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Material Didático 01 - QM 2023-1
Material Didático 01 - QM 2023-1
MARCIO PEREIRA
específico; além de permitir ter uma noção do que os colegas dos prédios de aula vizinhos
na sua universidade estão fazendo! Existe, inclusive, uma tendência muito difundida de
que ciências diferentes sejam combinadas para desenvolver novas tecnologias ou resolver
problemas complexos. Como perceberemos a necessidade e vantagens disso se não
conhecermos um mínimo do que os cientistas de outras áreas (que não a nossa) estão
fazendo?
Outra expressão que provavelmente você já ouviu de vez em quando no cotidiano, ou
leu em sites de notícias, é a seguinte: “mas isso está cientificamente provado!”.
Ironicamente, essa afirmação é algumas vezes usada sem critério algum – ou pior ainda:
de maneira totalmente falsa e inapropriada – apenas para dar mais ênfase a uma crença
pessoal, ou a uma informação colhida aleatoriamente em uma mídia não especializada e
sem fundamento científico nenhum!
Pois bem, o que significa dizer que uma informação foi cientificamente comprovada?
Quer dizer que ela é uma verdade absoluta? Toda prova científica tem o mesmo peso
comprobatório? Como algo é provado cientificamente? O método científico é confiável?
Por quê?
Perceba que as respostas mais básicas a essas perguntas, ainda que não se
aprofundem desnecessariamente em discussões filosóficas muito técnicas ou avançadas,
são de interesse geral para qualquer pessoa razoavelmente esclarecida, não importando
qual sua área de especialidade. Para um cientista, contudo, a clareza quanto a essas
questões, mesmo em um nível básico como o de nossa disciplina, é pressuposta em tudo
que ele empreenda enquanto cientista. Por isso, embora nossa disciplina seja teórica, ela
tem um grande impacto nos resultados da atividade prática de um cientista, como
tentaremos mostrar ao longo dos capítulos.
LAKATOS, Eva M.; MARCONI, Marina de A.; Metodologia científica. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1991.
ISBN 85-224-0641-3.
Para entender melhor o que estamos significando por inteligência, é preciso distingui-
la de outras faculdades de nossa subjetividade – ou seja, do que acontece em nossa
consciência ou nossa atividade mental. Não se deve, por exemplo, confundir a inteligência
(faculdade de pensar) com a faculdade de sentir emoções ou com as percepções
sensoriais.
Sentir uma emoção ou perceber sensorialmente algo (enxergar, ouvir, etc.) não são o
mesmo que pensar, embora todas essas atividades façam parte de nossa vida psíquica. É
óbvio que podemos pensar sobre as emoções – por exemplo, quando refletimos: “por que
estou triste?” ou “por que me sinto incomodado na presença desta pessoa?” – ou sobre as
percepções – como ao pensar: “estou vendo algo azul” ou “estou sentindo fome”; porém,
estes pensamentos não podem ser confundidos com sentir uma emoção ou experimentar
uma sensação.
Podemos, por exemplo, falar sobre as emoções; mas, isto não as descreve de modo
claro e objetivo. Outros seres humanos compreenderão o que falamos porque existe um
aprendizado social das emoções, e associamos certos comportamentos e certas
descrições a determinadas emoções. Por isso, sabemos quais emoções outros seres
humanos estão sentindo porque fazemos uma comparação indireta com o que sentimos
em circunstâncias similares ou quando exibimos o mesmo comportamento. Mas, não é
possível descrever claramente a experiência da emoção na forma de conceitos. O mesmo
vale para as demais instâncias de nossa subjetividade (sensações, desejos, percepções
visuais, etc.). São comunicadas apenas indiretamente.
Em suma, o que queremos mostrar é que, à exceção dos conteúdos estritamente
inteligíveis que nossa inteligência produz, nenhum outro conteúdo de nossa vida psíquica
pode ser claramente descrito por meio da linguagem e, portanto, ser compartilhado.
Sendo assim, é possível distinguir, para fins meramente didáticos, duas maneiras
básicas de empregar a inteligência na produção ou processamento de informações.
Chamaremos essas maneiras pelos nomes tradicionais de senso comum e senso crítico.
Em linhas gerais, caracterizaremos assim:
Neste momento, você deve perceber que, embora cada um desses dois sensos
funcione de modo diferente, é a mesma faculdade racional que está em funcionamento.
Uma metáfora útil poderia ser a de um seletor de canais de televisão ou rádio. Ajustando o
seletor, você sintoniza um canal diferente, com toda uma programação sendo transmitida
na freqüência daquele canal. De modo similar, você pode ajustar, por assim dizer, sua
inteligência para funcionar no senso comum ou no senso crítico, com resultados
característicos em cada caso.
Por que isso é importante? Porque, novamente para fins didáticos, nós distinguiremos
duas grandes categorias de conhecimento, a partir do uso da inteligência em sua
elaboração. Por definição, chamaremos de conhecimento crítico aquele produzido a partir
do uso do senso crítico, e de conhecimento ingênuo aquele produzido pelo senso comum;
sendo que, para entender com clareza quais são as características do conhecimento
científico, precisaremos dominar as características do conhecimento crítico (gerado pelo
senso crítico), uma vez que a ciência é um tipo de conhecimento crítico.
Observe bem que a única determinação para cada uma das duas categorias acima é
o fato de ser produzida por um dos dois sensos. Isto será importante depois.
É costume se dizer que nosso cotidiano está recheado de senso comum. O que
normalmente se quer afirmar com isto é que, para preencher uma grande parte de nossas
necessidades diárias, empregamos considerações apressadas e simplificações grosseiras.
Dizemos coisas como:
e assim por diante. Qualquer pessoa que tenha passado pelo ensino fundamental deve
saber que nenhum dos exemplos acima é verdadeiro em um sentido literal; pois:
(ato de conhecer)
SUJEITO OBJETO
permitir que estes resultados possam ser revisados e repetidos, caso necessário, por
outros pesquisadores.
É justamente essa predisposição para a análise e confirmação cuidadosas por parte
de outros pesquisadores treinados que garante um nível satisfatório de objetividade na
produção de informações. A obediência a métodos bem estabelecidos pode evitar a
distorção na coleta de dados ou na interpretação de resultados, bem como pode evitar que
tendências subjetivas (preferências, crenças pessoais, etc.) comprometam a
imparcialidade do conhecimento crítico.
Ao ouvirem falar em neutralidade do conhecimento, muitos epistemólogos (filósofos
da ciência) torcerão o nariz, apresentando criativas explicações sobre ranços ideológicos
por trás de todas as teorias científicas ou filosóficas, ou sobre alguma outra determinação
subjetiva inconsciente ou cultural da qual não se poderia nunca escapar.
É possível que haja alguns argumentos interessantes nessa direção; contudo, sua
análise nos desviaria de nosso propósito imediato. De todo modo, mesmo que não seja
possível alcançar uma objetividade (e, portanto, uma “neutralidade”) absoluta, é
certamente possível, com suficiente perspicácia, identificar uma maior ou menos
parcialidade na produção de informações. Quando falamos em objetividade em nossa
época, portanto, estamos redimensionando o significado dessa desgastada palavra para o
mesmo de imparcialidade.
Por exemplo, um cálculo matemático é algo que ocorre na mente de um indivíduo
específico em um dado momento; porém, esse cálculo pode ser transmitido a outra mente
(outro indivíduo), exatamente como foi construído, passo a passo. Ou seja, embora nosso
cálculo matemático aconteça em mentes individuais (“subjetivas”, por assim dizer), ele
pode ser compartilhado tal e qual com qualquer mente que domine as regras e operações
matemáticas, sendo, por isso, objetivo.
Existe, pois, pelo menos uma instância em nossa subjetividade que pode ser
considerada mais “objetiva”, desde que essa instância se resguarde o máximo possível de
se deixar influenciar pelas outras instâncias estritamente subjetivas (emoções, instintos,
crenças, preferências, etc.) de nossa personalidade. Trata-se da inteligência racional.
Talvez não seja possível evitar completamente essas influências subjetivas; mas, é
claramente possível minimizá-las. Se assim não fosse, não seríamos capazes de
reconhecer quando alguém não está pensando claramente por estar movido por forte
emoção, interesses pessoais ou por fanatismo ideológico.
O emprego de critérios rigorosos por parte do senso crítico tem a ver com uma
apreciação cuidadosa e profunda dos fatos submetidos à análise, contrapondo-se ao
julgamento precipitado e superficial feito pelo senso comum.
Além disso, o indivíduo que se situa no nível do senso crítico não se satisfaz com
observações superficiais ou constatações limitadas. Por exemplo, em uma pesquisa
estatística, as amostras examinadas não podem ser tendenciosas. Imagine você a
fragilidade dos resultados de uma pesquisa de intenções de voto se o universo de
indivíduos entrevistados fosse justamente os militantes do mesmo partido. Sua pesquisa,
com cem por cento de intenção de voto para o mesmo candidato, não teria valor científico
algum!
Isto tudo nos leva a um ponto muito interessante. Desse conjunto de características,
assim comparadas, obtemos um importante sintoma: alguém funcionando no senso
comum não se percebe assim! Discernir a atividade do senso comum, reconhecê-la ao se
deparar com ela, já é um claro indicativo de que não se está mais no nível do senso
comum. É claro que, imediatamente após descobrir isto, o indivíduo pode retornar ao nível
do senso comum. Mas, a alternativa também pode ocorrer, e ele se transferir para o nível
do senso crítico. De todo modo, só o senso crítico é capaz de perceber a atividade do
senso comum enquanto senso comum.
Por vezes, o senso comum tende a desqualificar a atividade do senso crítico; isto é,
alguém completamente movido pelo senso comum tende a acreditar que não há diferenças
relevantes entre si e outro indivíduo mais criterioso em seu raciocínio. Para alguém com
essa mentalidade, os resultados científicos são apenas uma espécie de “opinião dos
cientistas”, tão válida quanto qualquer opinião. Por isto, pode ser muito difícil argumentar
com alguém que apenas consegue pensar no nível do senso comum!
Para encerrar este capítulo, vale refletir sobre como é irônico observar que as
mesmas pessoas que desprezam a ciência a partir dessa compreensão superficial e
tendenciosa não se privam de tirar proveito dos resultados científicos, quando atendem
aos seus interesses ou necessidades, como no caso do uso de medicamentos ou
procedimentos cirúrgicos, e de equipamentos complexos de comunicação à distância,
como celulares ou internet, ou até mesmo do recurso a eletrodomésticos para conforto e
sobrevivência.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1998. ISBN 85-08-04735-5. (Ver a Unidade 7:
as ciências; capítulo 1: a atitude científica.)