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A Folha Amassada!
Quando criança, por causa de meu caráter impulsivo, eu perdia a paciência à menor
provocação.
Na maioria das vezes, depois desses incidentes, me sentia envergonhado e me esforçava por
consolar a quem tinha magoado. Um dia, meu professor me viu pedindo desculpas a um amigo,
depois de uma explosão de raiva. Após o ocorrido, ele me entregou uma folha de papel lisa e me
disse:
— Amasse-a. Bem apertada.
Com medo, obedeci e fiz com ela uma bolinha.
— Agora, deixe-a como estava antes — disse o professor.
Óbvio que não pude deixá-la como antes. Por mais que tentasse, o papel continuava cheio de
pregas. Então, o professor me explicou:
— O coração das pessoas é como esse papel. A dor que a ele causamos será tão difícil de
apagar como esses amassados na folha.
Assim, aprendi a ser mais compreensivo e paciente. Quando sinto vontade de estourar, lembro
daquele papel amassado. A impressão que deixamos nas pessoas é impossível de apagar.
Quando magoamos alguém com nossas ações ou com nossas palavras, logo queremos
consertar o erro, mas é tarde demais… Me lembro de um antigo ditado: “Fale somente quando
suas palavras puderem ser tão suaves como o silêncio.”
Seremos sempre responsáveis pelos nossos atos, nunca devemos nos esquecer disso.
(Autor desconhecido)
Robinson Crusoé.
Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um
busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse enchia os
dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança
devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho
barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de
paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás
escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho.
Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias,
altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia
de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe
emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como
casualmente, informou-me que possuía. As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-
o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia
seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava
devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e
sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia
emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta,
saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a
andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí:
guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha
vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí
nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e
diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo.
Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia
seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela
ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel
não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para
eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me
fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o
livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a
outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus
olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua
recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina
à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada
de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar
entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa
exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta
horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua
filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi
então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro
agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser. ”Entendem? Valia
mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse ” é tudo o que uma pessoa, grande ou
pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu
não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar.
Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo
levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração
pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter.
Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei
ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o,
abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que
era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia.
Como demorei! Eu vivia no ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. [...]
Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido,
acostumado, cachorro. A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro
estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.
Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina
que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob
os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado.
Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo. Os pelos de
ambos eram curtos, vermelhos.
Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente,
pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência,
com encabulamento, surpreendidos.
No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança
vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos
secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos,
entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo
talvez à gravidade com que se pediam. Mas ambos eram comprometidos. Ela com sua infância
impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua
natureza aprisionada.
A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e
saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai
nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada
sobre a bolsa e os joelhos, até vê-la dobrar a outra esquina.
Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás
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Conto extraído de LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
O SOCORRO
Ele foi cavando, cavando, cavando, pois sua profissão – coveiro – era cavar. Mas, de repente,
na distração do ofício que amava, percebeu que cavara demais. Tentou sair da cova e não
conseguiu. Levantou o olhar para cima e viu que, sozinho, não conseguiria sair. Gritou. Ninguém
atendeu. Gritou mais forte. Ninguém veio. Enrouqueceu de gritar, cansou de esbravejar, desistiu
com a noite. Sentou-se no fundo da cova, desesperado. A noite chegou, subiu, fez-se o silêncio
das horas tardias. Bateu o frio da madrugada e, na noite escura, não se ouvia um som humano,
embora o cemitério estivesse cheio de pipilos e coaxares naturais dos matos. Só pouco depois da
meia-noite é que lá vieram uns passos. Deitado no fundo da cova o coveiro gritou. Os passos se
aproximaram. Uma cabeça ébria apareceu lá em cima, perguntou o que havia: - “O que é que
há?”
O coveiro então gritou desesperado: -- “Tire-me daqui, por favor. Estou com um fio terrível! –
Mas, coitado!” condoeu-se o bêbado – “Tem toda razão de estar com frio. Alguém tirou a terra de
cima de você, meu pobre mortinho!” E pegando a pá, encheu-a de terra e pôs-se a cobri-lo
cuidadosamente.
Moral: Nos momentos graves é preciso verificar muito bem a quem se apela.
BOLINHOS DE CHUVA
Criança não gosta de chuva. Eu também reclamava dos dias chuvosos porque não podia brincar
no quintal. Resmungava: “Como chove!” E cinco minutos depois: “Será que não vai parar?” Dez
minutos mais tarde: “Continuava chovendo...”
Vovó caçoava:
¾ Está chovendo lá fora. Aqui dentro faz bom tempo. Ou não?
¾ Não entendi!
¾ Quero dizer que aqui dentro o tempo pode ser bom ou ruim, depende de você... A gente
pode passar um dia de chuva de duas maneiras: aborrecendo-se porque a chuva não passa (e
mau humor nunca fez chuva parar), ou aproveitando o tempo e se divertindo. Quando perceber, a
chuva passou.
¾ Eu prefiro me divertir, lógico, mas o que a gente pode fazer de bom dentro de casa?
¾ Ler, ouvir música, pintar, pôr em ordem seu álbum de selos...
¾ Não estou com vontade de fazer nada disso.
¾ Então vamos fazer bolinhos de chuva.
¾ Eles são feitos de chuva, mesmo?
¾ Ai, Claudinha, por que é que você tem que tomar tudo ao pé da letra? Claro que são
feitos de farinha, leite e ovos, como os outros. Mas eu costumava faze-los quando chovia para
distrair meus filhos pequenos. São também chamados de bananinhas.
Ela preparou rapidamente a massa, que foi enrolando, com minha desajeitada ajuda, no
formato de pequenas bananas. Enquanto ela fritava uma porção, eu colocava açúcar e canela em
pó sobre os que já estavam prontos.
Enrolando a massa, fritando, polvilhando, conversando e comendo, ficamos ocupadas boa
parte da tarde. Quando chegou a hora de ir para casa (com um prato cheio de bolinhos) é que me
lembrei da chuva. Tinha passado!
Em outro dia chuvoso, minha avó me ensinou a fazer arroz-doce com bastante leite e ovos.
Comido ainda quente, ao calor do fogão de lenha e temperado com as histórias de vovó e
os “causos” da empregada, o arroz-doce é um acontecimento inesquecível.
Comecei a gostar dos dias de chuva.
Eles podem ser bons também para viajar.
O dia do aniversário de tio Joaquim amanheceu chuvoso e minha mãe se admirou de ver
vovó arrumando as malas.
¾ Vocês vão com esse tempo?
Minha avó deu risada.
¾ Vamos, não temos outro. Além disso, no trem não chove.
— Mas mamãe...
Ela ignorou todos os “mas” e “poréns” das filhas. Bem agasalhadas, saímos, contentes.
Viajar com chuva para mim era novidade e eu sempre gostei muito de novidades.
Achei tudo muito divertido. Todo mundo entrava no trem de mau humor, carregando
guarda-chuvas que pingavam e capas úmidas. Mas as crianças, estufadas de agasalhos,
estavam animadíssimas. Pelo caminho tinham metido os pés em tudo que era poça d’água. Lá
dentro, grudavam os narizinhos nas vidraças, riam de tudo e faziam um alegre pedido: “Chove
mais, chove mais...”
Nesse dia, mal entramos, vovó pediu chá, que um garçom nosso conhecido trouxe
rapidamente. Ficamos aquecidos e contentes, enquanto o trem disparava fechado e quentinho.