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METODOLOGIA CIENTÍFICA (QM/2023.1) – PROF.

MARCIO PEREIRA

01. INTRODUÇÃO: O QUE É METODOLOGIA CIENTÍFICA?

(Objetivos) Ao final deste capítulo, o estudante deverá ser capaz de:


a) distinguir e justificar o campo de investigações da Metodologia Científica.

Diversos cursos de graduação, em todas as áreas acadêmicas (humanas,


tecnológicas, biológicas, etc.), costumam incluir a disciplina “Metodologia Científica” (ou
outras com nomenclatura muito semelhante) em sua grade curricular como requisito
necessário à formação profissional de seus estudantes. Entretanto, dependendo da
perspectiva adotada, que pode variar bastante de uma instituição para outra, essa
disciplina admite conteúdos programáticos muito distintos, e nem sempre equivalentes.
Basta dar uma olhada nas nomenclaturas dessas disciplinas e nas bibliografias
recomendadas, para confirmar o que estamos dizendo. Por vezes, temos “Metodologia
Científica”, mas também “Metodologia do Trabalho Científico”, “Métodos e Técnicas de
Pesquisa Bibliográfica”, “Metodologia da Pesquisa Científica”, etc.; isso sem falar nas
versões específicas dessa disciplina para cada curso: “Metodologia da Pesquisa em
Comunicação”, “Metodologia da Pesquisa em Ciências Sociais”, “Metodologia da Pesquisa
Filosófica”, etc. Se fizermos uma rápida comparação entre os títulos das obras
recomendadas nessas disciplinas, a confusão permanece a mesma. O que se passa?
Uma análise comparativa desses diferentes conteúdos programáticos, bem como da
literatura recomendada, pode nos dar uma resposta bastante razoável. Desprezando
pequenas variações de nomenclatura, estamos lidando basicamente com três campos de
estudo:

1. a metodologia da pesquisa científica;


2. a metodologia do trabalho científico;
3. a metodologia científica (propriamente dita).

A Metodologia da Pesquisa Científica, em linhas gerais, trata dos procedimentos


heurísticos (investigativos) empregados pelos cientistas em situações concretas; ou seja,
tudo que tem a ver com a classificação e descrição das diversas modalidades de pesquisa
(por exemplo, bibliográfica, de campo, exploratória, participante, etc.), critérios para

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escolha das hipóteses a serem testadas, ferramentas de coletas de dados (inclusive


diretrizes para levantamentos estatísticos), procedimentos metodológicos em geral
(inclusive técnicas laboratoriais), e assim por diante. Esse estudo pode ser tão genérico ou
tão especializado quanto se prefira fazê-lo em cada caso, e é bastante comum que ele
nem chegue a ser feito em uma disciplina específica, e todas essas informações (bem
como suas correspondentes habilidades) sejam ensinadas aos futuros cientistas de modo
difuso nas disciplinas especializadas (por exemplo: o estudante pode aprender
determinado procedimento laboratorial apenas no momento em que a necessidade surja
durante sua formação).
A Metodologia do Trabalho Científico, por sua vez, costuma ter a ver de modo mais
específico com a normatização dos trabalhos científicos (artigos, monografias, relatórios,
teses, etc.); ou seja, ela diz respeito às regras e padronizações exigidas de trabalhos
acadêmicos de todos os tipos, para garantir a clareza, a objetividade e a otimização na
divulgação de resultados para a comunidade científica. Como esse campo claramente
pressupõe o anterior – afinal, nossa pesquisa precisa antes produzir resultados, para só
então podermos divulgar esses resultados –, os dois são frequentemente ensinados juntos,
sob a nomenclatura vaga “Metodologia Científica”.
E a Metodologia Científica propriamente dita? Com o que ela se ocupa? Enquanto as
duas primeiras se ocupam especificamente com questões estritamente técnicas relativas à
elaboração de pesquisas ou trabalhos científicos; a Metodologia Científica investiga
problemas relacionados com o método científico em si – sua natureza e origem, sua
indispensabilidade, suas limitações, sua legitimidade, seus tipos, e problemas correlatos.
Ou seja, essa disciplina está muito mais relacionada com a formação da mentalidade
científica, por assim dizer, do que com procedimentos técnicos específicos.
Sem essa formação, nenhum conjunto de técnicas ou procedimentos garantiria com
segurança a qualidade e o rigor da investigação científica. Em outras palavras, seu artigo
pode ser formalmente perfeito, estar de acordo com as normas da ABNT, sua hipótese
pode estar aparentemente bem descrita, e ainda assim o conteúdo carecer de
fundamentação ou relevância científicas! O que faltou aqui? A compreensão clara do que é
ensinado na Metodologia Científica.
Como você pode facilmente concluir, trata-se de um estudo mais fundamental e
preliminar ao domínio das técnicas especializadas de cada ciência. Essas preocupações
são de caráter eminentemente epistemológico; ou seja, pertencem àquela área da filosofia

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que se ocupa com o estudo do conhecimento (e, em particular, do conhecimento


científico).
A importância dessa compreensão preliminar é consensual e mencionada em quase
todos os manuais de Metodologia Científica (mesmo com títulos alternativos), razão pela
qual eles comumente iniciam com discussões superficiais sobre os tipos de conhecimento
e a demarcação do que deve ser considerado conhecimento científico. O problema é que,
com raras exceções, esses tópicos são frequentemente tratados de maneira muito breve e
superficial, além de envolverem alguns equívocos conceituais graves, como indicaremos
em alguns momentos ao longo dos próximos capítulos.
Uma possível explicação para esses erros e superficialidades talvez se deva ao fato
de alguns entre esses autores não terem uma formação filosófica sólida. (Naturalmente,
não é necessário ser um filósofo profissional para falar com competência sobre algum
tópico filosófico específico; mas a falta dessa formação especializada certamente explicaria
muitos equívocos.)
Antes de encerrarmos esta rápida introdução à nossa disciplina, uma lista de
preocupações típicas da Metodologia Científica pode dar, ao mesmo tempo, uma ideia
geral do que estudaremos e justificar a inclusão de seu estudo na formação de um futuro
cientista (bem como de um futuro professor de ciências).
Talvez você já tenha ouvido o adjetivo “científico” em diversos contextos, como na
frase “esse é um trabalho científico” ou “isso tem relevância científica”. Mas, afinal, o que
faz com que um assunto, ou a maneira como tratamos de um assunto, sejam considerados
científicos? Para responder a essa questão, precisamos dar conta de outra mais
fundamental e um tanto complicada: afinal, o que é ciência? Quais os critérios para decidir
o que é ou não é ciência, e por que eles são adotados pela comunidade científica mundial?
Esses critérios podem mudar? (A astrologia, por exemplo, já foi considerada ciência, tendo
sido estudada por importantes cientistas do passado, e nos últimos séculos tem sido
unanimemente considerada como um estudo não científico pela comunidade acadêmica.)
A demarcação do que é ciência nos remete a outro ponto: quais são os tipos de
ciência que temos? Sendo tão diferentes, o que têm em comum? O que são ciências
formais e qual sua relação com as outras ciências? Existe alguma diferença muito
relevante entre as ciências naturais e as chamadas ciências humanas? Entender esses
diferentes grupos de ciências, inclusive, faz parte da compreensão geral do que é
conhecimento acadêmico, já que este não se restringe a uma ciência ou grupo de ciências

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específico; além de permitir ter uma noção do que os colegas dos prédios de aula vizinhos
na sua universidade estão fazendo! Existe, inclusive, uma tendência muito difundida de
que ciências diferentes sejam combinadas para desenvolver novas tecnologias ou resolver
problemas complexos. Como perceberemos a necessidade e vantagens disso se não
conhecermos um mínimo do que os cientistas de outras áreas (que não a nossa) estão
fazendo?
Outra expressão que provavelmente você já ouviu de vez em quando no cotidiano, ou
leu em sites de notícias, é a seguinte: “mas isso está cientificamente provado!”.
Ironicamente, essa afirmação é algumas vezes usada sem critério algum – ou pior ainda:
de maneira totalmente falsa e inapropriada – apenas para dar mais ênfase a uma crença
pessoal, ou a uma informação colhida aleatoriamente em uma mídia não especializada e
sem fundamento científico nenhum!
Pois bem, o que significa dizer que uma informação foi cientificamente comprovada?
Quer dizer que ela é uma verdade absoluta? Toda prova científica tem o mesmo peso
comprobatório? Como algo é provado cientificamente? O método científico é confiável?
Por quê?
Perceba que as respostas mais básicas a essas perguntas, ainda que não se
aprofundem desnecessariamente em discussões filosóficas muito técnicas ou avançadas,
são de interesse geral para qualquer pessoa razoavelmente esclarecida, não importando
qual sua área de especialidade. Para um cientista, contudo, a clareza quanto a essas
questões, mesmo em um nível básico como o de nossa disciplina, é pressuposta em tudo
que ele empreenda enquanto cientista. Por isso, embora nossa disciplina seja teórica, ela
tem um grande impacto nos resultados da atividade prática de um cientista, como
tentaremos mostrar ao longo dos capítulos.

Onde você pode ler mais sobre o assunto: (opcional)


ARAGÃO, J. W. M.; MENDES NETA, M. A. H. Metodologia científica. Salvador: UFBA (Faculdade de
Educação, Superintendência de Educação a Distância), 2017.

LAKATOS, Eva M.; MARCONI, Marina de A.; Metodologia científica. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1991.
ISBN 85-224-0641-3.

MALLETA, H. Epistemología aplicada: Metodología y técnica de la producción científica. Lima (Peru):


CIES/CEPES/Universidad del Pacífico, 2009.

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02. SENSO COMUM E SENSO CRÍTICO

(Objetivos) Ao final deste capítulo, o estudante deverá ser capaz de:


a) compreender a importância da objetividade na produção de informações;
b) discernir entre as características do senso comum e do senso crítico.

Antes de dedicarmos atenção aos problemas diretamente ligados ao conhecimento


científico, conversaremos um pouco sobre o que é conhecimento em geral, para entender
em qual contexto a ciência está inserida. Essa conversa preliminar poderá lhe parecer
ingênua a princípio; mas, ela deverá estabelecer o tom de toda pesquisa acadêmica no
futuro; porque tratará especificamente da atitude metodológica empregada pelo cientista
ao elaborar conhecimento científico.
Toda exposição de conteúdo novo, para ser clara e rigorosa, requer que cada
conceito ou termo técnico introduzidos sejam bem definidos, por uma razão bastante óbvia:
evitar confusões e ambiguidades. Para definir algo novo, sempre recorremos a outras
noções já definidas previamente, e assim por diante. Mas para evitar que esse processo
siga indefinidamente e nunca termine, todo estudo aceita algumas noções como primitivas
(ou seja, que não precisam ser definidas a partir de outras). Geralmente, são noções bem
intuitivas ou que não provocam muita confusão.
Nossa noção primitiva neste capítulo será a noção de conhecimento, a qual será
discutida em um sentido bastante próximo do uso corrente; enquanto no próximo capítulo
discutiremos outro sentido, bem mais técnico (e restrito), que também nos será útil.
A noção de conhecimento que usaremos aqui é bem ampla e intuitiva, e corresponde
simplesmente à ideia de informação ou conteúdo informativo. Aqui, você pode perceber
uma limitação importante: estamos falando apenas de conjuntos de informações e não de
habilidades. É a diferença que existe, por exemplo, entre saber que a Terra é um planeta
(uma informação) e saber consertar um equipamento (uma habilidade). Não estamos
interessados, neste momento, em conhecimento prático (saber como fazer), mas apenas
em conhecimento teórico (saber que algo é desse ou daquele jeito), pois o conhecimento
prático depende sempre de algum tipo de conhecimento teórico (ainda que superficial).

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Portanto, entenderemos aqui por conhecimento um conteúdo informativo, uma


descrição de que algo acontece ou não acontece (ou seja, um conteúdo que pode ser
verdadeiro ou falso).
Alguém poderia protestar dizendo que não faz sentido falar em conhecimento falso;
ou seja, se a informação é falsa, não pode ser considerada conhecimento. Essa
reclamação está correta, de um ponto de vista mais técnico (que apresentaremos no
próximo capítulo); mas em um sentido mais cotidiano, frequentemente usamos a palavra
“conhecimento” para nos referirmos a qualquer conjunto de informações, mesmo que elas
sejam acerca de fatos fictícios ou falsos; por exemplo, quando dizemos que alguém sabe
que Darth Vader era o pai de Luke Skywalker (na saga Starwars). Esse uso mais flexível
do termo “conhecimento” nos permitirá distinguir entre tipos de conhecimento com mais
simplicidade didática, sem nos comprometermos prematuramente com uma discussão
polêmica sobre quais tipos de conhecimento são verdadeiros ou falsos!
Com essa noção extremamente simples, poderemos desenvolver muitos outros
tópicos. Pois bem, de acordo com a mesma, tudo que pode ser intelectualmente
compreendido (ou seja, qualquer informação ou conjunto de informações) é conhecimento,
nessa acepção mais abrangente do termo.
Parece evidente que o conhecimento, compreendido (apenas) enquanto conteúdo
inteligível, requer necessariamente uma faculdade produtora do mesmo. Afinal, como uma
informação poderia existir sem ter sido pelo menos pensada por alguém? Nós a
chamaremos simplesmente de inteligência.

 INTELIGÊNCIA é a faculdade responsável por produzir e processar conhecimento.

Para entender melhor o que estamos significando por inteligência, é preciso distingui-
la de outras faculdades de nossa subjetividade – ou seja, do que acontece em nossa
consciência ou nossa atividade mental. Não se deve, por exemplo, confundir a inteligência
(faculdade de pensar) com a faculdade de sentir emoções ou com as percepções
sensoriais.
Sentir uma emoção ou perceber sensorialmente algo (enxergar, ouvir, etc.) não são o
mesmo que pensar, embora todas essas atividades façam parte de nossa vida psíquica. É
óbvio que podemos pensar sobre as emoções – por exemplo, quando refletimos: “por que
estou triste?” ou “por que me sinto incomodado na presença desta pessoa?” – ou sobre as

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percepções – como ao pensar: “estou vendo algo azul” ou “estou sentindo fome”; porém,
estes pensamentos não podem ser confundidos com sentir uma emoção ou experimentar
uma sensação.
Podemos, por exemplo, falar sobre as emoções; mas, isto não as descreve de modo
claro e objetivo. Outros seres humanos compreenderão o que falamos porque existe um
aprendizado social das emoções, e associamos certos comportamentos e certas
descrições a determinadas emoções. Por isso, sabemos quais emoções outros seres
humanos estão sentindo porque fazemos uma comparação indireta com o que sentimos
em circunstâncias similares ou quando exibimos o mesmo comportamento. Mas, não é
possível descrever claramente a experiência da emoção na forma de conceitos. O mesmo
vale para as demais instâncias de nossa subjetividade (sensações, desejos, percepções
visuais, etc.). São comunicadas apenas indiretamente.
Em suma, o que queremos mostrar é que, à exceção dos conteúdos estritamente
inteligíveis que nossa inteligência produz, nenhum outro conteúdo de nossa vida psíquica
pode ser claramente descrito por meio da linguagem e, portanto, ser compartilhado.
Sendo assim, é possível distinguir, para fins meramente didáticos, duas maneiras
básicas de empregar a inteligência na produção ou processamento de informações.
Chamaremos essas maneiras pelos nomes tradicionais de senso comum e senso crítico.
Em linhas gerais, caracterizaremos assim:

 O SENSO COMUM é o emprego da inteligência de maneira superficial, subjetiva ou


pouco criteriosa.
 O SENSO CRÍTICO é o emprego da inteligência de maneira aprofundada, objetiva
e criteriosa.

Neste momento, você deve perceber que, embora cada um desses dois sensos
funcione de modo diferente, é a mesma faculdade racional que está em funcionamento.
Uma metáfora útil poderia ser a de um seletor de canais de televisão ou rádio. Ajustando o
seletor, você sintoniza um canal diferente, com toda uma programação sendo transmitida
na freqüência daquele canal. De modo similar, você pode ajustar, por assim dizer, sua
inteligência para funcionar no senso comum ou no senso crítico, com resultados
característicos em cada caso.

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Por que isso é importante? Porque, novamente para fins didáticos, nós distinguiremos
duas grandes categorias de conhecimento, a partir do uso da inteligência em sua
elaboração. Por definição, chamaremos de conhecimento crítico aquele produzido a partir
do uso do senso crítico, e de conhecimento ingênuo aquele produzido pelo senso comum;
sendo que, para entender com clareza quais são as características do conhecimento
científico, precisaremos dominar as características do conhecimento crítico (gerado pelo
senso crítico), uma vez que a ciência é um tipo de conhecimento crítico.

SENSO COMUM CONHECIMENTO INGÊNUO


SENSO CRÍTICO CONHECIMENTO CRÍTICO

Observe bem que a única determinação para cada uma das duas categorias acima é
o fato de ser produzida por um dos dois sensos. Isto será importante depois.
É costume se dizer que nosso cotidiano está recheado de senso comum. O que
normalmente se quer afirmar com isto é que, para preencher uma grande parte de nossas
necessidades diárias, empregamos considerações apressadas e simplificações grosseiras.
Dizemos coisas como:

 “o Sol nasce no leste”,


 “limões possuem um sabor azedo”,
 “aquela roupa é vermelha”,

e assim por diante. Qualquer pessoa que tenha passado pelo ensino fundamental deve
saber que nenhum dos exemplos acima é verdadeiro em um sentido literal; pois:

 o Sol não nasce no leste, nem gira em volta da Terra;


 os sabores não estão nos alimentos, mas são uma reação fisiológica em nossas papilas
gustativas (não existe sabor sem paladar);
 as cores não existem fora de nós como nós as percebemos, mas são o resultado de
uma reação neurológica complexa envolvendo os cones e bastonetes em nossos olhos
e determinada área de nosso cérebro.

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Também empregamos o senso comum na tomada de decisões importantes (“este


caminho parece mais perigoso”) ou, ainda, no julgamento superficial e apressado de
pessoas ou situações (“a guerra é sempre ruim”, “fulano/a não merece confiança, porque é
de tal família”).
Que fique bem claro que não estamos discutindo aqui se as informações obtidas a
partir do senso comum são úteis ou inúteis, ou mesmo se são verdadeiras ou falsas.
Estamos simplesmente examinando como nossa inteligência produz e processa
informações usando o senso comum.
Explorando nossa caracterização de senso comum, a primeira característica
apontada é sua superficialidade. O senso comum é o primeiro modo de funcionamento da
inteligência racional; o qual provavelmente se desenvolveu em nossa espécie para atender
de modo rápido e eficiente às demandas cotidianas de sobrevivência (“aqui tem
abundância de alimento; por isso, é bom lugar para morar”, “essa caverna me protegerá da
tempestade”, “cobrir-me com peles de animais me manterá aquecido”). Essas
necessidades cotidianas imediatas pediam soluções rápidas e eficientes, o que forçava
certa superficialidade na produção de respostas. À medida que nossas necessidades
foram se tornando mais complexas, com o correspondente aumento da complexidade nas
relações sociais e com o ambiente, o senso comum também foi sendo empregado nas
novas situações, com um correspondente aumento na complexidade de nossa inteligência.
Talvez a mais importante característica do senso comum seja seu caráter
eminentemente subjetivo. Este ponto exige uma atenção cuidadosa.
Subjetivo, etimologicamente, é aquilo que é relativo ao sujeito; assim como objetivo é
o que é relativo ao objeto. Sujeito e objeto aqui são considerados como os dois polos na
relação estabelecida pelo processo de conhecer algo. O sujeito do conhecimento é o
conhecedor, aquele que direciona sua atenção para algo (o objeto) a fim de conhecê-lo. O
objeto é o alvo do processo, aquilo que é conhecido pelo sujeito. Para fazer uso de um
exemplo bastante simples, quando você observa o computador (ou o livro) à sua frente,
você está sendo o sujeito do conhecimento, o computador (ou o livro), fora de você, está
sendo o objeto, e o fato de você perceber/pensar é o ato de conhecer.

(ato de conhecer)
SUJEITO OBJETO

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Essa perspectiva bipolar na atividade do conhecimento foi herdada do pensamento


moderno (séculos XVII e XVIII) e é em geral considerada ultrapassada em nossa época.
Entretanto, ela ainda pode ser útil, feitas as devidas ressalvas, para se explicar
didaticamente a diferença entre senso comum e senso crítico.
É claro que tudo que acontece em nossa mente é subjetivo (porque nós somos os
sujeitos do conhecimento), inclusive nosso raciocínio. Entretanto, quando dizemos que o
senso comum é uma maneira eminentemente subjetiva de usar a inteligência, queremos
dizer que, ao funcionar no senso comum, o indivíduo permite, quase sempre sem
perceber, que as instâncias não-racionais de sua atividade psíquica influenciem ou
interfiram na produção de conhecimento. Ou seja, ele permite que suas crenças,
preferências, aversões, expectativas, emoções, etc. contaminem, por assim dizer, seu
raciocínio.
Isto nem sempre é nocivo, e pode, em numerosos casos, ser muito proveitoso para o
indivíduo, como na criação de uma obra de arte ou na expressão de um valor cultural.
Contudo, em se tratando da produção de informações confiáveis, o resultado pode ser um
conhecimento tendencioso e, com freqüência, mais suscetível a erros.
Essa interferência da subjetividade na produção de informações pode ser enxergada,
com um pouco de bom humor, em uma situação fictícia em que uma mãe, preocupada
com o novo romance da filha adolescente, tenta mostrar que seu indesejado genro não é
um “bom partido”, informando à filha que o rapaz em questão está envolvido em atividades
ilegais, como tráfico de drogas e sequestros-relâmpago, etc. E a jovem apaixonada não
consegue ver os perigos que corre, porque está encantada com o charme e o discurso
sedutor de seu namorado. Este é um exemplo tragicômico de quando a subjetividade
interfere na apreciação crítica de uma situação. A mocinha de nossa história hipotética
está sendo muito subjetiva. Não ser objetivo, nesse caso, significa não enxergar os fatos
de modo claro, nem fazer avaliações imparciais, produzindo informações fortemente
condicionadas por emoções, preferências ou crenças individuais.
Isto, para nosso espanto, pode ocorrer também na pesquisa científica, caso o
cientista negligencie a exigência de objetividade. Desse modo, os resultados tenderão a
ser distorcidos de modo a se adequarem às expectativas individuais, interesses prévios,
preferências ou crenças pessoais do cientista.
O caráter subjetivo do senso comum está estreitamente ligado a uma ausência de
critérios bem definidos na condução da inteligência; ou seja, a uma falta de rigor

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metodológico. A adoção de critérios cuidadosos visa principalmente eliminar o subjetivismo


na produção de informações científicas; providenciando estratégias de correção no
raciocínio, cuidado na coleta de dados e revisão contínua dos resultados obtidos.
Essa deficiência metodológica resulta em uma apreciação superficial e apressada
dos acontecimentos. Por exemplo, alguém sai de casa para o trabalho em uma bela
manhã, e, mudando a rotina, calça primeiro o sapato esquerdo. Também por acaso, o
restante do dia se revela uma sucessão de desastres. O indivíduo em questão, na busca
por uma causa para seu infortúnio, lembra de ter mudado a ordem em que calça os pés no
início do dia. E conclui, aliviado com a descoberta: “comecei o dia com o pé esquerdo!”.
Uma conclusão assim jamais seria obtida dessa maneira pela investigação científica, que
tem suas peculiares exigências de relevância entre as causas apresentadas para um
fenômeno e o próprio fenômeno, além de testes envolvendo os supostos fatores relevantes
para verificar se há nexo causal.
Outro fator ligado a essa deficiência metodológica por parte do senso comum é sua
tendência para generalizar hipóteses de maneira descuidada ou indevida. Satisfeito com
um punhado de observações, o senso comum tende a generalizar situações ou
propriedades, a partir de um punhado insuficiente de observações. Alguém pode, por
exemplo, concluir que todas as aves são capazes de voar, baseando-se em uma
quantidade limitada de informações, desconsiderando casos como dos pingüins e das
avestruzes. A generalização foi feita, portanto, de maneira descuidada.
Certamente, muitas outras características poderiam ser relacionadas com o senso
comum, além daquelas listadas acima; porém, acreditamos que as três apresentadas
sintetizam as demais e são suficientes para identificar a atividade do senso comum.
Continuando nossa apresentação das principais características do senso comum e
do senso crítico, concentraremos nossa atenção agora em contrapor o senso crítico ao
senso comum.
Enquanto o senso comum foi distinguido como superficial, o senso crítico requer um
emprego aprofundado da inteligência, com a finalidade de não se deixar enganar pelas
aparências, nem se concluir informações de maneira precipitada.
Essa característica de planejamento está intrinsecamente ligada à adoção de
critérios bem definidos na produção e análise de informações. Seguir um método científico
– ou seja, procedimentos específicos, cuidadosamente concebidos e bem justificados –
apresenta várias vantagens, sendo as mais importantes: garantir o rigor nos resultados e

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permitir que estes resultados possam ser revisados e repetidos, caso necessário, por
outros pesquisadores.
É justamente essa predisposição para a análise e confirmação cuidadosas por parte
de outros pesquisadores treinados que garante um nível satisfatório de objetividade na
produção de informações. A obediência a métodos bem estabelecidos pode evitar a
distorção na coleta de dados ou na interpretação de resultados, bem como pode evitar que
tendências subjetivas (preferências, crenças pessoais, etc.) comprometam a
imparcialidade do conhecimento crítico.
Ao ouvirem falar em neutralidade do conhecimento, muitos epistemólogos (filósofos
da ciência) torcerão o nariz, apresentando criativas explicações sobre ranços ideológicos
por trás de todas as teorias científicas ou filosóficas, ou sobre alguma outra determinação
subjetiva inconsciente ou cultural da qual não se poderia nunca escapar.
É possível que haja alguns argumentos interessantes nessa direção; contudo, sua
análise nos desviaria de nosso propósito imediato. De todo modo, mesmo que não seja
possível alcançar uma objetividade (e, portanto, uma “neutralidade”) absoluta, é
certamente possível, com suficiente perspicácia, identificar uma maior ou menos
parcialidade na produção de informações. Quando falamos em objetividade em nossa
época, portanto, estamos redimensionando o significado dessa desgastada palavra para o
mesmo de imparcialidade.
Por exemplo, um cálculo matemático é algo que ocorre na mente de um indivíduo
específico em um dado momento; porém, esse cálculo pode ser transmitido a outra mente
(outro indivíduo), exatamente como foi construído, passo a passo. Ou seja, embora nosso
cálculo matemático aconteça em mentes individuais (“subjetivas”, por assim dizer), ele
pode ser compartilhado tal e qual com qualquer mente que domine as regras e operações
matemáticas, sendo, por isso, objetivo.
Existe, pois, pelo menos uma instância em nossa subjetividade que pode ser
considerada mais “objetiva”, desde que essa instância se resguarde o máximo possível de
se deixar influenciar pelas outras instâncias estritamente subjetivas (emoções, instintos,
crenças, preferências, etc.) de nossa personalidade. Trata-se da inteligência racional.
Talvez não seja possível evitar completamente essas influências subjetivas; mas, é
claramente possível minimizá-las. Se assim não fosse, não seríamos capazes de
reconhecer quando alguém não está pensando claramente por estar movido por forte
emoção, interesses pessoais ou por fanatismo ideológico.

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O emprego de critérios rigorosos por parte do senso crítico tem a ver com uma
apreciação cuidadosa e profunda dos fatos submetidos à análise, contrapondo-se ao
julgamento precipitado e superficial feito pelo senso comum.
Além disso, o indivíduo que se situa no nível do senso crítico não se satisfaz com
observações superficiais ou constatações limitadas. Por exemplo, em uma pesquisa
estatística, as amostras examinadas não podem ser tendenciosas. Imagine você a
fragilidade dos resultados de uma pesquisa de intenções de voto se o universo de
indivíduos entrevistados fosse justamente os militantes do mesmo partido. Sua pesquisa,
com cem por cento de intenção de voto para o mesmo candidato, não teria valor científico
algum!
Isto tudo nos leva a um ponto muito interessante. Desse conjunto de características,
assim comparadas, obtemos um importante sintoma: alguém funcionando no senso
comum não se percebe assim! Discernir a atividade do senso comum, reconhecê-la ao se
deparar com ela, já é um claro indicativo de que não se está mais no nível do senso
comum. É claro que, imediatamente após descobrir isto, o indivíduo pode retornar ao nível
do senso comum. Mas, a alternativa também pode ocorrer, e ele se transferir para o nível
do senso crítico. De todo modo, só o senso crítico é capaz de perceber a atividade do
senso comum enquanto senso comum.
Por vezes, o senso comum tende a desqualificar a atividade do senso crítico; isto é,
alguém completamente movido pelo senso comum tende a acreditar que não há diferenças
relevantes entre si e outro indivíduo mais criterioso em seu raciocínio. Para alguém com
essa mentalidade, os resultados científicos são apenas uma espécie de “opinião dos
cientistas”, tão válida quanto qualquer opinião. Por isto, pode ser muito difícil argumentar
com alguém que apenas consegue pensar no nível do senso comum!
Para encerrar este capítulo, vale refletir sobre como é irônico observar que as
mesmas pessoas que desprezam a ciência a partir dessa compreensão superficial e
tendenciosa não se privam de tirar proveito dos resultados científicos, quando atendem
aos seus interesses ou necessidades, como no caso do uso de medicamentos ou
procedimentos cirúrgicos, e de equipamentos complexos de comunicação à distância,
como celulares ou internet, ou até mesmo do recurso a eletrodomésticos para conforto e
sobrevivência.

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Onde você pode ler mais sobre o assunto: (opcional)

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1998. ISBN 85-08-04735-5. (Ver a Unidade 7:
as ciências; capítulo 1: a atitude científica.)

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