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Tião, a história do menino fogueteiro

- Naquela manhã acordei com um gosto de morte na boca. Já sabia que a inominada estava
a caminho, por isso, antes de assumir meu posto, dei um longo e demorado beijo na minha
preta, e fiz um último carinho em meu filho.
Tião, que contava 18 anos, morava com Karolyne, de apenas 16, com quem já tinha um
menino, Isaac - Isaac Newton. Depois da despedida, pegou sua companheira inseparável,
a Russa Catarina, seu rádio e foi pra laje. Lá, como de costume, sentou numa lata, acendeu
um baseado, e ficou entorpecido pela calmaria, um silêncio no morro, que só podia significar
uma coisa…
Perdido no espaço-tempo, lembrou-se do dia em que chegou na comunidade, com apenas
11 anos, cheio de mágoa, e se tornou fogueteiro. De tão bom que era, em pouco tempo já
comandava os moleques do foguete, e por todos era temido porque, caso algum pisasse
na bola, Catarina cantava alto.
Esse sentimento de raiva só foi quebrado com o nascimento de Isaac, o nome foi uma
homenagem a seus pais, que não conheceram o bebê, mas sempre acreditaram que ele
poderia fazer algo importante na vida.
Na noite anterior, ficaram os dois - ele e o pequeno - deitados na laje, olhando para as
estrelas entre gargalhadas, onde Tião contava para o filho a história de cada constelação,
e tudo que havia visto na sua visita à Base de Alcântara.
Então, como que no despertar de um sonho bom, foi acordado com o rádio gritando:
Caveira! Caveira! No mesmo instante o céu da comunidade ficou tracejado pelas rajadas
de fuzil, e pelo barulho ensurdecedor dos helicópteros dando rasante. Tião se colocou em
posição de tiro, e sentou o dedo na Russa, porém, aquele instante – minuto, que pareceu
uma eternidade, foi interrompido pela bala certeira de um Sniper que, com um único
disparo, interrompeu a carreira do menino fogueteiro…

- Me chamo Sebastião, sou filho único de uma família muito humilde, mas honesta. Fui
criado em uma comunidade onde nunca me envolvi com nada de ruim, apesar da violência
do local. Filho de pais evangélicos, minha vida sempre foi Casa – Escola – Igreja, mas ainda
assim era uma criança muito feliz, e dedicada aos estudos. Meu maior sonho era ser
astronauta. Até que um dia, aquele menino preto, pobre e crente quase acreditou que isso
poderia se tornar realidade.
Era semana da Pátria, e em comemoração a essa data especial, a escola iria receber a
visita do Coronel Astronauta, meu maior ídolo. Na véspera da visita, nem dormi direito,
pensando em como seria encontrar com o meu herói, e o que eu poderia perguntar para
ele.
Acordei cedo, me despedi dos meus pais e, num galope, cheguei à escola antes mesmo do
portão se abrir. Quando tocou o sinal de entrada, eu já estava a postos para sentar na
primeira fila do auditório. E a hora chegou.
Foi como se eu tivesse sido teletransportado para outra dimensão, cada palavra, cada gesto
do convidado me fazia voar alto, sonhando em como seria conhecer o espaço. Foi então
que, num sacolejo, fui acordado com alguém chamando meu nome:
– Sebastião da Silva, Sebastião da Silva – até que a Diretora me puxou da cadeira.
– Vem cá Tiãozinho, você foi o sorteado.
Ainda atônito, e sem entender o que estava acontecendo, fui levado para o centro do palco,
onde o Coronel me cumprimentou dizendo:
– Parabéns, você foi o escolhido para viajar comigo, e conhecer a Base de Alcântara, o
Centro Aeroespacial Brasileiro. Você aceita?
Sem palavras, aquele garoto que sempre sonhou com esse momento só conseguiu
responder com um abraço do tamanho da Estratosfera, e que envolveu seu maior ídolo com
a força da Gravidade.
Os dias seguintes foram de pura excitação e preparação. Acompanhado de minha mãe,
embarquei na viagem que mudaria minha vida para sempre, de maneira definitiva.
Vivi a experiência de viajar de avião, aproveitei as mordomias de um hotel e, finalmente,
conheci a casa do Astronauta brasileiro. Chegando à Base, não perdi um segundo sequer
das explicações dos militares, absorvendo cada palavra, e guardando em minha retina cada
imagem – o Centro de Comando, a Área de Treinamento Físico, a Base de Lançamento,
mas o que me fez perder o chão, foi realmente conhecer o Simulador de Gravidade. Aquele
foi o dia mais longo, e ao mesmo tempo mais marcante de minha vida. Na despedida ganhei
um uniforme, feito especialmente para mim, igual ao dos oficiais aviadores que faziam seus
treinamentos em Alcântara.
De volta à comunidade, o que deveria ter sido a realização de um sonho, começou a se
tornar o maior pesadelo da minha vida de menino-homem. Eu, que acreditei que seria
recebido com honras militares, como aconteceu com Neil Armstrong quando retornou de
sua viagem à Lua, fui surpreendido, no dia em que voltei à escola, com a indiferença dos
meus colegas.
Mas o que mais me machucou, de verdade, foram as piadinhas – “filhote de astronauta”,
“lambe botas de milico”, “baba ovo de governo”. Aquelas palavras pareciam não fazer
sentido em minha cabeça que, com apenas 11 anos, estava sofrendo sua primeira e maior
decepção.
E as ofensas não melhoraram, na verdade foram só piorando, até que um dia aconteceu a
gota d’água – a professora de História, aquela filha duma vagabunda, falou em tom de
deboche para a sala inteira ouvir que “a única forma de moleque negro e pobre conseguir
chegar perto das estrelas, era subindo em um andaime bem alto, para lavar janela de
prédio”.
– Se orienta moleque, e acorda pra vida! Disse a professora, em tom de vaticínio.
Aquele chamamento realmente me “orientou”, e me fez acordar pra uma vida que eu não
havia escolhido. Se antes eu andava apenas triste, desde então comecei a nutrir uma
revolta contra tudo e contra todos que, não aguentando mais, me fez, no meio da
madrugada, pegar minhas coisas e fugir de casa, deixando para trás meus pais e meus
sonhos. Acabei indo parar em outra comunidade, mais distante, onde descobri que podia
ganhar dinheiro e abrigo, trabalhando de fogueteiro para o tráfico. Naquele dia morria o
Tiãozinho – Sebastião da Silva, e nascia ali o “Tião fogueteiro”.

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