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Dissertação de Mestrado
Rio de Janeiro
Junho de 2009
Luiz Alberto Faria Ribeiro
CCE/PUC-Rio em 2005.
Ficha Catalográfica
Inclui bibliografia
CDD: 361
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710336-CA
A Deus.
Aos colegas do Mestrado Alan Loyola, Edilma Soares e Lianzy Santos, pelo apoio
e idéias para esta Dissertação.
Palavras-chave
Ribeiro, Luiz Alberto Faria. Lima, Luís Corrêa. (Advisor). Is God for
everyone? Transvesties, social inclusion and religion. Rio de
Janeiro, 2008. 159 p. MSc. Dissertation. Departamento de Serviço
Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Keywords
1. Introdução 12
2. Mas quem são as travestis? 16
2.1. Silicone 17
2.2. Breve histórico de suas vidas 19
2.3. Histórico sobre exclusão e violência contra homossexuais 20
2.4. Movimento homossexual brasileiro 24
2.5. Ações positivas em prol do público LGBT 26
1.5.1. Brasil sem homofobia 26
1.5.2. Conferência Nacional para GLBT 27
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2.7. Gênero 30
2.8. Teoria queer 31
2.9. Bibliografia pesquisada 33
2.9.1. Na bibliográfica 33
2.9.2. Na documental 35
2.9.3. Trabalhos acadêmicos recentes 37
2.9.4. Filmografia 38
2.9.4.1. Documentários brasileiros 38
2.9.4.2. Assim me diz a Bíblia (For the Bible tells me so) 39
3. Violência, exclusão e inclusão 41
3.1. Violência 41
3.1.1. Violência doméstica 41
3.1.2. Bullying 44
3.2. Estigma 45
3.3. Exclusão 50
3.4. Pânico moral 55
3.5. Redes sociais e de solidariedade 57
3.6. Guetos e territórios 64
3.6.1. Guetos LGBT 64
3.6.2. Na ‘pista’ 66
3.6.3. Humanização e simpatizantes 70
4. Religião 72
4.1. Posicionamentos das religiões sobre a homossexualidade 75
4.1.1. Religiões cristãs tradicionais 75
4.1.1.1. Religião católica 75
4.1.1.2. Religiões reformadas 79
4.1.2. Candomblé e umbanda 81
4.1.4. Budismo 91
4.1.5. Wicca 91
5. A pesquisa 99
Esta dissertação tem como objetivo um estudo sobre a relação entre travestis
moradoras do Rio de Janeiro e a religião.
No final do curso, durante correção do TCC, foi comentado pela Prof. Ilda
Lopes Rodrigues da Silva (responsável pelo curso de Atendimento á criança e
adolescente vítimas de Violência Doméstica) que pouco havia na PUC matéria
sobre este tema; apenas um trabalho também de conclusão de curso, no
Departamento de Serviço Social. Ela sugeriu que este seria um tema interessante
para uma Dissertação de Mestrado.
Fiquei com esta sugestão em minha mente. Decidi, dias depois, inscrever-
me para o Mestrado em Serviço Social, na PUC. Após ingresso, fui convidado
pelo prof. Luis Corrêa Lima para participar de seu grupo de pesquisa que tratava
de diversidade sexual, em reuniões nas manhãs de quintas-feiras. Já no grupo, tive
Por que esta autora em especial? Percebi em toda a sua obra uma luta pela
condição humana, contra o preconceito para com os excluídos. É verdade que, por
ser judia, e tendo sido feita prisioneira por duas vezes em campos nazistas na
Segunda Guerra, este tema lhe é caro e familiar.
No entanto, Arendt poderia muito bem ter feito uma defesa apaixonada do
judaísmo, apenas; no entanto, optou pela defesa de todas as formas de diversidade
humana. Seu discurso, portanto, é atemporal; serviu para o século XX, com a
predominância das guerras étnicas e religiosas; mas também serve para o século
XXI, quando se discute cada vez mais não apenas a diversidade étnica e/ou
religiosa. Neste começo de século, bastante material está sendo produzido no que
diz respeito à diversidade sexual, com os ganhos conquistados em todo o mundo
pela população LGBT, além da visibilidade dada em relação ao preconceito e
exclusão deste grupo. Que, embora denominada de ‘minoria’, compreende
milhares de pessoas ao redor do mundo, seja na vertente gay, lésbica ou qualquer
outra existente (ou que venha a existir). Alguns diriam tratar-se de uma ‘maioria
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final, uma análise dos dados obtidos e se a religião pode efetivamente ser um
caminho possível para uma inclusão social.
Por ter pouco material acadêmico sobre as travestis, muito do que será
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2.1. Silicone6
- Por realmente não darem importância, não pensar que seja o uso do
silicone o constitutivo fundamental da travestilidade;
- O medo pelo que possa ocorrer caso o silicone seja implantado no corpo;
que o processo lhes cause a morte ou que fiquem aleijadas.
injeção, sem nenhuma indicação dos cuidados pós-silicone” (Kulick, 2008, p. 95).
Como se não bastasse, ainda havia algumas que “chegavam a colocar álcool na
seringa com o intuito de criar abcesso nessa ou naquela travesti de quem não
gostavam por qualquer razão” (idem, p. 95).
evasão escolar bem cedo em suas vidas (geralmente no primeiro ou segundo ano
do ginásio).9
Muitas abandonam o lar (Peres, s/d), por volta dos 13 anos. Relato parecido
é o de Natividade (2008), que escreve que elas abandonam o lar entre 14 e 15 anos
de idade.
Sem renda, sem família, com baixa escolaridade, terminam por enveredar
pelo caminho da prostituição. Nos pontos de ‘batalha’ (como são conhecidas as
zonas de prostituição), conhecem travestis mais velhas, que as acolhem e as
ensinam como transformar seus corpos para serem mais femininas.
9 Esta violência ocorrida nas escolas é denominada bullying. Este termo surgiu na
década de 1990, na Europa, com os trabalhos do professor Dan Olweus, na
Noruega (Neto, 2004). No Brasil, embora pouco conhecido, há algumas
pesquisas sobre o tema, como a realizada pela ABRAPIA. Este fenômeno vem
crescendo, sendo disseminado em todas as classes sociais. Não há, em língua
portuguesa, um vocábulo específico para bullying; entende-se, no entanto, que
acontece quando há uma tentativa de constranger, intimidar, machucar
fisicamente, isolar ou excluir algum estudante, sendo que os atos são realizados
repetidamente, por períodos extensos. Portanto, bullying pode ser entendido
como o uso da força ou de poder para intimidar e perseguir algum estudante.
20
No Brasil, até a década de 1990, não havia estatísticas oficiais sobre crimes
contra homossexuais. Os únicos relatos existentes eram fornecidos,
principalmente, por jornais, como O Globo e O Povo (Rio de Janeiro). O Grupo
28 de junho10 decidiu então, nos anos de 1990, reunir os dados em jornais do
município do Rio de Janeiro, das décadas de 70 a 90. Não foi um levantamento
sistemático de referências na imprensa, mas a constituição de um dossiê. Neste,
foram registrados aproximadamente 200 casos de violência anti-gay. Percebeu-se
que a violência ocorria com homossexuais masculinos, principalmente na faixa de
18 a 30 anos.
10O grupo tem este nome em referência aos acontecimentos ocorridos no bar
de Stonewall, nos Estados Unidos; estes serão discorridos em capítulo posterior.
21
anos 1990). Com os dados encontrados, foi realizada uma análise, na qual
algumas categorias foram propostas:
mais frequentes; 68% mortas por armas de fogo, em comparação com os gays,
que perfazem 23,5% das vítimas assassinadas da mesma forma, segundo
estatísticas do Arquivo da Polícia Civil, das décadas de 1980 e 1990 (Carrara;
Vianna, 2006).
Nos dezoito meses em que funcionou o DDH, 500 casos foram relatados,
sendo que a maioria se tratava não de crimes de violência letal, como os
reportados nos jornais, mas sim constituídos de dinâmicas cotidianas e silenciosas
de homofobia11. Eram casos de ofensas, ameaças, extorsões, agressões físicas e
discriminações na escola, trabalho, família; além disso, 1/3 dos casos ocorriam em
casa ou na vizinhança, sendo crimes não-letais.
ser livre de atritos. Essas identidades, tidas como coletivas, na verdade não são
homogêneas. Entre elas mesmas, há exclusão e preconceito.
2.7. Gênero
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enquadres que possam ser reconhecidos. Isto faz com que não seja aceita nem
mesmo pelos gays, cuja mentalidade ainda funciona de acordo com o ensinamento
binário. Muitas vezes, o gay se pensa exclusivamente dentro do enquadre
heterossexual de ativo ou passivo.
Para dar conta também desta questão, foi pensada a teoria queer, baseada
em estudos já citados de Foucault e Derrida, mas extrapolando os preceitos/
questionamentos dos autores. Esta teoria questiona não apenas o binarismo15, mas
também qualquer pressuposto existente que não possa ser maleável. Assim, não
aceita identidades fixas, que não sejam cambiáveis, que não possam ser
subvertidas, pois pensa o mundo como sendo plural e não cabendo na realidade
apenas algumas formas de sexualidade e comportamento. A teoria queer
possibilita uma melhor compreensão do sujeito travesti.
Com seus estudos, entende-se que alguns conceitos tidos como verdadeiros,
como sexo e sexualidade, por exemplo, são frágeis e podem ser questionados.
Este questionamento é importante porque permite um maior entendimento acerca
da variedade da raça humana, da diversidade existente. Aqui, há paralelo com
partes da obra de Hannah Arendt, sobre a defesa da diversidade humana.
Para Arendt (Lafer, 2006), não existe O Homem, mas sim seres humanos
que são únicos, plurais, sexuados e irrepetíveis. A defesa da pluralidade humana,
que Arendt (1979) usa para defender os expatriados, é aqui proposta para defender
os indivíduos que tem uma orientação sexual diferente da heterossexual. Em
sintonia com o pensamento dela, Guacira Louro (1996) escreve que “as
sociedades são e sempre serão constituídas por sujeitos diferentes, que buscam ser
politicamente iguais (...) suas múltiplas diferenças talvez possam ser motivo de
trocas, negociações, solidariedades e disputas” (idem, p.37).
Arendt (Lafer, 2006) escreve sobre os párias sociais e políticos, que tiveram
seus laços sociais com seus países cortados. Aqui, tento aumentar o alcance das
32
reflexões arendtianas, propondo as travestis como párias sociais, que não têm total
acesso à cidadania. A travesti é alijada de suas raízes (já que, geralmente, é
expulsa do lar, da escola). Com isso, não tem um lugar reconhecido no mundo;
não tem garantias de sobrevivência. É, portanto, supérflua; como não pertence a
lugar nenhum, pode ser facilmente obliterada.
2.9.1. Na bibliográfica
Denizart (1997) realizou entrevistas com travestis, sobre vários temas. Entre
eles:
- suas relações com drogas e com Aids, com a queixa de que as travestis
estão muito associadas a esta doença;
- a violência que sofreram em suas famílias, o abuso sexual por parte de tios
e primos, principalmente, quando ainda crianças. Destaco um relato de uma
travesti, Bené, que, quando criança, sofria coerção por parte dos adultos, para
manter silêncio sobre a relação sexual, sob pena de violência física:
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2.9.2. Na documental
sua casa; a dificuldade que enfrentou na escola, causada pelo preconceito por
parte dos alunos e de seu professor; sua evasão do colégio e ida para outras
cidades, aonde terminou conhecendo travestis, que lhe ensinaram o modo de vida
trans; sua entrada na prostituição, sua ida para a Europa e seu envolvimento com
a violência, após desentendimento com uma senhora italiana, que lhe causou a
prisão.
Entre eles, revistas eletrônicas como A Capa e Mix Brasil, aonde foram
encontrados relatos principalmente sobre a homofobia e, mais especificamente,
sobre a transfobia (fobia a travestis). Nestes, relatos de crimes e violências de
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Alguns outros fatores da vida das travestis não foram estudados de forma
mais aprofundada. Afinal, o mundo trans não se reduz apenas a violência,
prostituição, ‘montagem’ e rivalidade com as mulheres. Elas também possuem
sonhos de completar o curso médio e freqüentar faculdades (Peres, 2005). Há,
portanto, outros elementos que passam quase despercebidos pelos autores/
pesquisadores.
36
2.9.4. Filmografia
Estes filmes, que fazem parte de uma trilogia, abordam a vida e dificuldades
de travestis de regiões mais pobres, com depoimentos, às vezes, estarrecedores,
sobre a violência que sofrem.
denunciam as ameaças de morte feitas caso não se aceite manter relações sexuais
sem proteção; e de como muitas travestis tornam-se vítimas da Aids e outras
doenças por causa disso.
homo-orientação dos familiares; embora difícil, pode ser uma meta a alcançar, a
partir da humanização do homossexual, pois não o vê apenas com os estereótipos
conhecidos, mas como pessoa que sofre com a situação (primeiro ao se descobrir
homossexual, o que vai contra os preceitos religiosos, e depois ao tentar assumir
sua orientação sexual), se angustia por isso e precisa de apoio familiar e social.
em tempo e espaço demarcados; não serviriam para todos os povos, que não os
judeus. Os textos deveriam ser lidos levando em conta o contexto em que foram
escritos; para quem o foram e por que. Além disso, como não se têm os textos
originais e, sim, traduções, não se sabe até que ponto os textos não foram
modificados, mesmo que de forma intencional. Até que ponto as palavras e
expressões encontradas refletem os conceitos atuais?
3. Violência, exclusão e inclusão
3.1. Violência
As travestis sofrem violências das mais variadas; por terem seu corpo
feminino exposto 24 horas por dia, são passíveis de vulnerabilidade social. Pode-
se pensar esta vulnerabilidade a partir do conceito de estigma13, que sofrem por
causa deste mesmo corpo feminino. No entanto, não sofrem apenas no presente,
quando seu corpo já está transformado. Desde a infância, são vítimas de violência
doméstica.
13Conceito criado por Goffman (1988); será descrito mais adiante, nesta
dissertação.
41
ficarem expostas, nuas, entre outros. Para que o abuso sexual ocorra, não é
necessário que haja contato físico entre ambos; colocar a criança em situação
constrangedora sexualmente já se caracteriza como abuso. Fazê-la assistir filmes
eróticos ou se despir também entra nesta lista.
Esta violência tende a ser pior que as outras. Por ser também constituído por
uma síndrome do segredo (a criança é coagida a não comentar com ninguém sobre
o ocorrido) e adição (pois o agressor, muitas vezes, obriga a vítima a participar de
forma ativa do abuso, fazendo com que se sinta culpada pelo ocorrido), é mais
difícil de ser revelada. Leva mais tempo para que se possa intervir, como no caso
relatado em Engenharia Erótica (Denizart, 1998)14.
para alguém sobre a agressão, o agressor venha a matar o pai ou mãe desta
criança. Também pode ocorrer caso a criança não se deixe abusar e grite; neste
caso, o agressor pode machucar fisicamente ou mesmo matar a criança. Esta fica
com medo de que alguma ação sua possa causar a morte de um ente querido ou a
própria e termina por manter o segredo sobre o abuso.
primeira experiência sexual se deu aos quatro anos de idade. Segundo ela, teria se
apaixonado por um homem negro (de aproximadamente 18 anos) e conseguira
seduzi-lo, tendo com ele uma relação sexual. Provavelmente, a idade relatada está
incorreta; a memória do fato, muitas vezes, não é exatamente fiel ao acontecido.
Pode haver distorções (o que deve ter ocorrido no caso dela). Penso que o fato
realmente existiu, mas com ela sendo um pouco mais velha, com oito anos de
idade.
3.1.2. Bullying
16 Como relatam Silva (1993), Denizart (1997), Pelúcio (2008), entre outros.
44
3. 2. Estigma
Por ser ‘obra de Lúcifer’, a travesti permite que sua identidade seja
negativa, passível de punição; esta, então, torna-se aceitável. Há naturalização por
parte da própria travesti, da violência sofrida; uma ‘banalização da violência”,
segundo Arendt. A autora empregou este termo quando referiu-se ao extermínio
de raças (judeus principalmente) nos campos de concentração por burocratas
nazistas. É o genocídio daquele que é “diferente” (culturalmente, etnicamente,
sexualmente). A banalidade do mal surge quando os seres humanos parecem ser
incapazes de pensar o outro e condescem com o sofrimento, quando permitem a
tortura e mesmo assassinatos. A banalização da violência (e do mal) se dá,
segundo Pequeno (s/d) quando há:
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Na época em que escreveu o referido livro, havia uma tentativa por parte de
alguns filósofos de justificar a violência na natureza humana, baseando-se em
estudos comparativos com animais. Segundo a autora, todavia, esta constatação
no meio animal não significa que o homem se comporte de acordo com as
espécies animais; esta agressividade não pode justificar a agressividade humana.
Defendia, portanto, que a violência não é natural; tem um caráter instrumental,
mas não é necessariamente um potencial humano. A partir do momento que se
defende a violência como natural, esta torna-se aceitável sem questionamentos 18.
Este parece ser o caso das travestis que sofrem a violência simbólica sem
questionarem o fato.
Mas Arendt (2004) não preconiza uma sociedade totalmente pacífica e nem
a total recusa da violência (idem). O uso da desobediência civil pode ser
justificável, sendo em algumas circunstâncias o único meio pelo qual se obtém a
justiça. Ou pelo menos que não ocorra mais injustiças ou mesmo uma violência
ainda maior.
No caso das travestis, era notório, até décadas atrás, os cortes violentos que
faziam em si mesmas, para não serem levadas para a delegacia policial e lá serem
violentadas sexualmente. Era comum travestis que se cortavam principalmente
com giletes; fazendo isso, evitavam abusos sexuais por possíveis violentadores ou
mesmo de policiais19. Ao verem o sangue, a libido destes era diminuída, além do
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medo por possível infecção causada pelo vírus HIV/ AIDS. Era uma maneira
possível de serem deixadas em paz, o que geralmente ocorria depois.
3. 3. Exclusão
Castel (idem) prefere utilizar não o termo exclusão social, mas sim
desfiliação que seria um processo de sucessivas perdas ao longo da vida (família,
escola, entre outras) que culminam com a exclusão social. Para ele, há três tipos
de práticas excludentes (percebidas ao longo da história humana):
Seja com qual destas ocorrer, há o perigo de que, juntamente com esta
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indivíduos (discutirei sobre isso mais adiante), procurei mais informações sobre o
tema, relacionado ás travestis. No entanto, o que me chamou a atenção não foi um
estudo específico sobre o tema; foi, antes, perceber a lacuna que existe sobre a
relação entre religião e esta população. Em comunicação pessoal de 2008, a
pesquisadora Larissa Pelúcio confirmou, para mim, esta afirmação; o pesquisador
Marcelo Natividade (no mesmo ano), também sublinhou esta falta de mais
material sobre o tema.
Por que elas são tão excluídas, mesmo por seus ‘supostos’ pares? Será que
os gays teriam preconceito com quem possui características de outro gênero?
Além disso, cada vez mais indivíduos aceitam a sua personalidade trans20
(diria a sua condição trans) e parecem estar mais dispostas a ‘assumir’ sua
travestilidade. Criaram-se entidades focadas neste grupo, sendo que no início isto
ocorreu por causa da epidemia da Aids, na década de 80, principalmente.
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21A ASTRA/RJ é uma “entidade não governamental sem fins lucrativos fundada
em 29 de janeiro de 2005 nas dependências do Centro Cultural com a missão de
associar e mobilizar Travestis e Homens e Mulheres Transexuais deste estado,
objetivando garantir o exercício pleno da cidadania e a igualdade de direitos a
esses segmentos” (ASTRA, s/d). A entidade desenvolve várias ações, além de
participar em eventos ou projetos que envolvam travestis e/ ou transexuais.
Embora já exista um movimento LGBT no Rio de Janeiro, entendeu-se necessária
uma organização de travestis e transexuais que, através de ação política,
procurasse a garantia de demandas que são mais específicas destes grupos
(como o tratamento em caso de problemas decorrentes de injeção de silicone).
54
3. 4. Pânico Moral
Com esta finalidade, aparatos de controle social são fortalecidos, com uma
condenação ou hostilidade maior ao modo de vida diferente; surgem os
empreendedores morais (por exemplo, líderes religiosos) que tomam para si a
‘missão’ de combater os ‘heréticos’, através de medidas educacionais e
preventivas. Um exemplo são as igrejas protestantes especializadas em curar o
homossexual de sua homossexualidade, que seria advinda de forças demoníacas
(Miskolci, s/d). Portanto, não se dá mais através da penalização legal e
criminalização, quando os homossexuais eram espancados e mortos em espaços
públicos, por decisão do Judiciário da época (Foucault, 1977)22.
Sem família a quem recorrer, sem amigos, sem educação suficiente para ter
um trabalho que possibilite um mínimo de renda, as travestis sentem-se excluídas,
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isoladas.
Mas mesmo assim muitas não são aceitas; continuam a ser estigmatizadas
mesmo por suas famílias. No entanto, esta necessidade de uma filiação persiste.
Elas conseguem certo substituto nas travestis mais velhas, que se tornam suas
mães ou madrinhas. É interessante que este fato ocorre mesmo com possível
prejuízo para as travestis mais velhas. Afinal, a procura por travestis mais novas,
por parte dos clientes, pode prejudicar seus ganhos na ‘pista’. Mesmo assim, há
uma acolhida das possíveis futuras rivais.
Caso a travesti invada o local de outra, sofrerá sanções, por parte das demais
travestis. Não são poucas as ocasiões em que brigam entre si por causa de espaço.
Outro motivo de desavenças diz respeito aos maridos e aos seus ‘vícios’ (garotos
na faixa de dezoito anos com quem costumam ter relações sexuais esporádicas).
Deve haver um respeito mútuo entre elas; uma não pode paquerar o marido das
outras. O receio das travestis não é de que o marido as abandone em detrimento da
outra, mas sim de que estes tenham relações sexuais de forma passiva com as
demais travestis. Isto seria uma desmoralização muito grande, ao tomarem
conhecimento de que seus homens passaram para o lado feminino. Para elas, o
59
Também ao que se refere ao silicone, parece haver regras que indicam com
qual bombadeira será feita a feminilização do corpo; para ser aceita no local,
devem fazer a injeção de silicone com determinada bombadeira e não outra.
Quando elas mesmas decidem sair às ruas, durante o dia, muitas vezes se
vestem de boys, isto é, de forma a parecerem garotos. Nestas ocasiões, usam
26
bonés, camisas largas e calça comprida. Tudo que puderem fazer para evitar
preconceitos e desrespeito.
Mas no caso das travestis, estas normas podem ser fluidas, assim como o é a
sua condição trans. Mesmo entre as travestis, não há um consenso sobre quem são
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elas, qual sua identidade; também não há consenso sobre como devam se
comportar. Isto varia de localidade para localidade.
Por exemplo, Kulick (2008) relatou que o roubo de clientes era comum em
Salvador; todas as travestis furtavam objetos e dinheiro de seus clientes. Além
disso, todas as entrevistadas faziam algum tipo de escândalo, após o final das
relações sexuais com os clientes. Muitas iam para a porta dos apartamentos e
ameaçavam gritar, xingando o cliente ou nomeando-o como ‘passivo’, para que
ele, envergonhado, pagasse a mais pelo programa (embora já tivesse pago o
combinado). Isto era fato rotineiro e mesmo incentivado pelas travestis há mais
tempo na ‘batalha’. Em conversa com elas, Kulick relatou que estas mesmo
ficavam surpresas com a volta freqüente de clientes que haviam sido roubados (p.
70-71); mesmo assim, continuavam a fazer programa com elas.
A ASTRA/RJ tornou pública uma carta, em 2008, que pode ser acessada no site
27
www.astra.com.br.
61
informalmente, disseram que foi anti-ético da parte das travestis e que este fato só
denegria a imagem destas. Havia algumas sim que extorquiam; mas defendiam
que não era algo aceito ou estimulado pelo grupo. Os furtos afastariam os clientes
cariocas; o que parecia não acontecer em se tratando dos de Salvador. Portanto,
algo recorrente em uma comunidade (Salvador) parece não ser em outra (Rio de
Janeiro).
Já, segundo travestis entrevistadas por Duque (2005), para ser travesti não é
necessário silicone; e sim o fato de sentir-se e de portar-se como mulher.
desta dissertação.
62
Esta confusão identitária faz com que seja mais difícil, por profissionais de
saúde e pelo público leigo, o conhecimento de quem são; com isso, fortalecem-se
estereótipos, geralmente negativos, sobre elas e que não correspondem à
realidade. Em entrevista concedida pelo Pastor Gladstone (2008), por exemplo,
foi relatado que havia duas travestis que freqüentavam a sua Igreja. Após minha
explicação sobre a diferença, passou a nomeá-las transexuais. No entanto, no
decorrer da entrevista, novamente as chamou de travestis. Nem mesmo quem lida
com elas, às vezes, sabe exatamente sobre sua identidade; parecem não saber bem
a distinção entre travestis e transexuais.
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30Esta confusão se deve ao fato de que, até a década de 70, qualquer homem
que vestisse roupas femininas era nomeado travesti. As chamadas travestis, de
hoje em dia, hormonizadas e com silicone, só apareceram no final da década
de 70. Mas o costume de nomear todos que se vestem como mulher, como
sendo travesti, ainda é comum.
63
homossexuais mais pobres e que têm raras oportunidades de flertar, que não
aquelas horas da madrugada.
3.6.2. Na ‘pista’
quando são territórios de outros atores sociais que não lhes permitem a estadia. É
a ‘ditadura da noite’; há um campo demarcado no qual podem transitar (ás vezes
não tão livremente), mas que lhes é delegado apenas durante um período de
tempo.
indivíduo deve agir de acordo com as regras instituídas, embora elas sejam,
muitas vezes, conhecidas apenas pelas travestis.
Há uma lógica nesta fala; até o presente momento, os locais de ‘batalha’ são
aqueles em que se legitimam as travestis. Há um interdito em relação à sociedade
heteronormativa, que impede sua aceitação na sociedade. No entanto, elas são
objeto de desejos proibidos, por parte de indivíduos desta mesma sociedade que
interdita; é aí que se legitimam, que tem seu papel mais ativo.
Mas esta constatação pode ter efeito negativo; pode-se pensar que este
espaço é o único para elas, enquanto outros não seriam. No entanto, não é o único.
Podem ser criados outros espaços em que as travestis possam se socializar de
maneira diferente.
69
A maioria das mudanças sociais nas vidas das travestis foi realizada pelas
relações interpessoais que estabelecem com as pessoas que passam a conhecê-las;
ao aproximarem-se delas, passam a entender suas realidades. Passam a vê-las
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como seres humanos e não mais tanto como as caricaturas estigmatizadas que são
veiculadas pela mídia ou pela tradição homofóbica. Como aponta Peres (2005):
Outro exemplo pode ser visto no livro Toda Feita (Benedetti, 2005). Neste,
há o relato de um policial que, a princípio homofóbico, passa a conhecer travestis
nas noites. Com o tempo, percebe sua humanidade e passa mesmo a dar dinheiro
para que elas comessem sanduíches, durante o período em que se prostituíam.
Uma leitura literal dos textos sagrados, aliada a uma visão patriarcal,
excluem as mulheres da Igreja, de uma forma mais ampla. Com os homossexuais,
dá-se de maneira semelhante, embora a exclusão seja não por condição social e
sim por ser um pecado, algo que seria intrinsicamente errado do ponto de vista
teológico. Baseada em algumas passagens bíblicas, exclui-se o homossexual de
qualquer participação possível em ritos ou vida religiosa. Entre elas, uma das mais
conhecidas:
mesmo significado para todos. O que pretendo mostrar é que grandes pensadores,
de diferentes setores, perceberam (e discutiram) a importância desta para o
entendimento do homem e da sociedade.
motivos que fariam com que o ser humano se comportasse de forma a respeitar
seu semelhante.
religião esta afirmação, dando um significado para a sua vida dentro da sociedade.
A religião tem um poder de integração social (Bourdieu, 1998). Este poder
poderia possibilitar a inclusão da travesti em um determinado grupo social?
Assim, qualquer ato sexual deveria ser para a procriação (além daquele
realizado nos períodos infecundos, como controle de natalidade33); apenas o
heterossexual seria visto como ‘natural’, sendo, todos os outros, aberrações que
deveriam ser evitadas e, quando descobertas, punidas:
com travestis que moravam na paróquia. Era a época em que o tema da Campanha
da Fraternidade (que muda de ano para ano) era “Fraternidade e os Excluídos”,
em 1995. Começou a freqüentar as casas de paroquianos gays e travestis.
Percebeu que eram fervorosos católicos: tinham imagens de santos católicos
espalhados pelas casas, rezavam o terço, faziam orações diárias. Constatou como
era dura a situação das travestis, em particular; e de como tinham vontade de
continuar pertencendo à Igreja Católica. Fundou então a Pastoral dos Excluídos,
cujo foco era basicamente na população gay. Ficou conhecido em todo o Brasil,
como o padre fundador da Pastoral Gay, embora este título não seja correto.
sexuais com o sexo oposto, porque o homossexual também não poderia com
aqueles do mesmo sexo, já que haveria uma origem genética, sendo, portanto,
natural?
4. 1. 1. 2. Religiões reformadas34
34No Brasil, há várias denominações para estas igrejas. Neste texto, usarei as
denominações usadas pelos próprios entrevistados, isto é, igreja reformada
protestante ou igreja evangélica.
79
“Por isso, cada qual tem que aceitar o corpo tal como Deus lho
criou, e não está em meu poder transformar-me em mulher, e
não está em teu poder transformar-te em homem. Tal como fez
a ti e a mim, assim somos: eu um homem, tu uma mulher
(Gomes, 2006, p. 14)”.
Passados alguns dias, Pedro encontra um rapaz, que se oferece para cortar
seus cabelos longos, resquícios de sua ex-identidade travesti agora ‘liberta’: “Ao
primeiro corte, caiu a primeira potestade e assim foi até o final, caindo uma e mais
outra e legiões foram saqueadas” (idem, p.37). Portanto, uma alma foi
‘conquistada’ e a legião, exército de Satanás, perdeu um membro. Anos depois,
encontra uma moça, com quem se casa. Após algum tempo, “a sucata
transformada presenteia sua esposa com três santidades: Daniel, Débora e
Samuel” (ibidem, p.58).
4. 1. 2. Candomblé e umbanda
- Oxalá, deus Criador, tem uma metade que é feminina; tem, inclusive, um
rapaz amante (segundo uma versão mítica);
- Iansã, embora feminina, veste-se com uma calça comprida, que fica sob a
saia.
caso não seja necessariamente válido para todos os Centros). Nos terreiros de
candomblé, acontece o mesmo. Como constatado nesta enquete do Orkut36, que
versava sobre entrada de travestis no Candomblé. Assim se pronunciaram os
candomblecistas, em relação ao tema:
36É comum alguns sites da Internet, como o Orkut, promoverem enquetes nas
quais os membros de uma comunidade virtual discutem sobre determinado
tema.
Então, embora seja uma religião mais ‘aberta’, que não pretende a
estigmatização ou preconceito, na realidade não se mostra assim de acordo com os
membros. As travestis podem freqüentar sim, contanto que se adéqüem ao modo
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Portanto, parece equivocado pensar que ocorre uma aceitação plena, por
parte destas religiões afro, sobre as travestis. Se nem mesmo os homossexuais são
aceitos sem reservas, o que se dirá delas.
4. 1. 3. Doutrina Espírita
38Ogân se refere a homens que tem funções no terreiro. Entre elas, tocar os
atabaques durante as celebrações.
83
E Khúl (idem):
“(...) cabe aos dirigentes das casas espíritas agir com tato para
vedar a participação de pessoas que se dediquem a práticas
homossexuais nos trabalhos do centro espírita, principalmente
nas tarefas vinculadas à mediunidade e á doutrinação. No que
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Além disso, há uma culpa embutida que, a meu ver, parece maior do que a
da religião católica. Enquanto nesta última, o homossexual estaria condenado
apenas a si mesmo, na espírita o homossexual estaria, através de sua prática,
impedindo que outras almas encarnassem; estaria impedindo que outras
evoluíssem. Além de condenar a si, também condenaria outras.
4. 1. 4. Budismo
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4.1.5. Wicca
39A reunião (em um apartamento localizado na zona sul carioca) era destinada
apenas a líderes budistas femininas da cidade do Rio de Janeiro; portanto, não
havia homens, com exceção feita a minha presença. A reunião teve início com
recitação de um mantra por alguns minutos e, depois, houve uma discussão
sobre os planos e metas do grupo budista para 2009.
91
Igrejas como esta possibilitam uma rede para os excluídos, que passam a ter
o sentimento de pertença a uma comunidade, podendo criar um tipo de
No entanto, mesmo essas igrejas inclusivas não possuem travestis entre seus
membros. A Igreja Contemporânea, por exemplo, segundo comunicado pessoal de
Natividade (2008), possui no momento apenas seis travestis. Em entrevista com o
Pastor Gladstone, da Igreja Cristã Contemporânea, em dezembro de 2008, foi
constatado que não havia nenhuma travesti atualmente. Havia apenas uma
transexual freqüentando a igreja regularmente.
4. 2. Novas leituras
de roupas quanto de animais seria então uma forma de distinção daquele povo em
relação aos demais, pagãos.
É neste sentido que Castel (2000) observa, quando fala sobre as exclusões,
que um subconjunto não pode mais ser aceito, o do extermínio (nesta era pós-
moderna):
Assim, a travesti sai cada vez mais dos espaços fechados; entra em
determinados círculos sociais ou culturais que permitam uma maior visibilidade;
com isso, uma maior aproximação com a sociedade. Isto permite a vivência de
que são seres humanos como todos os demais, embora com especificidades
diferentes, mas que não são negativas. Este processo permite uma humanização
das travestis, com o objetivo de maior respeito e menos inclusão perversa.
Com exceção de uma indicada, que travei conhecimento via Orkut - que se
recusou a concessão de entrevistas, pois escreveu-me dizendo que eu era ‘um
evangélico homofóbico’ (sic) e que se recusava a falar com pessoas do meu ‘tipo’
100
Também entrevistei sessenta e sete leigos (não travestis): dez católicos, dez
evangélicos, dez umbandistas, dez candomblecistas, dez espíritas, dez budistas,
cinco de igrejas inclusivas e duas wicca48. Não houve nenhuma objeção por parte
de nenhum dos entrevistados de que fossem gravadas as entrevistas. Uma, no
entanto, realizada com um leigo budista (em um bar na Praia do Flamengo) não
foi, devido a problemas com a pilha do gravador. Outro entrevistado, também
budista, concedeu entrevista por telefone. Portanto, também não houve gravação.
Por isso, para os líderes, foi perguntado basicamente qual a posição de sua
religião em relação á travestilidade e se conheciam alguma que freqüentasse os
templos; para os leigos, as mesmas perguntas, tentando entender a prática da fala
dos líderes no dia-a-dia dos templos. Isto porque, mesmo que uma religião
teoricamente as aceite, não quer dizer que o mesmo ocorra no cotidiano. Este fato
ficou bem clarificado em relação aos umbandistas e candomblecistas. Embora
100% dos líderes (destas religiões) tenham afirmado a aceitação das travestis, o
mesmo só ocorre por parte dos leigos com algumas restrições; elas só podem,
geralmente, freqüentar os rituais se estiverem vestidas como heterossexuais e não
de forma feminina (com adereços, como brincos). Embora não fosse o foco da
pesquisa, visto que se trata da relação travestis e religião, entendo os questionários
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dos religiosos como um dado a mais para a compreensão da forma com que isto se
dá, vendo também a opinião dos ‘incluídos’.
50 Foi a partir das religiões citadas em suas falas, que busquei os líderes e leigos
destas para entrevistas. Exceção para o budismo. Uma conhecida minha,
informalmente, relatou saber de uma travesti budista no Rio de Janeiro. A partir
daí, entrei em contato com a referida, que me indicou outra, também budista.
103
(a meu ver, uma necessidade de falar sobre sua vida) de revelar como foi sua
infância, adolescência, passagem pelos colégios e a violência cotidiana (como não
poderem simplesmente, ás vezes, ir ao mercado sem serem xingadas e
humilhadas).
Não entrarei em detalhes maiores sobre estes dados, visto que esta pesquisa
é focada na relação das religiões com as travestis. No entanto, como estas falas
aparecem constantemente nas entrevistas, não pude deixar de registrá-las aqui,
mesmo que de forma sucinta.
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5.1. Travestis
casa
5.1.2. Questionário
Três declararam que nada significava. Era apenas mais uma mostra de
sociedade de que eram excluídas, já que geralmente os religiosos (principalmente
cristãos) as tratavam como inferiores ou pecadoras.
Trinta e sete travestis declararam que era importante em suas vidas, já que
era um contato com Deus. Sublinho aqui que, ás vezes, se referiam
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3) Quais religiões?
Sete umbandistas;
Sete candomblecistas;
107
Cinco espíritas;
Duas budistas;
Uma wicca.
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Resposta: Pertencimento.
Para a maior parte das travestis, a religião era importante; representava algo
em que se apoiar, em caso de necessidades. Como no seguinte relato:
110
Outra travesti:
- vários estados e cidades do Brasil ostentam nomes cristãos (São Paulo, São
Sebastião do Rio de Janeiro);
aos cultos.
“Tem que saber que uma coisa é Jesus, outra é igreja. Jesus me
fez assim, desse jeito, maravilhosa, feminina. Agora, os padres
dizem que sou filha do pecado, que vou para o inferno... Isso
não aceito não. Sou filha de Deus, Deus me ama como eu sou.
Sou verdadeira comigo e com Jesus. Ele não ama a todos que o
seguem? Então, Ele me ama. Eu sigo o meu mestre” (Carolina,
32 anos).
“Me aceita sim. Não conheço muito da religião. Mas sei que
sou filha de meu orixá, ele então me aceita. Dou minhas
oferendas, não faço o mal, não fico querendo o mal das pessoas.
Lá (no candomblé) a gente é bem aceito, não corre o risco de
entrar e pessoal ficar querendo te expulsar, não, como acontece
com esses crentes. Lá (no candomblé), não tem preconceito”
(Patrícia, 32 anos).
“Não, não gosto de padre... Acham que sou filha do capeta, que
vou para o inferno... Imagina, se vou confessar: Padre, pequei,
fiquei com um negão maravilhoso (risos). Iam me expulsar.
Não, eles odeiam a gente, tratam mal. Não soube do caso da
travesti que foi estrangulada pelo padre outro dia? Saiu no
jornal. Você não lê jornal?”
P: “Sim, li algo a respeito, mas o jornal (da Internet) não tinha
muitos detalhes”.
“Eh, a mona quis ir lá, quis freqüentar. Não sabe que pessoal
não gosta de travesti. Deu briga, o padre expulsou ela do altar.
Uma coisa horrorosa. Mas comigo nunca aconteceu, não. Nos
terreiros, é diferente... sou aceita nos terreiros.”
114
(Bárbara, 28 anos).
amigas, acho que nenhuma vai, mas não te dou certeza disso.
Não sou parte (da comunidade), não” (Stephanie, 29 anos).
que mais vou é de noite, visitar umas amigas que ainda estão
nas ruas. Elas, no intervalo, a gente fica conversando, fica
vendo os bofes. Sabe que até hoje quando saio o pessoal fica me
olhando? Fica mandando beijinhos, chamando de ‘meu bem’. É
muito bom a gente ser admirada. É um local bom, aumenta a
nossa auto-estima. Nos outros lugares, a gente nem entra.
Conheço uma travesti, deve ter o que, uns vinte anos de idade.
Nem sai do quarto. Pede para um garotinho, não tem nada com
ele não, paga para ele comprar sanduíche nas padarias, ela tem
tanto medo de sair, de ser atacada, de xingarem ela, coitada.
Comigo já aconteceu. Mas sempre enfrentei. Não tenho
vergonha de ser quem eu sou (...) As pessoas acham que travesti
gosta só de ficar na rua, de noite. Também gosta, é verdade.
Mas na rua ela é...como posso... respeitada, recebe carinho. Em
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“Tem uma travesti que conheço, não sou eu não, que tem boa
situação. Tem ... veste bem, elegante, chique de doer. Não
precisa vir sabe (para a ‘pista’). Mas, aí, não tem o que fazer.
Fica sozinha em casa, vendo televisão. Vem para cá (para a
‘pista’) para não ter solidão. Aqui, encontra as outras, dá
conselho para as travinhas... ensina como fazer para pegar um
bofe com dinheiro. Se sente útil. Em casa, sozinha... para onde
ela vai? Cinema? Com quem?” (Stephanie, 29 anos).
passam de carro ou moto e jogam garrafas, tacam pedras, dos clientes que não
pagam 54.
outras travestis. Cuidando da pensão, havia geralmente outra travesti mais velha
(que já não se prostituía) e que tinha a função de mãe e de cafetina, muitas vezes.
“Eu não faço programa... Mas quando é noite, não tem nada
para fazer... dou uma volta pelas ruas, encontro as amigas para
bater papo... Pessoal pensa que estou fazendo programa, mas
não estou não, sabe... Mesmo assim, tem muita gente que vem,
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Outro ponto, segundo entrevista com Pastor Márcio Retamero (2008), é que
a prostituição é ainda um meio principal de vida das travestis. As Igrejas
inclusivas aceitam a diversidade sexual, mas repudiam a prostituição. Como as
travestis poderiam procurar essas igrejas se possuem receio de novamente
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57Como a travesti Patrícia Araújo, que desfilou em janeiro de 2009, no Fashion Rio
(A Capa, 2009) e a cearense Luma Andrade, a primeira travesti a cursar um
curso de Doutorado, no Brasil (FolhaOnline, 2009). Sua tese será sobre a violência
sofrida por travestis nas escolas.
120
Betel. Segundo ele, as travestis que conheceu são extremamente religiosas, mas
não encontram locais adequados para expressarem a sua religiosidade. Contou
sobre casos de travestis que freqüentam missas católicas e cultos evangélicos.
Para fazê-lo, vestem de forma discreta e sentam-se nos últimos bancos das igrejas.
Antes do final da missa/ culto, saem escondidas, para não serem identificadas e
novamente excluídas, fato que também foi constatado por Trasferetti (1998).
5.2.2. Questionário
1) O que você pensa acerca das travestis? São pessoas como as outras, mas
com peculiaridades? São doentes? São pessoas com desvios emocionais
e/ ou espirituais?
Uma wicca pensa que são pessoas como as outras, mas com
peculiaridades;
Dois de igrejas cristãs inclusivas pensam que são pessoas como as outras,
mas com peculiaridades.
Um candomblecista não;
Cinco espíritas não;
Uma wicca não.
Um líder de igreja inclusiva não; mas conhece cristãs58;
Um líder de igreja inclusiva não.
58Este aparte foi feito, já que as religiões inclusivas são derivadas da religião
cristã reformada.
124
4) Caso freqüente (ou caso freqüentasse), com você vê (veria) isso? Aceita
(aceitaria)? Não aceita (aceitaria)? Alguma condição para a frequência?
Os cinco líderes católicos relataram não ter contato com este grupo. Caso
tivessem, não as acolheriam da mesma maneira que os demais fiéis, visto que sua
condição é um distúrbio e necessitava de tratamento, assim como geralmente o é a
homossexualidade em geral. A sua posição é essencialista 60.
59 Problema tanto em relação aos líderes quanto em relação aos leigos. Todos os
líderes e leigos (as) entrevistados (as), excetuando-se um pastor de igreja
inclusiva, mostraram desconhecimento sobre as diferenças entre travestis e
transexuais, necessitando de uma explicação por parte do entrevistador.
60O conceito de essencialismo, que surgiu com Platão (Sousa, 2008), refere-se à
crença em uma essência verdadeira que seria irredutível e imutável.
125
Os cinco evangélicos disseram também não ter contato com o grupo. Caso
tivessem, indicariam-nas para tratamento psicológico e espiritual, como fazem
geralmente com os gays e lésbicas que freqüentam suas igrejas/ templos. Com o
grupo tanto travesti quanto gays e lésbicas, ocorre algo denominado ‘obsessão
diabólica’ que as leva á homossexualidade, que, afinal, é contrária á lei de Deus.
Um tratamento é necessário para que se ‘libertem’ desta condição. A posição
também é essencialista.
“Não somos nós que escolhemos o caminho; não somos nós que
escolhemos ser ou não bruxas. Não adianta você procurar,
porque, se não for escolhido, não será (bruxa) (...) é a Deusa
que nos escolhe. Então, quem somos nós para discordar daquilo
que a Deusa escolheu?” (Carla, 32 anos).
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Número de
Religião entrevistados Idade (faixa) Localização
(as)
Para que não ficasse extenso, no quadro está apenas um resumo esquemático
61
5.3.2. Questionário
Três católicas entendem a condição trans como doença; uma, como desvio
comportamental. Seis as vêem como ‘filhas de Deus’, podendo ser aceitas. No
entanto, reiteram que achariam ‘estranho’ a convivência com travestis.
terreiros:
“Não pode ser ekedy, não. Não é legal ... Se o cara não sabe
quem é aqui na Terra, então também não sabe quem é no
mundo espiritual. E para ser (ekedy), tem que ter uma
personalidade certinha. Já pensou se recebe santo e acaba
confundindo tudo por aqui? Não, é um papel de respeito, tem
que ser sério...” (Liziane, 32).
Dez espíritas aceitariam, já que têm o dever de ajudar os outros que estão
pagando algum karma. A posição é essencialista.
Uma wicca não sabe se aceitaria. Se aceitasse, não pensa que poderia ocupar
uma função como sacerdotisa, por exemplo; poderia ‘macular’ a imagem que os
outros têm da religião wicca. A outra entrevistada aceitaria, já que não é a pessoa
que escolhe ser wicca, mas sim ela é escolhida.
que ensina a religião católica e a Bíblia. No entanto, para alguns, uma visão de
que é distúrbio ainda parece imperar.
Os espíritas aceitam, mas com ressalvas, visto que as travestis são pessoas
que precisam ser ‘curadas’. Portanto, estão em posição inferior, na escala
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Para justificar a transfobia, na maior parte das vezes, foi constatado o uso
do argumento essencialista; isto é, de que o indivíduo deve portar-se
exclusivamente de acordo com o seu sexo original (homem ou mulher). Qualquer
outra maneira de manifestação identitária não é validade positivamente; teria em
sua origem uma doença psicológica e/ ou problema de ordem espiritual. Há,
portanto, necessidade de intervenção de alguma ordem para que se reestabeleça,
no indivíduo trans, um comportamento adequado, segundo as regras da
heteronormatividade, socialmente dominante.
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6. Considerações finais
Aos poucos, fui entrando em seu mundo. Entendi o que sofrem e várias
vezes me emocionei com os relatos colhidos pelos autores, como Denizart (1997)
e Larissa Pelúcio (2008). De todos os relatos, um dos que mais me impressionou
foi o da travesti Velma (Silva, 1993). Mais idosa do que as suas colegas de
‘batalha’, mesmo sem conquistar clientes para programas, continuava na ‘pista’,
pelo menos durante uma ou duas horas, noite após noite.
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Tentei imaginar o que passaria em sua mente; que expectativas teria em sua
vida, já que não possuía mais os atrativos de outrora?
Pensei na tristeza, na decepção que ela devia sentir. O relato realmente ficou
em minha mente; durante os contatos com as travestis, na pesquisa de campo,
aquela ‘velha senhora’ às vezes aparecia em minha memória. O que será que ela
esperava ainda da vida? E o que será que a mantinha ligada à vida?
O trecho escrito por Silva (1993) me remeteu a uma questão, que se tornou
importante no decorrer da pesquisa: o que poderia dar um significado a vida delas,
além do campo do sexo, da modelagem do corpo, da prostituição? Seria a fé que
as faria continuar vivendo apesar de tudo? E porque lhes seria vedado outros
espaços, que não estes citados? Não poderia ser o espaço religioso uma alternativa
para, por exemplo, quando elas ficassem mais velhas?
No decorrer da pesquisa, percebi como era relevante para elas; como estava
presente, em sua estrutura subjetiva, o conceito de Deus (mesmo que não
necessariamente atrelado à questão de pertencimento a grupos religiosos).
Que dirá, então, as travestis, que tem mais dificuldade ainda em algum
enquadramento possível em uma sociedade patriarcal e regida pela hete-
ronormatividade.
idéias. Assim, não é algo ‘dado’ e acabado; pode absorver, portanto, mudanças em
relação a novos sujeitos.
Isto ficou claro para mim quando as travestis relatavam sobre serem do
candomblé ou da umbanda; em momento nenhum, souberam explicar as
diferenças conceituais entre as duas. Foram para estas religiões geralmente por
proximidade de sua casa e pelo fato de alguma conhecida (também travesti), já ser
freqüentadora, ter lhe chamado. Mas não por razões de crenças verdadeiras nas
religiões. Tanto assim parece, que elas nem freqüentam os terreiros. Primeiro,
porque não tem tanta identificação com as ideologias religiosas apresentadas; e,
concomitante a este fato, também não são aceitas, de forma completa.
entrarem nestas, tem que ficar quase que escondidas e saírem antes do término da
missa/ culto. Portanto, não há nem uma inclusão perversa; a exclusão é total.
FINKELHOR, D. O que está errado com o sexo entre adultos e crianças? Ética
e o problema do abuso sexual. Trad.: Benoit Correa dos Santos. New Hampshire
(mimeografada).
146
JOHNSON, T. The stonewall riots, drag queens and Judy Garland. Disponível
em: <http:/www.tobyjohnson.com>. Acesso em: 25 Jan. 2008.
KANT, I. A crítica da razão pura. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2002.
LOURO, G. Nas redes do conceito de gênero. In: Lopes, M.; Meyer, D.;
Waldow, V. (orgs.) Gênero e Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
_____. Nos nervos, na carne, na pele: uma etnografia travesti sobre o modelo
preventivo da Aids. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. São Carlos:
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 2007.
150
REZENDE, A. P. Nem tudo que reluz é ouro: a rede social das travestis.
Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Serviço Social). São Paulo:
Universidade de Taubaté, 2007.
Filmografia
Sites
Anexo I
Amanda, 40 anos;
Carolina, 35 anos;
Débora, 43 anos.
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Armando, 35 anos;
Alan, 45 anos;
Francisco, 45 anos;
Júlio, 43 anos;
Mário, 43 anos.
Alana, 31 anos;
Alexandre, 31 anos;
Anastácia, 31 anos;
André, 35 anos.
Andréa, 33 anos.
Bernardo, 30 anos;
Bruno, 32 anos;
154
Carlos, 30 anos;
Clarice, 30 anos;
Flaviane, 35 anos.
Tatiana, 31 anos;
Gabriel, 31 anos;
Gabriela, 31 anos;
Gilmar, 35 anos;
Guilherme, 36 anos;
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Leandro, 31 anos;
Lívia, 30 anos;
Liziane, 32 anos;
Natália, 30 anos;
Ticiane, 35 anos.
Daiane, 40 anos;
Eliandra, 40 anos;
Érika, 31 anos;
Lídia, 34 anos;
Luana, 31 anos
Hiran, 30 anos;
155
Márcio; 33 anos;
Nelson, 35 anos;
Nilson, 40 anos;
Otávio, 40 anos.
Ana, 30 anos;
Angélica, 31 anos
Antonio, 33 anos;
Azevedo, 32 anos;
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Bruna, 34 anos;
Camilla, 40 anos;
Catarina; 39 anos;
Diógenes, 39 anos;
Emerson; 39 anos;
Evaristo, 39 anos.
Cleonice, 45 anos;
Jonas, 31 anos;
Leandro, 25 anos;
Leonardo, 30 anos;
Liziane, 25 anos;
156
Márcio, 25 anos;
Marilda, 26 anos;
Mariza, 30 anos;
Michel, 26 anos;
Michelle, 30 anos.
Leigas wicca
Karen, 31 anos;
Karina, 35 anos
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Arnaldo, 30 anos;
Bianca, 32 anos;
Fátima, 34 anos;
Flávia, 35 anos;
Zélia, 30 anos.
157
Anexo II
I – Dados pessoais
Nome social –
Idade –
Orientação sexual –
Naturalidade –
Escolaridade –
II – Atividades laborativas
Profissão –
Ocupação atual –
Remuneração (média) –
IV – Ambiente religioso
Qual religião-
Anexo III
Eu, Luiz Alberto Faria Ribeiro, aluno do Mestrado de Serviço Social da PUC-RJ,
estou desenvolvendo um projeto de pesquisa cujo objetivo principal é a análise da
possibilidade de inclusão social de travestis através da religião, no Rio de Janeiro.
Para este fim, estou realizando entrevistas com travestis que queiram participar da
pesquisa. Estas entrevistas se darão com o auxílio de um gravador portátil, para o
registro e fidelidade de suas informações. Não haverá para as entrevistadas
nenhuma despesa, nem qualquer risco de exposição, visto que todas as
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____________________________
Assinatura da entrevistada
____________________________
Assinatura do mestrando