Você está na página 1de 6

1 A amizade é um fogo libertador T.S.

Marcon

2
3
4
5
6
7 Meu vizinho era um sujeito estranho.
8 Quando o conheci, próximo à lixeira que fica na frente do edifício, ele tentava se livrar de
9 uma poltrona Alvar Aalto. Novinha em folha.
10
11 *
12
13 Eu retornara do acampamento com a turma, que acontece uma vez por ano. Fui até a janela
14 recolher minhas botas, olhei para baixo e lá estava aquele sujeito magro, arrastando o móvel com
15 dificuldade. Como faz o Esqueleto, quando tenta afastar a caixa térmica de perto da fogueira. O
16 Esqueleto é hilário. Nem precisaria ser: a gente ri de qualquer coisa no acampamento. Estamos
17 sempre numa boa por lá. O evento já virou tradição. A mulher até se acostumou.
18
19 *
20
21 Somos o Grupo Tático de Banhados Leão Baio: uma turma de amigos que, todos os anos,
22 abandona o hipócrita labirinto de concreto por três dias. Que a cidade é uma selva todos sabem,
23 então nosso negócio é fugir pra selva original, mais a ver com a gente. Somos humanos, mas antes
24 disso, animais. O grupo tem logotipo, canção de hino e tudo. (Falta a musa inspiradora, lembrei
25 agora. Paola Oliveira será meu voto. O Esqueleto votará na Vendramini, aposto). Nosso mascote é o
26 Leão Baio, uma espécie de puma marrom-claro, encontrado em toda América, do Canadá à
27 Patagônia. O bicho é territorialista e adora carne. Como nós. Quem organizou o primeiro
28 acampamento foi o Alemão. Naturalmente se tornou o nosso líder.
29
30 *
31
32 A conversa girou sobre o tema do fogo, na primeira vez que entrei no apartamento do meu
33 vizinho. Foi logo depois do episódio da poltrona. Perguntei porque ele havia colocado ela no lixo,
34 afinal estava ótima. Ele respondeu, É que ela me lembrava uma pessoa que eu quero esquecer.
35 Depois disso fiquei em silêncio, contemplando o espaço interno do apê, que achei muito vazio: na
36 sala só duas poltronas e uma estante de livros; na cozinha um fogão de bancada, a pia e a geladeira.
37 Entre uma cerveja e outra o clima se tornou mais leve, rolaram até algumas piadas. Combinamos
38 um churrasco para dali uns dias. Aí ele me perguntou qual técnica eu usava ao acender o fogo.
39 Pensei que ele quisesse começar o churrasco naquela hora. Isso define a escola do assador, ele
40 disse, sem esboçar nenhum sorriso. Depois saiu com essa: o fogo nada mais é que o próprio Sol, só
41 que de segunda mão. A árvore se alimenta de luz solar pela fotossíntese, e aumenta seu corpo de
42 tamanho ao produzir madeira. Para o meu vizinho, o fogo seria uma espécie de libertação da
43 energia do Sol, aprisionada no corpo da árvore. O fogo: símbolo do início e do fim das coisas. E
44 também da liberdade. Eu nunca tinha visto a coisa por esse lado.
45
46 *
47
48 Meu vizinho poderia animar uma boa conversa perto do fogo. Talvez não conseguisse
49 deslocar a caixa térmica cheia de cerveja, mas nisso o Alemão é mestre. O Alemão também é ninja
50 na técnica de manter viva uma fogueira. Sabe a hora certa de reacomodar os elementos, preencher
51 os vazios das arquiteturas provisórias em madeira e chamas, e fazê-las continuar a viver com
52 energia, lambendo o ar com suas línguas incandescentes. O Alemão foi quem me ensinou a
53 reconhecer uma poltrona Alvaar Aalto. Ele é diferente do meu vizinho que, apesar de inteligente,
54 aparentava ter pouca energia física. Lembro quando, por volta de onze da noite, o cara tocou minha
55 campainha metido num robe cafona, todo suado. Queria ajuda num pequeno trabalho, poderia pagar
56 até; eu disse, Cara, do que exatamente tu precisa agora? Foi minha primeira pergunta. Uma força
57 pra desmontar uma estante, ele respondeu. Bah, mas..., resmunguei. Espera aí. Fui até a área de
58 serviço. Depois entrei no banheiro com a parafusadeira em punho e disse pra mulher, que tomava
59 banho depois de ter voltado do jantar com as amigas, Amor, vou ali dar uma força pro vizinho. Pra
60 quem? O cara da poltrona, lembra? É camarada, só parece meio... excêntrico. Tá bom, não demora,
61 disse minha mulher de forma mecânica, tirando o shampoo. A segunda pergunta que fiz ao meu
62 vizinho aquela noite foi, Tu tá de mudança? Não, ele riu, só vou botar uns livros fora. E acho que a
63 estante também. Naquela noite ele falou sobre Física Especulativa, quando salvou um livro da pilha
64 dos que iam fora, e abriu-o a esmo. “A totalidade do universo, todo o conhecimento está contido
65 dentro de cada indivíduo, de cada coisa. Antigo provérbio: conheça completamente um grão de
66 areia e você compreenderá o universo em sua totalidade. Um elétron, que entre coisas é responsável
67 pelo sistema nervoso do homem, é todos os elétrons. Uma partícula é todas as partículas. A matéria
68 nada mais é do que luz capturada gravitacionalmente.” Esse livro eu tenho agora nas mãos.
69
70 *
71
72 Acampamos no inverno, onde os efeitos do fogo se amplificam. O mundo primitivo, sem o
73 peso das máscaras, é o que nos atrai. A essência dos fatos. Mas é claro, temos equipamentos atuais:
74 boas barracas, colchões de ar, lanternas de led, botas impermeáveis. E facas. Precisamos de facas.
75 Para cortar carne de um animal morto, na sagrada refeição. Ou mesmo de um vivo, em caso de
76 emergência. Lembro do primeiro acampamento: um Leão Baio, não muito longe, observou estático
77 nossa visita em seu território. Alguns correram ao ver o bicho. Logo afundaram até os joelhos.
78 Banhado sorrateiro. Já a expressão Grupo Tático, no nome do grupo, foi ideia do Esqueleto. Ao sair
79 do trabalho ele viu um carro ser esmagado por uma dessas viaturas da polícia especial,
80 superequipadas, e ficou fascinado com a ação dos policiais. Foi o primeiro de nós a comprar uma
81 arma. Vai que as facas não sejam suficientes pra deter um Leão Baio com fome? Só que 22 é mata-
82 mosquito, vou te mostrar o que é um revólver de verdade, disse o Alemão, no acampamento
83 seguinte. Tirou da mochila uma 9 mm cromada, e o sol, crivado pelas folhas móveis das árvores lá
84 em cima, bateu na arma e fuzilou nossas pupilas. Fazíamos tiro ao alvo com latas de cerveja. Ao
85 voltarmos à cidade, comprei minha 9 mm. Mostrei ao meu vizinho a arma, já com silenciador, dias
86 depois de ajudá-lo a desmontar a estante. Foi quando falei do grupo. Tu vai ver como é bom
87 acampar. Sim, pus silenciador pra não chamar a atenção dos fazendeiros, expliquei. Além disso não
88 espanta os pássaros. Então, vamos no próximo com a gente? Um dos livros me lembrava tanto a
89 vaca que eu queimei lá no pátio, respondeu ele, depois de um tempo. E, num riso excessivo,
90 palhaço barroco brincando com o cãozinho dócil: tu não sabe como eu me senti bem depois de fazer
91 isso! Me obriguei a rir também, a lógica não deixava de ter sua comicidade. E esse, quem é?
92 perguntei surpreso, já que ainda não vira ali aquele animalzinho que lambia minha mão. Algumas
93 heranças são irrecusáveis, ele disse. Quanto tempo com a mulher? perguntei. Doze anos. E porque
94 terminou? Porque a energia se transfere pra outro lugar e o amor acaba. Segunda lei da
95 termodinâmica, disse ele. E a entropia anula qualquer chance de perdão... Cara, isso passa, eu disse,
96 elevando o tom da conversa, o acampamento é uma catarse, meu. Nós, do Grupo Tático de
97 Banhados Leão Baio, nunca deixamos um amigo na mão, ahahahaha. Ele também riu. Mas seu riso
98 não superava o abismo onde se metera. Um abismo que crescia ao longo dos meses. Eu o conhecia
99 cada vez mais: ele afundava cada vez mais. Numa sexta feira de outono, recebi duas mensagens no
100 celular. “Vou me livrar de qualquer lembrança da vaca, sei que é possível.” Tá loco, resmunguei. O
101 quê? perguntou minha mulher, que almoçava comigo. Ah, esse spans de políticos, eu disse. Na
102 manhã de sábado fui acordado pelo barulho de um caminhão embaixo da minha janela. Meu
103 vizinho se livrava de mais umas coisinhas. Foi como definiu o volume que continha cama,
104 geladeira, dois armários e caixas de papelão. O caso era sério. Meu vizinho precisava de ajuda.
105 A outra mensagem no celular era do Esqueleto, votando na Vendramini para musa do grupo.
106
107 *
108
109 Sei que fui o melhor amigo do meu vizinho. Detesto comparações, mas quem teve coragem
110 de fazer algo concreto por ele? Tudo bem, o Alemão e o Esqueleto também foram camaradas. Mas
111 eu fui mais. Quando o caminhão de mudança foi embora, fiquei conversando com meu vizinho na
112 calçada. O papo durou pouco. Foi interrompido pela chegada do Alemão, que vinha buscar sua nova
113 compra: meu colchão de ar sobressalente. O dele tinha queimado no acampamento do ano passado,
114 quando aproximou demais do fogo, na intenção de livrá-lo da umidade. Apresentei meu vizinho pro
115 Alemão. Logo acharam assuntos em comum. Não lembro qual o gancho exato, mas meu vizinho
116 retomou ali o papo de que todas as coisas do universo são feitas por uma só partícula e tal. O
117 Alemão é arquiteto, mas se interessa por Física. Ele achou a ideia atraente e ousada. Como eu, da
118 primeira vez que ouvi. Isso tem de ser aprofundado ao som de um Pink, comentei. Tem cerveja na
119 geladeira? perguntou o Alemão, se animando. Cerveja e carne, respondi. Mas meu vizinho disse,
120 Tenho um compromisso. Fica pra outra vez. Tá certo, comentei, e subi com o Alemão. Quem sabe
121 tu liga pra Carlinha e eu faço uma carne pra nós 4? Boa, respondeu Alemão. Quando chegamos
122 minha mulher deu um selinho em mim, depois um beijo no rosto do Alemão e disse, antes de eu
123 contar o que havíamos pensado, Tô indo almoçar com a Tati. Mas, eu pensei que a gente...onde tu
124 vai almoçar? No shopping. Tudo bem baby, eu disse, antes dela fechar a porta. Ah, mais um
125 episódio de desprezo daqueles, e na frente de um amigo. Ultimamente, eu disse, abrindo uma
126 cerveja, tem sido assim. Não fica mais em casa. O pé que é um leque. Ahahah, normal camarada, a
127 Carlinha também faz isso, disse Alemão. Mas tratei de mudar de assunto. Não queria me deprimir
128 ainda mais. Contei ao Alemão sobre o meu vizinho. Do episódio da poltrona, quando conheci a
129 figura, do papo no quintal do prédio, quando mostrei a 9 mm com silenciador, e meu vizinho falou
130 da queima do livro e depois riu como um sádico, e das outras viagens de Física Especulativa do
131 cara. Sabe o Mercedinho que saiu aqui do prédio quando tu chegou? perguntei ao Alemão. Sim, o
132 que tem isso? Era o frete das coisas do meu vizinho. Ele mandou uma mensagem ontem, dizendo
133 que precisava se livrar de qualquer lembrança da ex-mulher. E hoje isso de despachar os móveis,
134 sendo que ele não pretende se mudar. Acho que ele se livrou de quase tudo no apê. Capaz que o cara
135 fez isso? espantou-se o Alemão. Pegou outra cerveja e foi até a janela. Acendeu um cigarro e disse,
136 Teu vizinho deve pensar assim: como todas as coisas estão conectadas, as memórias também estão.
137 O universo é um imenso holograma, onde a parte sempre contém o todo. Cara, esse animal não tem
138 saída...cada objeto eliminado vai levar a outro, e a outro e a outro, num moto-perpétuo até a loucura
139 completa! Caralho, eu disse, abrindo o saco do carvão na sacada.
140 Quando minha mulher chegou em casa, o Alemão já tinha ido embora. Ela foi logo tomar
141 banho. Sequer me deu um beijo. Mas reclamou do cheiro de cigarro. Será que a loca me trai quando
142 eu tô acampando?
143
144 *
145
146 Nunca vi meu vizinho receber nenhuma visita, com exceção das minhas. O cara era a
147 solidão em pessoa. Ás vezes fico pensando que eu poderia ter virado um solitário assim, se não
148 acampasse. Ou talvez eu gostasse tanto da mata porque meu casamento não andava bem. Pode ser.
149 Eu tinha poucos amigos quando conheci minha mulher. Me apaixonei na frente de um muro
150 salpicado de reboco cinza, perto das duas da tarde de uma terça-feira. Um dia seco de verão. A
151 fumaça da cidade irritava minha garganta. A gata passou carregando uns livros, e olhou um pouco
152 pra mim. Curvas, ótimas cuvas e aquele olhar que foi uma promessa. Segui-a, e de forma patética
153 me apresentei, ela me achou engraçado. Marcamos um café. Logo começamos a namorar. Foi um
154 pouco antes do primeiro acampamento. Ela deu a maior força pra eu ir. O gosto inesquecível
155 daquela descoberta: divido entre a inércia da saudade e o fascínio da aventura, vi o Leão Baio de
156 perto, e senti o furor essencial que impulsiona a vida.
157 Hoje não imagino um mundo onde eu não possa me reunir com os amigos ao redor do fogo.
158 Defumar-se em noite estrelada, perto da fogueira construída por várias mãos, é meu ritual de
159 purificação. O aroma incomparável do churrasco: meu perfume preferido. Como alcançar, numa
160 refeição urbana, o sabor ancestral da carne lasqueada do espeto cravado à beira do fogo, depois de
161 um dia de labores físico-intelectuais, como buscar lenha e fotografar paisagens? (Privado da carne
162 ou álcool, meu cérebro de sapien encolheria até virar uma ervilha). A mata e o campo, o abismo e a
163 nuvem, o pássaro e o Leão: nossos signos. Dissolver o ego no silêncio úmido de um cânion, às 4 da
164 tarde de um dia ensolarado de inverno, é algo irreproduzível em qualquer linguagem, ou veículo, ou
165 plataforma já pensada. O Grupo Tático de Banhados Leão Baio é a nossa vertigem estética. Se
166 acampar fosse música, seria pra nós alguma do Pink Floyd. E o Alemão seria o nosso Roger Waters.
167
168 *
169
170 Um novo acampamento se aproximava. Foi quando o porteiro do prédio comentou com
171 minha mulher detalhes sobre o comportamento do nosso vizinho. Meu casamento não andava bem.
172 Minha mulher foi me cobrar. Porque tu não me contou tudo sobre esse cara? Não quis te assustar,
173 meu amor. Vamos recuperar ele. Meu Deus, disse minha mulher, tu tá andando com um lunático
174 depressivo. Como tu pode saber que ele é depressivo? Ah, esquece, que idiota, ela disse, fechando a
175 porta do quarto. Chorei quando ela saiu, rumo a outro encontro com as amigas. Naquela noite,
176 encontrei meu vizinho bêbado no terraço do prédio. Fui fumar e contemplar a cidade lá de cima e,
177 ao subir, achei o cara sentado no corredor de acesso ao terraço, com as costas apoiadas na parede.
178 Ao seu lado sacolas. Vem, aceita um cigarro? perguntei. Naquela conversa ele repetiu umas 3 vezes:
179 A monogamia é incompatível com nosso padrão biológico. Faz sentido, eu disse. Ele não falou mais
180 nada. Mergulhou num mutismo autista que durou um tempão. Aí se despiu, enchendo outra sacola
181 com as roupas. Depois deitou de barriga pra cima sobre a pedra fria, e ficou olhando para o céu.
182 Preciso dar um jeito de levar esse cara pro acampamento urgente, pensei, ao ir embora.
183
184 *
185
186 O Alemão sugeriu, Porque não acampamos duas vezes por ano? Impulsionados pelo álcool,
187 acatamos a ideia sem qualquer resistência. Estávamos no bar do Magoo, bebendo cerveja artesanal
188 e comendo coraçõezinhos, depois de um dia cansativo no trabalho. Somos caçadores-coletores
189 ainda, não tem jeito, disse o Alemão, rindo. E aquele teu vizinho, vai com a gente na semana que
190 vem? Ainda não confirmou. Acho que não, respondi. Nossas casas e apartamentos atuais funcionam
191 como prisões, disse o Esqueleto. Abrigam, mas também oprimem. Protegem, mas escravizam. E os
192 escritórios, então? eu disse, e depois adaptei Thoreau:
193 Leões Baios não rugem dentro de cavernas.
194
195 *
196
197 Na fazenda do sogro, o Esqueleto já carneou mais de 20 vacas. Entendido no tema, é sempre
198 ele quem compra a carne que levamos à mata. Tudo é uma questão de cortar o bicho nos pontos
199 certos, aí nem precisa fazer muita força, ele explicou, durante um churrasco, na véspera da saída pro
200 acampamento. Quem sabe como e onde cortar, disse Esqueleto, sempre faz um serviço limpo. E a
201 faca não perde o fio. Sim, e aos pedaços a carne é mais fácil de transportar, completou o Alemão.
202
203 *
204
205 Toquei a campainha do meu vizinho. Ele berrou, O que tu quer? Vai embora!
206 Abre aí, tenho uma cerveja, respondi. Vim te libertar da prisão! Lá dentro, o cãozinho latiu.
207 Esqueleto largou a mala vazia e acendeu um cigarro. A gota de fogo refletiu no meu silenciador.

Você também pode gostar