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Ce ‘flia Meircles “Salar contigo. 4) Diver com claridadeo que existe em regredo, Irfalando contigo endo ver mundo ou gente, E nem sequer te ver — mas ver eterno 0 inotante No mar da vida ver coral de pemsarnento.” (Solombra, 1543) Nesses versos de Solombra (estranha ¢ migica fusio de sol e sombra), tiltimo livro publicado em vida por Cecilia Meire contramos a sintese metaforica da problemitica filos6fico-e7! tencial que esté na génese de seu universo pottico: eo ayseio de se sentir participante do Absoluto ou do Mistério divino césmico (‘Falar contigo’); * anecessidade de descobrir 0 verdadeiro espago ocupado pela efémera vida humana dentro da eternidade césmica que a abarca (‘ver eterno 0 instante’) e, finalmente, “e a apaixonada aceitacao de seu destino de pocla, cuja tarcfa maior seria captar, nomear ou instaurar em palaoras a verdade, a beleza ou a eternidade oculta nos seres ¢ nas coisas fugazes para perpetud-las no tempoe comuni “Jas aos homens (Nomar da vida ser coral de pensamento’).! Em permanente didlogo como mistério do Absoluto (ou Deus), coma fugacidade da vida, acternidade da morteea poss-vel tare- fa da poesia, a criagao pottica de Cecilia Meireles ¢, no« mbito da literatura brasileira, uma das vozes mais aule ticas da grande cri- Ensaio encrito em 1961, publicado em 1964 (in Tempo, soldido e morte, SP, Conselho nual de Cultura, 1964) ¢ refornulado em abel 1991. Embora pertensa a ar meat CO a nio 96 porque as principalmet sua pror amento conte geragho modemnista, Cecilia Meireles tem 1uf creveu poesia até os anon 60, quando morreu; blematica podtica continua viva eemaberto no per spiritual que surge no entre-séculos e se prolonga até os nos- sos dias, sob as mais variadas formas. De auténtico htimus religioso (no mais exato sentido etimolg- gico do termo latino, re-ligio, re-ligagio do homem ao Cosmos ou a Deus) os seus milhares de versos (escritos entre 1919 e 1964 ere colhidos em mais de duas dezenas de livros) expressam nao sé a cristalizagdo das mutiplas e altas experiéncias formais e tematicas que dio corpo a poesia brasileira desde 0 seu inicio, mas princi- palmente o dificil avangar em meio ao caos de valores provocado pela grande crise spiritual’ que a partir do entre-séculos se instau- Ta no mundo ocidental nos rastros do questionamento cientificis- ta que veio abalar os alicerces da fé tradicional. __ Seja pela intensidade dessa forca agénica-indagativa que se impunha ao pensamento criador (a que nos rastros do Decaden- tismo e do Simbolismo entrava pelo nosso século a dentro), oude- vido & familiaridade com que a morte se lhe impés desde a infan- cia (antes de seu nascimento, morrem sucessivamente trés irmaos @ seu pai, € aos quatro anos, perde a mae), a verdade é que Cecilia Meireles, desde suas primeiras manifestagdes poéticas, foi atraida para a problemitica ético-religiosa-existencial que caracterizou a poesia finissecular na linha decadentista: aquela que dé voz a um homem necessitado de Deus, buscando-o desesperadamente mas sem encontrar os caminhos para chegar a Ele. Poesia que, em suas raizes ou em oculto hiimus, se alimenta de duas fontes principais: a da ciéncia (responsavel pela revelacao da nova verdade huma- na) e a da religiao (buscada principalmente no texto do Eclesias- tes, exatamente aquele que enfatiza o peso doloroso da vida por- que nela ‘tudo é vaidade e aflicao do espirito’, o ‘homem é pé ea0 pé voltara’). | | Sem pretendermos detectar limites nitidos e rigorosos entre as diferentes fases (ou estagios de conhecimento) facilmente percep- tiveis nos poemas cecilianos quando lidos em confronto, tentare- mos analisar, aqui, o gradativo evoluir de sua indagagao existen- cial que, tematicamente, se expressa pela obsessiva sondagem do tempo, da morte, da fugacidade da vida, da eternidade almejada

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