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A VIDA COMO OBRA DE ARTE E A ARTE COMO CAMPO DE

EXPERIMENTAÇÃO: A ESCRITA PARA O TEATRO COMO


PROCESSO DE FORMAÇÃO

Fabrício Tavares Santos Silva*


fabriciosantossilva@gmail.com

Durante os meses de janeiro e fevereiro de 2007, entreguei-me


inteiramente a escrever um texto para a peça teatral As Estações na
Cidade – exercício teatral em 4 movimentos. O projeto foi idealizado
pelo ator Moisés Vasconcellos, de quem partiu o convite para que eu
fizesse a orientação filosófica do trabalho. Assim, no início de janeiro,
integrei a equipe assumindo o papel de orientador, função essa, até
então, estranha para mim, tendo em vista minha condição atual de
orientando do Prof. Jarbas Vieira no Curso de Mestrado da Faculdade
de Educação da Universidade Federal de Pelotas.
Licenciei-me em filosofia no ano de 2004 pela mesma
universidade. Mas até então, além de nunca ter pensado na
possibilidade de orientar um trabalho tão cedo, também, não havia
tido nenhuma experiência anterior em teatro, o que, a princípio, me
incapacitava, já, antes mesmo de começar. No entanto, venho
cultivando uma relação com a escrita desde cedo em minha vida,
pesquisando em filosofia autores que fizeram da arte uma espécie de
pré-texto para a criação de seus pensamentos.
Nietzsche, Foucault e Deleuze são esses autores que vem a
muito me instigando para o exercício do pensamento como potência
criadora na vida, na filosofia e na arte. Mas que relação estabelecer
entre a filosofia e a temática proposta por Moisés para o espetáculo
que começávamos a criar? Absolutamente, vi cair por terra a
formalidade da função de orientador quando me propus a escrita e
criação do texto do espetáculo. Minha vontade de criação estava

*
Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas. Mestrando em
Educação pela Faculdade de Educação da UFPel.
2

irremediavelmente indissociada de minha função de orientar


conceitualmente aquele trabalho. Naquele momento, percebia uma
nuance confundindo a vida (minhas vontades e desejos), a filosofia (o
suporte conceitual) e a arte. (o meu campo de experimentação)
Deliciosa confusão essa! Na qual me deixava absorver. A vida como
obra de arte, o pensamento e a arte como campos de
experimentação. Com essas sensações me vi inteiramente disposto a
aprender tudo o que podia, naquele momento, sobre a escrita teatral
e principalmente sobre a arte, sobre a arte de quem faz da vida uma
obra sua.
Então, deslocado de minha função de orientador, e
desorientando-me inteiro nesse processo, me vi imerso nos dramas,
nas tragédias e nos prazeres da existência vivida pelo homem da
cidade contemporânea. O vazio, a solidão, a identidade, a miséria, o
reconhecimento e o não-reconhecimento no outro, o imprevisível, o
visionário, o sonhador, o trágico e outros fragmentos da relação do
homem com a cidade, foram tomando forma no corpo das sensações
que iam compondo a escrita para a temática do espetáculo, a saber,
o homem na cidade sob a influência das quatro estações do ano.
Um método colaborativo de trabalho1. A ausência da figura do
diretor. Um processo de criação coletiva como objetivo metodológico,
onde a cena, o texto, a música e as imagens constituiriam elementos
desta narrativa do homem na cidade. Quatro narrativas: uma para
cada estação do ano. Quatro estações: inverno, primavera, verão e
outono, a produzir um universo múltiplo de sensações nos
acontecimentos que povoam as cidades. Quatro elementos para os
quatro movimentos que comporiam o espetáculo: luz e cenário,
música, texto e criação cênica.

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Além de intensa discussão sobre o que era produzido com os colegas de trabalho,
fui conversando também, ao longo do processo, com minha companheira, Beatriz
Ferreira, sobre o texto que estava ainda germinando. O que desencadeou a sua
participação como co-autora nas Narrativas do Inverno e do Outono.
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Uma concepção cenográfica inovadora, a Caixa 96, um projeto


do artista uruguaio Waldo Leon, que consiste numa caixa retangular
para 96 espectadores coberta com um tecido branco que recebe
imagens de um projetor multimídia e que vazam como única fonte de
luz para dentro da caixa, compondo assim – com as imagens – ao
mesmo tempo um vídeo e toda a iluminação da peça.
Enfim, um desafio imenso o de criar um espetáculo em apenas
dois meses de trabalho. Duplo desafio, para mim que nunca havia
escrito um texto de teatro. Mas, me perguntava: o que seria mesmo
um texto teatral? Como espectador, e a partir das conversas com
Moisés, respondia: um texto baseado em conflitos, um texto
dramático.
No entanto, era também nosso objetivo construir uma narrativa
sobre a vida na cidade, em que a figura de um narrador estaria
presente em todas as quatro narrativas propostas. Desse modo, ia se
constituindo aí, em relação ao texto da peça, uma pequena confusão
sobre uma fórmula para a criação de um texto, sobre a utilização de
formas pré-estabelecidas por nós para a construção de um texto
híbrido, em que mais uma vez se misturariam a filosofia, a vida e a
arte.
Escolhemos, assim, como formato para o texto, uma narrativa
das sensações em relação a cada uma das estações do ano; e a
dramaticidade para a criação de cenas envolvendo alguns
personagens em seus conflitos existenciais. Como por exemplo, o
Poeta de uma estação de trem que conversa consigo próprio através
da figura de sua mala. Os seus conflitos: o corpo, a verdade, a ilusão,
o pensamento, a crise da modernidade, projetados na figura da Mala
como personagem antagônico ao personagem do Poeta. Temática
essencialmente nietzschiana, apresentada na Narrativa do Inverno,
época em que o corpo se cobre, mesmo que jamais deixe de existir.
Espécie de metáfora em relação à história do pensamento, em que o
intelecto – na figura da razão – se sobrepõe, como um saber
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absoluto, em relação ao corpo que, mesmo encoberto, é visto assim


como possibilidade e lugar para o pensamento e para a criação.
Para expressar melhor essa idéia trabalhada no texto do
espetáculo, assim como, também, defendida aqui nesse ensaio,
apresento o texto da Narrativa do Inverno, composto por uma
apresentação do espetáculo, feita pelo Narrador, e pela parte do
diálogo entre os personagens do Poeta e da Mala.

Narrativa Inverno – O corpo

Narrador - Entramos nas estações e na cidade em busca da memória de cada


nuance. A vida dos homens e mulheres que fazem sua passagem, a rota das
esquinas esquecidas e atormentadas.
A arte, é aqui a arte de cada forma de vida, apresentada nas dimensões
dramáticas dos acontecimentos que povoam as cidades. Aqui, nossos sonhos se
confundem. E viver, são as muitas vozes que nos repartem em ecos. Tão distintos
ecos quanto as quatro estações do ano. Tão múltiplos, como as vozes desta
narrativa, que propõe olfatos, imagens e sons, nesta caixa que agora habitamos.
Começamos assim, com a história de um ser melancólico, personagem das
estações invisíveis, um habitante-multidão dos lugares de passagem, daqueles
pouco notados. A estação de trem, é moradia deste homem, poeta e iniciado nos
mistérios das vidas que atravessa. Ele não tem passagem, não tem lugar. Conversa
consigo mesmo, criando um outro de si que põe em conflito com sua própria
imagem. Assim, sob a atmosfera do inverno, e com suas palavras de acentos
incertos, este homem se aventura em seus próprios pensamentos, a procura
sempre de algum movimento.

Cena
Poeta – Os dias estão se abreviando... Sequer as folhas suportam tanto
congelamento. Parece que tudo fica mais longe...
Este é um período em que o dia já nasce dizendo adeus. Não tive a surpresa de ter
a quem me despedir ou a quem encontrar. Mas isto é puro desfazimento!
A mala - “Desfazimento?”, poeta. Essa palavra não tem no dicionário!
Poeta – Mas por que usar somente palavras de dicionário?
A mala– Porque o mundo hoje, poeta, é de matéria plástica.
Poeta – Ah, entendi! Além de você carregar o peso de um passado, o peso de um
futuro, o peso de um mundo que eu é que decido viver, você também fala. Quanta
coisa trouxe nessa mala! E quanta coisa perdi. Tenho saudade do que não fui!
A mala – Mas para que tanta enrolação, poeta? Por que complicar tanto? Por que
você não se mexe? Por que você não?...
Poeta – Como assim? “Por que você não se mexe?” E você aí parada, falando e
falando, como se não precisasse de mim para se mexer? Somos tão dependentes
uns dos outros, que não basta pensar, ou, simplesmente, falar, para existir.
Chego como quem parte. Sozinho, como esse vento que me corta a face.
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Sinto que meu lugar é como um teatro sem platéia. Pois procuro na cidade o
invisível... fragmentos de um público de olfatos. Os cheiros mais me convém do
que as palmas.
A mala – És um poeta sem rosto. Um sem nome, um sem papel. Pois não possuis
a máscara que convém!
Poeta – Mas quem de nós tem apenas uma máscara?!
Somos todos muitos, no entreato de um abismo que nos desmente!
Amo as verdades inventadas. Como desprezo a ilusão de verdades concebidas
como se fossem idéias iluminadas!
A mala – Falas como se não conhecesses os gênios da história, os grandes
inventores da civilização moderna.
Poeta – E você, se esquece dos grandes ditadores das verdades absolutas... não é
mesmo? Não falo da verdade como uma coisa estanque! Não subestime as
experiências que meu corpo já sofreu.
A coisa mais leve que carrego, é a capacidade de sempre rever meus pesos.
E isto, parece que você nunca se permitiu!
A mala – Ah, entendi... buscar a cura onde já não há. Melancolia de prazeres
movidos a anti-depressivos.
Poeta – Não! Busco minha saúde na escrita. Prefiro a escrita!
A mala – Não entendo. Aonde está a verdade nisso?
Poeta – A verdade está no que sentimos, no que vivemos. O corpo, por mais
encoberto que fique, por mais ocultado de todas as delícias, por mais vergonhoso
que seja, é a grande razão de sentir, de existir e (por que não dizer?) de pensar.
A mala – Mas como?! Tu pensas somente com a cabeça, com o cérebro.
Poeta – Não me venha com essa conversa! Meu pensamento só é possível, só é
posto em movimento, com as sensações de todo o meu corpo.

Narrador – Dessa forma, o corpo, para o poeta, tornou-se um abrigo e um peso. E


em meio a tanto frio, parecia impossível faze-lo sorrir.
Assim, o corpo se escondeu, porém, nunca deixou de existir.

O corpo, como a grande razão de existir e de pensar, em


oposição ao intelecto. Em oposição ao intelecto como fonte única para
o pensamento. Um antagonismo evidente entre o Poeta e a Mala.
Nietzsche, na voz de seu personagem conceitual Zaratustra, dá um
destaque especial para a idéia do corpo como a grande razão,
dizendo:

O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com


um único sentido, uma guerra e uma paz [...]
Instrumento de teu corpo é, também, a tua pequena
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razão, meu irmão, à qual chamas “espírito”, pequeno


instrumento e brinquedo da tua grande razão.
“Eu” – dizes; e ufanas-te desta palavra. Mas ainda
maior – no que não queres acreditar – é o teu corpo e a
sua grande razão: esta não diz eu, mas faz o eu.
[...] Atrás de teus pensamentos e sentimentos, meu
irmão, acha-se um soberano poderoso, um sábio
desconhecido – e chama-se o ser próprio. Mora no teu
corpo, é o teu corpo.
Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor
sabedoria. (NIETZSCHE, 1977, p.51)

É possível perceber, na Narrativa do Inverno, a referência a


discussões recorrentes ao pensamento nitszchiano e à história da
filosofia. Há uma luta clara contra o pensamento cartesiano e as
formas de pensamento do racionalismo moderno, quando o Poeta diz:
“Somos tão dependentes uns dos outros, que não basta pensar, ou,
simplesmente, falar para existir”. Isto é: o pensamento não basta
como condição para a existência. Há sempre um jogo de lutas, das
quais participamos diariamente, envolvendo regras, condutas morais
e éticas2. Por exemplo, as instituições educacionais. Seriam elas, tão
somente, o lugar de alguns aprendizados? Ou, também, de algumas
lutas envolvendo discursos e saberes? Ou, mais ainda: o lugar onde
os aprendizados se constituem a partir de lutas constantes
envolvendo discursos e saberes?
Sobre essa questão, me parece que o que propõe a arte – em
relação à Educação – como um campo de experimentação, ou, como
um campo possível para a formação, é sempre uma resistência, uma
linha de fuga. (DELEUZE & PARNET, 1998)
Assim, proponho-me aqui, a um relato, sobre minha escrita
para o teatro, como um campo aberto a metamorfoses em meu
processo de formação, e, sobretudo, como um campo de resistência
às coerções do poder.

2
Para Foucault, a ética é também uma estética na medida em que produz modos
de existência constituídos a partir de escolhas feitas por cada indivíduo.
7

Escrita, leitura e formação

Para Foucault, a vontade de verdade constitui-se como um dos


principais sistemas de exclusão em nossa sociedade. É a essa
vontade de verdade que as instituições respondem com as suas lutas
internas e suas coerções pelo poder. Vejamos uma citação do próprio
Foucault:

[...] essa vontade de verdade, como outros sistemas de


exclusão, apóia-se sobre um suporte institucional: é ao
mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um
compacto conjunto de práticas como a pedagogia, é
claro, como o sistema dos livros, da edição, das
bibliotecas, como as sociedades de sábios de outrora,
os laboratórios de hoje. Mas ela é também reconduzida,
mais propriamente sem dúvida, pelo modo como o
saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado,
distribuído, repartido e de certo modo atribuído.
Recordemos aqui, apenas a título simbólico, o velho
princípio grego: que a aritmética pode bem ser o
assunto das cidades democráticas, pois ela ensina as
relações de igualdade, mas somente a geometria deve
ser ensinada nas oligarquias, pois demonstra as
proporções na desigualdade.
Enfim, creio que essa vontade de verdade assim
apoiada sobre um suporte institucional tende a exercer
sobre os outros discursos – estou sempre falando de
nossa sociedade – uma espécie de pressão e como que
um poder de coerção. (FOUCAULT, 1996, p.17-8)

Minha idéia, neste ensaio, é a de que através da arte como um


campo de experimentação, pude vivenciar, para além das malhas do
poder, da coerção, tão presentes nas práticas pedagógicas em nossa
sociedade, uma experiência de formação. Uma experiência de
formação, com o que nos apresenta Jorge Larrosa sobre a educação
literária.
A educação literária não se baseia em nenhuma
nostalgia, em nenhuma esperança, nem mesmo no
consolo da cultura, esse lugar ao mesmo tempo
acabado e inacabado, cada vez mais “rico”, no qual as
obras existem como coisas duradouras, ordenadas,
acumuláveis e transmissíveis. Sua única virtude é a sua
infinita capacidade para a interrupção, para o desvio,
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para a “desrealização” do real e do dado (inclusive do


real e do dado de alguém) e para a abertura ao
desconhecido. A iniciação a leitura aparece, assim,
como o início de um movimento excêntrico, no qual o
sujeito leitor abre-se à sua própria metamorfose.
(LARROSA, 2001, p.13)

Assim, percebo a minha escrita para o teatro como uma espécie


mesma de iniciação a uma experiência de escrita nunca antes por
mim vivenciada. E transponho para a minha experiência “o
movimento excêntrico, no qual o sujeito leitor”, nas palavras de
Larrosa, e o sujeito-escritor, a partir de minha vivência e de minhas
palavras, se abre à sua própria metamorfose. Talvez ainda um
sujeito-escritor-leitor, pois que escrever, por vezes, converte-se
numa atividade de leitura também de mundo.

A obra de arte como um dispositivo do ato de pensar

O texto que escrevi para a peça As Estações na Cidade, não é


fruto de nenhuma observação, de nenhuma descrição objetiva da
realidade. Diferentemente, o que se insinua como uma espécie de
“princípio” dessa escrita é uma nuance de sensações envolvendo cada
uma das estações do ano, numa relação. Um tanto quanto subjetiva,
com a vida de homens e mulheres nas cidades. As sensações
aparecem no texto como o sentido produzido por cada uma das
estações do ano, por seu clima, por sua temperatura, etc. Incidindo,
inevitavelmente, sobre a vida dos seres que habitam a cidade, como
um lugar povoado por acontecimentos.
Sendo assim, desenvolvemos no início do processo uma
“metodologia” simples para chegarmos a uma leitura possível de
nossas próprias sensações em relação a cada uma das estações do
ano: conversas e “confissões” sobre nossas impressões mais
espontâneas a respeito do assunto. Que ausências, que faltas, que
desejos, a que atitudes nos levariam, por vezes, o verão ou o
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inverno, por exemplo? O que suportaria o corpo em cada uma das


estações? Ou ainda, que prazeres poderíamos desfrutar em cada uma
delas? Que acontecimentos elas poderiam suscitar?
Ao contrário do que poderiam parecer inicialmente, as estações
são vistas como signos dos acontecimentos que são propostos em
cena. O desabrochar do amor entre um menino e uma menina traz
consigo o signo da primavera. O corpo encoberto, pela vontade de
verdade da razão moderna, na primeira narrativa da peça, carrega o
signo do inverno, com suas temperaturas frias, razão pela qual
precisa se cobrir. A pele, como a única profundidade possível, como
“a superfície mais profunda”, aliada ao sufocamento do calor, nos
sugere alguns signos do verão. O olhar, a leveza, o renascimento
através da morte, a luminosidade sutil, a temperatura amena, o cair
das folhas, trazem até nós alguns signos do outono.
Enfim, a esse conjunto de signos sugeridos para cada uma das
estações, é que quisemos relacionar uma forma de escrita que
funcionasse talvez como uma espécie de narrativa das sensações.
E então me arrisco a responder a uma pergunta que me fiz no
início do processo, e que, também, a coloquei aqui, no início deste
ensaio. Do que seria composto mesmo um texto teatral? Sem dúvida,
de características dramáticas e narrativas. Mas, no entanto, ao
compormos uma narrativa das sensações, pergunto-me, em que
medida não estaríamos alterando as características básicas de um
texto teatral, sendo que a figura central do texto está no personagem
do Narrador? Isto porque o próprio Narrador emerge, no espetáculo,
como uma figura, como um personagem, que responde as próprias
sensações e signos correspondentes às estações e ao texto da peça.
E mais: na figura do Narrador emergem boa parte dos conflitos que
constituem o texto do ponto de vista dramático. Porém, os conflitos,
ao contrário daqueles que caracterizam comumente a dramaturgia –
conflitos entre dois ou mais personagens – , neste caso, são conflitos
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internos que aparecem no seio de cada um dos personagens em


cena.
Para ilustrar essa questão, apresento aqui o texto da Narrativa
do Verão, na parte em que fala o Narrador, seguido do texto da
Narrativa do Outono, este último, o texto final da peça.

Narrativa Verão – O sufocamento

(O narrador não consegue dormir por conta do calor e dos mosquitos. Levanta-se
abruptamente e começa a correr. Tira a roupa e a recoloca do avesso. Começa a
falar).

Narrador - É assim que eu me sinto no verão... Do avesso! O verão é a desilusão


da primavera. Sufocante é o calor com seus restos de morte no sobressalto de um
pesadelo. Oh sol, grande astro! Por que escapas à noite, com tua luz, a mim que
tenho que ver, com a escuridão, com as estrelas e com o luar, acertar as contas o
desejo? Sonho o calor das vísceras – asfixia de um verão de pedra –, as marcas do
suor, a memória da pele. Vinte e cinco, trinta anos, até mais! Tempo de úlceras e
de câncer. Tempo de chagas sangrando no peito. Tempo que não acaba. Tempo
que não passa. O verão, em suas efêmeras e voluptuosas tempestades, recobre a
densidade da carne à superfície da pele... Com a profundidade de um corte. Tanta
alegria essa estação exprime... Tanta alegria boba, superficial... Mas o que é a vida
senão aquilo com o qual podemos ver um primeiro plano? O que é a vida senão o
próprio olhar? Uma primeira casca ou a única que existe? É...! Talvez esta alegria
diga a si própria: “A pele é a superfície mais profunda!”. Por isso, quem sabe,
consiga ser alegre de si mesma. A sensação foi sempre o norte da razão. Chega!
Parece que o calor deixa também os ânimos exaltados... É como um
deslizamento... Passar de um extremo a outro sem contar até zero. Caos é a lei!
Mas isto que digo é lógico até... Se estivermos num extremo, é fácil passar para
outro. O equilíbrio anda em cima de uma corda bamba de euforia e de tristeza. É
assim o verão: trágico, como a vida nas cidades... Estúpido! Como a beleza das
ruínas em desalinho no tempo e no espaço. Tão nítido, quanto a morte que ronda a
fervura do asfalto. É assim mesmo que sinto o verão. Como uma bomba prestes a
explodir e a transformar em cinzas uma multidão. Não mais nos é dada a chance de
morrer como heróis... Morremos como vítimas. Como vítimas de um noticiário triste
e astucioso, porém, pobre. Morremos a cada instante do trabalho para casa... De
casa para o trabalho. Maldito tornou-se o ócio! Trabalho concreto... Trabalho
abstrato... Trabalho nenhum! Será que não percebem? A reprodutividade do
mesmo... A criatividade, no olhar de um vagabundo? A repetição ensurdece como
um bate-estaca! Aaaaaaaaaáá!!!

(Faz uma pausa, olha para o público e diz).

Lembro-me de uma mulher que no sufocamento do abandono de seu companheiro


tomou para si a luz e o calor do fogo, libertando-se assim do aprisionamento da
espera.

Cena
(Entra a mulher se adornando com brincos e maquiagem, porém preparando o seu
leito de morte).
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Mulher - Há sete dias espero. Há sete dias não como. Há sete dias não dou comida
aos meus. Há muito que morro de tantas faltas! O desejo... Gostaria de reencontrá-
lo numa grande festa. Mas minha vida se tornou um baile de poucas máscaras.
Repleto de carências... Repleto de ausência... Como pude tornar-me repleta de tua
ausência? Mas não espero mais! Não quero mais a tua falta! Tampouco viver
matando-me de esperanças.
Hei de exaltar o fogo em tua memória e à consagração de minha liberdade! De que
me vale a vida em meio ao nada de minha própria vontade? Sinto-me a própria
ruína do abandono... Perdida no centro da tua espera. Hei de fugir à lembrança do
teu calor que me consome, consumindo-me na luz e no calor do fogo que me
libertará da morte de arruinar-me contigo!

(Arde no fogo e morre ao som de um tango).

(Ao som da música inicia a passagem para o outono).

(Começa a rastejar. Vai renascendo aos poucos até ficar ereta novamente e
ressurgir como outra mulher, agora como Fenícia, já no outono).

Narrativa Outono – O olhar

Narrador - Enquanto no outono as folhas secavam, Fenícia renascia das cinzas


para uma nova vida. A temperatura amena e a delicada fotografia do outono lhe
proporcionavam a liberdade antes tão sonhada. Agora a memória da sua coragem a
impulsionava aos mais ousados vôos.
Fenícia partiu então em busca da luz mais leve, percorrendo, com o registro de sua
visão mais singular, todas as imagens possíveis em todos os parques da cidade.

Cena

(Entra Fenícia ressurgindo em seu próprio corpo, olhando-se com algum espanto e
admiração, mas com uma incondicional vontade de viver).

(Toca a música Agosto para introduzir a primeira Cena do outono. Fenícia começa
dançando com o corpo ereto).
(Depois diz...).

Fenícia - Dourado... É a tua cor mais linda! Hei de viver em tua luz mais leve. E
percorrer todos os teus entardeceres com um sorriso nos olhos. Minha voz há de
cantar-te sempre com a harmonia mais simples e a melodia do olhar.
Nos caminhos que faço, mesmo que tuas folhas sequem, é em ti que sinto minha
longevidade aflorar.
Hei de escrever contigo a oração de nunca roubar-me o olhar. Tenho a vontade do
olhar eterno. O desejo de minha memória mais doce, mais viva.
Ver-te colocando a cidade em sintonia com tuas cores leves me faz sorrir de
felicidade. E mesmo que dures pouco, tua vida reflete a minha que renasce em ti.

(narrativa com música, Agosto – versão 2, e imagens).

Fenícia - Tua pele-seca árvore genealógica da folha que se despede para dar lugar
a uma outra vida... Carne que geme sem ferir, angústia, para quê? As despedidas
também devem ser naturais, a morte é tão certa quanto este minuto que “tic tac”
bate insistentemente ao meu redor, e destas cinzas farei o meu ninho, troco minha
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pele agora e refaço a pluralidade de máscaras que outrora perdi. Sou outras. Ter
outro nome não me basta, a vida não é um nome. Que mania a de nomear tudo. As
sensações mais me convêm... Sou pele desencanto de um amor passado, mas esta
pele virou folha, e com o outono me desfaço em ciclo, porque ninguém pode
agüentar morrer todos os dias, calado.
(Pega a mala e diz).
Revirar as malas! Levar consigo somente aquilo que se precisa...
(Pensa).
Mas o que se precisa, além de um pouco de desrazão? É deste desalinho que me
produzo em versos, tão desafinados quanto puder. A imperfeição é muito difícil de
ser alcançada. E para quê o correto? Se a chama do verão já se apagou, e agora
posso trilhar caminhos mais incertos? Encanta-me, sim, o sem rumo deste outono.
Ele pode durar pouco, mas eu já não serei a mesma.

(refaz a mala e parte).


(narrativa com música e imagens rumo ao fim do espetáculo).

Deleuze, em seu livro Proust e os Signos, em que analisa a obra


de Marcel Proust, Em busca do Tempo Perdido, mais propriamente,
na passagem em que descreve o aprendizado do herói proustiano,
nos põe a pensar, em relação à arte e à filosofia, com a seguinte
citação:
Um amor medíocre vale mais do que uma grande
amizade: porque o amor é rico em signos e se nutre de
interpretação silenciosa. Uma obra de arte vale mais do
que uma obra filosófica, porque o que está envolvido no
signo é mais profundo que todas as significações
explícitas; o que nos violenta é mais rico do que todos
os frutos de nossa boa vontade ou de nosso trabalho
aplicado; e mais importante do que o pensamento é
“aquilo que faz pensar.” (DELEUZE, 2003, p.29)

Não pretendo atribuir assim qualquer juízo de valor em relação


a dissonâncias ou a diferenças flagrantes entre a filosofia e a arte. No
entanto, o que quero pontuar é o fato de que a arte, como campo de
experimentação – no sentido foucaultiano da experiência de si –, ou
ainda: no sentido que nos coloca Nietzsche, em sua autobiografia,
Ecce Homo, de como nos tornamos aquilo que somos – pode, muito
bem, nos por a pensar sobre a nossa própria experiência de
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formação. Em outras palavras, me parece que a obra de arte pode


ser vista aqui, sobretudo, como um poderoso dispositivo nos
processos de formação, como uma fissura, como um desvio daqueles
de que nos fala Larrosa em referência ao caráter de formação da
educação literária.
Nesse sentido, é que defendo a idéia, não só da arte como
campo de experimentação de si, mas, também, da vida como uma
obra que, tomada pela experiência e seus acontecimentos, possa
suscitar, as singularidades da experiência como meio de formação do
olhar para a escrita, ou, ainda, para uma escrita como leitura criativa
dos acontecimentos e das singularidades de um mundo sempre
porvir.

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