Você está na página 1de 16

O verde 

Estranha é a cabeça das pessoas.


Uma vez, em São Paulo, morei numa rua que era dominada por uma árvore incrível. Na época da
floração, ela enchia a calçada de cores. Para usar um lugar-comum, ficava sobre o passeio um
verdadeiro tapete de flores; esquecíamos o cinza que nos envolvia e vinha do asfalto, do
concreto, do cimento, os elementos característicos desta cidade. Percebi certo dia que a árvore
começava a morrer. Secava lentamente, até que amanheceu inerte, sem folha. É um ciclo, ela
renascerá, comentávamos no bar ou na padaria. Não voltou. Pedi ao Instituto Botânico que
analisasse a árvore, e o técnico concluiu: fora envenenada. Surpresos, nós, os moradores da rua,
que tínhamos na árvore um verdadeiro símbolo, começamos a nos lembrar de uma vizinha de
meia-idade que todas as manhãs estava ao pé da árvore com um regador. Cheios de suspeitas,
fomos até ela, indagamos, e ela respondeu com calma, os olhos brilhando, agressivos e irritados:
— Matei mesmo essa maldita árvore.
— Por quê?
— Porque na época da flor ela sujava minha calçada, eu vivia varrendo essas flores.
(Inácio de Loyola Brandão)

A Folha Amassada!
    Quando criança, por causa de meu caráter impulsivo, eu perdia a paciência à menor
provocação.
Na maioria das vezes, depois desses incidentes, me sentia envergonhado e me esforçava por
consolar a quem tinha magoado. Um dia, meu professor me viu pedindo desculpas a um amigo,
depois de uma explosão de raiva. Após o ocorrido, ele me entregou uma folha de papel lisa e me
disse:
    — Amasse-a. Bem apertada.
    Com medo, obedeci e fiz com ela uma bolinha.
    — Agora, deixe-a como estava antes — disse o professor.
    Óbvio que não pude deixá-la como antes. Por mais que tentasse, o papel continuava cheio de
pregas. Então, o professor me explicou:
    — O coração das pessoas é como esse papel. A dor que a ele causamos será tão difícil de
apagar como esses amassados na folha.
    Assim, aprendi a ser mais compreensivo e paciente. Quando sinto vontade de estourar, lembro
daquele papel amassado. A impressão que deixamos nas pessoas é impossível de apagar.
    Quando magoamos alguém com nossas ações ou com nossas palavras, logo queremos
consertar o erro, mas é tarde demais… Me lembro de um antigo ditado: “Fale somente quando
suas palavras puderem ser tão suaves como o silêncio.”
    Seremos sempre responsáveis pelos nossos atos, nunca devemos nos esquecer disso.

(Autor desconhecido)

Robinson Crusoé - Daniel Defoe


        Meu nome é Robinson Crusoé. Nasci na velha cidade de Iorque, onde há um rio muito largo
cheio de navios que entram e saem.
        Quando criança, passava a maior parte do meu tempo a olhar aquele rio de águas tão
quietas, caminhando sem pressa para o mar lá longe. Como gostaria de ver os navios em
movimento, com velas branquinhas enfunadas pelas brisas! Isso me fazia sonhar as terras
estranhas donde eles vinham e as maravilhosas aventuras acontecidas em mar alto.
        Eu queria ser marinheiro. Nenhuma vida me parecia melhor que a vida do marinheiro,
sempre navegando, sempre vendo terras novas, sempre lidando com tempestades e monstros
marinhos.
        Meu pai não concordava com isso. Queria que eu tivesse um ofício qualquer, na cidade,
ideia que eu não podia suportar. Trabalhar o dia inteiro em oficinas cheias de pó era coisa que
não ia comigo.
        Também não suportava a ideia de viver toda a vida naquela cidade de Iorque. O mundo me
chamava. Eu queria ver o mundo.
        Minha mãe ficou muito triste quando declarei que ou seria marinheiro ou não seria nada.
        --- A vida do marinheiro – disse ela – é uma vida bem dura. Há tantos perigos no mar, tanta
tempestade que grande número de navios acabam naufragando.
        Disse também que havia no mar terríveis peixes de dentes de serra, que me comeriam vivo
se eu caísse n’água. Depois me deu um bolo e me beijou: “É muito mais feliz quem fica na sua
casa”.
        Mas não ouvi os seus conselhos. Estava resolvido a ser marinheiro e havia de ser.
        --- Já fiz dezoito anos – disse um dia a mim mesmo – é tempo de começar – e, fugindo de
casa, engajei-me num navio.

     Robinson Crusoé.

Mais história pela Frente...


Leia mais um trecho de Viagem ao centro da Terra.
 
A tempestade
Felizmente, graças a um vento favorável, deixamos para trás o cenário da luta.
Na quinta-feira, 20 de agosto, ouvimos um barulho estranho. Parecia uma queda de água.
Algumas horas depois, com o auxílio da luneta, descobrimos um enorme jato de água que
irrompia acima das ondas. Seria outro monstro marinho? Só conseguimos nos aproximar dele
muitas horas depois. Para nossa surpresa, encontramos uma ilha, onde o forte jato de água
jorrava a uma grande altura. Era um géiser. A ilhota foi batizada com o meu nome: Axel.
No dia seguinte, fomos surpreendidos por um temporal. Chuva e descargas elétricas
ameaçavam nossa travessia. A jangada foi atirada para um lado e para o outro, mas re sistiu. O
barulho dos raios era ensurdecedor e não conseguíamos ouvir uns aos outros.
A tempestade continuou a noite inteira. As ondas passavam por cima de nossa cabeça.
Estávamos mortos de cansaço, perdidos e congelados de medo.
De repente, um disco de fogo apareceu na beirada da jangada. Passou por cima dos alimentos,
dos instrumentos e da pólvora. Pensei que fôssemos explodir! Um cheiro de gás penetrou em
nossas gargantas e pulmões. Fomos cobertos por jatos de chamas. Por fim, aquela
agonia terminou.
A jangada foi arrastada então a uma velocidade incalculável. A essa altura, devíamos estar
passando embaixo da Europa inteira. Finalmente, chocou-se contra umas pedras e por pouco
escapamos da morte.
Após três noites sem dormir, encontramos abrigo em umas rochas e caímos em um sono
profundo.
No dia seguinte, meu tio estava animado. O mar tinha ficado para trás e continuaríamos por
terra. Não pude evitar de fazer uma pergunta que me intrigava:
-      Tio, como será a nossa volta?
-      Quando chegarmos ao centro do planeta, encontraremos uma nova rota ou voltaremos
pelo caminho já percorrido - respondeu ele.
Por sorte, o habilidoso Hans tinha conseguido salvar quase todos os nossos instrumentos e a
comida das águas. A jangada precisava de alguns consertos.
Meu tio pegou a bússola para saber em que direção estávamos. Sua reação foi de espanto
total.
-       O que foi? - perguntei.
Ele me fez sinal para examinar o aparelho. Era inacreditável! A ponta da agulha marcava o
norte. Em qualquer posição, a agulha insistia em virar para aquela direção. O terrível significado
disso era que, durante a tempestade, a jangada tinha voltado para o ponto de partida. Não
havíamos avançado nada!
Júlio Verne. Viagem ao centro da Terra. São Paulo: Scipione, 2008. p. 37-
38.

Texto: Viagem ao centro da Terra 


 Capítulo VI – Fragmento
 Júlio Verne                        
     Ao ouvir essas palavras, senti um arrepio percorrer todo o meu corpo, mas me contive. Resolvi
até parecer tranquilo. Somente argumentos científicos poderiam deter o professor Lidenbrock.
Ora, havia muitos e bons contra a possibilidade de tal viagem. Ir ao centro da Terra! Que loucura!
Guardei minha dialética para o momento oportuno e tratei de comer.
        Inútil mencionar as imprecações de meu tio contra a refeição pobre, mas acabou acatando
as explicações. A boa Marta foi libertada. Ela correu ao mercado e abasteceu tão bem a casa que
uma hora depois, já sem fome, voltei e consegui pensar em todas as implicações da situação.
        Meu tio estava quase alegre durante a refeição; soltava algumas piadinhas de cientista que
nunca são demasiadamente perigosas. Após a sobremesa, fez-me um sinal para que o
acompanhasse ao gabinete.
        Obedeci. Ele sentou-se numa ponta de sua mesa de trabalho, eu na outra.
        --- Axel – disse-me, numa voz bastante suave –, você é um rapaz muito esperto. Prestou-me
um grande favor quando eu, extenuado, ia abandonar as pesquisas. Para onde eu seria levado?
Ninguém sabe! Nunca me esquecerei disso, meu filho, e você terá sua parte em nossa glória.
        "Vamos!", pensei, "ele está de bom humor. Está na hora de discutirmos essa glória".
        --- Antes de mais nada – continuou meu tio –, peço-lhe que guarde segredo de nossa
descoberta. Não faltam invejosos no mundo da ciência, e muitos deles gostariam de fazer essa
viagem, da qual só tomarão conhecimento após nosso retorno.
        --- O senhor acha que o número de audaciosos é tão grande assim? - perguntei.
        --- Claro, quem hesitaria em conquistar tamanha celebridade? Se esse documento fosse
divulgado, todo um exército de geólogos correria para seguir os rastros de Arne Saknussemm!
        --- Não estou tão certo disso, meu tio, pois nada comprova a autenticidade do documento.
        --- O quê! E o livro em que o descobrimos?
        --- Bom, concordo que Saknussemm tenha escrito essas linhas, mas será que realmente fez
essa viagem? Quem sabe se esse documento não passa de uma mistificação?
        Quase lamentei ter pronunciado a última palavra, um tanto arriscada. O professor franziu
suas espessas sobrancelhas e temi ter comprometido o resto da conversa. Mas não. Meu severo
interlocutor esboçou uma espécie de sorriso e respondeu:
        --- É o que veremos.
        --- Ah – balbuciei, um tanto melindrado –, permita-me esgotar a série de objeções relativas
ao documento.
        --- Fale, meu filho, à vontade. Dou-lhe toda a liberdade de exprimir sua opinião. Você não é
mais meu sobrinho, mas meu colega. Fale.
        --- Antes de mais nada, gostaria de saber o que são esses Yocul, Sneffels e Scartaris, dos
quais nunca ouvi falar.
        --- Nada mais simples. Por coincidência, recebi há algum tempo um mapa de meu amigo
Augustos Peterman de Leipzig, que vem a calhar. Pegue o terceiro atlas na segunda prateleira da
biblioteca grande, série Z, prancha 4.
        Levantei-me e, graças às indicações precisas, encontrei rapidamente o atlas. Meu tio abriu-o
e disse:
        --- Esse é um dos melhores mapas da Islândia, o de Handerson, e creio que poderá resolver
todas as suas dúvidas.
        Debrucei-me sobre o mapa.
        --- Veja essa linha formada de vulcões - disse o professor - e observe que todos têm o nome
de Yocul, palavra que significa "geleira" em islandês. Sob a latitude alta da Islândia, a maioria das
erupções atravessa camadas de gelo. Daí o nome de Yokul, comum a todos os vulcões da ilha.
        --- Bem – respondi –, e o que é Sneffels?
        Achei que ele não teria resposta a essa pergunta, no que estava enganado. Meu tio
continuou:
        --- Acompanhe-me pela costa ocidental da Islândia. Está vendo Reykjavik, a capital? Muito
bem, suba pelos inúmeros fiordes dessa região corroída pelo mar e pare um pouco abaixo do
sexagésimo quinto grau de latitude. O que você vê ali?
        --- Uma espécie de península parecida com um osso descarnado, arrematado por uma rótula
enorme.
        --- É uma comparação bastante correta, meu filho; e o que há nessa rótula?
        --- Um monte que parece ter brotado do mar.
        --- É o Sneffels.
        --- O Sneffels?
        --- O próprio, uma montanha de cinco mil pés de altura, uma das mais notáveis da ilha e,
com certeza, a mais célebre do mundo se a sua cratera terminar no centro do globo.
        --- Mas é impossível! – exclamei, erguendo os ombros e revoltado com tal suposição. –
        --- Impossível? – retorquiu o professor Lidenbrock num tom severo. – E por quê?
        --- Porque com certeza essa cratera está obstruída por lavas, rochas incandescentes e
então...
        --- E se for uma cratera extinta?
        --- Extinta?
        --- Exatamente. Atualmente só há trezentos vulcões em atividade na superfície do globo,
mas há uma quantidade bem maior de vulcões extintos. Ora, inclui-se o Sneffels nessa última
categoria, e desde os tempos históricos só entrou em erupção uma única vez, em 1219. A partir
de então, foi acalmando-se e não é mais um vulcão em atividade.
        Não me era possível contestar tais afirmações; lancei-me então nas outras dúvidas
levantadas pelo documento.
        --- O que significa a palavra Scartaris - perguntei - e o que tem tudo isso a ver com as
calendas de julho?
        Meu tio refletiu por alguns instantes. Tive um momento de esperança, mas só um, pois logo
ele me respondeu nestes termos:
        --- O que você chama de dúvidas, para mim são soluções, que provam os cuidados
engenhosos com os quais Saknussemm quis precisar sua descoberta. O Sneffels é formado por
muitas crateras; era, portanto, necessário indicar qual delas leva ao centro do globo. O que fez o
sábio islandês? Observou que próximo às calendas de julho, ou seja, nos últimos dias de junho,
um dos picos da montanha, o Scartaris, projetava a sua sombra na abertura da cratera em
questão e anotou o fato em seu documento. Que indicação poderia ser mais exata? E, assim que
chegarmos ao topo do Sneffels, creio que não hesitaremos quanto à direção a seguir.
        Decididamente, meu tio tinha resposta para tudo. Percebi que seria impossível atacá-lo com
as palavras do velho pergaminho. Parei, portanto, de atormentá-lo a esse respeito, e como era
preciso, antes de mais nada, demovê-lo da ideia da viagem, passei às objeções científicas que
achava bem mais graves.
        --- Tudo bem – disse –, a frase de Saknussemm é clara e não deixa qualquer dúvida.
Concordo até que o documento pareça autêntico. Esse cientista foi ao fundo do Sneffels, viu a
sombra do Scartaris acariciar as bordas da cratera antes das calendas de julho; até ouviu lendas
de seu tempo que afirmavam a cratera dar no centro da Terra, mas que ele próprio tenha ido ao
centro da Terra e voltado, não acredito, não acredito mesmo!
        --- E por quê? – quis saber meu tio num tom de mofa.
        --- Todas as teorias da ciência demonstram que tal aventura é impraticável!
        --- As teorias provam isso? – respondeu o professor com um ar de benevolência. – Ah, que
teorias malvadas! Como essas teorias nos atrapalham!
        Percebi que estava zombando de mim, mas assim mesmo continuei:
        --- Claro! Está provado que o calor aumenta em um grau a cada setenta pés de profundidade
da superfície do globo; admitindo-se essa proporcionalidade constante, e sendo o raio terrestre
de mil e quinhentas léguas', a temperatura no centro passa de duzentos mil graus. As matérias do
interior da Terra estão, portanto, em estado de gás incandescente, pois os metais, o ouro, a
platina, as rochas mais duras, não resistem a tamanho calor. Tenho então motivos para
questionar a possibilidade de penetrar-se em tal ambiente!
        --- Então o seu problema é o calor, Axel?
        --- Claro, chegando a uma profundidade de apenas dez léguas, já teríamos alcançado o
limite da crosta terrestre, e a temperatura já seria superior a mil e trezentos graus.
        --- E você tem medo de entrar em fusão?
        --- Cabe ao senhor resolver esse problema – respondi com humor.
        --- Resolvo da seguinte forma – replicou o professor Lidenbrock, assumindo ares de grande
sábio: nem você, nem ninguém tem certeza do que acontece no interior do globo, já que se
conhece apenas doze milésimos de seu raio; a ciência é eminentemente perfectível e cada nova
teoria destrói uma velha. Não se acreditou até Fourier que a temperatura dos espaços planetários
diminuía todo o tempo, e hoje está provado que a temperatura das regiões etéreas não ultrapassa
quarenta ou cinquenta graus abaixo de zero? Por que não aconteceria o mesmo com o calor
interno? Por que, numa determinada profundidade, não atingiria um limite intransponível em vez
de aumentar até o grau de fusão dos minerais mais refratários?
        Como meu tio colocou a questão no campo das hipóteses, não tive o que responder.
        --- Muito bem, digo-lhe que verdadeiros sábios, entre outros, Poisson, provaram que, se
existisse um calor de duzentos mil graus no interior do globo, o gás incandescente das matérias
fundidas adquiriria tamanha elasticidade que a crosta terrestre não resistiria e estouraria como as
paredes de uma caldeira sob a pressão do vapor.
        --- É apenas a opinião de Poisson, meu tio...
        --- Está certo, mas outros geólogos célebres também acreditam que o interior do globo não é
formado nem de gases, nem de água, nem das pedras mais pesadas que conhecemos, pois,
nesse caso, o peso da Terra seria duas vezes menor.
        --- Ora, com números podemos provar tudo o que quisermos!
        --- E com fatos não? O número dos vulcões não diminuiu consideravelmente desde os
primeiros dias do mundo numa proporção constante? E se é que existe esse calor central, será
que não tende a diminuir?
        --- Meu tio, se o senhor entrar no campo das suposições, não teremos mais como discutir.
        --- Mas eu digo que gente muito competente é da mesma opinião que eu. Lembra-se de
quando o célebre químico inglês Humphry Davy me visitou em 1825?
        --- Não posso lembrar, só nasci dezenove anos depois.
        --- Bem, Humphry Davy veio me visitar quando passou por Hamburgo. Ficamos conversando
por um bom tempo e, entre outros problemas, discutimos a hipótese da liquidez do interior da
Terra. Ambos concordávamos que essa liquidez não podia existir por uma razão que a ciência
nunca conseguiu encontrar.
        --- Qual?
        --- Essa massa líquida estaria sujeita, como o oceano, à atração da Lua, e,
consequentemente, duas vezes por dia existiriam marés internas que, ao erguerem a crosta
terrestre, provocariam terremotos periódicos!
        --- É, no entanto, certo que a superfície do globo foi submetida à combustão, e é possível
supor que a crosta exterior resfriou antes, enquanto o calor se refugiou no centro.
        --- Errado – respondeu meu tio, – a Terra foi aquecida pela combustão de sua superfície e
não por qualquer outro meio. Sua superfície era composta de uma grande quantidade de metais,
como o potássio e o sódio, que têm a propriedade de incendiar-se apenas ao contato com a terra
e a água; esses metais pegaram fogo quando os vapores atmosféricos precipitaram-se como
chuva no solo; pouco a pouco, quando as águas penetraram nas fissuras da crosta terrestre,
determinaram novos incêndios com explosões e erupções. Daí os inúmeros vulcões dos primeiros
dias do mundo.
        --- Que hipótese engenhosa! – Exclamei um pouco contra a minha vontade.
        --- Que Humphry Davy comprovou, aqui mesmo com uma experiência muito simples. Fez
uma bola metálica, que representava nosso globo, com os metais que acabei de falar: quando
vertíamos um pouco de orvalho em sua superfície, ela se dilatava, oxidava e formava uma
pequena montanha, com uma cratera em cima; ocorria uma erupção que transmitia à bola inteira
tanto calor que se tornava impossível segurá-la com as mãos.
        Eu estava começando a convencer-me com os argumentos do professor, temperados, aliás,
por seu ardor e entusiasmo habituais.
        --- Como você vê, Axel – acrescentou –, o estado do núcleo central inspirou muitas
hipóteses aos geólogos; nada menos comprovado que o calor interno; eu acho que não existe,
nem poderia; é o que veremos, e, como Arne Saknussemm, saberemos em que nos basear a
respeito desse grande problema.
        --- É claro – respondi, sentindo-me atingido pelo entusiasmo - veremos se enxergarmos...
        --- Por que não enxergaríamos? Podemos contar com fenômenos elétricos para iluminar
nosso caminho e até com a atmosfera que sua pressão pode tornar luminosa à aproximação do
centro.
        --- Claro, Claro! – concordei – Afinal, isso bem pode ser possível.
        --- É mais do que certo! – respondeu triunfalmente meu tio. – Mas silêncio, entendeu?
Silêncio sobre tudo isso para que ninguém tenha a ideia de descobrir o centro da Terra antes de
nós.
        [...]
       Júlio Verne. Viagem ao centro da Terra. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Ática,
1998.

Felicidade Clandestina – Clarice Lispector

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um
busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse enchia os
dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança
devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho
barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de
paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás
escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho.
Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias,
altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia
de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe
emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como
casualmente, informou-me que possuía. As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-
o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia
seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava
devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e
sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia
emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta,
saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a
andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí:
guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha
vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí
nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e
diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo.
Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia
seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela
ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel
não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para
eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me
fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o
livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a
outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus
olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua
recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina
à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada
de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar
entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa
exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta
horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua
filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi
então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro
agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser. ”Entendem? Valia
mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse ” é tudo o que uma pessoa, grande ou
pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu
não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar.
Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo
levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração
pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter.
Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei
ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o,
abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que
era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia.
Como demorei! Eu vivia no ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. [...]

TENTAÇÃO - Clarice Lispector


Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.
   Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos
degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no
ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia
de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de
uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua
deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária.
Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher?
Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava
era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já
habituado, apertando-a contra os joelhos.
Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A
possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora,
e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era
um basset ruivo.

   Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido,
acostumado, cachorro. A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro
estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.

    Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina
que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob
os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado.
Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo. Os pelos de
ambos eram curtos, vermelhos.

   Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente,
pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência,
com encabulamento, surpreendidos.

   No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança
vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos
secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos,
entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo
talvez à gravidade com que se pediam. Mas ambos eram comprometidos. Ela com sua infância
impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua
natureza aprisionada.

   A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e
saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai
nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada
sobre a bolsa e os joelhos, até vê-la dobrar a outra esquina.

   Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás
__________________
Conto extraído de LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

 O SOCORRO

  Ele foi cavando, cavando, cavando, pois sua profissão – coveiro – era cavar. Mas, de repente,
na distração do ofício que amava, percebeu que cavara demais. Tentou sair da cova e não
conseguiu. Levantou o olhar para cima e viu que, sozinho, não conseguiria sair. Gritou. Ninguém
atendeu. Gritou mais forte. Ninguém veio. Enrouqueceu de gritar, cansou de esbravejar, desistiu
com a noite. Sentou-se no fundo da cova, desesperado. A noite chegou, subiu, fez-se o silêncio
das horas tardias. Bateu o frio da madrugada e, na noite escura, não se ouvia um som humano,
embora o cemitério estivesse cheio de pipilos e coaxares naturais dos matos. Só pouco depois da
meia-noite é que lá vieram uns passos. Deitado no fundo da cova o coveiro gritou. Os passos se
aproximaram. Uma cabeça ébria apareceu lá em cima, perguntou o que havia: - “O que é que
há?”
        O coveiro então gritou desesperado: -- “Tire-me daqui, por favor. Estou com um fio terrível! –
Mas, coitado!” condoeu-se o bêbado – “Tem toda razão de estar com frio. Alguém tirou a terra de
cima de você, meu pobre mortinho!” E pegando a pá, encheu-a de terra e pôs-se a cobri-lo
cuidadosamente.
Moral: Nos momentos graves é preciso verificar muito bem a quem se apela.

                                                        Fernandes, Millôr.

BOLINHOS DE CHUVA
Criança não gosta de chuva. Eu também reclamava dos dias chuvosos porque não podia brincar
no quintal. Resmungava: “Como chove!” E cinco minutos depois: “Será que não vai parar?” Dez
minutos mais tarde: “Continuava chovendo...”
         Vovó caçoava:
         ¾ Está chovendo lá fora. Aqui dentro faz bom tempo. Ou não?
         ¾ Não entendi!
         ¾ Quero dizer que aqui dentro o tempo pode ser bom ou ruim, depende de você... A gente
pode passar um dia de chuva de duas maneiras: aborrecendo-se porque a chuva não passa (e
mau humor nunca fez chuva parar), ou aproveitando o tempo e se divertindo. Quando perceber, a
chuva passou.
         ¾ Eu prefiro me divertir, lógico, mas o que a gente pode fazer de bom dentro de casa?
         ¾ Ler, ouvir música, pintar, pôr em ordem seu álbum de selos...
         ¾ Não estou com vontade de fazer nada disso.
         ¾ Então vamos fazer bolinhos de chuva.
         ¾ Eles são feitos de chuva, mesmo?
         ¾ Ai, Claudinha, por que é que você tem que tomar tudo ao pé da letra? Claro que são
feitos de farinha, leite e ovos, como os outros. Mas eu costumava faze-los quando chovia para
distrair meus filhos pequenos. São também chamados de bananinhas.
         Ela preparou rapidamente a massa, que foi enrolando, com minha desajeitada ajuda, no
formato de pequenas bananas. Enquanto ela fritava uma porção, eu colocava açúcar e canela em
pó sobre os que já estavam prontos.
         Enrolando a massa, fritando, polvilhando, conversando e comendo, ficamos ocupadas boa
parte da tarde. Quando chegou a hora de ir para casa (com um prato cheio de bolinhos) é que me
lembrei da chuva. Tinha passado!
         Em outro dia chuvoso, minha avó me ensinou a fazer arroz-doce com bastante leite e ovos.
         Comido ainda quente, ao calor do fogão de lenha e temperado com as histórias de vovó e
os “causos” da empregada, o arroz-doce é um acontecimento inesquecível.
         Comecei a gostar dos dias de chuva.
         Eles podem ser bons também para viajar.
         O dia do aniversário de tio Joaquim amanheceu chuvoso e minha mãe se admirou de ver
vovó arrumando as malas.
         ¾ Vocês vão com esse tempo?
         Minha avó deu risada.
         ¾ Vamos, não temos outro. Além disso, no trem não chove.
          — Mas mamãe...
          Ela ignorou todos os “mas” e “poréns” das filhas. Bem agasalhadas, saímos, contentes.
Viajar com chuva para mim era novidade e eu sempre gostei muito de novidades.
          Achei tudo muito divertido. Todo mundo entrava no trem de mau humor, carregando
guarda-chuvas que pingavam e capas úmidas. Mas as crianças, estufadas de agasalhos,
estavam animadíssimas. Pelo caminho tinham metido os pés em tudo que era poça d’água. Lá
dentro, grudavam os narizinhos nas vidraças, riam de tudo e faziam um alegre pedido: “Chove
mais, chove mais...”
         Nesse dia, mal entramos, vovó pediu chá, que um garçom nosso conhecido trouxe
rapidamente. Ficamos aquecidos e contentes, enquanto o trem disparava fechado e quentinho.

(NORONHA, Tereza. Um trem de janelas acesas.


Atual.)
CRÔNICA: PEÇA INFANTIL - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO
            
          A professora começa a se arrepender de ter concordado (“Você é a única que tem
temperamento para isso”) em dirigir a peça quando uma das fadinhas anuncia que precisa fazer
xixi. É como um sinal. Todas as fadinhas decidem que precisam, urgentemente, fazer xixi.
      — Está bem, mas só as fadinhas — diz a professora.
      — E uma de cada vez! Mas as fadinhas vão em bando para o banheiro.
     — Uma de cada vez! Uma de cada vez! E você, aonde é que pensa que vai?
     — Ao banheiro.
     — Não vai não.
     — Mas tia.
     — Em primeiro lugar, o banheiro já está cheio. Em segundo lugar, você não é fadinha, é
caçador. Volte para o seu lugar. Um pirata chega atrasado e com a notícia de que sua mãe não
conseguiu terminar a capa. Serve a toalha?
      — Não. Você vai ser o único de capa branca. É melhor tirar o tapa-olho e ficar de anão. Vai
ser um pouco engraçado, oito anões, mas tudo bem. Por que você está chorando?
      — Eu não quero ser anão.
      — Então fica de lavrador.
      — Posso ficar com o tapa-olho?
      — Pode. Um lavrador de tapa-olho. Tudo bem.
      — Tia, onde é que eu fico?
      É uma margarida.
      — Você fica ali.
      A professora se dá conta de que as margaridas estão desorganizadas.
      — Atenção, margaridas! Todas ali. Você não. Você é coelhinho.
       -  Mas o meu nome é Margarida.
     — Não interessa! Desculpe, a tia não quis gritar com você. Atenção, coelhinhos. Todos
comigo. Margaridas ali, coelhinhos aqui. Lavradores daquele lado, árvores atrás. Árvore, tira o
dedo do nariz. Onde é que estão as fadinhas? Que xixi mais demorado.
      — Eu vou chamar.
      — Fique onde está, lavrador. Uma das margaridas vai chamá-las.
      — Já vou.
      — Você não, Margarida! Você é coelhinho. Uma das margaridas. Você. Vá chamar as
fadinhas. Piratas, fiquem quietos.
      — Tia, o que é que eu sou? Eu esqueci o que eu sou.
         — Você é o sol. Fica ali que depois a tia... Piratas, por favor! As fadinhas começaram a
voltar. Com problemas. Muitas se enredaram nos seus véus e não conseguem arrumá-los.
Ajudam-se mutuamente, mas no seu nervosismo só pioraram a confusão.
        — Borboletas, ajudem aqui — pede a professora. Mas as borboletas não ouvem. As
borboletas estão etéreas. As borboletas fazem poses, fazem esvoaçar seus próprios véus, não
ligam para o mundo. A professora, com a ajuda de um coelhinho amigo, de uma árvore e de um
camponês, desembaraça os véus das fadinhas.
       — Piratas, parem. O próximo que der um pontapé vai ser anão. Desastre: quebrou uma
ponta da lua.
       — Como é que você conseguiu fazer isso? — perguntou a professora sorrindo, sentindo que
o seu sorriso deve parecer demente.
       — Foi ela! A acusada é uma camponesa [...] que gosta de distribuir tapas entre os seus
inferiores.
       — Não tem remédio. Tira isso da cabeça e fica com os anões.
       — E a minha frase? A professora tinha esquecido. A Lua tem uma fala.
       — Quem diz a frase da Lua é, deixa eu ver... O relógio.
       — Quem?
       — O relógio. Cadê o relógio?
       — Ele não veio.
       — O quê?
       — Está com caxumba.
      — Ai, meu Deus. Sol, você vai ter que falar pela Lua. Sol, está me ouvindo?
       — Eu?
       — Você, sim senhor. Você sabe a fala da Lua?
       — Me deu uma dor de barriga.
       — Essa não é frase da Lua.
       — Me deu mesmo, tia. Tenho que ir embora.
       — Está bem, está bem. Quem diz a frase da Lua é você.
       — Mas eu sou caçador.
       — Eu sei que você é caçador! Mas diz a frase da Lua! E não quero discussão!
       — Mas eu não sei a frase da Lua.
       — Piratas, parem!
       — Piratas, parem. Certo.
       — Eu não estava falando com você. Piratas, de uma vez por todas... A camponesa [...]
resolve tomar a justiça nas mãos e dá um croque num pirata. A classe é unida e avança contra a
camponesa, que recua, derrubando uma árvore. As borboletas esvoaçam. Os coelhinhos estão
em polvorosa. A professora grita: — Parem! Parem! A cortina vai abrir. Todos a seus lugares. Vai
começar!
       — Mas, tia, e a frase da Lua?
       — “Boa noite, Sol”.
       — Boa noite.
       — Eu não estou falando com você!
       — Eu não sou mais o Sol?
       — É. Mas eu estava dizendo a frase da Lua. “Boa noite, Sol.”
       — Boa noite, Sol. Boa noite, Sol. Não vou esquecer. Boa noite, Sol...
      — Atenção, todo mundo! Piratas e anões nos bastidores. Quem fizer um barulho antes de
entrar em cena, eu ... Coelhinhos nos seus lugares. Árvores, para trás. Fadinhas, aqui.
Borboletas, esperem a deixa. Margaridas, no chão.
        Todos se preparam.
        — Você não, Margarida! Você é coelhinho!
        Abre o pano.
VERISSIMO, Luís Fernando. Peça infantil. In: Para Gostar de Ler Júnior. São Paulo:
Ática, 2005. (Adaptado.)
Fonte: Maxi: ensino fundamental 2:multidisciplinar:6 º ao 9º ano/obra coletiva: Thais
Ginicolo Cabral. 1.ed. São Paulo: Maxiprint,2019.7º ano p.68 a 71.

MEDO DA ETERNIDADE - Clarice Lispector


    Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.
   Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se
pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o
dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas
balas.
        Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:
        --- Tome cuidado para não perder, porque esta bala nunca se acaba. Dura a vida inteira.
        --- Como não acaba? – Parei um instante na rua, perplexa.
        -- Não acaba nunca, e pronto.
        Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e
fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer.
Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava
da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com
aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do
qual já começara a me dar conta.
        Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.
        --- E agora que é que eu faço? – Perguntei para não errar no ritual que certamente deveria
haver.
        --- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto
você começa a mastigar. E ai mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.
        Perder a eternidade? Nunca.
        O adocicado do chicle era bonzinho não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa,
encaminhávamo-nos para a escola.
        --- Acabou-se o docinho. E agora?
        --- Agora mastigue para sempre.
        Assustei-me, não sabia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele
puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me
sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna
me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da ideia de eternidade ou de infinito.
        Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição.
Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.
        Até que não suportei mais, e, atravessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle
mastigado cair no chão de areia.
        --- Olha só o que me aconteceu! – Disse eu em fingidos espanto e tristeza. Agora não posso
mastigar mais! A bala acabou!
        --- Já lhe disse – repetiu minha irmã – que ele não acaba nunca. Mas a gente às vezes
perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o
chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.
        Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que
pregara dizendo que o chicle caíra da boca por acaso.
        Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.

                               Clarice Lispector. A descoberta do mundo. 3. ed.


                              Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992. p. 309-10.
Papos - Luís Fernando Veríssimo
– Me disseram…
– Disseram-me.
– Hein?
– O correto e “disseram-me”. Não “me disseram”.
– Eu falo como quero. E te digo mais… Ou é “digo-te”? – O quê?
– Digo-te que você…
– O “te” e o “você” não combinam.
– Lhe digo?
– Também não. O que você ia me dizer?
– Que você está sendo grosseiro, pedante e chato. E que eu vou te partir a
cara. Lhe partir a cara. Partir a sua cara. Como é que se diz?
– Partir-te a cara.
– Pois é. Parti-la hei de, se você não parar de me corrigir. Ou corrigir-me.
– É para o seu bem.
– Dispenso as suas correções. Vê se esquece-me. Falo como bem entender.
Mais uma correção e eu…
– O quê?
– O mato.
– Que mato?
– Mato-o. Mato-lhe. Mato você. Matar-lhe-ei-te. Ouviu bem?
– Pois esqueça-o e pára-te. Pronome no lugar certo e elitismo!
– Se você prefere falar errado…
– Falo como todo mundo fala. O importante é me entenderem. Ou
entenderem-me?
– No caso… não sei.
– Ah, não sabe? Não o sabes? Sabes-lo não?
– Esquece.
– Não. Como “esquece”? Você prefere falar errado? E o certo é “esquece” ou
“esqueça”? Ilumine-me. Me diga. Ensines-lo-me, vamos.
– Depende.
– Depende. Perfeito. Não o sabes. Ensinar-me-lo-ias se o soubesses, mas não
sabes-o.
– Está bem, está bem. Desculpe. Fale como quiser.
– Agradeço-lhe a permissão para falar errado que mas dás. Mas não posso
mais dizer-lo-te o que dizer-te-ia.
– Por quê?
– Porque, com todo este papo, esqueci-lo.

A PIPOCA - RUBEM ALVES


    A culinária me fascina. De vez em quando eu até me até atrevo a cozinhar. Mas o fato é que
sou mais competente com as palavras do que com as panelas.
   Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-me a algo que poderia ter o
nome de "culinária literária". Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha:
cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas,
churrascos.
        Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma meditação sobre o
filme A Festa de Babette que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor das
minhas limitações e competências, nunca escrevi como chef. Escrevi como filósofo, poeta,
psicanalista e teólogo — porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.
        As comidas, para mim, são entidades oníricas.
       Provocam a minha capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia
em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu.
    A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem,
brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás,
conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente
aconteceu. Minhas ideias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a
relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma
pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível.
        A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. Poético porque, ao
pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das
pipocas dentro de uma panela. Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido
religioso? Pois tem.
        Para os cristãos, religiosos são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de
Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida...). Pão e vinho
devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas.
        Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do Candomblé
baiano: que a pipoca é a comida sagrada do Candomblé...
        A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido.
        Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas
espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de
vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei como
isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a ideia de debulhar as espigas e colocá-
las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser
comidos.
        Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém
jamais poderia ter imaginado.
        Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme
barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra dentes se
transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das
pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira,
molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É muito divertido ver o estouro
das pipocas!
        E o que é que isso tem a ver com o Candomblé? É que a transformação do milho duro em
pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles
venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que
acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra dentes, impróprios para
comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa — voltar a
ser crianças! Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo.
        Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre.
        Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos
pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma
mesmice e dureza assombrosa. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o
melhor jeito de ser.
        Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca
imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um
emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão —
sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem
fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.
        Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais
quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si
mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está
sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo
poder do fogo, a grande transformação acontece: PUF!! — e ela aparece como outra coisa,
completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que
surge do casulo como borboleta voante.
        Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e
ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de
um jeito para ser de outro.
        "Morre e transforma-te!" — dizia Goethe.
        Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas,
descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que
piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu
conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar.
        Meu amigo William, extraordinário professor pesquisador da Unicamp, especializou-se em
milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma
explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia, as explicações científicas não
valem.
        Por exemplo: em Minas "piruá" é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram
casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: "Fiquei piruá!" Mas acho que o poder
metafórico dos piruás é maior.
        Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas
acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem.
        Ignoram o dito de Jesus: "Quem preservar a sua vida perdê-la-á". A sua  presunção e o seu
medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida
inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém.
Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo à panela ficam os piruás que não servem para
nada. Seu destino é o lixo.
        Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem
que a vida é uma grande brincadeira...
        "Nunca imaginei que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi
precisamente isso que aconteceu".
    
       

Você também pode gostar