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Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas. Mestrando em
Educação pela Faculdade de Educação da UFPel.
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Além de intensa discussão sobre o que era produzido com os colegas de trabalho,
fui conversando também, ao longo do processo, com minha companheira, Beatriz
Ferreira, sobre o texto que estava ainda germinando. O que desencadeou a sua
participação como co-autora nas Narrativas do Inverno e do Outono.
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Cena
Poeta – Os dias estão se abreviando... Sequer as folhas suportam tanto
congelamento. Parece que tudo fica mais longe...
Este é um período em que o dia já nasce dizendo adeus. Não tive a surpresa de ter
a quem me despedir ou a quem encontrar. Mas isto é puro desfazimento!
A mala - “Desfazimento?”, poeta. Essa palavra não tem no dicionário!
Poeta – Mas por que usar somente palavras de dicionário?
A mala– Porque o mundo hoje, poeta, é de matéria plástica.
Poeta – Ah, entendi! Além de você carregar o peso de um passado, o peso de um
futuro, o peso de um mundo que eu é que decido viver, você também fala. Quanta
coisa trouxe nessa mala! E quanta coisa perdi. Tenho saudade do que não fui!
A mala – Mas para que tanta enrolação, poeta? Por que complicar tanto? Por que
você não se mexe? Por que você não?...
Poeta – Como assim? “Por que você não se mexe?” E você aí parada, falando e
falando, como se não precisasse de mim para se mexer? Somos tão dependentes
uns dos outros, que não basta pensar, ou, simplesmente, falar, para existir.
Chego como quem parte. Sozinho, como esse vento que me corta a face.
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Sinto que meu lugar é como um teatro sem platéia. Pois procuro na cidade o
invisível... fragmentos de um público de olfatos. Os cheiros mais me convém do
que as palmas.
A mala – És um poeta sem rosto. Um sem nome, um sem papel. Pois não possuis
a máscara que convém!
Poeta – Mas quem de nós tem apenas uma máscara?!
Somos todos muitos, no entreato de um abismo que nos desmente!
Amo as verdades inventadas. Como desprezo a ilusão de verdades concebidas
como se fossem idéias iluminadas!
A mala – Falas como se não conhecesses os gênios da história, os grandes
inventores da civilização moderna.
Poeta – E você, se esquece dos grandes ditadores das verdades absolutas... não é
mesmo? Não falo da verdade como uma coisa estanque! Não subestime as
experiências que meu corpo já sofreu.
A coisa mais leve que carrego, é a capacidade de sempre rever meus pesos.
E isto, parece que você nunca se permitiu!
A mala – Ah, entendi... buscar a cura onde já não há. Melancolia de prazeres
movidos a anti-depressivos.
Poeta – Não! Busco minha saúde na escrita. Prefiro a escrita!
A mala – Não entendo. Aonde está a verdade nisso?
Poeta – A verdade está no que sentimos, no que vivemos. O corpo, por mais
encoberto que fique, por mais ocultado de todas as delícias, por mais vergonhoso
que seja, é a grande razão de sentir, de existir e (por que não dizer?) de pensar.
A mala – Mas como?! Tu pensas somente com a cabeça, com o cérebro.
Poeta – Não me venha com essa conversa! Meu pensamento só é possível, só é
posto em movimento, com as sensações de todo o meu corpo.
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Para Foucault, a ética é também uma estética na medida em que produz modos
de existência constituídos a partir de escolhas feitas por cada indivíduo.
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(O narrador não consegue dormir por conta do calor e dos mosquitos. Levanta-se
abruptamente e começa a correr. Tira a roupa e a recoloca do avesso. Começa a
falar).
Cena
(Entra a mulher se adornando com brincos e maquiagem, porém preparando o seu
leito de morte).
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Mulher - Há sete dias espero. Há sete dias não como. Há sete dias não dou comida
aos meus. Há muito que morro de tantas faltas! O desejo... Gostaria de reencontrá-
lo numa grande festa. Mas minha vida se tornou um baile de poucas máscaras.
Repleto de carências... Repleto de ausência... Como pude tornar-me repleta de tua
ausência? Mas não espero mais! Não quero mais a tua falta! Tampouco viver
matando-me de esperanças.
Hei de exaltar o fogo em tua memória e à consagração de minha liberdade! De que
me vale a vida em meio ao nada de minha própria vontade? Sinto-me a própria
ruína do abandono... Perdida no centro da tua espera. Hei de fugir à lembrança do
teu calor que me consome, consumindo-me na luz e no calor do fogo que me
libertará da morte de arruinar-me contigo!
(Começa a rastejar. Vai renascendo aos poucos até ficar ereta novamente e
ressurgir como outra mulher, agora como Fenícia, já no outono).
Cena
(Entra Fenícia ressurgindo em seu próprio corpo, olhando-se com algum espanto e
admiração, mas com uma incondicional vontade de viver).
(Toca a música Agosto para introduzir a primeira Cena do outono. Fenícia começa
dançando com o corpo ereto).
(Depois diz...).
Fenícia - Dourado... É a tua cor mais linda! Hei de viver em tua luz mais leve. E
percorrer todos os teus entardeceres com um sorriso nos olhos. Minha voz há de
cantar-te sempre com a harmonia mais simples e a melodia do olhar.
Nos caminhos que faço, mesmo que tuas folhas sequem, é em ti que sinto minha
longevidade aflorar.
Hei de escrever contigo a oração de nunca roubar-me o olhar. Tenho a vontade do
olhar eterno. O desejo de minha memória mais doce, mais viva.
Ver-te colocando a cidade em sintonia com tuas cores leves me faz sorrir de
felicidade. E mesmo que dures pouco, tua vida reflete a minha que renasce em ti.
Fenícia - Tua pele-seca árvore genealógica da folha que se despede para dar lugar
a uma outra vida... Carne que geme sem ferir, angústia, para quê? As despedidas
também devem ser naturais, a morte é tão certa quanto este minuto que “tic tac”
bate insistentemente ao meu redor, e destas cinzas farei o meu ninho, troco minha
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pele agora e refaço a pluralidade de máscaras que outrora perdi. Sou outras. Ter
outro nome não me basta, a vida não é um nome. Que mania a de nomear tudo. As
sensações mais me convêm... Sou pele desencanto de um amor passado, mas esta
pele virou folha, e com o outono me desfaço em ciclo, porque ninguém pode
agüentar morrer todos os dias, calado.
(Pega a mala e diz).
Revirar as malas! Levar consigo somente aquilo que se precisa...
(Pensa).
Mas o que se precisa, além de um pouco de desrazão? É deste desalinho que me
produzo em versos, tão desafinados quanto puder. A imperfeição é muito difícil de
ser alcançada. E para quê o correto? Se a chama do verão já se apagou, e agora
posso trilhar caminhos mais incertos? Encanta-me, sim, o sem rumo deste outono.
Ele pode durar pouco, mas eu já não serei a mesma.
Bibliografia