolentos passageiros, quase de pelo nome e até sai de seu lago para
chesi diz que a experiência na abl du- ser traduzida. Foi escolhido o nheengatu, todos provenientes de outros países da se aproximar dos turistas que lhe ofere-
rante aquele “momento absolutamente ou língua geral, o idioma supraétnico que América Latina. Os guias, porém, alerta- cem quitutes. Sua alimentação consiste
dramático” lhe dá agora confiança para até o final do século xix era o mais falado ram que o parque não se dedica a expor a de ração, capim, frutas e legumes, espe-
gerir a Fundação Biblioteca Nacional, no Norte do país. vida de crimes de seu antigo proprietário. cialmente melancia e cenoura. A comi-
após quatro anos de desmonte cultural. A Biblioteca Nacional recrutou tradu- Contrariando expectativas, o tema domi- da que os visitantes lhe dão é fornecida
Quando recebeu o telefonema de tores que têm o nheengatu como língua nante da Hacienda Nápoles é a África. pelo parque, equilibrada em porções ao
Margareth Menezes, fazia mais de dois materna e o stf disponibilizou uma equi- Nas quase três décadas desde que Esco- longo do dia, para não prejudicar o pro-
anos que estava na Itália, realizando pes- pe para sanar dúvidas do juridiquês. “Te- bar foi morto, aos 44 anos, em um telhado cesso digestivo.
quisas no Departamento de Ásia, África nho visto nas aldeias e nos quilombos: a de Medellín pela polícia colombiana, a sua Outro cuidado fundamental é com a
e Mediterrâneo da Universidade Orien- nova geração está buscando recuperar as antiga propriedade vem atraindo a aten- pele de Vanessa, que deve permanecer
tal de Nápoles. Na casa que herdou dos línguas e as canções dos seus antepassa- ção de curiosos. Em 2007, foi convertida sempre úmida. Os funcionários tratam
pais na região da Toscana, na comuna de dos, aquilo que antes se chamava de mas- no atual zoológico a céu aberto, que dese- de molhá-la quando ela está em terra.
Massarosa, soube em julho de 2022 que sa flutuante narrativa”, diz Lucchesi – com ja sair da rota das “narcotours”, as excur- Mas ela passa boa parte do dia no lago,
seu nome figurava na lista de personali- o discreto sotaque italiano de quem foi sões que exploram a história sangrenta na companhia dos patos.
dades escolhidas pela Biblioteca Nacio- criado por imigrantes –, desenhando on- do cartel de Medellín.

H
nal para receber a medalha da Ordem do das no ar com as mãos. “É preciso ajudar Quatro parques aquáticos foram mon- acienda Nápoles fica no municí-
Mérito do Livro. Em tese, a medalha o Brasil a guardar um patrimônio que está tados na Hacienda Nápoles, aproveitando pio de Puerto Triunfo, quase na
homenageia acadêmicos e intelectuais destinado ao esquecimento.” o clima equatorial da região. A antiga metade do caminho entre a fria
com notável contribuição à leitura e à Na cerimônia de posse de Lucchesi, a Praça de Touros, na qual Escobar ofere- Bogotá, a cerca de 2,5 mil metros de
literatura. Naquele ano, porém, a biblio- ministra da Cultura anunciou a liberação cia espetáculos à população local, tornou- altitude, e Medellín, 1 mil metros abai-
teca decidiu conferir a distinção ao então de 30 milhões de reais para a moderniza- se um museu da cultura africana. Esse xo, conhecida como a Cidade da Eterna
deputado federal Daniel Silveira, preso ção de um prédio anexo que deve abrigar tema foi sugerido pela extravagante fauna Primavera por seu clima temperado.
por ameaçar e insultar ministros do stf. cerca de 10 milhões de obras do acervo. do lugar, com muitas espécies provenien- Embora seja uma das principais estradas
É a primeira vez que a Biblioteca Nacio- tes da África – trazidas, claro, pelo próprio do país, a rodovia que vai de Medellín
nal recebe um investimento dessa monta. traficante. Foi por um de seus caprichos ao parque é de tráfego lento e acidenta-
Em vista da quantidade de trabalho megalomaníacos que hoje zebras e aves- do: leva-se de quatro a cinco horas para
que tem pela frente, o escritor diminuiu truzes passeiam pela Hacienda. percorrer o trecho de 175 km.
as horas de sono. Desperta às três da ma- Os animais africanos que Escobar colo-

D
nhã – “para cuidar das minhas novelas, e todos os bichos importados pelo cou em um bioma estranho não convivem
dos ensaios, dar continuidade às tradu- exportador de cocaína, os hipopóta- bem com os veículos: na semana em que
ções” – e vai se deitar às dez da noite. mos foram os que mais prolifera- a reportagem da piauí visitou o parque,
Tenta não ler antes de dormir, mas não é ram na região de Magdalena Médio, em abril, um carro atropelou e matou um
sempre que resiste a Emanuele Severino onde fica a propriedade. No início, eram hipopótamo na rodovia. Os dois ocupantes
(1929-2020), o filósofo italiano cuja obraapenas quatro, que escaparam para perto do veículo não tiveram ferimentos graves.
costuma citar em qualquer conversa. do Rio Magdalena e procriaram, causando A entrada da Hacienda Nápoles, à mar-
Severino, explica Lucchesi, não aceita-
um desastre ambiental na área. Hoje a gem da estrada, também já foi um ponto
va a ideia de que todas as coisas vieram do
região abriga o maior número desses ani- turístico. Em cima do portão, estava afixa-
nada – e para o nada retornarão. “Desde mais fora da África – já são mais de 150. do o avião monomotor que supostamente
que uma coisa exista e apareça, ela é um Como eles não têm predadores naturais teria transportado a primeira carga de co-
ser. E, como tal, não termina.” Nem os ali, acabam consumindo grande parte do caína de Escobar para os Estados Unidos,
mortos desaparecem: apenas saem do alimento de espécies nativas do local. episódio que ficou famoso graças à série
campo de visão dos vivos. Em momentos No parque mesmo são só três: Paco e Narcos, da Netflix. Muitos paravam para
de pessimismo, o escritor recorre a Severi-
Guaco, dois hipopótamos machos de tirar fotos ali. Mas, como toda a região
no “em busca de um combustível de espe- comportamento dócil, e Vanessa, uma busca hoje se distanciar da “herança mal-
rança”. “É o que me permite atravessar o fêmea expulsa de sua manada em Mag- dita” do cartel de cocaína, portão e avião
deserto com maior conforto”, ele diz. J dalena Médio (supõe-se que isso se deu foram transferidos em 2019 para uma es-
Thallys Braga por causa de seu temperamento mandão pécie de memorial na Hacienda Nápoles.

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Esse local é devotado à história de abraços e apertos de mãos. Golfinhos se nicípios litorâneos de Santa Catarina, Já houve casos, porém, em que os apare-
Escobar e do tráfico, mas com uma mordem ou compartilham esfregadi- Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro. lhos duraram mais de sessenta.”
apresentação objetiva e dura dos fatos, nhas”, explica o biólogo Rafael Ramos O bom é que, enquanto se comunicou

A
sem margem para celebração ou sensa- de Carvalho, pesquisador da Uerj. ssim que Teresa melhorou, inicia- com os pesquisadores, o golfinho provou
cionalismo. Fotografias cruas – com As orcas-pigmeias normalmente apre- ram-se os preparativos para devol- que esbanjava saúde. Antes de Teresa des-
alertas para o conteúdo chocante – ex- sentam comportamento dócil. Só se tor- vê-la à natureza. A equipe que se pontar na Ilha Grande, o pmp-bs registrou
põem os crimes mais violentos de Esco- nam agressivas em cativeiro. Identificadas encarregou da reabilitação fixou um apenas um outro encalhe de orca-pigmeia.
bar e seu cartel, da explosão da sede do pela primeira vez na segunda metade do pequeno rastreador na barbatana da or- Infelizmente, o cetáceo acabou morrendo.
jornal El Espectador aos políticos assas- século xix, não correm risco de extinção, ca-pigmeia. O aparelhinho retangular “Espero que Teresa continue no talude e
sinados a mando do traficante. conforme a União Internacional para a atua como um gps. “Precisávamos saber nunca regresse para a costa”, diz Carva-
O museu mantém ainda uma seção Conservação da Natureza. Habitam águas se, depois de solta, Teresa retornaria para lho. “Agora, se ela arrumar um modo de
sobre as origens do parque. Para adquirir tropicais e subtropicais de todo o mundo, o talude”, diz Carvalho. O pesquisador enviar notícias, a gente agradece.” J
uma propriedade daquelas dimensões, mas são difíceis de encontrar (e estudar) da Uerj integra o Laboratório de Mamí- Armando Antenore
Escobar extorquiu vários pequenos pro- porque nadam longe da costa, nos chama- feros Aquáticos e Bioindicadores, que faz
prietários, obrigados a optar entre plata o dos taludes – regiões oceânicas com mais parte da faculdade de oceanografia e
plomo (dinheiro ou chumbo) – bordão de 200 metros de profundidade. assessora o pmp-bs. “Alcançar de novo o CÂMERA YANOMAMI
tenebroso que ainda hoje é estampado talude seria o principal indicativo de que Um documentarista indígena

À
em camisetas vendidas aos turistas em Me- s 16 horas do último dia 4 de março, Teresa sarou totalmente e conseguiu se sonha com o Oscar
dellín. Na própria Hacienda, não se ven- dois policiais militares patrulhavam reorientar”, prossegue o biólogo.

U
dem quinquilharias lembrando Escobar. a Ilha Grande, em Angra dos Reis, Em 18 de março, um barco partiu ma das mais conhecidas e respeita-
Lá, os souvenirs com mais saída trazem a quando avistaram Teresa. Ela havia se cedinho de Angra com a orca-pigmeia das lideranças indígenas do Brasil, o
imagem de Vanessa. A hipopótamo man- perdido e encalhado na Praia de Provetá. no convés. Ela estava sobre um colchão yanomami Davi Kopenawa é muito
dona é agora o verdadeiro capo do lugar. J Estava muito distante de casa, já que o inflável. Um grupo de veterinários ave- procurado por jornalistas na sua aldeia de
Matheus Gouvea de Andrade talude fica a 140 km daquele ponto do li- riguava a frequência cardiorrespiratória Watoriki (região do Rio Demini), na divisa
toral fluminense. “Os golfinhos se deso- e a temperatura do golfinho. Também entre Amazonas e Roraima. No início dos
rientam por diferentes motivos”, afirma molhava regularmente seu corpo com anos 2000, sempre que uma equipe de fil-
O SUMIÇO DE TERESA Carvalho. “Às vezes, o ruído de navios ou água salgada. “Navegamos por duas ho- magem chegava à aldeia, o agente de saú-
Depois de encalhar em Angra, de atividades petrolíferas os atrapalha. Ou- ras e percorremos uns 35 km”, recorda de indígena Morzaniel Ɨramari, também
ela não manda mais notícias tras vezes, o desnorteamento resulta da Carvalho. “Quando cruzamos a Baía da do povo Yanomami, aproximava-se para
poluição marítima ou de alguma doença.” Ilha Grande, libertamos Teresa.” acompanhar o trabalho dos cinegrafistas.

C
adê Teresa? Ela nunca dava as ca- Embora respirem fora d’água, pois O rastreador indicou que, num pri- A equipe da Hutukara Associação Ya-
ras. Numa tarde de março, chegou têm pulmões e não brânquias, as orcas- meiro momento, a orca-pigmeia se man- nomami, de Boa Vista, notou o entusias-
sem avisar. Estava bem desorien- pigmeias podem morrer caso encalhem e teve perto da costa fluminense. Passou mo de Ɨramari pelas gravações e decidiu
tada. Precisava de ajuda. Muita gente se ninguém as acuda. Em terra, a força da pela Barra da Tijuca e pelas Ilhas Cagar- convidá-lo a participar do projeto Pontos
comoveu e fez de tudo para animá-la. gravidade lhes pressiona excessivamente ras. Na altura de Maricá, se afastou das de Cultura Indígena, parceria do governo
Funcionou. Teresa se recuperou, ainda os órgãos, o que acaba por sobrecarregá- zonas costeiras até atingir o talude em federal com o Vídeo nas Aldeias – promo-
que lentamente. Ficou tão aprumada que, los. Não bastasse, a pele delas resseca bem Arraial do Cabo. Depois, desceu para vido por uma organização não governa-
certa manhã, pegou carona num barco rápido e ganha feridas preocupantes. Há, São Paulo e atravessou o Paraná. Ao lon- mental para estimular oficinas audiovisuais
e caiu fora, mas jurou que mandaria ainda, o alto nível de estresse que qual- go do trajeto, zanzou por mares com em diferentes aldeias indígenas.
notícias. Por um tempo, cumpriu a pro- quer bicho selvagem manifesta quando quase 2 km de profundidade. “Não faze- Em 2009, ele recebeu um kit com
messa. Enviou mensagens bastante alen- sai do habitat natural. Na esperança de mos ideia se Teresa arranjou companhia. equipamento de produção audiovisual.
tadoras, em que demonstrava se sentir salvar Teresa, a dupla de pms a isolou e O rastreador não capta informações des- Abriu o pacote com todo cuidado. “Quan-
cada vez melhor. De uma hora para ou- pediu auxílio especializado. Os biólogos, se tipo”, esclarece Carvalho. do peguei a câmera, eu estava segurando
tra, porém, meteu um ghosthing e sumiu veterinários e oceanógrafos convocados O aparelho transmitiu a última locali- uma criança. A minha criança. Na hora,
sem dizer tchau. Será que, um dia, vai logo perceberam que o golfinho necessi- zação da orca-pigmeia em 8 de abril. Ela agradeci a todo mundo e me emocionei
aparecer novamente? tava de socorro hospitalar. Na manhã do ainda estava no talude, mas se aproxima- muito”, lembra Ɨramari, de 43 anos. No
Não, a Teresa daqui não tem nenhum dia 5, depois de quinze horas encalhada, va de Florianópolis. “Perdemos o sinal do ano seguinte, ele concluiu sua formação
parentesco com aquela do Jorge Ben Jor, ela finalmente pegou uma lancha para o rastreador. O equipamento deve ter que- pelo projeto e começou a carreira de di-
que resolveu sambar no morro e jamais Centro de Reabilitação e Despetroliza- brado ou ficado sem bateria. Uma pena...”, retor, que agora chama a atenção em
voltou. A protagonista desta história é uma ção de Animais Marinhos, também em lamenta o biólogo. “Rastreadores não fun- festivais no Brasil e no mundo, com o
orca-pigmeia. Como pertence à família Angra. Foi lá que a batizaram de Teresa, cionam para sempre, claro. O de Tere- documentário Mãri hi – A Árvore do So-
dos delfinídeos, os cientistas a consideram uma brincadeira com o nome científico sa nos abasteceu de dados por 22 dias. nho, seu segundo curta-metragem.
um tipo de golfinho. Ela, de fato, lembra das orcas-pigmeias (Feresa attenuata).
os cetáceos que equilibram bolas ou cru- Exames mostraram que a paciente de-
zam arcos em parques aquáticos. Não dis- senvolvera uma pneumonia grave, além
põe, no entanto, do “bico” característico de de alterações neurológicas que a faziam
seus parentes mais conhecidos. Em vez nadar sem direção e flutuar de maneira
de pontiaguda, a boca de Teresa é arredon- inadequada – seu corpo sempre virava de
dada. Daí a associação com a orca, tam- lado. Por duas semanas, doze profissio-
bém um golfinho sem “bico”, apesar de o nais cuidaram de Teresa em três piscinas
senso comum defini-la como uma baleia. de tamanhos diferentes. “Nunca a deixá-
Predominantemente negra, Teresa vamos sozinha. Mesmo à noite, tinha al-
exibe manchas esbranquiçadas na barri- guém dentro d’água para impedi-la de
ga. Mede 2,25 metros e pesa 116 kg. Nin- afundar ou ficar parada durante muito
guém sabe direito quando nasceu, mas tempo”, conta a veterinária Anneliese
tudo indica que se trata de um mamífe- Kyllar. A médica é uma das coordena-
ro adulto (as orcas-pigmeias vivem cerca doras do Projeto de Monitoramento de
de trinta anos). Com 22 dentes na man- Praias da Bacia de Santos (pmp-bs), execu-
díbula superior e 26 na inferior, gosta de tado pela Petrobras desde 2015 em parce-
comer peixes e lulas. Costuma se deslo- ria com diversas instituições públicas e
car em grupos de pelo menos quatro privadas. A iniciativa busca diminuir o
indivíduos. Não raro, um deles mordis- impacto que a produção e o escoamento
ca a nadadeira do outro. “É um jeito de petróleo exercem sobre as aves, os ma-
de se comunicarem. Humanos trocam míferos marinhos e as tartarugas nos mu-

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Em abril, o filme de Ɨramari levou tido, como artistas, nos entremeamos aos por causa de uma linha de trem que pas- O escultor trabalha na marcenaria
o prêmio de melhor documentário bra- yanomamis”, diz a diretora, sobrinha-neta sava por lá. Um dos nove filhos do primei- que herdou do pai. A sua matéria-prima
sileiro de curta-metragem no festival da antropóloga Manuela Carneiro da ro casamento de Otávio – que teve outros vem da mata do Subúrbio Ferroviário.
É Tudo Verdade, em São Paulo. A dis- Cunha, que atua há décadas na defesa dos três, de uma segunda relação –, César Em geral, são pedaços de tronco de ja-
tinção habilita o filme a se inscrever na direitos dos povos indígenas. trabalhava com o pai na marcenaria de queira que ele mesmo recolhe. A ma-
disputa do Oscar na categoria docu- pé-direito alto e paredes descascadas. deira é lixada, marcada à caneta e então

A
mentário de curta-metragem, dada a repercussão dos filmes feitos por Otávio fazia esculturas de divindades esculpida em uma mesa atulhada de
qualificação do festival pela Academia indígenas vem despertando o entu- africanas usando o maquinário da marce- apetrechos de trabalho – uma espécie
de Artes e Ciências Cinematográficas, siasmo de jovens yanomamis pelo naria. “Ele dava um acabamento inacre- de bagunça organizada.
dos Estados Unidos. No dia 14 de ju- cinema. Gabriela Carneiro da Cunha ditável nas peças. São obras monumentais De início, César fazia máscaras de
nho, o diretor desembarcou na Inglater- está estudando até mesmo a viabilidade no refinamento. Os orixás dançam, têm orixás. Com o tempo, passou a esculturas
ra para a exibição de A Árvore do Sonho de criar um polo audiovisual yanomami, rostos, gestos, são singulares”, diz José de corpo inteiro. “Aí fui criando Xangô,
na seleção oficial do Sheffield DocFest, para formar novos cineastas nas aldeias. Eduardo. César também cria divindades Oxum, Iemanjá”, conta. Assim como o
mas fora da mostra competitiva. Foi o Ela aponta Ɨramari como o grande inspi- africanas, mas em um estilo diferente, pai, César desenha antes as figuras. Os
oitavo festival de cinema de que partici- rador da juventude: “Morzaniel tem de- que privilegia o trabalho manual. Ele desenhos surpreendem pela forma realis-
pou no primeiro semestre. No dia 29, a sempenhado um papel fundamental de lixa, esculpe e pinta sempre à mão, em ta, como se fossem saltar do papel. De
35a Bienal de São Paulo anunciou que fomentador do cinema yanomami junto cores fortes – preto, azul-marinho, ver- acordo com Campos, as esculturas de
Ɨramari é um dos nomes convidados aos jovens, abrindo novos caminhos.” melho, amarelo e roxo. César, em cores vivas, vão na direção
para a mostra de arte, que será aberta O risco de que esses filmes possam es- Em 28 de abril, o Museu de Arte do Rio oposta à tendência que predominou na
em setembro. capar à compreensão do público que não (mar) abriu as portas para uma mostra in- escultura moderna, de valorizar as carac-
tem conhecimento prévio da realidade dos dividual da obra de César, chamada Uma terísticas do material usado e o aspecto

F
oi entrevistando os xamãs, conver- povos amazônicos não parece preocupar Poética do Recomeço, com mais de duzen- construtivo das obras, em vez da figura-
sando com a população da aldeia e os diretores. “Estamos trabalhando para tos trabalhos. De toda a numerosa família, ção e das cores. “Você vai ter, por exemplo,
filmando os rituais de seu povo que cheguem ao maior número de pes- só César e sua irmã Nilcéia Francisca se- escultores do metal que ficaram presos a
que Ɨramari estreitou a relação com a soas possível, dos mais diversos grupos”, guiram a arte do pai. uma relação em que o próprio material
câmera e com a linguagem cinemato- diz Eryk Rocha – que é filho de Glauber vai ter sua verdade”, diz Campos, citando

N
gráfica. Esse ambiente familiar inspirou Rocha. “Entendemos que este é um mo- ascido e criado no subúrbio de Sal- o brasileiro Amílcar de Castro e o norte-
sua primeira produção, o curta Xapiripë mento em que as bolhas podem ser furadas, vador, César Bahia tem 58 anos e americano Richard Serra.
Yanopë – Casa dos Espíritos, de 2010. dada a importância geopolítica da Amazô- marcas de expressão que parecem

C
Em 2014, dirigiu o primeiro longa-metra- nia, dos yanomamis e dos povos indígenas esculpidas no rosto negro. De olhos pe- ésar Bahia não deixou os pedaços de
gem, Urihi Haromatimapë – Curadores para o Brasil e para o mundo.” Os curtas quenos e nariz protuberante, ele anda jaqueira, as tintas e as machadinhas
da Terra-Floresta, que ganhou o prêmio realizados pelos yanomamis também abor- sempre com a mesma indumentária: ber- de sua marcenaria para comparecer
de melhor filme do festival Forumdoc.bh, dam os problemas graves enfrentados por muda, camisa de manga curta aberta até à abertura de sua exposição no Rio de Ja-
em Belo Horizonte. seu povo, sobretudo com o avanço do ga- o peito e boné cobrindo os cabelos grisa- neiro. “Não fui, não. Não gosto de avião”,
Depois de um hiato de nove anos – rimpo durante o governo Bolsonaro. lhos. Tímido, prefere se expressar mais diz. O artista prefere a vida tranquila
quando se dedicou a outras atividades –, Perguntado sobre o que diria na en- pelas esculturas do que pelas palavras. que leva em Salvador. Divorciado, mora
Ɨramari lançou Mãri hi – A Árvore do So- trega do Oscar, se seu curta fosse pre- Sua mãe era empregada doméstica e com o irmão, Fábio, que é marceneiro,
nho, em parceria com a Aruac Filmes, a miado, Ɨramari apelou ao sentimento de separou-se de Otávio quando César ti- na casa que pertenceu ao pai, onde tam-
Hutukara Associação Yanomami e o Ins- solidariedade dos espectadores de todo o nha 8 anos. O pai ficou com as crianças bém está instalada a marcenaria.
tituto Socioambiental. Narrado por Kope- mundo: “Eu falaria assim: ‘Olá, meus e ensinou aos filhos as técnicas que apren- Ele vende seus trabalhos na internet e
nawa, o curta-metragem de 17 minutos amigos e autoridades presentes. Eu estou dera por conta própria. “Meu pai arrastou no Mercado Modelo de Salvador (por pre-
fala sobre os sonhos, que segundo os ya- muito feliz que todos vocês estão assis- a gente, fui criado e nascido na arte”, ços entre 100 e 200 reais; no Rio, as peças
nomamis são uma das formas de comuni- tindo meu filme para conhecerem a nos- diz César. “Não fui muito pra escola, não. chegam a 1 mil reais). Algumas obras são
cação com a natureza. “Quando as flores sa imagem. Não é só assistir, têm que Parei na quarta série do primário. Mas feitas por encomenda e outras vão para o
da árvore Mãri nascem, nós sonhamos.” sentir o que nós estamos vivendo na ter- deu para ler alguma coisa.” Acervo da Laje. Dedicado ao seu ofício,
As visões que os xamãs têm nos sonhos ra yanomami. É muito importante o É uma tradição na qual César se in- de onde tira o sustento, César trabalha
são sinais enviados pela floresta – pedidos apoio de vocês.’” J sere: a dos grupos familiares dedicados à com muita concentração e apuro, como
de ajuda, alertas e ensinamentos. Depois, Pedro Tavares arte e ao artesanato. “São famílias intei- se pode verificar em cada peça que faz.
eles repassam a mensagem ao seu povo. ras no Brasil que vivem desse ofício, mas Nem sempre foi assim. O alcoolismo
“Para mim, esse filme representa a luta que não são contempladas pelo sistema foi um entrave sério na vida do artista, que
para defender a nossa terra. O filme é o DEUSES DO SUBÚRBIO da arte”, diz Marcelo Campos, curador- começou a beber ainda na adolescência.
meu sentimento”, diz o diretor. Um artista de Salvador se chefe do mar e um dos responsáveis pela Seu casamento fracassou em boa parte
A Árvore do Sonho faz parte de um consagra esculpindo orixás individual de César, que fica em cartaz por causa disso, e foi também o álcool que
projeto maior, chamado A Queda do até 30 de julho. atrasou em alguns anos o seu progresso

O
Céu – título de um livro de Kopenawa e távio Bahia costumava vender suas profissional e artístico. “Queria trabalhar,
do antropólogo francês Bruce Albert –, esculturas no Mercado Modelo, no mas a bebida não deixava”, conta. Só aos
desenvolvido pelo casal de diretores Centro de Salvador, em frente ao 50 anos ele conseguiu se concentrar de
Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Elevador Lacerda. Em 2010, ele foi des- vez nas madeiras e nas divindades que es-
Cunha. Além de A Árvore do Sonho, ou- coberto pelos curadores José Eduardo e culpe. “Já estou sem beber faz oito anos.”
tros dois curtas foram lançados em 2023 Vilma Ferreira Santos, empenhados em Dois anos atrás, ele enfrentou um dos
pelo projeto, ambos dirigidos por Aida registrar o trabalho do maior número piores testes de resistência que um alcoó-
Harika, Roseane Yariana e Edmar Toko- possível de artistas residentes na periferia latra em recuperação pode suportar: per-
rino: Yuri u Xëatima Thë – A Pesca com da capital baiana. Para abrigar as obras, o deu sua filha mais velha, de 30 anos (ele
Timbó e Thuë Pihi Kuuwi – Uma Mulher casal fundou o Acervo da Laje, hoje um prefere não lembrar a causa da morte).
Pensando. Harika e Yariana são as pri- centro importante de formação e divul- Conseguiu seguir em frente, sem recor-
meiras mulheres yanomamis a assinar a gação de artes visuais. Otávio Bahia qua- rer à garrafa. “Deus não permitiu”, diz
direção de produções cinematográficas. se não teve oportunidade de participar César, que é católico. Ele tem outra filha
Além de produzirem os curtas-metra- do projeto: morreu naquele mesmo ano. e duas netas. E segue adiante, contando
gens, Rocha e Cunha estão realizando Mas uma das revelações do Acervo da com o apoio dos curadores José Eduardo
ANDRÉS SANDOVAL_2023

um longa-metragem sobre os yanomamis, Laje é seu herdeiro direto, César Bahia. e Vilma Ferreira Santos. “Estão me aju-
que deve ser lançado no ano que vem. O casal Ferreira Santos conheceu Cé- dando, me empurrando aos poucos”,
“Dirigir um filme é seguir sonhando com sar quando foi visitar o local de trabalho diz. “É tocar para frente. Estou com saú-
a criação todos os dias, desde o primeiro de Otávio, no bairro Fazenda Coutos, no de, graças a Deus.” J
desejo até ele explodir na tela. Nesse sen- Subúrbio Ferroviário, assim chamado Danilo Thomaz

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vultos latino-americanos

EL PROVOCADOR
Quem é Javier Milei, o deputado de ultradireita que quer ser presidente da Argentina

SYLVIA COLOMBO, de Buenos Aires

“A
casta tem medo! A cas- 19% e 21% dos votos. Está atrás das duas Espanha, uma das alianças mais sólidas de um assunto do interesse do Estado.
ta tem medo!” principais forças políticas, a centro-es- de Milei é com o Vox, o partido da extre- Quando fala sobre seu estado civil, con-
Esse era o grito que querda e a centro-direita, que atraem em ma direita, que o convidou para partici- trariando o discurso que celebra a famí-
se ouvia na Feira Inter- torno de 30% do eleitorado cada uma. par de um ato público em outubro do lia tradicional, diz que não acredita no
nacional do Livro de Seu partido, La Libertad Avanza, tem ano passado. Na ocasião, Milei fez duras casamento. Por isso, é solteiro, vive ape-
Buenos Aires, no dia 14 de maio, quando apenas dois anos de vida, dois deputados, críticas à “ideologia de gênero”, o mantra nas com seu cão, um mastim inglês cha-
Javier Milei chegou, cercado por segu- nenhum senador, governador ou prefei- internacional da ultradireita, e disparou: mado Conan e seus quatro filhotes. Sua
ranças, agitando os braços e saudando os to, mas Milei virou um fenômeno polí- “Vamos à luta contra o zurderio”, usando última namorada conhecida foi uma
fãs, em meio a uma atmosfera parecida tico. Está atraindo uma parte da direita um termo depreciativo para designar a cantora, Daniela Mori, intérprete de um
com a de um show de rock ou de uma e quase toda a extrema direita. A sua re- esquerda (vem de zurdo, canhoto), algo hit local, Endúlzame que Soy Café (Me
partida de futebol. Milei estava ali para tórica ferozmente antiesquerda e antico- semelhante à palavra “esquerdalha”. adoce que sou café). Com a candidatura
falar sobre seu livro recém-lançado El Fin munista, bem como sua demonização do Milei não se identifica totalmente presidencial, foi aconselhado a se casar,
de la Inflación, em cuja capa é retratado sistema político, colocam Milei ao lado como um extremista de direita, mas es- mas se mantém firme na sua oposição
como alguém com poderes mágicos, que de estrelas da extrema direita, como Do- colheu a deputada ultradireitista Victo- ao matrimônio.
espanta uma força invisível com as mãos. nald Trump e Jair Bolsonaro. Com eles, ria Villarruel para ser sua companheira Milei conjuga essas posições ora com
Mas seus admiradores não estavam mui- Milei compartilha algumas ideias cen- de chapa. Villarruel comanda uma en- liberalismo, ora com ultraliberalismo.
to preocupados com livros ou debates trais e o estilo provocador. tidade de assistência aos que se dizem Diz, inclusive, que é a favor da compra e
acadêmicos sobre economia. É amigo do deputado Eduardo Bol- prejudicados pela guerrilha de esquerda venda de órgãos humanos porque, tam-
“A casta tem medo! A casta tem medo!” sonaro, que visita a Argentina de vez na ditadura. Milei não chega a defender bém aqui, se trata de uma transação co-
O grito de guerra se misturava com a em quando na sua função de diplomata a ditadura militar da Argentina (1976-83), mercial entre pessoas adultas na qual o
bandeira de Gadsden, na qual se vê, so- da ultradireita. Concluído o segundo tur- mas alia-se aos seus defensores. Acha que Estado não deve se imiscuir. O cientis-
bre um fundo amarelo, a imagem de no da eleição brasileira, Milei telefonou a esquerda exagera o número de vítimas ta político Pablo Touzon, da Universida-
uma cobra com os dizeres Don’t tread on não para o vitorioso, mas para Bolsonaro. da repressão do Estado e repudia os mo- de de Buenos Aires e coautor dos livros
me (Não pise em mim). Usada na Guer- “Queria felicitá-lo pelo excelente resulta- vimentos de mães e avós que buscam iden- ¿Qué Hacemos con Menem? (O que faze-
ra da Independência dos Estados Uni- do que teve”, contou em um programa de tificar os desaparecidos políticos e seus mos com Menem?) e La Grieta Desnu-
dos, em 1776, a bandeira de Gadsden foi tevê. Não parabenizou Lula e “muito me- filhos. É contra a educação sexual nas da: El Macrismo y su Época, (A fratura
ressuscitada pela extrema direita norte- nos o povo brasileiro” porque entende que escolas, contra o aborto e a favor das ar- nua: o macrismo e sua época), este sobre
americana, que passou a levantá-la em o eleitorado “elegeu justamente quem vai mas. Na economia, defende a dolariza- os anos de governo de Mauricio Macri,
manifestações contra a “casta”, espalhou- destruí-lo”. Milei acha que os brasileiros, ção da Argentina, a privatização de tudo entende que Milei é movido por uma
se pelo mundo e chegou à Argentina. ao escolher Lula pela terceira vez, conver- o que for possível, a redução do tamanho espécie de ortodoxia ultraliberal tempe-
Milei, 52 anos, é economista, está no teram-se ao “socialismo do século xxi”. do Estado, a saída do Mercosul e a extin- rada com elementos de extrema direita,
primeiro mandato como deputado e No Chile, Milei torceu pela vitória do ção do Banco Central. em que o político vê a si próprio como
concorre à Presidência da Argentina na advogado José Antonio Kast na eleição de Milei tem posições estranhas à car- um guerreiro contra o Estado.
eleição do próximo dia 22 de outubro. dezembro de 2021. Kast, que chegou ao tilha convencional da ultradireita. É a Com esse currículo, Milei tornou-se
Segundo as sondagens mais recentes, segundo turno, mas perdeu, é um admi- favor do casamento gay, por exemplo. um fenômeno político na Argentina.
embora bastante preliminares porque a rador do ditador Augusto Pinochet e vem Acha que é um contrato como qualquer E, nos últimos meses, uma das obsessões
campanha está apenas no começo, Milei ocupando o espaço político antes toma- outro, desde que feito entre pessoas dos analistas políticos do país é explicar
ocupa o terceiro lugar, oscilando entre do pela direita democrática chilena. Na maiores de idade. Não se trata, portanto, a crescente adesão à sua candidatura.

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Javier Milei: as suas propostas econômicas, como dolarizar a economia e passar uma motosserra no Banco Central, são feitas mais para agradar o eleitorado do que encontrar soluções reais

F
ilho de um motorista de ônibus e de empresários de peso, como Eduardo bam transbordando para as redes sociais e (Ambos foram eleitos, mas a relação en-
uma dona de casa, Javier Milei nas- Eurnekian, um dos homens mais ricos reverberando no debate público em geral. tre eles azedou. Hoje são inimigos.)
ceu em Buenos Aires, mas cresceu da Argentina, dono da emissora de tevê Nas farándulas, Milei manteve o per- Na campanha, Milei aprimorou seu
em Sáenz Peña, distrito de classe média América e de vários aeroportos. Nesse sonagem histriônico que criara, mas, sen- talento cênico para arengar às massas.
da grande área metropolitana da capital, meio-tempo, incluindo o recente El Fin tindo que sua popularidade crescia, foi Seus comícios ao ar livre, levados aos
a Amba. Hoje com 13 milhões de habi- de la Inflación, escreveu onze livros, a ficando cada vez mais desbocado, mais bairros de classe média e à periferia,
tantes, a Amba é o lugar onde pulsam os maioria sobre economia. exibicionista, mais provocador. Já não fa- eram planejados como espetáculos rui-
problemas mais agudos do país – a po- Em 2017, aos 46 anos, já como um eco- lava apenas de economia. Falava de tudo dosos. Pareciam shows, com fumaça
breza, o impacto da inflação, a desigual- nomista respeitado, Milei lançou um pro- e nunca se furtava a contar alguma histó- seca lançada ao público e música de
dade. “Meu pai trabalhou a vida inteira grama de rádio batizado de Demoliendo ria pessoal peculiar. Em um programa, abertura no estilo heavy metal. Milei
e mal pôde sustentar a família”, disse Mitos (Derrubando mitos), transmitido disse, cheio de suspense e um falso ar de entrava no palco pulando e gritando
Milei a um programa de televisão. na emissora online Conexión Abierta e seriedade, que fora instrutor de sexo tân- suas frases prediletas. Uma delas: “Não
Na juventude, ele se envolveu com no YouTube. O programa era gravado num trico e frequentador de orgias, mas, como vim aqui para guiar cordeiros, mas para
suas maiores paixões – a música e o fute- estúdio precário, às vezes na própria sala resistia ao máximo a atingir o gozo, aca- comandar leões.” Concorrendo pela ci-
bol. Participou de uma banda cover dos de trabalho de Milei, que aparecia no ví- bou ganhando o apelido de vaca mala dade de Buenos Aires, recebeu 17% dos
Rolling Stones, quando passou a usar a deo vestido de modo informal. Ali, ele co- (vaca má) porque “dava pouco leite”. Em votos e tornou-se um dos dois parlamen-
jaqueta de couro que faz parte até hoje do meçou a entoar certos mantras políticos, outro programa, revelou que não fala com tares do La Libertad Avanza.
seu uniforme e adotou o cabelo cuidado- já sinalizando suas ambições eleitorais: seus pais há mais de uma década, embora Como costuma acontecer com os
samente despenteado. (Ele diz que não se “Não sou neoliberal, sou anarcocapitalis- sua mãe tenha assumido agora uma fun- que fazem campanha na base da provo-
penteia desde os 13 anos.) Também fazia ta” e “Se não me elegerem, a Argentina ção importante na sua campanha. Segun- cação, Milei não se empenhou muito
covers de cantores populares argentinos, cairá num abismo”. Usava os fatos da se- do ele, seu pai o tratava com violência no trabalho legislativo. Seus colegas de
como Leonardo Favio (1938-2012), cuja mana para atacar políticos e economis- física e psicológica. Chamou-o de “nefas- Parlamento dizem que ele usa o cargo
marca era um lenço amarrado à cabeça. tas, às vezes aos berros e usando termos to” e disse que sua mãe era “cúmplice”. mais para fazer propaganda do que para
Nos campos de futebol, tentou a carreira chulos. Não deu muito certo. Atraiu me- apresentar propostas. Não se tem notícia

E
como goleiro do Chacarita Juniors – time nos de 15 mil seguidores, mas operou m 2019, o economista José Luis Es- de nenhum projeto relevante que tenha
de bairro, hoje na segunda divisão –, mas uma mágica: seu jeito espalhafatoso e pert, um dos amigos mais próximos sugerido. Também não fez muitos ami-
desistiu. Foi torcedor do Boca Juniors, agressivo caiu nas graças das emissoras de Milei, resolveu criar um partido gos entre os deputados. Toda vez que
mas agora torce para o River Plate. de tevê ávidas por audiência. para reunir economistas liberais. Lan- entra em votação um projeto dos pero-
Apesar das dificuldades financeiras, Começou então a participar das farán- çou a Frente Despertar e concorreu, ele nistas, a força de centro-esquerda que
conseguiu estudar economia na Univer- dulas, como são chamados os programas mesmo, à Presidência da Argentina. governa a Argentina, Milei deixa o ple-
sidade de Belgrano, uma prestigiada ins- do horário nobre da tevê argentina que Colheu um fracasso espetacular, com nário para não dar quórum. Se o quó-
tituição privada. Depois de formado, reúnem convidados de todo o tipo – em- 1,4% dos votos. Dois anos depois, em 2021, rum é alcançado, volta – e vota contra.
fez uma especialização na Universidade presários, modelos, políticos, jogadores de Espert voltou às urnas, desta vez dispu- “Milei é um bom economista teórico,
Torcuato Di Tella, também particular, e futebol – e todo mundo dá opinião sobre tando uma cadeira de deputado. Milei sabe livros de cor, mas é mau político,
passou a dar aulas em instituições de en- tudo, dos assuntos mais vulgares às gran- ligou-se à empreitada, mas logo desani- não está buscando articular apoios no
sino superior. Fora do meio acadêmico, des questões nacionais. É uma algaravia mou e resolveu lançar-se sozinho na po- Congresso, onde dificilmente teria maio-
acabou se estabelecendo como consultor que mistura debate, noticiário e show de lítica. Criou então o partido La Libertad ria para governar”, disse à piauí o deputa-
de grupos financeiros, como o hsbc, e variedades. E as disputas e anedotas aca- Avanza e também concorreu a deputado. do Martin Tetaz, de centro-direita, que já

piauí_julho 15
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sa campanha digital que rejeitou a proeminente do peronismo. Havia três
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proposta de nova Constituição do Chile, nomes principais na disputa. O embai-


impondo uma dura derrota à esquerda e, xador Daniel Scioli, que representa a
em especial, ao presidente Gabriel Boric. Argentina em Brasília, e dois ministros:
As dificuldades da campanha de Milei, Eduardo “Wado” de Pedro (do Interior)
no entanto, são óbvias. Seu partido é elei- e Sergio Massa (da Economia). No dia
toralmente inexpressivo. Por isso, Milei 24 de junho, Massa acabou sendo o no-
tem viajado pelo interior em busca de me escolhido pelos peronistas.
apoio. Em Tucumán, a província histórica A Frente de Izquierda y de Trabaja-
onde foi declarada a independência da dores, embora venha apresentando um
Argentina em 1816, aliou-se a familiares crescimento tímido, não está no pelo-
do general Antonio Domingo Bussi, um tão de frente.Na história argentina, a
genocida condenado por sequestros e mor- esquerda, de modo geral, foi engolida
tes durante a ditadura, morto aos 85 anos. pelo peronismo. No entanto, se não
Seu filho, Ricardo Bussi, concorreu ao têm força para disputar a Casa Rosa-
governo de Tucumán e, apesar do apoio da, as legendas de esquerda entrarão
de Milei, amargou um humilhante ter- em cena para derrotar Milei. “Ele tem
ceiro lugar, a mais de 30 pontos do se- uma intenção de votos ao redor de 20%,
gundo colocado. Em Salta, província mas isso não corresponde a uma constru-
montanhosa do noroeste argentino, Mi- ção política de quadros, de militantes.
lei escolheu como aliado o político e Essa estrutura, nós já temos historica-
empresário ultraconservador Alfredo mente e pretendemos aumentá-la, por-
Olmedo, que defende a construção de que será nossa maneira de ajudar a
um muro para barrar a entrada de imi- derrotá-lo”, disse à piauí o ex- deputado
grantes bolivianos na Argentina. Em La Christian Castillo, do Partido de los
Rioja, fechou o apoio do clã do ex-presi- Trabajadores Socialistas, que integra a
dente Carlos Menem, que presidiu o país Frente de Izquierda.
por uma década e morreu em 2021. Me- Pelas regras eleitorais, todos os can-
nem era um peronista liberal. didatos precisam se submeter a uma
gravou mais de um vídeo para denunciar argentinos já sofreram muito, é boa a De todo o modo, as alianças regionais espécie de primárias, as chamadas Paso
a indisposição de Milei para o trabalho. chegada de alguém tão vibrante em de Milei estão longe de sugerir a monta- (Primárias, Abertas, Simultâneas e Obri-
Num deles, Tetaz aparece levando um cena”, disse ele, em conversa com a piauí. gem de uma força em nível nacional. As gatórias), que serão realizadas no dia
convite até o gabinete de Milei no Con- Nas redes sociais, Milei dança, canta e pesquisas informam que, se Milei conse- 13 de agosto. Todos os eleitores são cha-
gresso para que aceite realizar um debate costuma exibir uma motosserra, para ilus- guir consolidar o maior arco de apoios mados a votar para escolher os candida-
com ele, que também é economista. Ele trar sua proposta de podar a administra- possível neste momento, ainda assim não tos de cada chapa. Como não deve haver
bate na porta seguidas vezes, em vão. ção pública. Propõe reduzir os ministérios elegerá mais do que dezesseis deputados e disputa no caso dos peronistas, nem da
Milei tem a mesma inclinação da ex- de dezoito para oito, além de eliminar cinco senadores. É um número tão irrele- ultradireita, as Paso serão fundamentais
trema direita no Brasil, que gosta de setores inúteis da burocracia estatal. Ele vante num Parlamento com 257 cadeiras para escolher o candidato da direita de-
provocar os adversários inventando troca- tem centenas de páginas no YouTube e de deputados e 72 de senadores que obri- mocrática, definindo a disputa entre
dilhos e apelidos jocosos. A coalizão dos contas no TikTok, onde seus fãs postam garia Milei a buscar apoio numa casa que, Larreta e Bullrich. Do dia 13 de agosto
peronistas hoje se chama Unión de la Pa- vídeos de propaganda do candidato. Hoje, até aqui, ele despreza. Confrontado com em diante, com todos os presidenciáveis
tria, mas quando seu nome era Frente Milei tem 750 mil seguidores no Twitter esse cenário, Milei desconversa, dizendo oficialmente definidos, Milei, pela pri-
de Todos, Milei apelidou-a de Frente de e 1,7 milhão no Instagram. São números que a saída seria convocar referendos. meira vez nos últimos nove meses, dei-
Chorros (Frente de ladrões). A coligação vistosos para redes sociais na Argentina, Em boa medida, o desempenho de xará de ser o único candidato na pista.
Juntos por el Cambio (Juntos pela mudan- embora estejam aquém da audiência do Milei nas pesquisas se explica pelo fato

A
ça), que reúne a centro-direita e compõe presidente peronista Alberto Fernández, de que seus adversários só começaram a crise econômica da Argentina, as-
a segunda força política, ele chama de que tem 2,3 milhões de seguidores no ser escolhidos no dia 24 de junho. Até en- sim como dificulta a vida dos pero-
Juntos por el Cargo, para chamar a atenção Twitter e 2,5 milhões no Instagram. tão, ele fazia campanha sem concorrentes nistas, facilita a vida dos adversários
às práticas fisiológicas de seus políticos. Na sua estrutura de campanha, há definidos. (As pesquisas mostram que 15% – sobretudo de Milei, que tem a vanta-
Como candidato presidencial, man- duas figuras importantes. Karina, sua dos eleitores estão no grupo dos indecisos gem de nunca ter ocupado o centro de
tém o estilo histriônico. Nas aparições irmã – a quem ele chama de “o chefe”, no e do voto em branco.) A centro-direita, poder nessas últimas décadas de tumulto
públicas – no palco, na tevê, nas redes masculino mesmo –, organiza a agenda representada na aliança Juntos por el intermitente. Nos debates de tevê, aos
sociais – dá declarações eloquentes e do candidato, faz a ponte com a impren- Cambio, é liderada pelo ex-presidente quais é convidado ora como candidato,
raivosas, em meio a lances teatrais. Lon- sa, coordena a equipe de redes sociais e Mauricio Macri e ainda se divide entre ora como economista, ele desce o sarrafo
ge das câmeras, no entanto, o persona- lhe dá conselhos. Na única entrevista que dois nomes: Horacio Rodríguez Larreta, no governo. A situação, de fato, é dramá-
gem some. Milei é um sujeito calmo, se concedeu até hoje, para o Clarín, Karina que comanda Buenos Aires, a capital que tica. A inflação já passa dos 100% ao ano,
expressa de modo pausado e desapaixo- disse que não sabe por que o irmão resol- tem status parecido com o do Distrito Fe- o dólar paralelo custa o dobro do oficial,
nado. Mas, quando um holofote se acen- veu se meter com a política. “Ele chegava deral no Brasil, e Patricia Bullrich, ex-mi- as reservas cambiais do país estão secan-
de, ele arregala os olhos azuis, ergue os a ganhar 10 mil dólares por palestra”, dis- nistra de Segurança de Macri. Bullrich é do. O desemprego é crescente, a pobreza
braços e começa a atirar palavrões e in- se ela. “Poderia ficar muito bem assim, uma personagem singular. Descende de atinge mais de 40% da população e, para
sultos contra os opositores. sem se meter na lama da política.” duas famílias tradicionais e influentes na completar, o país vive uma seca severa, o
Javier Milei não tem apoio da grande A outra peça-chave é Fernando Ceri- Argentina nos anos 1970, atuou num gru- que é mortal para uma economia tão de-
mídia, mas, como os principais veículos medo, especialista em política digital. po guerrilheiro de esquerda durante a di- pendente da agroindústria e da pecuária.
são hostis ao peronismo, como os jornais Cerimedo, que trabalha de graça porque tadura, os Montoneros, depois se alinhou O arrocho econômico é tão severo que
Clarín e La Nación, ele acaba tendo visi- se diz alinhado com as ideias de Milei, ao peronismo e, com o tempo, foi-se incli- os protestos são quase diários em Buenos
bilidade. Nas emissoras mais alinhadas tem um currículo para mostrar. Traba- nando para a direita, onde está hoje. Aires, articulados por diferentes categorias
com o governo, no entanto, como o canal lhou para Mauricio Macri, o político de Os peronistas da Unión de la Patria, profissionais. Junto com a crise econômica,
c5n, é um proscrito. “O país precisa de centro-direita que presidiu o país de 2015 por sua vez, não poderão contar nem ampliou-se o sentimento de insegurança
um personagem assim, que entusiasme as a 2019. Em 2018, Cerimedo ajudou na com o atual presidente Alberto Fernán- pública entre os argentinos. No período de
pessoas, com pinta de transgressor”, fes- campanha de Jair Bolsonaro e, depois dez, que, impopular devido à crise eco- doze meses, entre maio de 2021 a maio
teja o ensaísta político peruano Jaime da vitória de Lula em outubro de 2022, nômica, desistiu de concorrer à reeleição, de 2022, o número de domicílios em cen-
Bayly, um prócer da direita latino-ame- fez um vídeo no YouTube denunciando nem com Cristina Kirchner, que governou tros urbanos cujos moradores sofreram
ricana na imprensa e profundo conhe- “fraude” nas eleições brasileiras. Em se- o país de 2007 a 2015, é a atual vice-pre- algum tipo de violência cresceu 4,1%, se-
cedor da política no continente. “Os tembro passado, ele comandou a vitorio- sidente e continua sendo a figura mais gundo o Laboratório de Pesquisa sobre

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Crime, Instituições e Política (Licip) da éramos o país com a menor inflação do

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Universidade Torcuato Di Tella. mundo.” Em seguida, Milei descreveu:
Nesse cenário, Milei apresenta-se “O que eu proponho é a livre competi-
como a solução radical para problemas ção das moedas e a reforma do sistema
crônicos do país. As pesquisas mostram financeiro. Assim, o mais provável é que
que o kirchnerismo – que começou com os argentinos escolham o dólar natural-
a eleição de Nestor Kirchner em 2003 e mente e, a partir daí, dolarizamos.”
se mantém vivo duas décadas depois pela A ideia de trocar o peso pelo dólar
força política de Cristina – está prestes a incendeia a imaginação do eleitor mais
sofrer uma derrocada, depois de ter per- jovem, da classe média e das periferias
dido 40% do seu eleitorado no pleito le- de Buenos Aires, com a promessa de pro-
gislativo de 2021. O grande culpado, dutos importados mais baratos, acesso a
claro, é a crise econômica e seu rastro de viagens ao exterior e salários pagos em
misérias. Os analistas especulam que, na moeda forte. “Só serve para atrair eleito-
disputa presidencial de outubro, esse res que não são ideológicos, mas estão
eleitor poderá oscilar entre não votar em com raiva por causa da situação econô-
ninguém ou votar em Milei. mica do país”, critica Tetaz, o deputado
O consultor Jorge Giacobbe, da Gia- que bateu na porta do gabinete de Milei.
cobbe & Asociados, conhecida empresa A proposta pode ter impacto eleitoral,
de pesquisa de opinião, afirma que Milei mas é rejeitada até por aliados de Milei,
está atraindo o “voto de desgosto e de cas- já que o país nem tem reservas em dóla-
tigo”, entre os quais há muitos ex-eleitores res para dar lastro à medida. “Em 1998
de Cristina Kirchner. “Para os jovens elei- e 1999, a dolarização era uma operação
tores, toda a questão da luta pelos direitos de política econômica, financeira e di-
humanos, da repressão na ditadura, é plomática muito viável”, disse à piauí o
coisa do passado”, diz Giacobbe. “A prio- economista Roque Fernández, possível
ridade deles é pedir por melhores empre- candidato a ministro da Economia num
gos, mais oportunidades de trabalho e governo Milei. “Mas hoje não é.”
melhoria nos benefícios sociais.” Calcula- O “plano motosserra” de Milei, que
se que metade dos eleitores de Milei são inclui a extinção do Banco Central, tam- A mais notória talvez seja a proximida- ça vem ganhando especial atenção entre
homens entre 18 e 29 anos. bém não é levado muito a sério pelos de com os militares. Milei já defendeu a os argentinos, algo que não era tão co-
O eleitorado argentino tem forte con- aliados. Diana Mondino, que deve se can- presença do Exército em lugares onde há mum no passado”, disse ele, em conver-
centração geográfica: 37% dos eleitores didatar a deputada , deu uma entrevista grande índice de violência, mas nunca se sa com a piauí.  Essa preocupação se
estão na cidade de Buenos Aires e na ao canal de televisão ln+, pertencente ao cercou de fardados, nem tem laços com reflete no modo como os principais
Amba. Do ponto de vista eleitoral, essa jornal conservador La Nación, em que as Forças Armadas. “Desde a Guerra das meios de comunicação argentinos vêm
massa tem a mesma influência que é exer- procurou dizer que a extinção do bc não Malvinas, os militares na Argentina pas- noticiando o aumento da criminalidade,
cida, no cenário brasileiro, pelos quatro é exatamente o que parece. “É um modo saram a ser irrelevantes na política. No em tom alarmista e algo sensacionalista.
estados da Região Sudeste. Na prática, é de dizer”, explicou Mondino. “Passar a Brasil, eles ainda têm relevância”, compa- Nas manifestações de rua é possível até
ali, em Buenos Aires e arredores, que se motosserra no Banco Central não será ra o historiador Sergio Morresi, autor de mesmo ver cartazes que pedem “Bukele
decidem as eleições. Nos comícios de Mi- eliminá-lo, mas sim controlar mais as La Nueva Derecha Argentina: La Demo- para presidente da Argentina”. Nayib
lei, a presença de jovens é visível, sobretu- emissões por parte dele.” No entanto, no cracia Sin Política. Morresi também res- Bukele, presidente de El Salvador, um
do na Amba, onde é expressiva a massa de seu livro El Fin de la Inflación, Milei ex- salta que, ao contrário de Bolsonaro, que direitista feroz, vem encantando os ex-
empregados informais ou desempregados. plica como acabaria com o Banco Cen- fez campanha pela reeleição pulando de tremistas de direita da América Latina
Em uma visita a Berazategui, cidade tral e, também, com o chamado cepo al culto em culto, Milei não se relaciona com uma política de segurança brutal,
localizada na Amba, a piauí conversou dolar, que proíbe que um cidadão argen- com igrejas, nem levanta pautas religio- mas que vem mostrando certa eficácia
com jovens que se reuniam numa pra- tino compre mais de 200 dólares mensais sas. O cientista político argentino Andrés contra o crime organizado.
ça. Eles usavam camisetas de Milei e no câmbio oficial. Malamud, pesquisador do Instituto de A questão central é saber que rumo a
portavam bandeiras do candidato. Gon- O certo é que a precariedade eco- Ciências Sociais da Universidade de Lis- Argentina tomará. Matías Kulfas, ex-
zalo Salgado, ao ser indagado em quem nômica da Argentina, somada à ascen- boa, aponta ainda outra diferença. “No ministro do Desenvolvimento Produti-
votaria se não fosse no Peluca (Peruca) são global da extrema direita, ajudou caso de Milei, a ideologia é secundária: vo do governo de Alberto Fernández
– apelido de Milei – respondeu de pron- a produzir um candidato como Milei. seu eleitorado é antiestablishment, mas que acaba de lançar o livro Un Peronis-
to: “Em Cristina.” Seus dois colegas “A novidade desta eleição é a fratura não necessariamente antissistema”, diz. mo para el Siglo XXI, aposta que seu país
assentiram com a cabeça. Cristina Kirch- que se produziu entre a sociedade ar- São aspectos que importam, embora conseguirá se blindar da extrema direi-
ner não é candidata. “Há um nível de gentina em seu conjunto contra o sis- não alterem a essência. O historiador Fe- ta. “Há um fenômeno de novidade em
ignorância política na Argentina hoje tema político em sua totalidade”, diz o derico Finchelstein, estudioso do fascismo Milei, que se conecta com outros países,
que talvez nunca se tenha visto. Não analista Jorge Castro, colunista do Cla- e do nazismo, aponta um aspecto comum mas creio que nosso sistema político vai
é desinformação ou fake news, é igno- rín e autor dos livros El Desarrollismo que ultrapassa os candidatos. “A Argen- oferecer uma alternativa que evite isso”,
rância mesmo”, diz Giacobbe. “É o re- del Siglo XXI (O desenvolvimentismo tina está cada vez mais parecida com os disse ele à piauí, referindo-se a um triun-
sultado de anos de destruição do nosso do século xxi) e China y la Argentina Estados Unidos e com o Brasil, no sentido fo da ultradireita e suas provocações.
sistema educacional.” en el Siglo XXI. “Temos uma situação de que não querem mais saber da histó- O “isso” apareceu na Feira Internacio-
As propostas econômicas de Milei macroeconômica terrível, aumentan- ria”, diz Finchelstein, que dá aulas na nal do Livro de Buenos Aires, no momento
que tanto atraem essa juventude, po- do a polarização e, com isso, gerando New School for Social Research, em Nova em que Milei terminava sua barulhenta
rém, parecem mais talhadas para causar políticos mais histriônicos.” York, onde dirige um programa de estu- apresentação do livro El Fin de la Infla-
sensação no eleitorado do que para en- dos latino-americanos. Ele dá um exem- ción. Por um corredor vizinho do evento,

E
contrar soluções reais, como a ideia de m razão de uma cascata de seme- plo: “Milei não compra diretamente um passava o ex-presidente do Uruguai, José
dolarizar a economia, mais ou menos lhanças – a demonização do sistema confronto na área dos direitos humanos, “Pepe” Mujica, político de esquerda que
nos moldes do que ocorreu durante toda político tradicional, o anticomu- mas, para ganhar o eleitor que refuta esse fora autografar seu livro Semillas al Viento
a década de 1990, no governo de Carlos nismo raivoso, o revisionismo histórico tópico, ele entrega o assunto para outras (Sementes ao vento). Ao vê-lo, os seguido-
Menem. A piauí perguntou para Milei dos crimes da ditadura militar, o inter- pessoas ao seu lado, como Victoria Villar- res de Milei começaram a hostilizá-lo.
como seria a dolarização. Ele falou do câmbio com a extrema direita global, o ruel, a candidata a vice-presidente.” Um rapaz não se conteve e gritou: “Velho
período com ar de nostalgia. “A conver- estilo divisionista e provocador –, Javier Finchelstein chama a atenção para o sujo!” Mujica, de 88 anos, seguiu em fren-
sibilidade foi lançada em 1º de abril de Milei tem sido comparado com alguma discurso linha-dura com relação à segu- te, sem dar a mínima para quem o insul-
1991”, disse ele, referindo-se à época em frequência a Jair Bolsonaro. São parale- rança pública, outro traço comum entre tava, enquanto outro berrou: “Comunista
que tinha 20 anos. “Em janeiro de 1993, los reais, mas há distinções entre ambos. Bolsonaro e Milei. “O tema da seguran- asqueroso”. Eis o pântano. J

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diário do alckmin geraldo

AGORA MINHA COMPANHEIRA É LIBELU ALCKMIN


8 DE JUNHO_Feriadão com a família. sociedade: anunciei a reativação do Con-
CACO GALHARDO_2023

Dia de fazer trilha. Certifiquei-me de selho Nacional de Fertilizantes, o Confert.


que todos calçavam botas adequadas,
pedi para nos darmos as mãos e avança- 14 DE JUNHO_Acorda, Maria Bonita, que
mos entoando juntos Caminhando e can- hoje é dia de reunião com os bambambãs
tando e seguindo a canção/Somos todos do varejo. Sugeri que se convidasse o ceo
iguais, braços dados ou não. da RevoluStore para eu poder cobrar o
comércio de meias revolucionárias, mas
10 DE JUNHO_Com meus netinhos in- não tive o pleito atendido.
surrectos, “ocupamos” o terreno do vi- Depois da reunião, critiquei duramen-
zinho. Foi uma aventura. Iniciamos te a manutenção dos juros num patamar
uma plantação de chuchu e pude ensi- que impede a luta de classes no Brasil.
ná-los a importância do campesino ser
dono dos meios de produção. 15 DE JUNHO_Dia da reunião ministerial.
Eles se saíram tão bem que merece- Encarei o momento como um marco so-
ram um presente. Assim que consegui- cializante com o pessoal da repartição.
mos hackear o wi-fi do vizinho, entramos Comecei salientando o caráter imperialis-
na RevoluStore. Comprei o “kit adesi- ta da marca “Lojas Americanas”, e sugeri
vos revolucionários”. Tem Marx e En- que a rede destitua seus acionistas de refe-
gels se olhando com um coraçãozinho rência e passe a ser administrada por uma
1º DE JUNHO_A visita de Nicolás Madu- ti à vontade para dar uma sugestão: “Revo- no meio, Stálin vestido de coelhinho cooperativa de tecelãs quilombolas do
ro mexeu fundo no meu espírito revolu- lução Cultural se faz com Lei Rouanet.” rosa e Kim Jong-un brincando com um Vale do Inhatá em parceria com cesteiras
cionário. Resultado: passei a chamar míssil Hwasong-18. Mas tenho uma críti- quíchuas dos altiplanos da Bolívia. A gi-
minha companheira de Libelu Alckmin. 6 DE JUNHO_“Alô povão, agora é sério! ca à RevoluStore. Poxa, a loja tem borda- gante do varejo seria batizada de “Lojas
Como participei ontem do jantar em Canta Bixiga, seguuura! Futuca! Futu- dos, ímãs, camisetas, adesivos, pôsteres, Sul-Americanas” e venderia Inca Cola,
homenagem aos 101 anos do pcb, Libelu ca!” Foi assim que recebi o Clarício ecobags e até toucas, mas nada de meias roupas da moda cholita boliviana, arepas,
agora só se refere a mim como “meu Par- Aparecido Gonçalves, presidente da Es- revolucionárias. flautas de Pã andina, lps de Violeta Parra
tidão”. Ela é uma bola, e ficou ainda mais cola de Samba Vai-Vai. Mostrei alguns e Mercedes Sosa, além de todo o acervo
espirituosa depois que começou a ler Betty passos insinuantes como mestre-sala e 11 DE JUNHO_Descobri que o Zanin é da RevoluStore – agora com meias.
Friedan, Rose Marie Muraro e bell hooks. ainda fizemos um samba-exaltação da de Piracicaba. Menos mal. Ele que se
mais alta estirpe. Cidade que desperta entenda com a ministra Sonia. 16 DE JUNHO_Sextou! E não há lugar me-
2 DE JUNHO_Hoje realizei um sonho de meu fascínio/Recolhe mais impostos que lhor pra uma sexta-feira do que Pindamo-
criança: inaugurar uma fábrica ao lado Piracicaba/Pois és polo de reciclagem de 12 DE JUNHO_Passei o dia com o presi- nhangaba. Precisava desanuviar e marquei
do presidente Lula em São Bernardo é alumínio/Tenho em mais alta gradação dente Lula. Primeiro, fomos no lança- um dia pra ficar como Geraldinho gosta:
como ir à Disney acompanhado do Mi- meu amor por ti, Pindamonhangaba. mento do compromisso nacional pela visita a uma escola técnica pela manhã,
ckey. Como era uma linha de produção Comprei umas cervejinhas, botei chu- alfabetização. E não é que o Lula en- depois rumei pro Terminal Intermodal de
de ônibus elétricos, nóis andou de bu- leta na churrasqueira e chamei o pessoal controu uma carta de Pokémon lendá- Cargas Coruputuba e, extasiado, terminei
são, truta. O presidente Lula colocou a da repartição. Mas ninguém veio. Real- ria atrás da cadeira? Nunca vi homem o dia renovado ensinando a juventude
mão no bolso para ver se tinha o dinhei- mente não tô conseguindo me enturmar. para ter tanta sorte. pindamonhangabense a jogar pif-paf.
ro da passagem e achou moedas no va- Pra piorar, me bateu agora: será que Depois, reunião com a presidente da
lor certinho. Que homem de sorte! pode falar “Piracicaba”? Desde a minha Comissão Europeia, Ursula von der 19 DE JUNHO_Presidente Lula foi pra Itália
Animado, dei um tapinha nas costas do gafe com a ministra Sonia no mês pas- Leyen. Como o Lula é dado à galhofa, ver o Papa e o Brasil ficou sob as bênçãos
motorista e mandei um “voa, bruxão!”. sado, Libelu vem insistindo para eu nas internas passei a chamar a moça de de dom Geraldão. Não aguentei e benzi o
checar meu lugar de fala e não sair por Ursula Wanderléa e disse que essa era Manifesto Comunista. Quando terminar
3 DE JUNHO_Eu e Libelu passamos o aí dizendo palavras indígenas cujo sig- uma “prova de fogo”. Lula deu uma ri- o mês, terei ficado 31 dias no poder. Se me
sábado vendo o canal de Jones Manoel nificado desconheço. sada. Ponto pra mim. derem outros 30, acabo com o latifúndio.
no YouTube. O assunto era reforma É fato: estou cada vez mais soltinho. Mandei chamar o Zanin aqui na sala
agrária e anotamos tudinho. Percebi 7 DE JUNHO_Ando encafifado com o Libelu chegou a cantar Menino do Rio pra e o submeti a uma sabatina. Como ele
que estou mais por fora que umbigo de programa de incentivo automobilístico. mim, trocando “Rio” por “Pindamonhan- faz para ter aquela pele? Esse homem
vedete. Não tinha atinado para o fato Esse negócio de estimular o consumo gaba”. E pensar no tempo que perdi com exala colágeno e vai destoar no stf.
de que um dos estratagemas da mídia de carro, caminhão e tal... é socialismo? aqueles janotinhas do psdb. Era Chateau Queria pegar algumas dicas.
burguesa é criminalizar as ações do Quando perguntei pra Gleisi, ela aten- Lafite pra cá, Durkheim pra lá. A partir de
mst. Eles não falam em “ocupação” de deu o celular e saiu andando. Flávio agora esse diário se chamará Diário do 20 DE JUNHO_Acordei Libelu todo presi-
terras, mas em “invasão”. “Vocabulário Dino tropeçou e foi para a enfermaria. Geraldo. Alckmin é para os engravatados. dentão com uma cesta de café da manhã.
é construção de classe”, disse Libelu, Ninguém soube me responder. Qual o quê! “Tem chá de barbatimão
acrescentando um ¡No pasarán!. Como compensação, fiz circular mi- 13 DE JUNHO_Gente, nem lembrava que in natura?”, ela perguntou. Fiquei estupe-
nha opinião sobre o arcabouço fiscal. eu era também ministro do Desenvolvi- fato. Pelo menos, comeu a manga que
5 DE JUNHO_Antes de telefonar para o Com Lula e Haddad presentes, disse que mento, Indústria, Comércio e Serviços. cortei em cubinhos.
vice-presidente da China, Han Zheng, a política fiscal apresentada até aqui tem É tanta informação nova na cabeça. Te-
gravei um TikTok dançando o hino da um viés neoliberal que premia o rentis- nho que preparar alguma coisa pra reu- 22 DE JUNHO_Estou cada vez mais Ma-
Internacional Socialista e mandei só pra mo e o grande capital. O brilho dos olhos nião ministerial daqui a dois dias. righella. Chocado com a ata do Copom,
quebrar o gelo. Meus netos bolaram uma de Rui Falcão iluminou toda a sala. Tem horas em que a gente vê pouco não me contive: convoquei a imprensa
coreografia do balacobaco em que eu si- Libelu checou: Piracicaba significa resultado do tanto de esforço que faz. Hoje e soltei os cães, declarando que o pa-
mulo uma foice e um martelo com as lugar onde o peixe para. Agora é ver se não foi assim: dei um passo verdadeira- tamar dos juros está “desnecessaria-
mãos. Quando liguei pro Zheng, me sen- peixe parar é bom ou ruim. mente importante para a pacificação da mente elevado”. J

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anais operísticos

INFORTÚNIOS EM SÉRIE
Como uma teia de egos, intrigas, denúncias e falta de visão pública estrangula o Theatro Municipal de São Paulo

ANGÉLICA SANTA CRUZ

O
s músicos do Quarteto de Cor- pal. E lamentou: “Quando ela saiu do longeva trajetória de desavenças e falta de de cinco anos. E mais. A maioria delas
das da Cidade de São Paulo cargo, a administração posterior come- continuidade administrativa do Theatro foi tragada para dentro de uma opereta
certamente têm um dos locais çou um clima de negação de tudo o que Municipal de São Paulo. De olhos fecha- feita de intrigas, cartas anônimas, gra-
de trabalho mais bonitos do havia sido feito, um desmonte com hos- dos, é possível colocar o dedo indicador vações clandestinas, bate-bocas colos-
país. Todos os dias, a partir tilidade e acusações infundadas. Ela, no em qualquer ponto da linha do tempo da sais, ameaças, trapaças, contestações
das 17 horas e até que as costas come- começo, ficou quieta diante dos ataques principal casa de ópera da cidade – do de contas, lutas judiciais. Junte-se a
cem a doer, eles ensaiam juntos no palco do maestro atrabiliário, de triste memó- momento em que abriu suas portas, às tudo isso o ambiente já naturalmente
da Sala do Conservatório da Praça das ria. Mas uma hora resolveu responder.” dez da noite do dia 12 de setembro de dramático de uma casa lírica, com per-
Artes, o anexo do prédio centenário do O maestro “atrabiliário” e “de triste 1911, até este exato instante – e será bata- sonagens de temperamento forte – e o
Theatro Municipal. O lugar tem pare- memória” é John Neschling. Diretor ar- ta: aparecerá uma crise de gestão. que acontece no lindo prédio de estilo
des brancas, cortinas vermelhas, um lus- tístico e regente titular do Theatro Muni- Nos últimos onze anos, porém, a coi- eclético no Centro da cidade é uma
tre modernoso iluminado por 1,8 mil cipal de 2013 a 2016, Neschling acabou sa ficou especialmente feia. Desde 2012, tempestade perfeita. Os enroscos que
lâmpadas de led – e uma acústica con- varrido depois de um escândalo retum- o teatro passou a ser administrado por têm surgido no Theatro Municipal na
siderada perfeita para a música de câma- bante de corrupção. Depois de sair, decla- uma fundação de direito público, a Fun- última década são tão estrondosos que
ra. Na tarde de 7 de junho, quarta-feira, rou em entrevistas que havia encontrado dação Theatro Municipal de São Paulo, respingam para cima. Já ajudaram na
o quarteto dividiu esse cenário meio ce- o teatro em péssimas condições e que a ou ftmsp. Em tese, ela deveria fiscalizar queda de secretários de Cultura, pro-
lestial com o maestro Abel Rocha e a reforma nas áreas públicas da institui- a atuação de uma Organização Social vocaram uma Comissão Parlamentar
mezzosoprano Luciana Bueno para um ção, feita durante a gestão de Calil e (OS) de cultura, uma entidade privada, de Inquérito (cpi) na Câmara Munici-
sarau musical em memória de Beatriz Amaral, havia sido “uma maquiagem escolhida por meio de chamamento, pal e até obrigaram Fernando Haddad,
Franco do Amaral. De cabelos verme- em um cadáver”. Amaral, então, escre- cuja função seria contratar funcioná- ex-prefeito da cidade, a dar explicações
lhos, temperamento firme e expansivo, veu uma carta aberta, em que respondeu rios, pagar os salários, administrar os em plena campanha eleitoral para a
Amaral dirigiu o teatro entre 2008 e aos ataques e, de quebra, chamou Nes- prédios, captar recursos privados e gerir Presidência da República.
2013 e morreu há dois anos, de câncer. chling de “contumaz mentiroso”. a programação cultural do teatro. A Se- Observadas por quem está de fora,
Foi uma homenagem simples, boni- Quando o sarau acabou, todos os cretaria Municipal de Cultura deveria essas desventuras em série, de tão nove-
ta, rápida. Mas teve uma nota especial- participantes seguiram para o térreo do pairar sobre essa dobradinha, entrando lescas, às vezes soam engraçadíssimas.
mente pesarosa. Entre a execução do prédio, que já foi sede do antigo Con- em cena apenas para lembrar das dire- Mas três detalhes transformam a ópera
Quarteto n° 1 para Cordas, de Osvaldo servatório Dramático e Musical de São trizes gerais da política cultural pública. bufa em drama vergonhoso. Primeiro: é
Lacerda, e a ária Seguidilla, da ópera Paulo, a fim de descerrar uma placa em Na prática, esse sistema virou uma um parrudo dinheiro público que está
Carmen, de Bizet, o ex-secretário muni- homenagem a Amaral. Depois que o barafunda em que ninguém se enten- em cena. O Theatro Municipal de São
cipal de Cultura e professor de cinema pano foi retirado, perguntaram ao neti- de, atravessada por interesses políticos Paulo tem um orçamentão. Só para
Carlos Augusto Calil fez uma breve fala. nho da ex-diretora se ele sabia por que e confusões burocráticas, que sobrevi- 2023 conta com uma previsão de re-
Diante de familiares de Amaral, senta- a placa era vermelha. “É por causa da veu à passagem de quatro prefeitos. passe de cerca de 114 milhões de reais.
dos na primeira fila, ele detalhou a dedi- cor dos cabelos dela!”, disse a criança. Até agora, nenhuma das quatro OS É um dote que equivale a 16,5% do or-
cação da ex-diretora durante a reforma Em toda a sua singeleza, o evento foi que venceram concorrências para ad- çamento da Secretaria Municipal de
mais ambiciosa da história do Munici- também poderosamente ilustrativo da ministrar o teatro terminou o contrato Cultura. E é o único equipamento que

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KLEBER SALES_2023

Sururu no Municipal: a diferença crucial entre as disputas no teatro paulista e nos da Europa é que nestes o novo comando não chega demolindo tudo o que estava em curso antes

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consome, por exemplo, mais do que a belecidos na cidade em relação a trazer Serra, ele assumiu a Secretaria Munici- estudou música e depois se tornou pro-
verba de investimentos prevista para al- companhias europeias. Era uma indús- pal de Cultura, cargo que só deixaria fessor – e foi também ali que ele conhe-
gumas secretarias municipais inteiras, co- tria. O Sábato combateu esse negócio e em 2012, já no final do governo de Gil- ceu Oswald de Andrade. A edificação
mo a de Segurança Urbana (83,7 milhões teve muita oposição”, conta ele. berto Kassab. Nesses sete anos, acabou estava em ruínas, assim como os casa-
de reais) e a do Trabalho (75 milhões de Calil testemunhou de perto a maior capitaneando as mudanças mais radi- rões no entorno. A ideia era restaurar o
reais). Segundo: o teatro não é apenas crise dessa fase: o entrevero entre Magal- cais da história do Theatro Municipal antigo conservatório e construir ao lado
um prédio histórico com um palco que di e um nome célebre da música erudita, de São Paulo, tanto do ponto de vista dele outros prédios, modernos, onde
recebe apresentações. É uma casa líri- o maestro Eleazar de Carvalho. Na épo- físico como administrativo. Na estrutu- seriam reunidos os corpos artísticos e as
ca complexa, habitada por seis corpos ca, Carvalho acumulava a regência da ra física, aproveitou a boa vontade po- escolas do Theatro Municipal. Esses
artísticos e duas escolas que se dedi- Orquestra Sinfônica do Estado de São lítica com o centenário do teatro que núcleos estavam espalhados por vários
cam à produção e formação de músi- Paulo (Osesp) – que ajudara a tirar do se avizinhava e promoveu o restauro lugares da cidade, alguns deles comendo
cos, cantores e bailarinos. São, ao todo, fundo do poço de um recesso de mais de do palco, do salão nobre, da fachada e o pão que o diabo amassou em ambien-
486 profissionais, em sua maioria pes- cinco anos – com a Orquestra Sinfônica de outras áreas públicas – uma obra de tes muito precários, como a Orquestra
soas que realmente trabalham pesado Municipal (osm). “Acumulando essas 28,3 milhões de reais, financiada na Experimental de Repertório, que en-
para que o barco navegue, apesar dos funções, ele tinha o monopólio das con- maior parte pelo Banco Interamericano saiava em uma sala com goteira sobre o
furos no casco – mas que convivem tratações e dos convites de todo o univer- de Desenvolvimento (bid). Foi dessa piano, embaixo do Viaduto Jacareí, no
com as consequências, às vezes deses- so musical da cidade. Fazia, então, o que reforma que Neschling falou mal, para bairro Bela Vista. De lambuja, a Praça
peradoras, das alucinadas mudanças de quase todos os colegas dele fazem: tráfi- irritação de Amaral e Calil. das Artes daria à região central, sempre
comando. E terceiro detalhe: a impor- co de influência. O Sábato, que era um É também dessa época a construção combalida, um polo de cultura novo
tância do Theatro Municipal na paisa- homem muito correto, chamou o maes- da Central Técnica de Produções Artís- em folha.
gem de São Paulo é retumbante. É uma tro e disse: ‘Olha, o senhor não pode fa- ticas Chico Giacchieri, um conjunto de O projeto foi aprovado e seguiu em
joia cultural que mereceria um trata- zer isso, não vou tolerar.’ Mas o maestro, grandes galpões no bairro do Canindé, frente na gestão Kassab. As obras deve-
mento melhor. que se sentia superior a todos os mortais, a 6 km do teatro, para onde foram trans- riam ser concluídas em 2012, mas o ter-
continuou”, afirma. Calil estava na sala feridas as estruturas de construção de reno arenoso da região do Vale do

C
arlos Augusto Calil tinha 24 anos do chefe quando ele, em 1976, convocou cenário e o acervo de figurinos. Nesse Anhangabaú fez com que a prefeitura
quando começou a conviver de per- Eleazar de Carvalho e, escorado no apoio local de apoio estão hoje guardadas pre- tivesse que desapropriar outro prédio, o
to com os dramalhões do Theatro costurado antes com Olavo Setúbal, na ciosidades como as roupas criadas por do Cine Marrocos, e construir um imen-
Municipal de São Paulo. Em 1975, tor- época prefeito da cidade, o demitiu. “Foi Flávio de Carvalho e Burle Marx para so muro de arrimo – o que encareceu a
nou-se assessor do crítico de teatro Sábato um escândalo no meio musical. Como? o Ballet do iv Centenário de São Paulo, obra e atrasou o cronograma. Em outu-
Magaldi, na época secretário municipal Demitiu o Eleazar? Ninguém falava, co- em 1954, pendurados com cuidado em bro de 2012, no finalzinho do governo
de Cultura. Nesse período, o teatro apre- mo não se fala até hoje, sobre o tráfico cabides, em um espaço com temperatu- Kassab, a Praça das Artes acabou inau-
sentava temporadas líricas com produ- de influência”, opina. ra controlada, para evitar a deterioração. gurada pela metade, com a ópera Orfeu
ções majoritariamente feitas no exterior. Três décadas depois, foi a vez de Ca- A ala da construção de cenários ocupa e Eurídice, de Gluck, montada no can-
“Já era um problema administrar aqui- lil tentar pegar o bode pelo chifre. Em três galpões, um deles com as medidas teiro de obras. Até ali, o projeto custara
lo, porque havia interesses muito esta- abril de 2005, durante a gestão de José exatas do palco do teatro. Por ali circula, 136 milhões de reais. “Deixamos outros
sempre gesticulando, um dos grandes 10% necessários para a conclusão, con-
personagens da casa lírica, o chefe de tingenciados no Fundurb [Fundo de De-
cena Aníbal Marques, o Pelé, que come- senvolvimento Urbano]. A gestão Haddad
çou a frequentar as coxias aos 5 anos, le- remanejou a verba e paralisou a obra”,
vado pelo pai que já trabalhava ali, e hoje reclama Calil. Até hoje, a Praça das Ar-
despacha em um escritório inusitado: tes não foi totalmente concluída.
uma imensa mesa rodeada por paredes Aos olhos de Calil, a Praça das Artes
com gavetas cheias de porcas, parafusos, teria ainda outra função. O Theatro Mu-
roldanas e outras traquitanas cuja serven- nicipal tem uma estrutura sem paralelo
tia só mesmo ele sabe qual é e que po- no mundo: são duas orquestras, dois co-
dem salvar um cenário em apuros. ros, um quarteto e um balé, além das
O terceiro incremento físico feito escolas. Alguns desses corpos, como a
pela gestão Calil foi beneficiado por um Orquestra Sinfônica Municipal, foram
inesperado vento a favor. Em setembro criados como parte do teatro. Outros nas-
de 2004, José Serra teve a ideia de lei- ceram fora, como o Coral Paulistano e o
loar entre bancos privados o gerencia- Quarteto de Cordas, ambos lançados por
mento das contas salário dos funcionários Mário de Andrade no período em que foi
da prefeitura. O Banco Itaú ganhou a diretor do Departamento de Cultura e de
licitação e pagou 510 milhões de reais. Recreação da Prefeitura de São Paulo,
Quando esse dinheiro entrou em caixa, de 1935 a 1938, e acabaram incorporadas
Serra perguntou aos secretários: “Quem ao chamado Complexo do Municipal.
tem bons projetos para a cidade?” Todo Antes, os corpos artísticos não se encon-
mundo correu para apresentar algum. travam, os alunos das escolas não convi-
Calil mostrou o projeto da Praça das viam com músicos e bailarinos. Calil
Artes, feito em parceria com o arquiteto queria promover uma interação “entre as
Marcos Cartum, funcionário da Secre- artes e as gerações, entre estudantes e
taria Municipal de Cultura e hoje dire- profissionais” em um mesmo espaço.
tor do Museu da Cidade de São Paulo. Além de separados fisicamente, os
Depois do sarau em homenagem a funcionários do teatro trabalhavam sob
Beatriz Franco do Amaral, na tarde fria regimes diferentes de contratação, com
de 7 de junho, Calil e Cartum foram diferenças salariais às vezes gritantes.
para o meio da Avenida São João, lotada Alguns eram funcionários públicos, ou-
de moradores de rua com cobertores tros entravam na burocracia de paga-
nas costas, e mostraram à piauí a lógica mentos da prefeitura pela rubrica dos
do projeto que idealizaram. Tomaram “admitidos”, na prática um tipo de ser-
como ponto de partida o edifício do an- vidor com menos direitos. Quando a
tigo Conservatório Dramático e Musi- Constituição de 1988 proibiu essa mo-
cal, cheio de valor simbólico para a dalidade, apelou-se para outra, a da
cidade. Foi ali que Mário de Andrade rubrica “verbas de terceiros”, original-

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mente destinada à contratação de tem- O processo da aprovação da lei que co do teatro em geral e, portanto, não muito prática, que não era um formula-
porários e que obrigava que alguns criaria essa fundação pública na Câma- teria poderes sobre os outros corpos es- dor, mas traduzia bem as formulações”.
artistas e técnicos fossem recontratados ra Municipal foi demorado como uma táveis. Ou seja, iria querer ser chefe dos Já achar uma organização social para
a cada três meses. Por meio da criação travessia a pé no deserto. Dependeu de colegas — como já havia sido antes, entre fazer a tabelinha com a fundação foi
de uma fundação de direito público, cálculos complicados para conseguir 1989 e 1990, durante a gestão da ex-pre- dificílimo. A Secretaria Municipal de
Calil quis desvincular os funcionários passar uma régua nos salários dos artis- feita Luiza Erundina. “No fim do café, Cultura precisou fazer dois chamamen-
da administração direta – e todos passa- tas e de costuras infinitas com vereado- eu disse para o Juca Ferreira: ‘Não con- tos, até que o Instituto Brasileiro de Ges-
riam a ser contratados, conforme as nor- res, para garantir a aprovação, que saiu trate o Neschling, vai ser encrenca.’ Ele tão Cultural, especializado em leitura,
mas da clt, por uma Organização em 2011. A fundação só começou a ser respondeu: ‘Já contratei’”, lembra Calil. levou a parada. À frente dessa entidade
Social de cultura, deixando os corpos implementada em outubro de 2012, fal- estava o gestor cultural William Naked.

N
artísticos em pé de igualdade. tando dois meses para o fim do governo eschling aterrissou justamente no No início, a nova administração con-
O modelo de administração de equi- Kassab – e a escolha da primeira OS lugar que dá urticárias em Carlos tava com a pororoca de egos relativamen-
pamentos públicos de cultura por meio que administraria o teatro, assim como Augusto Calil: acumulando as fun- te comum nas casas líricas. Neschling
de organizações sociais é usado pelo a integração dela com a fundação, ficou ções de regente titular e de diretor artís- tentou implantar a disciplina que adotou
governo estadual de São Paulo e, nesse para a gestão seguinte. tico do Theatro Municipal. “O Neschling na Osesp, onde são inadmissíveis coisas
caso, considerado bem-sucedido. É por Quando Fernando Haddad tomou é um cara por quem tenho muito respei- que até hoje podem acontecer no Thea-
meio desse expediente que instituições posse na prefeitura e acabou de esco- to, pelo talento e pela grandeza do traba- tro Municipal, como os músicos da sin-
eficientes como a Osesp e a Pinacoteca lher sua equipe, Calil tomou um café lho dele na área da música sinfônica. fônica entrarem no palco depois da
de São Paulo são administrados. No es- com o secretário de Cultura que o su- Nessa área é comum ter o temperamento afinação feita pelo spalla. Midiático, o
quema adotado pelo estado, as organiza- cedeu, Juca Ferreira – que havia sido forte e ele é um clássico dessa caracterís- maestro conferiu às récitas certo senso
ções sociais são fiscalizadas e geridas ministro da Cultura no governo Lula e tica”, diz o ex-ministro Juca Ferreira à de ocasião e os ingressos esgotavam.
por fundações que também são privadas voltaria a ser no segundo governo Dil- piauí. “Ele foi demitido da Osesp e teve Ele, no entanto, também entrou rapida-
– e ambas se reportam diretamente à ma. O encontro, em uma livraria da que viver exilado na Europa porque o mente em brigas, algumas provocadas
Secretaria Estadual de Cultura. É uma Avenida Paulista, durou quinze mi- ambiente ficou absolutamente inóspito por seu temperamento, outras pelas rea-
parceria direta entre o governo e entida- nutos. Calil desconfiava que a nova para ele por aqui. Conseguimos trazê-lo ções de funcionários do teatro às mu-
des privadas. O que Calil quis propor à gestão poderia querer levar para o Thea- de volta, ele assumiu o teatro e fez um danças implantadas, muitas pelos dois
prefeitura foi a criação de uma funda- tro Municipal o maestro John Nes- trabalho excepcional, não tem como ne- motivos. Em um dos quebra-paus, du-
ção de direito público para intermediar chling, que em janeiro de 2009 havia gar a qualidade que trouxe.” rante um ensaio, por exemplo, o maes-
a relação entre a Secretaria Municipal sido dispensado da Osesp. Achava que Para diretor administrativo da recém- tro Mário Zaccaro foi demitido diante
de Cultura e a organização social esco- Neschling boicotaria a ainda não im- criada fundação foi escolhido o produ- de todo o Coro Lírico (voltou depois e
lhida para tocar o Municipal. Com isso, plementada Fundação Theatro Muni- tor José Luiz Herência, ex-secretário de está lá até hoje).
esperava criar um tipo de parceria iné- cipal porque ela previa também uma Políticas Culturais do Ministério da O estranhamento rendeu episódios,
dita, uma complementaridade entre o governança compartilhada, de modo Cultura na gestão de Juca Ferreira. Se- olhando hoje, hilariantes. Em 2013, seis
público e o privado que se justificaria que o regente da orquestra sinfônica gundo o ex-ministro, Herência até ali se meses após a chegada de Neschling, o
por causa da complexidade do teatro. não poderia ser nomeado diretor artísti- revelara “um cara de uma inteligência teatro passou a conviver com suspeitas

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Cataventos
Hermínio Bello de Carvalho

A trajetória ímpar de Hermínio Bello de Carvalho gera este


Cataventos, álbum que reúne novos e velhos companheiros para
entoar 15 canções, sendo 13 delas inéditas, celebrando a longevidade
e inquietude do poeta, figura incontornável da música brasileira.
Com participações de Maria Bethânia, Joyce, Alaíde Costa,
Ayrton Montarroyos, Gabi Buarque e estelar elenco.

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de sabotagem na coxia das óperas. Em hoje prefeito de São Paulo pelo mdb, trar com uma ação contra a lei que per-
agosto, o cabo de um elevador do palco que engrossava o coro dos que especu- mite ao Executivo municipal emitir
rompeu, entre duas récitas de Aida, de lavam que Neschling era “amigo pró- títulos em nome do Corinthians.
Verdi. Em setembro, duas apresentações ximo de Fernando Haddad”. Houve Deixado de fora das investigações,
de Don Giovanni, de Mozart, tiveram eletrizantes acareações – uma delas, porque os promotores e vereadores con-
que ser interrompidas, por causa de súbi- entre Neschling e Herência, foi transmi- cluíram que ele dera total autonomia à
tas quedas de energia. Foi um pandemô- tida ao vivo na internet e durou cinco ftmsp e não acompanhara os contra-
nio, com o público perplexo, solistas horas, com o regente dizendo que se re- tos de perto, Juca Ferreira virou teste-
irritados e um Neschling atônito. Um servava o direito de ficar calado enquanto munha espontânea. “Não cheguei a ser
14 policial passou a vigiar o quadro de luz vereadores tacavam o pau em perguntas arrolado, mas em uma das audiências
no quinto andar da casa – e a prefeitura à queima-roupa. na Justiça, resolvi depor mesmo assim,
abriu uma sindicância, que não deu em Neschling foi demitido do Theatro como testemunha. Na saída, encontrei
MISERY o Neschling, que estava furioso com o
nada. Neschling ficava irritadíssimo, Municipal, declarou-se traído por todos,
Vermelho porque perfis anônimos nas redes sociais processou o Instituto Brasileiro de Ges- Herência e dizia: ‘Esse filho da puta
De Stephen King cobriam a novela da sabotagem com tex- tão Cultural exigindo seus direitos traba- está tentando me incriminar!’ Eu disse:
Direção de Eric Lenate
Com Mel Lisboa, Marcello Airoldi tos jocosos, enquanto reclamavam da lhistas e foi embora para a Suíça. Como ‘Calma, calma...’ Nunca acreditei que o
e Alexandre Galindo contratação de atores estrangeiros. costuma acontecer em 100% dos casos, Neschling estivesse envolvido nos des-
Até aí, eram histórias que pareciam o material produzido pela cpi pulveri- vios. A encrenca não veio dele”, diz.
Sex às 20h30, Sáb às 20h00
e Dom às 17h00 | TUCA destinadas ao anedotário operístico. Até zou-se no ar. As ações que foram adiante Em junho do ano passado, Neschling
que estourou a grande bomba. Juca Fer- na Justiça, no caso de Neschling, se en- se apresentou no Brasil pela primeira vez
reira resume da seguinte forma o que rolaram em entraves processuais defini- depois do escândalo, regendo a Orquestra
aconteceu: “O José Luiz Herência re- dos pelo juridiquês como “falta de Juvenil da Bahia, em uma comemora-
solveu meter a mão numa parte do di- citação de corréus” ou “inércia de auto- ção aos seus 75 anos de idade. O concerto
nheiro que passava por ali. Foi uma res em promover o andamento do feito”. lotou o Teatro Castro Alves, em Salvador.
12 traição de confiança. Eu caí do cavalo. Traduzindo para o português da padaria, Em abril deste ano, perdeu um pedido
Minha emoção, quando soube, foi de significa que a coisa não andou. de tutela antecipada em um processo
ANJO DE PEDRA querer pular no pescoço do cidadão. O regente dizia que prova de sua ino- contra a Wikipédia, em que exige a remo-
Ele depois me mandou vários recados cência é o fato de ele mesmo ter denun- ção de conteúdo, na versão em inglês,
De Tennessee Williams pedindo perdão, eu respondi: ‘Jamais.’” ciado o esquema. Flávio Luiz Yarshell, que menciona sua demissão do Theatro
Direção de Nelson Baskerville Em novembro de 2015, Herência pe- seu advogado, afirmou em nota enviada Municipal por envolvimento com práti-
Com Sara Antunes, Ricardo Gelli, Chris diu exoneração da direção da Fundação à piauí: “Foi ele quem levou ao então cas ilegais na gestão financeira.
Couto, Kiko Marques, Carolina Borelli, Theatro Municipal, alegando divergên- prefeito, Fernando Haddad, a informa- A ftmsp, por sua vez, foi minada já
Luiza Porto e Thomas Huszar
Atriz Convidada: Selma Luchesi
cias incontornáveis com Neschling. Um ção de que os então dirigentes do Thea- em seu arranque. “Sequer foi inteira-
mês depois, soube-se que Herência fir- tro Municipal e do Instituto Brasileiro mente implantada, porque o governo
Sex e Sáb às 21h00
mara contratos superfaturados para a de Gestão Cultural não estavam se con- do pt introduziu a corrupção na funda-
e Dom às 18h00 | TUCARENA
Dias 04, 05 e 06 de agosto produção de espetáculos, recebera pro- duzindo de forma correta, e foi a partir ção!”, esbraveja Calil. Os salários dos
pina por meio de contas bancárias da disso que Haddad determinou providên- corpos artísticos não foram completa-
mãe e da mulher e criara empresas para cias em relação aos fatos. Curiosamen- mente equiparados. Os cargos-chave da
lavar o dinheiro. Depois investira todo o te, os dois responsáveis pelos malfeitos fundação viraram, em sua maioria, in-
butim acumulado – em cerca de três fizeram um acordo com o Ministério dicações políticas do secretário de Cul-
anos no Municipal – em apartamentos, Público de São Paulo, por meio do qual tura da vez, e passaram a viver às turras
L terrenos na praia e carros. O próprio He- passaram a acusar John Neschling, sem, com as organizações sociais escolhidas
rência confessou os desvios, fechou um contudo, apresentarem nenhuma prova para administrar o teatro.
acordo de delação premiada e devolveu de suas alegações.” O próprio maestro,
MILTON - Mônica Salmaso

O
cerca de 5 milhões de reais. Na delação, ocupado com um tour internacional, utras óperas vieram. Em 2017, o
e André Mehmari entregou o diretor do Instituto Brasileiro não quis dar entrevista. então tucano João Doria assumiu a
de Gestão Cultural, William Naked, que O ex-ministro Juca Ferreira tem ou- Prefeitura de São Paulo e nomeou
Com Mônica Salmaso e André Mehmari também fechou um acordo de delação, tra lembrança. Diz que o esquema foi o diretor de cinema André Sturm como
Sex às 21h00, Sáb às 20h00
devolvendo outros 3 milhões de reais. pego pelos mecanismos da prefeitura, a secretário de Cultura. Sturm encontrou
e Dom às 19h00 | TUCA E ambos, Herência e Naked, disseram Controladoria Geral do Município à o teatro pegando fogo, com o sentimento
Dias 04, 05 e 06 de agosto que Neschling também participava de frente. Em todas as entrevistas que deu antiorganizações sociais, que já existia
desvios e usava o teatro para fazer tráfico sobre o caso e em texto publicado na entre os servidores – por temerem a pri-
de influência com um empresário es- piauí em junho de 2017, Fernando Had- vatização –, ainda mais inflamado depois
trangeiro, na base do “eu te contrato aqui dad também afirma que foi dessa ma- de comprovado o esquema de corrupção
pagando muito bem e você me contrata neira que o esquema foi desbaratado – e da gestão anterior. Durante um período,
lá fora, nos mesmos termos”. Teria, inclu- reforça que, assim que soube, decretou o próprio Sturm dirigiu a fundação e fez
L sive, pago para um deles um espetáculo intervenção no teatro. O nome do ex- uma espécie de administração comparti-
que nunca foi montado. prefeito ficou de fora do relatório final lhada com o Instituto Brasileiro de Ges-
MÔNICA SALMASO - Tributo Deu-se um bololô de denúncias, com da cpi. Mas os pipocos no Municipal tão Cultural, que estava sob investigação
Improvável
a Wilson Batista um emaranhado de contratos, nomes ainda lhe deram outra dor de cabeça. e, àquela altura, em frangalhos. “Estava
de produtores culturais que entravam e Em dezembro de 2016, o Ministério Pú- uma confusão. O teatro tinha uma dí-
saíam de investigações, quebra de sigilo blico do Estado de São Paulo ajuizou vida de uns 20 milhões de reais, o orça-
Com Mõnica Salmaso, Paulo Aragão, Teco dos e-mails do maestro e de sua mulher, uma ação civil pública contra Haddad mento previsto para 2017 não dava sequer
Cardoso e Luca Raele a escritora Patrícia Melo, com quem ele por improbidade administrativa, pedin- para as despesas previstas, todos os pro-
Sex às 21h00, Sáb às 20h00 tem sociedade em uma empresa de pro- do a devolução aos cofres públicos de cessos eram um inferno”, lembra ele.
e Dom às 19h00 | TUCA dução cultural. Em 2016, os vereado- cerca de 130 milhões de reais que te- Sturm resolveu interromper o con-
Dias 11, 12 e 13 de agosto
res da Câmara Municipal de São Paulo riam sido desviados do teatro e a suspen- trato com o Instituto e fazer um novo
abriram uma cpi para investigar o caso. são de seus direitos políticos. No texto chamamento para contratar outra OS.
ingresso online Aconteceu o de sempre: uma roda alu- publicado na piauí, Haddad escreve que A Secretaria Municipal de Cultura pre-
cinada de novas pistas, cifras, contratos sofreu perseguição política do promotor parou o edital que, a pedido do Tribu-
suspeitos, promessas de apuração, au- do caso, Marcelo Milani – que o teria nal de Contas do Município de São
diências, políticos dando entrevistas – retaliado depois de ser investigado pela Paulo (tcm sp), teve que ser reajustado.
Mais informações
entre eles, Ricardo Nunes, na época Controladoria Geral do Município por A concorrência saiu quase nove meses
Rua Monte Alegre, 1024 - Perdizes
(11) 3670-8456 | 3670-8455 integrante da comissão parlamentar e suspeita de pedir propina para não en- depois de Sturm assumir a secretaria.
www.teatrotuca.com.br
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“Eu tinha chamado umas dez organiza- justo no período em que Sturm estava
ções sociais, para ver se as pessoas se procurando uma OS para substituir o
animavam a entrar. Ninguém queria, Instituto Brasileiro de Gestão Cultural.
depois de toda aquela confusão. Acha- Conforme o libreto de Gradim, o Ins- Nos
vam arriscado, porque podiam pegar, tituto Odeon chegou ao Theatro Muni-
inclusive, passivos trabalhistas.” cipal confiante das vantagens de sua encontramos
Só duas OS toparam se inscrever. Em
julho de 2017, o Instituto Casa da Ópera
fórmula administrativa, que incluía a
instituição de processos, planejamento
na música
venceu o edital público. A segunda colo- estratégico e uma visão de mundo inclu-
cada, o Instituto Odeon, contestou o re- siva. Mas ele conta que, desde o início, a
sultado, alegando que a ganhadora havia fundação passou a despachar quase que
sido criada e administrada até um ano um ofício por dia para o Odeon, sobre
antes pelo cenógrafo e dramaturgo Cle- qualquer assunto, o que o obrigou a pra-
ber Papa, então diretor artístico do Thea- ticamente criar uma equipe só para res-
tro Municipal – e, por isso, teria sido ponder às mensagens. “Era ingerência
favorecida. A Casa da Ópera acabou ina- sobre tudo, até sobre um quadro de avi-
bilitada, mas por outro motivo: não entre- sos em cortiça substituído por um painel
gou um balanço patrimonial nos moldes randômico, que precisou ser retirado”, 22.07
exigidos pelo edital. O Instituto Odeon diz ele. “A gente pegava autorizações
ganhou o contrato de 577 milhões de
reais, previsto para encerrar em 2021.
com eles por escrito, depois eles contes-
tavam e saía nos jornais que estávamos
Tulipa Ruiz
Em pouquíssimo tempo, Sturm en- fazendo errado”, continua. “Depois do
trou em pé de guerra com a nova OS. que aconteceu fiquei muito tempo pen-
“Se tem uma coisa que eu lamento em sando sobre isso, porque a gente come-
meus dois anos de secretaria foi ter feito çou a entrar em algo tão tóxico que não
contrato com esse Odeon. Foi um erro. compreendia mais o que estava aconte-
Eu tinha duas possibilidades: enfrentar cendo. Mas acho que houve um jogo de
a situação, dar vazio e fazer outro edital interesse em que talvez a gente não se
ou desconsiderar que a proposta artísti- encaixasse. O Odeon não queria ser
ca do Odeon era ruim, mas os docu- uma operadora de recursos, queria dar
mentos deles estavam em ordem. Eu novo significado ao teatro.” Gradim afir- 04 e 05.08
estava sob pressão, precisei resolver a ma que, no período em que o instituto
situação desesperadora com o Instituto
Brasileiro de Gestão Cultural, pus o
esteve à frente do teatro, o palco teve
100% de ocupação, a carteira de assinan-
Liniker
Odeon. Com um ano, já quis tirá-lo.” tes foi retomada e shows simbólicos fo-
Começou uma batalha de versões. Se- ram feitos, como a gravação do AmarElo,
gundo Sturm, a equipe do Odeon “não de Emicida. “Ali o Emicida fala o quan-
tinha nenhuma noção do que é uma or- to é importante para ele ocupar aquele
questra, um corpo de baile, um teatro palco. Era nisso que a gente acreditava.”
musical”, “pegou um contrato milionário, O abraço de afogados entre Sturm e
mas cometia erros básicos”, “comprou o Odeon foi ficando apertado. Sturm
partituras erradas, não sabia a diferença começou a pressionar o instituto para
entre uma suíte e uma música original”, deixar o Municipal, acusando falta de
“era arrogante”, “tudo o que fazia a gente transparência nas prestações de contas
tinha que entrar consertando”, “era uma à Secretaria de Cultura, em reuniões 08.07 15.07
loucura completa” e, enfim: “A gente entulhadas de berros e das quais os par-
descobriu que eles jogavam os artistas ticipantes costumavam sair chorando. Urias Fat Family
contra a Secretaria de Cultura.” “A gente ficou atordoado, com o emo-
cional bloqueando o racional, adoeceu

D
iretor-presidente do Instituto Odeon, todo mundo. E começamos a ficar preo-
o mineiro Carlos Gradim fala de cupados com a narrativa que estavam
sua passagem pelo Theatro Muni- criando sobre a nossa gestão, com his-
cipal de São Paulo como quem se refere tórias sobre desvios de receita de bi-
a uma inesperada queda em um buraco lheteria, por exemplo”, conta Gradim.
durante um prazeroso passeio na gra- “Ouvimos uma pessoa acostumada a
ma. O Odeon, fundado por ele em 1998, passar por várias crises que nos aconse-
vinha de experiências que considerava lhou a gravar o secretário. Isso não é
exitosas, como a da gestão do Museu de confortável para nós, parece louco, mas 21.07 10.08
Arte do Rio (mar), que pegou ainda no foi o que deu uma pausa nessas versões.”
canteiro de obras. Por ali, o máximo de Em novembro de 2018, o diretor de ope- Chico Chico Hermeto Pascoal
desgosto que enfrentou foi o veto à expo- rações e finanças do Odeon, Jimmy Kel-
sição Queermuseu pelo então prefeito ler, gravou uma reunião que teve com
Marcelo Crivella – que não viu a mostra, Sturm. Na conversa, foi sugerido que a
mas ainda assim gravou um vídeo apate-
tado dizendo que ela tratava de pedofilia
aprovação de prestações de contas do
instituto estaria condicionada a um en-
e muito +
e zoofilia e, portanto, seria exibida “só cerramento amigável do contrato.
se for embaixo do mar”. Apesar de suas No áudio, Sturm diz: “É evidente
diferenças com Crivella, o Odeon che- que não vou dar quitação antes de vocês
gou até o fim de seu contrato com o mar. assinarem que querem sair. Bem, se
O instituto planejava no futuro participar dou a quitação para vocês e o presiden-
da concorrência para gerir o Museu da te do conselho diz que pensou melhor Ingressos:
Língua Portuguesa e, por isso, resolveu e não quer sair? Como eu vou notificar casanaturamusical.com.br
se qualificar como Organização Social vocês depois, se dou quitação para vo-
de cultura também em São Paulo. Foi cês? Agora, é evidente a disposição para
Cia Aérea Oficial: Apoio:

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do Conservatório de Tatuí) foi escolhi- públicos desde o comecinho. A própria
VITOR MASSAO_2023

da. Levou um contrato de gestão de construção do prédio exigiu investimen-


560 milhões de reais, pelos próximos to no entorno, como o asfaltamento,
cinco anos. A já tradicional corrida ma- uma novidade para a época, um esta-
luca, em que as organizações sociais cionamento para 22 carros e, luxo dos
que perdem não largam o osso e entram luxos, a primeira estrutura de energia
contestando o resultado, no entanto, se elétrica da cidade planejada para abas-
manteve. Segundo colocado na con- tecer uma edificação inteira – o que fez
corrência, o Instituto Baccarelli (gestor com que populares acorressem às ime-
da Orquestra Sinfônica Heliópolis) en- diações no dia da estreia, provocando
trou com três recursos pedindo a revi- também o primeiro congestionamento
são das notas e a anulação do resultado de São Paulo.
– o primeiro na Secretaria de Cultura Ao longo dos anos, os espetáculos pas-
e os outros dois no tcm sp. O terceiro saram a ser financiados com verbas li-
emplacou – e o tribunal de contas de- beradas pela Câmara Municipal para
terminou, em fevereiro deste ano, que projetos particulares de suposto interesse
outra concorrência seja feita. público. Entraram em cena companhias
Um pouco antes desse novo velho como a sociedade anônima Empreza
imbróglio, o teatro entrou em transe Theatral Ítalo-Brasileira, fundada pelo
quando a Sustenidos anunciou que faria empresário Walter Mocchi em 1926, um
uma avaliação interna, obrigatória, de italiano cujos olhos brilharam ao perce-
todos os integrantes do Coro Lírico Mu- ber as oportunidades que se abriam na
nicipal. Os artistas protestaram, as redes América Latina com a inauguração de
sociais ficaram em chamas. A Susteni- três teatros públicos: o Colón de Buenos
dos voltou atrás. Em seguida, anunciou Aires, em 1908, o Theatro Municipal do
que centraria forças nas negociações Rio de Janeiro, em 1909, e o de São Pau-
para pedir a correção da inflação no or- lo, em 1911. Essas companhias – tam-
çamento previsto para 2023. Sem esse rea- bém objeto de outra batelada de estudos
juste, afirmou, o teatro chegaria ao fim – passaram a trazer da Europa, de navio,
do período fiscal com déficit de 13,3 mi- espetáculos inteiros, com artistas, técni-
um entendimento amigável. Se eu não Quando chegamos nas pessoas, demos lhões de reais – seja qual for a organiza- cos, cenários e figurinos. Os contratos
quisesse amigável, já teria feito litigio- queixa na polícia.” ção social da hora. Desde então, as três com particulares também costumavam
so.” A gravação foi divulgada pela rádio Uma das informações das cartas amea- partes – Sustenidos, ftmsp e Secretaria terminar em desavenças.
cbn e o Odeon passou a acusar Sturm çadoras – sobre o posicionamento de de Cultura – entraram em reuniões com A primeira vez que se tentou ter uma
publicamente de chantagem. Sturm foi câmeras em corredores e banheiros –, planilhas sacadas de parte a parte e che- visão de longo prazo, como política pú-
chamado para prestar esclarecimentos levou a direção do teatro a suspeitar de cagem de contas. Enquanto isso, no tea- blica mesmo, para o Theatro Municipal,
na Comissão de Educação, Cultura e uma funcionária da Central Técnica. As tro, pelo menos uma carta anônima foi foi quando Mário de Andrade assumiu
Esportes da Câmara dos Vereadores de câmeras de monitoramento também fo- enviada ao maestro Mário Zaccaro, do a direção do Departamento de Cultura
São Paulo. Ainda assim, quebrou o con- ram vasculhadas, e descobriram-se ima- Coro Lírico, tocando o terror. Dizia: “Cui- e de Recreação da Prefeitura de São
trato com o Odeon, em dezembro de gens de um homem de roupas pretas dado, vai ter demissão.” Paulo. Foi um período luminoso. Entre
2018. No mês seguinte, foi exonerado entregando uma das cartas endereçadas outras medidas, o modernista abriu lu-

E
do cargo. Sturm deixou a secretaria em a Gradim a uma recepcionista da Pra- mbora chame atenção essa quanti- gar no teatro para apresentações de ópe-
meio a duas investigações do Ministério ça das Artes. A funcionária da Central dade extraordinária de rolos dos ra para trabalhadores, durante as quais
Público Estadual – e um dos inquéritos Técnica foi chamada pela polícia para últimos onze anos, o fantasma ad- as instalações saíam ilesas, ao passo que
investigava improbidade no rompimen- depor, e resolveu levar um amigo. Na ministrativo que acaba com os nervos de nas récitas reservadas às elites eram fre-
to contratual com o Odeon. delegacia, o investigador reconheceu o quem trabalha no teatro é antigo. Na quentemente danificadas com canive-
Chegou outro secretário, o gestor amigo: era o homem que aparecia nas tese de doutorado O Estandarte Glorio- tes. Quando veio a ditadura do Estado
cultural Alê Youssef, que suspendeu a imagens do circuito interno, entregando so da Cidade: O Teatro Municipal de Novo, Mário de Andrade foi demitido
dispensa do Odeon e criou um grupo a carta. “Veja o grau de loucura de tudo. São Paulo (1911-1938), defendida em – e o diretor que ele nomeara para o tea-
de trabalho para avaliar suas contas. Esse homem disse para a polícia que era 2004 na Unicamp, a historiadora Maria tro, Paulo Magalhães, foi colocado na
Nem por isso Gradim teve vida fácil. professor de história operística, mas a Elena Bernardes vasculhou – “em horas geladeira. E o tinhoso espectro da falta
Viveu um episódio bizarro, também gente nem quis entrar muito na história a fio de pesquisas em microfilmes não de continuidade começou a assombrar
ilustrativo do que viraram as relações dele. Nosso intuito era nos proteger. En- digitalizados e no calo de dedo”, como os corredores do Municipal.
entre a Fundação Theatro Municipal e tão a gente demitiu a funcionária. Sema- descreveu à piauí – os arquivos dos jor- A versão atual dessa assombração
as organizações sociais. Entre fevereiro e nas depois, ela foi contratada de novo, nais O Estado de S. Paulo e Correio Pau- conta com um detalhe crítico. As orga-
outubro de 2019, ele recebeu cinco car- pela fundação. Se isso não mostra uma listano para entender as funções sociais nizações sociais de cultura que até hoje
tas ameaçadoras, assinadas com um relação assediosa, não sei mais o que é...” e culturais do lugar. Lá pelas tantas, a ganharam as concorrências não são ori-
pseudônimo pueril: João do Theatro. Em janeiro de 2020, a Fundação Thea- tese mostra que, em fevereiro de 1912, ginalmente do ramo e, ainda por cima,
Sempre com a hashtag #foraodeon, com tro Municipal cancelou o contrato com apenas cinco meses após a inauguração quando começam a trabalhar se depa-
erros de português e pródigas em excla- o Odeon, dois anos antes do seu encer- do teatro, um grupo de intelectuais já ram com uma instituição tão complexa
mações, as mensagens chamavam os ramento, atendendo ao pedido do grupo apontava que ele estava “paralisado pela que demoram meses, às vezes anos,
funcionários do Odeon de “víboras pe- de trabalho que recomendou a reprova- burocracia, discutia-se indefinidamente para entender tudo. A cada virada, os
çonhentas”, diziam que a administração ção de suas contas. O instituto diz que a como seria administrado e por quem”. artistas entram em um processo cansa-
era um “festival de planilhas estranhas” e própria ftmsp dificultava a prestação de A partir de 1912, como se vê em vá- tivo de apresentar seu trabalho e defen-
recomendavam que eles tivessem cuida- contas, queimando prazos e descum- rias outras teses acadêmicas, determi- der seu peixe. Quando as diretrizes,
do ao percorrer os corredores do Theatro prindo caminhos burocráticos. nou-se que os gastos do teatro passariam qualquer uma, mesmo as erradas que
Municipal e a Praça das Artes. “A gente A Organização Social Santa Marce- a ser definidos e votados na Câmara poderiam ser corrigidas com o tempo,
começou a ter medo de fato. Pensamos: lina Cultura, que administra o Theatro Municipal e publicados na lei orça- passam a andar – a coisa para, entra ou-
daqui a pouco vamos sair daqui e pode São Pedro, outra casa de ópera em São mentária. A tese de mestrado A Interven- tra OS e começa tudo outra vez.
vir uma bala”, lembra Gradim. “Então Paulo, foi arregimentada emergencial- ção na Economia da Música na Cidade

S
começamos a fazer um trabalho de Sher- mente para cuidar do Municipal, até de São Paulo durante a Primeira Repú- e fosse apresentado ao público à
lock Holmes, juntando os pontos do que se fizesse outra concorrência. Em blica, defendida em 2016 na unb, pelo maneira daqueles filmes em plano-
conteúdo de todas as cartas para tentar maio de 2021, em plena pandemia, a músico Rafael de Abreu Ribeiro, mos- sequência, em que a câmera vai se
descobrir de onde poderiam estar vindo. Sustenidos (gestora do Projeto Guri e tra como o teatro demandou recursos infiltrando sem cortes entre ambientes

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e personagens – como em Birdman ou cie de caixa de madeira onde funcio- péis. Ela é gerente da Musicoteca e A confusão também vai parar nos pe-
Arca Russa – o Theatro Municipal de nários do teatro às vezes sentam durante encarregada de alugar partituras inter- quenos detalhes que, como se sabe, é
São Paulo se revelaria um lugar meio os ensaios, de olhos fechados, porque é nacionais e, depois, editá-las. Editar onde o diabo mora. O endereço e o ser-
encantador, meio vertiginoso. Em um aonde o som chega mais puro, em per- uma partitura é, grosso modo, ler e atua- vidor de e-mail dos funcionários do tea-
dia sem grande movimento, o local po- feita unidade das vozes de solistas com lizar a original, que contempla todos os tro, por exemplo. Desde que entrou no
deria ser vasculhado a partir de suas os instrumentos da orquestra. instrumentos e às vezes é escrita em pa- Municipal, Pasqualini já teve quatro.
entranhas. A câmera passaria, então, Em um dia animadíssimo, como a drões que caíram em desuso. Essa parti- Cada vez que sai uma OS, ela perde o
por uma grandiosa coxia com dezenas quarta-feira, dia 3 de maio, em que todos tura com a construção geral da ópera é histórico de conversas com os músicos
de escadas centenárias de madeira que, os corpos artísticos estavam em ebulição, usada pelo maestro. Mas depois é preci- ou de complicadas negociações interna-
sempre rangendo ao peso dos passos, mobilizados em ensaios de espetáculos, so isolar de dentro dela as partes especí- cionais de partituras. Os processos buro-
vão subindo e subindo, até chegar às o panorama do teatro mostraria a sala da ficas de cada instrumento da orquestra cráticos, como autorização de compras
passarelas – em uma altura equivalente cúpula, com piso de madeira e teto com – são as transcrições que guiarão os mú- e data de pagamentos, também mudam.
a oito andares –, usadas por técnicos ali placas acústicas, onde o maestro Roberto sicos. Fazer esse recorte para uma peça Pasqualini é conhecida no mercado in-
empoleirados, que manejam uma selva Minczuk e músicos da Orquestra Sinfô- de vinte minutos a ser interpretada por ternacional, mas hesita em pegar o tele-
de cordas para movimentar cenários. nica Municipal, alguns usando mole- um quarteto é fácil. Para uma ópera de fone e usar seu nome para acelerar os
É um ambiente um pouco sombrio, com tom e tênis, ensaiavam acordes da ópera mais de quatro horas e uma orquestra processos, porque sabe que a qualquer
degraus traiçoeiros e curiosidades co- O Guarani, de Carlos Gomes. Em segui- com 97 músicos – às vezes 110 – pode ser momento pode sair uma OS e entrar
nhecidas por pouquíssimos, como uma da chegaria ao Salão Nobre, que tem o inferno na Terra. Em média, essa trans- outra – e a programação ser interrompi-
fonte de água que jorra por um cano em portas de jacarandá em arcos, espelhos crição dura até um ano. Sem falar na da. Esse é um fio que, se puxado, envol-
um tanque de concreto, fazendo um que refletem detalhes dourados e vitrais negociação do aluguel da partitura, que ve todas as áreas do teatro.
barulhinho com eco. Poderia ser facil- art nouveau de ferro e vidro. Ali, a maes- precede todo o trabalho, e costuma du-

E
mente cenário de uma luta de morte trina Maíra Ferreira ensaiava o Coral rar no mínimo seis meses, entre trocas nredos barulhentos de atritos admi-
entre Batman e Coringa. Paulistano para a ópera-jazz Blue Mon- de e-mails, acertos e burocracias admi- nistrativos que contaminam o es-
O passeio seguiria por uma rede de tú- day em um cenário que simulava um nistrativas dos países envolvidos. paço inteiro – até explodir – não
neis, antes usados como sistema de ven- bar. São ambientes em que se ouvem É por causa de tarefas muito especí- são exclusividade do Theatro Municipal
tilação, que passa embaixo da plateia e trechos de músicas, vozes aquecendo e ficas como essa que as casas de ópera de São Paulo. Costumam ser exibidos
desemboca em um portãozinho de ferro instrumentos sendo afinados o tempo bem organizadas de outras partes do nas melhores casas do ramo, no mundo
do lado de fora do prédio, já na Praça inteiro. Em todos, há sinais evidentes de mundo definem sua programação com inteiro. Em 2005, o cultuado e mercu-
Ramos de Azevedo. Ou então a câmera como a falta de continuidade administra- anos de antecedência. “Em novembro rial maestro Riccardo Muti se demitiu
sairia do palco, sobrevoaria as poltronas tiva deixa as coisas todas truncadas. de 2022, conversei com a moça da Me- do Teatro alla Scala, de Milão, deixando
de veludo vermelho, subiria por frisas, Em sua sala com uma pequena ja- tropolitan Opera (met), de Nova York, para trás uma confusão das grossas. De-
foyeur e galpão simples até chegar à ga- nela que se abre para o Vale do Anhan- que faz a mesma coisa que eu aqui. Ela pois de meses de brigas envolvendo a
leria. É o lugar mais alto, com pior vi- gabaú e, mais ao fundo, para o prédio já sabia todo o repertório dela para 2026. gestão do teatro, ele se recusou a traba-
são e ingresso mais barato para óperas da Prefeitura de São Paulo, Maria Elisa Eu pensei: ‘Meu Deus! Eu não sei o lhar com a Filarmonica della Scala. Os
(12 reais), mas tem no fundo uma espé- “Milly” Pasqualini vive rodeada de pa- meu nem para 2023’”, diz Pasqualini. músicos devolveram o desaforo votando

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ruim para a qualidade entrar em um inteira à música. Também podem ser
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trabalho desse tamanho, em que as vaidosos e briguentos. No Coral Paulis-


pessoas ficam inseguras, pensando se tano e no Coro Lírico, alguns colegas
vai cancelar. Isso abala a atividade-fim não se falam há anos. Já houve até troca
do teatro: a relevância artística.” de tapas entre um petista e um bolsona-
rista antes das eleições, com os colegas

“I
mponência!”, “Importante!”, torcendo majoritariamente pelo petista.
“Privilégio!”. Na tarde de 3 de Do ponto de vista artístico, no entanto,
maio, um grupo de visitantes no estão todos acostumados a pensar em
Theatro Municipal, instado por um guia voz alta sobre o papel de um teatro como
durante um tour educativo, revelava as o Municipal, em um prédio simbólico,
primeiras palavras que lhe ocorriam em bem no meio de uma região acossada
seguida a um passeio pelas principais pela fome e pela violência – e tão lon-
áreas do teatro. Um século depois da ge das periferias.
construção da casa de espetáculos, os tu- Em suas conversas, músicos, bailari-
ristas captaram a mensagem que os fi- nos, coralistas e regentes elucubram so-
nanciadores do prédio, os barões do café, bre como a definição de música erudita
queriam passar ao erguê-lo naquele pon- como coisa de elite pode ser injusta. Ar-
to em que a cidade acabava, em meio a gumentam que as classes médias já não
uma plantação de chá. São Paulo enri- mandam seus filhos para conservatórios
quecia e precisava de um teatro de gala e que a maior parte dos jovens que estu-
grandioso, capaz de virar ponto de encon- da hoje no Municipal é da periferia, ini-
tro dos ricos que até então viviam enfur- ciada nos instrumentos musicais pelas
nados em suas fazendas. igrejas evangélicas ou por projetos so-
Durante alguns anos, o teatro se ciais. Todos os corpos artísticos têm me-
manteve de fato como símbolo de opu- tas de uso de palco e de apresentações
lência. O clima geral durante as récitas fora do teatro para cumprir, o que é im-
foi descrito pelo intelectual Nino Gallo portante para mostrar à população a
de maneira deliciosa e viperina: “Noi- qualidade do que podem fazer, mas mui-
te de gala, teatro cheio. Um teatro cheio, tos reclamam que, por desconhecimento
em massa por sua renúncia. No último A diferença crucial é que nesses numa noite de gala, é sempre a mesma e falta de interesse das organizações so-
ato, Muti pediu as contas do cargo que grandes palcos do mundo a missão ar- coisa, seja em São Paulo, Roma, Paris ciais, acabam sem espaço na própria casa.
ocupara por dezenove anos, dizendo tística não é afetada tão a fundo pela ou Nova York. Enquanto as senhoras, Se não fosse a eterna crise administra-
que não aguentava mais “a hostilidade brigaiada como acontece no Theatro nos intervalos, ficam firmes nos seus tiva, esses artistas já teriam um desafio
vulgar dos colegas”.  Municipal de São Paulo. Lá, na Europa lugares, expondo à inveja das amigas os grande o suficiente: manter a relevância
Em 2014, a met, de Nova York, me- e nos Estados Unidos, os substitutos lucros extraordinários dos maridos, de uma casa de ópera e música clássica.
teu-se em uma confusão tão profunda não chegam demolindo totalmente o transformados em brilhantes e esmeral-

“F
que por pouco não cancelou uma tem- que estava em curso antes. Coisas como das – em todo o mundo há maridos e izemos história!”, exultou o
porada. Às voltas com um rombo finan- a definição da programação com anos lucros extraordinários –, os homens vão maestro Roberto Minczuk,
ceiro causado pela queda da arrecadação de antecedência, os dias fixos na sema- encher os corredores de fumaça e imbe- logo depois de descer pelo ta-
das bilheterias, redução das doações na de récitas para o público ou a quan- cilidades”, escreveu ele, em um artigo pete vermelho das escadarias do Thea-
milionárias, produções muito caras e tidade média de espetáculos por ano reproduzido no livro Mário de Andrade tro Municipal. Era uma noite fria de
altos custos trabalhistas, o diretor da não costumam mudar. Fora a dianteira por Ele Mesmo. domingo, dia 21 de maio, e ele saía da
casa, Peter Gelb, anunciou cortes em necessária para idealizar e, depois, co- Justamente por causa dessa grã-fina- última apresentação de O Guarani,
salários e benefícios de mais de 2 mil locar em prática um conjunto de espe- gem empoada, os modernistas escolhe- uma seção extra, aberta às pressas de-
funcionários. Arrumou uma briga in- táculos que façam a diferença. ram o Municipal para fazer a Semana de pois que os ingressos das outras oito ré-
cendiária. Os quinze sindicatos de tra- “Você precisa ter tempo para cons- Arte Moderna, em fevereiro de 1922. Nas citas evaporaram. O maestro vestia terno
balhadores de vários departamentos truir as coisas, sem isso o teatro inteiro escadarias do saguão, Mário de Andrade e camisa pretos, estava sorridente e apon-
reagiram prontamente, acusando Gelb fica vulnerável à fragilidade de um sis- leu A Escrava que Não É Isaura – e foi tava com gestos largos, bem à maneira
de má gestão e elegeram como símbolo tema que não engata”, diz a mineira vaiado. A partir daí, o teatro virou o gran- dos regentes, para os colegas de espe-
da sua administração perdulária o cená- Andrea Caruso Saturnino. Doutora em de centro dos debates culturais importan- táculo que também deslizavam pelos
rio de uma das óperas, um campo de artes cênicas pela usp, diretora, pro- tes da cidade, inclusive quando não se degraus de mármore, sob aplausos de
papoulas que custou 169 mil dólares dutora artística e curadora, ela aceitou podia entrar nele. Foi em suas escadarias espectadores que aguardavam de pé no
(cerca de 850 mil reais). Gelb retrucou o convite da Sustenidos para dirigir o externas que se fundou, em 1978, o Mo- saguão. Minczuk era a cara do alívio.
com uma carta aberta em que ameaça- Complexo do Theatro Municipal pelo vimento Negro Unificado, marco na O maestro comanda há seis anos a Or-
va afastar os funcionários que não con- que define como “um encantamento luta contra a discriminação no Brasil. questra Sinfônica Municipal. Desde que
cordassem com os cortes nos benefícios. por uma das raras casas de produção do Na mesma tarde em que Beatriz Franco virou o regente titular, sonhava encenar
A crise só foi controlada depois de uma país onde se produz, artesanalmente do Amaral foi homenageada com um por ali a obra do paulista Antônio Carlos
noite inteira de negociações. mesmo, o que vai para o público”. concerto de música de câmara na Praça Gomes, baseada no livro homônimo de
Em 2020, a Ópera Nacional de Paris Desde o dia em que assumiu, no das Artes, o movimento indígena fazia José de Alencar. Em tese, a montagem
teve 83 espetáculos cancelados. O mo- entanto, caiu no suspense: estará por uma manifestação no Municipal, con- seria quase que obrigatória no maior tea-
tivo: os artistas e funcionários entraram ali até o fim do contrato? “O que acho tra a tese do marco temporal, em um ato tro público de São Paulo. O Guarani é a
em greve durante quase três meses, em mais gritante é que trabalhamos com do qual participaram artistas como Da- mais famosa ópera brasileira: estreou em
reação à reforma previdenciária propos- um planejamento estratégico de cinco niela Mercury e Zélia Duncan. “Aqui é 1870 no Teatro alla Scala, de Milão –
ta pelo governo. A paralisação deixou anos, não é algo que se faz no imedia- o lugar da pancadaria”, definiu o violi- uma apresentação tão radiante e talhada
um rombo de 14,5 milhões de euros tismo. Para a gente conseguir chegar nista Marcelo Jaffé, do Quarteto de para atender aos interesses pelo exotismo
(cerca de 87 milhões de reais) no caixa em trabalhos de fato consistentes é pre- Cordas da Cidade de São Paulo, com dos trópicos, então em voga na Europa,
da instituição, mas também produziu ciso maturar – depois tem a agenda certo orgulho. que imediatamente transformou o com-
momentos antológicos, como aquele de dos maestros convidados, dos solis- Os seis corpos artísticos do Munici- positor em pop star, considerando que
um grupo de bailarinas, diáfanas em tas...”, diz ela, na sua sala no terceiro pal são feitos de seres muito ciosos de óperas eram os espetáculos populares da
seus tutus brancos, que dançou O Lago andar da ala nobre do teatro. “Uma seu papel nas artes performáticas. No época. Não à toa, Carlos Gomes – até
dos Cisnes diante de cartazes de protes- coprodução internacional, por exem- geral, são feitos de artistas de ponta, hoje o maior nome da música lírica na-
to, na calçada da Ópera Garnier, quan- plo, monta partes da ópera em lugares gente que mergulha diariamente em cional –, é um patrono onipresente na
do fazia -10ºC em Paris. diferentes e depois junta tudo. É muito horas de ensaios e que se dedica a vida arquitetura do próprio Municipal. É ho-

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N
menageado com uma estátua logo na zer O Guarani para os dias de hoje’”, a noite da estreia, viu-se uma mon- conseguir ficar com Ceci. Ao fundo da
entrada, um busto no corredor do quinto lembra Andrea Caruso Saturnino, a tagem com, basicamente, duas cena, mulheres do povo Guarani canta-
andar e um medalhão – com a imagem diretora-geral do Complexo do Thea- histórias paralelas. Com exceção vam ao redor de uma imagem coberta
do seu rosto cercada por uma guirlanda tro Municipal. Escalou-se, então, o es- de dois balés que foram retirados, a mú- com o manto de Nossa Senhora que, ao
de louros – bem no alto da boca de cena, critor e ativista Ailton Krenak para fazer sica permaneceu intocada. Os solistas ser descoberto por Peri, revelou Ceci.
pairando sobre a sala de espetáculos. a concepção artística do espetáculo. interpretaram Ceci e Peri, acompanha- O público aplaudiu com entusiasmo
Minczuk sempre admirou O Guarani, Krenak sugeriu nomes de artistas indíge- dos de perto por dois atores indígenas a montagem. Ailton Krenak e o elenco
que foi encenada no Theatro Municipal nas, que se juntaram a todas as fases da que também representavam os papéis indígena foram especialmente ovacio-
pela primeira vez em 1919, depois ganhou produção, da direção ao elenco, da mú- principais, em uma solução chamada nados, tanto na noite de estreia, repleta
mais dezoito montagens, mas não dava as sica às projeções. A proposta era tentar pelos encenadores de duplo cênico. de convidados ligados ao mundo das
caras por ali desde 2000. O jejum tinha espelhar também a história de resistên- A sobreposição da visão indígena na artes, quanto na última récita, com pú-
seus motivos. Nesses tempos em que o cia resumida dessa maneira por David Ve- história teve maior contundência em blico mais diverso. A crítica especializa-
pêndulo cultural se alterna entre corre- ra Popygua Ju, ator indígena chamado dois momentos. No segundo ato, enquan- da, de modo geral, elogiou o espetáculo.
ções mais do que justas e cancelamentos para viver o personagem Peri: “Nesses du- to a soprano bielorussa Nadine Kou- E ninguém fez reparos técnicos à con-
ensandecidos, como levar ao palco uma zentos anos da peça, o povo Guarani es- tcher cantava a ária Oh! Como È Bello dução da ópera. Tudo isso explica o
história em que, em linhas gerais, um in- teve lutando para continuar existindo.” el Ciel!, em que Ceci, loucamente apai- alívio de Minczuk no último dia. Ele e
dígena guarani renuncia docilmente às Ainda na fase de ensaios, a monta- xonada, repete frases talhadas para o todos os artistas do teatro correram um
suas origens para consumar seu amor pe- gem acendeu uma fagulha dentro do ideal romântico como Tutti dobbiamo risco, na tentativa de ajustar o teatro aos
la filha de um colonizador português? teatro. Parte dos artistas e funcionários amar (Todos devemos amar), via-se ao temas importantes do mundo lá fora – e
E, tudo isso, ainda por cima encenado com da casa gostou da ideia, outra achou o fundo a projeção de um filme do artista se deram bem.
solistas brancos cantando em italiano? cúmulo. Alguns diziam que a monta- plástico Denilson Baniwa, com ima- Nos bastidores, porém, nada de alívio.
Na tarde de 11 de maio, um dia antes gem queria reescrever a obra de Carlos gens de uma expedição em que brancos A direção da Sustenidos havia sido avisa-
da estreia, em um encontro com o públi- Gomes sob a perspectiva de Krenak, mediam os corpos de indígenas entre- da dias antes, em uma reunião na bonita
co na cúpula do teatro para falar sobre os quando o mais plausível seria pedir que cortadas por frases como esta: “Como é Sala do Conservatório, que a secretária
bastidores da montagem ao lado de parte o pensador indígena escrevesse a sua ser civilizado?” A segunda sobreposição municipal de Cultura decidiu dessa vez
da equipe de encenadores, Minczuk sacou própria ópera e a encenasse com a equi- mais chamativa veio na famosa cena não recorrer da decisão do tcm sp. De
alguns argumentos, para além da beleza pe do Municipal. Outros afirmavam em que Peri fica de joelhos para se con- fato, vai abrir outra concorrência. “A gen-
da música. “Carlos Gomes era descenden- que o teatro lírico se curvava à arte aber- verter ao cristianismo. Nesse momento, te vai tocando a vida e fazendo as coisas.
te de índios e negros, e sempre se orgu- tamente militante, e que esse preceden- aparece uma frase dos Sermões do Pa- Não podemos parar. Mas, desde o dia em
lhou dessas origens. É o nosso compositor te poderia levar com que a extrema dre Antônio Vieira em uma tela do lado que assumimos, é essa sensação de insta-
mais famoso, por isso insisti muito.” direita começasse a reivindicar o palco direito do palco: “Outros gentios são bilidade”, resume Caruso Saturnino. Até
“A vontade do Roberto de montar também. Do ponto de vista prático, o incrédulos até crer; os brasis, ainda de- o fechamento desta edição, o novo edital
O Guarani já vem de um tempo. Eu zum-zum foi ótimo para a encenação. pois de crer, são incrédulos” – uma in- não havia sido publicado.
falei: ‘Vamos fazer, mas fazer uma A polêmica chegou às redes sociais e à terpretação que sugere que o batismo A qualquer momento, a corrida ma-
montagem que responda o que é tra- imprensa – e os ingressos esgotaram. seria apenas uma estratégia de Peri para luca vai começar outra vez. J

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anais da microfonia

A VIÚVA
As astúcias da misteriosa companheira de Gal Costa – e o impacto na carreira da cantora

THALLYS BRAGA

G
al Costa, vestindo um conjun- nado na porta da pousada onde a artista rim. Quem atendeu a ligação foi Wilma data combinada, ele foi, entregou os
to de cetim preto e com os se hospedava e intimado a sua companhei- Petrillo. Ela o autorizou a levar as flores e lírios à cantora e permaneceu algumas
cabelos armados ao vento, an- ra e empresária, Wilma Petrillo, a prestar ficou encantada ao saber que Prado estu- horas conversando com Petrillo, que
dava de um lado para o outro depoimento na delegacia, sob a acusação dava medicina. alternava frases em inglês e português.
na coxia escura. Lá fora, mi- de ameaçar e perseguir o médico Bruno Ao longo da semana que antecedeu Nunca tirava os óculos escuros.
lhares de pessoas se espremiam numa Prado, então com 31 anos. o evento, Petrillo ligou algumas vezes Daí em diante, ele passou a ser incluí-
praça de Vitória da Conquista, na Bahia, Vindo de uma família de médicos res- para perguntar se ele estava confirma- do nos jantares de Gal e Petrillo, que
esperando para ouvi-la. Estava tudo peitada na sociedade baiana, Prado in- do no show. Em uma das conversas, estavam vivendo em Salvador, e das
pronto para o show começar – o violão gressou na Faculdade de Medicina da soube que Prado tinha pagado mais quais acabou ficando amigo. Chegou a
afinado, a mesa de som regulada –, mas Bahia quando fez 18 anos. Era apaixona- caro pelo ingresso. Ela armou uma acompanhá-las em turnês internacio-
Gal se recusava a ligar o microfone. Ti- do por Caetano Veloso, João Gilberto e confusão com o teatro e tirou do pró- nais e, dada a influência de sua famí-
nha medo de subir no palco e ser algema- Gal Costa. Em 2003, ele soube que a prio bolso o valor excedente que Prado lia, arranjava os melhores médicos da
da pela polícia na frente de todos. Mais cantora faria um show no Teatro Castro pagara. Desculpou-se e, para compen- Bahia para atendê-las. Com o tempo,
cedo, naquele domingo de dezembro de Alves em Salvador e decidiu ligar para sar o transtorno, disse que o jovem teria passou a trocar confidências com Pe-
2012, uma viatura policial havia estacio- perguntar se podia levar lírios ao cama- livre acesso ao camarim de Gal. Na trillo, que ligava tarde da noite para de-

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EDSON RUIZ_FOLHAPRESS_1998
Gal Costa e Wilma Petrillo, em 1998: “Na minha cabeça, elas sempre foram como dois olhos. Estavam uma do lado da outra, mas não se enxergavam”, diz Halu Gamashi, a médium da cantora

“E
sabafar sobre os problemas financeiros cujos apartamentos têm varandas com quase caiu para trás. Petrillo acrescen- u quero saber o que está
que enfrentava com Gal. Um dia, sentiu vista para o mar de Salvador. Petrillo tou: “Eu disse à Gal que estava indeci- acontecendo”, repetia Gal,
confiança para contar que estava apai- estava sozinha em casa. “Cadê a pa- sa quanto a te pedir, mas ela falou que naquela coxia escura em
xonado por outro homem. “Ser gay era troa?”, perguntou Prado, recorrendo ao você é tão nosso amigo...” Prado conta Vitória da Conquista. As horas passa-
o segredo da minha vida, meus pais não apelido que a empresária usava para se que se sensibilizou e disse que faria o vam e o seu produtor Ricardo Frugoli
podiam nem sonhar”, disse ele em en- referir a Gal. “Ela teve que passar no possível para ajudar na cirurgia. Petrillo se empenhava em não contar a verda-
trevista à piauí. cabeleireiro”, respondeu Petrillo, e co- sorriu e secou as lágrimas do rosto. Pou- de para a cantora. Na delegacia da
Sete anos depois, em dezembro de meçou a chorar. Segundo a lembrança co depois, Gal chegou ao apartamento cidade, Petrillo gritava com os poli-
2010, Prado foi convidado para assistir de Prado, ela disse: “Bruninho, a Gal e todos partiram para a formatura de ciais sem tirar os óculos escuros, en-
à formatura de Gabriel, o filho de Gal, fez uma cirurgia no olho, e eu descobri Gabriel. No dia seguinte, segunda-feira, quanto Prado tremia e suava frio.
no maternal. Na manhã do dia do even- que também vou precisar operar o meu, Prado mandou entregar na casa de Gal Na época em que deveria receber o
to, Petrillo ligou: “Passe aqui em casa só que estamos sem dinheiro. Eu pre- e Petrillo um envelope amarelo com dinheiro de volta, ele deixou de ser con-
para irmos juntos até a creche”. O ende- ciso de qualquer valor que você puder 15 mil reais. vidado para os shows e para a casa de
reço era o Morada dos Cardeais, condo- me emprestar, mas agradecerei muito Estava aberta a sua temporada no Gal. Também não conseguia mais se
mínio de luxo no bairro da Vitória, se for algo entre 10 e 15 mil reais.” Ele inferno. comunicar com Petrillo. No círculo

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do show. Só então Gal aceitou subir no rários de voos e hotéis. Não estou brin-
palco. Nervosa, errou as letras das músi- cando.” Com medo das ameaças e do
cas. Não se sabe que explicação Petrillo descontrole de Petrillo, ele acordou
VITOR MASSAO_2023

deu a Gal. Nem Prado, nem Frugoli fa- no dia 31 e decidiu prestar queixa no
laram do assunto com a cantora. 4º Distrito Policial da Consolação, em
Seguindo o conselho da família, São Paulo. A ocorrência foi emitida às
Prado foi para Nova York duas semanas 8h30 pelo escrivão Edvaldo Prado da
depois para aliviar o estresse. Ele conta Silva e assinada pelo delegado Paulo
que, um dia, Petrillo ligou para seu ce- Cesar de Freitas. Segue a íntegra, tal co-
lular, dizendo que sabia o nome do mo foi originalmente escrita:
hotel em que estava hospedado e, por Comparecem nesta DELPOL, a pessoa
ter morado na cidade, conhecia gente de Ricardo Frugoli, o qual relata que vem
que poderia dar um jeito nele. O médi- recebendo ligações telefônicas oriundas
co teve uma crise de pânico e pegou do fone [...], bem como correspondências
um trem para a casa de um amigo em eletrônicas via internet, por meio das
Massachusetts, onde ficou até as ame- quais a pessoa da autora Wilma Theodo-
aças cessarem. Meses depois, recebeu ro Petrillo [o escrivão acrescentou um H],
o cheque de Petrillo com a devolução vem lhe proferindo ameaças a sua integri-
de todo o dinheiro. Nunca mais fa- dade física, dentre elas relata que vai aca-
lou com ela, nem com Gal. Hoje tem bar com a pessoa do declarante, salienta
41 anos e diz que esse foi um dos piores que além de ameaças por telefone a auto-
traumas da sua vida. ra lhe profere pessoalmente em seu traba-
Para Ricardo Frugoli, o período em lho situado no local dos fatos. Diante do
que trabalhou com Petrillo é uma época acima narrado, dirigiu-se a esta Unidade
de más lembranças. O produtor teve a fim de registrar o presente para serem
contato com contratantes de shows do tomadas as providencias cabíveis. Vítima
Brasil e da Europa que perderam o inte- foi orientada quanto ao prazo e procedi-
resse em Gal Costa em razão, segundo mento legal, para representar em desfavor
ele, do comportamento da empresária, da autora, independentemente de intima-
que destratava os profissionais, aplicava ção, se assim desejarem.
taxas de última hora para tirar vanta- Quatro dias depois, Frugoli foi dis-
cultural de Salvador, começou a ouvir alerta para o caso de Petrillo fazer no- gem dos organizadores dos eventos e pensado do trabalho de produtor. Dois
histórias sobre golpes que a empresária vas ameaças ao filho, o que aconteceu fazia acusações infundadas de furto. anos mais tarde, em 2015, entrou com
teria aplicado. Diziam que Petrillo era assim que ela chegou à cidade. “Você Frugoli também conta que testemu- uma ação na Justiça, pedindo anotação
uma pessoa ardilosa, de quem até os vai tomar uma surra tão bonita que vai nhou casos de amigos e familiares da na carteira de trabalho e todos os bene-
amigos de Gal preferiam manter distân- aprender a respeitar os outros”, escre- cantora que se afastaram dela, e de ex- fícios trabalhistas, além de indenização
cia, mas os boatos não combinavam veu para Bruno por sms. “Ela dizia coi- funcionários que tiveram episódios de por assédio moral. Sua causa foi julgada
com o companheirismo e a lealdade da sas como ‘Você não tem vergonha de depressão por causa das humilhações improcedente em primeira instância.
mulher que Prado conheceu.  pedir dinheiro para uma mulher mais que aconteciam nos bastidores. Frugoli entrou com recurso, mas a Jus-
Um dia ela atendeu ao telefone, e o velha, sua bicha?’” Em 2012, Petrillo ti- Um dia, cansado de tudo, ele aprovei- tiça voltou a entender que não tinha
médico cobrou o dinheiro. A empresária nha 62 anos, cinco a menos que Gal. tou uma carona com Gal para contar o direito às questões trabalhistas, nem
respondeu que faria a devolução em trin- Em pânico, Prado ligou para o pai, que que estava acontecendo. Disse que Pe- conseguira provar o assédio moral.
ta dias. Passou-se um ano, quase dois disse que estava na hora de dar um bas- trillo barrava ofertas de trabalho que “Com a perda do processo, é como se
anos, e nada. Certa vez, ela disse a Pra- ta naquelas ameaças. chegavam e que certos produtores inter- eu não tivesse existido na vida de Gal”,
do: “Se você continuar me cobrando, eu Na delegacia, a ocorrência foi regis- nacionais se recusavam a contratá-la por lamenta Frugoli. Ele abandonou a área
vou fazer uma coisa muito bonitinha: trada assim: causa da índole da empresária. “Você cultural, na qual também trabalhou
conto para o teu pai que você é viado.” Relata o comunicante [Prado] que pode ganhar o dobro do que vem ga- com Dionne Warwick e Mercedes
“Quando ela falou isso, eu tremi”, vem recebendo via celular do número [...] nhando”, disse ele a Gal. A cantora bateu Sosa, e hoje comanda um projeto social
diz o médico. Ele então conta que de- ligações de ameaça nas quais a pessoa os punhos fechados no volante do carro. de reabilitação de usuários de drogas,
cidiu escrever um e-mail para Gal re- sempre diz que vai agredi-lo fisicamente, “Estão tentando me roubar, Ricardo?”, em São Paulo. Quando recebeu a notí-
velando toda a história. A cantora ligou, que para além das ligações existem tam- perguntou. Frugoli conseguiu acalmá- cia da morte de Gal, ocorrida em 9 de
com a voz triste, dizendo que não sabia bém mensagens de voz nas quais dizem la, dizendo que ainda havia tempo de novembro do ano passado, se pegou
de nada e garantiu que Petrillo lhe en- que é melhor para o comunicante não sair contornar a situação. pensando por que ela confiou quase
viaria um cheque. Acrescentou que de casa pois caso isso aconteça ele sofrerá No dia seguinte, chegou para traba- trinta anos de sua vida a Petrillo.
seria melhor ele se afastar por um tem- sérias consequências. Que tais ameaças lhar e estava tudo como antes. Gal o

U
po porque ela não queria ter problemas estão sendo feitas pela pessoa de nome tratava com a gentileza e a serenidade ma das artistas mais relevantes da
com Petrillo. O cheque prometido não Vilma Petrilo [o escrivão trocou o W de sempre – e nunca voltou a falar no mpb, cuja carreira se estendeu por
chegou de imediato, mas Petrillo hon- pelo V e eliminou um L], pessoa esta que assunto. Petrillo continuou à frente dos quase seis décadas, Gal Costa
rou a ameaça: enviou para o consultó- não reside em Vitória da Conquista, mas negócios e ainda o humilhava, chaman- deixou uma herança minguada para o
rio do pai de Prado um envelope com se encontra hospedada no Hotel Pousada do-o de “burraldino” e fazendo comen- filho. Uma busca em cartórios de regis-
uma foto dele beijando o namorado – da Conquista, no apartamento 104. As tários a respeito do seu sobrepeso. “Eu tros de imóveis no Rio de Janeiro, São
era uma imagem que o próprio Prado partes compareceram em audiência nesta tolerava por causa da Gal”, diz Frugoli. Paulo e Bahia mostra que o item de
havia compartilhado com Petrillo quan- delegacia às 21:00 horas e a sra. Vilma “Durante muito tempo, fui o cara que maior valor é uma casa no bairro pau-
do ainda se davam bem. Prado conta Petrillo se retratou, comprometendo-se a não deixou a bomba explodir. Conti- listano dos Jardins. O imóvel foi adqui-
que, mais tarde, ela ligou para o seu pai não repetir tais condutas. É o relato. nuar ali era importante para protegê-la rido por 5 milhões de reais em 2020,
e expôs a sua intimidade. O efeito foi o Pula uma linha. do que vinha acontecendo na carreira e depois que o apartamento em que mora-
inverso do que Petrillo planejara: Pra- Fato delituoso: SIM; Natureza do fato: dentro de casa.” va na Alameda Itu precisou ser vendido
do, entrando num período de tristeza e (CRIME CONTRA A PESSOA) AMEAÇA (CÓDIGO No final de julho de 2013, Frugoli para quitar dívidas. Um ex-funcionário,
pensamentos suicidas, foi acolhido PENAL , ARTIGO 147); Órgão destinatário: acertou os detalhes de um show direta- que trabalhou com Gal até sua morte e
pela família. 10ª Coordenadoria de Polícia – VITÓRIA mente com Gal. Petrillo não gostou e conversou com a piauí em cinco oca-
Quando a Prefeitura de Vitória da DA CONQUISTA. escreveu por sms: “Ricardo, pq nunca siões, sempre por celular, diz que a con-
Conquista anunciou o show de Gal O registro foi auditado pela delegada responde aos meus torpedos??? Nun- ta bancária da cantora era um “buraco
Costa em praça pública, o pai de Prado Lusdenes Batista Silva, às 21h20. Petrillo ca!!! (...) Tenho uma surpresinha p vc.” negro”. Mesmo fazendo turnê atrás de
deixou um advogado e o delegado em foi liberada e levada de viatura até o local Depois, acrescentou: “Favor enviar ho- turnê, disco atrás de disco, o dinheiro

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CLUBE DE REVISTAS
entrava e era engolido. Treze pessoas Produções Artísticas, a gmc Produ- funcionário. Procurado pela piauí, Melo dos Unidos, onde Claudio fez residência
ouvidas pela piauí – seis ex-funcionários ções Artísticas e a Wilclick Produções da Silva não quis se manifestar. “Não médica na Universidade de Nova York. 
que trabalharam com Gal, seis amigos Artísticas, empresas que negociavam tenho interesse de falar porque acredito Certo dia, caminhando pela Blee-
da cantora e um parente – concordam os shows de Gal. Havia dois funcioná- que isso não vai levar a nada.” cker Street, no West Village, Wilma es-
em um aspecto: as finanças da cantora rios que se dividiam entre o trabalho barrou com o músico Paulo Lima, que

W
foram minadas no período em que Pe- no escritório e as demandas da vida ilma Teodoro Petrillo (seu so- tinha acabado de produzir no Brasil o
trillo e Gal estiveram juntas. pessoal de Gal e Petrillo: o almoço, o brenome de solteira é Araújo) show Gal a Todo Vapor. “Ela me disse
As dívidas se estendiam a restauran- jantar, as malas de viagem, o paga- nasceu em 1950, em São Paulo. que queria aprender a tocar violão”, re-
tes, ao Colégio Dante Alighieri (onde mento das contas, o saque de dinheiro Filha do segundo casamento da profes- lembra o músico. “Fez uma ou duas
estudou o filho de Gal, em São Paulo), a no banco. Um deles contou à piauí sora Vitalina Ramos Araújo com o co- aulas comigo e desistiu, mas continua-
empregados domésticos e, segundo uma que, em 2015, testemunhou Gal in- merciante Celso Teodoro Araújo, foi mos nos frequentando.” O apartamento
produtora que chegou a ter acesso a con- quirir a parceira: “O dinheiro entra e criada com os quatro irmãos – Anna, do casal Petrillo se tornara um ponto de
tas internacionais de Gal, até à Receita some, as dívidas não param de chegar. Ana Cristina, Celso e Saladino. Seu encontro de brasileiros em Nova York
Federal norte-americana. Pouco antes Que tipo de empresária é você?” Pe- tio-avô, Saladino Cardoso Franco, foi na metade da década de 1970, frequen-
da morte da cantora, o Carnegie Hall, trillo respondeu: “Você é uma velha, prefeito do extinto município paulista tado por modelos, atrizes, produtores
de Nova York, estava interessado em as pessoas não querem mais te contra- de São Bernardo, que corresponde hoje de cinema e figuras da música. O casa-
contratar uma série de shows. “Na próxi- tar.” O funcionário conta que houve ao território das cidades de Santo An- mento, que não gerou filhos, terminou
ma vez que ligarem, diga que a Gal não um momento de atrito físico. A cena dré, São Bernardo do Campo, São Cae- na virada para a década de 1980. Clau-
gosta de se apresentar nos Estados Uni- aconteceu na sala de estar do aparta- tano do Sul, Diadema, Mauá, Ribeirão dio concluiu a residência médica e se
dos”, ordenou Petrillo ao funcionário mento de Gal, na Alameda Itu. Pires e Rio Grande da Serra. mudou para Connecticut para chefiar o
que recebeu a demanda do Carnegie Os shows continuavam a ser vendi- Ela cresceu numa casa no bairro do departamento de medicina e reabilita-
Hall. Mais tarde, esse mesmo funcioná- dos, mas alguns não chegaram a acon- Brooklin, na capital paulista, e nunca ção física do Norwalk Hospital. Deixou
rio, em conversa com Gal, lamentou tecer. O mesmo empregado se lembra fez faculdade. Na juventude, se vestia com a mulher o apartamento em No-
que a cantora não gostasse de se apresen- de receber telefonemas de produtores como hippie e saía com músicos ama- va York e passou a pagar uma pensão.
tar nos Estados Unidos. “Isso é mentira”, furiosos. Até que um empresário gaú- dores. Conheceu assim Claudio Ricar- Claudio não respondeu os pedidos de
reagiu Gal. Aos íntimos, a cantora dizia cho, Márcio André Melo da Silva, ligou do Petrillo, integrante de uma banda de entrevista da piauí.
que o seu nome estava sujo junto à Re- ameaçando-o de processo porque paga- garagem, que se tornaria seu marido. Em 1982, a modelo Betty Prado che-
ceita nos Estados Unidos porque Petrillo ra para contratar um show de Gal, mas Ele entrou para a Escola Paulista de gou a Nova York. Com apenas 20 anos,
vendera um imóvel dela em Nova York não recebera os papéis assinados por Medicina. “Claudio foi o único de nós, era a primeira brasileira a participar do
e não pagara os impostos devidos. Te- Petrillo. O funcionário decidiu relatar à dos quatros irmãos, a não trabalhar des- Supermodel of the World, o maior con-
mendo ser presa, Gal evitava ir ao país. cantora o que estava acontecendo. “Se de cedo porque reservava o tempo para curso internacional de modelos. Ela
Seu último show lá aconteceu em 2011. eu largo a Wilma, ela leva metade de os estudos. Era um garoto acima da mé- conheceu Wilma Petrillo, e as duas co-
Petrillo era a pessoa que cuidava tudo que eu tenho, sem nunca ter tra- dia”, diz Cyro Petrillo, irmão de Clau- meçaram a namorar. Costumavam se
das contas domésticas e também era a balhado de verdade para conseguir dio. Depois da formatura, ele e Wilma divertir em Nova York ao lado da atriz So-
empresária responsável pela Baraka alguma coisa”, disse Gal, segundo o se casaram e se mudaram para os Esta- nia Braga, que se preparava para atuar

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TAMBÉM TRANSGREDIR 33
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para expandir o patrimônio de Gal. “Lea Veríssimo pediu que Gal cantasse para
sabia que uma cantora deveria fazer o seu ela. “Que música?” perguntou a cantora.
pé de meia no auge da carreira, para ga- “Pétala, do Djavan”, escolheu a atriz.
VITOR MASSAO_2023

rantir um futuro seguro”, diz Guto Bur- Gal repetiu a canção várias vezes no
gos, o irmão de Gal, que assumiu a trajeto até a Zona Sul e terminou a
produção dela depois da saída de Gui- noite do lado de Veríssimo. “Era um
lherme Araújo. Com a morte da mãe de momento mágico para nós duas. Vi-
Gal, Mariah, em 1993, Burgos tornou-se víamos o ápice das nossas carreiras”,
a representação de família para a cantora, diz a atriz, uma das estrelas da Rede
mas não participou dos últimos anos da Globo na época. “Eu emendava uma no-
vida dela. Diz que foi afastado da irmã vela atrás da outra, me apresentava no
por Petrillo em 1997. “Por favor, eu não teatro e em shows countries pelo país.
quero mais falar disso”, pede, recostado Gal estava lançando seus maiores su-
no sofá num apartamento no Leblon. cessos. Seus shows e turnês nacionais
“É um assunto que me dói muito.” e internacionais duravam dois anos,
Sobre a questão patrimonial, ele diz: com casas lotadas.”
“Gal teve oito salas comerciais no Rio de Veríssimo nunca foi creditada como
Janeiro, cujo aluguel garantia uma renda produtora de Gal, mas agia como uma
mensal extra. Comprou uma cobertura e faz-tudo nos bastidores. Chamou duas
um apartamento no Praia Guinle” – um figurinistas da Globo, Marília Carneiro
condomínio de luxo na Praia de São e Helena Gastal, para refinar a imagem
Conrado. A piauí localizou quatro salas da cantora. Usava o conhecimento em
comerciais no Leblon e o dois imóveis em italiano, francês e inglês para ajudar a
São Conrado registrados no nome de fechar contratos no exterior. Nos segun-
Gal. “Também tinha imóveis em Salva- dos que antecediam o show, levava Gal
dor, Trancoso e Nova York. Como dói pelas mãos até a entrada do palco. “Na-
saber que ela morreu sem nada disso. Pa- quela época, trabalhar com ela era mui-
rece que todo o trabalho dela foi em vão.” to simples. Ninguém precisava mover
A cantora teve ainda uma granja em Pe- nada. O telefone simplesmente tocava.”
trópolis, onde costumava passar os fins de Na primeira casa que tiveram juntas,
semana com a atriz Lúcia Veríssimo, que uma cobertura na Praia de São Conrado,
em filmes norte-americanos. Betty Pra- rior, uma calma, um espírito quase zen. foi sua companheira durante dez anos. a cantora passava os dias dedilhando o
do já comentou com amigos que foi Você caía igual patinho.” violão ou lendo. Nos fins de semana, elas

“A
lesada financeiramente pela parceira e O que acontecia depois? “Ela tinha s poltronas são as mesmas, mas viajavam para a granja de Petrópolis, geral-
teve que voltar ao Brasil para se recom- uma maneira civilizada de aplicar gol- aquele sofá não era nosso”, diz mente acompanhadas da mãe e do irmão
por. Procurada pela piauí, a modelo li- pes, tinha paciência, era uma pessoa Lúcia Veríssimo, andando pela de Gal. Passavam os verões em Salvador.
mitou-se a dizer: “Isso é passado e está bem orquestrada”, continua Canosa. casa principal da granja. Há cinco ou- Chegavam de mãos dadas em eventos
enterrado.” E completou: “Desejo que o “Era uma mulher de muita paciência. tras casas espalhadas pelo terreno de 19 al- públicos e conheceram até o papa João
universo conspire e te ajude a descorti- E ninguém ousava denunciar a Wilma queires, todas pintadas de rosa. Depois Paulo ii, no Vaticano. “Tínhamos um ca-
nar esses golpes.” porque não queria se associar a uma pes- de ter sido vendido por ela e Gal em samento declarado, com aliança no dedo.
Na ausência de Betty Prado, Petrillo soa tão...”, ele respira fundo, e conclui: 1992, o espaço foi transformado em esco- A rua era a extensão da nossa casa. Era tão
estreitou os laços com Sonia Braga. As “Psicótica.” Canosa diz que Sonia Braga la e, mais tarde, numa pousada. Os últi- natural que acabava não chocando, nem
duas aparecem sorridentes em fotogra- lhe confidenciou que se distanciou de mos resquícios do jardim desenhado por rendia fofocas na imprensa.”
fias da época. Anos depois, em 1997, Petrillo quando ela já estava com Gal, Burle Marx para o casal Gal e Veríssimo Veríssimo se diverte lembrando dos
em entrevista ao Roda Viva, a atriz con- depois de também ter sido envolvida em são as palmeiras imperiais que se erguem rompantes culinários de Gal. “Na gran-
tou que morou com Petrillo – a quem um golpe. A atriz não respondeu aos pe- no meio do mato. O que era uma biblio- ja, se ela cismava de fazer um prato,
ela chamou de “amiga” – num momen- didos de entrevista da piauí. teca virou lavabo. No banheiro da suíte, pegava o telefone e ligava para algum res-
to em que a sua carreira passava por No final dos anos 1970, Gal Costa a atriz se emociona: “Fui eu quem cons- taurante de que gostava. Quando aten-
uma mudança. Em 1985 estreou o fil- atingiu o seu ápice de popularidade no truí essa banheira para a Gal.” diam, dizia que queria falar com o chef
me O Beijo da Mulher Aranha, em que Brasil. “Ela começou com muito prestígio, As duas estreitaram as relações em e então pedia para ele ensinar o passo a
Sonia Braga contracenou com William ao lado do Caetano Veloso e dos tropica- 1981. “Havia, naqueles tempos, a com- passo da tal receita. O cara ficava louco
Hurt e Raul Julia, tornando-se um rosto listas, mas os discos não eram populares, preensão de que fazíamos parte de uma de alegria do outro lado da linha: era a
conhecido do público norte-americano. costumavam agradar principalmente aos mesma família. Não precisávamos de Gal Costa, porra”, conta Veríssimo, aos
Petrillo sempre ficou distante da im- formadores de opinião”, diz o jornalista e apresentações formais”, diz a atriz. “Era risos. Certa vez, Gal a chamou na co-
prensa. Há pelo menos um registro au- crítico musical Mauro Ferreira. “A virada um período em que nós duas estávamos zinha para dar uma olhada nos toma-
diovisual de quando ela era jovem, num começa em 1978, quando saiu o álbum sozinhas, ambas processando o término tes “tão bonitos, tão diferentes”. Eram,
videoclipe gravado por Agnaldo Timó- Água Viva, com a gravação de Folhetim, de um namoro.” Como amigas, tinham na verdade, caquis.
teo no Central Park, em Nova York. Seu do Chico Buarque. No ano seguinte, sob longas conversas sobre música e teosofia. Para Veríssimo, a cantora nunca apren-
cabelo preto desce um pouco abaixo da a direção do Guilherme Araújo, ela fez “Varávamos as noites em reflexões pro- deu a cozinhar ou a resolver as questões
altura do ombro e os olhos caídos lhe o show Gal Tropical, que virou o aconte- fundas a respeito de onde viemos e para mais práticas da vida adulta. “A mãe
dão um ar despretensioso. O nariz, fino cimento do verão.” onde vamos. O planeta Terra, astrologia, dela, a Mariah, criou a Gal numa redo-
no dorso e redondo na ponta, harmoniza Em 1984, Gal deixou a gravadora vida após a morte, vidas passadas, reen- ma”, diz a atriz. “Ela dependia de muita
com os lábios fartos. “Era uma mulher Philips e assinou com a rca. “Então ela carnação. Falávamos também de jazz, gente, principalmente nos departamen-
de extrema beleza e enorme poder de passou a gravar baladas populares, como de bossa nova, dos grandes intérpretes. tos funcionais da rotina. Era doce, mas
sedução, mas sem o caráter que a gente Chuva de Prata, com o Roupa Nova”, Por vezes, eu tocava o violão para ela profundamente insegura.” O quadro
aprecia nos amigos”, diz o diretor de ci- continua Ferreira. “No disco Bem Bom, cantar. Mas quase sempre eu pedia que mudava quando o assunto era música.
nema Fabiano Canosa, parceiro de lon- de 1985, lançou Sorte, com Caetano Ve- ela tocasse e cantasse para mim.” “Ela nasceu apenas para cantar e sempre
ga data de Sonia Braga e que integrou loso, e a grande explosão que foi Um Um dia, Veríssimo precisou buscar soube que isso jamais mudaria. No pal-
o círculo de brasileiros que frequentava o Dia de Domingo, com o Tim Maia.” uma encomenda no subúrbio do Rio e co, se agigantava, era de uma segurança
apartamento do casal Petrillo em Nova Vendeu mais de 500 mil cópias do ál- convidou Gal para acompanhá-la. “Um invejável. Mas o poder só permanecia
York. “Nunca conheci alguém como bum, um êxito comercial para a época. convite nada romântico, que dificilmente até ela acordar no dia seguinte.”
essa mulher. Ela tinha uma coisa que Sua empresária, Lea Millon, que tam- alguém aceita, mas ela aceitou.” Na volta Os depoimentos de amigos e familia-
lembrava a atriz italiana Lea Massari: bém administrava a carreira de Caetano para casa, ficaram presas no trânsito. res ouvidos pela piauí convergem em
falava bem, projetava uma beleza inte- e Gilberto Gil, aproveitou o momento Como o rádio do carro estava quebrado, outro ponto: a estabilidade emocional de

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Gal dependia de quem estava ao seu Apaixonadas, elas começaram um
lado e tinha repercussão direta na sua projeto para ganhar dinheiro. Jacy usa-
arte. Pode-se traçar um paralelo. Na dé- ria os conhecimentos em design de in-
cada de 1970, quando teve um relaciona- teriores para desenhar e fabricar móveis,
mento com a modelo carioca Wilma enquanto a namorada aproveitaria os
Dias, seu trabalho tinha um impulso contatos em São Paulo para vendê-los.
sexual e desafiador. Nos anos 1980, du- Foi assim durante um tempo: Petrillo
rante seu casamento com Veríssimo, negociava as peças, ficava com metade
teve sucesso financeiro e alcançou o do lucro e depositava a outra metade na
ponto mais alto de sua popularidade. Na conta da arquiteta. Os negócios e o rela-
década seguinte, depois do término com cionamento seguiram firmes. Petrillo,
Veríssimo e o namoro curto, mas doloro- inclusive, levou Jacy para conhecer a
so com o músico Marco Pereira, a me- sua família em São Paulo.
lancolia tomou conta do seu trabalho. Depois de três anos e meio de namo-
Nesta época, sempre na companhia ro, a arquiteta comprou um terreno de
do irmão Guto Burgos, Gal passou a se 3 mil hectares em Santo André, a 30 km
dividir entre o Brasil e o exterior, para de Porto Seguro, registrado no nome
temporadas de shows. “Passávamos cer- dela e da namorada, que ficou de pa-
ca de seis meses no Rio e seis em Nova gar pela sua parte assim que possível.
York”, diz ele. Gal aproveitava o tempo Como o negócio aconteceu há muitos
livre na cidade norte-americana para anos, Jacy não lembra os valores exa-
visitar os amigos brasileiros. “Sempre tos, mas calcula que cada uma deve-
que íamos à casa da Sonia Braga, tinha ria desembolsar uns 15 mil dólares.
essa mulher desconhecida que morava Petrillo viajou para Nova York em se-
com ela. Gal não simpatizava, mas res- guida e, pouco a pouco, foi deixando
peitava. Se era amiga da Sonia, só po- de mandar notícias. Gal Costa havia
dia ser gente de bem.” A mulher era entrado na história.
Wilma Petrillo. Quando amigos perguntavam a Gal
como conheceu Petrillo, eles sempre es-

E
m Porto Seguro, quando a arquiteta cutavam a “história do avião”. Num dia
Margarida Jacy tomava café no res- da primeira metade da década de 1990,
taurante de uma pousada, uma mu- estava viajando para Nova York de pri-
lher de óculos escuros se aproximou e meira classe quando lhe trouxeram uma
pediu o jornal emprestado. A arquiteta garrafa de champanhe: “Foi aquela
entregou o jornal para a desconhecida e moça ali quem mandou”, disse a comis-
foi embora. No outro dia, Jacy parou o sária. Gal reconheceu o rosto que tinha
carro para abastecer e lá estava a mulher visto na casa de Sonia Braga e, contando
de óculos escuros novamente. “Prazer, com a liberalidade da companhia aérea,
eu sou a Wilma.” As duas combinaram convidou Petrillo para se sentar ao seu
um jantar. “Então eu soube que a Wilma lado na viagem. Quando o avião pou-
era amiga de Sonia, que vivia em Nova sou, Petrillo disse que não tinha onde
York e agora tinha alugado uma casa em ficar na cidade, e Gal a chamou para
Porto Seguro.” A arquiteta se apaixonou se hospedar em sua casa. Nunca mais se
pelo jeito blasé de Petrillo, que falava desgrudaram.
pouco do próprio passado, mas tudo que De Porto Seguro, Jacy continuava
dizia soava interessante. “Ela falava com tentando se comunicar com a namora-
orgulho que tinha sido a única namora- da. “Eu não conseguia nem sentir raiva,
da de Sonia Braga.” queria apenas que ela me pagasse o que
Os amigos avisaram Jacy que aquele devia pela compra do terreno.” Meses
namoro era uma roubada. Contaram que depois, quando Petrillo reapareceu em
Petrillo tinha aplicado um golpe no ator Porto Seguro, Jacy cobrou o dinheiro.
Diogo Vilela na venda de um imóvel. Petrillo puxou do bolso do casaco um
Por se tratar de uma amiga de amigos, bolo de papéis e disse: “Estão aí as no-
o ator dispensou as formalidades legais tas. Eu te paguei tudo.” Eram os com-
de um contrato, confiando no acordo provantes dos depósitos do dinheiro
verbal que acabou não sendo cumprido. obtido com a venda dos móveis plane-
À piauí, Vilela disse apenas o seguinte: jados por Jacy.
“Eu não quero falar absolutamente nada Num rompante de raiva, Jacy disse
sobre essa senhora.” que se arrependia de não ter acreditado
Jacy desprezou os comentários por- nos alertas de que ela era uma “golpista”.
que não se importava com o passado da Petrillo levantou-se da mesa e foi embo-
namorada. Só estranhava que alguém ra. “A verdade é que ela detonou toda a
vindo de Nova York e amiga de famosos herança que os pais deixaram. Os ir-
não tivesse dinheiro para pagar as contas mãos usaram o dinheiro para prosperar,
mais básicas. “Wilma tinha um padrão mas Wilma não”, diz a ex-namorada.
de vida alto, mas só pagava o aluguel. “Então, começou a aplicar um golpezi-
Muitas vezes, quem fez o mercado da nho aqui, outro ali, e a viver com quem
casa dela fui eu.” Em determinados dias, pudesse bancar o estilo de vida dela.”
Petrillo parecia falida. Em outros, janta- Jacy diz que até hoje não recebeu o di-
va nos restaurantes mais caros de Porto nheiro. (Ana Cristina Teodoro de Araú-
Seguro, com personalidades como a ita- jo, irmã de Petrillo, negou à piauí que a
liana Marina Schiano, modelo e ex-dire- herança tenha sido detonada e não quis
tora criativa da revista Vanity Fair, sua dar detalhes sobre o assunto. “Em briga
amiga de Nova York. de família, ninguém tem que se meter.”)

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Outro pilar da cantora era a teosofia. ticipação da cantora no festival Praia
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Em 1994, ela conheceu a médium Halu 24 Horas, promovido pela Prefeitura de


Gamashi e ficou interessada pelo seu Salvador. Depois, organizou outras
trabalho com chacras. “Gal era uma sé- duas apresentações de Gal na Bahia.
ria estudiosa da espiritualidade”, diz Na última, o governo do Estado atra-
Gamashi. Quando visitava a Bahia, a sou o pagamento e Gal disse a Moraes
cantora se encontrava com a amiga, mas que, por recomendação de Petrillo,
Petrillo não a acompanhava. Até que, não subiria no palco se não recebesse
um dia, Petrillo apareceu em um jantar o dinheiro imediatamente. “Sempre
de médiuns em Trancoso. Observava a tinha um estresse envolvendo a Wilma
conversa em silêncio. A certa altura, le- e eu decidi não trabalhar mais com
vantou o dedo para perguntar se alguém Gal. Wilma tinha a melhor voz do Bra-
ali acreditava em extraterrestres. Quan- sil em suas mãos, mas faltava tino admi-
do Gal, Gamashi e os outros entraram nistrativo e habilidade de conversar com
num transe, Petrillo explodiu com a os outros”, diz Moraes. “Num momen-
namorada: “Chega, você não deveria to de desgaste, eu perguntei: ‘Gal, afi-
me trazer para um lugar como este.” nal, qual é o papel de Wilma na sua
A médium disse que, por causa do carreira?’ E ela respondeu: ‘Wilma só
“ciúme inescrupuloso” de Petrillo, pas- me veste.’”
sou a se encontrar com a cantora em si- Nem todos têm a mesma leitura do
gilo. Quando iam jantar, Gal olhava para relacionamento entre Petrillo e Gal.
um lado e para o outro, tentando se cer- “Elas eram ótimas”, afirma o amigo Ale-
tificar de que Petrillo não estava à esprei- xandre Rodrigues, que acompanhou as
ta. “Sinceramente, ninguém conseguia duas tanto na Bahia quanto nas viagens
entender o que se passava naquela rela- do casal a Nova York. “Quando estava
ção. Gal era uma pessoa tão reservada longe, Gal ligava para Wilma três ou
que não deixava ninguém se aprofundar quatro vezes por dia.” Rodrigues garan-
no assunto. E eu também não queria par- te: “Não havia conflito nenhum entre
ticipar daquilo”, afirma Gamashi. “Na elas, pelo contrário.” O diretor Daniel
minha cabeça, elas sempre foram como Filho, amigo de Gal e de Petrillo, tam-
dois olhos: estavam uma do lado da ou- bém diz que já ouviu diversos comentá-
No Rio de Janeiro, Gal acolheu Pe- muito estranho porque tínhamos uma tra, mas não se enxergavam.” rios sobre o passado de Petrillo, mas
trillo na cobertura de São Conrado, a amizade estreita, em todos os sentidos.” Em 1995, Gamashi combinou com nunca chegou a uma conclusão. “Sei lá,
mesma onde tinha vivido com Lúcia Ve- Os interesses empresariais de Gal a cantora de fazer a leitura de sua aura é um mistério. Dizem muita coisa, mas
ríssimo. Em 1994, a cantora disse, numa ficaram então sob os cuidados da namo- durante um show. “Aceitar ficar com eu prefiro ficar com a versão da Wilma.”
entrevista à jornalista Marília Gabriela, rada, que colocou à venda a cobertura elas no camarim foi uma decisão horrí- Quando concluiu o processo de ado-
que pela primeira vez estava gerindo a em São Conrado. Em seguida, as duas vel”, diz. Minutos antes de começar a ção do filho Gabriel, Gal lançava discos
própria carreira. O irmão, Guto Burgos, se mudaram para a casa de Trancoso, e apresentação, ela ouviu Petrillo pergun- e rodava o mundo com turnês que ex-
conta uma versão diferente: ele próprio Gal reduziu o contato com a maioria tar se Gal não sentia vergonha por estar ploravam pouco sua extraordinária ca-
teria passado a atuar mais intensamente dos amigos. O telefone fixo da nova tão gorda. “Ela disse para Gal: ‘Você está pacidade vocal. “Os anos 2000 foram
como empresário da irmã, incentivando casa estava sempre ocupado, ou enca- pensando que é quem, Nana Caym- muito esquisitos. Ela entrou para grava-
para que ela continuasse a trabalhar de- minhava as ligações para a caixa postal. mi?’”, conta a médium. “O mais estra- doras menores e lançou discos de pouca
pois da morte da mãe. Sem experiência “Quando estou na Bahia, meu ritmo nho era que a Gal ficava quieta diante visibilidade que desagradaram a crítica
em produção cultural, Petrillo começou fica mais lento, eu fico mais preguiço- dessas situações.” por serem conservadores, caretas”, diz o
a participar dos negócios. sa”, disse Gal à reportagem do sbt, com Em 1998, a cantora comprou por crítico Mauro Ferreira. “Na segunda
A nova namorada foi citada pela pri- o litoral baiano ao fundo da imagem. 1,6 milhão de reais, em valores da épo- metade da década, parecia que a carrei-
meira vez em um trabalho da cantora “Eu fico mais burra, aquela burrice ca, um hotel modernista no Morro da ra dela estava acabada. Até que Caetano
em 1995, nos agradecimentos do disco boa, de preguiça, que não dá nem von- Paciência, em Salvador, para transfor- Veloso percebeu isso e decidiu tirá-la do
Mina d’Água do Meu Canto. São raros tade de pensar.” mar em sua residência – e se mudou pa- fundo do poço com o álbum Recanto.”
os registros de Petrillo ao lado de Gal. ra lá no começo dos anos 2000. O dono Descontente com um show de Gal

O
Em 1996, a repórter Neide Duarte, do candomblé era um pilar da vida da casa ao lado era Caetano Veloso. que assistiu em Portugal, Caetano convi-
sbt, passou alguns dias acompanhando religiosa de Gal Costa. Ainda jo- Com Gal, moravam Petrillo, uma em- dou a cantora para gravar um disco de
a rotina da cantora, entre o Rio de Janei- vem, ela foi levada ao Gantois, pregada e um motorista, que trabalhava canções inéditas. Em um mês, compôs as
ro e Trancoso, na Bahia. Em cenas gra- o terreiro de Mãe Menininha, em Sal- para a cantora desde os tempos do ca- músicas e começou a trabalhar nos arran-
vadas no jatinho que as levava ao litoral vador. Descobriu que seu orixá era samento com Lúcia Veríssimo. Nessa jos eletrônicos de Recanto, com a ajuda
baiano, Petrillo aparece usando seus Obaluaiê. “Gal, uma estrela? Aqui no mesma época, Ana Cristina, a irmã ca- de Moreno Veloso, o seu filho mais velho
óculos escuros. Gantois? Nunca”, diz Mãe Carmem, çula de Petrillo, deixou São Paulo e se e afilhado de Gal. Segundo Moreno, a
No dia 14 de abril do ano seguinte, filha caçula de Mãe Menininha. “Ela instalou numa quitinete perto da casa disposição de sua madrinha nas grava-
Burgos se internou para fazer uma cirur- entrava aqui com tanta simplicidade de Gal. Foi contratada por Petrillo para ções foi “inabalável”, do início ao fim.
gia no coração e deixou os funcionários que ninguém dizia que era a cantora. tomar conta dos cachorros da cantora. As complicações surgiram mais tarde,
do escritório de Gal administrando o Sentava-se no chão, para ficar bem per- quando se ventilou a possibilidade de

A
cronograma de shows. Logo que retor- tinho do meu colo.” jornalista e produtora cultural fazer uma turnê pelo Brasil para pro-
nou a sua casa, começou a receber liga- A ialorixá de 94 anos fala devagari- baiana Rita Moraes foi convidada mover o disco. Petrillo queria que Gal
ções de produtores de shows do Brasil e nho e fica melancólica quando o as- por Gal para produzir um show, continuasse com os shows de voz e vio-
do exterior. Um deles disse: “Guto, ligou sunto é Gal. Encolhe os olhos e sacode em 2009. “Quando soube que eu ia lão. E, se fosse para a turnê Recanto
aqui uma mulher perguntando se você a cabeça de um lado para o outro: “Se me encontrar com Wilma, um amigo me acontecer, ela não queria que Caetano
já roubou a Gal.” O irmão da cantora eu soubesse que ela ia partir tão cedo, eu disse: não leve a sua bolsa, deixe no car- recebesse os créditos e o lucro pela di-
descobriu que era Petrillo. Pouco depois, a teria filmado em cada pedaço do Gan- ro”, conta Moraes. Ela viajou a São Pau- reção artística. “Gal e Wilma estavam
Gal o chamou para conversar. “Ela disse tois, até entrando no banheiro, para lo, Goiânia e Brasília, tentando captar há muitos anos produzindo shows de
que sentia que estava na hora de traba- não esquecer nunca. Gal era como um recursos, mas encontrou resistência voz e violão, não tinham mais estrutura
lhar com outra pessoa”, conta Burgos. vento batendo numa flor: suaaaaave”, dos investidores. “Eu não entendi: co- nem traquejo para tomar conta de uma
“Desejei sorte para ela e disse que es- diz ela, alongando a vogal. “Uma bele- mo o nome de Gal Costa, a maior voz equipe maior”, diz Moreno. “Foi um
perava que a Wilma respeitasse o meu za tão simples que, se você não prestar do Brasil, não abre portas?” O show não pouco penoso para a equipe e para elas
nome.” Gal se afastou do irmão. “Foi atenção, não vê.” aconteceu, mas Moraes produziu a par- esse período de readaptação a projetos

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maiores. Acho que todo esse atravanca- tório das três empresas que cuidavam

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mento ficava na conta da Wilma por dos shows da cantora – a Baraka, a gmc
ela ser a produtora, mas sei que era mais e a Wilclick, esta uma sociedade com
confusão, falta de preparo e de comuni- Ana Cristina, a irmã de Petrillo.
cação do que má vontade.” O jornalista paulista Marcus Preto
Por fim, Petrillo deixou a produção vinha tentando se encontrar com Gal
da turnê. Em Santa Catarina, o produ- para apresentar a ideia de um docu-
tor Rodrigo Bruggemann, responsável mentário sobre o celebrado show Gal a
pela organização dos shows de Recan- Todo Vapor, que aconteceu em 1971.
to nas cidades do Sul do país, comemo- Depois de marcar e desmarcar três ve-
rou a notícia abrindo uma garrafa de zes, a cantora finalmente apareceu e
champanhe. “Eu trabalhei com Maria ficou animada com a proposta. Duran-
Bethânia, Simone, Alcione, Beth Carva- te a conversa, ele perguntou o que Gal
lho, Zizi Possi, Bibi Ferreira, Mart’nália, planejava fazer no próximo disco. “Re-
com praticamente todas as cantoras gravações”, respondeu a cantora. “Mas,
do Brasil, e te digo que a pior pessoa Gal, não dá para você fazer isso, agora
com quem lidei nesse meio foi a Wil- que o Recanto te colocou outra vez na
ma Petrillo”, ele desabafa. “Além de ser posição máxima da música brasileira”,
grosseira, ela fazia mudanças de última ele disse – e sugeriu que ela fizesse um
hora e aplicava taxas surpresa, e ainda disco de inéditas com compositores da
exigia uísque caro para levar para casa. nova geração. Gal gostou da ideia e
Gal, na presença dela, se tornava uma convidou Preto para produzir o álbum.
pessoa soturna.” O documentário sobre o Gal a Todo
Bruggemann conta que Gal não fazia Vapor não aconteceu, mas o jornalista
participação especial nos shows de nin- ficou incumbido também de conceber
guém, ao contrário dos outros cantores um novo show da cantora, para aconte-
da mpb, porque Petrillo não permitia. cer antes do lançamento do novo disco.
“Provavelmente nem deixava os convites Os funcionários da Baraka Produ-
chegarem até ela.” O cantor Ney Mato- ções, porém, encontravam dificuldades
grosso recorda que um dia esbarrou com para fechar os contratos da nova turnê.
Gal no Aeroporto Santos Dumont, no O nome de Gal já não abria as portas com
Rio de Janeiro. Fazia algum tempo que tanta facilidade. Depois de acertar os fato.” Francisco Erilando Costa Uchoa, O problema chegou na hora de gravar
não se viam e, depois que se abraçaram, shows com as casas de espetáculos, os co- uma das testemunhas do processo, dis- o disco. Petrillo parou de responder às
ela perguntou: “Você não gosta mais de laboradores da Baraka precisavam se cer- se que Petrillo certa vez perguntou: mensagens de Pessoa. Quando final-
mim?” Matogrosso ficou surpreso. “Nós tificar de que não seriam ludibriados na “A Ana já chegou para trabalhar, aque- mente retomou contato, disse que Gal
fomos muito íntimos, era uma delícia porcentagem que recebiam em cada ne- la imbecil?” Leca venceu a ação na pri- não tinha mais tempo para continuar no
me encontrar com a Gal. Falávamos de gociação. “Uma vez, um contratante ar- meira instância e aguarda o julgamento projeto e preferia gravar o disco em estú-
sacanagem, dávamos beijinhos, vivía- gentino falou que tinha realizado um do Tribunal Superior do Trabalho. dio, o que Pessoa acatou. A gravação foi
mos toda aquela loucura que só quem depósito e nós fomos cobrar a Wilma, que agendada para um dia de 2017. Na data

O
viveu nos anos 70 sabe”, contou o cantor insistia que a transferência não tinha caí- empresário baiano Maurício Pes- combinada, ninguém apareceu – e, mais
à piauí, na sala de sua casa no Leblon. do na conta”, diz um ex-produtor, que soa conta que levou dois tombos tarde, Petrillo alegou falta de espaço na
“Diante de uma pergunta como aquela, pediu para não ser identificado, por temer no mercado musical. O primeiro agenda de Gal. Sem o disco, a Natura
eu só pude responder: ‘Como eu não retaliações. “Eu me juntei à secretária da aconteceu em 2011, quando ele e o só- Musical não pagou os 140 mil reais res-
gosto de você, Gal? Eu te amo.’ Daí ela Baraka, que tinha todas as senhas bancá- cio gastaram mais de 1 milhão de reais tantes, e Pessoa nunca recuperou o di-
me disse: ‘Então por que você recusou rias, e fui atrás do extrato. O pagamento para organizar uma turnê de João Gil- nheiro investido na turnê. Ele estima ter
as duas vezes que eu te pedi para me estava na conta havia dias, mas a Wilma berto. Às vésperas do evento, o artista perdido mais de 1 milhão de reais.
dirigir no palco?’” simplesmente não nos pagava.” cancelou tudo, alegando problemas de Enquanto Gal viajava pelo país para
Matogrosso se lembra de ter recebi- Houve outro momento tenso entre saúde. O segundo aconteceu dois anos promover o disco Estratosférica, lança-
do apenas um convite para assumir a esse ex-produtor e Petrillo durante a depois, em 2013, com Gal. No começo do em 2015, Pessoa trancou-se em casa,
direção do show da cantora e aceitou turnê Trinca de Ases, realizada por Gal, de abril passado, ele explicou à piauí o diagnosticado com depressão. Nunca
na hora. Pediu que lhe mandassem um Nando Reis e Gilberto Gil. Um dia, a que aconteceu. entrou na Justiça para reaver os valores.
disco físico para entender o projeto, cantora estava aflita porque deveria ter Pessoa conseguiu patrocínio de 700 mil “Eu não tinha condições nem financei-
mas conta que nunca recebeu o mate- recebido um depósito da equipe de Gil, reais da Natura Musical para um pro- ras, nem emocionais e nem mesmo fí-
rial. Um dia, Petrillo ligou dizendo mas a conta bancária estava vazia. Um jeto que Gal havia aprovado: organizar sicas para lidar com a Wilma. No caso
que não havia mais tempo hábil para funcionário foi ao banco averiguar o seis shows e a gravação de um disco ao do João Gilberto, contratei um advo-
Matogrosso dirigir o show porque esta- problema e descobriu que o dinheiro vivo em que ela interpretaria o repertó- gado e segui com a minha vida, deixan-
va em cima da hora para a nova turnê. havia sido retirado por Petrillo, que ti- rio do compositor gaúcho Lupicínio do ele cuidar dos meus direitos. Quando
“Ela foi tão definitiva com a resposta nha acesso à conta da cantora. Rodrigues. Petrillo, então, disse que tudo se repetiu com a Gal, não me so-
negativa que eu preferi nem questio- Funcionários da Baraka contam Gal só daria continuidade ao projeto se brou chão.”
nar a decisão”, conta o cantor. No ae- que, nos dias de calor em São Paulo, a recebesse de imediato 80% do valor, ou Em Pernambuco, o produtor Her-
roporto, ele rememorou a história para empresária tirava a blusa e o sutiã no seja, 560 mil reais. O empresário achou mogenes Carolino da Silva também
a cantora, mas não disse quem tinha escritório. A piauí teve acesso a uma o valor exorbitante para a quantidade enfrentou dores de cabeça. Ele pagou
ligado cancelando o convite. Gal en- foto tirada por um funcionário na qual de apresentações, mas cedeu, com a 57 mil reais a Petrillo pela realização
tão perguntou se o nome da pessoa Petrillo aparece nua da cintura para expectativa de reaver o dinheiro na ven- do show Estratosférica no Teatro Guara-
começava com a letra W. Constrangi- cima, dentro do escritório. Uma fun- da dos ingressos. Os primeiros shows rapes, em Olinda, previsto inicialmente
do, ele não quis responder. Na saída do cionária, Anamaris Torres Leca, che- aconteceram em 2015. “Foi muito difí- para 26 de março de 2016. A apresen-
aeroporto, os dois se abraçaram e Gal gou a entrar na Justiça com uma ação cil encontrar uma data para as apresen- tação foi adiada, de comum acordo,
murmurou: “Eu sei que foi ela.”  trabalhista contra a Baraka, a gmc e a tações, porque a Wilma sempre dizia para 2 de junho. Um dia, o evento su-
Wilclick. Na reclamação, de quase que a agenda da Gal estava apertada”, miu da agenda oficial de Gal. Depois,

E
m 2012, Gal e Petrillo se muda- quarenta páginas, Leca diz que nos lo- diz o empresário. “Como assim? Aper- entrou no lugar um show no Sesc Pi-
ram para São Paulo. Foram viver cais de trabalho havia até mesmo con- tada? Eu paguei 560 mil reais que me nheiros, em São Paulo, no mesmo dia
no apartamento da Alameda Itu e trole do uso do banheiro e que Petrillo, pediram. Tínhamos um compromisso.” e horário do de Olinda. Carolino da
alugaram uma sala comercial na Aveni- quando estava nervosa, dizia a ela: “Me Aos trancos e barrancos, os seis shows Silva, que já tinha começado a venda
da Faria Lima, onde instalaram o escri- avisaram que você é muito burra, de foram realizados. dos bilhetes, ficou sabendo do cance-

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ficou sabendo do ocorrido, pediu para do, mas decidiu que o corpo ficaria em
o novo empresário ignorar o que Pe- São Paulo, no mausoléu da família
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trillo havia feito e participou da Vira- dela, no Cemitério da Consolação.


da Sustentável. O velório, que contou com a pre-
Gal passou a cantar com mais frequên- sença de Burgos, aconteceu na Assem-
cia em festivais e teatros. Tinha direito bleia Legislativa de São Paulo e, na
a acompanhante, mas sempre viajava manhã do sepultamento, o nome da
sozinha. Petrillo ficava em São Paulo viúva de Gal estava em todos os cantos
na companhia da irmã, Ana Cristina, da internet. Em alguns momentos no
que morava no quarto de empregada da funeral, a revolta superou a tristeza
casa, e de Gabriel, o filho da artista. Em dos amigos da cantora. “Cheguei lá e
março de 2022, funcionários da compa- parecia uma porta de camarim. Para
nhia de energia elétrica bateram à porta entrar, o seu nome tinha que estar na
da casa, com uma ordem de corte da lista”, diz o ator Ciro Barcelos. “Me
luz. As contas ainda estavam registradas desesperei quando vi o caixão sendo
no nome da antiga proprietária da casa, fechado, sem aplausos, sem uma ho-
a artista visual Daniela Cutait, e não menagem digna. Tinha um clima de
haviam sido pagas. “Meu nome ficou frieza no ar.” Barcelos puxou um grito
negativado porque a Wilma não pagou de “Viva Gal Costa” antes que o corpo
as dívidas”, diz Cutait. “Quando eu li- da cantora fosse levado embora.
guei para pedir que a titularidade da No dia seguinte, a internet exibia crí-
conta fosse atualizada, ela disse que eu ticas à condução do velório e à falta de
era uma putinha. Uma putinha que mo- esclarecimentos sobre a morte da artis-
rava num apartamentozinho qualquer. ta. A causa nunca foi revelada porque é
Você acha que eu gostei de cortar a luz desconhecida. Em busca de explica-
da Gal Costa? Claro que não, mas foi a ções, Petrillo ligou para a médium Halu
saída que restou.” A titularidade da con- Gamashi, que sugeriu que se fizesse a
ta de luz foi trocada. autópsia do corpo – o que não aconte-
A briga continuou, porém, quando a ceu. No atestado de óbito constam duas
fornecedora de gás também cobrou razões presumidas: infarto agudo do
a conta em nome de Cutait. Até hoje, a miocárdio e tumor maligno de cabeça e
lamento do evento através da página O álbum de inéditas com músicos artista visual tenta em vão convencer pescoço. A cantora havia se submetido
de Gal no Facebook. da nova geração também foi em frente. Petrillo a mudar a titularidade da conta em 21 de setembro a uma cirurgia no
Em 30 de maio, a Wilclick Produ- “Eu achava fundamental que a Gal de gás. No dia 22 de junho passado, nariz, para a retirada de um nódulo.
ções Artísticas e a própria Petrillo fo- seguisse lançando novos compositores, Cutait fez um desabafo no Instagram, Petrillo pediu à Justiça o reconheci-
ram notificadas extrajudicialmente para manter a própria relevância”, diz expondo as faturas vencidas e pedin- mento da união estável com Gal e a
para devolver, dentro de cinco dias, o Preto. A artista embarcou na proposta do que Petrillo tome uma providência. guarda do filho da artista, Gabriel. Ela
valor já pago por Carolino da Silva e do disco A Pele do Futuro. Quando A história foi parar na coluna de Moni- pede para ocupar a posição de inventa-
mais 150 mil reais referentes à quebra conseguiram a participação de Marília ca Bergamo, na Folha de S.Paulo. Os riante do espólio. Além da casa nos
contratual. Sem retorno de Petrillo, o Mendonça para a música Cuidando de valores são irrisórios: a de maio, por Jardins, comprada por 5 milhões de
produtor levou o caso à Justiça, reque- Longe, Petrillo disse que não entendia exemplo, ficou em 10 reais. Dois dias reais, o patrimônio inclui os direitos
rendo também 350 mil reais por danos por que haviam chamado aquela “cai- depois do desabafo de Cutaiti, Petrillo autorais da cantora. Os amigos se preo-
morais à imagem de sua empresa, a pira”. “A partir dali a minha relação publicou no Twitter comprovante do cupam com o destino desses bens que
Casa de Taipa Produções e Eventos. com Wilma ficou insustentável e não pagamento da conta – mas era de luz, Gal deixou para Gabriel, que comple-
Quatro anos depois, a 37ª Vara Cível falei mais com ela”, diz Preto. “Tam- não de gás – e escreveu: “Se o nome tou 18 anos no final de junho e mora
de São Paulo rejeitou o pedido de dano bém parei de mencionar o nome dela dessa senhora está no Serasa, certa- na casa dos Jardins.
moral, mas condenou a Wilclick a de- para a Gal que, num acordo silencioso, mente não é por responsabilidade mi- No mausoléu onde Gal está enterra-
volver os 57 mil reais do show, corrigi- fez a mesma coisa.” nha.” Em seguida, partiu para o ataque: da, não há uma lápide com o nome da
dos. Petrillo está recorrendo. As iniciativas de Preto e Kati Braga “Ela vive pendurada em maridos que cantora. Alguns fãs que visitam o local
Na mesma época do frustrado show foram paulatinamente devolvendo certamente honram suas contas. Seu colocam fotos e dizeres sobre o túmulo
de Olinda, o produtor e diretor criativo Gal ao mercado musical. Petrillo fi- grande mérito foi ter morado em Nova de mármore. A piauí visitou o local em
Marcus Preto teve a ideia de fazer um cou escanteada nesse período. O em- York por dois anos. Patético. Certamen- maio. Além de fotografias, encontrou
dvd para a turnê Estratosférica. Gal presário Nilson Raman assumiu a te como faxineira, não como artista plás- uma placa de madeira com as datas de
achou que era uma boa ideia, mas Pe- negociação dos shows e conseguiu tica famosa.” Cutait está considerando nascimento e morte da cantora e um
trillo não gostou. “Nunca entendi muito contornar as dificuldades. “Naquela levar o caso à Justiça. trecho da música Recanto: Coisas sagra-
bem o motivo”, diz ele. “Acho que a ideia altura, as pessoas não queriam mais das permanecem,/nem o Demo as pode

N
dela era retornar ao formato de voz e vio- negociar shows da Gal. Os contratan- a casa de Guto Burgos, no Rio de abalar./Espírito é o que, enfim, resulta/
lão, mais barato de realizar. Para Gal, isso tes todos se conhecem, contam suas Janeiro, há um telefone fixo para de corpo, alma, feitos: cantar.
teria sido artisticamente catastrófico.” experiências um para o outro. Sabiam o qual apenas Nana Caymmi cos-

E
Mas, como tinha sinal verde de Gal, do que tinha acontecido na adminis- tuma ligar. Ele tocou na manhã de 9 de m 2009, o produtor cultural Cle-
Preto procurou financiamento para o tração da carreira da Gal antes de eu novembro, mas a voz do outro lado era ber Lopes Pereira procurou a Ba-
projeto com Kati de Almeida Braga, chegar”, diz Raman. Ele completa: de um sobrinho de Nana, avisando que raka Produções para acertar uma
dona do Icatu Seguros e sócia da gra- “Colocamos a Gal de volta à rota da tinha acabado de ver na tevê a notícia apresentação de voz e violão de Gal no
vadora Biscoito Fino, que se mostrou América Latina, da Europa e planejá- da morte da Gal. Centro de Convenções Ulysses Guima-
interessada não apenas no dvd como vamos a sua volta ao Japão. Todos os Abalado, o irmão da cantora ligou rães, em Brasília. O valor cobrado pelo
em ter Gal no seu catálogo de artistas. shows com contratos assinados e ca- para Kati de Almeida Braga, que estava show foi de 60 mil reais. Por telefone,
A cantora foi ao encontro de Kati Bra- chês devidamente pagos.” Em 2021, embarcando para São Paulo a fim de ficou combinado que a empresa de Pe-
ga e ficou combinado que começariam sabendo que o empresário negociava acompanhar os trâmites do funeral. reira pagaria 6 mil reais um mês antes
logo a produção de um novo disco e de um show na Virada Sustentável de Burgos pediu que ela transmitisse um do evento, 24 mil quatro dias antes e os
uma agenda de shows. “Tempos de- São Paulo, Petrillo contatou a organi- recado para Petrillo: Gal havia manifes- 30 mil restantes na ocasião do show, dia
pois, quando já éramos íntimas, ela me zação do evento para dizer que Gal tado o desejo de ser enterrada no Cemi- 16 de janeiro de 2010.
disse que queria minha ajuda para or- era uma artista exclusiva do escritório tério São João Batista, no Rio de Janeiro, No contrato enviado por Petrillo
ganizar a vida financeira”, diz Braga. dela e, portanto, nenhum evento ao lado da mãe, onde comprou um ja- por e-mail, as regras haviam mudado:
Ela aceitou. aconteceria sem o seu aval. A cantora zigo perpétuo. Petrillo recebeu o reca- ela pedia duas parcelas prévias de

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15 mil reais e uma última de 30 mil No dia seguinte, a piauí procurou Pe-

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reais. Pereira estranhou, mas aceitou trillo por meio do WhastApp. A mensa-
as novas condições. Um dia, a empre- gem, disparada às 18h32, fazia um
sária ligou exigindo a primeira par- pedido de entrevistas. Para não surpreen-
cela do show antes da assinatura dos dê-la e permitir que chegasse à entre-
papéis. Quando Pereira pediu o con- vista sabendo do que se tratava, a
trato assinado, ela disse: “Meu amor, mensagem adiantava os pontos cen-
você não está lidando com qualquer trais. Mencionava os pedidos de adian-
cantora, estamos falando de Gal Cos- tamento de cachês de shows de Gal,
ta. Eu não vou assinar um contrato alguns dos quais foram parar na Justiça,
sem depósito prévio.” terminando com vitória dos contratan-
Pereira ficou inseguro. Ele tinha tes e derrota da Baraka Produções. Ci-
31 anos e pouca experiência no mer- tava que seus funcionários reclamavam
cado, mas sabia do risco de efetuar o de assédio moral, tendo inclusive teste-
pagamento sem que as formalidades con- munhado que Petrillo ficava nua no
tratuais estivessem estabelecidas. Ao escritório em dias de calor. Fazia refe-
falar com seus dois sócios na empresa rência à denúncia de Bruno Prado, o
de produção cultural, eles riram do di- médico de Vitória da Conquista, que
lema: “Cleber, pelo amor de Deus, você registrou boletim de ocorrência contra
está lidando com Gal Costa.” Petrillo por perseguição, e à denúncia
Sem dinheiro, o produtor decidiu de sua ex-namorada Margarida Jacy,
vender o carro, um Volkswagen Fox, arquiteta em Porto Seguro, que a acusa-
para pagar os 15 mil reais da primeira va de um golpe. A mensagem dizia,
parcela. Em 11 de setembro de 2009, ainda, que ex-funcionários contaram
fez o depósito na conta bancária de que ela abusava psicologicamente de
Petrillo. Ela, então, começou a cobrar Gal e encerrava informando que a
a segunda parcela. “Pelo e-mail, eu cantora tinha receio de ser presa nos
pedia para me enviarem o contrato, Estados Unidos pela falta de paga-
mas a Wilma alegava que estava em mento dos impostos decorrentes da
turnê com a Gal e não tinha tempo venda do apartamento em Nova York.
para assinar”, diz Pereira. Foi quando Petrillo não respondeu e bloqueou o
ele teve a primeira crise de pânico. repórter. Ela voltou a ser procurada, Além disso, o citado repórter tem en- positava as expectativas de conseguir
“Eu fiquei sem saber o que fazer. Uma desta vez por meio de uma ligação por trado em contato com pessoas próximas mudar de vida, ele que vinha de um lo-
opção era começar a vender os ingres- celular, no dia seguinte, 31 de maio. à sra. Wilma Petrillo e a Gal Costa, no teamento urbano localizado na Cei-
sos do show para arrecadar o valor da Outra tentativa de contato aconteceu Brasil e nos Estados Unidos, e feito ques- lândia, uma das cidades-satélites mais
segunda parcela, mas nem isso eu po- no dia 6 de junho e, mais uma, no dia tionamentos a tais pessoas sobre a convi- pobres do Distrito Federal. De segun-
dia fazer.” A empresária havia proi- 9 de junho. Petrillo nunca atendeu. No vência entre ambas, bem como enviado da a sexta-feira, ele se dividia como
bido que a imagem e o nome de Gal dia 16, seu advogado, Ricardo Kopke a essas pessoas as alegações acima refe- professor de teatro entre duas escolas
fossem usados em quaisquer publici- Salinas, mandou uma “advertência” ridas. Ou seja, o repórter está calunian- públicas de Brasília.
dades do show, exigência que não cons- por escrito à piauí para que não publi- do, difamando e injuriando a sra. Wilma Com as contas acumulando, as cri-
tava no contrato. casse a reportagem, sob pena de sofrer Petrillo perante essas pessoas. ses emocionais se intensificaram. Um
Ele enviou quatro e-mails para Pe- “as medidas judiciais cabíveis”. Segue a É evidente que tais afirmações são ca- psiquiatra o diagnosticou com depres-
trillo pedindo o contrato assinado. Um íntegra da peça assinada pelo advogado: luniosas, difamatórias e injuriosas, além são, ansiedade e princípio de pânico, e
no dia 14 de setembro, outro no dia 24, A sra. Wilma Petrillo, viúva da canto- de serem falsas e equivocadas, desacom- ele foi afastado do trabalho pelo inss.
o terceiro no dia 5 de outubro e o últi- ra Gal Costa, tem recebido diversas liga- panhadas de qualquer comprovação. “Eu sou arrimo de família. Venho de
mo quatro dias depois. Não teve retor- ções telefônicas e, inclusive, mensagem A sra. Wilma Petrillo não é uma pes- um contexto de dificuldade financeira”,
no. A empresária deixou de atender de WhatsApp, do repórter Thallys Bra- soa pública, e a cantora Gal Costa sem- diz. “Até hoje, ver qualquer reportagem
seus telefonemas. Ana Cristina, a irmã ga, que alega estar a serviço da revista pre fez questão de preservar a intimidade sobre estelionato me causa angústia.
de Petrillo, atendia ao telefone do es- piauí. Nessas mensagens, o citado repór- da família, inexistindo qualquer interesse É uma sensação de que te amarram e
critório e dizia que ia transmitir o re- ter realiza afirmações e questionamentos público em tais alegações, do que decorre você não tem saída.”
cado. “Nesse ponto, eu já me sentia sobre supostos fatos de caráter privado e o nítido interesse ofensivo do repórter. Em 2014, Pereira venceu na Justiça
como se tivesse caído num golpe de íntimo relacionados à convivência entre Assim, serve a presente para adverti- um processo contra a Baraka Produ-
estelionato”, diz Pereira. Sem o contra- a sra. Wilma Petrillo e a cantora Gal los de que se for publicada qualquer ções, cujo portfólio de artistas tinha ape-
to assinado, o Centro de Convenções Costa, sob o argumento de que está es- matéria sobre a sra. Wilma Petrillo, nós nas Gal. Na sentença, o juiz mandou
de Brasília cancelou a reserva. crevendo uma matéria jornalística para adotaremos as medidas judiciais cabí- a produtora pagar uma indenização de
No final de maio passado, a piauí a próxima edição da revista. veis para reparar a sua honra e impedir 15 mil reais. Pereira achou pouco, recor-
conversou com Ana Cristina por tele- Tais afirmações e questionamentos a continuidade da ofensa, inclusive reu e as partes acabaram fazendo um
fone. De início, ela disse que nunca partem de premissas genéricas, sem aquelas de caráter criminal contra o re- acordo de 35 mil reais. “O valor original
soube de nenhum caso de show acer- apoio em fatos concretos, falsas, e calu- pórter e os responsáveis. Confiamos no acabou sendo um pouco maior porque
tado por Petrillo que não tenha acon- niosas, como, por exemplo, a alegação bom senso e qualidade da revista piauí a ré atrasou o pagamento de algumas
tecido. “Eu participei de longe”, disse de que a sra. Wilma Petrillo cobraria para que matérias ofensivas, difamató- parcelas. Mas conseguimos penhorar a
ela. “Só tomo conta dos cachorros da adiantamentos para shows da cantora rias e caluniosas, sem qualquer interesse conta bancária dela”, diz o advogado
casa, e olhe lá.” Depois, deu a enten- Gal Costa e os shows não acontece- público, e unicamente destinadas a Diogo Kutianski, que trabalhou na cau-
der que a responsável pelos desacordos riam, dando a entender que a sra. Wil- ofender, caluniar e violar a privacidade sa. Pereira conta que usou o dinheiro
era a própria Gal Costa. “Eu acho que ma se apropriava indevidamente dos alheia não sejam publicadas. para começar outra empresa de produ-
ela era muito exigente. Dizia: ‘Se não valores pagos; ou o de que a sra. Wilma Depois de receber a advertência do ção cultural. “Consegui me reestabele-
for desse jeito, eu não entro [no palco].’ Petrillo obrigaria pessoas da equipe de advogado, a piauí voltou, mais uma vez, cer, graças a Deus, mas passei anos com
Não era uma santa.” Por que, então, shows a dividir espaço com ela [em] a procurar Wilma Petrillo para ouvir a vida revirada.” Até hoje, toma os remé-
Petrillo, como empresária, não devol- “momentos que se encontrava nua”; que sua versão. Ela não respondeu. dios para dormir que o psiquiatra re-
via o cachê pago pelos contratantes? a sra. Wilma chamaria a sua compa- ceitou em 2009. “Nunca vi o rosto da

A
“Eu não sei”, respondeu Ana Cristina. nheira, Gal Costa, de “burra, velha e ntes de mover uma ação judicial Wilma e ela mudou completamente a
“Não estou no escritório, estou aqui no gorda”; que a sra. Wilma Petrillo reali- contra a Baraka Produções, Cle- minha vida”, diz, com um sorriso desa-
quintal com os cachorros. Procure zava “agressões físicas e verbais contra ber Pereira adoeceu. A empresa jeitado. “Aposto que ela nem faz ideia
uma produtora.” Gal Costa”; entre outras afirmações. de eventos era o negócio em que de- do estrago que causou.” J

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vultos intelectuais

UM HISTORIADOR
EM TEMPOS SOMBRIOS
Como Timothy Snyder se tornou um dos principais intérpretes de nosso tempo

ROBERT P. BAIRD

E
m setembro do ano passado, ria, assistir a uma comédia stand-up ou se temas contemporâneos, como a crise cli- passavam de alarmismo de um liberal
sete meses depois da invasão bronzear nas praias do Rio Dnieper. mática, os serviços de saúde e a política burguês. Entretanto, as tentativas de
russa do território ucraniano, o Snyder tinha ido a Kiev para a con- ucraniana. Foram seus textos sobre Do- Trump de reverter os resultados da elei-
historiador Timothy Snyder, ferência anual Estratégia Europeia de nald Trump e Vladimir Putin, entretan- ção de 2020 mostraram que o historiador
professor na Universidade Yale, Yalta (yes, na sigla em inglês), criada por to, que fizeram de Snyder um dos mais havia acertado naquilo que seus críticos
fez uma viagem de trem de dezesseis ho- um oligarca ucraniano em 2004, com o destacados intelectuais norte-america- tomaram como simples hipérbole. Em
ras da Polônia até a Ucrânia. Desembar- objetivo de estimular os laços do seu país nos da década passada. 9 de janeiro de 2021, três dias depois de
cou em Kiev, cidade que ele conhece bem, com a Europa. Com o tempo, a confe- O sucesso passou para outro nível uma turba em Washington sitiar o Capi-
já que a visita desde os anos 1990, quan- rência se tornou o destino ocasional da com Sobre a Tirania: Vinte Lições do Sé- tólio, Snyder publicou um ensaio no New
do ainda fazia a faculdade de história. festiva elite global. Em anos anteriores, culo XX para o Presente, um pequeno livro York Times em que fez outra previsão
Nessa época, a capital da Ucrânia – re- participaram do encontro o ex-presiden- lançado em 2017 que se tornou best-sel- profética. O fracassado golpe de Trump
cém-desligada da União Soviética – era te Bill Clinton, a ex-secretária de Esta- ler e ajudou a transformar Snyder em um era na verdade o começo de algo, e não
uma cidade melancólica e provinciana. do norte-americana Hillary Clinton, o intelectual dileto dos leitores de centro- o fim. Como a “grande mentira” de
Nas décadas seguintes, Kiev cresceu e fi- ex-primeiro-ministro britânico Gordon esquerda do movimento anti-Trump, às Trump (a de que vencera a eleição) “ha-
cou mais interessante, e Snyder, hoje com Brown, o empresário Richard Branson e vezes chamado pelos progressistas de via se transformado agora em uma causa
53 anos, se tornou um eminente historia- o músico Elton John. Entre os convida- #Resistance. O ensaio lhe garantiu con- sagrada pela qual as pessoas tinham se
dor do Leste Europeu. dos de 2022, estavam o conselheiro de vites regulares para aparecer na tevê sacrificado”, ela permaneceria uma força
Ao desembarcar na estação de Kiev- Segurança Nacional dos Estados Uni- (“Não importa se você falou ou não sobre poderosa na política norte-americana, a
Pasazhyrskyi, Snyder deparou com uma dos, Jake Sullivan, e um ex-presidente isso com seus amigos, mas o fato é que não ser que se fizesse um esforço coletivo
cidade transfigurada. Por causa da guer- do Google, Eric Schmidt. todo mundo que você conhece anda len- para impedir que isso acontecesse.
ra, em todo canto havia sacos de areia, Embora não seja um sujeito natural- do ou relendo Sobre a Tirania”, disse a

A
blocos de concreto e “ouriços” de aço mente festivo, Snyder já havia compare- apresentadora e comentarista política visão de Snyder sobre Putin era
para tentar barrar os tanques russos. Sire- cido antes à conferência. A primeira vez Rachel Maddow, da rede norte-america- ainda mais sinistra: uma autocra-
nes de ataque aéreo soavam nos celula- foi em 2014, quatro anos depois de pu- na msnbc). Embora as notícias transmiti- cia corrupta que se voltou para o
res, em bolsos e bolsas. Os primeiros blicar Terras de Sangue: A Europa entre das por Snyder ao público fossem quase neofascismo com o objetivo de recon-
meses da guerra transcorreram de ma- Hitler e Stalin, um estudo provocativo e sempre sombrias, ele oferecia ao mesmo quistar a glória imperial. O historiador
neira relativamente tranquila para os devastador sobre as atrocidades cometi- tempo uma estranha espécie de confor- foi um dos poucos comentaristas angló-
ucranianos – um fato que surpreendeu das por nazistas e soviéticos. O livro foi to. Dizia às suas plateias que elas estavam fonos a prever, em 2014, que a Rússia
muitos observadores, mas não Snyder –, um sucesso – não apenas entre historia- certas ao pensar que a situação é grave. invadiria a Ucrânia – um prognóstico
e em setembro Kiev já não corria risco dores – e estabeleceu Snyder como “tal- Recomendava que confiassem num pe- do qual até mesmo seus amigos tiraram
iminente de ocupação. A vida cotidiana, vez o mais talentoso jovem historiador rito em barbárie política: sim, as coisas sarro. Também alertou, em seu livro
embora não estivesse normalizada, volta- da Europa moderna em atividade”, estão tão ruins quanto parecem. Terra Negra: O Holocausto como Histó-
va pouco a pouco ao ritmo pré-guerra: nas palavras de um crítico. Nos anos se- Era fácil ridicularizar os alertas maca- ria e Advertência, que “um novo colo-
dava para cortar o cabelo numa barbea- guintes, ele passou a escrever mais sobre bros de Snyder. Bastava dizer que não nialismo russo” ameaçava a estabilidade

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SITE OFICIAL DA PRESIDÊNCIA DA UCRÂNIA_2022


O presidente Volodymyr Zelensky e Timothy Snyder, em Kiev: em suas aulas em Yale, o historiador rebateu integralmente a afirmação de Putin de que a “Ucrânia não é um país de verdade”

na Europa. Em sua opinião, a invasão viagem a Kiev. Durante uma das três con- muitas opções.” O fascínio de Snyder Guerra Mundial, o Holocausto: muitas
iniciada em 2022 não era, como alguns versas que tivemos recentemente, ele me pela “opção sem opções” de Zelensky das coisas que hoje parecem ser os fun-
pensavam, um conflito regional de contou que a principal razão de sua visita não chega a surpreender: o historiador damentos do nosso tempo foram vistas
pouca relevância, mas uma atrocidade era uma reunião privada com o presidente também previu isso às vésperas da guer- na época como ridículas, absurdas, im-
de importância histórica. “O que está da Ucrânia, Volodymyr Zelensky. Os ra. Como acadêmico e intelectual pú- possíveis. E, quando se sabe disso, po-
em jogo é a possibilidade de um futuro ucranianos “me acham mais importante blico, ele há muito acredita que “existem de-se ter a intuição de que talvez, neste
democrático”, escreveu ele, em artigo do que de fato sou”, diz Snyder. “Zelensky momentos em que as ações de um indi- momento, esteja ocorrendo algo que as
publicado na revista Foreign Affairs. me via principalmente como alguém que víduo ganham amplitude” e então “pode pessoas não estão vendo.”
Ao longo do ano passado, Snyder foi tinha uma espécie de voz. Eu não me ilu- acontecer que as coisas estejam saindo Snyder foi criado em uma família
um dos intérpretes mais eloquentes da do, achando que...” Ele se interrompe e, dos trilhos e, sem grande esforço, você quaker no sudoeste do estado de Ohio e
guerra na Ucrânia. Ele escreve e se pro- em seguida, afirma: “Não, não é verdade. seja capaz de mudar o curso dos acon- mantém uma fé típica do Meio-Oeste na
nuncia com frequência sobre o conflito Zelensky disse: ‘A minha mulher e eu le- tecimentos”. Snyder acredita que a de- virtude de dizer claramente aquilo que se
– falou, inclusive, no Conselho de Segu- mos Sobre a Tirania.’ Foi a primeira coisa cisão de Zelensky, assim como a da quer dizer. Sua prosa sem adornos tem a
rança da onu, em meados de março que me disse quando nos encontramos.” resistência ucraniana em geral, foi uma simplicidade robusta que as pessoas asso-
deste ano. Também criou um projeto Sentados nas poltronas de couro ver- demonstração clara de que essa convic- ciam aos móveis Shaker.* Ao contrário
para documentar a guerra e captou mais de do gabinete presidencial de Zelensky, ção fazia sentido. da maioria dos acadêmicos, ele se preo-
de 1,2 milhão de dólares (cerca de 6 mi- os dois conversaram por mais de duas cupa seriamente em explicar suas ideias

N
lhões de reais) para um sistema de defesa horas. Falaram sobre Shakespeare, o um comportamento incomum da maneira mais direta possível. “É mui-
antidrones para a Ucrânia. No segundo dramaturgo e político tcheco Václav entre historiadores sérios, Timo- to fácil se esconder atrás da noção de que
semestre de 2022, uma disciplina que mi- Havel e o físico e dissidente soviético thy Snyder costuma traçar analo- ‘Ah, o que eu faço como filósofo, psicó-
nistra em Yale sobre a história ucraniana Andrei Sakharov. Também discutiram gias entre passado e presente. E, mais logo ou biólogo é muito complicado’”,
teve centenas de milhares de visualiza- sobre liberdade, assunto de um livro que incomum ainda, é seu hábito de fazer diz ele. “Sinceramente, não acredito que
ções no YouTube – e Snyder se tornou Snyder ainda está escrevendo. Em espe- previsões sobre o futuro. O que ele pró- isso seja verdade.”
um dos mais famosos intelectuais oci- cial, falaram sobre a decisão de Zelensky prio chama de seu “modo Cassandra” é Snyder não tem simpatia pela tendên-
dentais na própria Ucrânia. “Ele já era de permanecer na Ucrânia quando a diferente do trabalho do historiador, cia acadêmica de esconder julgamentos
uma celebridade entre historiadores e invasão começou. O presidente disse mas as coisas não estão totalmente des- sob o manto de uma pseudo-objetivida-
intelectuais”, me disse o roqueiro ucra- que, embora a maioria dos observadores conectadas. “História não é a recitação de. Ele tem um forte sentimento moral
niano Svyatoslav Vakarchuk, amigo do ocidentais tenha imaginado que fugiria chata de coisas que todos nós sabemos,
historiador. “Mas hoje em dia, na Ucrâ- do seu país, ele mesmo nunca achou mas esquecemos”, diz ele. “É uma des- * A Sociedade Unida dos Crentes na Segunda Apari-
nia, mesmo as pessoas comuns sabem que tivesse de fato uma escolha a fazer. coberta constante e emocionante de ção de Cristo, ou Shaker, foi fundada em 1747, na In-
glaterra, depois de uma cisão da comunidade quaker.
muito sobre ele.” “Esse é um raciocínio que Zelensky me coisas que realmente aconteceram, que Imigrantes levaram essa seita protestante para os
Um indício do status de Snyder é o fato ajudou a formular”, diz Snyder. “O de não foram previstas e provavelmente Estados Unidos na segunda metade do século XVIII.
De hábitos austeros, os shakers dedicavam-se com
de que a conferência yes foi apenas o se- que ser livre significa acabar em situa- foram consideradas extremamente im- afinco à arquitetura e ao mobiliário, sempre de linhas
gundo evento mais importante em sua ções nas quais você sentirá que não tem prováveis em seu tempo. A Primeira simples, fortes e criativas, sem ornamentações.

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pronto a ver uma catástrofe em cada sitário do nordeste norte-americano.
VITOR MASSAO_2023

esquina. Lee Siegel, crítico de cultura, Ampliando ainda mais essa espécie de
acusou Snyder de ser “a indústria do pâ- modéstia, parece que paira sobre Snyder,
nico de um homem só, um profeta cujos como se fosse uma espécie de veste peni-
lucros dependem de que suas profecias tencial, a sensação de que ele tem muitas
jamais se realizem”. O cientista político coisas a fazer, tem muitas demandas legí-
Daniel Drezner, do New York Times, timas para atender. “Não consigo dar
descreveu Sobre a Tirania como “exage- conta de responder aos e-mails”, ele me
rado” e potencialmente “autodestrutivo, disse a certa altura. “Sou só um professor
em função de sua hipérbole”. E na re- de história. Não tenho funcionários.”
vista The Nation, Sophie Pinkham des- Ao chegar à sala de aula, Snyder não
creveu Na Contramão da Liberdade: provocou nenhum murmúrio ou silên-
A Guinada Autoritária nas Democracias cio entre os alunos. Com seus ralos cabe-
Contemporâneas, o livro que Snyder pu- los brancos, os olhos de um azul vivo e
blicou em 2018 sobre Putin e Trump, um jeito relaxado e reticente, ele ofere-
como “a apoteose de um certo estilo cia um claro contraste com Stanley, que
paranoico que emergiu entre os progres- compareceu ao curso com roupas pretas
sistas, na esteira de Trump”. e óculos escuros e rapidamente come-
Shore me contou que seu marido tem çou a fazer piadas em voz alta com os
“um estranho tipo de calma” que lhe per- alunos próximos de onde estava sentado.
mite absorver as críticas sem que isso lhe O assunto da aula naquele dia era o
cause problemas emocionais. Snyder, de racismo científico do fim do século xix,
sua parte, me disse não ver muito sentido mas Snyder disse que queria antes lem-
em se dirigir diretamente aos críticos. brar algumas ideias filosóficas relaciona-
Mas ele não se arrepende de falar com das ao tema em questão. Sem anotações,
clareza sobre aquilo que acredita que vai ele começou uma breve palestra que
acontecer. E, embora se orgulhe de ter abordou o Parmênides de Platão, o Gê-
antecipado alguns fatos, também insiste nesis, a dialética de Hegel e Marx e o
que esse tipo de previsão não é um jogo tratamento da história pelo polímata
de salão para acumular pontos. Um ele- franco-americano René Girard, antes de
– o que sua mulher, Marci Shore, chama Unidos à Ucrânia, são vistos pelos críticos mento central do seu modo de compreen- passar para o sociólogo e ativista negro
de “impulso de salvar o mundo” – que re- como produto de alguém que não supe- der a história é a convicção de que os w.e.b. Du Bois. Shore me disse que socia-
monta aos seus pais. Ela me disse que a rou a Guerra Fria. Por outro lado, ele foi acontecimentos não são predeterminados lizar e falar em público pode ser cansati-
mãe de Snyder “tem um senso de clare- contra a Guerra do Iraque e se opõe feroz- por grandes forças estruturantes, como a vo para Snyder, mas naquela sala de aula
za moral muito sereno. É mais ou menos mente às reivindicações de supremacia economia e a tecnologia. Suas analogias ficou claro que ele estava se divertindo.
assim: não existem decisões perfeitas no moral por parte dos Estados Unidos. Seu pesadas e suas premonições apocalípticas Falava com rapidez e fluência, gesticu-
mundo, e não existe espaço para inocên- livro de memórias, A Nossa Doença: Li- não visam a deprimir ninguém, nem fa- lando e desdobrando seus argumentos
cia. Uma vez dadas as circunstâncias, ções sobre Liberdade a Partir de um Diário zer com que as pessoas se tornem compla- em frases prontas para transcrição.
você faz a sua escolha e vai em frente”. Hospitalar, censura o sistema de saúde centes. Pelo contrário. Fazer previsões é Poucas horas depois do fim da aula,
Ela diz que Snyder é igual. privatizado norte-americano. Ultimamen- enfatizar a imprevisibilidade do futuro, Stanley explicou o desvio que levou a Pla-
Shore, que é também historiadora e te, ele tem se manifestado contra as leis é lembrar aos leitores que eles ainda têm tão. Ele me contou que, antes de entrar na
professora em Yale, ressaltou a profunda patrocinadas pelos republicanos que im- a liberdade de mudar a história. sala, Snyder lhe tinha enviado uma men-
confiança que seu marido tem em suas põem limites à discussão nas escolas sobre sagem dizendo que queria fazer os alunos

E
próprias habilidades. Por e-mail, ela me a história do racismo nos Estados Unidos. m fevereiro, estive em New Haven se lembrarem de alguns pensadores mais
contou que, durante sua gravidez, ela e Na última década, talvez a crítica mais para ver Snyder lecionando em Yale. antigos. “Eu disse, brincando: ‘De quem
Snyder fizeram uma aula de preparação frequente a Snyder tenha a ver com a es- Na manhã ensolarada e fria do dia 14, você está falando, de Parmênides?’ Ele
para o parto. Na época, eles moravam tridência de suas discussões públicas, nas sua aula no curso de graduação foi sobre encarou como um desafio. É bem típico
em Viena e a parteira falava para a tur- quais muitas vezes ele expõe crenças e até o encarceramento em massa nos Estados dele. Tim é extremamente competitivo.”
ma no dialeto vienense, o Wienerisch. especulações como se fossem fatos in- Unidos e na União Soviética. Ele divi-

O
Depois da aula, o casal concordou que questionáveis. No fim de janeiro deste dia a disciplina com o filósofo Jason Stan- s amigos de Snyder por vezes ficam
só tinha entendido 60% do que ouviu. ano, depois que um agente de contrainte- ley, um amigo próximo que também se perplexos ao ver que o filho mais
“Dá para perceber a diferença entre nós ligência do fbi foi indiciado por violar tornou um pilar do movimento #Resis- velho de um veterinário de Ohio,
nesse detalhe pequeno, mas revelador”, sanções impostas a um oligarca russo, tance a Trump. A aula aconteceu numa sem ascendência na Europa Oriental, se
disse ela. “Tim estava calmo e conven- Snyder escreveu: “Estamos à beira de um sala com lambris de madeira escura, uma tornou um dos principais especialistas
cido de que os 60% que nós entendemos escândalo de espionagem de grandes con- lareira de mármore negro e janelas em nessa região. É possível traçar a árvore
eram a parte importante, enquanto eu sequências quanto ao modo como vemos arcos góticos intercaladas com cenas da genealógica de sua família, por muitas
tinha certeza de que os 40% que não o governo Trump, nossa segurança nacio- Bíblia. Pela janela via-se uma torre de ca- gerações, tanto do lado paterno quanto
entendemos eram a parte crucial.” nal e a nós mesmos.” Duas semanas de- torze andares rebatizada em homenagem materno, sem sair dos Estados Unidos, e
À medida que sua fama aumentava, pois, ele ridicularizou a discussão sobre ao recém-falecido diretor de investimen- Snyder cresceu não muito longe das fa-
Snyder passou a atrair um número cres- uma possível escalada nuclear no conflito tos da universidade. zendas onde seus avós cultivavam abóbo-
cente de críticos. Seus julgamentos se tor- da Ucrânia, dizendo que era “de tal modo Embora Snyder possa, em seus escri- ra, soja e milho. Seus pais foram quakers
naram controversos em parte porque sua equivocada que chega a ser constrangedo- tos, parecer às vezes um autor incapaz de que serviram em operações do Peace
própria posição política é difícil de definir. ra” em termos morais e estratégicos. “Eis duvidar de si mesmo, pessoalmente ain- Corps – uma agência criada pelo gover-
Para os nacionalistas ucranianos, ele soa a coisa mais importante a se dizer sobre da existe um vestígio do “aluno de gra- no norte-americano em 1961 para ajudar
como um esquerdista norte-americano. guerra nuclear: não vai acontecer.” duação magro e um tanto acanhado” países em desenvolvimento – na Repúbli-
Para os esquerdistas norte-americanos, Essa autoconfiança retórica é um tra- que ele foi, como lembra um professor de ca Dominicana e em El Salvador, antes
como um nacionalista ucraniano. Seus ço essencial do apelo que Snyder exerce seus tempos de universitário. Snyder tem de voltar a Centerville, um subúrbio
livros trazem citações elogiosas de um cír- sobre o público em geral: para plateias um senso de humor seco e um talento próspero nos arredores de Dayton, em
culo improvável, que vai do escritor Geor- desorientadas, que enfrentam um dos para a eloquência extemporânea, mas Ohio, para criar sua família.
ge Saunders, autor de Lincoln no Limbo, a períodos politicamente mais turbulen- ninguém o confundiria com uma pessoa Snyder diz que seus pais estavam
Henry Kissinger, autor do bombardeio do tos que já viram, o tom assertivo de Sny- imperiosa. Sua fala é suave, e ele se veste “muito à esquerda, e não só para os pa-
Camboja. O foco de Snyder nos males der equivale à mão firme no leme. Por com roupas em tons de cinza e marrom drões norte-americanos”, uma inclinação
do nazismo e do stalinismo, bem como outro lado, isso dá argumentos aos críti- que no inverno poderiam muito bem ser- que os tornava exceções no meio conser-
sua defesa do apoio militar dos Estados cos que acham que ele está sempre vir de camuflagem num campus univer- vador dos subúrbios e da zona rural do

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S
sudoeste de Ohio. Nesse ambiente es- foi contratado para dar aulas em Yale em nyder acredita que fazer boa história que Putin expressava cada vez mais fre-
magadoramente republicano, eles pen- 2001. O primeiro tema é a ideia de que exige levar ideias ruins a sério. Ele quentemente de rivalizar com a União
duravam pôsteres nas paredes de casa a Europa Oriental não é uma terra de aplica o mesmo princípio quando Europeia, bem como as discussões de au-
celebrando as causas da esquerda latino- ninguém a-histórica espremida entre a escreve sobre assuntos da atualidade. toridades russas sobre a repartição da
americana e nas tardes de domingo se Europa e a União Soviética, mas sim um “Ideias ruins têm sua importância”, diz. Ucrânia, ele alertou que Putin poderia
sentavam com os três filhos para escrever lugar com vida e história próprias. O se- “Elas têm sua própria coerência e sua pró- tentar orquestrar um golpe em Kiev.
cartas para prisioneiros em nome da gundo é que a história pode ser moldada pria força.” Pouco depois de publicar Ter- Caso fracassasse, poderia considerar a
Anistia Internacional. Quando Snyder por decisões individuais. O terceiro versa ras de Sangue, ele percebeu que Putin, na “intervenção armada” como o único
estava no nono ano do ensino fundamen- sobre a importância das ideias como de- época primeiro-ministro, estava falando, modo de manter as aparências.
tal, a família viajou para uma comunida- sencadeadoras de eventos históricos, em com uma frequência preocupante, so- Snyder diz que seu alerta foi “uma opi-
de leiteira quaker na Costa Rica. “Essa particular a instável ideia de nação. bre a unidade essencial da Rússia com nião” baseada na sua sensação de que Pu-
era a nossa ideia de turismo”, diz ele. Desde a faculdade, Snyder nutria o que a Ucrânia. Em 2013, Putin visitou Kiev tin era uma força mais importante na
Durante o ensino médio, embora fos- ele descreve assim: “Uma ambição maior para o 1025º aniversário do batismo do prín- política ucraniana do que as pessoas acha-
se um aluno alienado e meio alheio a de me tornar – sei que soa muito pompo- cipe Vladimir I, o Grande, e “fez um dis- vam. “Quando li aquelas coisas raivosas
tudo, Snyder resistiu à política esquer- so –, mas de me tornar um intelectual, curso maluco, afirmando que a Ucrânia que ele publicou nos jornais russos sobre
dista dos pais flertando com o libertaris- um escritor.” Terras de Sangue, publicado e a Rússia eram uma coisa só por causa civilização, a raiva dele não parecia ser
mo. Ele se lembra de debater os vícios e em 2010, marcou o primeiro grande pon- do batismo, e que ninguém podia fazer uma tática. Parecia vir de algum lugar
virtudes da União Soviética com a mãe. to de inflexão em sua carreira. Naquela nada a esse respeito porque estava além profundo.” Outro fator que embasou as
“O ponto de partida dela seria: ‘Bom, época, ele já escrevia ocasionalmente para dos domínios da política”, diz Snyder. suspeitas de Snyder foi um aumento bas-
eles estavam do lado certo no caso da o público não acadêmico. Mas seu relato “Era uma verdade espiritual: basicamen- tante nítido da propaganda antiucraniana,
Nicarágua. Eles estavam do lado certo poderoso sobre o custo humano do horror te, aquilo era obra de Deus.” em que se afirmava que “Eles [os ucrania-
no caso de Cuba.’ Ela não iria falar da nazista e soviético pela primeira vez levou A Primavera Ucraniana começou em nos] são nazistas. Eles são gays. Eles são
Hungria em 1956 ou da Tchecoslová- seu trabalho a um grande número de lei- novembro daquele ano. O estopim foi a gays nazistas”. Na tevê russa, em novem-
quia em 1968.” Ainda assim, havia limi- tores de fora da universidade. decisão repentina do presidente da Ucrâ- bro e dezembro de 2013, “a coisa ficou
tes para a rebeldia dele. “Eu jamais Snyder escolheu como tema o “assas- nia, Viktor Yanukovych, que, pressiona- absurda, e comecei a pensar que estavam
pensaria: ‘Sou a favor de Reagan.’ Mes- sinato político em massa” de 14 milhões do pela Rússia, se recusou a assinar um tramando algo”, diz o historiador.
mo com toda a minha formalidade do de pessoas ocorrido entre 1933 e 1945 acordo de associação com a União Euro- A preocupação de Snyder com a
Meio-Oeste, eu não era dessa tribo.” em uma faixa da Europa que ia “da Po- peia. Os protestos reuniram mais de agressão russa não era compartilhada
lônia Central até a Rússia Ocidental, meio milhão de pessoas, e em janeiro os por muita gente. As reportagens da im-

Q
uando entrou na Universidade passando por Ucrânia, Belarus e os Es- manifestantes estavam num impasse prensa ocidental na época garantiam,
Brown em 1987, Snyder achou que tados Bálticos”. A partir dessa fórmula mortal com o governo. Em 3 de feverei- repetidas vezes, que Putin não seria tão
acabaria se tornando um advogado simples, extraiu diversas ideias. Sugeriu, ro de 2014, Snyder publicou um artigo precipitado. (Uma semana depois de
envolvido com o controle de armas nu- por exemplo, que os nazistas e os sovié- no New York Times com o título Don’t publicar o artigo de Snyder, o New York
cleares. Mas duas disciplinas desperta- ticos trataram os países dessas “terras de Let Putin Grab Ukraine (Não deixem Times publicou outro texto onde se lia:
ram seu interesse por história. Uma sangue” – a expressão alude a um poe- Putin tomar a Ucrânia). Ao citar o desejo “A maior parte dos especialistas [...] des-
delas, lecionada por Mary Gluck, era ma da escritora russa Anna Akhmátova
um panorama da história intelectual da – como colônias adjacentes a seus terri-
Europa. A outra era sobre a história da Eu- tórios. Ele também afirmou que grande
ropa Oriental do pós-Segunda Guerra, parte das pesquisas feitas até então sobre Ministério da Cultura e
ministrada por Thomas W. Simons Jr., os assassinatos enxergavam os aconteci- Museu do Amanhã apresentam
que pouco depois seria nomeado embai- mentos pelos olhos das grandes potên-
xador dos Estados Unidos na Polônia. As cias. Na essência, seu livro propunha
aulas dessa disciplina começaram me- que os fatos ocorridos nesses países de-
nos de duas semanas depois que o ditador viam ser considerados centrais para a
romeno Nicolae Ceaușescu foi executa- história europeia do século xx.
do em Bucareste, no Natal de 1989. No meio acadêmico, Terras de Sangue
“Achei que ia ter uns quinze ou vinte rendeu elogios a Snyder por seus amplos
alunos”, Simons me disse. “Apareceram conhecimentos: ele fala cinco idiomas, lê
130.” Snyder conta que ficou “obcecado”
com a matéria, a ponto de sugerir que
em outras cinco línguas e pertence à pri-
meira geração de acadêmicos ocidentais
PROGRAMAÇÃO
Simons transformasse suas anotações de
aula num livro. Simons o contratou para
a ter amplo acesso aos arquivos europeus
depois da queda do comunismo. O livro
DE JULHO
ajudar nessa tarefa. também rendeu críticas. Alguns resenhis- programação de férias gratuita
Depois de se formar, Snyder foi fazer tas não aprovaram a justaposição do Ho- para crianças de todas as idades
o doutorado na Universidade de Oxford locausto aos crimes de Stálin, enquanto SÁBADOS E DOMINGOS DO MÊS
com uma bolsa de estudos. O historia- outros – com destaque para o historiador
dor britânico Timothy Garton Ash, um britânico Richard J. Evans, em um artigo Uma Cidade na Floresta
de seus orientadores, lembra de Snyder particularmente veemente – acusaram exposição-instalação inédita da artista
como “um jovem muito reservado”, Snyder de não conseguir explicar as cau- franco-marroquina Chourouk Hriech
que, porém, se destacava dos colegas sas dos acontecimentos que descrevia. A PARTIR DE 11/7
por sua intensidade moral, clareza ana- (Em Terra Negra, a sequência muito mais
lítica e ousadia intelectual – o que o controversa de Terras de Sangue, Snyder exposição Sai-Fai:
levava a “forçar um raciocínio até o li- pareceu ter em mente as duas críticas: seu Ficção Científica à Brasileira
mite, ou talvez um pouco além”. tema foram as causas do Holocausto.) No A PARTIR DE 25/7
O envolvimento de Snyder com os entanto, os esforços provocativos de Sny-
temas que moldariam seu trabalho pos- der acabaram injetando novo ânimo em VISITE
terior já pode ser vislumbrado em sua temas históricos até então vistos quase
tese sobre o pensador marxista polonês como consensuais. “Toda essa história
Kazimierz Kelles-Krauz (publicada pela tinha sido contada como uma história da
Harvard University Press) e, especial- Rússia e da Alemanha, e é claro, do Ho-
mente, em seu segundo livro, The Re- locausto”, me disse Garton Ash. “Terras OBRA DE CHOUROUK HRIECH
construction of Nations: Poland, Ukraine, de Sangue colocou os holofotes na Euro- PATROCÍNIO MASTER MANTENEDORES

Lithuania, Belarus, 1569-1999, que já pa Central e do Leste de uma maneira


estava praticamente pronto quando ele que mudou a perspectiva histórica.”
PATROCÍNIO PARCERIA ESTRATÉGICA CONCEPÇÃO GESTÃO REALIZAÇÃO

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iria ganhar em Ohio. Mesmo assim, em mais de meio século. E muitos à es-
VITOR MASSAO_2023

achava que Clinton sairia como vencedo- querda não estavam interessados em ser
ra no pleito geral. “Penso que houve uma simpáticos com os moderados que falha-
certa ingenuidade branca”, ele diz. ram em derrotar Trump nas urnas.
“O Tim sempre acreditou mais nos Es- Mas Snyder nunca foi um triunfalis-
tados Unidos do que eu”, conta Shore. “Ele ta neoliberal. Nem foi complacente
não está acostumado a estar errado, tipo com as falhas dos Estados Unidos. “Eu
muito errado. E realmente ele não achava francamente acho que isso é só uma
que Trump fosse ganhar. Quando contei coisa que as pessoas querem que seja
sobre a vitória para as crianças, minha fi- verdade, porque seria reconfortante se
lha, que estava com 4 anos na época, disse: fosse assim”, diz ele. Em escritos ante-
‘Vai ver o papai esqueceu de pedir pra al- riores, denunciou o fundamentalismo
guém votar na Hillary Clinton.’” do livre mercado e, no epílogo de Sobre
Snyder ficou chocado com a vitória a Tirania, escreveu que o perigo repre-
de Trump, mas isso também gerou nele, de sentado por Trump era que os Estados
imediato, o ímpeto para escrever Sobre a Unidos passassem de “uma espécie in-
Tirania. Ao retornar de uma viagem à Sué- gênua e imperfeita de república demo-
cia, começou a anotar num guardanapo crática para uma espécie confusa e
do avião uma lista de lições para barrar a cínica de oligarquia fascista”. Snyder
tirania, incluindo conselhos como “Não torcia por algo que não tinha a ver com
obedeça de antemão” e “Defenda as insti- essas duas opções: uma “renovação” –
tuições”. Ele postou a lista no Facebook ao como ele definiria em seu livro seguin-
chegar à sua casa, e o post viralizou. O edi- te, O Caminho para o Fim da Liberdade:
tor de Snyder disse que eles podiam pu- Rússia, Europa, América – “que nin-
blicar aquilo no formato de um pequeno guém pode prever como será”.
livro, caso o historiador acrescentasse um Snyder admite que quando escreveu
pouco de contexto para cada lição. O re- Sobre a Tirania não enfatizou o suficiente
sultado – em que as frases simples e afir- os aspectos que faziam de Trump um tipo
mativas de Snyder estão transformadas conhecido na história norte-americana.
em exortações também simples e impera- “Minha visão era de que isso era algo
denha da possibilidade do uso de força pouco antes contra a Ucrânia. Não é ver- tivas baseadas na história do terror políti- novo e perigoso. Provavelmente eu estava
militar”.) O historiador ucraniano Serhii dade que Snyder tenha sido “o primeiro co na Europa – lembra mais um samizdat um pouco errado no que concerne ao
Plokhii, professor de Harvard, que tem a revelar a história de Trump e Putin”, do que um de seus pesados volumes de ‘novo’.” Mas ele diz que estava certo
uma relação amistosa com Snyder, me como ele chegou a reivindicar recente- história. Graças a sua urgência e brevida- quanto à tendência dos norte-america-
disse que estava convencido de que o mente no Twitter, mas é correto dizer de, o livro se tornou um totem para os nos de dizer a si mesmos coisas como “os
colega tinha ido longe demais no seu que o historiador esteve entre os primei- norte-americanos horrorizados com seu Estados Unidos são excepcionais e nada
artigo. No entanto, semanas depois da ros a dedicar a devida atenção à incipien- novo presidente. Sobre a Tirania vendeu de mau pode acontecer aqui”. Ao longo
fuga do presidente ucraniano Viktor Ya- te relação entre os dois políticos. Em mais de meio milhão de exemplares du- do governo de Trump, ele continuou a
nukovych do país, a Rússia anexou a abril de 2016, Snyder defendeu que a rante o mandato de Trump e, no total, alertar que o presidente tentaria se agar-
Crimeia e enviou tropas para a Ucrânia fraqueza e a vaidade de Trump faziam passou quase dois anos na lista de best- rar ao poder de maneira ilegal. E, no
Oriental. Rindo, Plokhii conta que co- dele um alvo fácil para Putin, que já ti- sellers do New York Times. ensaio que publicou poucos dias depois
mentou com Snyder pouco depois: “Achei nha começado a cultivar o norte-ameri- da invasão ao Capitólio, em 6 de janei-

A
que você tinha enlouquecido.” cano como “um futuro cliente russo”. exaltação de Snyder entre a cen- ro de 2021, ele não perdeu a chance de
Snyder diz que, na época da anexa- No segundo semestre daquele ano, fi- tro-esquerda levou a uma reação se autocongratular. “Estava claro para
ção, havia uma tendência a tratar a Rús- cou claro que a Rússia estava por trás da em sentido contrário entre certos mim, em outubro [de 2020], que o com-
sia como uma versão fracassada ou campanha de hackeamento e vazamentos grupos da esquerda norte-americana. Pa- portamento de Trump pressagiava um
corrompida da democracia liberal oci- que gerou semanas de manchetes contra ra esses críticos, suas analogias assustado- golpe”, escreveu, e completou: “E publi-
dental. “A visão tanto dos norte-america- Hillary Clinton na reta final da campanha ras e seus alertas ameaçadores cheiravam quei isso.” Mesmo Samuel Moyn, que
nos quanto dos alemães estava tomada presidencial. Citando a reabilitação que a ingenuidade histórica e conveniência chama seu colega de “um ser humano
por esse fracasso russo. Diziam algo do Putin fez de Ivan Ilyin (1883-1954), um ideológica. Sugerir que Trump era um com dotes extraordinários”, não contesta
tipo: ‘Ah, eles estão tentando fazer uma ideólogo fascista cristão, Snyder afirmou Hitler em potencial significava não ape- o direito de Snyder de afirmar que ante-
transição, mas não é fácil, pobrezinhos, que, por trás do aparente caos dos cibera- nas omitir os horrores que a política nor- cipou os fatos. Em um artigo publicado
e por isso eles precisam invadir a Geór- taques, havia certa lógica e mesmo certa te-americana havia praticado no passado, em 2017, Moyn e David Priestland afir-
gia ou a Ucrânia.’” Por outro lado, diz filosofia política. Em artigo no New York mas também negligenciar que um pro- maram que não existiam indícios de que
Snyder, “quando se diz que Putin é um Times, ele escreveu: “Se os procedimentos grama neoliberal bipartidário havia cria- Trump desejasse “se apoderar ilicita-
cara que lê e que muda, que impõe democráticos começarem a parecer caóti- do as condições que levaram à eleição do mente do poder” e não havia razão “para
ideias, estamos dizendo: ‘Bem, ele não cos, as ideias democráticas também serão republicano. Em um artigo publicado em acreditar que ele possa ser bem-sucedido
é um idiota. Ele não é previsível. Ele questionáveis. E desse modo os Estados agosto de 2017, os historiadores Samuel nisso”. Moyn diz que ainda pensa assim,
toma medidas inesperadas’”. Esse é um Unidos ficariam mais parecidos com a Moyn (de Yale) e David Priestland (de mesmo depois do cerco ao Capitólio.
dos motivos pelos quais Snyder insiste Rússia, que é a ideia geral. Caso Trump ven- Oxford), sem disfarçar que suas críticas “Não acredito que a democracia tenha
em chamar Putin de fascista. “Soa es- ça, a Rússia vence. Mas, caso Trump seja se dirigiam a Snyder, afirmaram que a chegado a correr riscos”, afirma. Mas ele
quisito, mas dizer que ele foi influencia- derrotado e as pessoas duvidem do resul- ideia de que “a democracia está sitiada” e reconhece: “Mesmo que eu diga que o
do pelo fascismo equivale a lhe dar tado, a Rússia também vence.” “o totalitarismo está voltando” era uma cerco não deu razão para quem pensava
algum mérito. Equivale a dizer que ele Poucos dias antes da eleição, Snyder manifestação de uma “tiranofobia” his- o oposto de mim, todo mundo acha que
não é só uma engrenagem historica- voltou ao Ohio de sua infância para pedir térica e contraproducente. “O céu não deu.” Ele admite que, na visão das pes-
mente determinada nesse capítulo de votos para Hillary Clinton. “Eles me está desabando e não há luzes verme- soas em geral, Snyder “venceu o debate
transições. Ele vem fazendo uma coisa mandaram literalmente para a vizinhan- lhas piscando”, escreveram. sobre Trump”.
diferente há mais de uma década.” ça onde cresci”, relembra ele. “Fiquei Não é difícil adivinhar por que Sobre

A
Dois anos depois da anexação da Cri- impressionado ao ver como as pessoas a Tirania se tornou um alvo dos esquer- té o primeiro ataque ser efetiva-
meia, Snyder percebeu que políticos não queriam conversa. Sou introvertido, distas. Eles estavam incomodados com mente disparado, Snyder ainda não
russos e veículos da imprensa estatal es- mas eu era um sujeito branco de aparên- os esforços para atraí-los para uma frente tinha certeza se haveria outra inva-
tavam assacando contra os Estados Uni- cia inofensiva e foi muito difícil conse- popular anti-Trump. A eleição de 2016 são russa da Ucrânia. “Não havia tanta
dos o mesmo tipo de propaganda e guir falar com as pessoas.” Quando testemunhou o primeiro ressurgimento propaganda quanto em 2014”, explica
desinformação que haviam difundido chegou em casa, disse a Shore que Trump sério do socialismo nos Estados Unidos ele. “Minhas intuições normalmente

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vêm da propaganda russa, mas dessa vez ampliaram entre os ucranianos, no que 2010, ele explica: “Isso significa direcio- umbilical aos esforços defensivos da
a coisa estava escassa.” Em fins de feve- ficaria conhecido como Revolução La- nar seus interesses e suas análises para Ucrânia, Snyder assumiu riscos que um
reiro, ele estava em New Haven, minis- ranja, Snyder escreveu que “a Ucrânia debates de tevê, blogs, tuítes e coisas do intelectual público de sua estatura rara-
trando duas disciplinas em Yale, além de é hoje o teste para a Europa”. Quase gênero, onde a atenção das pessoas é mente assume. Guerras são sempre com-
uma terceira, sobre liberdade, numa duas décadas depois, parece claro que, cada vez mais efêmera.” Eram duas al- plexas, mesmo as que oferecem aquilo
prisão em Connecticut. Depois do iní- para ele, a guerra na Ucrânia é um teste ternativas, não coisas complementares, que Snyder define como “uma magnitu-
cio da guerra, em 24 de fevereiro, ele e não apenas para a Europa e para os Es- Judt insistiu. “Não consigo imaginar de incomum de clareza moral”. E as
Shore cancelaram uma viagem em fa- tados Unidos, mas também para si mes- que se possa fazer as duas coisas sem questões que a Ucrânia em breve preci-
mília que vinham planejando. “Não pa- mo. Depois de voltar de Kiev no ano prejudicar a qualidade do trabalho.” sará enfrentar – como encerrar a guerra?
recia moralmente certo”, diz. passado, Snyder foi convidado para ser Nem todo mundo concordaria que como reconstruir o país? – provavelmen-
Jason Stanley me contou que, para “embaixador” da United24, uma plata- Snyder conseguiu escapar do dilema co- te precisarão de respostas que não chega-
Snyder, a guerra “não era algo abstrato”. forma para arrecadar dinheiro, lançada locado por Judt, mas até o momento ele rão por meio de apelos descomplicados
“Há que se lembrar sempre disso. Aquelas por Zelensky nos primeiros dias da tem administrado bem aquilo que cha- aos valores mais básicos.
pessoas são amigas dele. Tim leva a ami- guerra. Os organizadores da United24 ma de “higiene profissional”, evitando Vakarchuk, o roqueiro, disse o se-
zade extremamente a sério. Aquelas pes- sugeriram que Snyder poderia levantar que uma coisa contamine a outra em guinte sobre seu amigo Snyder: “Tem
soas são amigas dele há décadas.” No recursos para reconstruir uma bibliote- excesso. A disciplina sobre a Ucrânia que gente que acha que ele é um romântico.
entanto, também é verdade que a guerra ca em Chernihiv, destruída por bom- ele ministrou em Yale e no YouTube po- Eu diria que não é um romântico, mas
ilustra de modo gritante os temas que bardeios russos no início do conflito. deria ser classificada como pró-ucrania- um idealista.” A distinção parece váli-
moldaram o trabalho de Snyder ao longo “Pensei nisso”, diz Snyder. “Conheço na, na medida que rebatia integralmente da. Snyder não é o jornalista britânico
das últimas três décadas. Os esforços de- a biblioteca, conheci Chernihiv. Estive lá a afirmação de Putin segundo a qual a Christopher Hitchens (1949-2011): não
fensivos da Ucrânia, que têm sido surpreen- em setembro e vi as ruínas. Fazer isso te- “Ucrânia não é um país de verdade”. tem desejo de sentir aquele frêmito exis-
dentemente bem-sucedidos até aqui, são ria sido perfeitamente natural para mim, Mas a história que Snyder contava, per- tencial causado pelo zumbido de balas
um exemplo do tipo de ação geopolítica como historiador. Ninguém ia dizer: ‘Ah, correndo um milênio, era complexa e passando por cima de sua cabeça. “Eu
que Snyder tentou, em sua obra, devolver arrecadar dinheiro para a biblioteca é er- surpreendente, e nem de longe lembrava certamente não acho que a guerra na
à historiografia do Leste da Europa. rado.’” Mas Snyder não quis tomar a deci- o que ele vinha escrevendo na internet, Ucrânia é a realização do meu destino,
A guerra de Putin também levantou são com base no que fosse “politicamente na plataforma Substack, onde alinhava nem nada desse gênero”, me disse ele.
questões cruciais sobre a nacionalidade correto” ou no que fosse mais fácil para declarações concisas e apelos quase tão Mas sua fé no poder das ideias tem um
ucraniana e o Estado ucraniano, o que ele, pessoalmente. Em vez disso, pergun- persuasivos quanto uma propaganda. corolário importante: uma ideia que não
Snyder vem investigando durante toda tou a amigos ucranianos o que poderia custou nada para você vale exatamente

S
sua carreira. E, embora tenha previsto ser mais útil. “Todos disseram: drones. Os nyder diz não sentir qualquer ten- o preço que você pagou por ela. Nas pa-
que o resultado será decidido por fatores historiadores disseram: drones. Os huma- são filosófica entre seu trabalho de lavras dele, durante nossa última conver-
materiais – apoio humanitário, perdão nistas disseram: drones. Os ativistas da historiador e seu ativismo. Também sa em New Haven: boas ideias “não são
de dívidas, entrega de armamentos –, ele paz disseram: drones.” tende a não se importar com os efeitos reais a não ser que você esteja disposto a
também encara a guerra como uma dis- Perguntei a Snyder se ele faria o mes- que a guerra possa ter sobre sua reputa- fazer alguma coisa, mesmo que peque-
puta de ideias. Para Snyder, as repetidas mo se os seus amigos dissessem que preci- ção. Ainda assim, ao se ligar de maneira na, para colocá-las em prática”. J
alegações de Putin sobre a unidade espi- savam não de drones, mas de uma arma
ritual entre as nações russa e ucraniana ofensiva, como um tanque. “Não”, res-
não são mera propaganda destinada a pondeu Snyder. “Nessa você me pegou.”
obscurecer a frieza dos cálculos estraté- O sistema antidrones era uma arma, ad-
gicos. São parte de uma visão neoimpe- mitiu ele. “Mas é uma arma destinada a
rial profundamente arraigada que Putin salvar vidas de civis, quando a Rússia ame-
criou a partir de três elementos: sua lei- açava abertamente destruir a infraestrutu-
tura de Ivan Ilyin, da história soviética e ra, tentando matar de fome e frio a maior
de uma certa ideia de grandeza russa. quantidade possível de pessoas. Não tem
Essa ênfase nas ideias levou Snyder como impedir isso reconstruindo uma
a ser criticado por alguns na escola rea- biblioteca. Não tem como parar um drone
lista de relações internacionais. Emma usando o politicamente correto. Mas, se
Ashford, integrante sênior do Stimson eles tivessem dito: ‘Ajuda a gente a finan-
Center, um think tank, se inclui entre as ciar um tanque?’, eu diria ‘Não’. Acho que
admiradoras do trabalho de Snyder, mas isso provavelmente mostra o limite da mi-
diz que a “compreensão dele dos assuntos nha disposição para apanhar. Talvez seja
internacionais é quase sempre moldada o.k. arrecadar dinheiro para um tanque.”
pelas ideias que acredita serem grandes e Snyder diz que, mesmo com o dispo-
importantes, ao passo que eu diria que a sitivo antidrones, “tinha 100% de certeza
invasão da Ucrânia foi igualmente moti- que ia ter gente dizendo: ‘Olha, ele é um
vada pela tentativa da Rússia de ampliar a ativista, está recolhendo dinheiro para
sua frágil segurança na região”. A disputa um governo’”. O historiador pensava par-
não é acadêmica. Para quem acredita, ticularmente em seus críticos na Alema-
como Ashford, que a Rússia é motivada nha, “cuja ideia de intelectual público é
por medos estratégicos, quanto mais o criticar outras pessoas por serem intelec-
Ocidente se envolve na guerra, é maior tuais públicos”. Snyder arrecadou mais de
o risco de ampliar suas causas originais. 1,2 milhão de dólares para o sistema anti-
Por outro lado, para quem acredita, como drones em menos de três meses. Como se
Snyder, que as raízes da guerra estão na esperava, as críticas vieram logo, o que para
visão de mundo fascista de Putin, a vitória ele foi apenas a confirmação de que tinha
no campo de batalha se torna um impe- tomado a decisão certa.
rativo. “Muitas pessoas inteligentes disse- O historiador britânico Tony Judt
ram isso antes de mim. O fascismo jamais disse em Pensando o Século XX que os
pôde ser desacreditado. Ele só foi derrota- intelectuais públicos se veem divididos
do”, diz o historiador. “É preciso derrotar entre escrever de maneira séria para um
os russos, assim como os alemães foram grupo pequeno de leitores ou se tornar
derrotados [na Segunda Guerra].” o que ele chamou de “intelectuais de
Em 2004, quando os protestos con- mídia”. No livro, que Snyder ajudou
tra a corrupção e a fraude eleitoral se Judt a escrever antes de sua morte em

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questões decoloniais

A VOLTA DO UBIRAJARA
A devolução de um fóssil brasileiro de dinossauro contrabandeado para um museu alemão

BERNARDO ESTEVES

O
domingo, 4 de junho, era o dia nhar de perto o desembarque das duas O Ubirajara jubatus era um animal em oxigênio e ricas em carbonato de cál­
que o paleontólogo Allysson grandes caixas de madeira do compar­ miúdo, do porte de um frango, mas, devi­ cio, o que impediu a total decomposi­
Pinheiro vinha aguardando timento de carga da aeronave. No que do à cauda, seu comprimento passava de ção, inclusive dos tecidos moles. Essa é a
havia mais de dois anos. Pi- dependesse dele, abriria os recipientes 1 metro. Era um dinossauro carnívoro que razão por que os fósseis da Bacia Sedi­
nheiro é diretor do Museu de ali mesmo, mas a tarefa ficou marca­ se alimentava provavelmente de pequenos mentar do Araripe, onde o Ubirajara foi
Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, da para o dia seguinte. As caixas foram da­ animais. O bicho tinha um par de hastes encontrado, preservam detalhes de estru­
em Santana do Cariri, no Sul do Ceará, li para um abrigo provisório na sede do espetadas em cada ombro, que ficaram turas orgânicas que geralmente não so­
que reúne fósseis de plantas e animais mcti, na Esplanada dos Ministérios. preservadas nos fósseis. Os cientistas não brevivem ao processo de fossilização.
extintos que viveram naquela região há Na manhã de segunda­feira o paleon­ sabem ao certo para que serviam essas Depois que se fossilizou, o Ubirajara
mais de 100 milhões de anos. Naquele tólogo pôde enfim conhecer o dinossauro. hastes, mas suspeitam que tivessem a fun­ passou dezenas de milhões de anos im­
dia, o pesquisador foi a Brasília receber Depois que um funcionário desparafusou ção de atrair parceiros para o acasalamen­ prensado entre camadas de calcário de­
a mais nova peça do acervo do museu, as caixas, Pinheiro retirou várias camadas to – estruturas similares foram observadas positadas na bacia sedimentar. Ao longo
que é também a mais famosa: os fósseis de isopor e plástico e revelou as duas pla­ numa espécie de ave­do­paraíso, que vive das eras geológicas, as camadas que fica­
do dinossauro Ubirajara jubatus. O ma- cas de calcário laminado com os fósseis do na Indonésia. São elas que inspiraram o vam no fundo daquele lago foram soergui­
terial tinha sido contrabandeado há mais Ubirajara. As fotos da solenidade regis­ primeiro nome do bicho – Ubirajara quer das por movimentos tectônicos e pararam
de quinze anos e foi parar em Karlsruhe, tram a felicidade estampada no rosto do dizer “senhor da lança” em tupi. Já a se­ no topo da Chapada do Araripe, que
no sudoeste da Alemanha. Estava sendo paleontólogo diante do réptil. Pelas ima­ gunda parte do nome alude à juba do rép­ abrange parte dos estados do Ceará,
repatriado depois de uma ruidosa cam- gens que tinha visto antes, o bicho lhe til, que tinha o dorso coberto por uma Pernambuco e Piauí. Por isso é comum
panha promovida por cientistas brasilei- parecera meio feioso, mas ele já mudou de penugem formada por estruturas pareci­ que os fósseis do Cretáceo, período em que
ros desde o final de 2020. ideia. “O fóssil não é fotogênico, mas é das com penas. Para os paleontólogos, esse viveram os dinossauros, aflorem naquela
Eram 22h40 quando pousou em lindo”, disse Pinheiro à piauí. “Não dá é o aspecto mais interessante do Ubiraja- região. Por causa da abundância e da
Brasília o avião trazendo o Ubirajara, para perceber a beleza dele pelas fotos.” ra. Dinossauros com penas já tinham sido excelente qualidade de preservação, são
junto a uma comitiva do governo ale- As placas que preservaram os restos encontrados em outras partes do mundo, cobiçados por pesquisadores e colecio­
mão em viagem oficial ao Brasil. Pi- do Ubirajara medem 46 por 47 cm cada. mas nunca no Hemisfério Sul. nadores de todo o mundo.
nheiro aguardava no setor do aeroporto Numa delas é possível ver uma pata do Aquele animal viveu há cerca de 110 mi­

N
reservado a autoridades, com represen- bicho, um pedaço da coluna vertebral e a lhões de anos, e os paleontólogos acredi­ ão se sabe ao certo em que cir­
tantes do Ministério da Ciência, Tecno- impressão de sua cauda. Já a outra apresen­ tam que um bicho do seu porte talvez cunstâncias os fósseis do Ubirajara
logia e Inovação (mcti), do Itamaraty e ta um emaranhado de estruturas difíceis durasse duas ou três décadas. Seu cadá­ jubatus foram encontrados, supos­
da Embaixada da Alemanha no Brasil. de discernir: são restos dos tecidos moles ver provavelmente foi parar no fundo de tamente em 1995. O mais provável é
O paleontólogo foi ao pátio acompa­ que acabaram preservados na rocha. um grande lago de águas rasas, pobres que tenham aparecido numa das deze­

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FELIPE PINHEIRO_2012
O Ubirajara jubatus, fotografado na Alemanha antes da preparação do fóssil: outra repatriação que está encaminhada para o Brasil é a de 998 fósseis encontrados em um contêiner na França

nas de pedreiras que há na Chapada do o Ubirajara tinha saído ilegalmente do Foi assim, ilegalmente, que boa parte Norte (ufrn). Assim que saiu o artigo de
Araripe, durante a atividade rotineira de país. Os fósseis são propriedade da União dos fósseis muito raros descobertos na Ba­ Smyth descrevendo o novo dinossauro
extração das lâminas de pedra cariri, no Brasil, conforme estipula um decreto­ cia do Araripe deixou o Brasil. Na maioria, com penas, Ghilardi fez uma série de
usadas na construção civil. Fósseis cos- lei assinado por Getúlio Vargas, em 1942. continuam depositados em instituições no postagens no Twitter expondo sua con­
tumam aparecer em grande quantidade O país até permite que eles sejam envia­ exterior, onde são estudados por cientistas trariedade com o fato de aquele dinossau­
nesse processo de mineração. dos para o exterior, com a devida auto­ estrangeiros. Muitos pesquisadores brasi­ ro brasileiro ter sido descrito por cientistas
Após serem coletados, os fósseis fo- rização. Mas os holótipos – como são leiros que estudam esses fósseis são obriga­ estrangeiros com base em material guar­
ram incorporados ao acervo do Museu chamados os espécimes a partir dos quais dos a viajar para o exterior para fazê­lo. dado no exterior. Após explicar as leis que
Estadual de História Natural de Karls- se faz a descrição original de uma espé­ O Ubirajara não é a primeira espécie proíbem que fósseis sejam levados para
ruhe (conhecido pela sigla smnk), no cie – têm que ficar guardados numa ins­ do Araripe descrita a partir de material fora do país, ela lançou a hashtag da cam­
estado alemão de Baden­Württemberg. tituição brasileira. Portanto, o Ubirajara contrabandeado, nem foi o primeiro caso panha: #UbirajaraBelongsTobr, ou “Ubi-
Passaram anos nos porões, até que paleon­ jubatus não poderia estar na Alemanha. de tráfico denunciado pelos cientistas. rajara pertence ao Brasil”.
tólogos decidiram estudar o material e Os fósseis que afloram na Bacia do A diferença é que dessa vez os protestos Ghilardi leu o artigo no dia em que ele
descrever aquela espécie, desconhecida Araripe geralmente são de espécies cor­ furaram as bolhas dos pesquisadores e foi publicado e, assim que bateu o nome
pela ciência até então. riqueiras, como o peixe Dastilbe cran- fizeram barulho além do meio científico. na lista de autores, teve um mau pressenti­
Quem primeiro teve a curiosidade des­ dalli, que aparece aos milhares. Mas de A revista Cretaceous Research despubli­ mento. “Lá vem a mesma coisa outra vez”,
pertada pelo animal foi o paleontólogo vez em quando surge um bicho mais cou o artigo de Robert Smyth, Eberhard pensou. O artigo era assinado por pesqui­
David Martill, da Universidade de Ports­ raro, como um pterossauro (um réptil Frey pediu aposentadoria e o diretor do sadores que já tinham descrito outros rép­
mouth, do Reino Unido. Martill é amigo voador extinto) ou um dinossauro da im­ museu alemão, que também era coautor teis extintos do Brasil, levados daqui em
e colaborador de longa data de Eberhard portância do Ubirajara. Como perten­ do estudo, renunciou ao cargo. Pela pri­ circunstâncias duvidosas. O protesto de
Frey, então curador e diretor do Departa­ cem à União, os fósseis não podem ser meira vez a Alemanha aceitou devolver Ghilardi viralizou, espalhando­se para
mento de Geociências do smnk. A análise vendidos. Mas com a crise econômica, a um fóssil tirado ilegalmente do Brasil, além do círculo dos paleontólogos. “O que
dos fósseis foi conduzida por Robert pobreza na região e os salários magros abrindo um precedente que pode esti­ tem de diferente é que conseguimos aces­
Smyth, aluno de doutorado de Martill, e pagos pelas pedreiras, os operários ficam mular a repatriação de outros espécimes. sar pessoas que não eram da academia
publicada em dezembro de 2020 na revista vulneráveis ao assédio dos traficantes e para discutir esse tema”, disse ela à piauí.

O
especializada Cretaceous Research, num atravessadores. Na outra ponta desse mer­ retorno do Ubirajara jubatus coroa Alguns fatores ajudaram a difundir
artigo assinado por cinco cientistas da Ale­ cado estão colecionadores e pesquisado­ o sucesso de uma campanha lança­ o caso. Era o primeiro Natal da pande­
manha, do Reino Unido e do México. res interessados em pagar caro pelos fósseis da nas redes sociais pela paleontó­ mia, com muita gente confinada em casa.
Tão logo saiu o estudo, paleontólogos – os mais valiosos são vendidos a preços loga Aline Ghilardi, pesquisadora da “E essa era uma história que engajava: as
brasileiros puseram a boca no trombone: que chegam a sete dígitos. Universidade Federal do Rio Grande do pessoas queriam saber mais sobre dinos­

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Q
râneo Peter Wellnhofer, um estudioso de uando os alemães foram acusados
VITOR MASSAO_2023

pterossauros que fez carreira no Museu de tirar o fóssil do Ubirajara do Bra­


Paleontológico de Munique e está aposen­ sil de forma ilegal, Frey apresentou
tado. Seguindo os passos de Wellnhofer, um documento que o autorizava a levar
Frey e outros colegas atuaram no Brasil e o material para o museu de Karlsruhe.
garantiram a continuidade do fluxo de Tratava­se de uma permissão emitida em
fósseis do Cariri para a Europa. 1º de fevereiro de 1995 pelo Departamen­
Foi Frey quem acolheu Pinheiro na se­ to Nacional de Produção Mineral (dnpm),
mana que ele passou no smnk. O alemão autarquia federal então responsável por
lhe confiou uma chave que dava acesso às fiscalizar a coleta de fósseis no Brasil, de­
coleções e passe livre para explorar o acer­ pois substituída pela Agência Nacional
vo. “Mexi em praticamente tudo, até onde de Mineração (anm). Escrito em termos
não devia”, brincou Pinheiro. O material genéricos, o documento permitia o trans­
era notável não só pelos pterossauros, que porte de “duas caixas contendo amostras
ele tinha ido estudar. “Eles têm uma das calcárias com fósseis, sem nenhum va­
melhores e mais representativas coleções lor comercial”, para serem estudados no
de tetrápodes”, disse o pesquisador, refe­ smnk. Não havia qualquer especificação
rindo­se ao conjunto dos vertebrados ter­ do material contido nas caixas, de forma
restres que têm quatro membros. que Frey poderia lançar mão daquele do­
Pinheiro ficou impressionado com um cumento para justificar o transporte de
crânio de pterossauro preservado em três qualquer fóssil do Araripe que estivesse
dimensões com detalhes impressionantes. em sua coleção. Ao ser indagado pela re­
“Está perfeitinho.” Seu palpite é que se vista Science sobre o fóssil, em 2020, ele
trata de um jovem Anhanguera, um réptil disse que o material tinha chegado à Ale­
alado bem conhecido do Araripe. Tam­ manha de forma legal, embora não tives­
bém lhe chamou a atenção o esqueleto se como prová­lo.
completo de outro réptil voador, com as O documento que autorizava o trans­
asas e as pernas bem nítidas. “Não tem porte dos fósseis para Karlsruhe também
nada parecido com isso no Brasil”, afir­ não especificava quais instituições brasi­
sauros e por que aquele fóssil tinha que do mesmo gênero, o smnk nasceu das co­ mou. Pareceu­lhe que os fósseis brasileiros leiras estariam envolvidas no estudo do
estar no Brasil”, continuou a pesquisado- leções formadas nos chamados gabinetes mais valiosos estavam todos no exterior, material, outra exigência da lei ignorada
ra. Artistas profissionais e amadores fize- de curiosidades montados por nobres, aris­ como ocorre com os melhores grãos de pelos cientistas que descreveram o Ubira-
ram desenhos do Ubirajara cobrando tocratas ou viajantes endinheirados. Esses café, que são reservados para exportação. jara. A autorização foi assinada por José
sua devolução. A hashtag #UbirajaraBe- espaços podiam reunir animais empa­ “Nossas coleções no Brasil são boas, mas Betimar Melo Filgueira, na época chefe
longsTobr foi usada mais de 4 mil vezes lhados, amostras botânicas, instrumentos os materiais mais bonitos do ponto de do escritório do dnpm na cidade cearen­
por dia no Twitter em dezembro de 2020, científicos, artefatos etnográficos e todo vista estético e mais relevantes do ponto se do Crato, no Cariri, e hoje aposentado.
de acordo com um levantamento feito tipo de objetos trazidos das colônias que de vista científico estão fora do país.” Em 2015, o funcionário foi condenado
pelo paleontólogo Juan Cisneros, da Uni­ os países europeus mantinham pelo mun­ O pesquisador viu o Ubirajara juba- por improbidade administrativa, envolvi­
versidade Federal do Piauí (ufpi). do afora. Com a institucionalização das tus nos porões do smnk oito anos antes do num “grande esquema de fraudes”
Por trás da campanha havia um senti­ disciplinas científicas, muitas dessas cole­ de a espécie ser formalmente publica­ com a emissão indevida de certificados
mento de frustração por parte dos pesqui­ ções foram incorporadas ao acervo dos da. Os fósseis ainda não estavam total­ de autenticidade de pedras preciosas.
sadores brasileiros com um capítulo da museus de história natural que começa­ mente preparados, mas ele suspeitou Quando o caso do Ubirajara veio à
história da paleontologia que poderia ter ram a se estabelecer no século xviii. que se tratava de um dinossauro com tona, no fim de 2020, Betimar disse à agên­
sido escrito no país. Em 1996, cientistas Com espaço expositivo de cerca de penas. Como estava mais interessado cia de notícias Sputnik Brasil que havia
chineses descreveram o Sinosauropteryx, 5 mil m2, o smnk figura entre os maiores nos pterossauros e crocodilos do acervo, vistoriado o material coletado por Frey e
um animal de cauda listrada que pesava museus do gênero na Alemanha, embora não viu muita graça no bicho. “O Ubi- “não tinha nada que não fosse comum
meio quilo e viveu no nordeste da China. Karlsruhe não esteja entre as vinte cidades rajara é um fóssil que não tem muito no nosso dia a dia”. Mas sugeriu que Frey
O bicho era coberto por filamentos finos mais populosas do país. O verdadeiro te­ apelo estético”, disse. “Mas, para a pa­ teria colocado o fóssil do dinossauro na
similares a penas, um tipo de estrutura souro da sua coleção, porém, não está leontologia, os mais importantes nor­ caixa depois da vistoria, ou que a peça
que nunca tinha sido observado nos dinos­ aberto para o público, mas guardado nos malmente não são os mais bonitos.” tivesse ido parar na Alemanha numa data
sauros não avianos. (As aves, que podem porões da instituição. “O material não pu­ Uma lição que Pinheiro tirou daque­ posterior à da autorização.
ser consideradas dinossauros contemporâ­ blicado é o que tem de mais interessante”, la visita é que nem sempre procede o No entanto, de acordo com a lei brasi­
neos, descendem de um grupo desses rép­ disse à piauí o paleontólogo cearense Feli­ argumento de que as instituições euro­ leira, cabe unicamente ao Ministério da
teis que sobreviveu ao impacto do asteroide pe Pinheiro. “Tem coisas inacreditáveis.” peias têm uma infraestrutura melhor Ciência a prerrogativa de autorizar ou
que dizimou boa parte da vida na Ter­ Em 2012, Pinheiro conheceu de perto a que as brasileiras para a conservação não a exportação de um fóssil. Os funcio­
ra por volta de 66 milhões de anos atrás.) coleção do smnk, quando passou ali uma dos fósseis. “No caso de Karlsruhe, isso nários da anm “não têm poder de deter­
“A partir daquele momento a China virou semana examinando espécimes do acervo não é verdade”, observou. Em 2012, os minar para quem vai um fóssil ou de dar
um grande polo de paleontologia, atrain­ para sua pesquisa de doutorado na Univer­ fósseis estavam guardados num am­ autorização de transporte dentro ou fora
do investimentos e pesquisadores”, disse sidade Federal do Rio Grande do Sul biente úmido, em estantes e gavetas de do país”, disse à piauí a paleontóloga Tais­
Ghilardi. Se o estudo do Ubirajara tivesse (ufrgs) – hoje ele é professor da Universi­ madeira, o que não é ideal para sua sa Rodrigues, pesquisadora da Universi­
sido publicado em 1995, seria o primeiro dade Federal do Pampa (Unipampa), no conservação. “O padrão para toda cole­ dade Federal do Espírito Santo (Ufes).
dinossauro com penas descrito no mun­ interior gaúcho. O paleontólogo contou ção científica de respeito são armários Além da legitimidade da autorização,
do. “Ele podia ter mudado a história da que os fósseis de Karlsruhe ficam guarda­ de aço com módulos compactadores.” Rodrigues questionou a complacência do
paleontologia, mas em vez disso passou dos num porão labiríntico que foi usado Pinheiro contou que Frey o convidou museu de Karlsruhe ao se dar por satis­
25 anos na gaveta de dois incompetentes como bunker durante a Segunda Guerra, para estudar com ele um dos esqueletos feito com um documento tão genérico.
que levaram tantos fósseis brasileiros que conforme ele ouviu de Eberhard Frey. completos de pterossauro do acervo do “Que alemães são esses que aceitam uma
não deram conta de publicar tudo.” Também conhecido entre seus colegas museu. Para um paleontólogo, descrever cartinha daquelas?”
como “Dino” Frey, o antigo curador do um espécime daquela qualidade seria um O museu de Karlsruhe guarda em

O
Museu Estadual de História Natu­ museu visitou várias vezes a Bacia do Ara­ privilégio. Mas o cientista cearense en­ seu acervo os holótipos de duas espécies
ral de Karlsruhe foi inaugurado em ripe e ajudou a descrever espécies locais tendeu que o convite era uma tentativa do Araripe batizadas em homenagem a
1785 e ocupa atualmente um prédio como o pterossauro Tupandactylus na- de legitimar o estudo do fóssil exportado funcionários do dnpm ou da anm, res­
construído no século xix e reformado após vigans, cujo holótipo está guardado em ilegalmente, e recusou o convite. Frey ponsáveis por fiscalizar a coleta de fós­
os bombardeios da Segunda Guerra Mun­ Karlsruhe. Antes, os fósseis brasileiros já não respondeu aos pedidos de entrevista seis no Cariri. A centopeia Velocipede
dial. Como várias instituições europeias tinham chamado a atenção de seu conter­ enviados pela piauí. betimari é uma deferência a Betimar e

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E
a tartaruga Araripemys arturi homena- m setembro de 2021, nove meses decidiu despublicar de vez o artigo que foi cancelado, mas sim por questões le­
geia Artur Andrade, chefe do escritório depois do início da polêmica, o mu­ descrevia o Ubirajara jubatus (o estudo já gais, e isso foi uma novidade do caso Ubi-
regional da anm no Crato. Ambas fo­ seu alemão respondeu a um pedido havia sido tirado provisoriamente do ar na rajara. “É um divisor de águas”, disse o
ram descritas por David Martill, que de repatriação que havia sido feito pela véspera do Natal de 2020, onze dias após a paleontólogo Alexander Kellner, diretor
também estudou o Ubirajara jubatus. Sociedade Brasileira de Paleontologia. publicação, em resposta à campanha lan­ do Museu Nacional, do Rio de Janeiro, à
Taissa Rodrigues estranhou que os Informou que não devolveria o Ubirajara çada nas redes sociais). “A revista tomou a piauí. Além de retirar o artigo, a Creta-
espécimes em homenagem aos funcio­ porque o fóssil tinha chegado a Karls­ decisão de retirar permanentemente o ceous Research anunciou que, dali em
nários públicos brasileiros sejam justa­ ruhe antes de 2007, quando a Alemanha artigo de circulação, dado que as preocu­ diante, deixaria de aceitar artigos sobre
mente holótipos que estão na Alemanha assinou uma convenção da Unesco que pações que havia em relação à exportação fósseis de procedência incerta, com sus­
e não fósseis que ficaram no Brasil. “Isso combate o comércio ilegal de bens cultu­ do espécime continuaram sem resolução peita de contrabando ou pertencentes a
não é ético”, afirmou a pesquisadora. rais. O posicionamento dos alemães mo­ nove meses após a publicação inicial”, coleções privadas. Com isso, alinhou­se à
Para o paleontólogo Álamo Saraiva, pes­ tivou uma segunda onda de mobilização afirmou a Elsevier, editora responsável postura linha­dura já adotada por perió­
quisador da Universidade Regional do dos internautas brasileiros, marcada por pela revista, em nota enviada à piauí. dicos como Science ou Nature, e que está
Cariri (Urca), a homenagem sinaliza um uma chuva de comentários provocativos Tirar um artigo de circulação não é ajudando a questionar a validade dos fós­
conflito de interesses entre os fiscais e aos posts do smnk nas redes sociais. uma medida incomum por parte das edi­ seis de procedência duvidosa. “As revistas
os cientistas que eles deveriam fiscalizar. O museu achou por bem soltar um toras. É um recurso usado geralmente científicas são um ponto­chave para bar­
“É como se Fernandinho Beira­Mar ba­ comunicado público dizendo que o es­ para corrigir erros de boa­fé ou eliminar rar o estudo de fósseis tirados ilegalmen­
tizasse um filho em homenagem a um tado de Baden­Württemberg era o dono estudos fraudulentos. A descrição do Ubi- te do país”, disse a paleontóloga Juliana
juiz federal”, comparou. “Indica uma legítimo do dinossauro do Araripe e que rajara tinha suas fragilidades técnicas, Sayão, também do Museu Nacional.
amizade suspeita entre eles.” o fóssil estava preservado ali para a pos­ que foram apontadas num artigo escrito

N
Ao ser perguntado pela piauí a respeito teridade. “Não foi a melhor estratégia de por 25 paleontólogos brasileiros. Segundo a mesma época em que disseram
dessa homenagem, Artur Andrade afir­ marketing, porque em menos de duas eles, os autores do estudo não fizeram tes­ que o Ubirajara não seria devolvi­
mou que se tratava de um agradecimen­ semanas eles tinham mais de 10 mil co­ tes suficientes para comprovar algumas do, os alemães mudaram de ver­
to por ele ter ido a campo com Martill mentários não muito educados”, disse interpretações que deram ao fóssil. Análi­ são em relação à procedência do fóssil.
– a fim justamente de fiscalizar a coleta Cisneros num congresso de paleontolo­ ses mais detalhadas, usando métodos Um porta­voz do Ministério da Ciência,
de fósseis. Disse ainda que é um gesto gia. O museu então fechou a caixa de como a microscopia por varredura de Pesquisa e Arte do estado de Baden­
corriqueiro na ciência. “Se receber essa comentários de posts antigos e afirmou elétrons, poderiam resolver as dúvidas. Württemberg, que administra o museu
homenagem for crime, tem um bocado que apagaria observações sobre o Ubira- “Não dá para falar que o bicho tem deter­ de Karlsruhe, declarou à revista Science
de criminosos na paleontologia”, disse. Já jara em postagens não relacionadas com minada estrutura e ficar só na palavra dos que o Ubirajara não tinha sido levado à
Betimar – o outro funcionário da anm o tema. Mas as medidas não bastaram autores”, alegou Taissa Rodrigues, a pri­ Alemanha por Frey em 1995. Em vez
homenageado – alegou que está “levan­ para conter a indignação dos brasileiros meira autora do artigo de refutação, que disso, tinha sido “importado” por uma
do [sua] aposentadoria a sério” e não quis e o smnk chegou a tirar momentanea­ não chegou a ser publicado. “A gente es­ empresa em 2006 e adquirido em 2009
dar entrevista. “Não tenho tratado de as­ mente do ar sua conta no Instagram. perava um pouco mais de rigor.” pelo smnk. O comunicado era uma ad­
suntos relacionados a fósseis”, afirmou. Semanas após o segundo pico da mo­ Não foi por problemas científicos, po­ missão de que Frey e seus colegas ha­
“Esse assunto morreu para mim.” bilização popular, a Cretaceous Research rém, que o artigo dos cientistas alemães viam mentido no artigo de 2020.

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que lançou a hashtag #UbirajaraBelongs­ trado no final do século xviii na Argenti­
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Tobr –, durante uma visita ao museu na, às margens do Rio Luján, um afluente
em novembro passado, por ocasião de do Rio da Prata. O fóssil foi enviado ao
um encontro regional de paleontólogos Museu Nacional de Ciências Naturais,
do Nordeste. “Mas o museu vai muito em Madri, e lá continua até hoje. Para
além da exposição, temos que olhar Cisneros, deveria ser devolvido à Argen­
também para o significado cultural des­ tina, onde estimularia a pesquisa e a eco­
ses fósseis, e vem daí sua importância.” nomia local. “Esse é um fóssil muito
Allysson Pinheiro, o diretor do museu importante porque inaugura a paleontolo­
que foi receber o Ubirajara no aeroporto, gia como ciência”, afirmou. “Se isso não é
contou que, por serem tão abundantes colonialismo, não sei que nome vai ter.”
naquela região, os fósseis foram incorpo­ O professor da ufpi e seus colegas de­
rados ao imaginário da população. “Eles nunciam a forma como as relações de
estão nas rendas, nas cantigas, são um poder se reinventaram na ciência atual:
traço identitário do povo do Cariri.” Ex­ muitos cientistas dos países desenvolvidos
postos no museu, reforçam essa identi­ vão aos países em desenvolvimento buscar
dade e fazem girar a economia: mesmo o material que lhes interessa e raras vezes
que a visita seja gratuita, os visitantes procuram colaborar com os pesquisadores
gastam com transporte, alimentação, locais – quando não ignoram as suas leis,
hospedagem e lazer. “O Ubirajara vai ser como aconteceu com o Ubirajara e tantos
um atrator de turismo e um motor de de­ outros fósseis brasileiros. O resultado disso
senvolvimento regional.” Pinheiro acres­ é um aumento na desigualdade entre a
centou que o Cariri fica no centro do ciência dos países ricos e pobres. “A gente
semiárido e enfrenta desafios socioeconô­ funciona como fornecedor de dados, que
micos imensos. “Os fósseis podem ser a são como commodities”, disse Aline Ghi­
chave para ajudar a mudar essa realidade.” lardi, da ufrn. “Não são mais os caras que
A dimensão cultural dos fósseis, no chegam aqui com uma caravela e levam
entanto, ainda não foi legalmente reco­ ouro, é uma atualização do colonialismo.”
nhecida no Brasil, conforme disse à Em 2021, Ghilardi, Cisneros e onze co­
piauí o procurador Rafael Rayol, do Mi­ legas publicaram na revista Royal Society
Dez meses se passaram até que o Cariri dos benefícios que o fóssil poderia nistério Público Federal no Ceará. “Pe­ Open Science um artigo denunciando as
Conselho de Ministros de Baden-Würt- trazer, reproduzindo em escala doméstica la legislação brasileira, os fósseis ainda práticas colonialistas na paleontologia, no
temberg decidisse que o smnk deveria o colonialismo que eles estavam denun­ são classificados formalmente como bens Brasil e no México. Eles fizeram um le­
devolver ao Brasil o fóssil do Ubirajara ciando. O Museu Nacional veio a público minerais, assim como o calcário ou a vantamento de 71 artigos científicos que
jubatus. Acatou, com isso, um pedido declarar que não tinha interesse em rece­ areia”, afirmou Rayol. Se fosse denun­ descreviam espécies de plantas e animais
de Theresia Bauer, ministra da Ciência, ber o dinossauro, desfazendo a saia justa. ciado e condenado, o contrabandista vertebrados do Cretáceo encontrados na
que considerou se tratar de um caso de A nova casa do Ubirajara é o Museu do Ubirajara estaria sujeito a uma pe­ Bacia do Araripe. Constataram que 57%
“má conduta científica inaceitável” por de Paleontologia Plácido Cidade Nu­ na curta, de 1 a 5 anos de prisão. “É a dos estudos não tinham sido feitos em co­
parte dos paleontólogos, conforme rela­ vens, que fica em Santana do Cariri, um mesma punição para quem furta grani­ laboração com cientistas brasileiros, e que
tou o jornal Badische Neueste Nachri- município de 17,7 mil habitantes. A insti­ to da União”, comparou o procurador, 88% dos fósseis usados na descrição de
chten (bnn). De acordo com a decisão, o tuição foi fundada nos anos 1980 pelo que defende que a lei seja atualizada novas espécies – os holótipos – estavam
smnk e outros museus daquele estado cientista que lhe empresta o nome e que para reconhecer os fósseis como patri­ guardados em uma instituição estrangei­
terão que averiguar se há em seu acervo foi prefeito do município. Com a criação mônio cultural. ra. A maioria dos estudos não trazia uma
outros materiais adquiridos em circuns­ do museu, Nuvens pretendia que os fós­ explicação convincente da procedência

O
tâncias pouco claras. “Se houver objetos seis da Bacia do Araripe beneficiassem a Ubirajara virou mascote de uma do material e nenhum deles mencionava
nas coleções de nossos museus que fo­ população local. “Plácido foi um visioná­ causa que vem ganhando adeptos qualquer autorização de exportação.
ram incorporados em condições legal rio”, disse Álamo Saraiva, ex­diretor do não só entre os cientistas. “É um A maior parte do material do Araripe
ou eticamente inaceitáveis, nós vamos museu, para quem a atuação de Nuvens bicho do tamanho de uma galinha, mas catalogado pelos autores do levantamento
devolvê­los”, declarou Bauer ao bnn. ajudou a segurar naquela região muitas de um simbolismo enorme para a luta estava na Alemanha, onde havia pelo me­
Quase um ano se passou entre o pessoas que teriam migrado em busca de decolonial”, disse Juan Cisneros, profes­ nos noventa holótipos. Só no museu de
anúncio da ministra e a devolução do vida melhor. “Ele criou essa identidade sor da ufpi que fez da decolonização da Karlsruhe estão dez animais vertebrados
fóssil. O Ubirajara voltou, mas não há para o povo do Cariri e hoje a cidade vive paleontologia sua principal bandeira. – agora nove, com a devolução do Ubira-
qualquer outra repatriação prevista da basicamente em função do museu.” Nascido em El Salvador, Cisneros se na­ jara. No Museu de Ciências Naturais de
Alemanha. A piauí quis saber do ministé­ Instalado em uma casa de dois pisos, o turalizou brasileiro em 2021 – e o Ubira- Berlim, há treze holótipos de plantas, e no
rio conduzido por Bauer se os museus de museu recebe 45 mil visitantes por ano, jara pesou nessa decisão, como ele contou Museu Estadual de História Natural de
Baden­Württemberg já haviam passado dos quais 80% são crianças de escolas de à piauí. “Senti que, não sendo brasileiro, Stuttgart, ao menos 47 insetos, aranhas e
um pente­fino em suas coleções e identi­ todo o Nordeste. A exposição tem centenas poderia ser criticado por lutar por um outros invertebrados que saíram ilegal­
ficado mais algum objeto elegível para de répteis, peixes, insetos, plantas e outros fóssil brasileiro”, disse o cientista, que mente do Brasil. De acordo com Cisneros,
devolução. Em nota, a instituição res­ organismos que viveram ali no Cretáceo. mora em Teresina desde 2010. o interesse de curadores desses museus
pondeu que os museus do estado fizeram Termina numa sala ampla com a réplica O colonialismo está na base da em­ pelos fósseis do Nordeste é o que explica
um inventário de suas coleções e que, em tamanho real de dois dinossauros e preitada museológica. Atualmente, 73 dos a grande quantidade de espécimes na
“até agora, não há outros casos envolven­ um pterossauro do Araripe. Recentemen­ maiores museus de história natural do Alemanha. Mas há fósseis brasileiros
do uma possível devolução ao Brasil”. te, o museu ganhou armários de aço des­ mundo reúnem 1,1 bilhão de itens, de acor­ também no Reino Unido, nos Estados
As tratativas para a devolução do fóssil lizantes para armazenar suas coleções, do do com um levantamento recente feito Unidos, no Japão e em outros países.
envolveram o Itamaraty e o Ministério da tipo que Felipe Pinheiro não viu no smnk com instituições de 28 países (incluindo O museu de Berlim abriga outro caso
Ciência, do lado brasileiro, e a Embaixada em 2012. O telhado está sendo renovado países em desenvolvimento). Cientistas e emblemático de colonialismo na paleon­
da Alemanha no Brasil. A instituição ini­ e a iluminação, refeita. Outra melhoria ativistas cobram a devolução de parte tologia: o Giraffatitan brancai, o mais
cialmente cotada para receber o Ubirajara em perspectiva é a aquisição de um tomó­ desse acervo, que inclui material trazido alto dinossauro em exposição no mun­
foi o Museu Nacional, que tenta agora grafo para a análise de fósseis, instrumen­ das colônias europeias nas Américas, na do. Trata­se de um gigante pescoçudo
recompor seu acervo, após o incêndio de to que poucos museus brasileiros têm. África, Ásia e Oceania. que podia passar de 22 metros de com­
2018 que destruiu 80% de suas coleções. A instituição do Cariri não deixa Cisneros contou que a primeira espé­ primento e 13 metros de altura. O ani­
Muitos paleontólogos ficaram frustrados nada a desejar em relação a equivalentes cie extinta a receber um nome científi­ mal foi escavado no começo do século
quando essa notícia circulou, por enten­ do mesmo porte no interior da Inglater­ co foi o Megatherium americanum, uma xx no sudeste da Tanzânia, que era en­
der que a decisão continuaria privando o ra, me disse Aline Ghilardi – a cientista preguiça­gigante cujo esqueleto foi encon­ tão uma colônia alemã. “Por que as pes­

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Ministério da Cultura, Bradesco, Vivo e Mattos Filho apresentam

soas têm que ir a Berlim para ver esse David Martill, quando ele mais uma vez
bicho?”, questionou Cisneros. Para ele, mencionou os incêndios que afetaram
o lugar do esqueleto deveria ser a Tan- museus brasileiros na entrevista que deu
zânia. “Você poderia ver o Kilimanjaro à piauí em janeiro deste ano. “A diferen­
e o maior dinossauro do mundo na mes- ça é que, quando os bombeiros franceses

O
ma viagem. Deveria ser assim.” chegaram, os extintores funcionaram”,
O estímulo que os fósseis de grande alegou o britânico, aludindo à falta de
apelo estético poderiam dar à economia água que prejudicou o combate ao fogo
dos países em que foram encontrados é no Museu Nacional. “Não quero soar
um dos principais argumentos pela repa- grosseiro, mas sempre que coletei fósseis
triação. Cisneros foi um dos paleontólo- no Brasil eu sentia que o material estaria
gos que denunciou ao Ministério Público mais seguro em coleções alemãs ou bri­
Federal, em 2014, a venda de um esque- tânicas, e o incêndio do Museu Nacio­

outro
leto quase completo de um pterossauro nal provou que eu estava certo.”
no eBay por 262 mil dólares, o equivalen- O Museu Nacional abrigava muitos
te a 1,6 milhão de reais em dinheiro de fósseis da Bacia do Araripe que se perde­
hoje. O professor da ufpi se espantou ram para sempre. Parte do material pode
com o preço cobrado pelo fóssil. “Se você ter sido recuperada, mas ainda não há
pesar o bicho, verá que sai mais caro que informações consolidadas sobre o que foi
cocaína”, comparou. Quem contraban­ possível resgatar. O diretor da instituição,

e eu
deou aquele fóssil sabia do seu valor. “Ob­ Alexander Kellner – ele próprio estudioso
viamente essa quantia não vai para um dos répteis extintos do Araripe –, reconhe­
pedreiro do Cariri, que deve ter vendido ceu as perdas inestimáveis. “O Museu
a peça por uma mixaria”, disse Cisneros. Nacional não soube cuidar do seu acervo,
“Não são as pessoas humildes que se be­ ficou muito feio”, disse Kellner à piauí.
neficiam, mas os vendedores da Europa.” “Temos essa responsabilidade, mas isso
não justifica o roubo de fósseis do Brasil.”

A
capacidade de os países em desen­ Estudioso dos animais encontrados na

Paul
volvimento conservarem os fósseis Bacia do Araripe, Martill foi coorganiza­
em condições adequadas é frequen­ dor de um livro de referência sobre os fós­
temente questionada por aqueles que se seis da região. Veio ao Brasil pela primeira
opõem à repatriação do material. No caso vez em busca de fósseis em 1988, e traba­
do Ubirajara, o argumento foi empregado lhou no país ao longo de duas décadas,
por David Martill, um dos cientistas que fazendo às vezes mais de uma viagem por
descreveram a espécie. “Se esse espécime ano. Disse que se encantou pela qualida­

Gauguin
estivesse no Museu Nacional, no Rio de de do material, muito bem preservado nos
Janeiro, agora ele seria um monte de cin­ terrenos da região. Fazia suas escavações
zas”, declarou o paleontólogo britânico, munido de documentos do dnpm que o
em 2020, à revista Galileu, primeiro veí­ autorizavam a levar os fósseis para a Ingla­
culo brasileiro a noticiar o caso. terra, com a condição de que fossem usa­
A destruição do Museu Nacional não dos para ensino e pesquisa, e não para fins
foi a única tragédia do tipo no Brasil comerciais. “Até onde alcanço, eu estava
nos últimos anos. Em 2020, um incên­ trabalhando dentro da lei”, afirmou. O bri­
dio consumiu a maior parte do acervo tânico já descreveu várias espécies do
do Museu de História Natural e Jardim Araripe que foram parar em museus es­
Botânico da ufmg, em Belo Horizonte, trangeiros. Por temer complicações com a
destruindo tesouros paleontológicos e ar­ Justiça, decidiu que não virá mais ao Bra­
queológicos brasileiros. Incêndios atingi­ sil e hoje se limita a estudar os fósseis lo­
ram também instituições culturais como cais armazenados em coleções no exterior.
o Museu da Língua Portuguesa, em 2016, Martill disse ter visto o Ubirajara juba-
e um galpão da Cinemateca Brasileira, tus pela primeira vez quando o fóssil já
em 2021, ambos em São Paulo. estava nas coleções do museu de Karls­
O argumento, repetido por Martill em ruhe. Ele não soube determinar a proce­
outras entrevistas desde então, enfureceu dência do material. “Não tenho lembrança
os cientistas brasileiros que defendiam a de tê­lo visto antes dessa ocasião, mas não
devolução do fóssil. No Twitter, Aline me recordo de cada um dos fósseis que
Ghilardi lembrou que centenas de fósseis coletamos anos atrás”, afirmou. “Tenho
foram destruídos em bombardeios duran­ quase certeza de que foi comprado.”
te a Segunda Guerra. O próprio smnk, em No Brasil, Martill é conhecido tam­
Karlsruhe, foi alvejado em 1942 e perdeu
vários itens de seu acervo. Dentre o mate­
bém pelas declarações polêmicas que in­
flamam os cientistas locais. Ele foi um dos
28.4 —
rial dizimado no conflito mundial, estava
provavelmente o holótipo do Gryposuchus
autores de um estudo que descreveu em
2015 uma suposta cobra de quatro patas 6.8.2023
jessei, um parente extinto dos crocodilos que viveu na Bacia do Araripe durante o
modernos que tinha sido encontrado no Cretáceo (um estudo posterior contestou
Oeste do Amazonas e estava abrigado a interpretação e alegou que se tratava, na
num museu de Hamburgo. verdade, de um lagarto). Na época, o pa­
O incêndio de 2019 que destruiu boa leontólogo foi questionado por não ter
parte do telhado da Catedral de Notre­ envolvido cientistas brasileiros no estudo Patrocinador Master
Dame, em Paris, costuma ser citado pe­ do fóssil, como determina a lei. “Que di­ Paul Gauguin, Pobre pescador,
los cientistas brasileiros como prova de ferença faria?”, questionou Martill, em 1896, doação Henrik Spitz-Jordan,
Ricardo Jafet e João di Pietro, 1958
que o patrimônio cultural dos países de­ entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo.
senvolvidos também está vulnerável a “Você também quer que eu tenha uma Patrocinadores Realização
esse tipo de acidente. Citei o caso para pessoa negra na equipe por questões étni­

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vê­la. A instituição abriga também a Pe­ baladas numa caixa grande que veio por
VITOR MASSAO_2023

dra de Roseta, que permitiu decifrar os FedEx e foi entregue direto na porta do
hieróglifos egípcios há duzentos anos, e os museu em Santana do Cariri”, afirmou
Mármores de Elgin, esculturas que fa­ o paleontólogo brasileiro. A Cretapalpus
ziam parte do Partenon, em Atenas, e fo­ vittari ficou em exposição na institui­
ram levadas para o Reino Unido no século ção por alguns meses com uma etique­
xix. O museu costuma se defender citan­ ta que explicava a sua importância
do uma lei dos anos 1960 que o impede simbólica. Hoje está guardada no acer­
de se desfazer de peças de sua coleção. vo técnico do museu.
“Daqui a vinte anos, o Museu Britânico Outra repatriação que está encami­
será visto como a caverna de Ali Babá, e nhada é a de 998 fósseis que virão da Fran­
não como uma instituição que propaga ça. Nesse caso, porém, não se trata de
a cultura, a igualdade e os direitos hu­ espécimes que estavam na coleção de mu­
manos”, declarou a egiptóloga Monica seus, mas sim de peças descobertas em
Hanna, da Academia Árabe de Ciência, um contêiner por funcionários da alfân­
Tecnologia e Transporte Marítimo, em en­ dega do Porto de Le Havre. Dentre os fós­
trevista ao podcast The Inquiry, da bbc. seis recuperados, há plantas, insetos, peixes
Em junho, o Nationalmuseet, museu e répteis, incluindo um pterossauro.
nacional da Dinamarca, anunciou que A devolução foi decidida após acordo
devolverá um dos cinco mantos tupinam­ firmado entre o Ministério Público Fede­
bá incorporados à sua coleção no século ral e a Justiça francesa. Em maio do ano
xvii. Os mantos são considerados sagrados passado houve uma cerimônia para ofi­
pelos indígenas, e há apenas outros seis cializar a repatriação, mas os brasileiros
conhecidos no mundo, todos na Europa. que foram participar do evento voltaram
Em outro museu de Copenhague, estão de mãos vazias. Mais de um ano depois,
fósseis de humanos e mamíferos extintos os fósseis continuam na França. De acor­
coletados em Lagoa Santa (mg) no século do com Allysson Pinheiro, que participou
xix pelo naturalista dinamarquês Peter da cerimônia, o atraso se deve a entraves
Lund, pioneiro da arqueologia e da pa­ burocráticos que agora foram finalmente
cas, e um deficiente, uma mulher e quem do mesmo animal, para dar a impressão leontologia nas Américas. Não há nego­ superados, e o material está prestes a ser
sabe um homossexual também, apenas que se tratava de um crânio completo. ciações em curso para repatriá­los. devolvido ao Brasil. Será encaminhado
por uma questão de equilíbrio?” Os cientistas ficaram furiosos ao desco- A polêmica em torno do Ubirajara já para o Museu Plácido Cidade Nuvens.
Martill é contrário às leis de países brir a farsa quando estavam preparando motivou o retorno de outros fósseis. Foi Se as negociações para a devolução
como o Brasil, a Itália ou a China, que o fóssil e decidiram eternizar sua irrita- o caso da Cretapalpus vittari, uma ara­ de fósseis que pertencem a coleções ins­
proíbem o comércio dos fósseis encon- ção no nome escolhido para o bicho. nha de cerca de 1 cm que viveu na Bacia titucionais estão caminhando, o caso do
trados em seu território. Para ele, a legis- O Irritator voltou às manchetes em do Araripe no Cretáceo e foi batizada em material contrabandeado que vai parar
lação restritiva prejudica a ciência, pois maio deste ano, quando foi publicado um homenagem à cantora Pabllo Vittar, de em sites de comércio eletrônico é mais
estimula que material de grande interes- estudo que, a partir de uma tomografia quem é fã Matthew Downen, paleontólo­ complicado. Em janeiro deste ano, Cis­
se paleontológico não seja coletado e se do crânio, concluiu que se tratava de um go que a descreveu. O holótipo foi estu­ neros denunciou ao Ministério Público
perca. É o oposto, segundo ele, do que dinossauro mais rápido e versátil do que dado por pesquisadores da Universidade Federal a loja norte­americana Indiana9
ocorre no Reino Unido, cujos museus es- os cientistas acreditavam até então. Assim do Kansas, nos Estados Unidos, e estava Fossils, que estava vendendo material
tão repletos de fósseis, porque a comercia- como aconteceu no caso do Ubirajara, abrigado no Museu de História Natural do Araripe que muito provavelmente
lização e a coleta são permitidas no país, os paleontólogos brasileiros protestaram da instituição. Quando a espécie foi des­ saiu do país de forma ilegal.
desde que autorizadas pelo proprietário nas redes sociais e a revista Palaeontologia crita no periódico The Journal of Arach- Ao alardear o caso no Twitter, Cisneros
das terras em questão. O paleontólogo Electronica decidiu despublicar o artigo. nology, em maio de 2021, a campanha chamou a atenção para o preço de venda
acredita que os espécimes que pertencem em torno da devolução do Ubirajara já dos fósseis – uma cigarra do Cretáceo sai

U
a coleções particulares irão parar cedo ou m dos mais emblemáticos pedidos tinha provocado bastante rebuliço pelo por 3 120 dólares (cerca de 15 mil reais),
tarde no acervo de museus, como argu- de repatriação de patrimônio cultu- mundo afora, e os paleontólogos brasilei­ e uma libélula, por 3,9 mil dólares (cerca
mentou num artigo de 2018: “[O fóssil] ral de países em desenvolvimento é ros também apontaram nas redes sociais de 20 mil reais). “Seguramente foram
ficou enterrado por 125 milhões de anos, o caso dos bronzes de Benin – um conjun- a ilegalidade da aranha do Cariri que comprados de uma pessoa humilde pelo
indisponível para estudo, alguns anos a to de milhares de estátuas, placas e outros estava no Kansas. Após a controvérsia, os valor de uma aguardente”, escreveu. Só
mais não vão fazer mal a ninguém.” artefatos fabricados com metais variados a norte­americanos decidiram voluntaria­ há um modo de explicar a saída legal do
O paleontólogo britânico lidera a lista partir do século xiii pelos habitantes do mente devolver o bicho ao Museu de país: dizendo que ela ocorreu antes de
de cientistas estrangeiros que apresenta- reino do Benin, onde hoje fica o Sul da Paleontologia Plácido Cidade Nuvens. 1942, quando o decreto de Vargas tornou
ram a primeira espécie de dinossauro Nigéria. Saqueada por britânicos em Do lado brasileiro, a negociação dessa os fósseis propriedade da União. “Vou ter
descrita a partir de um fóssil da Bacia do 1897, boa parte das peças foi parar em mu­ operação foi feita pelo paleontólogo Re­ que acreditar que eles vieram fazer uma
Araripe, o Irritator challengeri. Publicado seus da Europa e dos Estados Unidos. nan Bantim, professor da Universidade escavação em 1941, escutando Glenn
em 1996 no Journal of the Geological So- A Nigéria reivindica a repatriação dos Regional do Cariri e um dos curadores Miller?”, ironizou o pesquisador.
ciety, o artigo foi assinado também por bronzes desde sua independência, em do museu local. “Entre a publicação do

Q
Eberhard Frey e três colegas do Reino 1960. Nos últimos anos, uma série de mu­ artigo e a reunião com os norte­america­ uando abriu as caixas e se depa­
Unido. Tratava-se de um fóssil que tinha seus e outras instituições vêm se compro­ nos para negociar a devolução, passaram­ rou com os fósseis do Ubirajara
saído ilegalmente do Brasil e que foi pa- metendo a devolver as peças. Em 2021, o se no máximo duas semanas”, contou jubatus no começo de junho,
rar na coleção do Museu Estadual de governo alemão disse que restituiria os Bantim à piauí. Junto com a Cretapalpus, Allysson Pinheiro disse que rememorou
História Natural de Stuttgart, a pouco mais de mil bronzes que estão no país; até os paleontólogos do Kansas enviaram ou­ num instante toda a sua trajetória na
mais de 60 km de Karlsruhe. No artigo, agora, apenas 22 peças foram devolvidas. tras 35 aranhas coletadas na mesma oca­ ciência. Pensou também em Plácido
os autores informaram que o espécime Instituições britânicas, como as universi­ sião, cuja existência era ignorada pelos Nuvens e na luta para manter os fósseis
foi comprado, sem dar mais explicações. dades de Cambridge, na Inglaterra, e de brasileiros. O material tinha sido escava­ no Cariri. “Estamos dando passos mui­
O detalhe curioso dessa descoberta é Aberdeen, na Escócia, e o Museu Hor­ do em 2003 pelo paleontólogo Paul Sel­ to importantes para trazer condições
que os autores compraram um fóssil que niman, de Londres, também já devolve­ den, um dos autores do artigo. Ele sabia melhores de vida para o pessoal da re­
tinha sido adulterado de forma a parecer ram um número modesto de artefatos. que era ilegal comprar fósseis, mas des­ gião”, afirmou. Era uma vitória, ele
mais impressionante do que de fato é. O Museu Britânico, em Londres, de­ conhecia que também era guardar o ho­ reconheceu. “Mas só vamos ter a di­
Apenas a parte posterior do crânio era tém a maior coleção de bronzes do Be­ lótipo fora do Brasil, disse Bantim. mensão dela daqui a uns dez anos, com
legítima; a outra metade foi forjada pelos nin, com cerca de novecentos itens – e até O material foi devolvido em outubro as coisas que a gente espera que esse
traficantes, com gesso e pedaços de osso agora não deu sinal de que poderia devol­ do ano passado. “As aranhas foram em­ evento ajude a concretizar.”

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Por um lado, continuou o diretor, a de- desses fósseis. “Se esse material não for guntei a Kimmig se havia a perspectiva de Ghilardi havia sinalizado o seu inte-
volução do Ubirajara representa um passo repatriado, não vão conseguir publicar retorno de outros fósseis abrigados no mu- resse em analisar os fósseis antes da de-
importante na discussão sobre como a mais nada a respeito”, afirmou. seu de Karlsruhe. O curador fez uma cara volução e disse que a pesquisa deve
ciência deve ser feita. “O conhecimento Para Cisneros, os cientistas das insti- constrangida e disse que não sabia. “Isso é envolver outros cientistas interessados.
científico é necessário para que as socie- tuições estrangeiras que detêm fósseis com o ministério [da Ciência, Pesquisa e No que depender dela, o primeiro autor
dades evoluam, mas não pode negar os brasileiros contrabandeados estão fican- Arte do estado de Baden-Württemberg].” da nova análise deve ser, mais uma vez,
limites impostos pelas éticas individuais e do sem oxigênio. “Estamos bloqueando Ghilardi e Cisneros, os dois paleon- Robert Smyth, o aluno de Martill que
coletivas.” Não foi o único saldo positivo todos os caminhos”, disse o cientista. tólogos que lideraram a campanha pela liderou o estudo original do Ubirajara.
deixado pelo episódio, na avaliação de Pi- “Eles não vão deixar na gaveta porque repatriação do Ubirajara, foram a Brasí- A disputa em torno do fóssil acabou res-
nheiro. “Além disso, também começamos pega mal, e não vão publicar porque nin- lia participar da recepção do dinossauro pingando no paleontólogo em começo
a discutir a diminuição de assimetrias re- guém aceita.” O retorno dos fósseis bra- e não se cansavam de tirar selfies à fren- de carreira, que não tem culpa por toda
gionais quando se fala em ciência.” sileiros seria uma questão de tempo. “Eles te dos fósseis. Ao final da solenidade, a celeuma, alegou Ghilardi. A brasileira
Um legado duradouro que deve ficar não têm outra saída.” eles foram a um bar na Asa Norte cele- vem trocando mensagens com Smyth e
do episódio é a dificuldade cada vez maior brar a vitória diplomática impulsionada disse que ele se mostrou receptivo à ideia

A
que os pesquisadores estrangeiros terão devolução do Ubirajara jubatus foi pela campanha nas redes sociais. En- de voltar a estudar o material.
para estudar fósseis de origem obscura. Os formalizada numa cerimônia no quanto tomavam espumante, discuti- Depois da cerimônia em Brasília, o
colegas do exterior não tinham o menor auditório do Ministério da Ciência ram como manter acesa a mobilização Ubirajara voltou enfim para o Ceará, a
pudor de descrever espécies do Araripe na tarde de 12 de junho, na presença de em torno da causa. O grupo já definiu a bordo do avião que levou o governador
sem comprovar a origem do espécime, autoridades do Brasil e da Alemanha. prioridade para repatriação agora que o do estado, Elmano de Freitas (pt). Antes
como disse Juliana Sayão, do Museu Na- Representando o museu de Karlsruhe, Ubirajara voltou. “O próximo tem que de chegar à nova casa, os fósseis foram
cional. “Até que chegamos a este momen- estava o paleontólogo Julien Kimmig, ser o Irritator”, disse Cisneros, referindo- exibidos numa solenidade em Fortaleza
to em que ficou constrangedor publicar que substituiu Eberhard Frey na cura- se ao primeiro dinossauro do Araripe. e passaram uma temporada na sede da
um fóssil do Brasil, porque as pessoas sa- doria dos fósseis. Em sua fala durante a Durante a comemoração, os cientistas Urca e no Geopark Araripe, ambos na
bem que esse material saiu ilegalmente.” solenidade, o alemão disse que a histó- também conversaram sobre o futuro dos cidade do Crato. Só chegaram ao Mu­
O depoimento de Martill corrobora a vi- ria do Ubirajara e a forma como tinha fósseis repatriados. O dinossauro caiu num seu Plácido Cidade Nuvens na última
são da paleontóloga carioca. “Os fósseis sido tratado em sua instituição “foram limbo taxonômico depois que o artigo semana de junho. Ali, poderão ser vistos
brasileiros estão ficando tóxicos para os muito infelizes”, e que ele e sua equipe com a sua descrição foi cancelado. Para pelo público apenas durante poucas se­
pesquisadores”, afirmou o britânico. estavam satisfeitos com o retorno. todos os efeitos, é como se a espécie nunca manas. “É um holótipo. E a regra básica
Na avaliação de Felipe Pinheiro, o pa- Em conversa com a imprensa ao final tivesse sido descrita, e o nome Ubirajara dos museus é que os holótipos não vão
leontólogo cearense da Unipampa que da cerimônia, a ministra da Ciência, Lu- jubatus já não tem validade. Com o retor- para as exposições, a não ser por curtos
passou uma semana no museu de Karls- ciana Santos, disse que faria da repatria- no dos fósseis ao Brasil, o material poderá espaços de tempo”, disse Allysson Pinhei­
ruhe, o caso do Ubirajara “matou” a cole- ção de outros fósseis brasileiros uma voltar ser analisado por outros pesquisado- ro. O pequeno dinossauro que abalou o
ção da instituição alemã. Os pesquisadores prioridade de sua gestão. Os alemães, con- res, que terão a prerrogativa de rebatizar o mundo da paleontologia deve ficar expos­
brasileiros que conhecem o acervo não tudo, não deram entrevista. Quando as animal – inclusive com o nome original, to numa sala própria no segundo andar
vão ficar quietos se sair um novo estudo autoridades estavam se dispersando, per- se assim julgarem adequado. a partir de 16 de julho. J

Ministério da Cultura, Prefeitura de São Paulo,


através da Secretaria Municipal de Cultura,
Fundação Theatro Municipal, Sustenidos,
Bradesco e Cescon Barrieu apresentam

DESTAQUE
DE JULHO
NO MUNICIPAL

ÓPERA LA FANCIULLA ORQUESTRA SINFÔNICA MUNICIPAL


CORO LÍRICO MUNICIPAL
DEL WEST
A GAROTA DO OESTE ROBERTO MINCZUK
direção musical
MALONNA
visagismo
DIAS 14, 16, 19 E 22
MARTINA SERAFIN Minnie
TODAS AS DATAS
PAULO QUEIROZ Nick
LÍCIO BRUNO Jack Rance ANDREY MIRA Ashby
DE GIACOMO PUCCINI CARLA CAMURATI LIGIANA COSTA GUSTAVO LOPEZ JOHNNY FRANÇA Sonora
direção cênica dramaturgismo MANZITTI Dick Johnson EDUARDO GÓES Trin
ÓPERA EM TRÊS ATOS COM LIBRETO DE
MÁRIO ZACCARO ROBERTO ALENCAR ISAQUE OLIVEIRA Sid
GUELFO CIVININI E CARLO ZANGARINI DIAS 15, 18 E 21 MÁRCIO MARANGON Bello
regência do Coro Lírico direção de movimento
DANIELA TABERNIG Minnie FERNANDO DE CASTRO Harry
RENATO THEOBALDO RONALDO ZERO HOMERO VELHO Jack Rance EDUARDO TRINDADE Joe
cenografia assistente de direção ENRIQUE BRAVO Dick Johnson DIÓGENES GOMES Happy
MAX COSTA Larkens
WAGNER PINTO
14 sexta 20h e CARINA TAVARES RAFAEL THOMAS Billy Jackrabbit
ANDREIA SOUZA Wowkle
15 e 16 sábado e domingo 17h design de luz
SÉRGIO RIGHINI Jack Wallace
18, 19 e 21 terça, quarta e sexta 20h RONALDO FRAGA MARCELO FERREIRA José Castro
22 sábado 17h figurino MIGUEL GERALDI Postiglione

Ingressos R$12-158 ACOMPANHE NOSSAS REDES SOCIAIS: SINTA-SE À VONTADE. O THEATRO MUNICIPAL DE SÃO PAULO FAZ PARTE
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Classificação indicativa 12 anos Theatro Municipal Praça das Artes O THEATRO MUNICIPAL É SEU. PROGRAMAÇÃO SUJEITA A ALTERAÇÃO.
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piauí_julho
THEATROMUNICIPAL.ORG.BR @theatromunicipal 53
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diário_PAULO PEREGRINO

MEU CORPO ERA


PÓLVORA COM PAVIO
O publicitário conta sua luta contra o câncer – até fazer um tratamento inovador do SUS, com resultado excepcional

Por treze anos, o publicitário Paulo Peregrino, de 61 anos, enfrentou o câncer. Durante esse período, foi
internado numerosas vezes, fez 45 sessões de quimioterapia e um transplante de medula. Neste ano, submeteu-
se pelo SUS a um tratamento inovador, o CAR-T Cell, que combate o câncer com as próprias células de defesa
do paciente, os linfócitos T. O resultado do tratamento foi surpreendente: Peregrino teve a remissão completa do
câncer, como ele conta no diário a seguir, escrito em colaboração com o jornalista João Batista Jr.

SEGUNDO SEMESTRE DE 2010_Sou o caçu- (prostate-specific antigen) e detectaram constante. Foi estabelecido que eu faria regrino, e seu anjo da guarda estavam
la de dez filhos de um inspetor do Banco uma prostatite, que é uma inflamação exames de psa a cada três meses. de plantão durante a consulta – e ela
do Brasil (falecido em 1998) e de uma da próstata. Fui medicado e passei a perguntou ao médico se não valeria a
dona de casa que migraram do Recife noite ali, em observação. SEGUNDO SEMESTRE DE 2013_Minha pena fazer um novo exame de toque.
para Niterói, no estado do Rio de Janeiro, O meu índice de psa estava em 28 vida seguiu um fluxo normal nos últi- Ele fez e constatou que eu estava com
em 1970, pouco antes da Copa do Mun- ng/ml, sendo que o de uma pessoa saudá- mos três anos, desde que o câncer de mais dois tumores de próstata. Agora,
do. O lado paterno de minha família tem vel da mesma idade que eu é pouco acima próstata foi descoberto. Continuei tra- eram três, todos eles iguais: encapsula-
uma propensão ao câncer, talvez por ra- de 2 ng/ml. O exame de toque, feito depois, balhando e praticando meu esporte dos e pouco agressivos.
zões genéticas. Essa doença matou meu descobriu um tumor. A inflamação que preferido, o vôlei de praia. Como pres- O médico disse que eu não corria pe-
pai, a mãe dele e alguns de meus tios. me levou ao hospital pode até não ter liga- crito, eu vinha fazendo exames de psa rigo, porém minha relação de confiança
Quatro de meus irmãos também tiveram ção com o câncer, mas foi o que me fez a cada três meses e meu índice perma- com ele havia sido abalada: contar ape-
câncer – mas, antes deles, fui o primeiro descobrir o que estava ocorrendo comigo. necia estável. Achando que tudo estava nas com os dados do psa para fazer o
a ser diagnosticado, aos 48 anos de idade. O tumor estava encapsulado, o que sob controle, um dia baixei a guarda: diagnóstico de um câncer criara em
Tudo começou quando eu voltava significa que, em tese, não tinha chances deixei de fazer o exame e passei quatro mim uma falsa percepção de segurança.
para casa, após deixar meu trabalho no de se espalhar pelo corpo e também era de meses sem ir ao médico. Resolvi ir a São Paulo para me con-
Rio de Janeiro. Ao passar pelo bairro de um tipo menos agressivo. O meu médico Quando voltei a consultá-lo, o novo sultar com o dr. Miguel Srougi, a maior
Icaraí, em Niterói, cidade onde moro na época disse que não havia necessida- exame de sangue mostrou que o índice referência do país em urologia, com
até hoje, comecei a sentir um calafrio e de de quimioterapia nem cirurgia e ado- de psa seguia bom, em 2,4. Mas minha especialização em câncer. Ele falou so-
a tremer sem parar. Fui a um hospital. tou o método norte-americano conhecido mulher, a fisioterapeuta e terapeuta bre a possibilidade de retirar a próstata,
Os médicos fizeram um exame de psa como surveillance, de monitoramento ocupacional Ana Maria Fernandes Pe- a fim de eliminar de vez o câncer.

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EGBERTO NOGUEIRA_ÍMÃ FOTOGALERIA_2023

Paulo Peregrino em São Paulo: “Hoje consegui colocar um tênis com facilidade e fazer uma caminhada. Desde 2021, devido ao inchaço causado pelos tumores, só fazia isso em raras ocasiões”

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PRIMEIRO SEMESTRE DE 2014_ Apesar linfático, parte importante da imunida- Tudo correu muito bem na cirurgia. tem três quartos. Como a Covid continua-
dos possíveis efeitos colaterais, decidi de do organismo e por onde passam os Quando agradeci ao médico pelo cuida- va à solta, e ainda não existiam vacinas,
me submeter à cirurgia de retirada total linfócitos (um tipo de glóbulo branco do que teve, ele me disse, apontando não pude receber visitas. Pedi, então, às
da próstata, o que os médicos chamam que combate bactérias e vírus). Os linfo- para o teto: “Agradeça a Ele.” A batalha enfermeiras que perguntassem aos ou-
de prostatectomia radical. mas não Hodgkin podem ser principal- contra o câncer sempre envolve muita tros pacientes de tmo se eles topavam
mente de três tipos, conforme o tipo de ciência e muita fé. criar um grupo de WhatsApp para poder-
SEGUNDO SEMESTRE DE 2018_Sou formado célula que atingem: linfomas de células Durante os jogos, até a torcida do time mos conversar e trocar textos. Eles acei-
em publicidade pela Universidade Federal B (ou linfócitos B), linfomas de células T opositor estava torcendo para não aconte- taram, e eu criei o “tmo Juntos”.
Fluminense e sempre fui apaixonado por (ou linfócitos T) e linfomas de células nk cer nada grave comigo. Logo na primeira Decidi fazer o pré-lançamento do meu
boas histórias. Havia uma que precisava (células natural killer, ou exterminado- partida, a bola caiu a 5 metros de distân- livro ali mesmo. A cada dois dias, minha
ser contada, a de uma figura política rele- ras naturais). Os linfomas de células B cia de mim – e dei um pulo, para evitar mulher levava exemplares ao hospital (de-
vante que sempre viveu à sombra e que são os mais comuns, respondendo por que ela encostasse na areia. Caí. Mas, vidamente higienizados com álcool em
pouca gente conhece: o gaúcho Jecy Sar- 85% dos casos de linfomas não Hodgkin. felizmente, de um jeito que poupou a gel), as enfermeiras me entregavam e eu
mento, o braço direito – e esquerdo – de O médico disse que seria melhor apro- minha perna esquerda. O meu time fi- fazia as dedicatórias. Depois, os exempla-
Leonel Brizola. Ele foi o homem que cui- veitar e remover o tumor completamen- cou em segundo lugar no torneio. res eram devolvidos à minha mulher, que
dou da agenda, das finanças, das relações te, mas alertou que a cirurgia era muito Fiz nove sessões de quimioterapia ao os entregava aos parentes e amigos mais
pessoais e familiares, além das articulações arriscada por causa da localização do todo. Não tive queda de cabelo, mas, próximos. Também dei alguns exempla-
de Brizola ao longo de cinquenta anos. tumor, que, além de grande, estava en- como o tratamento detona o sistema res aos meus vizinhos no hospital.
Sarmento morreu no início do ano [em costado em uma veia tão importante. imunológico e provoca a queda do nú- No dia 22 de junho, algumas enfer-
26 de janeiro de 2018], aos 94 anos, no Rio Como eu teria dali a um mês um cam- mero de plaquetas, com risco alto de meiras entraram no meu quarto carre-
de Janeiro. Em maio, eu trabalhava na peonato de vôlei de praia de um dia de hemorragia até por causa de pancadas gando um bolo e cantando Parabéns pra
biografia dele quando me veio, de manei- duração e com inúmeras partidas, pedi ao normais, precisei reduzir o vôlei de Você. O meu tmo tinha dado certo: tinha
ra abrupta, uma dor extremamente forte médico para fazer a cirurgia só depois dos praia. Um exame de diagnóstico por ocorrido a “pega da medula”! Foi tudo mui-
na perna esquerda. Achei melhor correr jogos. Ele não atendeu, é claro. Disse que imagem chamado pet-scan mostrou to emocionante – dizem que essa conquis-
para o hospital. Lá me aplicaram morfina eu estaria liberado apenas 45 dias depois que o tumor teve seu tamanho reduzido, ta equivale a um renascimento. Lembrei
logo de cara – depois, repetiram – e fize- da intervenção. Quase que implorei: “Mas mas não desapareceu totalmente. Quan- em seguida que, quando me instalei no
ram vários exames. Descobriram que eu doutor, assim eu não vou disputar o tor- do terminei a quimioterapia, os médicos quarto do hospital, já havia recebido um
tinha um linfoma na região da virilha. neio!” Finalmente, entramos em um acor- disseram que o câncer estava controlado. sinal de que as coisas correriam bem: ao
Uma biópsia, em julho, detectou que do. Eu participaria dos jogos pouco depois olhar pela janela, vi do outro lado da rua
era um linfoma não Hodgkin de células da cirurgia, mas não poderia, por exem- NOVEMBRO DE 2019_Deitado no sofá de um laboratório de exames cujo nome era
B, de tamanho grande, situado perto da plo, levantar a perna esquerda nem pular casa, em Niterói, percebi um calombo Blessing. Essa bênção em inglês me trou-
veia femoral, aquela que drena o sangue no chão, para evitar cortes ou aderência no meu pescoço. Dado o meu histórico, xe muito conforto.
dos membros inferiores do corpo. Linfo- na cicatriz da operação. Por causa do nú- acendi o sinal de alerta. No dia seguin-
ma é um tipo de câncer sanguíneo (ou mero baixo de plaquetas, também não te, voltei ao oncologista. OUTUBRO DE 2021_Precisei ser internado
hematológico) que ocorre no sistema poderia sofrer nenhum sangramento. A biópsia revelou que era um novo lin- outra vez porque apareceram várias man-
foma não Hodgkin, sempre das células B. chas roxas pequenas em meu corpo, e as
O protocolo de câncer sanguíneo diz dores na região lombar estavam insupor-
que, quando um segundo tumor surge táveis. No hospital, os médicos concluí-

S
em menos de dois anos após o apareci- ram que as manchas surgiram porque eu
mento do primeiro, o paciente deve fazer desenvolvi púrpura, uma doença rara e
um Transplante de Medula Óssea (tmo), autoimune, quando o organismo destrói
para evitar o surgimento de um terceiro. as plaquetas do sangue. Ter púrpura é

P
Enquanto me preparei para o transplante, como se deitar em uma cama sabendo
prossegui com a quimioterapia. que embaixo dela há uma cobra à esprei-
ta, pronta para dar o bote. Recorro a essa
MARÇO DE 2020_Depois de mais de três imagem porque, quando se tem essa doen-
anos de trabalho, o meu livro Brizola e Eu: ça, a qualquer momento pode ocorrer uma

S
A Inédita e Fascinante História de Jecy Sar- hemorragia, provocada pelas coisas mais
mento ficou pronto. O lançamento seria simples do mundo, como espirrar.
no Museu da República, no Rio de Janei- Para combater a púrpura e melhorar
ro. Eu já havia fechado a lista de convida- meu sistema imunológico, tive que in-

E
dos e contratado o bufê, mas, com a fundir imunoglobulina e plaquetas no hos-
pandemia de Covid, tudo foi suspenso – pital, além de receber corticoide por via
exceto a progressão do meu câncer. intravenosa. Mas nada disso adiantou:
não conseguimos controlar a doença. Um
JUNHO DE 2020_Passei o mês inteiro inter- médico pediu que eu fizesse outro exa-

E
nado. Antes do tmo, tive que me submeter me de diagnóstico por imagem pet-scan.
a uma quimioterapia pesadíssima. Nesse O resultado foi desanimador: havia no-
transplante, primeiro tiram uma parte das vos linfomas não Hodgkin espalhados
células da medula, depois fazem a químio pelo meu organismo, sendo a perna di-
e, quando devolvem as células ao corpo, reita a parte mais afetada. Fiquei num
a expectativa é que não haja reincidência mato sem cachorro. Os médicos suspei-
de câncer. No meu caso, foi o chamado tavam de que a púrpura era um efeito
“transplante autólogo”, em que o paciente secundário do linfoma, que também es-
é o próprio “doador” das células da medu- tava descontrolado.
la que serão inoculadas nele.
Mas fazer o tmo não quer dizer que NOVEMBRO DE 2021_Um novo e renoma-
tudo vai dar certo. É preciso que aconte- do médico hematologista, após estudar
ça a “pega da medula”, quando ela é rea- bem o meu histórico e perfil clínico, in-
tivada no corpo sem rejeição. Até que formou que talvez a única solução para
isso ocorresse – o que pode levar cerca de meu caso fosse um tratamento inovador
dez dias, dependendo da condição do chamado car-t Cell. Foi a primeira vez
paciente –, fiquei bastante ansioso. O se- que ouvi falar a respeito dele. O médico
tor de tmo do Hospital Icaraí, em Niterói, alertou que a Anvisa estava ainda em fase

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de aprovação do uso comercial do trata- tomava havia meses 400 mg do opioide Chegou o resultado da biópsia, que, fessor de hematologia, hemoterapia e
mento e que o custo era proibitivo, em tramadol (só a morfina é mais forte). Mes- apesar dos riscos, correu bem. Mas o re- terapia celular da Faculdade de Medi-
torno de 2 milhões de reais na época. mo assim, a dor não passava, e eu ainda sultado era ruim. Pela terceira vez, foi cina da usp, Rocha é o coordenador do
Mas levantou a possibilidade de eu con- tinha cãibras violentíssimas nas pernas e diagnosticado um linfoma não Hodgkin programa car-t Cell feito em parceria
seguir me enquadrar em um estudo feito nos pés, como efeito da quimioterapia. do mesmo tipo que os anteriores. O trans- com o Hospital das Clínicas da Facul-
pela usp, com verba do sus. Ficava gemendo e me contorcendo na plante de medula, assim como as químios dade de Medicina da usp, o Instituto
Fiquei animado, porque já havia me cama, com a porta do quarto fechada, que fazia desde 2018, não tinham sido Butantan e a Fundação Hemocentro de
convencido – depois que o médico expli- para que minha mulher não ouvisse – o eficazes. Saí do hospital e fui direto a um Ribeirão Preto, no interior paulista.
cou como funcionava – dessa opção tera- que eu não conseguia evitar a partir do oftalmologista, que disse que minha visão Além de também ser coordenador de
pêutica por vários motivos. O primeiro momento em que ela vinha se deitar. talvez voltasse em seis meses. Resolvi ir a car-t Cell no laboratório Novartis e na
era que, dado o fracasso de todos os trata- Como o linfoma e a dor só aumenta- outro, que falou quase a mesma coisa. Rede D’Or, ele atendia, em consultório
mentos anteriores, eu já estava cansado de vam, os médicos acharam que não tinha particular, na Zona Sul do Rio de Janei-
ficar tentando o mesmo, e sofrendo. Além como evitar uma nova biópsia. Mas meu MARÇO DE 2022_Resolvi consultar um ro. Era a luz no fim do túnel. Fizemos
disso, sempre acreditei na ciência e no co- índice de plaquetas estava em 3 mil mm3, terceiro oftalmologista, que disse que só os primeiros contatos com a equipe do
nhecimento. O terceiro motivo foi saber sendo que o de um adulto saudável é acima uma cirurgia resolveria meu caso. Foi o dr. Vanderson no Rio, por intermédio
que tudo o que se estudasse a partir de meu de 150 mil mm3. Nesse estado, seria difícil que eu fiz. Voltei a enxergar, mas precisei de sua assistente principal, a dra. Adrien-
tratamento seria útil para futuros pacien- encontrar um médico-cirurgião que enca- de óculos para ver de longe. Posso asse- ne Moreno.
tes: fazer o bem estava no meu sangue. rasse fazer a biópsia, dado o perigo que eu gurar que, independentemente do sofri- O tratamento desenvolvido por esse
Por fim, eu tinha fé. corria. Recorri mais uma vez ao dr. Jorge mento que passava por causa do linfoma programa consiste em colher sangue
A essa altura, o meu corpo era uma Luiz da Cunha Oliveira, que já tinha feito e suas consequências, a sensação de en- (fase 1) do paciente e separar os linfóci-
combinação de pólvora com pavio. Eu as minhas biópsias anteriores, e aceitou xergar apenas parcialmente era algo as- tos T, que são células de defesa do nosso
sofria de uma queda do número de pla- fazer essa cirurgia de altíssimo risco. sustador. Especialmente para mim, que organismo. Depois, esses linfócitos T são
quetas por causa do histórico com a qui- vivo fugindo da situação de dependência. modificados geneticamente (fase 2) e
mioterapia – e ainda por cima estava JANEIRO DE 2022_Por causa das dores na inseridos de volta no corpo (fase 3 e últi-
com púrpura, que provoca a redução do lombar, que nem o tramadol ameniza- AGOSTO DE 2022_Cada vez mais os mé- ma), como um exército do bem, pronto
número de plaquetas e pode causar he- va mais, tive que ser internado. No hos- dicos apostavam no car-t Cell, mas os para atacar as células tumorais. A modi-
morragia a qualquer momento. pital, enquanto cuidava da dor, recebia trâmites burocráticos de aprovação pela ficação genética dessas células é feita de
químio para o linfoma e tentava contro- Anvisa não andavam na velocidade que modo que eles adquiram receptores, cha-
DEZEMBRO DE 2021_Em casa, a dor na lar a púrpura, testei positivo para Covid. eu precisava. Meus irmãos Carlos – mados de “fechaduras químicas”, capa-
lombar alcançava um nível intolerável: Como estava com as plaquetas baixas, doutor em farmácia – e Fernando – que zes de se encaixar nas células com câncer
pelo pet-scan anterior, ela parecia con- sofri uma hemorragia nos olhos depois atua na área de ciência e tecnologia há e destruí-las. O tratamento combate três
sequência de um tumor que estava pres- de tossir. De repente, não vi nada além de mais de quarenta anos – começaram a tipos de cânceres sanguíneos: leucemia
sionando um nervo na região. A dor não uma névoa densa na minha frente. Eu pesquisar melhor as opções desse trata- linfoblástica aguda de células B, linfoma
diminuía nem quando eu sentava nem tinha chegado ao limite: estava com cân- mento no Brasil e ficaram sabendo das não Hodgkin de células B e mieloma
quando deitava. Para passar o dia, eu já cer, com Covid e cegueira parcial. pesquisas do dr. Vanderson Rocha. Pro- múltiplo. Os dois primeiros são feitos pelo

SOBRE
Ministério da Cultura e
Instituto Tomie Ohtake
convidam

PASSÁROS,
SINAPSES
E ERVAS
ENERGÉTICAS
Curador Terça — domingo
Paulo Miyada 11h - 20h
Curador Assistente
Walmor Corrêa Diego Mauro Entrada gratuita
Instituto Tomie Ohtake
23 junho — Imagem: Ondina, Walmor Corrêa
20 agosto 2023 Verifique a classificação indicativa

Patrocínio Idealização e organização Apoio cultural Apoio Produção Apoio de mídia Realização

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sus, com a aprovação da Anvisa. O tercei- febril – complicação que pode atingir as 29 DE MARÇO A 20 DE ABRIL DE 2023_Fi-
ro ainda não está disponível no Brasil. pessoas que fazem tratamento contra o quei quatro dias sem evacuar e, depois,
câncer, quando os neutrófilos sofrem uma tive que voltar à uti por causa de uma
SETEMBRO DE 2022_Fui à primeira con- grande redução, comprometendo ainda crise de diarreia fortíssima. Mais uma in-
sulta com o dr. Vanderson Rocha no Rio mais o sistema imunológico. Junto, tive fecção. Também sofri com os efeitos de
de Janeiro. Ele avaliou o meu caso e pe- uma plaquetopenia grave – redução extre- um antibiótico que tomava para isso e que
diu alguns exames. Quando disse que eu ma do número de plaquetas, algo bem aparentemente afetou minha parte neuro-
tinha cerca de 50% de chance de ficar preocupante para pacientes como eu. lógica. Desde antes da infusão, estou ten-
curado, não pensei duas vezes em rea- do acompanhamento multidisciplinar
firmar do que já havia me convencido: 1° DE MARÇO DE 2023_A Anvisa aprovou a para monitorar e atenuar esses efeitos,
que queria fazer o tratamento car-t Cell. última fase do meu tratamento, a ser feita medicamentosos ou não: neurologista, fi-
Rocha levou todos os meus exames, assim no Hospital das Clínicas da usp. Minha sioterapeuta, psicóloga, infectologista etc.
como as documentações que tive de assi- saúde se encontrava um pouco mais está- Por isso, assim que eu e os médicos
nar, para a análise de um comitê de mé- vel, e eu tinha condições de ser transferido percebemos as minhas mãos tremendo,
dicos e cientistas, que me qualificou para para São Paulo. O apoio da família foi, com espasmos involuntários, e que eu
o tratamento experimental. Essa decisão como sempre, fundamental. Uma vez que me desequilibrava ao me levantar da
me foi informada nesse mesmo mês. No eu não poderia viajar em voo comercial, cama, meus medicamentos foram ajus-
dia seguinte, a Fundação Hemocentro de minha mulher e meus irmãos se juntaram tados. Dias depois voltei ao normal.
Ribeirão Preto entrou em contato comigo para custear um jatinho médico. O plano Em certos momentos, nem comer eu
para fazer a coleta dos linfócitos T (fase 1). de saúde não quis assumir o custo. conseguia porque a colher de sopa tre-
O tempo contava muito rápido para mim mia muito na minha mão. Quando meu
e todos sabiam disso. 2 DE MARÇO DE 2023_Uma ambulância irmão Carlos (dois anos mais velho que
me levou, acompanhado de dois enfer- eu) me visitou, tive que pedir a ele para
4 DE OUTUBRO DE 2022_Na Fundação meiros, do Complexo Hospitalar de Ni- me dar a sopa. Fiquei bem abalado por-
Hemocentro, em Ribeirão Preto, fiquei terói até o Aeroporto Santos Dumont, que isso me fez sentir como uma crian-
três horas em uma máquina especial no Rio, onde peguei um jato de uti ça. Outras vezes, enquanto segurava um
que separa o sangue em estratos. A par- móvel até o Aeroporto de Congonhas, copo de água ou de suco a tremedeira e
te dos linfócitos T foi congelada para em São Paulo. Na capital paulista, uma os espasmos faziam o líquido derramar,
receber o processamento genético. Quan- ambulância me esperava na pista de e eu tinha que chamar a enfermeira.
to mais linfócitos T são coletados, me- pouso e me levou até o Hospital das Clí- A minha caligrafia também era con-
lhor, pois isso permite infundir de volta nicas. Lá, fui instalado no oitavo andar. trolada porque expressava um importan-
um exército do bem muito maior do que Quando um paciente dá entrada no hc, te aspecto de minha cognição. Apesar de
as células de tumores existentes. o protocolo é fazer testagem de Covid. ter trazido o meu notebook, era muito
E adivinha? Testei positivo. A orienta- mais fácil escrever à mão em cadernos.
5 DE NOVEMBRO DE 2022_Soube que o ção era ficar dez dias em um quarto Meu objetivo maior era continuar o livro
processamento do sangue não tinha especial, isolado, até testar negativo três que estou escrevendo sobre a minha jor-
dado certo e que eu precisaria fazer vezes, antes de prosseguir com o trata- nada contra o câncer. Aproveitava – se-
uma nova coleta em Ribeirão Preto. mento contra o câncer. guindo recomendação médica – para
Com o avanço dos linfomas e o au- treinar a minha caligrafia. Outro treino
mento das dores, continuei fazendo 6 DE MARÇO DE 2023_Foi feito um exa- que praticava era de memória e raciocí-
quimioterapia. Nos últimos cinco anos, me de pet-scan para saber qual o está- nio, recorrendo a alguns aplicativos de
já me submeti a 45 sessões de químio e gio do linfoma no meu corpo. Resultado: palavras cruzadas e jogos de memória
15 infusões de imunoglobulina. o linfoma avançou, e muito. que baixei no celular. Joguei várias parti-
das de palavras cruzadas com meu sobri-
7 DE NOVEMBRO DE 2022_De volta à mi- 23 DE MARÇO DE 2023_Eliminada a Co- nho Tomé, quando ele me visitou no
nha casa, depois da sessão de quimiotera- vid, finalmente fiz a infusão de car-t quarto do hospital (o aplicativo permitia
pia de 5 de novembro, eu deveria me Cell. Esse tratamento para pacientes a disputa em dois celulares diferentes).
aplicar com uma seringa, na barriga, um de câncer em estágio avançado é fruto de Além do teste de caligrafia, a equipe
medicamento para aumentar a imunida- muito investimento em ciência e tecno- da neurologia, comandada pela dra. Ana
de – rotina que eu seguia, sempre depois logia – e tudo parece ficção científica. Luiza, fazia sempre outros testes comi-
das químios. Porém, como na minha vida Uma enfermeira chegou com uma bolsa go, antes e depois da infusão. Graças a
nada segue em linha reta, ao pegar o re- plástica pequena contendo um líquido Deus, eu sempre saía com nota 10 dessas
médio em um sábado à noite, descobri meio alaranjado: os linfócitos T modifi- avaliações, o que me deixava cada vez
que a seringa tinha vindo sem a agulha. cados geneticamente. A infusão foi feita mais confiante de que tudo estava indo
Eu não tinha como resolver a situação em uma hora, aplicada na veia, por um bem. As conversas com a psicóloga Syl-
antes de segunda-feira. Acabei não apli- acesso no braço. Pensei: “Como pode via também eram supervaliosas para
cando a medicação e, como passou o minha jornada de treze anos ser resolvi- manter a minha estabilidade mental. Da
tempo correto de fazê-lo, abriu-se em da assim, em 45 minutos?” mesma forma, eram úteis os exercícios
mim uma janela de oportunidade para o de fisioterapia, sempre coordenados por
pior: tive uma colite – inflamação no có- 24 DE MARÇO DE 2023_Tive febre, o Dara e Giovanna. Era o meu momento
lon (porção média do intestino grosso) – e que podia ser um sinal de possível in- de sair do “sufoco” de uma rotina de res-
precisei ser internado de emergência. fecção, e fui então levado para a uti. trições, deixar a cama, andar acompa-
Também tive queda de pressão e preci- nhado ou sozinho. Nessas sessões, quase
5 DE DEZEMBRO DE 2022_Voltei a Ribei- sei tomar um medicamento para isso. sempre eu tinha a oportunidade única
rão Preto para fazer uma nova coleta de Os primeiros catorze dias são os mais de, junto com a fisioterapeuta, ir a um
linfócitos T. Dessa vez, fui sozinho. delicados. É quando podem ocorrer terraço e sentir um pouco do ar livre.
efeitos colaterais, como infecções mais Eram momentos muito reconfortantes
13 DE FEVEREIRO DE 2023_O processamen- sérias, problemas neurológicos etc. As- para mim, porque geravam resultados
to do sangue agora deu certo, bem como sim como mata as células com tumor, rapidamente em minha mobilidade e ser-
a modificação genética dos linfócitos T, e esse exército do bem também é ca- viam para desinchar o meu corpo, espe-
só me falta a aprovação da Anvisa para paz de afetar outras regiões do corpo. cialmente as pernas que tinham sofrido
fazer a última e mais esperada fase do tra- O car-t Cell é como um míssil tele- muito com os tumores. Esses exercícios
tamento car-t Cell. Enquanto eu aguar- guiado: tem precisão, mas intercorrên- também ajudavam a prevenir possíveis
dava, em Niterói, tive uma neutropenia cias não estão descartadas. tromboses, já que na coxa direita havia

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sido detectada uma tromboflebite – um 28 DE ABRIL DE 2023_Recebi alta do Hos- tia. Posso dizer que ressuscitei duas vezes:
risco a mais, que entretanto podia ser ate- pital das Clínicas. Como minha imuni- a primeira vez depois do car-t Cell. A se-
nuado com movimentos frequentes da dade ainda estava baixa e eu precisava gunda, depois daquele choque séptico.
perna. Caminhar, então, virou uma ne- fazer muitos exames em São Paulo, sa-
cessidade para mim. Procurei encarar bendo de todo esse roteiro de monitora- 28 DE MAIO DE 2023_Recebi alta do
esses exercícios como prioritários, até por- mento, desde fevereiro alugamos um Hospital das Clínicas, após ter chegado
que nunca deixei de sonhar que, após re- apartamento perto do hospital. Minha a tomar até cinco antibióticos por dia.
ceber alta, voltarei a praticar vôlei e viver mulher, uma prima dela e eu almoçamos
uma vida relativamente normal. no apartamento. Enquanto isso, no Rio 11 DE JUNHO DE 2023_Dei entrada nova-
de Janeiro, toda a família estava eufórica, mente no Hospital das Clínicas, com um
23 DE ABRIL DE 2023_Desde o início de comemorando a minha alta hospitalar. quadro de febre e pressão baixa. Perdi 3 kg
minha batalha contra o câncer até a rea- Após o almoço, senti uma dor fortíssi- nas últimas duas semanas: estou pesando
lização da infusão do car-t Cell, eu já ma na perna direita. Ana, minha mulher 72,4 kg. Foi apenas uma intercorrência,
tinha feito mais de quinze exames de me deu uma dipirona e um relaxante pois não há mais sinal das células com tu-
diagnóstico por imagem pet-scan. Mas o muscular. Continuei deitado, mas passei mor. Sei, entretanto, que não estou cura-
exame desse dia estava cercado da maior a sentir calafrios mesmo com três cober- do. Será preciso atravessar pelo menos
de todas as expectativas que tive durante tores grossos por cima de mim. Por volta cinco anos sem a presença de células tu-
essa dolorosa caminhada de cinco anos, das seis da tarde, Ana entrou no quarto morais no organismo para falar em cura.
a contar da primeira quimioterapia, em e viu que minha pele estava meio esver-
que me apoiei tanto na ciência quanto na deada. Ela mediu a minha febre: o ter- 16 DE JUNHO DE 2023_Deixei o Hospital
fé. Ontem, precisei tomar remédio para mômetro marcou 40ºC. Eu estava tendo das Clínicas. Minha imunidade está
dormir, tamanha a minha expectativa. um choque séptico, que é causado por baixa e inspira cuidados, por isso conti-
Pensava que Deus devia estar ao meu alguma infecção que se espalha pelo cor- nuo em São Paulo.
lado, justo nesta hora em que eu tinha a po todo. Ela me apoiou até a rua e, junto Hoje aconteceram duas coisas sim-
chance de ganhar uma bala de prata. com a Lucimar Dantas, prima dela, apa- ples para quase todos, mas extraordiná-
Sabia que obter a remissão completa nhamos um carro de aplicativo. Dei en- rias para mim: consegui colocar um
do câncer era algo mais complicado do trada no Hospital das Clínicas com 5 por tênis (com facilidade) e depois fazer uma
que ganhar na loteria. Por isso, muitas 3 de pressão, quase desmaiando. Eu não caminhada. Desde meados de 2021, mi-
dúvidas tomavam conta dos meus pensa- me lembro de nada disso, mas foi o que me nhas pernas e pés, especialmente do lado
mentos: se não ocorrer essa remissão total disseram que ocorreu. direito, estavam bem inchados devido
do câncer, será que poderei me submeter aos grandes tumores na região. Tênis e
a um car-t Cell novamente? Será que o 29 DE ABRIL DE 2023_O quadro de infec- caminhadas só em ocasiões raríssimas
tumor que restar poderá ser tratado com ção piorou. Ana e Lucimar me encontra- (consultas e exames). As grandes vitórias
quimioterapia? E se eu não suportar tan- ram já no quarto da uti completamente começam com pequenos passos!
tos tratamentos? E se suportar, mas ficar descontrolado, chorando e gritando por Tenho um longo caminho pela fren-
com uma sequela grave, neurológica ou nosso filho, Gabriel, que tem 29 anos. Ana te, mas, como carrego a palavra “pere-
física? Poucas horas antes da infusão, tentava me acalmar: “Calma! Calma! grino” no nome, sinto que preciso ser
mandei uma mensagem por celular para Você está curado do câncer! Acabou, aca- mensageiro de uma boa-nova.
a minha mulher, com cópia para o nosso bou! Vou chamar o Gabriel!” Em seguida, No livro que estou escrevendo, vou
filho, reforçando o amor que tenho por ligou para ele, que estava com o braço contar como essa vitória é uma conquista
eles e pedindo que nunca se esqueçam engessado por ter quebrado a mão naque- coletiva, que envolveu médicos, família
disso. Meu plano B era uma despedida le mesmo dia. Ele pegou um voo à noite e amigos. Será também um modo de
antecipada. Acreditava muito que Deus no Rio. As duas então se aproximaram agradecer a Deus e a todos os profissio-
não me abandonaria naquele momento, mais de mim, eu tirei o oxímetro do dedo nais que me ajudaram, desde 2010. Estou
depois de tantas lutas e oportunidades e disse, ainda chorando: “Não preciso pensando em todos eles: o pessoal de
que me concedeu. Não tinha a menor mais disso! Só preciso da mão de vocês!” apoio e manutenção, o grupo de técnicos
dúvida de que a equipe médica, o hospi- Apertei as mãos das duas com firmeza, e e enfermeiros, a equipe multidisciplinar
tal e o tratamento eram do mais alto nível tive a sensação de que estava me despe- da psicologia, neurologia, infectologia e
e que tudo iria dar certo. Mas a vida me dindo para sempre: falei da nossa vida, da fisioterapia, e os médicos oncologistas e
ensinou que eu poderia ter outra prova- nossa família, do nosso único filho... hematologistas. Desde o dr. Paulo Rober-
ção pela frente, como tantas pelas quais to Martins, meu primeiro cirurgião, o
passei achando que era o pior momento 6 DE MAIO DE 2023_Fiquei uma semana dr. Rodrigo Moura, o dr. Leandro Pataro,
de todos – e não era. na uti do pronto-socorro do Hospital das o dr. Daniel Tabak, o dr. Danilo de Oli-
Clínicas, que parece um ambulatório de veira Tavares e o dr. Jorge Luiz da Cunha
24 DE ABRIL DE 2023_Nesse dia, eu sou- guerra, com tanta gente acidentada che- Oliveira – até o dr. Vanderson Rocha e
be que o resultado do tratamento era gando a toda hora. Sou eternamente grato sua equipe, especialmente a dra. Adrien-
espetacular. O car-t Cell eliminou to- a toda a equipe, mas foi um dos piores ne Moreno, no Rio de Janeiro, e todos
das as células com tumor do meu orga- momentos da minha vida. Como os mé- que atuaram no Hospital das Clínicas,
nismo. E olha que eu estava coalhado dicos suspeitavam desde o momento que cujo trabalho incrível levou à remissão
delas, nas regiões do tórax, do abdome, entrei na uti, o foco dessa infecção (septi- do câncer em meu organismo.
das virilhas... O resultado emocionou o cemia) foi um cateter interno que eu im- Estou orgulhoso de fazer parte da histó-
dr. Vanderson Rocha e toda a sua equi- plantei em 2020. Eu estava aguardando ria desse novo tratamento: fui o 14° pacien-
pe. Recebi pelo grupo de WhatsApp da vaga para retirá-lo, mas, por causa do alto te a se submeter ao car-t Cell no Brasil.
minha família a imagem do meu pet- número de pacientes graves, nunca surgia Tudo foi feito pelo sus. Se eu tivesse recor-
scan sem câncer. O dr. Rocha postou em a oportunidade. Muitas vezes ficava horas rido ao sistema privado de saúde, o trata-
uma rede social duas imagens, uma mos- em jejum, por vários dias, pronto para o mento custaria mais de 2 milhões de reais.
trando os tumores, outra com o corpo caso de alguma possibilidade acontecer. Meu filho escreveu em uma rede social:
livre da doença. Na hora eu pensei: “Esse Desesperado, eu perguntava aos médicos “Foram treze anos, praticamente metade
não sou eu. Não posso ter sobrevivido e enfermeiros quando seria isso. As respos- da minha vida, dedicados a essa luta. Nós
com o câncer nesse estágio. Não acredi- tas sempre eram: “Não sei, infelizmente” já estávamos nos preparando para enfren-
to que os tumores tenham sumido com- ou “Talvez daqui a alguns dias”. A incer- tar o pior, mas um verdadeiro milagre rea-
pletamente e em tão pouco tempo. Que teza e os efeitos dos medicamentos sobre lizado pelo sus salvou as nossas vidas.”
após treze anos de luta, tudo tenha se o meu estado físico e mental, além da so- Eu fiquei emocionado com as pala-
resolvido em menos de trinta dias.” lidão, só potencializavam a minha angús- vras de Gabriel. J

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questões criminais

AS VÁRIAS MORTES
DE SOPHIA
A história de uma sucessão de omissões e um assassinato brutal

JOÃO BATISTA JR.

A
bordo do Uber, Stephanie de – Falaram que a Sophia morreu... faz nutos depois, agora numa mensagem – Eu vou me matar – escreve Lei-
Jesus da Silva levava sua filha tempo. de texto. – É tudo minha culpa, descul- theim, às 17h25. – Tô saindo. Não vou
nos braços. Pelo WhatsApp, – Não, não – reagiu Leitheim, tam- pa. Eu vou sair da sua vida. levar o celular nem identidade, para
trocava mensagens urgentes bém chorando numa mensagem de No minuto seguinte, às 17h10, Ste- quando me acharem demorar mais pa-
com Christian Leitheim, pa- áudio. – Mentira, velho, ela piorou do phanie responde com uma pergunta: ra reconhecer o corpo ainda. Desculpa,
drasto da criança: nada? Como que acontece isso? – Os policiais estão aqui, o que é que Stephanie. Vou sair da sua vida. Me man-
– Ela está respirando? – perguntou Sophia de Jesus Ocampo, de 2 anos eu faço? da preso para pelo menos eu me sentir
Leitheim, num áudio. e 7 meses, morrera horas antes de ser – Do quê? – pergunta Leitheim. menos culpado. Se eu tivesse te escutado
– Tá, amor, mas tá bem difícil, ela tá socorrida na upa. No auto de prisão em – Por causa dos hematomas. aquela hora, ela tava bem agora.
quase fechando os olhos – respondeu flagrante de Stephanie, consta que a fi- – Eu não sei, inventa algo ou me man- Depois de cinco minutos, às 17h30,
Stephanie, de imediato. lha “deu entrada no hospital com o cur- da preso. Fala que se machucou no escor- Stephanie escreve uma mensagem:
– Só vai fazendo uma massagem, so de sua vida interrompido, com vários regador do parquinho, igual da outra – Disseram que ela foi estuprada.
fazendo boca a boca. Não deixa essa hematomas pelo corpo”. Acrescenta que vez. Me responde, cara. Tô indo me – Nunca – responde Leitheim, no
guria dormir de jeito nenhum – orde- “as médicas também relataram que a matar no pontilhão. mesmo minuto. – Isso é porque não sa-
nou Leitheim. criança Sophia estava em óbito há cerca Stephanie não responde. bem o que aconteceu com ela e querem
– Pode deixar, eu não tô deixando. de quatro horas, inclusive com início de – Eu não tenho condições de cuidar culpar alguém. Sei que você não vai
Ela até mordeu a minha boca, tá san- rigidez cadavérica”. Diz ainda que, ao de filhos – escreve Leitheim. Em segui- acreditar em mim.
grando horrores – escreveu Stephanie. examinarem o corpo de Sophia, as mé- da, manda um áudio, chorando. – Eu te – Viram o corpinho dela. Abriram
Eram quase cinco da tarde de quinta- dicas levantaram “a suspeita de que a avisei que um dia ia dar azar. Que você ela – insiste Stephanie.
feira, dia 26 de janeiro de 2023, quando referida criança teria sido estuprada”. ia perder suas coisas. Eu te avisei que a – Da minha parte, eu nunca denegri
Stephanie chegou a uma Unidade de – Eu sou um lixo de pai – diz Lei- sua vida ia ficar pior comigo, mas você o corpo dela. Eu juro pela Stella – es-
Pronto Atendimento (upa), na Região theim, chorando, em áudio enviado às não acreditou. creve Leitheim, referindo-se à filha de
Norte de Campo Grande, em Mato Gros- 17h02. – Como que eu não percebi que – Eles falaram que ela morreu faz 7 meses que ele e Stephanie tiveram.
so do Sul. Desceu com a filha e disse na ela precisava ter ido antes? É tudo cul- horas – responde Stephanie, às 17h17, Leitheim manda uma mensagem de
recepção que a menina sentia moleza e pa minha. Eu vou me matar. chorando, numa mensagem de áudio. áudio em seguida:
estava vomitando. Às 16h59, nove minu- Stephanie não responde. – Eu não acredito nisso. Antes de sair de – Se você achar que é verdade,
tos depois de seu último contato com o – Se eu tivesse percebido antes que casa, ela falou com a gente. Ela queria pode me mandar preso. Pode fazer o
marido, Stephanie mandou uma men- ela precisava ir pro médico, ela poderia ir no banheiro. Ela falou, eu não estou que você quiser, já perdi a minha fi-
sagem de áudio, chorando: estar bem – insistiu Leitheim, sete mi- louca. Ela queria ir no banheiro. lha mesmo.

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VALTER PATRIAL_2023

A lápide do túmulo que Sophia divide com Eva, a avó materna de Ocampo: depois da tragédia, Campo Grande registrou aumento de mais de 300% nas denúncias de maus-tratos contra crianças

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(Ao acessar mensagens de WhatsApp, filha.” Prudêncio conta que escutava “o
VITOR MASSAO_2023

a polícia descobriu que, um dia antes de menino [filho de Leitheim de uma relação
Delziene procurar Ocampo, Sophia teve anterior] apanhar e a Sophia gritar” e que
um ferimento na cabeça, que resultou seu marido alertou Ocampo sobre o que es-
em sangramento. Stephanie enviou uma tava acontecendo. Ocampo, no entanto,
mensagem com foto para o marido e diz que só foi alertado sobre maus-tratos
perguntou o que havia acontecido. Ele de animais – não de sua filha.
disse que não sabia, especulou que tal- Prudêncio não lembra a data exata,
vez Sophia tivesse caído da cama e expli- mas garante que, em algum momento,
cou que o sangramento não era resultado fez uma ligação anônima para o Conse-
de agressão de sua parte: “Eu dei um lho Tutelar, denunciou maus-tratos infan-
cascudo nela, mas foi no miolo.” No in- tis e deu o endereço de Stephanie. Duas
quérito, há várias mensagens em que semanas se passaram, e ninguém apare-
Stephanie questiona Leitheim sobre ma- ceu. Prudêncio voltou a ligar e repetiu a
chucados na menina. Ele assume – ta- denúncia. Mais uma vez, nada foi feito.
pas, cascudos, beliscões, mordidas – mas Então, no início de maio, ela fez fotos e
sempre diz que não foram fortes o bas- vídeos da casa, para documentar o mau
tante para deixar marcas.) estado da residência e o tratamento dado
Quatro dias depois, em 31 de janeiro, ao cachorro, e mandou o material para o
Ocampo e seu companheiro foram ao programa Balanço Geral, da Record tv.
Conselho Tutelar, na região norte de O programa acionou a delegacia que cui-
Campo Grande. Naquela altura, não per- da de animais e combinou de acompanhar
ceberam qualquer ferimento na cabeça os fiscais até a residência do casal. No dia
de Sophia. Mostraram as fotos da menina 5 de maio, a batida, filmada pela Record,
que haviam tirado antes e foram orienta- encontrou sangue do cachorro pela casa.
dos a ir à delegacia especializada, onde (O animal veio a falecer.) Stephanie e Lei-
registraram uma ocorrência. O investiga- theim foram levados de camburão até a
dor Sérgio Ricardo de Paula anexou fotos delegacia. Prestaram depoimento, foram
no boletim de ocorrência, mas não ouviu liberados e decidiram mudar de endereço.
o áudio da avó. Explicou que o material No dia em que a reportagem foi ao
Depois de 1 hora e 26 minutos de casquinhas). “Ela ainda me falou ao fim poderia ter sido adulterado, ou a avó po- ar, Ocampo sentiu-se motivado a voltar
silêncio, Stephanie escreve, às 18h58: da conversa: ‘Pode ficar tranquilo, nin- dia ter sido coagida a falar. Ocampo foi ao Conselho Tutelar. Afinal, agora era
– Amor, não vem por enquanto, tá? guém está judiando dela, não.’” orientado a fazer exame de corpo de deli- público que a casa de sua ex-mulher
Só se eles pedirem, a minha mãe disse. Ocampo ficou desconfiado. Tirou fo- to em Sophia. Ele ligou e mandou men- não era um local adequado para uma
Stephanie e Leitheim não trocaram tos dos ferimentos da filha e tentou acio- sagens para pegar a filha, mas Stephanie criança. Ouviu então a promessa de
mais mensagens. nar o Conselho Tutelar e a Delegacia não autorizou. O exame não foi feito. que uma segunda visita seria feita – e
Mais tarde, a autópsia, realizada pelo Especializada de Proteção à Criança e ao No dia 8 de fevereiro, quando final- voltou a receber a orientação de procu-
Instituto de Medicina e Odontologia Adolescente (Depca), mas os dois órgãos mente conseguiu uma folga nos dois tra- rar a Defensoria Pública para reverter a
Legal (Imol), informou que a causa da estavam fechados em razão do recesso de balhos que tinha na época, Ocampo guarda de Sophia. (O Conselho Tutelar
morte foi “traumatismo raquimedular fim de ano. Com o passar dos dias, re- voltou ao Conselho Tutelar, com o bole- diz que voltou duas vezes na casa de
na coluna cervical”, ou seja, lesão na solveu dar um voto de confiança a Ste- tim de ocorrência em mãos. Vânia No- Stephanie, mas, como o casal havia se
estrutura neurológica alojada no inte- phanie e não voltou a acionar nem o gueira, a conselheira mais experiente, viu mudado, nunca encontrou ninguém.)
rior da coluna, e constatou que, recen- Conselho Tutelar nem a Depca. Afinal, as fotos, escutou metade do áudio e suge- Cinco dias depois, em 10 de maio,
temente, o hímen fora rompido. até aquele momento, nunca tinha nota- riu que Ocampo procurasse a Defensoria Ocampo e seu companheiro foram en-
Stephanie, a mãe de Sophia, deixou do nada de diferente na filha e, como Pública para solicitar a reversão da guar- viados a um endereço da Defensoria
a upa algemada. Seu companheiro, com sempre pegava a menina na calçada da da da filha. No dia seguinte, integrantes Pública, de onde lhes mandaram para
quem vivia havia um ano e quatro me- casa de Stephanie, ele também desco- do Conselho Tutelar foram à casa de outro endereço, de onde lhes mandaram
ses, foi detido em flagrante dentro de nhecia as condições da moradia da ex- Stephanie. “Fizemos a visita, mas não foi para um terceiro endereço – onde, en-
casa. Não ofereceu resistência. Chamou mulher. Mas, menos de um mês depois, constatada agressão na criança”, disse fim, foram recebidos. Mostraram as fo-
a atenção de um policial que, durante o no dia 27 de janeiro de 2022, seu voto de Nogueira, em entrevista à piauí. No dia tos, o áudio da avó e o programa da
percurso até a delegacia, Leitheim ador- confiança começou a desmoronar. 17 de março, Stephanie e Delziene pres- Record. Para iniciar o processo, os advo-
meceu dentro da viatura. A mãe de Stephanie, Delziene de taram depoimento na Depca, em razão gados públicos pediram três pessoas que
Jesus, chamou Ocampo para uma conver- da ocorrência aberta por Ocampo. Ao atestassem os maus-tratos – mas nem seu

N
o dia 31 de dezembro de 2021, Jean sa em particular na casa dela. Ocampo depor, a avó de Sophia não falou em companheiro, nem a avó da menina po-
Carlos Ocampo da Rosa, o pai bio- foi até lá. Antes de apertar a campainha, maus-tratos e amenizou as coisas. Disse diam constar no rol de testemunhas.
lógico de Sophia, ficou assustado. achou prudente acionar o gravador do apenas que sua filha “ultimamente esta- “Pedi para as vizinhas da Stephanie, mas
Sua filha fora passar a virada do ano com celular. Ao longo de 1 hora e 2 minu- va muito estressada”, que às vezes aca- ninguém aceitou”, diz Ocampo. Mesmo
ele, mas apareceu com o rosto, o pescoço tos de gravação, Delziene descreveu bava “descontando na Sophia” e agia de o marido de Prudêncio recebeu o pedi-
e as orelhas avermelhadas, como se tives- graves problemas na casa de sua filha, “forma ríspida demais” com uma criança do por WhatsApp, mas não respondeu.
se sofrido beliscões ou tapas. Comentou que, naquele momento, estava grávida tão pequena, mas nada além disso. No dia 20 de julho, uma equipe da De-
sua estranheza com seu companheiro, de Stella. Disse que a casa estava inabi- Enquanto isso, uma vizinha de Stepha- fensoria visitou Ocampo para verificar se
Igor de Andrade Silva Trindade, com tável a ponto de encontrar até um gato nie observava que, desde a chegada de a sua casa tinha condições de receber
quem vive desde que se separou de Ste- morto dentro do sofá, cujo mau cheiro Leitheim à casa, a rotina havia mudado. uma criança. Deu tudo certo, mas con-
phanie. Quando os dois foram trocar empestava o ar. Como Stephanie e Lei- O lugar se tornara insalubre. A garagem, tinuavam faltando as três testemunhas.
as fraldas de Sophia, então com 1 ano e theim não tomavam providência, Del- aberta para a rua, começou a acumular Em setembro, Ocampo recebeu inti-
6 meses, viram que a menina tinha man- ziene pediu ajuda a um vizinho para fezes de cachorro, fraldas usadas, latas de mação para comparecer a uma audiência
chas roxas nas costas e nas pernas, arra- remover o bicho – e tiveram que jogar cerveja e restos de comida, atraindo inse- judicial em razão do boletim de ocorrên-
nhões e cascas de feridas em várias partes até o sofá no lixo. Contou ainda que sua tos e roedores. O cachorro era maltratado cia lavrado em janeiro. Em 20 de outu-
do corpo. “Liguei para a Stephanie para filha “não media forças” na hora de cor- e vivia mal alimentado. Kelly Prudêncio, bro, ele compareceu à 10ª Vara do Juizado
saber o que estava acontecendo”, conta rigir Sophia. Não falou em agressão, a vizinha, lhe dava comida. Como havia Especial. Na sala de audiência, sentado
Ocampo. Ouviu a ex-mulher dizer que mas deu a entender que a menina vi- muito choro de criança, ela sugeriu a Ste- sozinho com o tronco ligeiramente incli-
Sophia tinha caído do carrinho (para as nha apanhando. Ocampo disse que pe- phanie que deixasse Sophia com o pai. nado à frente, parecia acuado diante da
manchas roxas e vermelhas) e brincado diria a guarda de Sophia. “Vai que eu te “Sabe o que ela me disse?”, conta Prudên- juíza Eliane Vicente, como se pode ver
com um gato de rua (para os arranhões e ajudo”, incentivou a avó. cio. “Dois homens não vão criar a minha no vídeo da audiência. “Depois que co-

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mecei o processo e comecei a pegar ela me ajudou”, diz Ocampo. Os dois foram e voltou a ficar com Ocampo entre os casa. Juntou o dinheiro como cuidador
[Sophia] com mais frequência, não apare- à casa de Stephanie e, enfim, consegui- dias 8 e 15 de janeiro. de idosos em dois empregos diferentes e,
ceu mais nada como no dia 1º deste ano”, ram convencê-la a deixar a menina com o Foi a última vez que o pai viu a filha com 16 mil reais na poupança, financiou
disse, referindo-se aos hematomas. A ma- pai. “Se ela não me desse a Sophia naque- com vida. uma casa de dois quartos do programa Mi-
gistrada perguntou se Ocampo queria la hora, eu ia chamar a polícia”, conta ele. nha Casa Minha Vida. Casou-se com Ste-

J
abrir um processo criminal contra a mãe Na manhã do dia seguinte, Ocampo ean Carlos Ocampo da Rosa, enfer- phanie no cartório e se mudaram para lá.
de sua filha. Ele disse que não. Queria voltou à delegacia para prestar nova quei- meiro, 28 anos, nasceu em uma famí- Como era o único com um trabalho
apenas encerrar a guarda unilateral. xa, desta vez levando Sophia com a perna lia modesta em Campo Grande, fixo, assumiu a prestação de 502 reais do
“Quero a guarda compartilhada, quero engessada. Seu companheiro, Trindade, capital de Mato Grosso do Sul. É o mais imóvel. A vida do casal era um poço de
que a Sophia tenha um período comigo. outra vez, não foi autorizado a acompa- velho de quatro filhos. Seu pai era pedreiro discussões quando Stephanie engravidou.
Não posso tirar o direito dela de ser a mãe nhar Ocampo no registro do boletim de e a mãe, uma devotada fiel evangélica da Os dois decidiram dar mais uma chance
da minha filha”, disse. Stephanie não ocorrência. Ocampo fez um relato minu- Igreja Batista Videira, era dona de casa. à relação. Durante a gravidez, Ocampo
apareceu na audiência porque não foi no- cioso do que vinha acontecendo. A psicó- “Fui criado em um ambiente preconcei- ganhou um novo colega de trabalho. Era
tificada em seu novo endereço. loga Rosiane Basualdo Hernandes, que tuoso e homofóbico”, diz Ocampo. Na Igor Trindade, então com 25 anos. Ficaram
No dia 16 de novembro, Ocampo re- atende na Depca, conversou com Sophia. puberdade, quando notou sentir desejo amigos, Trindade passou a frequentar
cebeu um telefonema de Stephanie, avi- Perguntou se alguém tinha machucado por meninos, chorava sozinho em seu a casa de Ocampo e também se tornou
sando que Sophia estava na upa com sua perna. “Foi o papai”, respondeu. Per- quarto pensando estar condenado a ir para amigo de Stephanie. Foi convidado para
dores de estômago e enjoos. Ele foi até o guntou de novo. “Foi a mamãe”, disse. o Inferno. Aos 14 anos, sua mãe começou ser padrinho de batismo de Sophia. Ocam-
local. Notou que a menina estava mole, Hernandes não conseguiu falar com So- a fazer cobranças. “Tá na hora de arrumar po acabou se apaixonando pelo amigo
tomando medicação intravenosa, com o phia sem a presença de Ocampo, pois a uma namoradinha”, dizia. Para acabar – e a paixão era recíproca. Quando So-
corpo envolto em uma toalha de banho. criança chorava e pedia a presença do com a pressão e tentar se livrar de desejos phia tinha 3 meses, Ocampo se divorciou.
Stephanie disse que ela havia vomitado. pai. Assim, Hernandes concluiu que não pecaminosos, ficava com garotas, mas as Saiu de casa apenas com suas roupas e
(Mais tarde, quando a polícia teve acesso podia validar o depoimento. (Sophia cha- relações duravam pouco. Também come- voltou à casa dos pais.
às mensagens trocadas entre Stephanie mava de “papai” tanto o pai biológico çou a ficar com meninos. “Depois, eu caía Sua vida virou um inferno. Concor-
e Leitheim, descobriu que, naquele dia, quanto o padrasto. Trindade era o “papai no choro e pedia a Deus para me perdoar.” dou em pagar 1 mil reais de pensão para
Sophia fora espancada. “Dei uma surra urso”.) Como era um caso de reincidên- O curso de sua vida mudaria em feve- Stephanie e, para tanto, trabalhava sete
na Sophia, só para alertar, porque ela cia, Ocampo tinha esperança de que a reiro de 2017. Aos 22 anos, ainda incerto dias na semana, entre 12 e 18 horas por
não quis comer”, escreveu Leitheim. filha seria afastada de imediato da casa de sobre sua sexualidade, Ocampo conheceu dia. Enquanto isso, como não aceitava a
O prontuário mostra que a criança esta- sua ex-mulher. Frustrou-se ao ouvir o es- uma adolescente em uma festa na casa de homossexualidade do filho, sua mãe pas-
va com “dores no dorso esquerdo”, o que crivão da Depca, Nestor de Souza Fi- um amigo. Era Stephanie, aos 18 anos. Os sou a convidar a ex-nora para frequentar
não tem relação com dores no estômago, lho, comentar: “É mais fácil tirar o filho dois sentiram uma atração mútua e come- a casa, numa tentativa de reaproximar
nem com enjoos.) de um pai do que de uma mãe.” Ocam- çaram a paquera. Com a família ardendo o casal. Quando a situação ficou insus-
Dois dias depois, em 18 de novembro, po deixou a delegacia sem ter sido orien- em tumulto, com a mãe homofóbica e o tentável, Ocampo pegou suas roupas
Sophia deu entrada de novo na upa. Se- tado a levar Sophia para fazer exame de pai alcoólatra a bater na mulher e nos fi- e mudou-se para a casa de Trindade.
gundo a mãe, a menina estava com febre corpo de delito, E, como não recebe- lhos, Ocampo fez um plano para sair de Revoltada, sua mãe deixou de chamá-lo
devido a uma intoxicação alimentar. Ela ram o exame, os policiais encerraram
avisou Ocampo e mandou uma foto da o caso e enviaram para a Justiça. (Já o
criança. Sophia aparecia com a perna es- caso resultante do primeiro boletim de
querda engessada. Ocampo ficou atônito. ocorrência, registrado no início de 2022,
Como uma intoxicação alimentar acaba acabou arquivado pela Justiça depois
com uma perna engessada? “Ela falou que o Ministério Público considerou que
que a minha filha tinha caído no banho se tratava de “um fato isolado”.)
quando foi pegar um xampu no chão”, Sophia ficou com o pai biológico até
relembra Ocampo. Stephanie então o dia 25 de novembro. Nesse período,
mandou um áudio da menina dizendo enquanto assistia vídeos de desenhos no
que estava bem. No meio da fala, Ocam- YouTube, a menina começava, de repen-
po ouviu sua filha dizer “tô com medo”. te, a chorar e dizer “papai bateu, papai
Stephanie tirou o celular e disse que ela brigou”, segundo contam Ocampo e seu
estava “com medo do barulho do ar-con- companheiro. Quando chegou a hora de
dicionado”. (Mais tarde, Iori, o filho de retornar para a casa da mãe, a menina
Leitheim de outra relação que ainda não voltou a chorar. “Eu questionei por que
completara 5 anos, foi ouvido pela polícia a neném aparecia com sinais de mordi-
sobre o episódio da perna. O menino dis- das e apertões. A Stephanie dizia que era
se: “Foi meu pai, meu pai chutou ela pela culpa do Iori”, conta Ocampo.
rua, chutou ela duas vezes, aí deixou ela No dia 10 de dezembro, Ocampo re-
machucada.” Mais adiante, repetiu: “Re- solveu levar Sophia na festa de confrater-
gaçou [sic] a perna dela, pegou, fez assim, nização do trabalho de seu companheiro.
depois beliscou a perna dela.” Iori tam- Era em uma chácara, com piscina e área
bém contou que seu pai fazia ameaças a verde, ideal para crianças. Stephanie au-
Ocampo, caso ele conseguisse a guarda torizou que a levasse. Ocampo foi à casa
de Sophia: “Senão meu pai ia pegar, es- da ex-mulher e, pela primeira vez, encon-
fregar a cara dele no chão, ia falar, e ia trou-se com o padrasto de sua filha. Ao
pegar a faca, cortar o pescoço dele.”) entregar a menina, Leitheim disse que o
Angustiado com a situação de sua fi- gesso estava enrolado em papel-filme
lha, Ocampo tentou pegá-la um dia de- porque sua enteada havia se urinado. Em Exposição Temporária | Rainhas de Copas

pois da fratura na perna. A mãe não casa, sentindo mau cheiro, Ocampo deu Patrocínio Máster Patrocínio Apoio

autorizou. Ele enviou mensagens de novo banho na filha. O odor continuava. No


nos dias 20 e 21 de novembro, mas, desta caminho para a festa, comprou uma bota
vez, Stephanie nem respondeu. Ocampo ortopédica e, ao chegar à chácara, cortou
então decidiu pedir ajuda à sua mãe, Gre- o gesso. “A perna da menina estava esver- Museu do Futebol
gória, com quem não tinha boa relação deada”, diz Trindade. Ela sentiu-se bem Gestão Parceria de Mídia Concepção

em decorrência de sua homossexualida- com a bota e aproveitou o dia. Passou


de. Gregória decidiu agir em favor da duas semanas na casa do pai, depois do
neta. “Foi a única vez em que minha mãe Natal retornou para a casa de Stephanie Realização

piauí_julho 63
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dos Direitos da Criança e do Adolescente, O assassinato de Sophia comoveu
VITOR MASSAO_2023

atribuiu tudo a uma falha de comunica- Campo Grande. Assim que as primeiras
ção. Quando Ocampo tentou pedir a notícias começaram a ser publicadas, hou-
mudança da guarda, os defensores enten- ve um aumento de denúncias de maus-
deram que ele já estava com Sophia. tratos infantis por tios, pais e avós. “Foi um
“Não existia um risco, pois ele falou que aumento de mais de 300%”, diz uma fon-
a criança estava com ele. Ele queria regu- te ligada à rede de proteção de menores
larizar a guarda para ficar em seu nome”, que falou sob a condição de se manter
diz ela. Sobre as três testemunhas que a anônima porque não tem autorização
Defensoria exigiu para abrir o processo, para dar entrevistas. A Secretaria de Esta-
Paulino admite que não era um elemento do de Justiça e Segurança Pública, moti-
fundamental. Por fim, quando tudo esta- vada pela comoção pública, determinou
va certo para “regularizar” a situação da que, a partir de agora, o exame de corpo
guarda – na verdade, era para revertê-la –, de delito deve ser feito logo depois do re-
Ocampo não levou os documentos neces- gistro do boletim de ocorrência. A respon-
sários, como rg, cpf e contracheque. sabilidade de levar a criança ao Imol passa
Confrontado com as alegações da a ser da própria delegacia. Antes, a delega-
Defensoria Pública, Ocampo ficou in- cia se limitava a emitir uma guia para que
dignado. “Tudo não passa de uma gran- o responsável pelo menor fizesse o exame.
de mentira”, diz ele. “Quando a equipe Em outra mudança, uma unidade da
psicossocial da Defensoria esteve em Depca passará a fazer plantão nos feria-
casa, eu mais de uma vez falei que a dos. Está em estudo a criação de mais
Sophia não morava comigo e, sim, com uma instância na rede de proteção: a Casa
a mãe dela. E, dentro da minha casa, da Criança de Campo Grande, que deve-
mais de uma vez me exigiram que apre- rá acolher crianças vítimas de agressão.
sentasse três testemunhas. Caso contrá- As novas iniciativas podem ajudar a
rio, eu não conseguiria a guarda da evitar a repetição da tragédia, mas até
minha filha. Eles sabiam perfeitamente aqui não há responsáveis pelo que acon-
que eu não tinha a guarda.” E acrescen- teceu. Todos os agentes públicos – os
para os encontros familiares, nem liga- * Sophia deu entrada na upa da re- ta: “Além disso, foi a própria Defensoria médicos, os defensores públicos, os con-
va para ter notícias, mas a nova sogra o gião norte em doze ocasiões. Em seu pron- Pública quem fez o meu divórcio. Eles selheiros tutelares, os policiais – afirmam
recebeu de braços abertos. tuário, não há registro de que algum tinham todos os meus documentos ar- que agiram corretamente. A defensora
Nos termos do divórcio, homologado profissional tenha constatado maus-tra- quivados no sistema.” pública Neyla Mendes, do Cedhu/ms,
em maio de 2022, a casa financiada fi- tos – que apareceram nos laudos feitos O Conselho Tutelar também refuta insiste no seu ponto. “Toda a rede de pro-
cou com Stephanie e a pensão alimentí- depois da morte da menina. qualquer responsabilidade. “As pessoas teção falhou”, diz ela. “No sistema de
cia foi reduzida para 306 reais. Stephanie * A Delegacia Especializada de Pro- acham que o Conselho é o culpado. Isso saúde, na delegacia, na Defensoria Públi-
ficou com a guarda exclusiva de Sophia, teção à Criança e ao Adolescente foi acio- foi muito terrível para nós”, diz Vânia ca, no Conselho Tutelar. O pai da So-
mas estabeleceu-se que Ocampo teria nada duas vezes e registrou dois boletins Nogueira. “A Saúde tem de chamar o phia buscou ajuda em todas as pontas da
“visitas livres”, a serem combinadas pre- de ocorrência. Numa ocasião, o escrivão Conselho Tutelar e a polícia.” Adriana rede de proteção, mas nada foi feito.”
viamente. “O divórcio foi bom porque, dispensou o áudio da avó materna de So- Marques, conselheira que trabalha na Para ela, a homofobia também pode ter
antes de assinar esse documento, ela não phia porque podia ter sido adulterado, mesma entidade, responsabiliza Ocam- contribuído para o desfecho trágico. Ocam-
me deixava ver a Sophia.” Nesta época, quando deveria ter investigado se havia po. “Quero saber: por que ele devolveu po e seu companheiro nunca foram tra-
a menina passava o dia na casa de Gre- adulteração, e não dispensar de imedia- a criança para a mãe diante de toda a tados como um casal de pais – mas como
gória, a avó paterna, e dormia na casa da to uma prova. situação [refere-se, neste caso, à perna que- apenas um pai – que vivia uma situação
mãe. Quando deixou de mamar no pei- * A Defensoria Pública nem deu en- brada]? Se acontece comigo, eu não en- dramática e precisava de apoio.
to, em julho de 2021, começou a dormir trada com o pedido de Ocampo para tregaria o meu filho. Ele não foi no Imol “Esse crime bárbaro e cruel só aconte-
também na casa do pai. reverter a guarda de Sophia por falta [fazer o exame de corpo de delito], e aí?” ceu porque o casal contou com a compla-
Nessa época, Stephanie iniciou um das “três testemunhas”, apesar das fotos, Ao ser informada que o pai de Sophia não cência e omissão dos órgãos de proteção”,
novo romance, e Sophia continuava uma do áudio e do programa da Record tv. tinha a guarda da menina e temia ser pre- resume Janice Andrade, a advogada que
criança saudável. Em setembro de 2021, * O Conselho Tutelar foi acionado so por não devolvê-la à ex-mulher, Mar- defende Ocampo. Em maio passado, du-
porém, a mãe conheceu Christian Lei- duas vezes por Ocampo. Uma vizinha ques disse: “Isso não é justificativa.” rante um seminário sobre violência sexual
theim, filho de um militar com uma garante que ligou outras duas vezes, ano- A Polícia Civil defende sua atuação infantil promovido pelo Instituto Liberta
dona de casa. Daí em diante, tudo mu- nimamente. O caso rendeu três visitas à no caso. Em nota à piauí, disse: “A upa e o jornal Folha de S.Paulo, Ocampo con-
dou. Sophia deixou de passar os dias com casa de Stephanie – nenhuma com des- foi contatada e supriu o inquérito poli- tou sua tragédia pessoal e, pela primeira
a avó paterna, e os encontros com o pai bio- dobramento prático. Numa visita, não cial de todas as diligências necessárias, vez, disse: “Sinceramente, do fundo do
lógico ficaram mais difíceis. Leitheim, constaram problema. Nas outras duas, encaminhando os prontuários médico- meu coração, eu aconselharia o pai a fugir
aos 24 anos, não trabalhava e passava o não encontraram ninguém em casa. hospitalares da criança, permitindo a com a criança. Porque, onde eu fui pedir
dia em casa com as crianças e com seu A Secretaria Municipal de Saúde de instrução do procedimento e melhor ajuda, não me atenderam. Se eu tivesse
jogo de videogame – o nome do primeiro Campo Grande, em nota enviada à materialidade do crime.” Acrescenta fugido, a minha filha estaria viva.”
filho, Iori, é uma homenagem a um per- piauí, diz que a equipe médica da upa que a investigação sobre as passagens

S
sonagem do King of Fighters, série clássi- não acionou o Conselho Tutelar nem a de Sophia pela upa não “apontou qual- tephanie e Leitheim estão presos
ca de jogos de luta. Até que, no dia 31 de polícia porque nunca identificou em quer tipo de negligência”. Quando a de forma preventiva em peniten-
dezembro de 2021, Sophia apareceu na Sophia “sinais que indicassem uma criança apareceu na unidade de saúde ciárias diferentes. Ela é suspeita
casa de Ocampo com as manchas roxas, suspeita de agressão ou maus-tratos”. com a perna quebrada, “o prontuário de omissão. Ele é suspeito de estupro de
os arranhões, as cascas de feridas – era o A própria equipe médica, quando de- indicava ‘queda da própria altura’ e que vulnerável. E ambos são suspeitos de ho-
início de um ciclo trágico. pôs durante as investigações, reforçou a criança estava acompanhada da mãe micídio qualificado por motivo fútil.
que nunca percebeu nada de anormal. e da avó”. Diante disso, a polícia con- Podem ser condenados a mais de 40 e

“A
Sophia só está morta pela omis- No entanto, apesar disso, a Secretaria de cluiu: “Logo, não havia sinais de que 45 anos de prisão, respectivamente. A avó
são do Estado.” A frase é da Saúde abriu uma sindicância “para apu- sofria algum mal.” materna, Delziene de Jesus, está sendo
defensora pública Neyla Men- rar se houve falha ou omissão por parte A delegada Anne Karine Trevisan, investigada por omissão e falso testemu-
des, do Conselho Estadual de Defesa dos da equipe”. A investigação é sigilosa. responsável pela Depca, onde Ocampo nho porque encobriu os maus-tratos.
Direitos da Pessoa Humana de Mato Na Defensoria Pública, Débora Maria lavrou dois boletins de ocorrência por Em depoimento à Justiça, o casal con-
Grosso do Sul (Cedhu/ms). As omissões de Souza Paulino, coordenadora do Nú- maus-tratos, não respondeu ao pedido tou que, ao receber amigos em casa, havia
ocorreram em cada etapa do processo: cleo Institucional de Promoção e Defesa de entrevista. consumo de álcool e cocaína. “Pratica-

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mente todo final de semana”, disse Ma- tar, nem informar qual linha de defesa não está mais conosco”, disse o policial. traumas e hemorragias, a barriguinha es-
theus Siqueira, amigo de Leitheim há será adotada. Um dos integrantes da equi- O pai da criança então olhou para a avó tava inchada. As duas mãos estavam
catorze anos. Siqueira contou que, na pe, o advogado Renato Cavalcanti Fran- materna ali presente, que disse: “A Justi- contorcidas para dentro. Trindade se re-
véspera do assassinato de Sophia, no dia co, foi preso por pedofilia em outubro de ça vai ser feita.” Ocampo caiu no chão, compôs do choque e atentou para um
25 de janeiro, saiu com Stephanie para 2020, quando a polícia encontrou mate- recolheu-se em posição fetal e teve uma detalhe: “Por que a Sophia está de fralda?”
comprar cocaína por volta das nove da noi- rial pornográfico infantil em seu com- crise de choro. Duas médicas chegaram Havia mais de seis meses que a menina
te, enquanto as três crianças – Sophia, Iori putador. Ele defendeu-se dizendo que o à recepção e tentaram acalmá-lo. fora desfraldada. Então uma das médicas
e Stella – ficaram em casa com Leitheim conteúdo estava ali para poder apresentar Em um local mais reservado do cen- olhou para os olhos azuis de Ocampo e
e outros amigos. Na volta, Siqueira disse um trabalho acadêmico. Mas, segundo tro de saúde, as pediatras plantonistas falou: “Pai, mexeram com a sua filha na
que passou a noite cheirando cocaína. o procurador do caso, Franco comparti- Thayse Capel e Sheila Freire Zanenga frente e atrás.” Na verdade, não se sabe ao
Camila Garcia de Rezende, advogada lhou na rede 519 arquivos. Foi solto por começaram a explicar o que tinha acon- certo a razão do uso de fraldas, mas a frase
de Stephanie, diz que sua cliente tam- um habeas corpus em 2021. A primeira tecido para Ocampo e Trindade. Deram marcou o fim trágico de uma busca vã.
bém era vítima de violência doméstica e audiência do seu caso está prevista para detalhes sobre o estado da criança quan- Ocampo voltou a trabalhar como téc-
só não denunciou Leitheim porque ti- este mês de julho. Sua carteira de registro do chegou na upa e, abaladas, começa- nico em enfermagem há dois meses. Ele
nha medo de perder a guarda de Stella. na Ordem dos Advogados (oab) em Mato ram a chorar. “Ela deu entrada sem vida, toma antidepressivos e ansiolíticos. A re-
Ao contrário do que diz o laudo do Imol, Grosso do Sul está suspensa, em razão já tinha morrido pelo menos quatro ho- lação com Gregória, sua mãe, piorou.
a advogada sustenta que Sophia chegou de ter atuado quando estava de licença. ras antes de chegar aqui. O corpo dela “Mesmo depois das provas de agressão,
viva à upa no dia 26 de janeiro. “A Ste- Por isso, na defesa de Leitheim, Franco já apresentava rigidez cadavérica”, disse das mensagens de celular, dos hemato-
phanie mandou para sua mãe uma foto vem usando a carteira registrada na oab uma delas, emocionada. mas, mesmo depois de tudo isso, minha
da Sophia dormindo, ainda com vida, às de Santa Catarina. No depoimento à equipe policial, as mãe teve a coragem de falar que a Sophia
14 horas daquele dia”, disse ela. A foto, no médicas repetiram o que contaram para só morreu porque eu me separei da Ste-

N
entanto, não está anexada nos autos. o dia 26 de janeiro deste ano, an- Ocampo e Trindade: que Stephanie “es- phanie, como se a culpa fosse minha.”
Recentemente, a advogada distribuiu tes de sair para o trabalho, Jean tranhamente estava muito tranquila” e só Nas últimas semanas, sua mãe voltou a
para a imprensa uma carta escrita de pró- Carlos Ocampo da Rosa enviou “demonstrou nervosismo quando soube ligar, ensaiando uma reaproximação.
prio punho por Stephanie, supostamente uma mensagem de WhatsApp à sua ex- que a polícia seria acionada”. Eles ouvi- Gregória não estava sozinha. Quando a
endereçada para uma amiga – cujo nome mulher. “Olá, bom dia, a neném tá ram o relato aos prantos. Junto com as notícia do assassinato de Sophia saiu na
está encoberto. Diz o texto: “Não fiz nada bem? Me avisa quando der para pegar médicas, os dois, acompanhados por um imprensa, em muitos casos Ocampo não
com a minha joia mais preciosa que era a ela? Obg”, escreveu, às 8h22. Dois dias irmão de Ocampo, entraram em outra foi tratado como o pai que tentou salvar
Soso, que agora está brincando com os antes, ele tinha enviado uma mensagem sala. Uma maca deslizou no chão de azu- a filha, mas como o gay que a matou.
anjos e orando por nós. [...] Eu fui covarde com o mesmo pedido: “Olá, boa tarde, lejo branco com o corpo de Sophia. Quan- Entre as ofensas postadas nas redes so-
de não ter denunciado esse monstro antes, a Sophia tá bem? Você tem alguma pro- do as médicas removeram o lençol branco ciais, recebeu mensagens como: “Teria
pelas agressões físicas e psicológicas a gramação com ela para amanhã? Gos- que a cobria, foi um choque. um final feliz se os pais estivessem jun-
mim, mas principalmente com a Soso e taria de pegá-la, levar ela para sair.” Desde A pele de Sophia exibia sinais de es- tos” e “Engole o choro e faz o L”. Para seu
com o Iori.” Stephanie também diz que que tinha devolvido a criança para a mãe pancamento. Havia sangramento pelas companheiro, chegou uma mensagem
nunca deixará “de amar o Jean, [apesar] no dia 15 de janeiro, Ocampo não reen- narinas, ouvidos e olhos. Em razão dos assim: “Você é um verdadeiro verme”. J
de tudo que sofri por conta da nossa sepa- contrara a filha. Estava com saudades
ração”. Na prisão, Stephanie passou a fre- da menina, e preocupado com a ausên-
quentar cultos religiosos. Sua carta está cia de respostas. O dia 26 transcorreu
crivada de “Nosso Senhor”, “Espírito San- sem que Stephanie sequer visualizasse Ministério da Cultura e Museu de Arte
to” e “Jesus”. “Deus” aparece seis vezes. a mensagem. (Ela só leu a mensagem às Moderna de São Paulo apresentam

No dia 22 de maio, em depoimento à 19h30, quando sua filha já estava decla-


Justiça, Andressa Victoria Fernandes Ca- radamente morta.) Ao fim do expedien- Elementar: fazer junto
nhete, mãe de Iori e companheira ante- te, pouco depois das 18 horas, Ocampo sala Milú Villela
rior de Leitheim, contou que ela própria passou no trabalho de seu companhei- 15 jun a 13 ago 23
foi vítima de violência doméstica, razão ro e voltaram juntos para casa, no bairro
pela qual rompeu o relacionamento. Nas Vivendas do Parque. curadoria
vezes em que esteve na casa de Stepha- Como estavam sem sinal de wi-fi em Valquíria Prates, Mirela Estelles e Cauê Alves
nie e Leitheim para pegar Iori, ela perce- casa, os dois foram até a mãe de Trinda-
beu a dinâmica de agressões do casal. de, que é vizinha de muro. Assim que o
artistas
Disse, ao depor, que os dois eram “muito sinal de internet entrou, os telefones de
Anna Bella Geiger, Arthur Lescher, Caio Reisewitz,
agressivos com a menina” e que presen- Ocampo e Trindade não pararam de mos- Claudia Andujar, Chelpa Ferro (Luiz Zerbini,
ciou “diversas vezes” um deles “batendo trar notificações. Os irmãos de Ocam- Barrão e Sergio Mekler), OPAVIVARÁ, Dora Longo
nas mãos, costas e cabeça de Sophia”. po e sua ex-sogra disparavam mensagens Bahia, Edouard Fraipont & Cildo Meireles, Fausto
Contou ainda que Leitheim “deixava para saber “se ele estava sabendo”. Ocam- Chermont, Frans Krajcberg, Franz Weissmann,
Sophia de castigo trancada sozinha no po não sabia nem do que se tratava. German Lorca, Jac Leirner, Jarbas Lopes, José
quarto” e que ele lhe contou que tam- Ligou primeiro para o seu irmão Davi. Leonilson, Julia Amaral, Laura Vinci, Leda Catunda,
bém brigava com Stephanie porque não Quando perguntou o que estava aconte- Lia Menna Barreto, Luiz Braga, Mabe Bethônico,
queria que a enteada visitasse o pai bioló- cendo, ouviu uma pergunta: “Você não Marcia Xavier, Marcius Galan, Marcos Piffer,
gico, por se tratar de um homossexual. sabe?” Assustado com a resposta nega- Marcelo Cidade, Marcelo Nitsche, Marcelo
Moscheta, Marcelo Zocchio, Maureen Bisilliat,
Até agora, todas as informações cap- tiva de Ocampo, Davi ficou paralisado,
Motta & Lima, Nelson Leirner, Paulo Bruscky,
turadas em celulares vêm do aparelho sem coragem de dar a notícia, e desligou.
Pedro Motta, Pedro David, Regina Silveira, Rodrigo
de Stephanie. Leitheim forneceu a se- Ocampo entrou em desespero. Aturdi- Andrade, Rodrigo Bueno, Rodrigo Braga, Rodrigo
nha do seu celular. A polícia teve acesso do e sem reação, seu companheiro to- Matheus, Sandra Cinto, Sara Ramo, Shirley Paes
completo, constatou que havia 3 gigas mou as rédeas da situação e ligou para Leme, Tarsila do Amaral, Tatiana Blass, Tadeu
de material – fotos e vídeos, inclusive. Pedro, outro irmão de Ocampo. Antes Jungle, Thomas Farkas e Vulcânica Pokaropa.
Em abril, o Ministério Público pediu que Trindade falasse “alô”, Pedro disse:
uma perícia no conteúdo, mas até ago- “A Sophia morreu.” Ocampo teve uma museu de arte reserve seu ingresso
ra, não foi realizada. “O laudo desse crise nervosa. moderna de são paulo mam.org.br
material é fundamental para que os réus Os dois subiram aos prantos na moto ter a dom, 10h às 18h @mamsaopaulo
sejam escutados na audiência de instru- e foram até a upa que atendera Sophia, a Parque Ibirapuera
ção”, afirma Janice Andrade, advoga- Portões 2 e 3
12 km dali. Na recepção, um policial foi
da de Ocampo. em direção aos dois. Ocampo, em esta-
Os defensores de Leitheim, procura- do de negação, perguntou ao agente se
dos pela piauí, não quiseram se manifes- sua filha estava bem. “Não, a sua filha patrocínio realização

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questões venais

Brigitte Bardot e Michel Piccoli em O Desprezo: pairando sobre as bagatelas éticas do romance de Alberto Moravia, o filme celebra o fato de ter se vendido e se delicia argutamente consigo

DESPREZOS
Um estudo sobre o que é e o que não é lucro em Homero, Moravia e Godard

ANNE CARSON

“S
eu vendido!”, gritou o ela, briga com ela e a põe à prova; como vida de bardo quando observamos completamente nova aos ouvidos de
homem, então tomou fazem também Alberto Moravia, em certos personagens da Odisseia que pre- quem a escuta (Canto I, 351-352).2
distância e esmurrou seu romance baseado na Odisseia (Il cisam, literalmente, cantar para sobre- Homero deve ter sentido essa mesma
Mike Kelley no nariz. Disprezzo, 1954), e Jean-Luc Godard, viver – como Fêmio, poeta profissional pressão – a de ter que inventar um poema
A sala ficou em silên- em seu filme baseado no romance de vinculado ao círculo doméstico do pró- épico que soasse completamente novo para
cio. Um segurança interveio. Berlim: Moravia (Le Mépris, 1963). Em inglês, prio Odisseu. Seu nome significa ape- um público que tinha adorado seu best-
abertura da instalação Kandors, de Mike tanto o romance como o filme viraram nas O Contador ou O Contador de seller anterior. A Ilíada era inigualável
Kelley, na Galeria Jablonka, em 2007. Contempt (Desprezo), uma palavra se- Histórias. Sua função é, todas as noites, como narrativa de guerra. Então Homero
Ninguém sabia quem era o sujeito. Aber- vera.1 Que reverberações ela encontra- entreter os convivas enquanto jantam, fez da Odisseia um épico do pós-guerra.
turas de exposições costumam ser cheias ria em Homero? inventando histórias e canções para eles. A Odisseia idealiza a sobrevivência, não a
de gente inusitada. Homero ganhava a vida como bardo. Este é um trecho do primeiro Canto da morte; a estrela de seu elenco é Odisseu,
O que significa ser um vendido hoje Os historiadores acreditam que pode- Odisseia, em que o filho de Odisseu, um herói para quem a sobrevivência não
em dia? Existe alguma diferença entre mos ter uma ideia de como era a sua Telêmaco, instrui Fêmio sobre como faz sentido se não der lucro. Odisseu é um
vender algo e se vender? A fronteira é agradar seu público:
2 A tradução para o português dos trechos da Odis-
muito tênue. Essa fronteira interessava 1 Em português, tanto o título do livro quanto o do
Você sabe que a canção mais honrada seia seguiu a tradução do grego para o inglês feita
a Homero: na Odisseia, ele brinca com filme foram traduzidos como O Desprezo. e louvada pelos homens é aquela que soa pela própria autora.

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REPRODUÇÃO DO FILME O DESPREZO (1963), DE JEAN-LUC GODARD


mesmo, num espírito que teria dado orgulho a Odisseu. Jean-Luc Godard, o diretor, é um homem que sabe o que é lucrar. É um artista que extrai do tema do lucro todo um imaginário épico

herói da aquisição. Ele poderia ter voltado mas à sua mente pareceu mais lucrativo sociedade de nobres que põem suas rique- reconhecem sua independência mútua –
para casa um mês e meio depois do fim da viajar por muitas terras e adquirir coisas. zas individuais para circular entre si: fes- a relação entre eles é impessoal e se con-
guerra de Troia, mas em vez disso passou Pois Odisseu sabe o que é lucrar,3 mais tas, favores, presentes e hospitalidade clui com a transferência dos bens. Um
dez anos viajando pelo mundo, solicitando que os outros mortais; mútua servem para reificar o status de presente é um objeto inalienável troca-
hospitalidade e presentes de cada pessoa nisso, nenhum homem é seu rival. cada um deles. São nobres que se dão ao do por dois agentes em relação de depen-
que encontrava. No Canto xix da Odisseia (Canto xix, 282-286) trabalho de diferenciar essa riqueza da dência recíproca. O objetivo dessa troca é
há um episódio estranho, em que Odisseu Penélope sequer ergue a sobrancelha. classe alta – que é louvável – dos lucros e colocar-se em dívida com o outro. O pre-
justifica seu comportamento para a espo- Ela conhece o marido, conhece o sistema ganhos do comerciante ou do negocian- sente e a mercadoria representam duas
sa. Nesse momento da história, ele já vol- econômico que ele manipula. Odisseu é te – que não são. Os aristocratas dão e re- noções diferentes de valor e dão corpo a
tou para casa, em Ítaca, e está conversando senhor de terras, senhor de escravos, se- cebem presentes em vez de comprar e dois padrões diferentes de relações sociais.
com Penélope. Odisseu continua disfarça- nhor de esposas; é um aristocrata inserido vender mercadoria. A diferença é tanto Esses padrões deveriam ser mutuamente
do – de caixeiro-viajante cretense –, e in- numa economia aristocrática extrema- física quanto metafísica. Os presentes não excludentes. Mas tanto na história como
venta uma história sobre ter topado há mente controlada, baseada na reciproci- são medidos, calculados ou precificados. na psique, eles compartilham a mesma
pouco com o marido dela, Odisseu: dade e na troca de presentes. Esta é uma O objetivo não é o lucro. Para usar os ter- fronteira muito tênue, e às vezes chegam
Na verdade, seu Odisseu já teria che- mos de Marx, uma mercadoria é um ob- a se confundir um com o outro, embora o
gado há muito tempo 3 Este trecho sem itálico é um destaque da autora. jeto alienável trocado por dois agentes que conservadorismo profundo de uma eco-

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(é ele o narrador da história). Em vez de admirado a maneira como a arte, nessas
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conversar com Emilia, Riccardo derrama condições, tomou a dianteira e se trans-


sobre ela longos parágrafos de autoanáli- formou em vida. Mas não foi também ele
se, que ela recebe com um olhar vazio ou quem disse que “a única maneira de se
retirando-se da sala. A trama do romance livrar de uma tentação é ceder a ela”? Go-
gira em torno do desprezo misterioso que dard se entregou tão completamente à
Emilia começa a manifestar por Riccar- tentação do Cinemascope que acabou
do assim que ele aceita o trabalho de ro- criando um filme que é um espetáculo
teirista. Ela o trata com frieza, decide que de concessões. Pairando sobre as bagate-
devem dormir em quartos separados e, las éticas do romance, o filme O Desprezo
depois de nove capítulos em que ele a celebra o fato de ter se vendido e se delicia
interroga sem parar, Emilia finalmente argutamente consigo mesmo, num espí-
admite que não o ama mais e que, na ver- rito que teria dado orgulho a Odisseu.
dade, tem horror a ele. Riccardo passa o Godard é um homem que sabe o que é
resto do livro analisando o que isso quer lucrar. É um artista que extrai do tema do
dizer. Por fim, acaba concluindo que a lucro todo um imaginário épico. E, quan-
ofendeu na primeira vez em que saíram do ele posiciona Brigitte Bardot no cen-
para jantar com o produtor – quando per- tro do filme, ela o leva para um patamar
mitiu que este lhe desse carona em seu car- econômico completamente novo.
ro esporte, enquanto ele próprio, Riccardo,

M
os seguia num táxi. Ela só pode ter pen- as voltemos por um instante a
sado, reflete ele, que estava sendo prosti- Odisseu e à questão de cantar para
tuída pelo próprio marido como parte da ter o que comer. Suas melhores
negociação do roteiro. Como se Odisseu refeições são de longe as que acontecem
tivesse voltado para casa e dito aos preten- na ilha de Calipso, no Canto V. Calipso
dentes que podiam fazer o que quisessem é uma deusa menor que se apaixona por
com Penélope. Não fica claro se é para Odisseu e o detém por alguns anos contra
acreditarmos ou não nessa explicação do sua vontade. Ele passa a primeira semana
desprezo de Emilia. Essa é apenas uma fascinado, a segunda, entediado, e aos
Os dois Desprezos contam a história de
nomia de troca de presentes queira defen- das muitas hipóteses que Riccardo aven- poucos se afunda numa espécie de deses-
um escritor dotado de zero por cento
der essa fronteira com unhas e dentes. ta, e Emilia concorda com cada uma de- pero que poderia ser qualificado como
Assim, na formulação de Homero, ade senso de humor. Seu nome é Ric- las. Seus motivos, seus verdadeiros desejos econômico, já que Homero o enquadra
cardo. Ele foi contratado por uma
riqueza aristocrática – aquela coisa da tro- e sua profundidade psíquica permane- como uma questão de oferta e demanda.
grande produtora norte-americana
ca de presentes – toma a forma de tesouro, cem opacos para o leitor, do começo ao A ilha de Calipso é mágica e satisfaz todas
para escrever o roteiro de um filme so-
ou keimelion, uma palavra grega derivada fim do romance. Do ponto de vista de as necessidades que Odisseu possa ter em
bre a Odisseia de Homero. Riccardo é
do verbo keimai, que significa simples- Riccardo, ela é uma pessoa que não tem termos de comida, bebida, roupas, sexo,
erudito, narcisista e neurótico com seu
mente “jazer, estar situado, estar num lu- o menor interesse em autoconhecimento. companhia e conversa. A única moeda
dinheiro. Ele aceitou a proposta porque
gar ou dentro de um lugar”. O substantivo Ao mencionar o acidente que pôs fim à que ele tem que dar em troca é ele mes-
precisava pagar o apartamento que com-
keimelion é definido como “algo para ser vida dela, Riccardo diz: “Ela morreu sem mo – por inteiro. Calipso quer seu corpo
guardado fora do alcance, ou como um prou para a mulher, mas sente que esse nem saber.” e sua alma. Ela o quer por inteiro, física,
trabalho está muito abaixo dele. Diz que
tesouro”, ou seja, é algo desnecessário para No filme de Godard, essa pessoa in- emocional, moral e verbalmente; quer a
escrever roteiros é “meramente tapar
a subsistência de seu portador. Na poesia sondável é interpretada por Brigitte Bar- obra de arte que ele fez da própria vida.
buracos” e se refere à própria existên-
épica, o keimelion costuma aparecer sob a dot – uma escolha que encadeou algumas E quer para sempre: ela promete imor-
cia como “maculada e estropiada” pelo
forma de bronze, ferro, ouro, prata, bons mudanças na história e na produção. Bar- talizá-lo. Quando ele rejeita a transação,
dinheiro. Aos roteiros em geral, ele se
tecidos e até mesmo na forma de mulhe- dot se revelou (como nas palavras de Mar- Calipso fica perplexa. Por que alguém
refere como “uma espécie de estupro
res; esses objetos de estima podem ter al- cel Proust sobre sua personagem Odette) escolheria abandonar aquele paraíso do
da inteligência”, e sobre o roteiro que
gum uso prático e servir à fruição estética, um “halo perturbador”. Não só por ser consumidor onde se pode viver para sem-
ele mesmo está escrevendo, diz: “Ago-
mas sua verdadeira importância deriva de loira (a Emilia do romance é morena), pre, ao lado de uma divindade eston-
ra terei que submeter a Odisseia ao mas-
seu prestígio ou de sua riqueza simbólica. mas também por ter custado 5 milhões de teante? A resposta de Odisseu é: “Eu sei
sacre de sempre – rebaixá-la a filme.”
Eles têm um valor econômico definido e francos, por ter sido seguida sem parar que você é uma deusa, e que é maior e
ao mesmo tempo não têm preço. Enquanto se ocupa desse massacre, pelos paparazzi e por uma falange de se- mais bonita que minha mulher, pois vo-
seu casamento desmorona. No final da
Teoricamente, então, não é por avareza guranças, e por representar, para a França cê não morre nem envelhece, enquanto
história, a mulher de Riccardo foge com
nem por ganância que Odisseu passa dez daquela época, a definição do feminino ela não passa de uma mortal. No entanto,
o produtor norte-americano em seu
anos viajando e acumulando quinquilha- por excelência – por tudo isso, Brigitte prefiro Penélope. E o que mais anseio é
carro esporte e morre num grotesco
rias pelo mundo. Ele leva coisas preciosas Bardot retorceu a história até que esta pelo dia do meu regresso.” A resposta de
acidente de automóvel.
para casa para poder guardá-las como te- perdesse a forma, ao mesmo tempo ga- Odisseu configura um cálculo: ele mede,
souros ou dá-las de presente. De todo Tanto o romance como o filme ter- rantindo o sucesso de bilheteria. Godard de um lado, os dias infinitos e os prazeres
minam tragicamente. Já a Odisseia de
modo, qualquer leitor astuto da Odisseia precisava desse sucesso. Seus dois filmes infinitos de Calipso; de outro, um único
Homero, como se sabe, não. O que salva
irá notar que as práticas econômicas de anteriores tinham fracassado e ninguém dia, o de seu retorno, e os atrativos mor-
Odisseu são um tanto diferentes dessaOdisseu da tragédia, por um lado, são suas sabia dizer onde a nouvelle vague iria pa- tais de sua mulher. O infinito é menor.
práticas econômicas – aquela combina-
teoria. É verdade que ele vive dentro de rar. Ele não queria que ela seguisse o ca- Nem Odisseu nem Homero revelam o
uma ordem econômica na qual os parâ- ção de tática de jogo e ironia que Home- minho de Hollywood nem o caminho que, exatamente, está faltando no infini-
ro sintetiza quando afirma que Odisseu
metros são predefinidos, e as regras, claras, das cifras das produções hollywoodianas. to, isto é, eles nunca oferecem uma des-
“sabe o que é lucrar” –, e, por outro, o
porém, gosta de pôr à prova aquela fron- Mas quando aceitou fazer um filme com crição objetiva de Penélope. Não sabemos
fato de ele realmente amar a esposa. Na
teira muito tênue. Mais do que qualquer Brigitte Bardot, aceitou também todas as se sua compleição é clara ou escura. Em
verdade, acho que talvez esses sejam
outro herói de um poema épico da Anti- complexidades e concessões que vêm na nenhum lugar Odisseu enumera as qua-
dois lados de uma mesma moeda. Po-
guidade, Odisseu parece se divertir bur- esteira de um filme de grande orçamento. lidades que a tornariam mais desejável
lando ao máximo o sistema da troca derém, consideremos as esposas. Ele precisou mudar seus métodos e abrir que uma deusa. O que fica claro nos últi-
No romance de Moravia, Riccardo é
presentes. O disfarce de caixeiro-viajante mão da autoridade sobre o filme, entre- mos episódios do poema, em que marido
vem a calhar em mais de uma situação.casado com Emilia, uma feliz ex-datiló- gando-a a um produtor norte-americano e mulher estão envolvidos na chamada
grafa que não está à altura do marido em chamado Joe Levine. Em vários sentidos, “cena de reconhecimento” – que começa

N
em o herói de Moravia, em Il termos de escolaridade, intelecto ou sen- sua situação era estranhamente análoga à no Canto xvi, quando Odisseu aparece
Disprezzo, nem o de Godard, em sibilidade moral, coisa que mais de uma do pobre e atormentado personagem do disfarçado na casa de Penélope, e vai até
Le Mépris, possuem tal ironia. vez ele faz questão de nos deixar claro romance de Moravia. Oscar Wilde teria o xxiii, quando ela cai em seus braços,

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chorando, e o chama pelo nome –, é que moral, uma virtude que, segundo os anti-

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Penélope é páreo para Odisseu, tanto em gos, as mulheres decididamente não pos-
astúcia quanto em ambiguidade. Ao lon- suem. Para adquirir forma ou consistência,
go desses seis cantos, vemos Penélope se- é preciso que a fêmea se submeta à regu-
duzi-lo com a tática simples de jamais lação e à articulação do macho.
permitir que ele saiba no que ela está Não é nenhuma surpresa, então, que
pensando. Numa série de interações pro- nem mesmo a morte tenha conseguido
vocantes, ela se exibe diante dele e exibe dar fim à incoerência de Emilia. O ro-
a expectativa do retorno ao lar – oferece- mance de Moravia tem um desfecho
lhe comida, roupas, banho, uma cama muito estranho, no qual, imediatamente
no átrio e conversas profundas – sem nun- após o acidente de carro lhe tirar a vida,
ca deixar claro que já o reconheceu. Os a esposa aparece como um fantasma e
pesquisadores até hoje discordam quanto trava uma longa conversa com o marido,
ao momento do poema em que ela con- para depois desvanecer. Transcorrida a
clui que Odisseu só pode ser Odisseu e cena, o marido não consegue se decidir
que por isso ela deve recebê-lo de volta ao se aquilo de fato aconteceu. Ele diz:
lar. O poder de Penélope é o poder de Na vida como na morte, não houve real
conter o significado. Do mesmo modo, conformidade. Nunca saberei se ela era um
Emilia, a esposa no romance de Moravia, fantasma, uma alucinação, um sonho ou
parece ser, aos olhos de seu marido Ric- uma ilusão de outro tipo. A ambiguidade
cardo, um locus movediço de ambiguida- que contaminou nossa relação em vida con-
de. Ele não a compreende. E já que ela é tinuou mesmo depois de sua morte.
“apenas uma datilógrafa”, Riccardo atri- Ao contrário de Odisseu, que se apai-
bui sua incompreensão ao fato de Emilia xona por sua mulher uma segunda vez
não ter recebido uma boa educação, ou justamente por ser ela tão incognoscível,
de ser corrompida, ou (em seus termos) de e que abandona uma deusa por achar,
“não ter consciência” de sua própria vida supostamente, que a mortalidade de Pe-
interior. Nunca ficamos sabendo se isso nélope é o maior dos afrodisíacos, Riccar-
é verdade; a personagem de Emilia está do se ressente da morte e da falta de forma
sempre fora de foco. Ela só é vista pelo de Emilia e a desaprova. No último pará- No meio de tudo, havia uma questão exposição total e totalmente forçada de
filtro da irritação de Riccardo. Às vezes grafo do romance, porém, ele descobre crucial envolvendo o lucro. De novo, si, ela desaparece. Ao mesmo tempo que
ela parece tão incompreensível que che- uma via possível para si: escrever a histó- Oscar Wilde: “A arte, como a moral, diz se coloca à venda, dedo a dedo, mamilo
ga a desmantelar-se diante dele. Assim ria dela, isto é, escrever este romance. Ele respeito a estabelecer algum limite.”4 a mamilo – à venda para o julgamento
ele descreve o modo como seu rosto vai confinar o halo de problemas de Emi- O limite que Godard traçou enquanto masculino, para a câmera de Godard,
muda no meio de uma discussão: lia nos contornos de sua prosa. No fim fazia o filme era o corpo de Brigitte Bar- para o olhar do espectador –, ela escapa
Ela olhou para mim [e] eu reparei numa das contas, ela não era assim tão difícil de dot. Ele não o explora. Ele filma uma da transação. Transforma-se em algo
peculiaridade que já conhecia: seu rosto conter – Riccardo pode contê-la em suas cena de Bardot na banheira, mas ela está exorbitante, como têm de ser os segredos.
bonito, escuro e sereno, tão harmonioso, frases. No fim das contas, não é que ela deitada com um livro enorme de crítica Como têm de ser os presentes. O preço
tão simétrico, tão compacto, passou – por não tem preço – ele a torna parte de suas de cinema (sobre Fritz Lang) esconden- dela é alto demais para nós.
causa da indecisão que lhe cindia a men- próprias transações com a imortalidade do suas partes íntimas. O produtor Joe Daí em diante, é ela a sutil condutora
te – por uma espécie de processo de deca- poética. Ele vende Emilia. Levine ficou furioso quando viu a pri- de cada uma das cenas. Das suas táticas de
dência: uma das bochechas parecia ter meira versão do filme. Sentiu que tinha conduta sutil, minha favorita, de longe, é

Q
encolhido (mas a outra, não), a boca não uando aceitou repetir a transação e sido enganado e exigiu que houvesse o gesto de embrulhar. Acho que são três
estava mais exatamente no meio do rosto, capturar essa mulher fantasmagóri- nudez: estava decidido a fazer aquele os momentos do filme em que Bardot ves-
os olhos, perplexos e turvos, pareciam se ca na versão cinematográfica do li- corpo valer cada centavo dos 5 milhões te um roupão. Ela o faz com um só movi-
desintegrar dentro das órbitas, como se ocu- vro, Jean-Luc Godard topou com algumas de francos. Godard então acrescentou mento: sacode o roupão sobre os ombros,
passem dois círculos de cera escura. dificuldades. Numa entrevista de 1963, uma cena no começo do filme, antes dos joga a faixa em volta da cintura, amarra-o
Quando li esse trecho pela primeira explicou por que falhou em sua tentativa créditos. A cena mostra Brigitte Bardot com firmeza usando as duas mãos e sai de
vez, pensei duas coisas: a primeira, que de transformar Brigitte Bardot na Emilia nua, deitada na cama ao lado de um ho- cena. É estupendo. Ela se embrulha e sai.
ele era assustador; a segunda, que Riccar- do romance de Moravia. “Bardot é um mem. Os dois conversam. Ela pergunta E vence. A cada vez que repete o gesto,
do era um cara bem esquisito. Mas depois bloco”, ele diz, “você tem que recebê-la se ele gosta do corpo dela, faz uma lista ela vence o filme. O filme pergunta a Bar-
pensei um pouco mais e me veio a ideia como um bloco, uma peça só; é por isso de cada parte desse corpo. “Você gosta dot: “Você é algo inerentemente sem
de que, tanto ele quanto sua atitude, te- que é interessante”. A palavra-chave aqui dos meus dedos dos pés, gosta dos meus fronteiras?”, e ela, em vez de responder, se
riam sido perfeitamente aceitos na Grécia é “interessante”. Li o romance de Moravia joelhos, gosta da minha bunda?”, “Do embrulha no ilimitado e sai.
de Homero. A Grécia não era uma socie- quatro vezes e nunca consegui achar Emi- que você gosta mais, dos dedos do meu Brigitte Bardot é o herói desse épico.
dade apenas patriarcal, mas também gi- lia interessante. Talvez isso seja parte da pé direito ou do esquerdo? Do joelho É ela, enfim, quem sabe o que é lucrar.
nofóbica; seus pesadelos giravam em intenção de Moravia – que o retrato que direito ou do esquerdo? Dos meus seios Desde a primeira cena, ela se comporta
torno de mulheres sem forma, só conteú- Riccardo faz da esposa torne-a achatada ou dos meus mamilos?”. Enquanto isso, como um keimelion, como um tesouro
do. Os textos da Antiguidade, sobre medi- como uma moeda atropelada por um car- a câmera zanza pelo seu corpo e se demo- resguardado, e parece ser capaz de con-
cina, filosofia e legislação, e também os ro. Já no filme, quando o bloco-Bardot ra nas suas costas. O homem responde servar e de impor sobre nós o sentido des-
literários, dão provas de sobra de que a assume a personagem, a ambiguidade é com solenidade a cada uma das pergun- se keimelion enquanto algo exorbitante,
mulher era vista como uma criatura cujas amplificada a ponto de adquirir profundi- tas, até finalmente dizer: “Eu te amo um presente que não tem preço. Como
fronteiras são instáveis, e cujo poder de dade, individualidade, ela ganha carne, de completamente, ternamente e tragica- Odisseu, ela detém o poder de guardá-lo
controlá-las é insuficiente. A deformação um modo que nunca chegou a ter no li- mente.” Ao que Bardot, com sua ambi- ou de oferecê-lo a alguém. E em colabo-
a acompanha. Ela incha, murcha, vaza, vro. Ela não é de fato a Emilia; é algo a guidade suprema, responde: Moi aussi ração com Godard ela consegue nos con-
perfura-se e se desintegra. Pensem no mais, algo diferente. Porém, ela tem uma (eu também), e a cena acaba. vencer de que uma das faces do lucro,
ciclo de vida da mulher, cheio de sangra- coisa importante em comum com a espo- Bardot atua sem desprezo nessa cena. para aqueles que sabem lucrar, pode ser
mentos, penetrações, gravidezes, mu- sa de Odisseu: assim como Penélope, Bri- Seus gestos são simples, transparentes; o transcendental. Se não a face, a bunda. J
danças de forma. Pensem nos monstros gitte Bardot é um segredo. Ela permanece tom de voz é serenamente banal. Sua
da mitologia grega, que em sua maior sendo um segredo. Isso eu não consigo conduta é inocente como a água. Mas, O texto acima integra o livro Sobre Aquilo
parte são mulheres de fronteiras desarran- analisar. Vou dar um exemplo de como de alguma forma, bem no meio dessa em que Eu Mais Penso: Ensaios, organizado
jadas, como Cila, Medusa, as sereias, as funciona no filme – de como Bardot e por Sofia Nestrovski e Danilo Hora e tradu-
4 Na verdade, a frase é de G. K. Chesterton, mas
harpias, as amazonas, a Esfinge. O auto- Godard colaboraram para que funcionas- quando escrevi este ensaio achei que fosse de Oscar
zido por Sofia Nestrovski, a ser lançado
controle é uma virtude física, mental e se, para que ela continuasse secreta. Wilde, e ainda gostaria que fosse. neste mês pela Editora 34.

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ficção

O REBENTO DO ÓDIO
Não conhecia o perdão e tampouco apreciava os mandamentos do livro sagrado

WESLEY BARBOSA

D
esde a morte de sua mãe, a Ela falava: mar do rancor. Já não podiam tirá-la dali. ra logo sacou o maço de cigarros que
vida de Juliano havia se tor- – Comida já não tem faz tempo, Zé. De tanto ter presenciado o pai batendo tinha comprado:
nado um inferno, embora – E pra onde é que vai todo arroz e na mãe, chegando em casa enfurnado no – Olha, comprei o teu cigarro. Achei
quase sempre tivesse sido feijão? – disse o homem, certa noite. vendaval da embriaguez, o menino to- que você fosse querer.
assim. Ainda com a idade de – Se você não vivesse dentro do bo- mou coragem e disse, com ar decidido: O homem parou em frente da mulher,
14 anos, não lhe faltou oportunidade teco – argumentou a mulher, com – Não vou! desarmado como uma criança que de
para conhecer o interior dos botecos, medo –, gastando dinheiro com aquele – Como é que é, moleque?  repente ganha um doce da mãe. A essa
onde via os homens beberem e se di- bando de chupim, não estaria me per- – Vá o senhor! – provocou Juliano, se altura, Juliano havia desaparecido nas
vertirem em meio às mulheres, despe- guntando isso. afastando. ruas da favela.
jando fumaça de cigarro no ar, assim – É assim que você fala? – gritou Zé – Agora você vai se ver comigo, filho

Z
como não lhe faltou oportunidade cheio de raiva. – É assim que você fala do demônio! é, quando não estava no bar, era o
para ficar em torno da mesa de sinuca comigo, sua desgraçada? Naquele dia, uma das poucas vezes mau humor em pessoa; Bárbara,
e entre viciados em jogos de cartas que – Vai me bater de novo, é isso? em que Zé deu dinheiro para Bárbara no entanto, conhecia muitas for-
se esbaldavam no vai e vem das garra- – Eu te mato, mulher! – disse ele, comprar coisas na feira, e ela gastou toda mas de domá-lo. Ela o levou para den-
fas de cerveja. com o demônio da bebida em seus a manhã escolhendo bons tomates e boas tro do quartinho improvisado e ali se
Era tido pelos mais velhos como o pensamentos. frutas. Quando retornava de lá, viu Ju- envolveu no corpo dele, como os dois
filho do Zé, o rebento do bêbado que Juliano era filho único e, vendo o pai liano correndo daquele jeito, descalço e faziam antigamente, quando ainda
morava logo ali na viela. Era a cara do agir daquele jeito, às vezes preferia nem medroso, porque o pai vinha atrás, segu- nem haviam tido o Juliano.
pai, tomara que não desse para beber ter nascido. Sentia crescer por dentro algo rando firme um pedaço de madeira. Nessas ocasiões, ela começava di-
que nem ele. Juliano ouvia as coisas que não podia explicar. Simplesmente A mãe imediatamente largou as sa- zendo ao marido:
mais terríveis sobre seu velho. Quando não conseguia olhar para o pai sem que colas no chão. – Tô com saudade, Zé.
se deparava com Zé chegando tarde da certo desconforto ou descontentamento – O que é que tá acontecendo aqui, Zé? Ele, então, olhava para as pernas,
noite, cheirando a álcool e cigarro, man- se abatesse sobre seu espírito. – Esse moleque vai aprender o que é para a bunda, para os peitos, para o cor-
dando sua mãe preparar a comida, des- Uma vez em que Zé pediu para o fi- bom pra tosse! po de Bárbara. Gostava de vê-la com os
prezava-o em segredo. lho ir ao bar do Tonho comprar um – Calma, Zé! cabelos penteados. Batom na boca. Sa-
Dona Bárbara, a mãe, olhava em maço de cigarros, Juliano ficou parado, – Sai da frente! fada, chamando-o para a cama.
volta com aquele olhar: olhar de fome encarando-o com o seu olhar de revolta, Lembrando-se de que o Zé ficava ir- Talvez aquele peste do Juliano tives-
e decepção. parecido com uma âncora afundada no ritado quando estava sem fumar, Bárba- se feito bem ao tirá-lo do sério e ido para

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JOÃO PINHEIRO_2023
a rua. “Que fique vadiando até escure- ciente para o filho ter respeito por ele, – Está fazendo o que aí sozinho, Ju- e descansar um pouco. Foi quando o pai
cer!”, pensou Zé, enquanto penetrava argumentava Zé de modo carrancudo. liano? – perguntou a mulher, um tanto partiu em sua direção, ainda se lembran-
Bárbara com violência. – Vou atrás do Juliano – disse Bárba- envergonhada. do da desobediência de Juliano. Deu-lhe
– Cachorra! – dizia ele. ra, vestindo-se e pensando na bandida- Balançando a cabeça, o menino con- um soco na cara, fazendo-o cair no chão,
– Safado! gem que andava recrutando meninos tinuou calado, como se tivesse desa- igual a um objeto inanimado.
– Senta no meu pau, que eu gosto! da idade do seu filho para trabalhar de prendido a falar. Levantou-se do chão Bárbara gritou:
Em cima de Zé, a mulher já não olheiro para o tráfico. igual a alguém que realmente tivesse – Pelo amor de Deus, Zé!
se lembrava da vida e de suas agruras. – Deixa o moleque na rua – falou tomado uma bela de uma surra e ten- – Agora ele vai aprender a não apa-
E se, naquele momento, alguém encos- Zé, ainda excitado. – Quando ele voltar tasse não demonstrar fraqueza. nhar mais na rua.
tasse os ouvidos no tapume da casa, vou dar uma surra nele. Zé surgiu imenso no pequeno barra- – Você matou o nosso filho!
poderia ouvi-la gemendo de excitação, – Nem tudo se resolve na base da co, fitando o filho do alto de sua bruta-

P
como quem estivesse louca para sair do cinta, Zé – falou Bárbara, como que se lidade primitiva. or esse e por outros motivos, Julia-
abismo e conhecer o paraíso. incluindo nessa situação. – O menino O homem disse: no, que não morreu naquela oca-
Certa hora da noite, Bárbara disse: tem só 14 anos, ele se espelha em você. – Andou brigando na rua, moleque? sião e agora devia ter seus 18 anos,
– Já era pro Juliano ter voltado. O bair- Naquele momento, Bárbara se levan- – Deixa o menino, Zé – falou Bárba- parecendo um homem feito, não tinha
ro tá cheio de traficante e eu tô ficando tou da cama e, quando foi em direção à ra, temendo o pior. – Não tá vendo que boas lembranças de seu velho. Ele sa-
preocupada com ele. porta, viu o filho sentado na soleira, ele tá todo machucado? bia: Zé era motivo de piada nos bares e
– Aquele moleque! – falou o homem, com a camiseta cheia de sangue e o ros- – Apanhou na rua – secundou o ho- becos da favela, tido como alguém sem
com certo desprezo. – Me desobedeceu to inchado. mem. – Vai apanhar em casa de novo! nenhum valor e de quem todos gosta-
como se eu fosse um nada. Correu até Juliano e perguntou: – Ah, mas não vai mesmo. vam de debochar e falar mal.
– Ele é teu filho também, Zé! – O que aconteceu, meu filho? – Sai da frente, Bárbara. – gritou Zé. As pessoas costumavam dizer, sorrindo:
O homem olhou para os lados, fazen- O menino ficou em silêncio, mal – Vou ensinar esse demônio a virar homem. – Cadê o Zé, aquele bêbado, menino?
do-se de desentendido. No dia seguinte, conseguindo falar. A mãe não fazia – Não, Zé, por favor, ele é nosso filho! Sobre o pai, Juliano preferia ficar ca-
iria trabalhar de pedreiro em uma obra ideia do quanto de ódio ele nutria pelo – Desse jeito, fraco que nem uma lado, daquele jeito, como se de repente
e não queria saber de aturar criança mal- pai. Talvez seja melhor mesmo, pensa- mulherzinha? não soubesse mais se expressar com pa-
criada. Suas mãos cheias de calos, o es- va Juliano, ela não saber de nada daqui- Bárbara ficou onde estava, e o menino, lavras, embora por dentro tivesse um
forço de carregar bloco nas costas, erguer lo ou, como faz a maioria das famílias, em pé como um galho ao vento, só queria mundo inteiro de sensações. Ele não
paredes e tudo o mais deveria ser o sufi- fingirem que tudo andava bem. se deitar em sua cama cheia de molambo havia aprendido a gostar do velho.

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tempos, mas jamais teve coragem de – Mas você não quer testemunhar
VITOR MASSAO_2023

entrar no meio da briga de Zé e Bárba- contra o seu pai? – perguntou o policial


ra. Ameaçou uma vez chamar a polícia, em tom amistoso.
mas desistiu. Sabia que os traficantes da Juliano balançou a cabeça, dizendo
favela podiam querer tirar satisfações. não, e falou que ainda estava muito aba-
Concisa, igual a um tiro à queima- lado. Tonho colocou uma garrafa de cer-
roupa, disse: veja em cima do balcão, fazendo menção
– Seu pai matou a sua mãe, Juliano. de que era por conta da casa. O rapaz
As palavras de Celestina vibraram rejeitou, e pediu ao policial:
no ar por um momento, feito uma onda – Esquece.
sonora que fosse penetrando por todos Depois disso, o barraco de Bárbara e Zé
os poros de Juliano – até ressoarem em foi invadido por viciados em drogas. Da
seus ouvidos e o trazerem de volta para janela, Celestina ficava observando a rua,
a realidade. na esperança de um dia ver Juliano e lhe
Ele então sentiu como se alguém ti- dar o abraço do conforto que ele rejeitara.
vesse lhe dado um soco na cara. Celesti- A verdade é que o rapaz não demo-
na estava em prantos, os olhos em pânico. rou a ser procurado pelos traficantes da
Nas ruas a notícia se espalhou igual a área, que o parabenizaram pela atitude
rastilho de pólvora. As pessoas diziam: que teve com a polícia. Juliano ficou
– Aquele homem era um bêbado psi- meio desconfiado de ver aqueles sujei-
copata. tos de olhos estranhos, portando armas
– Parece que foi dez facadas, en- na cintura, falando com ele como se
quanto a mulher tava dormindo. fossem bons camaradas.
– O que eu fiquei sabendo é que ele Um deles, que a bandidagem cha-
deu vinte facadas e depois saiu pra be- mava de Faísca, disse:
ber no bar do Tonho, como se nada ti- – Fez bem, irmãozinho, em não ter
vesse acontecido. estendido a conversa com a polícia.
Nos dias seguintes, Juliano perma- – É desse jeito que se ganha respeito
neceu em seu mundo interior, sem na quebrada – falou um cara conhecido
querer saber do falatório que ainda cir- por Bolão. – Nós tudo tá sabendo o que
culava. Não podia esquecer o semblan- o teu pai fez com a tua mãe.
Juliano costumava beber no bar do To- Juliano se lembrou de uma conversa te de sua mãe morta, deitada no caixão – Tamo aqui pra te ajudar, irmãozi-
nho, que de vez em quando olhava para que teve com sua mãe, ao tentar con- pobre que, com muito custo, ele conse- nho – disse Faísca, com simpatia na voz.
ele com desconfiança, perguntando se ti- vencê-la a sair de casa. guiu pagar, pedindo dinheiro empres- – Vamos apagar o teu pai, irmãozinho.
nha dinheiro para pagar aquele monte de – Seu pai, Juliano! – ela disse. tado para uns e outros. Pode contar com a nossa ajuda.
cerveja. O rapaz não se irritava, mas não – O que é que tem aquele desgraçado? Algumas pessoas falaram: Juliano, que nunca havia se aproxi-
gostava de ter que dar satisfações, caso es- – Ele está deitado na rua. – Fica em paz menino e vá enterrar mado de traficantes, permaneceu em
tivesse com alguma moça ao seu lado. – Que fique por lá! a sua mãe. silêncio, a fim de não dizer bobagem.
Tonho dizia: – Não fale assim, meu filho – supli- Ao vê-la no caixão, o corpo de quem Vendo-o meio encabulado com a presen-
– Tô só perguntando, porque o Zé... cou a mulher. – Seu pai tá doente. havia sofrido muito nessa vida, Juliano ça deles, Bolão pediu que os outros saís-
– Porra, Tonho! – gritou Juliano cer- – Que ele morra e vá pro quinto dos teve a sensação de que seu pai tinha mos- sem de dentro do quarto pequenino em
ta noite. – Eu não sou meu pai. Aqui o infernos! trado a ele o outro lado do espelho. que Juliano continuava morando para que
seu dinheiro... – Juliano, você não pode falar assim Embriagado de ódio e rancor, Julia- ficassem apenas ele, Faísca e o rapaz.
– Desculpa, rapaz – disse o dono do do seu pai. no já não conhecia o perdão. Tampouco – É o seguinte, irmãozinho – come-
bar. – É que não dá pra viver de fiado, – A senhora ainda defende aquele fazia mais sentido para ele o manda- çou a falar Bolão. – Nós tá aqui porque
e o teu pai... homem? mento do livro sagrado: “Não matarás!”. a gente tá ligado que você corre pelo
– Quanto é que ele tá te devendo? Olhando a mãe no rosto, Juliano per- Estava cheio de ira e, se encontrasse o certo, tá entendendo, sangue bom?
– 150 conto. cebeu que, por causa das olheiras de pai naquele momento, o esganaria com – Tô, sim – disse Juliano.
– Pode cobrar daqui. noites e noites sem pregar os olhos, por as próprias mãos. – Então é isso mesmo!
Juliano havia conseguido um empre- causa da fome, por causa dos maus- – Seu pai é um monstro – ele podia – Quer apagar o seu coroa, ou não
go informal e alugado um quarto no tratos da parte de Zé e de tantas coisas ler nos olhos das pessoas. – O assassino quer? – perguntou Faísca. – Se você quer
bairro. Sempre pedia para a mãe largar mais, ela tinha envelhecido pelo menos de sua mãe! apagar o seu coroa, nós tamo com ele
o Zé, ao vê-la com os olhos roxos, e ir vinte anos. Preocupava-se ao vê-la da- Depois do velório e das perguntas ali fora.
morar com ele. quele jeito, acabada e sem força, sem dos curiosos, Juliano se trancou em seu – Cadê aquele desgraçado? – falou
– Vou pra casa – ele falou subitamen- poder defender a si mesma do marido. barraco imundo e se pôs a chorar a mor- Juliano.
te, virando o copo de cerveja. “Talvez eu não devesse dar tanta te da mãe. Bolão declarou:
– Mas já, Juliano? – disse a moça ao importância pra isso. Se ela não quer – Teu pai tá com a gente e vai ser

N
seu lado. – A noite só tá começando, vir morar comigo, que fique com ele!”, o bairro não se soube do paradei- tratado que nem estuprador, irmão. Po-
meu bem. ele dizia a si mesmo. E depois pensa- ro de Zé, tampouco as pessoas de ter certeza que vamos subir o velho
– Bebi demais hoje. va, com angústia: “Ela já tá ficando arriscavam dizer à polícia onde o sem dó nem piedade, mas, por via das dú-
– Você não é de dizer isso. O que é velha; se eu não fizer nada, o pior po- filho do assassino morava. Isso os mora- vidas, toma aqui um brinquedo: é me-
que tá acontecendo? de acontecer...” dores do bairro respeitavam: não dar lhor você dar o primeiro tiro.
O silêncio no quarto de Juliano era informações para homem de farda, ain- Deram um .38 para Juliano, que sen-

D
feito de muitas preocupações e madru- e fato, o pior aconteceu: um dia, da que fosse para prender um pilantra. tiu o gelo da morte se apoderar de sua
gadas de insônia. Às vezes, era como se a vizinha de seus pais chegou à A melhor coisa era se limitarem a dizer alma, pois nunca antes tocara em um
ele estivesse fora da realidade. Naquele sua casa trazendo a notícia: que não sabiam de nada. revólver em sua vida. Vendo-os ir em
dia em que sua mãe o encontrara na – Juliano! – a mulher gritou. Durante um mês inteiro, podia-se direção à porta, não soube o que fazer,
soleira da porta, ele estava todo sujo de – Já vou! – disse ele, despertando de ver o carro da polícia rondando por nem como agradecer por terem lhe dado
sangue porque brigara com os moleques uma noite tumultuada de pesadelos. aquelas quebradas, perguntando pelo aquela oportunidade sinistra. Juliano
que tinham insultado seu pai. E agora – Acorda logo, Juliano! filho da morta, até que Juliano apare- apenas suspirou de alívio por um mo-
ele próprio se dirigia àqueles botecos – Já vou, porra! ceu no bar do Tonho, dizendo aos po- mento, pois sabia que os traficantes não
sujos de onde muitas vezes teve que ar- Ele abriu a porta e se deparou com liciais que não queria saber daquela deixariam Zé sair dali ileso. Depois,
rastar o Zé, cheio de urina nas calças, Celestina, que o viu crescer apanhando história, que precisava esquecer tudo de apertou o gatilho do revólver e estourou
até o barraco em que moravam. de Zé. Ela era amiga de sua mãe havia uma vez por todas. os próprios miolos. J

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poesia

HUM IMAGES_ALAMY_FOTOARENA_1913
MAIAKÓVSKI,
O AMERICANO
Três poemas escritos nos
Estados Unidos pelo poeta
georgiano, nascido há 130 anos

ASTIER BASÍLIO

Vladímir Maiakóvski retratado por Lev Shekhtel em seu primeiro livro: Eu! foi publicado em 1913, em edição litográfica

A
ntes de chegar aos Estados Talvez essa seja uma das razões pelas Louis Aragon, ambos filiados ao Partido dos, Maiakóvski ficou interessado em
Unidos, em 27 de julho de quais o poeta Sierguéi Iessiênin (1895- Comunista Francês. quem seria esse americano 100%. No
1925, o poeta Vladímir Maia- 1925), ao responder a uma provocação Uma razão de foro íntimo motivou poema, o traço do caricaturista vai des-
kóvski já havia escrito sobre o feita por Maiakóvski, gritou: “A Rússia é Maiakóvski a ficar longe de Moscou por crevendo a maneira como o capitalismo
país que despontava como o no- minha! Entendeu? A Rússia é minha. uns tempos. Para desespero do poeta, molda uma pessoa desde o nascimento
vo gigante do capitalismo e, portanto, Quanto a você... Você é americano!” o seu grande amor, Lili Brik, estava com e também as abusivas relações dos pa-
como principal antagonista da recém- Por brincadeira do destino, o primeiro um novo amante. Em Nova York, Maia- trões com os empregados. Em Testifico,
criada União Soviética. “Maiakóvski, dos dois a visitar os Estados Unidos foi, kóvski conheceu sua tradutora, Elly Jones indígenas aportam na estação de trem
antes de sua viagem à América, descre- justamente, Iessiênin que em 1923 via- (1904-85), uma emigrada russa por quem da Pensilvânia e são recebidos pelo pre-
veu Chicago tão claramente que um jou para lá na condição de marido da se apaixonou e com quem teve uma filha, sidente Calvin Coolidge. O poeta ima-
crítico em 1920 chegou a pensar que bailarina Isadora Duncan (1877-1927). a escritora Patricia Thompson (1926-2016). gina, então, o que eles pensariam do
ele esteve lá”, me contou Vera Terokhi- No entendimento de Terokhina, “Iessiê- “O relacionamento com Elly Jones foi o mundo que foi erguido pelos coloniza-
na, pesquisadora de 76 anos do Insti- nin chamou Maiakóvski de ‘americano’ mais longo e o mais intenso que Maia- dores sobre suas terras: debaixo da ponte
tuto Górki de Literatura Mundial, em porque ele dava valor à civilização e à kóvski teve desde que conheceu Lili Brik ainda corre o rio onde o avô deles, cole-
Moscou. Terokhina é a responsável pela técnica. Dizia: ‘Eu sou o que canta a má- em 1915”, escreveu o sueco Bengt Jang- cionador de escalpos, navegava; a hidre-
mais nova edição das obras completas quina e a Inglaterra’, enquanto Iessiê- feldt em Mayakovsky: A Biography. létrica sepultou a terra onde cavalgavam.
do poeta georgiano, que terá vinte volu- nin escreveu: ‘Eu sou o último poeta do Depois de cada viagem que fazia, O poeta conclui que os indígenas estão
mes no total. O sexto tomo foi lançado interior rural.’” Maiakóvski costumava realizar na União condenados pela civilização ocidental –
em abril passado. Em 19 de julho, come- Ao receber o formulário para o visto, na Soviética palestras sobre o país visitado. e convoca os comunistas a transformarem
moram-se os 130 anos do nascimento embaixada norte-americana no México, Em uma delas, ao discorrer sobre os Esta- o lastro guerreiro que ainda conservam
de Maiakóvski, que se suicidou em 1930, Maiakóvski, em vez de se descrever como dos Unidos, foi interrompido por alguém: em parte da luta operária no mundo por
aos 36 anos. escritor, optou por se apresentar como um “Com o dinheiro de quem o senhor viajou uma civilização socialista.
Além de referências a Woodrow Wil- artista que desejava ir aos Estados Unidos para a América?” Sem pestanejar, Maiakó- Em Cidadão de Bem, o poeta cria
son (1856-1924), o 28º presidente dos Es- mostrar o seu trabalho. Eram sempre os vski respondeu: “Com o seu, camarada!” uma espécie de anticartão-postal de
tados Unidos, nas charges com poemas museus que ele visitava primeiro, assim Nova York. Ele convida o leitor a conhe-

A
que publicava pela Rosta – a agência que chegava a um país estrangeiro. Por passagem pelos Estados Unidos foi cer a metrópole, revelando os contrastes
estatal de notícias da União Soviética an- causa do apreço que tinha por sua forma- a mais demorada de todas as nove violentos do capitalismo: crianças se
tes da criação da Tass –, Maiakóvski fez ção de artista plástico, Maiakóvski – que viagens que Maiakóvski fez ao ex- alimentando do lixo, enquanto mulhe-
uma menção um tanto circunstancial aos só falava russo e georgiano – acabou esta- terior. Durou três meses. A estada ren- res passam cobertas de joias; os sons do
Estados Unidos no longo poema Kho- belecendo fora da União Soviética mais deu um livro dos relatos da viagem, elevador – emblema da civilização téc-
rosho! (Ótimo!), em que recorda os anos contatos com pintores, como Diego Rive- Minha Descoberta da América, além de nica – abafando a tosse de um alfaiate
de fome durante a Revolução Russa. ra e Pablo Picasso, do que com escritores. um ciclo temático de poemas, classifica- com tuberculose; o abuso sexual cometi-
Todavia, a mais expressiva referência ao dos pelos estudiosos da obra de Maia- do por patrões. Uma imagem final cria

E
país ocorre no épico 150 000 000, no qual m uma de suas primeiras visitas a kóvski com o título de Poemas sobre a a síntese: a mão da Estátua da Liberda-
o apresentou como o rival a ser enfren- Paris, Maiakóvski foi intimado a dei- América. Desse conjunto, Augusto de de se conduzindo até a prisão de Ellis
tado pelos comunistas soviéticos. xar a França em 24 horas, por causa Campos traduziu Black and White, no Island, em Nova York.
Em 150 000 000, Maiakóvski cita o do seu professado comunismo. No depar- qual o poeta descreve Havana como um Um desafio permanente que se im-
poeta norte-americano Walt Whitman tamento de imigração, sua intérprete, a quintal dos Estados Unidos. põe ao tradutor de Maiakóvski é lidar
(1819-92), autor de Folhas de Relva, obra escritora de origem russa Elsa Triolet Os poemas publicados nas páginas se- com sua inventiva construção rítmica,
que o influenciou de modo decisivo no (1896-1970), argumentou que ele não re- guintes desta edição – 100%, Testifico e suas imagens surpreendentes e as rimas
início de sua carreira, nas hostes baru- presentava ameaça alguma às autorida- Cidadão de Bem – são apresentados em proliferantes. A escritora Elsa Triolet,
lhentas do futurismo. O poeta Kornei des locais, visto que só era capaz de dizer português pela primeira vez e também que também traduziu Maiakóvski, ano-
Tchukóvski (1882-1969), seu contempo- uma coisa em francês: Jambon (presunto). constam no ciclo Poemas sobre a Améri- tou que, no tocante à rima, havia aban-
râneo, observou: “Não há dúvida de que, Depois de ouvir a tradução que Triolet ca. Dezessete dos 25 textos desse ciclo donado toda a esperança de transpô-la
naqueles anos em que ele [Maiakóvski] fizera, Maiakóvski balbuciou, envergo- foram reunidos em 1926 num livreto de para o francês: “É por assim dizer impos-
criou sua poesia, repleta de metáforas nhado, aquela única palavra que sabia. 91 páginas, com tiragem de 2 mil exem- sível traduzir a vertiginosa virtuosidade
puras, excentricidades e hipérboles, um O funcionário da imigração, sem conse- plares e outro título: Espanha. Oceano. das rimas de Maiakóvski.” De minha
dos ingredientes desse estilo multifa- guir controlar o riso, acabou autorizando Havana. México. América. parte, procurei imitar tanto quanto pude
cetado era o estilo de outro rebelde, o visto de permanência na França. Trio- Em 100%, ao levantar estatisticamente o ritmo frenético do original e sua pode-
Walt Whitman.” let casou-se em 1939 com o poeta francês o componente étnico dos Estados Uni- rosa orquestração sonora.

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poesia_VLADÍMIR MAIAKÓVSKI (1893-1930)_tradução Astier Basílio

ESBOÇOS DE FIGURINOS DESENHADOS POR VLADÍMIR MAIAKÓVSKI PARA SUA PEÇA MYSTERY-BOUFFE (1919)_ ART IMAGES_HERITAGE IMAGES_GETTY IMAGES
100%

Ações... All right!


juros... Uma herança para John.
dólares... Mas as contas –
cents... um enxame.
Pra lá das brenhas de Vinítsia1 cafundozeando, Um milhão
fiz um desenho, derreteu com gastos.
e desse jeito se apresentou pra mim Fez as contas,
um americano sorriu –
cem por cento. um outro milhão nós achamos.
Uma de suas esposas terminou o parto. All right!
Dobrando Trabalho.
as fraldas pelo canto, O patrão –
o obstetra mostrou: é um cão ladino –
John igual a John. faz furtos,
All right! faz roubos.
Nove libras, John
os olhos – lanhou-se,
pratas. mas pôs as barbas de molho.
Mostrando os dentes da primeira fila, All right!
o pai O patrão o mandou embora.
limpou Mas que nada!
os óculos de chifre: John,
all right! feliz, faz as contas.
A questão da criação O patrão atrás de um Colt,
é muito simples. enquanto John, de uma faca.
Engatinha, All right!
as patas sujinhas. John
A testa arrebentou – alvejado pela bala do patrão
all right! Sussurram:
Mas o nariz – “Morre”.
all right! John ouve
O pai diz: e ri num deboche.
“John, seu desocupado. All right!
Não fez nenhum cent, Caixão.
mas passeia por todo lado!” Um escuro quadrado se escavou.
O pequeno A terra –
John igual a granito no telhado.
danou-se por outro vão. Sepultaram.
All right! Os coveiros
Texas, suspiraram aliviados.
Califórnia, All right!
Massachusetts. Johns assim
Vai não há mais em Nova York.
de rincão a rincão. Mister John,
Tem pão – sua esposa
all right! e gato
não – todos ficaram balofos,
all right! em sua toca distante
Cresceu, dormem,
cuspindo a saliva sua. despertam
Um cachimbinho não raro
queima e não se incendeia. por causa dos próprios soluços.
“John, Sou desajeitraste até o extremo,
vamos apostar, mas não me curvo
que tu irás à Lua?” ao destino educadamente,
All right! não gosto disso.
Teve um amor, Eu
chamou de querida, mesmo
fissurado sendo um poeta
no paraíso fazia o seu jogo. sou mais americano
Ela o traiu, que os americanos da América.
foi embora com outro.

1 Cidade da Ucrânia, a 240 km da capital Kiev. [1925]

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100%

Шеры... Ол райт!
облигации... Наследство Джону.
доллары... Расходов –
центы... рой.
В винницкой глуши тьмутараканясь, Миллион
так я рисовал, растаял от трат.
вот так мне представлялся Подсчитал,
стопроцентный улыбнулся –
американец. найдем второй.
Родила сына одна из жен. Ол райт!
Отвернув Работа.
пеленочный край, Хозяин –
акушер демонстрирует: лапчатый гусь –
Джон как Джон. обкрадывает
Ол райт! и обирает.
Девять фунтов, Джон
глаза – намотал
пятачки. на бритый ус.
Ощерив зубовный ряд, Ол райт!
отец Хозяин выгнал.
протер Ну, что ж!
роговые очки: Джон
Ол райт! рассчитаться рад.
Очень прост Хозяин за кольт,
воспитанья вопрос. а Джон за нож.
Ползает, Ол райт!
лапы марает. Джон
Лоб расквасил – хозяйской пулей сражен.
ол райт! Шепчутся:
нос – «Умирает».
ол райт! Джон услыхал,
Отец говорит: усмехнулся Джон.
«Бездельник Джон. Ол райт!
Ни цента не заработал, Гроб.
а гуляет!» Квадрат прокопали черный.
Мальчишка Земля –
Джон как по крыше град.
выходит вон. Врыли.
Ол райт! Могильщик
Техас, вздохнул облегченно.
Калифорния, Ол райт!
Массачузэ́ т. Этих Джонов
Ходит нету в Нью-Йорке.
из края в край. Мистер Джон,
Есть хлеб – жена его
ол райт! и кот
нет – зажирели,
ол райт! спят
Подрос, в своей квартирной норке,
поплевывает слюну. просыпаясь
Трубчонка изредка
горит, не сгорает. от собственных икот.
«Джон, Я разбезалаберный до крайности,
на пари, но судьбе
пойдешь на луну?» не любящий
Ол райт! учтиво кланяться,
Одну полюбил, я,
назвал дорогой. поэт,
В азарте и то американистей
играет в рай. самого что ни на есть
Она изменила, американца.
ушел к другой.

[1925]

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VLADÍMIR MAIAKÓVSKI_ ART IMAGES_HERITAGE IMAGES_GETTY IMAGES_1919


TESTIFICO

O jeito dos índios era: A propósito,


emplumado, para que
engraçado mentir sobre índios?
e forasteiro. Os índios
Eles nem pensam
chegam sobre isso.
das primeiras eras Os índios pensam:
por meio “Lá,
do anúncio da “Pennsylvania Station”. onde na água
Neles é escuro,
Coolidge1 a ponte rosna,
um par de dedos enfia. há pouco
Os hollywoodianos ficava borrifando
os uma canoa ágil
filmam. do vovô,
E os convidam um caçador de escalpos.
para o terraço de um restaurante com muito conforto. Lá,
Abaixo deles, onde se constrói
com sua algazarra em zum-zum-zum andares de caixotes
as ruas nova-iorquinas escorrem seu jorro. e queimam
Quem os alegra? milhões de quilowatts,
O que os irrita? havia
O que os estimula? o deus da guerra
Para onde sua mirada vai? dos índios,
Os indígenas matutam: de barriga
“Olha só – e cabeça grandes.
o capital! E tudo
E, então, construíram casas por toda a parte. que agora
Peguemos tudo de volta, ao redor faz o seu jorro,
não por dobrões, tudo,
mas a partir visto agora aqui de cima –
de uma base socialista. tudo isso
Inicialmente é obra do diabo branco
as batalhas e da bruxa branca
vão entrar em ebulição. de além-mar.
Mas depois Todos
não haverá chefes, os brancos
nem funcionalismo! nós espalharíamos numa
Na completa floresta
paz para que
de Deus – os alcançássemos com flechas...”
em pleno lunatcharskismo.2 Agora
Por outros vamos chegar à conclusão
rumos e fazer
as águas espumam; uma análise classista.
chegarão O pensamento humano
navios a vapor para assar é mais complexo
aqui do que
vindos de Moscou sobre ele
trazendo traduções se imagina.
das obras de Járov3 Sacudindo
E o rádio – as filas da plumagem deslumbrante
tão logo a névoa escura caia – sob a bocarra
soará a verdade cristalina. de uma nuvencavalada,
Olá, eles desceram
e começará a contar e – até mais! –
para todas as tendas partiram para a morte.
do que é feita Mas a eles
a beleza o que mais
da vida. pode ser feito?
E rumo à verdade Pense
o batalhão de indígenas em uma nova agitação em parafuso.
virá Parafuse,
e vai erguer para que o ardor disso não se apague.
estandartes aos montes...” Eles esperam.
Traduza, Komintern,
1 Calvin Coolidge foi o 30º presidente dos Estados Unidos. essa fúria de raça
2 Referência a Anatoli Lunatchárski (1875-1933), Comissário do Povo para Instrução,
que esteve à frente de uma campanha de alfabetização na União Soviética.
para a luta de classes.
3 Aleksandr Járov (1904-84), escritor soviético, autor do Hino da União da Juventude Comunista. [1926]

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Свидетельствую

Вид индейцев таков: Впрочем,


пернат, зачем
смешон про индейцев врать?
и нездешен. Индейцы
Они про это
приезжают не думают.
из первых веков Индеей думает:
сквозь лязг «Там,
«Пенсильвэниа Стейшен». где черно
Им воде
Кулиджи у моста в оскале,
пару пальцев суют. плескался
Снимают недавно
их юркий челнок
голливудцы. деда,
На крыши ведут искателя скальпов.
в ресторанный уют. А там,
Под ними, где взвит
гульбу разгудевши свою, этажей коробок
нью-йоркские улицы льются. и жгут
Кто их радует? миллион киловатт, –
чем их злят? стоял
О чём их дума? индейский
куда их взгляд? военный бог,
Индейцы думают: брюхат
«Ишь – и головат.
капитал! И всё,
Ну и дома застроил. что теперь
Всё отберём вокруг течет,
ни за пятак всё,
при что отсюда видимо, –
социалистическом строе. всё это
Сначала вытворил белый чёрт,
будут заморская
бои клокотать. белая ведьма.
А там Их
ни вражды, всех бы
ни начальства! в лес прогнать
Тишь в один,
да гладь и мы чтоб
да божья благодать – с копьём гонялись...»
сплошное луначарство. Поди
Иными под такую мысль
рейсами подведи
вспенятся воды; классовый анализ.
пойдут Мысль человечья
пароходы зажаривать, много сложней,
сюда чем знают
из Москвы у нас
возить переводы о ней.
произведений Жарова Тряхнув
И радио – оперенья нарядную рядь
только мгла легла – над пастью
правду-матку вызвенит. облошаделой,
Придёт сошли
и расскажет и – пока!
на весь вигвам, пошли вымирать.
в чём А что им
красота больше
жизни. делать?
И к правде Подумай
пойдёт о новом агит-винте.
индейская рать, Винти,
вздымаясь чтоб задор не гас его.
знаменной уймою…» Ждут.
Переводи, Коминтерн,
расовый гнев
на классовый.
[1926]

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VLADÍMIR MAIAKÓVSKI_ ART IMAGES_HERITAGE IMAGES_GETTY IMAGES_1919


CIDADÃO DE BEM

Se teu olhar Vão levá­la pela mão,


nem inimigo vê mas virá a manhã
e do teu ardor embebedaram das feras,
o nep1 e os negócios, um bando de lobos,
se de velhotas já sem sexo
o costume do ódio tu perdeste, levam a prostituta,
venha das penas ao âmbar
pra cá, e outra vez
pra Nova York. do âmbar às penas.
Para que em milhas de ruas fiques atado, Mas o patrão
e te firam os espinhos de Deus vai se aproximando
dos semáforos de ouriços. no Plaza Hotel,
Feito um anão através de pequeno copo
tu comigo revirou
andarias os seus olhos para o céu:
ao sopé “Thank you
dos andares de tudo isso. pelo excelente negócio!”
Olha bem ali – Podem ficar calmos,
estão tirando está fora de perigo
do lixo a sobriedade de vocês,
sobras de comida a moralidade,
para dar de comer às crianças; os filhos,
para que, com seus carros, os tambores
ultrapassando os ônibus, do Exército da Salvação
cheguem rápido aos palácios farão o som
as senhoras com brilhantes. da virtude de vocês
Dê uma olhadinha pelo mundo ser ouvido.
nestas janelas pequenas: Deus
aqui a vocês
coseram­lhes vestes como a nobres. não multicriticaria:
Apenas cobra de vocês
com aço o elevator ensurdece e pelo lenço
a tosse da mãe dos que virão,
e o chiado para ele
do alfaiate com tuberculose. para a caixinha da sacristia
Enquanto o patrão – do gerente de Deus,
geleia de carne grudenta, o padre Platão.
com cara de focinho, O cassetete da polícia
o inchado furúnculo em euforia – em vocês não cai
vai beliscando para que fiques encorpado
a funcionária nos peitos: como o bolinho ortodoxo da Páscoa,
“Quem eu gostar, e olhe para ti,
adoto como filha! por entre seus dedos bem cuidados,
Darei duzentos Coolidge, o democrata.
(se cem for pouco). E, sentando­se agitada
A tristeza nas abóbadas celestes
eu vou tanger como guardiã da hipocrisia,
para sempre dos olhos! dos cents,
A tua vida da banha,
vai ser a liberdade
uma Coney Island, de vocês
um parque de diversões a mão arrasta
iluminado.” até a cadeia
de Ellis Island.
1 Sigla de Nova Política Econômica, adotada por Lênin, a partir de 1921. [1925]

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Порядочный гражданин

Если глаз твой Уведет –


врага не видит, а назавтра
пыл твой выпили зве́рья,
нэп и торг, волчья банда
если ты бесполых старух
отвык ненавидеть, – проститутку –
приезжай в смолу и в перья,
сюда, и опять
в Нью-Йорк. в смолу и в пух.
Чтобы, в мили улиц опутан, А хозяин
в боли игл в отеле Пла́за,
фонарных ежей, через рюмку
ты прошел бы и с богом сблизясь,
со мной закатил
лилипутом в поднебесье глазки:
у подножия «Се́нк’ю
их этажей. за хороший бизнес!»
Видишь – Успокойтесь,
вон вне опасения
выгребают мусор – ваша трезвость,
на объедках нравственность,
с детьми проняньчиться, дети,
чтоб в авто, барабаны
обгоняя «бусы», «армий спасения»
ко дворцам вашу
неслись бриллиантщицы. в мир
Загляни трубят добродетель.
в окошки в эти – Бог
здесь на вас
наряд им вышили княжий. не разукоризнится:
Только с вас
сталью глушит элевейтер и маме их –
хрип на платок,
и кашель и ему
чахотки портняжей. соберет для ризницы
А хозяин – божий ме́наджер,
липкий студень – поп Платон.
с мордой, Клоб полиций
вспухшей на радость чирю́, на вас не свалится.
у работницы Чтобы ты
щупает груди: добрел, как кулич,
«Кто понравится – смотрит сквозь холеные пальцы
удочерю! на тебя
Двести дам демократ Кули́дж.
(если сотни мало), И, елозя
грусть по небьим сводам
сгоню стражем ханжества,
навсегда с очей! центов
Будет и сала,
жизнь твоя – пялит
Ку́ни-Айланд, руку
луна-парк ваша свобода
в миллиард свечей». над тюрьмою
Элис-Айланд.
[1925] J

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cartas_ julho

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que tange aos atos golpistas de 8 de ja- Outra matéria “derrubadora” foi a
piauí
JUNHO
_ 201 neiro deste ano. Nunca tive ligação com de Consuelo Dieguez, A fraude titâni- Agradeço imensamente o retorno dos diá-
junho
militares, mas sempre achei que as For- ca, na qual são mostradas as operações rios. A rotina canhota de nosso compa-
A teia do golpe
Ana Clara Costa reconstitui a trama
montada por policiais, militares e
políticos para golpear a democracia
ças Armadas tinham um papel a cum- que deram origem a uma enorme frau- nheiro Geraldo (Alckmin, guerreiro do
A fraude do século
Consuelo Dieguez revela os bastidores
do rombo da Americanas e o fiasco do
festejado trio de capitalistas do país
prir e uma imagem a zelar.  de nas vetustas Lojas Americanas. Cai povo brasileiro, piauí_201, junho) me pos-
O cupinzeiro fatal...
Breno Pires faz o inventário das falcatruas
Esses militares, alguns de altas paten- por terra a imagem de super-heróis do sibilitou gostosas risadas. Com tal riqueza
tes, cooptados pelo seu líder messiânico capitalismo brasileiro da trinca incen- de detalhes e uma apuração minuciosa de
do governo Bolsonaro na área da saúde

...e a expulsão dos cupins


Bernardo Esteves relata os obstáculos

Jair Messias Bolsonaro, não tiveram o sada e admirada por todos: Jorge Pau- Ana Clara Costa sobre as tentativas de gol-
para reconstruir a política ambiental

Literatura não é bula


Ana Maria Machado alerta para os riscos

menor pundonor em atuar de forma fu- lo Lemann, Carlos Alberto Sicupira pe de Estado e seus personagens, eu me
de corrigir clássicos infantojuvenis

E mais:
Um portfólio de Flavia Valsani dá adeus a Rita Lee

nesta na consecução de seus objetivos, e Marcel Telles. Eram vistos como os pergunto se precisa mesmo de uma cpi
Como ler os romances russos hoje, por Elif Batuman
A Índia entre Pelé e Maradona, por Felipe Botelho Corrêa
Um conto de Vanessa Barbara
Cinco poemas de Lucas Litrento

isto é, a permanência no poder do presi- tops dos tops. Com seu modelo geren- para prender quem deve (A teia do golpe).
dente capitão, com toda a sua gama de cial próprio, no qual a maximização Por fim, achei interessante o casamen­
O d erd gret
“A intale

EX io d é q rev

piauí_201_R$ 32,00_ano 17_junho_2023


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destempero e desgoverno. Não pensaram, de lucros é o ponto alto dos negócios, to dos textos de Ana Maria Machado (Sen-
:

uma única vez, em como poderiam en- passaram por cima de tudo para conse- satez e sensibilidade) e de Elif Batuman
xovalhar a imagem e a história da Força guir seus objetivos e instauraram um (O grande rosto e o nariz), na piauí_201,
que representam e dirigem. As Forças método tóxico nas empresas que pos- junho. No fundo, dizem aquilo que não
Armadas, que buscam melhorar sua ima- suem. O trio de bilionários “tirou o parece tão óbvio: que cancelar russos ou
gem, depois de anos sombrios no poder, time de campo”, como se um rombo extirpar a linguagem A ou B da literatura
QUEBRA DE REPUTAÇÕES foram usadas de maneira lamentável de 20 bilhões fosse uma barra de cho- só nos torna mais burros. Há o inaceitável
Sou assinante da piauí há bastante tem- por seus comandantes. colate vendida nas gôndolas das Lojas e há a violência evidente que devem ser
po e é comum detectar matérias que me Ana Clara fez um trabalho minucio- Americanas. Nenhuma palavra, ne- combatidos; o resto é debate, e o debate
trazem ótimos ensinamentos/questiona- so, mostrando do que nos livramos. Ima- nhum gesto e nenhum reconhecimen- deve ser aberto, participativo e plural. 
mentos sobre as dezenas de coisas que ginem o que seria deste país em um to de erros cometidos. LEONARDO CADIÑANOS_PORTO ALEGRE/RS
ocorrem neste país tropical. A piauí_201, segundo governo bolsonarista, uma dita- Parabéns às duas repórteres, que
junho, nos traz dois artigos que miram dura legalizada, recheada de autoritaris- com um brilhante trabalho, múlti- FICÇÃO MILITAR E REALIDADE LITERÁRIA
no mesmo alvo: a quebra de reputações. mo, incompetência, fundamentalismo plas pesquisas e informações, nos for- É aterrador saber dos meandros do quase
Iniciamos este desmonte, podemos religioso e destruição ambiental.  neceram preciosos detalhes para que golpe. Ou golpes, considerando as articu-
chamar assim, com a matéria da Ana Lula é a salvação? Respondo: claro certas reputações, de maneira inaba- lações mostradas por Ana Clara Costa
Clara Costa, A teia do golpe, na qual é que não. Mas nada seria pior do que lável, fossem atingidas, sem dó nem desde o final do ano passado (A teia do
evidenciada a participação/ação/elabo- a continuidade do governo fascista piedade. golpe, piauí_201, junho). Os desentendi-
ração/omissão das Forças Armadas, no de Bolsonaro. ANTONIO CARLOS DA FONSECA NETO_SALVADOR/BA mentos quanto ao dinheiro da Máfia do

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2 de 2 29/6/23 PROVA FINAL

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piauí DEPARTAMENTO COMERCIAL
comercial@revistapiaui.com.br
Enio Santiago [RJ]: eniosantiago@revistapiaui.com.br
FUNDADOR João Fernandes [SP]: joao.fernandes@revistapiaui.com.br
João Moreira Salles Sérgio Siqueira [SP]: sergio.siqueira@revistapiaui.com.br
CONSELHO EDITORIAL Tida Cunha [SP]: tida.cunha@revistapiaui.com.br
Dorrit Harazim, Flavia Lima, João Moreira Valéria Alves [SP]: valeria@revistapiaui.com.br
Pix foram uma das causas do insucesso CAPITALISMO SELVAGEM Salles, Marcelo P. L. Medeiros, Natuza Nery, Paulo Tamanaha [BSB]:
dos planos, e entendemos por que deu Mais uma excelente reportagem da jor- Simon Romero, Thiago Amparo paulo.cin@centrodeideiasenegocios.com.br
certo em 1964, com direção político-fi- nalista Consuelo Dieguez, sob o título DIRETOR DE REDAÇÃO
André Petry J EDITORA ALVINEGRA
nanceira única. No relato, há desde a frus- muito bem bolado, A fraude titânica rua Aníbal de Mendonça, 151 / 2º andar
tração acadêmica do “inventor” da urna (piauí_201, junho), um míssil que atinge EDITOR EXECUTIVO 22410-050 Rio de Janeiro / RJ
Alcino Leite Neto tel [21] 3511 7400
eletrônica até os tresloucados militares, em cheio a honra do incensado trio do rua Mateus Grou, 109 / 1º andar
PRODUTORA EXECUTIVA
representados por Mauro Cid. A vergo- capitalismo caboclo, Beto Sicupira, Mar- Raquel Freire Zangrandi 05415-050 São Paulo / SP
tel [11] 3061 2122
nha militar é fato, portanto, diferente do cel Telles e Jorge Paulo Lemann, cujo EDITORES e-mail: redacaopiaui@revistapiaui.com.br
paradoxo da “inteligência militar”. Eles fantástico êxito nos negócios os tornou fi- Alejandro Chacoff, Armando Antenore,
Fernanda da Escóssia
queriam – e continuam querendo – es- guras de destaque e os levou a ocupar po-
REPÓRTERES
crever outras versões para a Constituição sições de liderança entre os bilionários Allan de Abreu, Amanda Gorziza, Ana Clara Costa, Associação Nacional dos Editores de Revistas
que corroborem  seus fatos, da mesma brasileiros, conforme divulgação da revis- Angélica Santa Cruz, Bernardo Esteves, Breno
Pires, Consuelo Dieguez, Fernando de
forma que outros atores querem mutilar ta Forbes relativa ao ano de 2022. O mais Barros e Silva, João Batista Jr., Luigi Mazza, Instituto Verificador de Comunicação
Tatiane de Assis, Thais Bilenky,
obras literárias. A experiência pessoal de atingido foi o primeiro deles, Carlos Al- Thallys Braga, Tiago Coelho
PRÉ-IMPRESSÃO
Ana Maria Machado (Sensatez e sensibi- berto Sicupira, responsável direto pela DIRETORA DE ARTE Antonio Rhoden
lidade, piauí_201, junho) é definitiva: dei- nomeação dos gestores das Lojas America- Maria Cecilia Marra
xem o lapis littera às pedras e escrevam nas que cometeram o maior desfalque EDITORA DE ARTE
outras versões de seus livros. Monteiro apurado no país, falsificando dados de Paula Cardoso

Lobato fez isso – e querem mudar sua balanço, convertendo prejuízos em lucros, EDITOR DE REDES SOCIAIS
Fabio Brisolla A piauí é impressa pela Plural Indústria Gráfica
obra. Carlos Heitor Cony também, ao que renderam generosos bônus aos mes- Ltda, em papel pólen bold 90 gramas nas capas
SUBEDITORA DE REDES SOCIAIS
verter clássicos da literatura para uma mos e dividendos indevidos aos acionistas, Emily Almeida e pólen soft 70 gramas no miolo, produzidos em
bobinas exclusivamente para a piauí por Suzano
linguagem mais simples que atraísse os logicamente beneficiando o famoso trio. COORDENADORA DE CHECAGEM Papel e Celulose S/A.
jovens leitores. A justificativa na época Não acredito em inocentes nessa his- Marcella Ramos
era o hermetismo do original, e pude co- tória, e o trabalho  de Consuelo Die- CHECAGEM E REVISÃO TIRAGEM DESTA EDIÇÃO: 35 910 exemplares
Carlos Santos, Carolina Leal, Fábio Gabriel Martins,
nhecer muitas dessas obras, sem trau- guez revela, acima de tudo, os métodos João Felipe Carvalho, Luiza Barbara PARA ANUNCIAR
mas, sabendo que não eram as completas. brutais utilizados para a obtenção de publicidade@revistapiaui.com.br
COORDENADOR DIGITAL
Agora, pode haver outros argumentos, ou lucros nessas empresas, praticando um Pieter Zalis PARA ASSINAR
seja, leitores sensíveis e a necessidade do capitalismo selvagem, sem nenhum res- COORDENADORA DE ESTRATÉGIAS
revistapiaui.com.br/assine
politicamente correto, mas teria que ficar peito pela ética, criando um sistema WhatsApp e SAC: [11] 3584 9200
Mariana Faria
Segunda a sexta, 9h às 17h30
claro que se trata de uma versão, não da paranoico de falsos valores, desprezan- COORDENADORA DE NARRATIVAS VISUAIS
obra original. A verdade machuca, por do totalmente os humanitários. Fernanda Catunda SAC [ATENDIMENTO AO CLIENTE]
site: minhaabril.com.br
certo, mas também nos faz aprender, DIRCEU LUIZ NATAL _RIO DE JANEIRO/RJ ESTAGIÁRIOS
atendimento.piaui@abril.com.br
Elane Oliveira, Lara Machado,
quer seja na escrita real, quer na panto- Maria Júlia Vieira, Pedro Tavares WhatsApp e SAC: [11] 3584 9200
Renovação: 0800 775 2112
mima de fictícios defensores da pátria. BAILÃO  DIRETOR FINANCEIRO Segunda a sexta, 9h às 17h30
ADILSON ROBERTO GONÇALVES_CAMPINAS/SP Gostaria de expressar minha insatisfa- Guilherme Terra
ção com a matéria sobre o ballroom in- ADMINISTRAÇÃO COMERCIALIZAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO
Daniella de Amo, Elena Abramcheva, Abril Assinaturas
ABAIXO O EXIBICIONISMO dígena do atl, o Acampamento Terra Elisangela Prado, Leandro Arruda, assinaturas@revistapiaui.com.br
Antigamente, eu começava a leitura da Livre (Heranças queer, piauí_201, ju­ Pedro Eduardo Vinhas, Simone Cardoso
DISTRIBUIÇÃO NACIONAL EM BANCAS
piauí do fim para o começo: Cartas em nho). Em dado momento do texto o au­ DIRETOR COMERCIAL
Total Express
Lucio Del Ciello
primeiro lugar. Mas de uns tempos para tor diz que: “Por contradição ou falta de lucio@revistapiaui.com.br bancas@revistapiaui.com.br
cá a seção está muito chata, cheia de alternativa, os jovens da Casa de Onijá COORDENADOR DE PUBLICIDADE NÚMEROS ATRASADOS
supostos eruditos querendo aparecer, se inspiram justamente nos oponentes Tarcisio Perroni numerosatrasados@revistapiaui.com.br
tarcisio@revistapiaui.com.br
com prosopopeias longas e tudo para de outras irmandades nacionais.”
MARKETING
tentar se mostrar mais interessante do Como poderia ser uma contradição se João Vinícius Saraiva www.revistapiaui.com.br
que os próprios textos da revista. Estou inspirar nos nossos modelos nacionais?
cansado desses que ficam deitando fala- Nós, das comunidades lgbtqiap+,
ção difícil pra cima de mim. Procuro nos esforçamos muito por construir um
cada vez mais manter distância deles e, movimento que, ainda que tenha referên­
com isso, a tal seção, antes tão saborosa, cias externas (e deve ter já que é de fato
hoje virou balcão de engravatados, diria um movimento internacional), também
mesmo de “sabichões de balcão”. Na mantenha uma cara nacional, regional e
última edição, pulei a coisa e caí de étnica específica. Os ballrooms são uma
boca direto na matéria A teia do golpe apropriação e não uma cópia do modelo
(piauí_201, junho) – ótima, por sinal –, norte­americano. Não há nada de contra­
sem aguentar a chateação. Voltem a ditório nisso, pelo contrário, é extremamen­
abrir espaço para os sem ostentação. te potente que possamos ser referência
HENRIQUE PERAZZI DE AQUINO_BAURU/SP uma para a outra aqui mesmo na nossa
própria terra e com a nossa própria cara. 
nota escancaradamente aberta Espero que revejam essa posição.
da redação: Escrevam, pois, escrevam JULI G. CANDIDO_RIO DE JANEIRO/RJ
todos! Henrique está com a razão! Aqui,
confortavelmente acomodados na pri-
meiríssima fila de poltronas do vetusto
teatro do estado democrático de direito, Por questões de clareza e espaço, a piauí
somos padroeiros indecomponíveis da se reserva o direito de editar as cartas
arguta teoria da isonomia criada na Gré- selecionadas para publicação. Solicitamos
cia Antiga, cujos postulados determi- que as cartas informem o nome e o endereço
nam que deixemos que digam, que completo do remetente.
pensem, que falem, deixa isso pra lá, Cartas para a redação:
vem pra cá, o que é que tem? REDACAOPIAUI@REVISTAPIAUI.COM.BR

piauí_julho 81
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CLUBE DE REVISTAS
despedida

PICTORIAL PRESS LTDA_ALAMY STOCK PHOTO_1965


DISCRIÇÃO
FULGURANTE
O charme de Astrud Gilberto residia, paradoxalmente,
num quase apagamento de sua personalidade

ARTHUR NESTROVSKI

A
história foi contada muitas ve- tuoso. Desse modo, definiu uma “bos-
zes. Nos dias 18 e 19 de março sa” realmente nova, que tinha em Tom
de 1963, João Gilberto e Tom Jobim seu maior compositor e em Vini-
Jobim estavam em Nova York cius de Moraes seu melhor poeta.
com o saxofonista Stan Getz. Quando João canta a estrofe inicial de
Eles gravavam o que viria a ser um dos Garota de Ipanema, só a primeira síla-
álbuns mais importantes da bossa nova, ba cai indubitavelmente no tempo forte:
o Getz/Gilberto. Já no final das grava- Ó...lha que coisa mais linda/Mais cheia de
ções, o produtor Creed Taylor teve a graça/É ela a menina/Que vem e que pas-
ideia de emendar uma versão em inglês sa/Num doce balanço/A caminho do mar.
de Garota de Ipanema à versão original Todo o resto flutua sobre a batida regular
para facilitar a compreensão da música dos compassos – de um jeito diferente a
pelo público norte-americano. À beira cada repetição e a cada sucessiva grava-
dos 23 anos, Astrud Gilberto acompa- ção. Agora vejamos a primeira estrofe da
nhava o marido, João, no estúdio da letra em inglês, antes de voltar a Astrud:
Verve Records. Gostava de cantar, era Tall and tan and young and lovely/The girl
muito afinada e falava bem inglês. Es- from Ipanema goes walking/And when she
calada de improviso, registrou para todo passes/Each one she passes goes: Aaah! Astrud na década de 1960: ela encarnou a felicidade um pouco triste do Brasil pré-ditadura
o sempre a canção de Jobim e Vinicius Aqui, não apenas se perdeu – de modo até
de Moraes, na versão de Norman Gim- chocante – o encantamento lírico de Vi-
bel. A faixa acabou abrindo o disco. nicius, mas a possibilidade de se cantar à Em 1963, Astrud se mudou para Nova bossa nova tomando para si o planeta in-
Astrud e João dividiam o vocal. Ela can- moda de João. Os versos dessa estrofe York acompanhando o marido, com quem teiro, pela voz de Astrud.
tava em inglês e ele, em português. obrigam o canto a oscilar entre o tempo já tivera João Marcelo, o único filho do Ao longo da carreira, a artista gravaria
Um ano depois, a Verve resolveu lan- forte e o fraco: Tall and tan and young casal. Separada em 1964, ficou nos Esta- nada menos que dezoito discos, cantando
çar a versão de Gimbel num compacto and lovely... A caminhada mais livre pro- dos Unidos até morrer, aos 83 anos, no em inglês, português, francês, espanhol,
simples, mas somente com a voz de As- posta por João Gilberto vira uma discipli- último dia 5 de junho – notícia que cor- italiano, alemão e até japonês, com par-
trud, o violão de Jobim e o sax-tenor de nada marcha. Parêntese: tall and tan?! reu o mundo, apesar de a artista ter para- ceiros variados, de Chet Baker, Stanley
Getz. João ficou de fora. O resto se Alta e bronzeada?! Só faltou dizer blonde do de cantar há duas décadas. Turrentine e George Michael à orquestra
sabe: o compacto virou um fenômeno e (loira). Virou Garota de Palm Beach... Seja no canto em si, seja na postura de James Last. Foi a primeira intérprete
vendeu 1 milhão de cópias. A bossa nova Não deixa de ser irônico perceber que em cena, as marcas de Astrud eram a afi- feminina a receber o Prêmio Grammy de
se tornou febre mundial e Astrud foi talvez tenha sido justamente esse um dos nação e a contenção, como se observa, gravação do ano, em 1965. Quase quatro
catapultada para o sucesso. fatores que levaram a bossa nova ao êxito por exemplo, no programa de tevê em décadas depois, em 2002, entrou para o
Do ponto de vista musical, há um internacional. Mas ficar só nisso seria que ela interpreta The Girl from Ipanema International Latin Music Hall of Fame.
elemento importante na versão em in- injusto com o trabalho dos arranjadores com Stan Getz, fácil de achar no You- Difícil imaginar que a maior parte des-
glês. Quando surgiu interpretando Che- e muito mais injusto com a arte de As- Tube. A cantora também demonstrava sa produção tenha sobrevida longa. Mas
ga de Saudade em 1959, João Gilberto trud, que não à toa se converteu num certa ingenuidade ou, indo mais longe, aqueles primeiros discos permanecem.
parecia uma criatura de outro planeta, dos principais nomes da música brasilei- um quase apagamento de personalidade Vendo as coisas daqui para fora, Astrud não
se comparado aos cantores e violonistas ra fora do país, embora nunca tenha al- que, paradoxalmente, só fazia aumentar chegava a ser uma cantora de primeiríssi-
da época. Compreendia a batida do vio- cançado verdadeiro sucesso por aqui. seu charme moderno. Se as melodias ma linha. Aos olhos do mundo, no entan-
lão como algo flexível e não dava ênfase da bossa nova, nas versões em inglês, to, ela certamente foi. Talvez não tivesse a

N
clara no primeiro ou no segundo tem- ascida em março de 1940, em Sal- retornavam à geometria regular, ao gosto personalidade forte que se espera de uma
pos do compasso. Quer dizer: fugia das vador, a cantora cresceu no Rio de convencional, Astrud escapava estranha- grande artista. Só que aí também se escon-
características usuais do samba. Janeiro. Chamava-se Astrud Evan- mente de qualquer expressão emotiva, o de um milagre. Menos uma cantora do
Ainda mais revolucionária era a for- gelina Weinert antes de se casar e foi ami- que, aliado ao leve sotaque, conferia a que um estilo, Astrud encarnou como nin-
ma de João entender o canto, que ele ga de adolescência de Nara Leão, que tudo um encantamento de outro mundo, guém a beleza, o afeto, a leveza e certa
aproximava da linguagem falada. Criar lhe apresentou o futuro marido. A baiana admirável e novo. forma de felicidade um pouco triste que
música a partir das melodias naturais da chegou a participar, em maio de 1960, No embalo de Girl from Ipanema, ela definem o sonho brasileiro pré-ditadura.
fala já vinha de muito longe. Basta pen- do lendário show A Noite do Amor, do Sor- logo lançou seu primeiro disco solo, The João Gilberto, Tom Jobim: esses estão
sar no canto gregoriano e nas canções riso e da Flor na então Faculdade Nacional Astrud Gilberto Album (1965), em que fora do tempo, presentes para nós, ao pri-
trovadorescas. Ou, então, no próprio de Arquitetura, ligada à ufrj. O espetá- apresentava dez composições de Jobim e meiro acorde, à primeira sílaba, na dimen-
samba urbano, popular no Brasil desde culo, que entrou para a história como o uma de Caymmi, algumas em português, são da eternidade. Livraram-se da época,
as primeiras décadas do século xx. A di- primeiro festival de bossa nova, reuniu a maioria em inglês. Depois viria The sem se perder dela. Já Astrud é uma cáp-
ferença é que João Gilberto levava ao Elza Soares, Sylvia Telles, Ronaldo Bôs- Shadow of Your Smile (1965), que oferecia sula perfeita de seu tempo, que ela soube
extremo a entoação do canto falado, re- coli, Nana Caymmi, Sérgio Ricardo e não só música brasileira, mas hits interna- preservar como ninguém. Com todas as
forçando um espírito ao mesmo tempo Johnny Alf, além da própria Nara e de cionais em arranjos bossa-novistas, como suas dicções e contradições, é a voz mun-
vanguardista e íntimo, moderno e afe- João, entre outros. a irresistível Fly Me to the Moon. Era a dial da bossa nova, que passou. J

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CLUBE DE REVISTAS
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A vertente mais radical,
persuasiva e urgente
do feminismo.

Neste trabalho magistral, Angela Y. Davis,


Gina Dent, Erica R. Meiners e Beth E. Richie,
quatro das mais proeminentes ativistas
antiprisionais do mundo, nos transportam
à efervescência intelectual e artística
das periferias norte-americanas. Um
apelo coletivo por um movimento
verdadeiramente interseccional,
internacionalista e abolicionista.

“Unindo feminismo e abolicionismo,


as autoras estabelecem uma nova
categoria política contra o Estado
penal e policial.”

Anielle Franco

“A grandiosidade dessas quatro


autoras está em nos deslocar a
um novo território coletivo: um
mundo que não encarcera as
nossas esperanças.”

Vilma Reis

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