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Renata Cristina Lopes Andrade

INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE


E EDUCAÇÃO: PENSANDO JUNTO DE
IMMANUEL KANT

1ª Edição

Belém-PA

2020
4

https://doi.org/10.46898/rfb.9786558890218.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP).

I37

Inclinações humanas, moralidade e educação: pensando junto de Immanuel


Kant [recurso digital] / Renata Cristina Lopes Andrade. -- 1. ed. -- Belém:
RFB Editora, 2020.
2.199 kB; PDF: il.
Inclui Bibliografia.
Modo de acesso: www.rfbeditora.com.

ISBN: 978-65-5889-021-8.
DOI: 10.46898/rfb.9786558890218.

1. Immanuel Kant. 2. Pesquisa. 3. Estudo.


I. Título.

CDD 107

Elaborado por Rfb Editora.


5

© 2020 Edição brasileira.


by RFB Editora.
© 2020 Texto.
by o autor.

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SUMÁRIO
PREFÁCIO.................................................................................................................................7
Alonso Bezerra de Carvalho

INTRODUÇÃO........................................................................................................................9

PRIMEIRA SEÇÃO
O PURO E O EMPÍRICO NA FILOSOFIA PRÁTICA DE KANT...............................15

SEGUNDA SEÇÃO
INCLINAÇÕES, MORALIDADE E EDUCAÇÃO..........................................................27
2.1 Ação, inclinação e princípio...........................................................................................28
2.2 Educação e princípios práticos......................................................................................45

REFLEXÕES FINAIS.............................................................................................................67

REFERÊNCIAS.......................................................................................................................74

SOBRE A AUTORA..............................................................................................................77

ÍNDICE REMISSIVO............................................................................................................78
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
7

PREFÁCIO
A proposta deste pequeno livro, mas grande na temática que aborda, nos desafia
e nos convoca a olhar com mais cuidado para as ideias de um autor clássico e para
um tema que tem ocupado as discussões contemporâneas. Immanuel Kant é daqueles
autores que em muitas rodas de conversas acadêmicas e intelectuais tem causado po-
lêmicas e debates acalorados, geralmente sendo acusado de um grau de hermetismo e
complexidade e que pouco ajudaria na compreensão e no esclarecimento de questões
que nos tocam cotidianamente. Por seu lado, o tema da moral e da ética nunca perde
sua validade e importância, mesmo sabendo que vivemos uma crise na humanidade
que cada vez mais precisa de discernimento, tolerância e respeito.

O leitor encontrará neste livro um estudo teórico-filosófico bem conduzido dos


conceitos, princípios e ideias kantianas que visam contribuir na compreensão e na re-
flexão de quem somos nós e de como podemos e devemos ser, de maneira a orientar
e auxiliar em uma futura promoção da ação educativa e, assim, bem auxiliar no nosso
modo de fazer e agir moral e eticamente no mundo. Ademais, poderá abrir caminhos,
como consequência, para indicar e ponderar acerca das possibilidades, das limitações
teóricas e práticas acerca dos percursos e perspectivas para as nossas práticas educa-
cionais. Enfim, trata-se de uma reflexão dos conceitos e da estrutura argumentativa dos
princípios filosóficos do pensamento kantiano concernente à moralidade, à educação e
à ética, que poderá contribuir para a análise e construção de propostas e práticas edu-
cacionais que toma a questão dos valores como fundamental no processo pedagógico.

Especificamente, o livro retoma e explicita um aspecto da vida humana que foi


ao longo da tradição filosófica relegado a um segundo plano, em nome de uma hiper-
valorização da dimensão racional. Muitos filósofos são acusados de terem operado e
construído seus pensamentos nessa perspectiva, inclusive Kant, que muitas vezes é
interpretado como aquele que também não teria permitido e nem dado espaço algum
às diferentes dimensões dos seres humanos, por exemplo, as suas inclinações, apetites,
afeições, paixões, desejos, interesses ou propósitos, como destaca Renata.

Lançando mão de uma linguagem fluente e revelando o seu desejo de dialogar


com o grande público, o texto mostra de maneira tranquila e bem fundamentada a
importância que a dimensão empírica tem nas preocupações filosóficas de Kant, so-
bretudo na construção e na discussão que ele faz acerca da moralidade humana. Em
outras palavras, não deixou de abordar o ser humano em suas dimensões e aspectos
sensíveis, empíricos, subjetivos e condicional.

Portanto, ao apresentar o pensamento moral kantiano não revestido e restrito a


um mero formalismo, vazio e precário em relação aos seres humanos, talvez esteja aí
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
8 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

o seu grande potencial de se efetivar e de se realizar em uma situação específica como


a educação.

Com isso, o livro da Renata tem a grande virtude de apresentar uma belíssima
contribuição ao campo da filosofia e da educação, equilibrando e tratando com esmero
as ideias de Kant, deixando-as bastante compreensíveis e claras, sem perder a pro-
fundidade e o rigor. A sua análise evidencia que o ensino da moralidade, no sentido
de formar e desenvolver o ser humano, e, consequentemente, garantir a ação ética no
real, podem ser possíveis via educação. O significa dizer que deveríamos estar atentos
à capacidade própria do ser humano, ser racional e passional que é, de bem usar a sua
vontade e a faculdade de determinar o querer fazer, o querer agir, as suas decisões e
suas escolhas como um passo em direção à perfeição da natureza humana.

Considerando os desafios e os problemas que a educação desperta e enfrenta,


especialmente os professores e professoras em uma sala de aula, a publicação do pre-
sente livro cumprirá um papel fundamental. Estou certo que a sua leitura promoverá
novos olhares e novas posturas em pesquisadores, docentes e discentes no seu proces-
so de formação e de investigação, pois tomarão consciência e noção de que é possível o
progresso e o aperfeiçoamento da humanidade por meio da educação, isto é, por meio
de uma educação moral. Retomando Kant, em seu texto Sobre a Pedagogia : «é entu-
siasmante pensar que a natureza humana será sempre melhor desenvolvida e aprimorada pela
educação, e que é possível chegar [por meio dela] a dar aquela forma que em verdade convém à
humanidade. Isto abre a perspectiva para uma futura felicidade da espécie humana». Esse é o
compromisso da presente obra!

Marília, 28 de agosto de 2020.

Prof. Dr. Alonso Bezerra de Carvalho


Departamento de Didática e Programa de Pós-Graduação em Educação
Faculdade de Filosofia e Ciências
Universidade Estadual Paulista – UNESP
Campus de Marília
INTRODUÇÃO
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
10 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

A Filosofia Prática de Immanuel Kant (1724-1804), por ser uma filosofia moral
que não leva em consideração o ser humano e a sua constituição na busca, formulação
e fixação dos princípios morais primeiros, foi criticada por formalismo, insensibilidade
e vazio. De fato, por vezes, o pensamento prático kantiano foi interpretado exigindo o
puro cumprimento do dever e da lei moral, não permitindo, portanto, espaço algum
às diferentes expressões dos seres humanos, por exemplo, as suas inclinações, apetites,
afeições, paixões, desejos, interesses, propósitos e a sua vida efetiva. Esses elemen-
tos, ditos empíricos ou sensíveis, são apresentados pelos críticos da filosofia moral de
Kant, em grande medida, enquanto irrelevantes ou avulsos à moralidade conforme
pensada, desenvolvida e justificada pelo filósofo alemão.

Podemos recorrer a Friedrich Schiller (1759-1805), contemporâneo de Kant, para


exemplificar essa posição crítica de formalismo, insensibilidade ou vazio da filosofia
prática de Kant. Schiller, ao avaliar o ponto de vista da moral kantiana, na obra Sobre
graça e dignidade (1793), expõe:
Escrúpulo da Consciência: Eu ajudo de bom grado meus amigos, mas ai de
mim! Eu o faço com inclinação. E assim eu me sinto seguidamente atormen-
tado com o pensamento de que eu não sou virtuoso. Decisão: Não há outro
caminho a tomar, tu deves procurar desprezá-los, e cumprir então com re-
pugnância o que o dever te ordena. (SCHILLER, 1991, p. 41).

A crítica de Schiller consiste, precisamente, em supor que o princípio moral kan-


tiano requer a supressão de toda e qualquer inclinação para que uma ação possa ser
praticada segundo o princípio prático fundamental e, desse modo, apresentar o seu
verdadeiro valor, ou seja, o valor moral. Pensamos que a presente crítica não se susten-
ta pois, apesar da filosofia prática pura de Kant não fundar os seus princípios sob bases
empíricas ou sensíveis, Kant não deixou de abordar o ser humano, sua constituição,
dimensões e aspectos, não deixou de trazer, em seu pensamento prático, a natureza do
ser humano e as suas peculiaridades, especificidades e condição1. Então, parece que
Kant não é o filósofo cujo pensamento moral se apresenta enquanto mero formalismo,
vazio e precário em relação aos seres humanos, o que implicaria, ademais, em sua im-
possibilidade de efetivação, alcance ou realização.

Ora, querer suprimir todas e quaisquer inclinações, desejos, paixões e apetites


parece ir contra a própria natureza humana, isto é, um ser racional e sensível. Logo,
não podemos aceitar a posição de que, de acordo com a filosofia prática de Kant, para
que uma ação possa apresentar o seu valor autêntico, é preciso rejeitar a porção sensí-
vel e empírica do ser humano. Com base na própria filosofia prática (pura e empírica)
de Kant, vemos como possível a recusa dessa posição, a partir da leitura dos seus tex-
tos práticos, podemos negar a interpretação de que ter uma inclinação, um desejo, uma

1  O que explicitaremos na primeira seção da presente obra.

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
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paixão, um interesse próprio ou um propósito implica, necessariamente, na ausência


do legítimo valor da ação, em Kant, do seu valor moral.

É preciso destacar que considerar a natureza do ser humano é algo indispensá-


vel em uma teoria moral pois, ainda que essa teoria obtenha seu princípio supremo,
o seu princípio prático fundamental, sem levar em consideração as particularidades
e peculiaridades dos seres humanos, ela não poderá deixar de se indagar, em algum
momento, sobre a possibilidade e aplicabilidade dos seus princípios morais ao agente
moral, nesse caso, o ser humano, um ser racional e sensível. (BORGES, 2003, p. 1). Eis,
exatamente, o que ocorre na filosofia prática kantiana.

Assim, oferecemos na presente obra, de caráter teórico-filosófico, o esclarecimen-


to conceitual acerca das inclinações humanas, moralidade e educação, bem como a
compreensão das relações entre esses conceitos na Pedagogia do filósofo alemão do
século XVIII, o que ocorrerá por meio do exame, clarificação, compreensão, aprofun-
damento, contextualização e exposição de conceitos e de ideias, o reestabelecimento
de movimentos argumentativos, a identificação de teses junto da explicitação de pres-
supostos.

A filosofia prática de Kant requer a inteira supressão de toda e qualquer inclina-


ção ou sensibilidade humana? Como a educação, segundo a concepção kantiana de
educação, se estabelece em relação às inclinações e à formação moral e ética dos seres
humanos? Qual é o dever da educação segundo Kant?

Tais questionamentos talvez possam indicar, a partir da filosofia da educação,


outros, possíveis e/ou necessários, olhares, enfoques e reflexões em relação ao ser hu-
mano e à ampla ação educacional, sinalizando a oportunidade dos fundamentos para
a compreensão, a orientação e a promoção das realidades, aqui, em particular, as reali-
dades educacionais, éticas e humanas. O que representa a oportunidade do pensamen-
to e os seus ensejos para compreender e transformar o presente, a ocasião de reflexão
e, quiçá, de perspectivas baseadas nos fundamentos da educação, que possibilitem
outros e diferentes olhares e atitudes educacionais e humanas.

Não buscaremos, neste momento, abordar as experiências reais, a sala de aula, a


escola ou universidade, antes, oferecemos os conceitos e as ideias para que essas rea-
lidades possam ser ponderadas. Que as conjunturas educacionais, éticas e humanas
possam ser interpretadas, compreendias, problematizadas e modificadas em união
com as janelas abertas da filosofia. Portanto, oferecemos, neste livro, a análise teóri-
ca-filosófica de conceitos e de princípios que podem contribuir com a compreensão
de elementos significativos da educação e da constituição do ser humano. O que, con-
forme pensamos, é de grande importância pois, seja qual for o momento educacional,
INTRODUÇÃO
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
12 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

desde a Educação Básica até a Educação Superior, o Humano, em seus diversos aspec-
tos, características, especificidades, particularidades e dimensões, é o que permanece.

Aqui está uma exposição primeira, de determinação e de clareza de conceitos, a


análise conceitual que poderá nos auxiliar a ponderar, por exemplo, sobre as possibi-
lidades, as limitações teóricas e/ou práticas, os possíveis e outros passos de toda uma
complexa ação educacional, a qual envolve a sala de aula, a escola, os agentes educa-
cionais, a formação e prática docente, os sistemas educacionais, as políticas públicas
da educação, dentre outros, e que não desconsidere o ser humano e a sua dimensão
moral e ética.

Exprimir a filosofia prática kantiana e a sua pedagogia significa, ademais, dei-


xar-se mover por algumas inquietações, exemplificando: de que modo o diagnóstico
teórico acerca das inclinações humanas, da moralidade, da ética e da educação pode
colaborar com a realidade educacional hoje? a teoria, o pensamento, a filosofia, podem
ser considerados na promoção das ações educacionais? o pensamento pedagógico de
Kant ainda é válido para a pedagogia atual? os problemas da pedagogia kantiana re-
fletem nas indagações da educação do presente? a filosofia da educação de Kant pode
influenciar a tarefa crítica da educação contemporânea? quais as razoáveis implicações
do pensamento prático de Kant à realidade das ações, das condutas e dos costumes na
contemporaneidade? São algumas das inquietações que, a partir do exame teórico-fi-
losófico, podemos, olhando para a educação, em especial a educação em valores e para
a ação ética, considerar.

Antes de expor, nas seções seguintes, o todo e a complementariedade da filosofia


prática de Kant, os conceitos de inclinação, moralidade e educação e as suas relações,
antes de trazer a análise conceitual e a reflexão filosófica em termos de procura e análi-
se, colocamos um esclarecimento: em Kant, uma investigação prática é aquela que tem
a ver com os fundamentos determinantes da vontade (KANT, 2003, p. 67). Chama-se
Prático tudo o que se refere à liberdade (KANT, 1999, p. 35). A filosofia teórica diz res-
peito ao ser e às leis da natureza e a filosofia prática ao dever-ser e às leis da liberdade
(KANT, 1980, p. 103). Ou ainda,
[...] consideramos alguma coisa teoricamente, na medida em que atendemos apenas
àquilo que diz respeito ao ser; consideramos, porém, praticamente, se examinamos
aquilo que nela deveria encontrar-se mediante a liberdade. (KANT, 1985, p. 48).

Desse modo, diferentemente da concepção cotidiana em que o termo ‘prático’ se


refere a algo de utilidade rápida e concreta, em Kant, o que quer que esteja relacionado
com a escolha, a decisão, a deliberação segundo as leis da liberdade, será um pensa-
mento moralmente prático. O mundo prático, nessa concepção, é o mundo da ação
moral, autônoma e livre.

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
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Vamos, então, aos conceitos e relações entre: inclinações, moralidade e educação


em Kant.2

2  A presente obra é fruto dos estudos e pesquisas realizadas, inicialmente, na graduação em Filosofia, no âmbito da iniciação
científica sob a orientação do professor Dr. Ubirajara Rancan de Azevedo Marquês/Unesp – Campus de Marília; posteriormente,
acrescidos no contexto da escrita da dissertação em Filosofia “Princípios práticos objetivos e subjetivos em Kant”, sob a orientação
da professora Dra. Sílvia Altmann/UFRGS; ampliados, com a escrita da tese em Educação “Formação moral e educação: um estudo
a partir da filosofia prática de Kant”, sob a orientação do professor Dr. Alonso Bezerra de Carvalho//Unesp – Campus de Marília.

INTRODUÇÃO
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PRIMEIRA SEÇÃO

O PURO E O EMPÍRICO NA FILOSOFIA


PRÁTICA DE KANT
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
16 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

C omecemos compreendendo que a Filosofia Prática de Kant foi concebida em


duas partes.

A primeira parte, o objetivo primeiro da filosofia prática de Kant, diz respeito


aos fundamentos, concentrando-se exclusivamente à fundamentação da moralidade,
nesse momento, Kant se propôs a buscar e justificar a existência de uma proposição
prática fundamental, a saber, uma lei prática. Em sua intenção primeira, a filosofia
prática kantiana representa a busca e a fixação de uma lei moral por excelência, a qual
possa se apresentar enquanto um princípio prático universal a ser seguido. Há, no
momento de fundamentação da moralidade, a preocupação de encontrar (e fixar) uma
lei prática a qual possa nos dizer sobre todo o dever-ser, ou seja, sobre tudo aquilo que
deve, necessariamente, acontecer do ponto de vista moral, uma lei para o agir e a ação
com valor moral. No Prefácio à Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), Kant
deixa claro sua principal, senão a única, tarefa ao tratar do que ele chamou de filosofia
prática pura: a descoberta e justificação do princípio supremo moral, “a busca e fixação
do princípio supremo da moralidade”. (KANT, 1980, p. 106). Essa é a parte Pura da
Filosofia Prática de Kant.

Considerando que, segundo Kant, se há moralidade, então deve haver uma pro-
posição fundamental prática, o filósofo pretender descobrir e justificar a existência
desse princípio prático fundamental, isto significa a descoberta e a fundamentação do
princípio supremo da moralidade. A busca pelo princípio supremo da moralidade se
dá, inicialmente, na primeira e segunda seção da Fundamentação da metafísica dos cos-
tumes, mediante a análise dos juízos morais comuns, com essa análise Kant chega aos
conceitos de boa vontade, imperativo e dever, conceitos de suma importância para o todo
da sua filosofia prática. A fixação e o desenvolvimento do princípio supremo moral
ocorre a partir da 3° seção da Fundamentação e na Crítica da razão prática (1788). Porém,
enfatizamos que a necessidade do fundamento prático puro, ou seja, uma lei moral
que nos legisle (autolegislação) na direção do que deve acontecer do ponto de vista
da moralidade – aponte com segurança todo o dever-ser – já pode ser antevista desde a
Dissertação de 1770, por exemplo, no §9, nota de rodapé.

Segundo Kant, o princípio supremo da moralidade, a lei prática fundamental,


deve ser puro e independente da preocupação de se irá realizar-se ou não, a preocupa-
ção com a realização ou alcance não diz respeito à filosofia prática pura, a preocupação
será, unicamente, com a possibilidade de leis práticas que possam mover uma vontade
por motivos a priori. Nas palavras de Kant:
Mesmo que nunca tenham havido ações que tivessem jorrado de tais fontes puras,
a questão não é agora de saber se isto ou aquilo acontece, mas sim que a razão por si
mesma e independente de todos os fenômenos ordena o que deve acontecer. (KANT,
1980, p. 120, grifo nosso).

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
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Isso significa que, no âmbito da primeira parte da filosofia prática de Kant, a


parte pura, não há ainda a preocupação com a efetivação do princípio supremo da mo-
ralidade, antes, com o sistema da crítica de uma investigação prática, a busca é pelos
fundamentos, pelos princípios precisos da lei e do dever moral, os princípios últimos
ou fórmula de toda ação que se queira como moral, ou seja, com valor moral1. Para
Kant, uma tarefa importante, afinal:
Quem, porém, sabe o que significa para o matemático uma fórmula, a qual
para executar uma tarefa determina bem exatamente e não deixa malograr
o que deve ser feito, não considerará uma fórmula, que faz isto com vistas a
todo o dever em geral, como algo insignificante e dispensável. (KANT, 2003,
p. 25).

Kant, além de marcar e justificar a sua preocupação ao tratar de uma investigação


moral genuína, responde às críticas endereçadas a ele – de que não teria apresentado
em sua investigação nenhum princípio novo da moralidade, mas somente uma nova
fórmula2.

Nesse sentido, as investigações de uma filosofia prática pura se justificam, pois,


de acordo com o pensamento kantiano:
i) Uma filosofia prática mesclada não é capaz de oferecer princípio algum,
não pode fornecer um princípio supremo propriamente prático, ou seja, leis
práticas ou condições de estabelecimentos de leis práticas, que é a preocupa-
ção central de Kant no momento do desenvolvimento da sua filosofia prática
pura. Para Kant, uma filosofia prática que se mescla com dados empíricos,
por exemplo, da física, da antropologia, da psicologia ou das experiências em
geral, pode fornecer, no melhor dos casos, previsões, estatísticas, leis naturais,
pode relatar ou descrever casos particulares, porém, não é essa a preocupação
de Kant, a sua preocupação localiza-se na mola (KANT, 2008, p. 1), na fonte da
ação, isto é, no princípio da ação moral.
ii) Kant (1983, p. 24) chama de puro o que nada se mescla com dados empíri-
cos, o fundamento puro da moralidade deve ser completamente depurado de
tudo o que possa ser empírico que, segundo Kant, é sempre contingente e a
base da conduta humana não deve ficar à sorte de qualquer contingência. Na
visão do filósofo, tudo o que provém da experiência é contingente, relativo e
particular, diferente daquilo que provém da razão, cujo alcance pode ser uni-
versal, necessário e objetivo. Na Crítica da razão pura, Kant aponta este dado
ao dizer que, se no ato de conhecer estão presentes o sujeito e o objeto, sendo
que a universalidade, necessidade e objetividade do conhecimento não podem
vir do objeto, terão que vir então do sujeito3. Tratando-se da moralidade, há
algo que se assemelha a essa “revolução copernicana”4 realizada pelo autor na
primeira Crítica. Tal como na razão teórica, Kant constatou na razão prática a
impossibilidade de se buscar na experiência o princípio da ação, uma lei prá-
1 A ética kantiana é uma ética do dever, porém não há nesse pensamento qualquer incompatibilidade entre dever e liberdade. A
moralidade em Kant é uma moral do Dever e ao mesmo tempo de Liberdade.
2  Kant refere-se, nesse momento, precisamente a Gottlob August Tittel (1739-1816), adversário da ética kantiana. Cf. KANT, 2003,
p. 25.
3  Para Kant, o conhecimento é uma síntese dos elementos derivados da experiência e de dados a priori provenientes da estrutura
transcendental do sujeito que conhece, a qual permite explicar que o conhecimento seja universal, necessário e objetivo,
características essenciais a todo conhecimento cientifico. Por este motivo, Kant inicia a introdução à Crítica da razão pura, dizendo:
“Não há dúvida de que todo o nosso conhecimento começa pela experiência [...]. Mas embora todo o nosso conhecimento comece
com a experiência, nem por isso todo ele se origina justamente da experiência”. (KANT, 1983, p. 23).
4  “[...] O mesmo aconteceu com os primeiros pensamentos de Copérnico que, depois das coisas não quererem andar muito bem
com a explicação dos movimentos celestes admitindo-se que todo o exército de astros girava em torno do espectador, tentou ver
se não seria melhor que o espectador se movesse em torno dos astros, deixando estes em paz”. (KANT, 1983, p. 12).

Primeira Seção
O PURO E O EMPÍRICO NA FILOSOFIA PRÁTICA DE KANT
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
18 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

tica universal e necessária.


iii) Uma filosofia prática mesclada, isto é, contingente, casual ou acidental,
pode levar ao bem, como pode também, em muitas situações, levar ao mal.
Noutras palavras, uma filosofia moral mesclada apenas é capaz de oferecer
razões ou motivos que podem, eventualmente ou acidentalmente, levar à vir-
tude, mas que, também, podem levar ao vício, desqualificando completamen-
te as diferenças específicas entre a virtude e o vício, oferecendo, por exemplo,
apenas a melhor técnica ou o melhor cálculo da ação, os conselhos ou as regras
da habilidade.

Diante do exposto, a questão é: se há a preocupação moral, o ser humano pode


se deixar guiar por um “princípio”, por uma determinação, uma razão ou motivo tão
vacilante? Se há a preocupação moral, o ser humano pode deixar-se guiar ao acaso, por
uma determinação ou “princípio” que causalmente ou acidentalmente leva ao bem,
mas que em muitas situações pode, também, encerrar-se em um grande mal?

Incluímos, ademais, a relevância e a necessidade de, se tratando de uma filosofia


moral, filosofia prática ou razão prática, elaborar e desenvolver primeiro a sua parte
pura – a metafísica moral ou sistema da crítica – para somente posteriormente poder,
com segurança, considerar o empírico, a efetividade e o alcance do princípio. Como
investigar a possibilidade de aplicação, o sucesso ou efetividade de algo se antes ele
não foi devidamente e cuidadosamente fundado? De acordo com Kant:
É verdade que as minhas afirmações sobre esta questão capital tão importante e que
até agora não foi, nem de longe, suficientemente discutida, receberiam muita clareza
pela aplicação do mesmo princípio a todo o sistema e grande confirmação pelo fato
da suficiência que ele mostraria por toda a parte; mas tive que renunciar a esta van-
tagem, que no fundo seria também mais de amor-próprio do que de utilidade geral,
porque a facilidade de aplicação e a aparente suficiência dum princípio não dão nenhuma
prova segura de sua exatidão, pelo contrário, despertam em nós uma certa parcialidade
para o não examinarmos e ponderarmos em toda a severidade por si mesmo, sem
qualquer consideração pelas consequências. (KANT, 1980, pp. 106-7, grifo nosso).

Devemos ressaltar que, na filosofia prática de Kant, o empírico não é descartado


ou eliminado pelo filósofo, a sensibilidade, a experiência, em suma, os dados empí-
ricos, somente não são abordados ou levados em consideração na primeira parte da
Moral, o que ocorre justamente pelos objetivos, pela tarefa, pelo o que se busca em
uma filosofia prática pura, isto é, a busca pelo fundamento comum a partir do qual
será possível, posteriormente, orientar as ações e realidades plurais do ponto de vista
da moralidade. Um princípio prático que não apresenta a sua base em alguma realida-
de ou que não é posto no real é, por essa razão, um princípio inválido? Se os Direitos
Humanos Universais são desrespeitados na realidade isso implica a invalidade moral
destes princípios? (HÖFFE, 1990, p. 135).

Evidenciamos a existência e a necessidade de uma filosofia prática pura, que, se-


gundo Kant, representa a Moral propriamente dita, a qual completamente purificada
de tudo o que possa ser empírico, encontre, desse modo, nada além que a fórmula do

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
19

dever moral, isto é, o fundamento, uma legislação, um princípio supremo de determi-


nação de todo o dever-ser, tudo o que deve acontecer do ponto de vista da moralidade,
nesse momento, mesmo que não ocorra nas experiências reais uma só vez.
Trata-se aqui não do sucesso mas somente da determinação da vontade e do funda-
mento determinante da máxima da mesma enquanto vontade livre. Pois, se somente
ante a razão pura a vontade é conforme às leis, então seja como for a execução da sua
faculdade, quer ela surja ou não efetivamente segundo essas máximas da legislação
de uma natureza possível, disso não se ocupa absolutamente a Crítica, que investiga
aí se e como a razão pura pode ser prática, isto é, imediatamente determinante da
vontade. (KANT, 2003, p. 153).

A presente filosofia constitui, de acordo com Kant (1980, p. 106), algo distinto de
qualquer outra investigação moral. Afirmação que faz grande sentido, pois, historica-
mente, a base da moralidade fora, antes de Kant, buscada na ordem da natureza ou em
necessidades naturais, em tradições, no anseio pela felicidade, na busca pelo prazer,
na vontade de Deus, ou ainda no sentimento moral. Via-se, segundo Kant (1980, p.
138), o ser humano ligado a leis pelo seu dever, porém, não ocorreu a ninguém que
o ser humano estivesse sujeito somente à sua própria legislação. Constatamos aqui a
referência de Kant
[...] aos esforços empreendidos por seus antecessores na busca e fundamentação de
um princípio supremo para a moralidade, Kant alude às dificuldades daqueles e
aponta para a causa do fracasso de suas empreitadas. (SANTOS, 2011, p. 205).

Nesse sentido, há a reformulação do princípio da moralidade, a renovação do


fundamento das leis práticas, a novidade da proposta do pensamento moral kantiano.
Podemos apontar, nesse contexto, que as tentativas anteriores a Kant de fundamen-
tar a moralidade consistiam, na maioria dos casos, em heteronomias, fundavam-se,
portanto, em algo externo ao ser humano. Colocava-se o princípio da heteronomia da
vontade por julgar-se que a vontade não pudesse ser determinada senão por algo ex-
terior a ela. Seguindo com a posição de Kant, o motivo da moralidade heterônoma se
deu pela ausência de uma investigação moral genuína, ou seja, a partir de elementos
puros, assim, as presentes investigações não possibilitaram nada de sólido em matéria
da moral, não possibilitaram nada que pudesse identificar e fornecer, na visão de Kant,
o princípio supremo da moralidade – contra as ilusões da heteronomia, o sistema da crítica
em uma filosofia prática justifica-se como necessário. (ROHDEN, 2003, p. XVI).

Kant coloca a sua argumentação sobre a fundamentação da moral sob a existên-


cia de um princípio supremo moral: autônomo, incondicional e universal. Desse prin-
cípio prático é dependente a própria possibilidade da moralidade, ou seja, a própria
possibilidade do autêntico valor ou conteúdo moral das ações.

No entanto, o pensamento prático de Kant não se resume à parte pura, não se


resume apenas à busca e fixação de leis morais puras que devem determinar a conduta
dos seres humanos por motivos a priori. Há o segundo momento da filosofia prática
Primeira Seção
O PURO E O EMPÍRICO NA FILOSOFIA PRÁTICA DE KANT
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
20 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

kantiana, com o objetivo de analisar as condições de aplicabilidade, efetivação, reali-


zação e alcance do princípio prático devidamente fundado em sua investigação prática
pura. Com a filosofia prática pura, Kant investigou as condições de possibilidade de
uma lei moral pura, com a filosofia prática empírica ou impura, Kant investigou as
condições de possibilidade do alcance dessa lei nas vidas, vivências, experiências, em
suma, nas ações reais em geral. A primeira cuidou da possibilidade da ação moral e a
segunda do alcance da ação moral em geral. Segundo Kant:
“[...] toda a Filosofia é ou um conhecimento a partir da razão pura ou um conheci-
mento racional a partir de princípios empíricos. A primeira chama-se filosofia pura,
a segunda filosofia empírica”. (KANT, 1983, p. 409).

A parte empírica do pensamento moral de Kant, tratará, especificamente, da mo-


ralidade aplicada ao ser humano, examinará, por exemplo, a divisão do dever moral
para a natureza humana – ser racional e sensível – tal divisão será apresentada pelo fi-
lósofo na obra Metafísica dos costumes, parte II (1797), sob o nome de deveres de virtude.

É importante compreender que a parte empírica da filosofia prática kantiana não


irá se distanciar ou desligar do dever-ser, ou seja, de tudo o que deve, necessariamente,
acontecer do ponto de vista da moralidade, porém levará em consideração, na filoso-
fia prática empírica, a condição e as especificidades do ser humano, o que Kant, em
alguns momentos, chamará de Ética. (KANT, 1997, p. 226).

A parte empírica do pensamento prático kantiano, cuidará de “esquematizar” os


princípios puros do dever para a sua aplicação na experiência, às ações gerais, apre-
sentando-os prontos para o uso moral. Cabe dizer que não se trata do Esquematismo
pretendido por Kant, em termos teóricos, na Crítica da razão pura, afinal a lei prática
não pode ser apresentada na intuição, em termos práticos, trata-se de uma típica a qual
encontramos indícios na Crítica da razão prática (1788) sob o título: Da típica da faculdade
de julgar prática, que investigará a questão prática de saber como fazer a lei moral se
realizar no mundo sensorial. Segundo o esclarecimento de Terra: “Tanto o esquema
quanto o tipo são mediadores e possibilitam a aplicação da lei, teórica no primeiro
caso, prática no segundo”. (TERRA, 2003, p. 80).

A parte empírica da filosofia prática de Kant foi desenvolvida pelo filósofo, por
exemplo, nas obras: A religião nos limites da simples razão (1793), Metafísica dos costumes
– Doutrina do Direito e Doutrina da Virtude (1797), Antropologia de um ponto de vista prag-
mático (1798), bem como em suas preleções sobre Geografia (1793) e sobre Educação
(1803).

Segundo Kant, a sua busca prática empírica refere-se à


[...] determinação específica dos deveres como deveres humanos, para divi-
di-los, somente é possível se antes o sujeito dessa determinação (o homem)

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
21

for conhecido segundo a natureza que ele efetivamente detém, embora ape-
nas na medida em que é necessário com relação ao dever em geral; tal deter-
minação, porém, não pertence a uma Crítica da razão prática em geral, que só
deve indicar completamente os princípios de sua possibilidade, de seu âmbi-
to e limites, sem referência particular à natureza humana. Portanto, a divisão
pertence aqui ao sistema da ciência e não ao sistema da crítica. (KANT, 2003,
p. 25-7).

A Fundamentação da metafísica dos costumes e a Crítica da razão prática estão no âm-


bito da Crítica, ou seja, da investigação, do exame, da análise reflexiva, das possibilida-
des e dos limites, enquanto que a Religião, a Metafísica dos costumes – Virtude e Direito,
a Antropologia, a Geografia e a Educação, estariam no da Ciência, ou seja, da efetivação,
do alcance, da realidade ou realização. (TERRA, 2003, p. 68).

Terra (2003, p. 72) aponta que a diferença entre o sistema da crítica (filosofia
prática pura) e o sistema da ciência (filosofia prática empírica) estaria no fato de que
a primeira se concentrou na formulação da lei moral – na fórmula universal da mora-
lidade – enquanto que o segundo, vale dizer, o sistema da ciência, levando em consi-
deração o ser humano e a sua natureza, existência e condição, buscou determinar a
divisão dos deveres para esse ser racional e sensível, preocupando-se com o alcance
moral a partir do ser humano. O sistema da crítica pressupõe uma fundamentação da
moralidade, representa a possibilidade de um princípio supremo da moral, indica e
justifica a fórmula que determina de todo o dever-ser. Por outro lado, a determinação
particular dos deveres como deveres humanos, encerra-se no âmbito do sistema da
ciência. Com a filosofia moral pura, se estabelece, primeiro, a noção do dever em geral,
posteriormente, com a segunda parte do seu pensamento moral, o filósofo oferece a
divisão dos deveres para o caso da natureza humana. Desse modo, há: i) o sistema da
crítica e a fórmula geral do dever; ii) o sistema da ciência, com referência particular à
natureza humana, a divisão dos deveres para o ser humano.

Entretanto, se há a preocupação moral, é necessário estar atento para que as ações


em geral não impliquem uma inteira ruptura com a legislação moral pura, antes, re-
presente o suplemento de uma tal lei, ou seja, uma ação que vai procurar efetuar a
moralidade na medida em que torna possível o seu exercício externo.

Por vezes, a filosofia prática de Kant não é discutida em sua totalidade, ou seja,
contemplada em sua parte pura e parte empírica, o que enxergamos, junto de outros
estudiosos de Kant, como algo pouco seguro:
O argumento de que os últimos escritos de Kant são frutos de um período de senili-
dade, junto à grande repercussão das obras anteriores à década de 1780, quase nos
limitou a uma interpretação do pensamento ético de Kant em que os estudos sobre
a antropologia, psicologia, biologia, história, educação ou qualquer outro de cunho
empírico contribuíram pouco nos trabalhos sobre a aplicabilidade de sua ética. (OLI-
VEIRA, 2006, p. 69).

Primeira Seção
O PURO E O EMPÍRICO NA FILOSOFIA PRÁTICA DE KANT
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
22 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

Pensamos que não perder de vista a arquitetura do pensamento prático kantiano


oportuniza uma ampla compreensão desse pensamento moral (puro) e ético (empíri-
co), ou seja, a compreensão da parte que é “um sistema de conhecimento a priori de
conceitos somente” e da outra parte formada por um tipo de conhecimento que não é
a priori, mas é baseada no ser humano, na experiência, na sensibilidade, na existência e
que lida com “as condições subjetivas na natureza humana que atrapalham ou ajudam
as pessoas a cumprirem as leis da metafísica da moral”. O conhecimento moral que
traz o empírico, a experiência e a sensibilidade em Kant é, também, um conhecimento
prático. (KLAUDAT, 2010, p. 79).

Assim, a Filosofia Prática de Kant é constituída e sustentada, apropriadamente,


por duas partes:
i) uma parte pura (não empírica), na qual há a busca do princípio supremo da
moralidade isolado de toda particularidade, de todo dado empírico. Eis uni-
camente o que se quer, a busca e a fixação do fundamento da ação que possa
apresentar valor moral;
ii) uma parte empírica, que consiste na verificação do alcance e da efetividade
do princípio supremo, nesse momento, levando em conta o ser humano e suas
limitações, finitudes, peculiaridades, experiências, existência e condição.

Dividir a Filosofia em pura e empírica somente é admissível tendo em vista que


a filosofia pura cuida do pensamento, da reflexão teórica, enquanto que a filosofia
empírica da aplicação. Em geral, pensamos que somente nessa perspectiva essa di-
visão se sustenta, pois a filosofia foi e é intimamente ligada e guiada pelas questões
humanas, isto é, sobre e do ser humano. Por outro lado, no interior da filosofia prática
de Kant, pensamos que essa divisão se ampara, primeiramente, em razão das preocu-
pações do filósofo tendo em vista a moralidade, ou seja, a busca e fixação de princípio
prático supremo puro, as leis práticas necessárias e universais (KANT, 1997, p. 226)
e, segundo, se levarmos em consideração a necessidade da divisão da metafísica dos
costumes análoga à da metafísica da natureza, conforme posto por Kant no Prefácio da
Fundamentação da metafísica dos costumes. A citação de algumas passagens nos mostram
essa posição, não são poucos os momentos em que Kant explicita a divisão da filosofia
prática em pura e empírica. Exemplificando:
Desta maneira surge a ideia duma dupla metafísica, uma Metafísica da Natureza e
uma Metafísica dos costumes. A Física terá sua parte empírica, mas também racio-
nal; igualmente a Ética, se bem que nesta a parte empírica se poderia chamar espe-
cialmente Antropologia prática, enquanto que a racional seria a Moral propriamente
dita. (KANT, 1980, p. 103).
Moralia pura é baseada em leis necessárias, e assim ela não pode ser funda-
mentada na constituição particular do homem, e as leis baseadas nisso ficam
conhecidas na antropologia moral sob o nome de ética. (KANT, 1997, p. 226).

Moral pura, filosofia moral pura ou apenas moral diz respeito a uma lei que le-
gisla a ação necessariamente, ou seja, independentemente de todo e qualquer dado,

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
23

acontecimento, efeito (...); a possibilidade de efetividade dessa lei é investigada, poste-


riormente, com a antropologia, o direito, a educação, em resumo, com a filosofia moral
empírica, sob o nome de ética. A antropologia, o direito ou a educação, referem-se ao
estudo prático empírico do ser humano que, segundo Louden (2000), podemos deno-
miná-lo de ética impura. Louden chama a atenção para o fato de que Kant dedicou
muitos de seus estudos e aulas à investigação empírica do ser humano, a qual seria
necessária para a efetivação dos princípios puros.

Se levamos em consideração a arquitetura do pensamento prático de Kant ao


cuidar das questões morais, podemos recusar as críticas acerca do vazio, rigorismo ou
formalismo prático kantiano. Noutras palavras, ao abarcarmos a complexa concepção
da ação de Kant ao tratar da moralidade, observamos que a parte empírica, muitas
vezes negada de sua filosofia prática, está nos textos em que Kant, ao abordar questões
acerca da natureza e condição humana, traz para o campo da filosofia prática os ele-
mentos de uma moral aplicável, isto é, partes relevantes da experiência humana, por
exemplo, as inclinações, tendências, paixões, cultura, educação, elementos que muitos
de seus críticos apontaram a ausência.

Há, na Filosofia Prática de Kant, a busca pelo fundamento puro dos costumes – a
lei fundamental da razão prática, e, posteriormente, a investigação filosófica do alcan-
ce e efetividade desse fundamento. Não é seguro perder de vista o todo do pensamen-
to prático kantiano e cair, desse modo, no engano de apontar a sua filosofia prática
enquanto mero formalismo. Observamos que a divisão e complementariedade entre
puro e empírico na filosofia prática kantiana foi anunciada na Crítica da razão prática em
um pequeno capítulo sob o título de “Doutrina do método da razão prática pura”, quando
o filósofo afirma:
Muito antes entender-se-á por esta doutrina do método o modo como se pode pro-
porcionar às leis da razão prática pura acesso ao ânimo humano, influência sobre
as máximas do mesmo, isto é, como se pode fazer a razão objetivamente prática
também subjetivamente prática. (KANT, 2003, p. 531).

Logo, a necessidade de averiguar, depois de ser devidamente fundada, o acesso


da legislação moral à realidade dos costumes dos seres humanos. Julgamos a parte
pura e a parte empírica ou impura da moral kantiana enquanto necessárias e comple-
mentares, posição sustentada pelo próprio filósofo. Kant, na visão de Oliveira, ressalta:
[...] a necessidade de uma antropologia prática para nos tornar aptos a aplicar a moral
propriamente dita através da nossa faculdade de julgar, que, por sua vez, é aprimora-
da pela experiência. Precisamos da antropologia prática para que sejamos capazes de
acolher em nossa vontade, pela via da educação e do exercício, as leis morais em seus
princípios e também assegurarmos a sua eficácia, seja pelo aprendizado na nossa for-
mação moral, seja pela força externa do direito (OLIVEIRA, 2006, p. 71, grifo nosso).

Levando em consideração o todo da Filosofia Prática de Kant, podemos visuali-


zar, ademais, o lugar próprio da Educação no interior dessa filosofia. Kant sinaliza a
Primeira Seção
O PURO E O EMPÍRICO NA FILOSOFIA PRÁTICA DE KANT
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
24 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

educação enquanto um dos mecanismos capazes de realização dos princípios morais,


um dos caminhos que podem alcançar a própria moralidade, um dos mecanismos
capazes de assegurar a eficácia moral mediante o aprendizado, no sentido de forma-
ção e de desenvolvimento. A filosofia prática pura traçou os primeiros princípios da
ética, pois, de outro modo, na ausência do princípio não poderíamos olhar para a sua
efetividade, formação ou ensino com segurança, a filosofia prática empírica, da qual a
educação pertence tratará da efetividade moral e ética mediante o seu ensino, por meio
da formação e do desenvolvimento ético. Nas palavras do filósofo:
Mas, não é, portanto, inútil, muito menos ridículo, traçar nessa metafísica os primei-
ros princípios da ética; para isso somente enquanto um filósofo poderá observar os
primeiros princípios dessa concepção do dever, de outro modo, não poderemos olhar
para o ensino da ética. (KANT, 2008, p. 1-2, grifo nosso).

Kant coloca a sua argumentação da sua fundamentação da moral sob a base da


existência de um princípio supremo moral autônomo, incondicional e universal, pos-
teriormente, se dedica sobre a possibilidade da efetivação desse princípio supremo
mediante, por exemplo, a educação e formação moral e ética do ser humano. É possível
o seu ensino? É possível a exteriorização do princípio prático fundamental mediante a
educação? Não é o caso, em uma filosofia prática empírica ou impura, de simplesmen-
te mesclar os dados empíricos ao fundamento puro da moral, mas trata-se de levar em
consideração o que é relevante para efetivação ou alcance do princípio supremo da
moralidade, nesse contexto, o que é importante para a efetividade moral, para as ações
éticas, é a própria natureza e condição do ser humano e isso implica, também, a edu-
cação onde estará inserida a questão da formação moral humana (OLIVEIRA, 2006, p.
71-2). Por isso, Kant coloca uma pergunta que até hoje deveria nos inquietar: “Como
poderíamos tornar os homens felizes, se não os tornamos sábios e morais?”. (KANT,
1999, p. 28).

Desse modo, com a Educação no interior da filosofia prática impura de Kant,


e conforme concebida pelo filósofo, haverá o desenvolvimento, a difusão, o fortale-
cimento e a possibilidade de efetivação dos princípios morais, mediante a formação
moral do ser humano. O caminho para esse fim, ou seja, para a formação moral dos
seres humanos, para a possibilidade de ações éticas nas vidas e vivências reais, encon-
tramos, em grande medida, nas preleções Sobre a Pedagogia (Über Pädagogik), publicada
em 1803, um ano antes da morte de Kant. Essa obra, constante das Obras Completas de
Immanuel Kant, Tomo X, da edição da Real Academia Prussiana de Ciências de 1923
(FONTANELLA, 1999, p. 5), é resultado de relatos recolhidos por Friedrich Theodor
Rink, amigo e aluno de Kant, quando o filósofo lecionou cursos de pedagogia na Uni-
versidade de Königsberg no semestre de inverno 1776/77, no semestre de verão de
1780 e nos semestres de inverno de 1783/84 e 1786/87. (SANTOS, 2014, p. 163)5. As
5  Ainda que no Brasil a informação de que Kant teria oferecido as preleções sobre a Pedagogia apenas em três situações –
1776/77, 1783/84 e 1786/87, Santos (2014) adverte que o registro da preleção de 1780 é confirmado por estudiosos da filosofia

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
25

atuações dos professores de filosofia das universidades alemãs nos cursos de Pedago-
gia se justificam facilmente pois, para além das exigências ministeriais (WEISSKOPF,
1970, p. 97), muitos dos filósofos da época tiveram por objeto de estudos, reflexões e
indagações o tema da educação e os seus elementos.

Na discussão filosófica do pensamento kantiano, o tema da educação muitas ve-


zes não é levado em consideração, o que ocorre, geralmente, pelo modo como a filo-
sofia prática de Kant é abordada, conforme apontamos, com a ausência de sua parte
empírica. No que diz respeito às preleções Sobre a pedagogia, a obra ainda é negada
pelas desconfianças no que diz respeito à sua origem e autoria – autêntico/não au-
têntico, kantiano/não kantiano. Ora, pensamos ser possível desfazer a desconfiança
acerca da autenticidade da obra quando levamos em consideração as demais posições
de Kant a respeito da educação, embora não sistemáticas, em seu pensamento, em es-
pecial, na Doutrina do Método de suas três Críticas: Crítica da razão pura, Crítica da razão
prática (principalmente) e Crítica do juízo, também na parte II da Metafísica dos costumes
- Princípios metafísicos da doutrina da virtude e em sua Antropologia de um ponto de vista
pragmático.

A educação em Kant auxiliará, ademais, o ser humano a alcançar os princípios


morais, isto é, “os princípios que determinam a priori e tornam necessários o fazer e o
deixar fazer” (KANT, 1983, p. 409). Podemos compreender a educação em Kant, ou a
pedagogia kantiana, enquanto o estudo empírico do ser humano que pode auxiliar o
fazer com valor moral, que pode auxiliar as realizações éticas dos seres humanos. Com
a Educação, Kant aponta um dos mecanismos, não o único, mas um deles, que pode
fornecer efetivamente a resposta à questão prática: o que devo fazer?

Lembrando que, de acordo com Kant (2001, p. 622): “Todo o interesse da minha
razão (tanto especulativa quanto prática) concentra-se nas seguintes três perguntas: 1.
O que posso eu saber? 2. O que devo eu fazer? 3. O que está me permitido esperar?”.
Essas são as questões do sistema crítico kantiano, a primeira questão é uma questão
especulativa, a segunda é prática e a terceira “se faço o que devo fazer, que me é permi-
tido esperar?” (Kant, 2001. p. 622) é, ao mesmo tempo, prática e teórica. As três ques-
tões postas pelas Críticas – da razão pura, da razão prática e do juízo – se agrupam na
questão singular: o que é homem? Assim, vemos no criticismo kantiano a busca pela
compreensão do ser humano, um ser constituído, de acordo com as suas três Críticas,
sob as perspectivas: cognitiva/epistemológica, moral/prática e estética.

Com a compreensão da filosofia prática de Kant na íntegra, ou seja, em sua parte


pura e empírica, bem como com os indícios do lugar singular que a educação ocupa
kantiana, por exemplo, WEISSKOPF (1970), STARK (2000) e LOUDEN (2000), e, além da preleção de 1780, Kant teria anunciado
uma nova preleção no semestre de inverno 1790/91, a qual não ocorreu devido à uma reestruturação interna da Universidade de
Königsberg, mais conhecida como Universidade Albertina.

Primeira Seção
O PURO E O EMPÍRICO NA FILOSOFIA PRÁTICA DE KANT
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
26 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

no interior dessa filosofia, como um momento o qual tratará, também, da moralidade,


da ética, da formação moral e das realizações éticas do educando, considerando as
suas especificidades, condição, paixões e inclinações, na próxima seção, devemos com-
preender os conceitos e as relações entre inclinações, educação e moralidade, o que
significa examinar e compreender a possibilidade e a composição de uma ética efetiva,
isto é, o próprio alcance dos valores morais.

Renata Cristina Lopes Andrade


SEGUNDA SEÇÃO

INCLINAÇÕES, MORALIDADE E EDUCAÇÃO


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
28 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

N as obras Fundamentação da metafísica dos costumes (1785) e Crítica da razão


prática (1788), encontramos importantes considerações de Kant acerca da
inclinação e sobre os espaços das inclinações humanas em relação às questões morais,
ou seja, quando há a preocupação com o valor moral de uma ação. Posteriormente, em
particular nas preleções Sobre a Pedagogia (1803), temos, desenvolvidos e justificados,
a atenção e o cuidado adequado e necessário às inclinações, vale reforçar, caso haja a
preocupação com o valor moral que uma ação possa ter. O que são os espaços e a abor-
dagem de Kant em relação às inclinações humanas junto das questões morais, éticas e
educacionais é o que oferecemos na segunda seção da presente obra.

Segundo Kant, uma inclinação, “[...] chama-se inclinação a dependência em que


a faculdade de desejar está em face das sensações” (KANT, 1980, p. 124), não é o que
pode conferir o valor moral a uma ação. De fato, segundo a moralidade de Kant, o
valor moral de uma ação não está nas inclinações, ou seja, não está naquilo que nos
inclinamos ou desejamos face as nossas sensações, por exemplo, de prazer ou de bem-
-estar. Então, a questão é: isso significa dizer que devemos suprimi-las? Devemos eli-
miná-las? Se há a preocupação com o valor moral de nossa ação, devemos abolir, erra-
dicar ou exterminar com todo e qualquer desejo sensível que tenhamos ou possamos
ter?

De acordo com Kant, uma ação tem o seu valor moral,


[...] não no propósito que com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina;
não depende portanto da realidade do objeto da ação, mas somente do princípio do
querer segundo o qual a ação, abstraindo de todos os objetos da faculdade de dese-
jar, foi praticada. (KANT, 1980, p. 114).

A partir da proposição exposta, o que colocamos e desenvolveremos é:


i) se o autêntico valor da ação, o valor moral, está no princípio do querer, o que
isso significa? O que é uma ação por princípio? O que é uma ação por princípio
prático (moral)?
ii) se o autêntico valor da ação está no princípio do querer, de que modo a edu-
cação é (ou pode ser) importante para que o ser humano aja, de fato, segundo
princípios práticos?

2.1 Ação, inclinação e princípio

Sobre o primeiro elemento – o que significa dizer e como Kant justifica que o
valor moral da ação está no princípio do querer – devemos analisar com atenção a
afirmação kantiana na obra Fundamentação da metafísica dos costumes, quando o filósofo
diz que a ação praticada precisamente por princípios tem o seu valor não no propósito
que com a ação se deseja atingir, mas, precisamente, na máxima que determina essa
ação. Isso significa que o valor da ação não é dependente da realidade dos objetos do
desejo, mas somente do princípio segundo o qual a ação foi realizada. Ponderemos

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
29

sobre da distinção realizada por Kant entre propósitos e máximas, entre inclinação,
objeto e princípio.

Se ficamos com a definição de máxima como algo que diz respeito ao nosso que-
rer e que move as nossas ações, “Máxima é o princípio subjetivo do querer” (KANT,
1980, p. 115), podemos pensar que os propósitos, do mesmo modo com uma máxima,
também determinam o nosso querer fazer, assim, propósitos e máximas seriam equi-
valentes. No entanto, Kant afirma que o valor de uma ação não reside em seu propósi-
to, mas em sua máxima, logo, propósitos e máximas determinam o nosso querer fazer,
mas não são equivalentes. E, reforçando, somente podemos vislumbrar o valor moral
de uma ação por sua máxima, não pelo seu propósito pois, por mais nobre que seja um
propósito, ele, de acordo com Kant, nada pode nos dizer sobre o valor moral da ação
resultante desse propósito.

Isso ocorre porque, como assinala Kant, inseparavelmente do propósito de uma


ação sempre está uma inclinação ou objeto – objetos da faculdade de desejar – o que
significa que quando agimos por um propósito sempre agimos visando algum efeito,
fins, finalidades ou utilidades, algo que desejamos particularmente alcançar. Quando
temos um propósito, sempre há, necessariamente, inclinações, fins e móbiles do desejo
determinando, guiando, movendo a ação. Como explica Kant:
O princípio subjetivo do desejar é o móbil (Teibfeder), o princípio objetivo do querer
é o motivo (Bewegungsgrund); daqui a diferença entre fins subjetivos, que assentam
em móbiles, e objetivos, que dependem de motivos, válidos para todo ser racional.
(KANT, 1980, p. 134).

Notamos que o propósito de uma ação se baseia exatamente naquilo que par-
ticularmente desejamos, no que nos inclina, em suma, em um objeto desejado sensi-
velmente. Ora, se nos deixamos guiar por objetos do desejo e, desse modo, se o valor
moral de uma ação se sustenta pelo e no propósito dessa ação, haveria, pelo menos,
dois problemas:
i) se o objeto não existir, se a ação não alcançar o seu propósito, ela não terá
valor algum e,
ii) o valor de qualquer objeto, mesmo de um objeto desejado, é sempre relati-
vo, não absoluto.

Vale dizer que, conforme elucidado por Kant nos parágrafos iniciais da primeira
seção da Fundamentação da metafísica dos costumes, o moralmente bom significa abso-
lutamente bom, um bom não limitado por esse ou aquele sujeito, por esse ou aquele
objeto, antes, é um bom ilimitado e sem reservas – sempre bom. Wittgenstein (1993)
ilustrou a correspondência entre o moralmente bom e o ilimitadamente bom com o se-
guinte exemplo. Suponha que alguém esteja jogando tênis e você diga: “Você não deve
segurar a raquete assim, mas de outro jeito”. Suponha que essa pessoa responda: “Ok,

Segunda Seção
INCLINAÇÕES, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
30 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

não me importo em não jogar tão bem, apenas jogo por prazer”. Poderíamos pensar
simplesmente: “Então, tudo bem”. Mas, suponha que disséssemos algo como: “Você
não deve maltratar seus pais só porque eles estão velhos”. E a pessoa diga: “Ok, não
me importo em tratá-los bem”. Poderíamos dizer: “Então, tudo bem?”. Certamente
não, e diríamos: “Você deve tratá-los bem”. Notamos que a própria ideia de moralida-
de supõe que tomemos algo com um valor mais alto que condiciona as nossas atitudes.
O que podemos pensar de “mais alto” somente pode ser algo que é bom em todos os
casos, que é ilimitadamente bom, algo que deve ser bom sempre e sem reservas. (AN-
DRADE, 2015, p. 15-16).

Consequentemente, o que é relativo tem o seu valor sempre dependente da re-


lação com a faculdade de desejar e das características particulares desse ou daquele
sujeito, por esse motivo, não pode fornecer os princípios práticos que são bons sem
reservas, válidos e necessários para todo o querer sem restrição. (KANT, 1980, p. 134).

Distinto do propósito de uma ação, o qual é sempre dependente de uma inclina-


ção, isto é, de um objeto desejado sensivelmente para determinar a ação (para mover a
vontade a fazer o ser humano agir), não sendo capaz de se desligar desses objetos do
desejo pois, caso se desligue, a ação não atingirá o seu propósito, há, por outro lado,
a máxima da ação. Somente ela, a máxima da ação, pode oferecer o princípio do que-
rer, também chamado por Kant de princípio da vontade, pois somente uma máxima
é capaz de realizar a abstração do objeto desejado como aquilo que determina a ação,
como aquilo que move a nossa vontade nos fazendo agir. Somente a máxima da ação,
ainda que seja um princípio subjetivo, pode não depender diretamente, para deter-
minar o querer fazer, de alguma inclinação – de algum objeto desejado face as nossas
sensações – mesmo que tenhamos a inclinação pelo objeto desejado sensivelmente,
mesmo que haja um fim particular ligada a máxima da ação, mesmo que desejemos o
fim a ela ligada e mesmo que esse fim venha ou não a se realizar.

Veja, a máxima, assim como o proposito de uma ação, pode estar ligada a um ob-
jeto, porém, a máxima da ação pode não ser necessariamente condicionada em função
desse objeto, em função do efeito que se espera da ação. Noutras palavras, a máxima,
assim como o propósito, também pode estar ligada aos objetos do querer, a diferença
entre a máxima e um propósito é que a máxima, diferentemente de um propósito, é
capaz, além de realizar a abstração desse objeto, de incorporar (por querer – por dever
moral ou de virtude) o princípio prático da ação, passando de uma máxima geral para
uma máxima moral. Nesse sentido, é preciso observar que, segundo Kant, a máxima
da ação que é subjetiva (válida para um sujeito), pode ser, também, objetiva (válida
para todos os sujeitos), o que delimitará uma máxima enquanto subjetiva e objetiva
será a sua condição de determinação da ação.

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
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O ponto que devemos compreender é: mesmo que tenhamos uma inclinação e,


nesse sentido, mesmo que tenhamos um propósito de alcançar um objeto particular e
sensivelmente desejado, a vontade movida por princípio, o qual apenas a máxima da
ação é capaz de oferecer quando realiza a total abstração dos objetos sensíveis, esse
objeto não será, justamente por causa dessa abstração, a razão pela qual fazemos o que
fazemos, não será, a razão da nossa ação.

Na distinção entre um propósito (inclinação) e uma máxima (princípio), pode-


mos dizer, então, que uma máxima pode ser, além de subjetiva, objetiva. Desse modo,
máximas são mais gerais do que os propósitos. Porém, em que sentido uma máxima é
mais geral do que um propósito? Bittner (2003), nos ampara para poder compreender
esse juízo.

Diz ele, certamente não é no sentido de abarcar um maior número de casos, tam-
bém não é o caso de uma máxima valer por mais tempo, os propósitos, assim como
uma máxima, podem valer por toda uma vida. A peculiar possível objetividade de
uma máxima está muito além de quantidades ou sucessão temporal. Assim, Bittner
aponta, como central para que possamos compreender a posição de Kant, a questão
do que podemos pensar enquanto um fundamento razoável para o abandono de uma
máxima por oposição à mudança de um propósito. Noutras palavras, segundo Bitt-
ner, a distinção entre o propósito de uma ação, impulsionado por nossas inclinações,
e a máxima de uma ação, que pode revelar o princípio da ação, é melhor evidenciada
quando pensamos sobre os motivos que nos levam ao abandono de uma máxima em
oposição aos abandonos de um propósito. São sinalizadas por Bittner três possibilida-
des: 1) circunstâncias particulares e externas; 2) razões morais (as quais só podem ser
compreendidas quando compreendemos o que é uma máxima); 3) um melhor conhe-
cimento dos fatos. Vejamos um pouco mais de perto essas três possibilidades.

Circunstâncias particulares e externas podem ser determinantes para o abando-


no de um propósito, por exemplo, a simples exibição de um filme na televisão pode
ser suficiente para o abandono do meu propósito de jantar todas as noites com a mi-
nha família. Porém, não é suficiente para o abandono de uma máxima, a não ser que
essa circunstância externa venha acrescida de uma compreensão, reconhecimento ou
consciência da situação, isto é, de uma compreensão dos fatos e, desse modo, não serão
as particularidades propriamente ditas que nos farão alterar a minha ação, mas sim, a
compreensão das circunstâncias.

Disso, continua Bittner, implica uma marca decisiva na distinção entre um pro-
pósito da ação e uma máxima da ação. Se uma melhor compreensão dos fatos nos leva
a alterar as nossas ações, trata-se de uma máxima, pois essa compreensão abrange o

Segunda Seção
INCLINAÇÕES, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
32 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

todo e não somente esta ou aquela circunstância em particular. A substituição de um


propósito, junto do seu objeto dado pela inclinação, não exige a consideração do todo,
o mero horário da exibição de um filme pode mostrar-se suficiente à alteração de um
propósito de ação, o mesmo não ocorre com uma máxima.

De acordo com um outro exemplo oferecido por Bittner, se desfalco um depó-


sito tendo em vista enriquecer (máxima da avareza), mas com a forte intenção de em
oportunidades futuras não me aproveitar de modo similar, não agimos, na visão de
Bittner, segundo uma máxima, isto é, submetido sob a firme máxima da avareza, pois
ela me diz que quero enriquecer por todos os meios seguros, não permitindo exceções,
se permite exceções não é uma máxima, mas um mero propósito.

Nesse sentido, verifica-se que, para Bittner, quando agimos segundo uma máxi-
ma, consequentemente, por um princípio que determina a nossa ação, a máxima que-
rida estará sempre presente em nossas escolhas e decisões. O que realizamos ontem
segundo uma máxima, deve nos mover e determinar hoje, ou seja, estará presente em
todos os casos de nossas ações futuras. Assim, estamos diante de um agir segundo
máximas e princípios e não de propósitos, inclinações ou hábitos consolidados com o
dia-a-dia. Isso significa que, se adotamos uma máxima, se a queremos enquanto prin-
cípio do nosso agir, não basta apenas uma vez tê-la querido, isso precisamente des-
classifica uma máxima, é necessário querer sem ressalvas. Qualquer exceção permitida
já não estaremos agindo segundo uma máxima. Podemos mudar as nossas máximas,
mas uma vez adotada enquanto (minha) máxima, ela estará sempre presente enquanto
princípio em nossas ações particulares. Se permitimos uma exceção, já não estamos
agindo segundo a máxima e por princípio.

Esses exemplos nos ajudam a compreender a posição de Kant sobre o valor da


ação praticada segundo uma máxima e por princípio, diferente do valor das nossas
inclinações que resultam em propósitos que nos colocamos. Com o auxílio dos exem-
plos postos por Bittner (2003), podemos entender que a ação segundo uma máxima e
por princípio diz respeito à compreensão ampla do porquê fazemos o que fazemos, às
razões do nosso fazer, esse porquê ou razão quando for moral estará no “[...] princí-
pio do querer segundo o qual a ação, abstraindo de todos os objetos da faculdade de
desejar, foi praticada”. E disso não resulta, de modo algum, dizer que não podemos
ter uma inclinação, um desejo ou um interesse sensível e particular, antes, significa
que essas inclinações não serão o motivo (Bewegungsgrund) da nossa ação, não serão a
razão ou o porquê do nosso querer fazer.

Considerando as distinções realizadas por Kant entre propósito e máxima, entre


inclinação e princípio, a alternativa de Kant, ao investigar o valor moral da ação, é

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
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indicar que, no lugar de uma inclinação, que apenas pode nos colocar propósitos liga-
dos aos objetos que desejamos sensivelmente, o que moverá a vontade e sustentará a
máxima da ação moral será a ideia ou princípio do dever, o motivo (Bewegungsgrund)
da ação será a própria ideia do dever – uma ordem de força apodítica, necessária (que
não pode ser de outro modo) e universal. Nesse sentido, por dever, ou razões morais,
certas máximas são negadas, algumas permitidas e outras requeridas. Nas palavras de
Kant.
Ser caritativo quando se pode sê-lo é um dever, e há além disso muitas almas
de disposição tão compassiva que, mesmo sem nenhum outro motivo de vai-
dade ou interesse, acham íntimo prazer em espalhar alegria à sua volta e se
podem alegrar com o contentamento dos outros, enquanto este é uma obra
sua. Eu afirmo porém que neste caso uma tal ação, por conforme ao dever,
por amável que ela seja, não tem contudo nenhum verdadeiro valor moral,
mas vai emparelhar com outras inclinações, por exemplo, o amor das honras
que, quando por feliz acaso topa aquilo que efetivamente é de interesse geral
e conforme ao dever, é consequentemente honroso e merece louvor e estí-
mulo, mas não estima; pois à sua máxima falta o conteúdo moral que manda
que tais ações se pratiquem, não por inclinação, mas por dever. [...] se a natureza
não tivesse feito de um tal homem (que em boa verdade não seria seu pior
produto) propriamente um filantropo, – não poderia ele encontrar dentro de
si um manancial que lhe pudesse dar um valor muito mais elevado do que
um temperamento bondoso? Sem dúvida! – e exatamente aí é que começa
o valor do caráter, que é moralmente sem qualquer comparação o mais alto,
e que consiste em fazer o bem, não por inclinação, mas por dever. (KANT,
1980, p. 113, grifo nosso).

O dever (Sollen), por definição é o respeito a uma lei à qual o indivíduo oferece
a si mediante a sua razão prática (KANT, 1980, p. 114), “A razão pura é por si prática
e dá (ao homem) uma lei universal, que chamamos lei moral” (KANT, 2003, p. 107).
Uma vez que o ser humano não é determinado imediatamente por essa lei, pois é um
ser racional finito e encontra-se também sujeito às inclinações sensíveis, que podem
tomar o lugar de fundamento de determinação de sua ação, a relação do ser humano
com a lei moral é de dependência e chama-se dever. Como explica Rohden na introdu-
ção à edição brasileira da Crítica da razão prática:
Desde a Antiguidade a moral requereu, para poder instaurar-se, um controle das
apetições pela razão. Portanto, enquanto o homem for um ente racional finito, ele
jamais será santo; na melhor das hipóteses, empenhar-se-á pela virtude, que a Crítica
da razão prática definiu como “a disposição moral em luta”. Quer dizer, o vir bonus
de Kant é o homem em luta contra a sua propensão de transformar o amor de si no
princípio objetivo da ação. Devido a consciência da finitude humana, a ética kantia-
na é uma ética do dever, que como tal implica uma autocoerção da razão, mas que
torna também dever e liberdade internamente compatíveis. (ROHDEN, 2003, p. XV).

Considerando a constituição dual do ser humano, sensível e racional, a lei moral


em nós encontra-se sujeita a certos móbiles (diverso do motivo da ação) que podem
não coincidir com a lei prática, por isso, a determinação segundo as leis práticas à von-
tade humana caracteriza-se enquanto obrigação (Nötigung) ou dever (Sollen), que podem
ser entendidas como uma coerção interior ou consciência1 – “A lei, considerada em
1  Para melhor compreender o conceito de dever em Kant, sugerimos: WALKER, R. Kant: Kant e a lei moral. São Paulo: UNESP,

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34 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

nós, se chama consciência. A consciência é de fato a referência das nossas ações a essa
lei”. (KANT, 1999, p. 99).

Cabe observar que a moralidade em Kant é uma moral do dever e ao mesmo


tempo de liberdade, a moral kantiana apresenta-se, sim, sob a forte característica do
dever, porém não há entre a necessitação constante da ação por dever e a liberdade
humana qualquer espécie de contradição: agimos por dever e ao mesmo tempo com li-
berdade. A consciência do dever revela, simultaneamente, a consciência da liberdade,
ao não nos deixarmos mover por ordenações externas ou pelas inclinações enquanto
razão da ação, ainda que seja uma tarefa inicialmente árdua, resulta na consciência da
liberdade. Segundo Kant:
Deste modo, o aprendiz é, contudo, mantido atento à consciência da sua liberdade.
E, ainda que essa renúncia provoque uma sensação inicial de dor, todavia, pelo fato
de que priva aquele aprendiz da coerção até de carências verdadeiras, ao mesmo
tempo anuncia-lhe uma libertação do variado descontentamento em que todas essas
carências o enredam e o ânimo é tornado receptivo à sensação de contentamento a
partir de outras fontes [...] uma faculdade interna ao homem, que ele não conhecia
perfeitamente antes, a liberdade interior de desembaraçar-se de tal modo da impe-
tuosa impertinência das inclinações, que absolutamente nenhuma, mesmo a mais
benquista, tenha influência sobre a resolução para a qual devemos servir-nos agora
da nossa razão. (KANT, 2003, p. 565-67).

A posição de Kant é que, mediante a consciência do dever, bem como de sua


liberdade, ou seja, consciência da independência das inclinações, apetites, paixões, im-
pulsos, de todo e qualquer dado externo enquanto determinante, o ser humano não
irá se abater diante das dificuldades empíricas. Com Kant, nos deparamos com uma
filosofia moral e ética que envolve o dever, mas também diz respeito à condição de um
ser humano capaz de liberdade. A capacidade que o ser humano, ser sensível e racio-
nal, possui de agir segundo princípios, Kant chama de liberdade em sentido prático.

A liberdade, conforme definida por Kant (1980 p. 149), é a propriedade da von-


tade como causalidade dos seres racionais, independente de causas “estranhas” que
a determinem. Nesse sentido, para ser livre, segundo a concepção kantiana, é neces-
sário que o agente não se encontre determinado pelas leis externas, por exemplo, da
natureza ou a qualquer compulsão das inclinações sensíveis. A partir dessa definição,
vale dizer, a liberdade sendo a propriedade da vontade como causalidade dos seres
racionais, independente de causas “estranhas” determinantes, estamos diante do con-
ceito negativo de liberdade, de acordo com essa definição, a vontade não está sujeita a
causalidades externas, alheias ou sensíveis.

No entanto, desta mesma definição decorre, também, o conceito positivo de liber-


dade, que, segundo Kant, é mais rico e fecundo, pelo qual o sujeito da ação age apenas
segundo leis que o próprio indivíduo oferece a si. O conceito positivo de liberdade,
1999. Andrade, R. C. L; Carvalho, A. B. de. O dever moral e o valor das ações humanas segundo Kant. Revista Kínesis (Marília), v.
IV, 2012, ANDRADE, R. C. L. A moral kantiana do Dever (Sollen). Revista Problemata, v. v.5, 2014.

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PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
35

embora não tenhamos determinações ou motivos externos, alheios ou sensíveis, a von-


tade não estará por isso desprovida de princípios ou leis, antes, será uma vontade em
acordo com a determinação de uma lei prática necessária e universal. Na explicação
de Kant:
[...] se bem que não seja uma propriedade da vontade segundo leis naturais, não é
por isso desprovida de lei, mas tem antes de ser uma causalidade segundo leis imu-
táveis, ainda que de uma espécie particular; pois de outro modo uma vontade livre
seria um absurdo. (KANT, 1980, p. 149).

Ser livre (e moral), segundo o filósofo, significa, portanto, ser capaz de subme-
ter-se a uma lei prescrita pelo dever-ser, de submeter-se às leis práticas e assim ser
independente (livre) dos desejos particulares, das leis naturais e de todo e qualquer
fundamento alheio enquanto a razão de determinação da nossa vontade. Os desejos
meramente particulares, bem como toda a determinação externa, são, em sua totalida-
de, condicionados, “ignóbeis e perniciosos” (KANT, 2003, p. 567), podem ora mover e
ora não, ora levar ao bem e ora levar ao mal. Nesse sentido, pela capacidade da prática
da razão humana, o ser humano pode ser, concomitantemente, moral, autônomo e
livre, por ser capaz de se dar e por querer seguir a lei prática universal, uma vontade
livre e a vontade submetida a essa lei são apenas uma coisa só. Pode parecer surgir
aqui uma espécie de círculo vicioso, é comum pressupor não haver liberdade nenhu-
ma nessa conduta, já que o ser humano somente será livre ao obedecer a uma lei. O
círculo parece se estabelecer pois estamos livres das determinações naturais, livre da
ordem das inclinações sensíveis, mas nos encontramos, ao mesmo tempo, submetidos
às leis morais.

Kant fala sobre essa possível circularidade em que se encontra a natureza huma-
na na terceira sessão da Fundamentação, “Mostra-se aqui – temos que confessá-lo fran-
camente – uma espécie de círculo vicioso [...]” (KANT, 1980, p. 152). Nos enxergamos
livres ao agir e, no entanto, também “submetidos” a determinadas leis. Estamos livres
na ordem das causas naturais, das paixões e inclinações, para nos colocarmos subme-
tidos às leis práticas e, por estarmos submetidos a estas leis, podemos, desse modo,
atribuir liberdade à nossa vontade, ou seja, considerarmos moral e livre. Se somente ao
nos submetermos às leis práticas podemos atribuir liberdade à nossa vontade, mister
se faz compatibilizar o dever e a liberdade humana, concebendo a implicação recípro-
ca entre as leis morais e a liberdade da natureza humana. É exatamente o que faz Kant,
a ação por dever, que confere o valor moral à conduta humana, é apresentada enquan-
to uma ação mediante a consciência de uma lei da liberdade, o que nos permitirá um
acesso mais fácil ao dever-ser a partir da “consciência de nossa liberdade”. (KANT,
2003, p. 567)2.

2  Como Kant concebe a compatibilidade entre dever e liberdade e livra o sujeito agente do suposto círculo, conferir em: ALMEIDA,
G. A. Moralidade e liberdade segundo Kant. Revista Analytica, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, 1997.

Segunda Seção
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36 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

Retomando o princípio prático kantiano e para compreender a posição do filó-


sofo acerca desse princípio, podemos nos inspirar no exemplo do comerciante ofereci-
do por Kant na Fundamentação. Consideremos dois comerciantes que praticam preços
justos. Um comerciante age por princípio – afinal se deve praticar preços justos – e o
outro age movido pelo propósito particular de não perder os seus fregueses. A ação
do comerciante “interesseiro” e daquele que age por princípio é a mesma, vale dizer:
praticar preços justos. No entanto, o comerciante que age por princípio pode, também,
desejar não perder os seus clientes, porém, a sua ação é sustentada e determinada por
outra razão, a sua ação é movida por um princípio que não se reduz simplesmente ao
propósito ou interesse de não perder os seus clientes.

Aqui está o sentido prático (moral) de abstrair a inclinação e o seu objeto de dese-
jo sensível, mesmo que haja o interesse no objeto, ele não será o que determina e move
a vontade nos fazendo agir pois, se o que nos conduz é a inclinação em relação ao obje-
to desejado ‘preservar os meus clientes’, a ação, além de não poder ter o valor próprio,
íntimo e absoluto, poderia revelar, em última instância, somente a intenção egoísta, o
“Querido EU” (KANT, 1980, p. 120), o qual sobressai eliminando o valor e a seguran-
ça de uma ação, mesmo que ela tenha ocorrido em conformidade com o princípio do
dever, no caso exposto acima, praticar preços justos. Quando o querido eu é a razão
da ação, além de excluir o valor prático (moral) da ação, não traz qualquer segurança
de que vamos sempre ser honestos e justos, afinal amanhã podemos não nos inclinar
a isso ou aquilo e, justamente por não ter a inclinação, deixamos de realizar o que, do
ponto de vista da moralidade, deveríamos fazer. Por isso, não é possível, em Kant,
que a inclinação, o desejo, o objeto e o propósito sejam o fundamento determinante da
nossa ação e se apresentem aptos a um princípio prático, vale dizer, moral.

Nesse ponto, é de grande auxílio resgatar a distinção sinalizada por Kant (1980,
p. 124) entre, do ponto de vista moral, o interesse prático e o interesse patológico. No
primeiro caso, o interesse é pela ação, no segundo, pelo objeto da ação enquanto que
ele pode nos ser agradável ou útil.

Consideremos outro exemplo: vou fazer o bem ao meu próximo porque isso me
dá enorme prazer. Nesse caso, fazemos o bem para sentir prazer, assim, fazemos o
que fazemos tendo em vista o efeito esperado, o prazer. Quando o objeto, o efeito que
se espera da ação, é o que nos move, em função de uma inclinação, o móbil (Teibfeder)
pelo qual fazemos o que fazemos é sempre derivado do objeto e ressaltamos, em espe-
cial, a contingência das ações desse tipo, ou seja, por inclinação enquanto o que move a
vontade e determina da ação. Ora, podemos fazer o bem quando quisermos ter prazer,
porém, nada nos obriga a isso, nada exige de nós querer fazer sempre o bem, podemos
ora fazer, ora não, e, se fazemos por inclinação, faremos quando tivermos a inclinação

Renata Cristina Lopes Andrade


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PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
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e não faremos quando (ou se) não tivermos. Conforme exposto, segundo Kant, a base
da ação, se há a preocupação com o valor moral dessa ação, não deve ficar à sorte de
qualquer contingência.

Do ponto de vista da moralidade, embora Kant não negue ou exija a recusa e


exclusão de toda e qualquer inclinação, o filósofo assume a posição de que, enquanto
fundamento da ação moral, não é possível ter nenhuma inclinação. Veja, as escolhas
humanas podem ser afetadas, mas não determinadas por uma inclinação, as inclina-
ções são afirmadas, mas sob a condição de que não causem prejuízos ao princípio prá-
tico, vale reforçar, caso tenhamos a preocupação moral.

Na visão de Kant, a inclinação enquanto determinante da ação se encerra, além


dos problemas já elencados, em heteronomia da vontade, ou seja, a determinação por
algo alheio à vontade, a moral kantiana não é uma moral heterônoma, antes, preza
pela autonomia da vontade, é uma moral autônoma. Para o filósofo, a vontade do ser
humano possui a capacidade de seguir uma lei da ação (lei moral), dada a sua razão
prática, independente de toda tendência, inclinação e desejo sensível enquanto base,
motivo e condição de uma ação.

Kant, em sua filosofia prática pura, apresenta a possibilidade da vontade huma-


na de ser determinada exclusivamente pela razão prática pura, isso representa a possi-
bilidade da vontade humana de não ser movida por móbeis ou interesses meramente
particulares, interesses que, em muitos sentidos, revelaria a intenção egoísta da ação
e a arrogância do ser humano. O ser humano, segundo Kant, dada a sua constituição
racional, além da sensível, e mais, dada a sua racionalidade prática, além da dimensão
teórica da sua razão, por si só, é capaz de determinar e mover a sua vontade, suas esco-
lhas e suas decisões, sua conduta será assim fundamentada em princípios a priori, Kant
(1983, p. 24), chama de a priori não o que independe desta ou daquela experiência, mas
o que é absolutamente independente de toda a experiência.
De facto, visto que as inclinações sensíveis nos induzem a fins (como matéria do
arbítrio) que se podem opor ao dever, a razão legisladora, por seu turno, só pode
defender a sua influência mediante um fim moral contrário que, deve, portanto, ser
dado a priori, independentemente da inclinação. (KANT, 2004, p. 15).

Apontamos que, em Kant, a razão é definida enquanto a faculdade dos princí-


pios – dos princípios teóricos ou especulativos (conhecimento) e dos princípios práti-
cos (morais). (KANT, 2003, p. 427). Nesse sentido, diante de uma razão (prática) que
é capaz de exercer total influência sobre a vontade humana, ou seja, uma razão que
determina, legisla e move a vontade humana por meio de máximas e de princípios,
teremos uma vontade, guiando e resultando em ações, não apenas boa como um meio
para o alcance de uma intenção, inclinação ou desejo particular qualquer, antes, será
uma vontade boa em si mesma, sem utilidades e finalidades apenas particulares e não
Segunda Seção
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sustentada por condições egoístas ou contingentes enquanto fundamento determinan-


te da ação. Desse modo, segundo Kant, a vontade do ser humano é razão prática, isto é,
a capacidade de eleger as suas próprias ações independe de toda e qualquer inclinação
particular como fundamento, condição e determinação. Esta é a vontade que possibi-
lita a moralidade, todo o valor moral das ações humanas, de longe o mais alto e sem
nenhuma comparação. (KANT, 1980, p. 113).

Para Kant, se a intenção de um indivíduo dotado de razão fosse apenas tornar a


sua vontade boa enquanto meio adequado à satisfação de seus interesses particulares,
ele utilizaria, com maior êxito, a sua astúcia para tal propósito, pois tais objetivos po-
dem ser melhor atingidos sob o domínio dos instintos ou dos impulsos. O filósofo traz
um outro e mais profundo desígnio da existência do ser humano, que não é relativo
aos meios para se obter o que desejamos particularmente, ao qual a razão, indepen-
dente de toda determinação somente particular, destina-se.

A existência de uma razão prática pura, a qual, ao determinar imediatamente a


vontade do ser humano, a torna absolutamente boa3, é concebida pela lei moral uni-
versal que essa razão fornece. Noutras palavras, de acordo com o filósofo, a faculdade
prática da nossa razão manifesta-se por meio de uma lei universal – a lei moral – uma
legislação que todo ser racional é capaz de oferecer a si próprio. A fórmula universal
da lei moral, é apresentada no primeiro momento, na Fundamentação da metafísica dos
costumes, como um mandamento da razão, um imperativo que, por sua vez, se ex-
prime pelo verbo dever (Sollen) (KANT, 1980, p. 124), e, posteriormente, como a lei
fundamental da razão prática pura, na Crítica da razão prática. No § 7 da Crítica da razão
prática, Kant apresenta a lei fundamental da razão prática, dizendo: “Age de tal modo
que a máxima de tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de
uma legislação universal”. (KANT, 2003, p. 103). Tal lei exprime uma ação moralmente
válida a todos os seres racionais sem permitir exceções e ordena pensar a máxima da
ação enquanto princípio de uma possível legislação universal. Em Kant, a razão, ao
oferecer as leis práticas, é chamada de razão prática pura, a faculdade humana capaz
de fornecer uma incondicional condição para a ação voluntária. A razão é prática, ou
pode ser prática, no sentido de que ela é uma faculdade legislativa capaz de oferecer
leis ao agir moral.

A capacidade prática da razão pura, que se manifesta mediante a lei moral, é de-
nominada por Kant por ‘fato da razão’, nas palavras do filósofo:
[...] Pode-se denominar a consciência desta lei fundamental um factum da razão [...]
precisa-se observar que ela não é nenhum fato empírico mas o único factum da razão

3  Sobre o conceito de boa vontade em Kant, sugiro: Andrade, R. C. L.; Carvalho, A. B de. A boa vontade e o bom moral na
investigação acerca da moralidade de Immanuel Kant. In: Vinicius Oliveira Seabra Guimarães. (Org.). O Comportamento Humano
em Busca de um Sentido. 1ed.Ponta Grossa/PR: Atena Editora, 2019, v. 1, p. 1-11.

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
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pura, que deste modo se proclama como originariamente legislativa (sic volo, sic je-
beo). (KANT, 2003, p. 107).

É válido notar que, segundo Kant, o fato da razão consiste na consciência da lei
moral e representa o único fato não empírico, mas a priori4.

A objetividade ou universalidade, que torna válida a lei moral, desaparece por


completo quando o seu fundamento é derivado de qualquer determinação empírica,
material e simplesmente privada, vale dizer, uma inclinação – o fazer sustentado por
nossos desejos sensíveis, sustentado, precisamente, pelo objeto que desejamos alcan-
çar. O universal, ou é para todos ou para nenhum, a lei moral universal kantiana ex-
prime que: “eu tenho o direito a certas formas de agir face aos outros sob a condição
do possível acordo ou da não-contradição da minha vontade com a vontade dos po-
tenciais envolvidos numa ação”. (ROHDEN, 1997, 84). Considerando que algo tem de,
necessariamente, mover a vontade humana nos levando à ação, o ponto que se coloca
é a atenção para o fundamento de determinação dessa vontade, consequentemente, de
nossas ações. Do ponto de vista da moralidade em Kant, é imprescindível que distin-
gamos as inclinações que impõem os nossos propósitos particulares como fundamento
de determinação, dos motivos (Bewegungsgrund) da ação, máximas e princípios mo-
rais, válidos para todo ser sem que sejam permitidas exceções.
Na medida em que se tornam ao mesmo tempo fundamentos subjetivos de ações,
isto é, princípios subjetivos, as leis práticas chamam-se máximas. A avaliação da mo-
ralidade segundo a sua pureza e consequências é feita de acordo com ideias, a obser-
vância de suas leis ocorre de acordo com máximas. É necessário que todo o curso de nossa
vida seja subordinado a máximas morais [...]. (KANT, 1983, p. 396, grifo nosso).

Desse modo, uma lei moral, o princípio de uma possível legislação universal da
ação, conforme apresentada por Kant, representa um arquétipo que nos permite ava-
liar as nossas máximas segundo o ponto de vista moral. A moralidade, ou seja, o pró-
prio valor moral da ação, segundo Kant, dependerá do acordo da máxima subjetiva
com a lei moral objetiva/universal, daí a possibilidade de uma máxima da ação que é
sempre subjetiva, ser, também, moral e objetiva. O que fica claro quando não perde-
mos de vistas que o agente racional pode adotar as suas máximas à luz de imperativos
ou princípios práticos universais. (ALLISON, 1990, p. 86).

Um agente pode incluir enquanto motivos de adoção de uma máxima um interes-


se empírico, um interesse baseado na inclinação, no caso da adoção de máximas com
base na inclinação (o estado motivacional do agente), essa máxima será válida somente
para aquele sujeito agente. Porém, Kant oferece muitas observações mostrando que
nem todas as máximas são dessa natureza, a saber, subjetivas e materiais, e que o ser
racional e sensível, como é o caso da natureza humana, pode, também, agir por querer
com base em um princípio formal pzuro, de acordo com o princípio prático universal5.
4  Em favor dessa posição Cf. ALMEIDA, G. de. Crítica, dedução e facto da razão. In. Revista Analítica, 4/1, 1999.
5  A favor dessa interpretação: ALLISON, H. E. Kant’s theory of freedom. New York: Cambridge University Press, 1990. BECK, L.

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É o que diz Kant, por exemplo, na Crítica da razão pura: “Na medida em que se tornam
ao mesmo tempo fundamentos subjetivos de ações, isto é, princípios subjetivos, as leis
práticas chamam-se máximas”. (KANT, 1983, p. 396).

Se a subjetividade, aquilo que é válido para um sujeito, é o que caracteriza uma


máxima, a objetividade, vale dizer, o alcance universal, para todos sem exceção, é o
que caracteriza a lei. Não importa o conteúdo da lei: leis da mecânica, leis da química
ou leis morais. Todas as leis têm em comum a sua forma, ou seja, a sua universalidade.

Tendo em vista que a lei moral universal é uma lei racional, oferecida pela ra-
zão prática pura6, a sua origem e, principalmente, a sua adoção não podem vir de
fundamentos empíricos, por outro lado, os seres humanos enquanto seres finitos são
também determinados, com frequência, por regras sensíveis cujo fundamento é em-
pírico. Kant pretendeu então mostrar que, ainda que a natureza humana esteja sujeita
a determinações empíricas – máximas gerais, inclinações, desejos sensíveis – pode,
ainda assim, agir segundo a sua razão prática (segundo o princípio prático), e, por con-
sequência, moralmente. O ser humano enquanto um ser racional e sensível, deverá,
caso tenha a preocupação com o conteúdo moral de suas ações, adotar somente aque-
las máximas que se quer e que todo ser racional também possa querer e deva seguir.
Segundo Bittner (2003), uma máxima da ação, e somente a máxima, pode se submeter
ao critério moral direto da universalidade possível, e, desse modo, o ser humano sa-
berá exatamente o que fazer, isto é, o que deve ser feito do ponto de vista moral. Essa
legislação própria implica em autonomia, pois o ser humano não dependerá de nada
externo para lhe oferecer a lei, para determiná-lo ou para dizer o que deve ser feito. Eis
a capacidade da razão de ser prática, que implica na capacidade de autonomia, auto-
determinação e autolegislação, a independente de qualquer outro ou exterioridade na
fundamentação da nossa ação7.

Nesse ponto, compreendemos que, mesmo que tenhamos inclinações e interesses


genuinamente particulares, na vontade movida pela razão prática, esse fim não será
necessariamente a razão pela qual fazemos aquilo que fazemos. Então, o caminho pos-
to por Kant em relação à moralidade é: razão prática (distinta da inclinação) – máximas
morais (distinto dos propósitos) – motivo/Bewegungsgrund ou princípio prático do
querer (distinto do móbil/Teibfeder ou faculdade do desejar) – dever e lei moral (dis-
tinto do desejo sensível ou fins particulares).

Com o presente caminho há, ademais, a concepção kantiana de Caráter8, o qual o


ser humano cria para si próprio como um ser que é capaz de se aperfeiçoar mediante
W. A commentary on Kant’s Critique of Practical Reason. Chicago: University of Chicago Press, 1984.
6  Kant chama de puro o que nada se mescla com dados empíricos. Crítica razão pura – Introdução.
7  A ideia de autodeterminação e de autolegislação é, também, fortemente apresentada nos parágrafos iniciais do texto Resposta à
pergunta: o que é o esclarecimento?
8  Sobre o Caráter em Kant, sugiro: WOOD, A. Practical anthropology. In: Akten des IX Internationalen Kant-Kongresses. Berlin:

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
41

os fins que ele se dá e assume. Esse aperfeiçoamento é possível, um dos modos, pela
educação e a formação moral do educando9.

Veja, o ser humano é capaz de toda sorte de fins, os fins da ação assumidos ou
queridos, noutras palavras, podemos apresentar uma destreza no uso dos meios para
atingir toda espécie de fins queridos e assumidos, porém, para que possamos apresen-
tar um caráter, no sentido de criar ou ter um caráter, convém que consigamos a dis-
posição de querer, escolher e assumir apenas os bons fins, segundo Kant, os bons fins
são “aqueles fins aprovados necessariamente por todos e que podem ser, ao mesmo
tempo, os fins de cada um”. (KANT, 1999, p. 26). Logo, é um grande cuidado o olhar
atento para o valor das coisas que podemos eleger como os nossos fins pois, mediante
a escolha do que elegemos como os nossos fins, ou seja, o que desejamos (fins subjeti-
vos) ou queremos (fins objetivos), formamos e apresentamos o nosso caráter. A esco-
lha dos nossos fins, de acordo com Kant, pode indicar se temos ou não um caráter, e é
justamente da possibilidade do caráter da espécie humana, que podemos nos definir
enquanto Pessoa.

Do ponto de vista prático (moral) em Kant, não basta que sejamos capazes de es-
colher, ter ou realizar todo e qualquer fim, o que revelaria a nossa destreza, sagacidade
ou esperteza, é preciso que sejamos capazes de querer e escolher apenas os bons fins,
os quais também são chamados por Kant, em sua filosofia prática pura, de fins morais,
e, em sua filosofia prática empírica, de fins que são ao mesmo tempo deveres, respec-
tivamente fins queridos e realizados por dever moral e por dever de virtude10. Não há
nisso qualquer contradição, pois ao assumir um fim, mesmo sendo um fim aprovado
necessariamente por todos e que pode ser, ao mesmo tempo, o fim de cada um, faze-
mos desse fim o nosso fim. Desse modo, esse fim será um fim subjetivo e objetivo, isto
é, válido para um sujeito da ação e, ao mesmo tempo, para todos sem exceção.

Nossa destreza, sagacidade ou talentos geralmente são ditos bons e podem ser
mesmo úteis aos seres humanos, mas apenas possuem, segundo Kant (2006, p. 188)
um preço e não um valor, por exemplo: “[...] o talento tem um preço de mercado, pois
o soberano ou senhor local pode precisar de um homem assim de várias maneiras; – o
temperamento tem um preço afetivo, e a gente pode se dar bem com ele, que é um
companheiro agradável [...]”. (KANT, 2006, P. 188). Mas, somente o caráter pode apre-
sentar um valor próprio que está acima de qualquer preço, aqui está a diferença entre
preço e caráter, concebendo a distinção entre o valor de mercado, ou, conforme aponta
Kant na Fundamentação, o preço venal, e o valor moral. (KANT, 1980, p. 140). O valor

W. de Gruyter, tomo IV, 2001. ANDRADE, R. C. L. O caráter e o valor do caráter na antropologia kantiana. Revista Sofia, v.3, 2014.
9  Veremos alguns importantes elementos da educação e da formação moral, logo mais, em “2.2. A educação e princípios práticos”.
10  Lembrando as obras da Filosofia Prática Pura: Fundamentação da metafísica dos costumes e Crítica da razão prática; obras da
Filosofia Prática Empírica: A religião nos limites da simples razão, Metafísica dos costumes – Doutrina do Direito e Doutrina da Virtude,
Antropologia de um ponto de vista pragmático, bem como em suas preleções sobre Geografia e Educação.

Segunda Seção
INCLINAÇÕES, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
42 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

moral não está na vantagem ou na utilidade que a ação pode criar pois, se assim fosse,
seria somente um conteúdo corruptível, equivalente ou venal. O valor moral ou do
caráter centra-se na própria moralidade, ou seja, na preocupação moral que possamos
ter com o nosso agir e ação. Nenhum outro interesse estimula ou constrange esse agir.

Há, segundo Kant, a necessidade, do ponto de vista moral, de estabelecermos e


nos deixar guiar pelos bons fins, porque para o caso do ser humano, todos os tipos de
apetites, paixões, inclinações, impulsos, dentre outros, também nos colocam fins que
podem determinar a nossa vontade nos levando à ação, e podem ignorar por completo
a noção do todo, do universal, do caráter, em suma, dos bons fins, lembrando: “fins
aprovados necessariamente por todos e que podem ser, ao mesmo tempo, os fins de
cada um”. (KANT, 1999, p. 26).

Tratando-se das diferenças entre as inclinações e a moral (razão prática), Kant


aponta que estamos diante de duas espécies de bem, o bem físico ou sensível e o bem
moral, os quais não devem ser confundidos pois, caso confundidos ou misturados, se
anulam e não contribuem, se há a preocupação moral, para o verdadeiro fim da ação.
A primeira espécie de bem pode ser caracterizada pelo bem-estar, a segunda espécie,
pela virtude. Se há a preocupação com o valor das nossas ações, em benefício do valor
moral da ação, alerta Kant (2006, p. 172), a inclinação para o primeiro deve ser limitada
pela lei do segundo, enxergamos esse limite enquanto o respeito, o reconhecimento e a
adoção do princípio prático da ação. Novamente, não localizamos na filosofia prática,
seja pura ou empírica, a afirmação de Kant sobre a necessidade de erradicar ou abolir
com a inclinações e seus desejos sensíveis. Exemplificando.

A sociabilidade (Umgänglichkeit) é uma virtude, no entanto, a inclinação ao rela-


cionamento frequentemente se converte em paixão. Nas palavras do filósofo: “[...] se a
fruição das relações sociais se torna presunçosa pela obstinação, essa falsa sociabilida-
de cessa de ser virtude” (KANT, 2006, p. 174) e pode prejudicar a humanidade. Veja,
Kant não nega o bem físico ou sensível, ao contrário:
O purismo do cínico [...] sem bem-estar social, são formas desfiguradas de virtude e
não convidam para esta [...] abandonados pelas Graças, não podem aspirar à huma-
nidade. (KANT, 2006, p. 178).

Porém, quando o bem-estar toma o lugar da virtude, ou seja, o bem-físico toma o


lugar do bem moral determinando as escolhas e as ações, tendo em vista o valor moral
da ação, que é o maior e sem qualquer comparação, torna-se algo que pode prejudicar
o ser humano e a moralidade. Para o caso da sociabilidade, Kant nos oferece alguns
exemplos pragmáticos que auxiliam na compreensão da sociabilidade enquanto uma
virtude, bem como o bem físico assumindo o lugar do bem moral enquanto condição
das ações, vejamos.

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
43

A música, a dança, o jogo, tornam uma reunião social silenciosa, em particular


na situação do jogo, as palavras necessárias não são capazes de estabelecer uma con-
versação que requer comunicação recíproca de pensamentos, isto é, a sociabilidade. O
jogo, de modo geral, somente é capaz de preencher o vazio da conversação após, por
exemplo, uma refeição, desse modo, não remete à sociabilidade. De acordo com Kant:
O jogo [...] é em geral a coisa que mais importa, como meio de aquisição em que
afecções são intensamente agitadas, em que se estabelece uma certa convenção de
interesses pessoais para se saquearem uns aos outros com a maior cortesia, e, en-
quanto dura o jogo, um completo egoísmo é erigido em princípio que ninguém re-
nega. (KANT, 2006. p. 175).

Eis um exemplo que revela a tentativa de unir, confundir ou misturar o bem-es-


tar social com a virtude da sociabilidade, o que implica na impossibilidade de se espe-
rar o verdadeiro fim, o fim moral da ação. De modo decisivo, de acordo com Kant, o
bem-estar social, o qual pode gerar certo bem-estar fisco, não remete necessariamente
à sociabilidade. A sociabilidade tem de se propor não tanto à satisfação do corpo, sa-
tisfação que cada indivíduo pode obter isoladamente, mas antes ao contentamento so-
cial, para o qual o bem-estar social tem de parecer ser apenas o veículo, não o motivo.

Em outro exemplo, diz Kant: “O homem que, ao se alimentar, consome a si mes-


mo pensando durante a refeição solitária, perde pouco a pouco a alegria que adquire
quando um companheiro de mesa lhe oferece”. (KANT, 2006, p. 177). Aí está outro
dado nocivo à sociabilidade, vale dizer, à virtude da sociabilidade. A posição de Kant
é que por mais significantes que possam parecer as refinadas leis sociais, se compara-
das com as leis práticas, tratam-se somente de um “traje que veste vantajosamente a
virtude”.

Ainda que, do ponto de vista da moralidade, não exista qualquer afirmação de


Kant sobre a necessidade de aniquilar e erradicar as inclinações, elas, de fato, não se
apresentam na filosofia moral e ética de Kant como um fundamento moral. De modo
geral, a inclinação – aquilo que nos inclina a tal ou tal coisa por esse ou aquele móbil
ou sentimento – não é segura e suficiente do ponto de vista da fundamentação moral.
As sensações podem ser uma boa escola para o ser humano, mas não são suficientes
por si só para aperfeiçoar os nossos conhecimentos e consciência e torná-los conheci-
mentos e consciência prática e efetiva11. Acerca da nossa consciência prática (moral),
lembramos: “A lei, considerada em nós, se chama consciência. A consciência é de fato
a referência das nossas ações a essa lei”. (KANT, 1999, p. 99).

Devemos compreender dois pontos distintos: a) temos uma inclinação, que for-
nece, em função de um desejo, um propósito e nossa ação é derivada desse desejo e, b)

11  Cf. Excertos dos cursos de Antropologia de Immanuel Kant, traduzido por Márcio Suzuki dos cursos de Antropologia de
Immanuel Kant, publicados no tomo 25 dos Kants Gesammelte Schriften. Berlim: de Gruyter, 1997. Em http://www.anpof.org.br/
spip.php?article107.

Segunda Seção
INCLINAÇÕES, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
44 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

temos uma inclinação, porém a razão da nossa ação não é simplesmente derivada da
inclinação, ainda que tenhamos a inclinação pelo objeto desejado sensivelmente. Alli-
son (1990, p. 111), avalia que não distinguir essas duas alternativas ligadas ao objeto
da ação é uma falha frequente dos comentadores e críticos da filosofia moral de Kant,
que apresentam o pensamento moral kantiano reivindicando, ou pelo menos inferin-
do, que uma ação não pode ter valor moral se, em suas realizações, o agente possui o
desejo sensível por um determinado objeto, um desejo ou interesse por um objeto “A”,
também chamado por Allison de inclinação12.

Avaliando a questão, inclinação e valor moral, junto de Allison podemos afirmar


que o correto é que Kant apenas tenta descrever situações nas quais o valor moral
das ações se torna mais evidente, por exemplo, no caso do filantropo insensível posto
por Kant na primeira seção da Fundamentação da metafísica dos costumes. No entanto,
Kant, apesar de em muitas passagens dar margens à interpretação da necessidade da
exclusão das inclinações para o caso da ação com valor moral, em nenhuma passagem
de seu pensamento moral, puro ou empírico, reivindica que as ações humanas unica-
mente podem possuir valor moral na abstinência total das inclinações. Kant não nega
os desejos, as paixões, as afecções, porém eles não podem ser, por sua relatividade,
contingência, insegurança, vulnerabilidade (...), a causa, a origem, o motivo/Bewegun-
gsgrund da ação, caso exista a preocupação com o valor moral dessa ação. Em resumo:
para Kant o valor moral está no princípio e não se reduz ao propósito de uma ação, não
se reduz ao objeto de nossas inclinações.

O que significa dizer que, tendo em vista que a vontade humana tem de neces-
sariamente ser movida de algum modo, isto é, algo tem de colocá-la em movimento,
não será o objeto ou a inclinação, caso exista a preocupação moral, que deverá mover a
nossa vontade, antes o princípio prático moral. O ponto decisivo do “esclarecimento”
moral, na concepção do filósofo, apresenta-se justamente na consciência da faculdade
prática da razão, isto é, a capacidade humana de decidir sobre as suas ações indepen-
dentemente de fundamentos determinantes sensíveis, independentemente da condi-
ção de determinação da vontade sustentada pelos impulsos, livre das carências, das
paixões, da sensação de agradável ou desagradável, de toda e qualquer exterioridade
social ou religiosa. Será esse o verdadeiro e íntimo significado de ser esclarecido? O
sentido prático do Aufklärung?

Mas, o ser humano, um ser racional e sensível, por vezes está sob certas exaspe-
rações dos desejos, sob fundamentos meramente exteriores e empíricos, apresenta-se
inicialmente em um estado bruto, instintivo, impulsivo ou de pura inclinação. Exata-
mente por isso, para o ser humano, é preciso que esse estado inicial seja transformado,

12  “Ter o objeto”, nesse sentido especificado, é conclusão do que significa “ter uma inclinação”.

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
45

o que significa em Kant a formação e o desenvolvimento da sua Humanidade. Para


essa formação e desenvolvimento, o filósofo nos oferece, como um dos caminhos, a
educação. A educação para formar e desenvolver, alcançar e efetivar, ademais, a fa-
culdade ou capacidade prática da razão humana, o que possibilitará alcançar e efe-
tivar a humanidade que é intrínseca a todo o ser humano. A Humanidade em Kant
diz respeito, em resumo: às habilidades, aptidões, qualidades, à civilidade, prudência,
moralidade, virtude, autonomia, emancipação, liberdade, ética, ao caráter, bons fins,
princípios práticos. Segundo Kant:
Há muitos germes na humanidade e toca a nós desenvolver em proporção adequada
as disposições naturais e desenvolver a humanidade a partir dos seus germes e fazer
com que o homem atinja a sua destinação. (KANT, 1999, p. 18).

Para a formação e o desenvolvimento da sua humanidade, o ser humano deve


ser educado. Ora, se tudo o que realmente pertence à humanidade, se a sua formação
e desenvolvimento, dependem, também, de uma boa educação, é preciso, então, pen-
sar com rigor e atenção sobre a educação, é exatamente o que faz Kant em seu projeto
de educação, em sua teoria ou filosofia da educação pois, de outro modo, cairíamos
sempre em erros e lacunas e a educação “não se tornará jamais um esforço coerente”.
(KANT, 1999, p. 21). Para Kant,
O projeto de uma teoria da educação é um ideal muito nobre e não faz mal que não
possamos realizá-lo. Não podemos considerar uma Idéia como quimérica e como
um belo sonho só porque se interpõem obstáculos à sua realização. Uma Idéia não
é outra coisa senão o conceito de uma perfeição que ainda não se encontra na expe-
riência [...] Se, por exemplo, todo mundo mentisse, o dizer a verdade seria por isso
mesmo uma quimera? (KANT, 1999, p. 17).

Tal é a proposta de Kant ao tratar da educação, oferecer um projeto sistemático


de educação, uma ideia ou conceito que possibilite desenvolver no ser humano o que
de fato convém ao seu ser, para que o ser humano possa alcançar a sua destinação, isto
é, a sua Humanidade. Em Kant, “o estabelecimento de um projeto educativo deve ser
executado de modo cosmopolita” (KANT, 1999, p. 23), isso significa que o alcance da
humanidade do ser humano via educação deve ser assegurado para todos sem permi-
tir qualquer exceção. Mesmo que existam obstáculos na realização de um projeto edu-
cacional, Kant (1999, p. 18) sustenta que não é em vão oferecer um ideal de educação
para que o ser humano o persiga em seu aperfeiçoamento, para a sua futura felicidade
e o alcance da sua plenitude, “a educação, portanto, é o maior e mais árduo problema
que pode ser posto aos homens”. (KANT, 1999. p. 20).

2.2 Educação e princípios práticos

O segundo momento da nossa análise e exposição de conceitos ao tratar das in-


clinações, moralidade e educação centra-se na questão: de que modo a educação, con-
forme a concepção de Kant, atua para que o ser humano possa agir segundo e por
princípios práticos?
Segunda Seção
INCLINAÇÕES, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
46 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

Inicialmente, afirmamos que há no pensamento de Kant consequentes preocupa-


ções de ordens pedagógicas e educacionais, preocupações que contemplamos, parti-
cularmente, no quadro de sua filosofia prática. Kant foi um filósofo que se preocupou,
refletiu, analisou e escreveu a respeito da educação, de modo fragmentado em alguns
momentos de suas obras, em especial de suas obras de filosofia prática, e de modo
sistematizado nas preleções Sobre a Pedagogia (Über Pädagogik). A educação ocupa um
lugar singular na filosofia prática kantiana por empenhar-se para a efetivação do prin-
cípio supremo moral e a possibilidade da realização de ações éticas no mundo, isso
significa em Kant a preocupação com a formação plena do ser humano via educação.

A plena formação do ser humano, ou o alcance da sua humanidade, em sua di-


mensão moral (civilidade, prudência, moralidade, ética, liberdade, caráter, bons fins,
princípios práticos), traz a concepção de um ser humano moral e livre que é capaz de
querer seguir, agir e viver segundo princípios práticos (morais). Noutras palavras, a
plena formação humana, de acordo com o filósofo, envolve, também, a formação e
o desenvolvimento da moralidade, o que implica em ações com valor moral, isto é,
ações éticas – ações sob princípios morais. Podemos dizer que a educação kantiana, tal
como é o caso da primeira Crítica no que diz respeito ao conhecimento, oferece uma
investigação acerca das condições de possibilidade, ou seja, em sua filosofia da edu-
cação, verificamos Kant se comprometendo com a investigação acerca das condições
de possibilidade de uma educação que forme o ser humano de modo integral – o ser
humano que conhece e que age no mundo sob valores e princípios práticos. Podemos
vislumbrar como uma das questões da educação kantiana: o que é necessário à educa-
ção para que ela alcance a Humanidade dos seres humanos?

Nossas exposições e análises acerca da filosofia da educação de Kant ocorrerão,


neste momento, em particular com as preleções Sobre a Pedagogia (1803), evidentemen-
te sem perder o vínculo, visto não ser possível, com o todo do pensamento de Kant
– teórico, prático e estético. Na obra Sobre a pedagogia, Kant expõe o que deve ser a
educação, sob duas perspectivas, a saber, a Educação Física e a Educação Prática. Essas
perspectivas apresentam quatro momentos: cuidado, disciplina, instrução e direciona-
mento. A educação física com o cuidado diz respeito à atenção corpórea, a educação
prática com a disciplina, representa a educação das inclinações, posteriormente, com
uma variedade de processos mais específicos chamados de, por exemplo, instrução,
ensino, direcionamento ou orientação são os momentos propriamente ditos de forma-
ção e de desenvolvimento do ser humano em direção à sua humanidade. A educação,
segundo a concepção do filósofo, “[...] abrange os cuidados e a formação”. (KANT,
1999, p. 29). Assim, a partir de suas perspectivas e de seus respectivos momentos, a
educação, segundo Kant, poderá desenvolver, pouco a pouco, a humanidade própria
de todo ser humano.
Renata Cristina Lopes Andrade
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
47

Vejamos os desdobramentos e justificativas de Kant sobre o que deve ser a edu-


cação para a formação da humanidade, segundo Kant, a boa educação, “ver de modo
claro o quê propriamente pertence a uma boa educação”. (KANT, 1999, p. 16). Essa
preocupação é importante, afinal a educação, conforme pensada por Kant, representa
a oportunidade de desenvolvimento do ser humano em relação ao que de fato per-
tence à sua humanidade, na educação, segundo o filósofo, está o segredo da perfeição
da natureza humana, o que “abre a perspectiva para uma futura felicidade da espécie
humana”. (KANT, 1999, p. 17). Para isso, é preciso que o ser humano seja educado, no
sentido de formação e de desenvolvimento, “como poderíamos tornar os homens feli-
zes, se não os tornamos morais e sábios?”. (KANT, 1999, p. 28). Eis a concepção de um
projeto de educação, da concepção de uma filosofia da educação que é capaz, a partir
do desenvolvimento da nossa razão teórica e, fundamentalmente, da nossa razão prá-
tica, de nos chamar a atenção para a imprescindibilidade do agir moral, de combater
todo o egoísmo humano (o querido eu), de afastar as morais narcisistas ou a ética do
tipo estética que se resumem em boas e bonitas ações verificáveis externamente, mas
nada nos dizem sobre as suas razões ou motivos.
É muito bonito, por amor aos homens e por participante da benevolência, fazer o
bem a eles por amor à ordem de ser justo, mas isso não constitui ainda a autêntica
máxima moral de nossa conduta, adequada à nossa posição de homens entre entes
racionais, quando, por assim dizer como voluntários, arrogamo-nos com soberba
fatuidade a não nos importar com as representações do dever; e, como que indepen-
dentes de mandamento, querer fazer meramente por prazer próprio aquilo para o
que nenhum mandamento ser-nos-á necessário. (ROHDEN, 2003, p. XXII).

O querer fazer somente porque é bonito aos olhos alheios, resulta, de um lado, no
abandono do âmago do princípio prático, e, de outro, na admissão de motivos concor-
rentes e diversos do princípio, tornando-o heterônomo. Mesmo concebendo a dificul-
dade do acesso ou avaliação dos móbeis (Teibfeder) e dos motivos (Bewegungsgrund) da
ação, o valor moral kantiano não está em uma ética estética, pois “[...] quando se fala
de valor moral, não é das ações visíveis que se trata, mas dos seus princípios íntimos
que não se vêem” (KANT, 1980, p. 119), e a educação, pensada por Kant, é fundamen-
tal, também, nessa formação e desenvolvimento íntimo, de valores e de princípios
práticos, em razões, porquê e motivos íntimos, necessários e universais de uma ação.

Vamos, então, à educação kantiana, suas perspectivas e momentos. Ainda que


em linhas gerais e com o enfoque na Educação Prática.

A educação física, também chamada por Kant (1999, pp. 41-42) de primeira edu-
cação, tem em vista especificamente os cuidados com o infante, o que significa as pre-
cauções, a conservação, o trato, para que, por exemplo, o infante não faça um uso
nocivo e prejudicial de suas próprias forças, causando dano a si próprio.
Os animais, logo que começam a sentir alguma força, usam-na com regularidade,
isto é, de tal maneira que não se prejudicam a si mesmos. [...] A maior parte dos

Segunda Seção
INCLINAÇÕES, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
48 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

animais requer nutrição, mas não requer cuidados. Por cuidados entendem-se as pre-
cauções que os pais tomam para impedir que as crianças façam uso nocivo de suas
forças. Se, por exemplo, um animal, ao vir ao mundo, gritasse, como fazem os bebês,
tornar-se-iam com certeza preza dos lobos e de outros animais selvagens atraídos
pelos seus gritos. (KANT, 1999, p. 11).

O ponto de partida de Kant, ao elucidar a perspectiva física da educação junto


do cuidado, é a distinção entre o animal irracional e a natureza humana (animal racio-
nal), justificando, ademais, a sua afirmação inaugural nas preleções Sobre a pedagogia,
“o homem é a única criatura que precisa ser educada”. (KANT, 1999, p. 11). Kant ex-
põe que um animal, por seu próprio instinto, é tudo o que pode ser, há uma “razão”
exterior, no sentido de causa ou natureza, que tomou por ele, antecipadamente, todos
os cuidados necessários. Na própria natureza, diz Kant, não nos faltam exemplos da
sagacidade do instinto animal: “É de fato maravilhoso ver, por exemplo, como os fi-
lhotes de andorinha, apenas saídos do ovo e ainda cegos, sabem dispor-se de modo
que seus excrementos caiam fora do ninho”. (KANT, 1999, p.11). Ou: “Se um animal ao
vir ao mundo, gritasse, como fazem os bebês tornar-se-ia com certeza presa dos lobos
e outros animais selvagens atraídos pelos seus gritos” (KANT, 1999, p. 11). Porém, o
mesmo não ocorre com o ser humano. O ser humano não é puro instinto, ele apresenta
em sua constituição uma porção sensível, ou seja, instintiva, impulsiva, de inclinações
e tendências, e uma porção racional, ou seja, é, também, um ser dotado de razão. Por
isso, por não ser puro instinto, precisa formar o projeto da sua conduta, do seu com-
portamento, de suas ações, em suma, de sua vida.

Considerando que as disposições dos seres humanos não se desenvolvem por si


mesmas, que a natureza não depositou no ser humano nenhum instinto para formação
e desenvolvimento do seu ser, mister se faz o auxílio do outro. O outro, segundo Kant,
encontramos na educação. O ser humano, segundo o filósofo (1999. p. 14), precisa da
educação dada a sua racionalidade e a sua destinação à liberdade, no animal irracio-
nal, pelo contrário, a educação não é necessária devido ao seu puro instinto, o animal
irracional é por si só tudo o que ele pode ser. Para o caso do ser humano na infância há,
inicialmente, o predomínio do sensível ao racional, daí decorre o início da educação
pela parte física ou corpórea, como nos explica Dalbosco:
[...] a pedagogia contribui eficazmente para a aproximação da condição humana ao
ideal da humanidade quando, ao se preocupar com a educação infantil, tomar a
criança por aquilo que ela inicialmente é, ou seja, como um ser mais sensível do que
racional. Daí a educação física como o ponto de partida da educação infantil. (DAL-
BOSCO, 2011, p. 109).

Portanto, a educação física, o cuidado, que se apresenta enquanto material ou


corpórea, abrange as necessidades da criança, evitando os danos e prejuízos que ela
pode causar a si mesma. Com o cuidado, a primeira etapa da educação kantiana:

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
49

[...] o adulto possui a árdua tarefa de identificar o que é real e o que é fantasioso
naquilo que é manifestado pela criança e buscar atender as suas necessidades reais
de modo sereno e natural, sem viciá-la em seu caráter. (DALBOSCO, 2011, p. 110).

A educação física (corpórea, sensível e dos sentidos), não representa fim da edu-
cação conforme concebida por Kant, mas diz respeito ao ponto de partida que prepara
a criança para o desenvolvimento e formação da sua humanidade. Trata-se da atenção
com os movimentos, alimentação, temperatura, também a atenção com os sentidos
externos – tato, paladar, audição, visão, olfato – os sentidos pelos quais o ser humano
é afetado de modo corporal, segundo Kant (2006, p. 52), os sentidos puros da sensação
externa, necessários para que a natureza humana possa diferenciar objetos.

Desse modo, a educação física, uma das perspectivas da educação kantiana, ne-
cessária para o desenvolvimento integral do ser humano, se refere ao fortalecimento
do corpo e ao refinamento dos sentidos, “O que é preciso observar na educação física,
portanto, em relação ao corpo, se refere ao uso do movimento voluntário ou dos ór-
gãos dos sentidos”. (KANT, 1999, p 54). No primeiro caso, o movimento voluntário,
é preciso que a criança se movimente e experimente as suas forças por si mesma, de-
senvolvendo a suas habilidades, a sua rapidez e a sua segurança. Cabe aqui o cuida-
do para não permitir que o infante faça um uso prejudicial dos movimentos, forças,
habilidades e segurança desenvolvidas. Sobre a segurança, Kant revela a sua impor-
tância dizendo que um ser humano que teme, por exemplo, uma queda imaginária,
esse medo ordinariamente cresce com a idade. No segundo caso, órgãos dos sentidos,
Kant (1999, p. 56) aponta, como meio para o desenvolvimento dos sentidos, os jogos,
o brinquedo ou a brincadeira infantil. De acordo com o filósofo, os jogos são capazes
de provocar o exercício e desenvolvimento dos sentidos. Por exemplo: a cabra-cega,
para saber como poderia desempenhar-se caso a criança fosse privada de um sentido;
o papagaio, para desenvolver a habilidade, já que para empinar o papagaio depende
de uma certa posição em relação ao vento; lançar objetos à distância ou no alvo, para
exercitar o sentido da visão; o jogo de bola, para exercitar o movimento, já que requer
a corrida benéfica.

A educação física, nesse contexto, o cuidado corporal e com os sentidos, é indis-


pensável para o que se segue, para a segunda parte da educação conforme pensada
por Kant, a Educação Prática. A educação física se refere à natureza física, enquanto
que a educação prática à liberdade, isto é, aos princípios práticos. Primeiramente é
preciso cultivar a natureza (educação física), após, formar as (e em) leis da liberdade
(educação prática).

A educação prática, por sua vez, diz respeito, precisamente, à formação e ao de-
senvolvimento do ser humano em direção da sua humanidade, junto dos momentos

Segunda Seção
INCLINAÇÕES, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
50 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

da disciplina, também chamada de por Kant de parte negativa da educação prática,


e da instrução e direcionamento, a parte positiva dessa perspectiva da educação. A
educação prática é a perspectiva que terá como fim o desenvolvimento do ser huma-
no para que ele possa viver e ser moral e livre, para compreendermos essa posição, é
preciso lembrar que, de acordo com a filosofia prática de Kant, há a compatibilidade
entre moralidade e liberdade, o ser humano, ao elevar a sua razão até os conceitos de
dever e lei moral é, desse modo, livre. Não perdendo o quadro do pensamento prático
kantiano, isso significa que o ser humano poderá querer viver e agir segundo e por
princípios práticos, o que representa o máximo do valor da natureza humana, o valor
intrínseco, absoluto, essencial, de todo ser humano, como explica Kant, a educação
prática oferece ao ser humano um valor que diz respeito à inteira espécie humana
(KANT, 1999, p. 35).

Os momentos de disciplina e de instrução/formação são complementares, e uma


educação prática com o seu início pela disciplina seguida da instrução, se justifica, pois
Uma educação que não disciplina fracassa em arrancar o homem de seu estado ini-
cial de selvageria; uma educação que não instrui apenas adestra e fracassa em ensi-
nar o homem a pensar, tornar-se cidadão e [...] fracassa em tornar a criança em ser
moral. (LA TAILLE, 1996, p. 141).

Comecemos pela disciplina (Disziplin), a parte negativa da educação prática, o se-


gundo momento da educação kantiana, o primeiro da educação prática. Qual a função
e a necessidade da disciplina no projeto filosófico da educação prática de Kant?

Quando falamos da disciplina no âmbito educacional, verificamos um constran-


gimento pois, muitas vezes, a disciplina está ligada ao entendimento do autoritarismo,
da ordem, da imposição ou do domínio, que não se apresentam enquanto sinônimos
de disciplina em Kant, já na Crítica da razão pura (1781), o filósofo traz a disciplina como
algo distinto do mero autoritarismo, diz ele:
Bem sei que na linguagem escolástica se costuma usar os termos disciplinas e ins-
trução como sinônimos. Só que frente a isto há tantos casos em que a primeira ex-
pressão, usada no sentido de regime de ordem, é cuidadosamente distinguida da
segunda, usada no sentido de ensinamento, a própria natureza das coisas também
reclamando a manutenção das únicas expressões convenientes para esta distinção,
que desejo jamais seja permitido empregar a primeira palavra com um outro signifi-
cado senão o negativo. (KANT, 1983, p. 350).

Analisemos, então, o que Kant entende por disciplina e a sua contribuição espe-
cífica no processo de desenvolvimento da Humanidade. A disciplina é posta por Kant
como negativa pois não se trata ainda, mediante a educação, de formar ou desenvolver
algo, mas apenas de abordar o estado bruto do ser humano, abordar a sua condição
instintiva, impulsiva ou de inclinação, sua animalidade ou selvageria, preparando o
ser humano para os momentos de formação e de desenvolvimento, isto é, a parte po-
sitiva da educação prática. Eis “a formação geral da humanidade para além da anima-

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
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lidade da raça humana”. (OLIVEIRA, 2006, p. 74). A passagem ou transição da selva-


geria, animalidade, estado bruto à humanidade, já havia sido apontada por Kant em
algumas obras anteriores à Sobre a pedagogia, como é o caso da obra intitulada Idéia de
uma história universal de um ponto de vista cosmopolita (1784): “[...] um curso regular para
conduzir a nossa espécie aos poucos de um grau inferior de animalidade até o grau
supremo de humanidade [...]” (KANT, 1986, p. 18). Ou ainda, na obra Início conjectural
da história humana (1786):
[...] a partir dessa apresentação da primeira história da humanidade resulta o se-
guinte: a saída do homem da sua primeira morada, representada por meio da razão
como o paraíso, foi a passagem da rudeza de uma criatura meramente animal para a
humanidade, foi a passagem, das andadeiras do instinto para a condução da razão,
em outras palavras, foi a passagem do estado de tutela da natureza para o estado de
liberdade. (KANT, 2010, p. 161)13.

“A disciplina transforma a animalidade em humanidade”. (KANT, 1999, p. 12).


Se, de acordo com Kant, a disciplina é o que transforma a animalidade em humani-
dade, o que possibilita a transição da animalidade à humanidade, quais são as justi-
ficativas apresentadas por Kant para sustentar a necessidade da disciplina? Quais as
razões apontadas por Kant para afirmar a necessidade de transformar a animalidade,
a selvageria ou o estado bruto do ser humano em humanidade?

Kant (1999, p. 13), chama de selvageria, estado bruto, brutalidade, puro instinto
ou animalidade, a independência de toda e qualquer lei, a disciplina, por sua vez,
será o início do processo do querer fazer humano segundo as leis da sua humanidade.
As leis da humanidade, de acordo com o conjunto da filosofia prática de Kant, nada
mais são, senão, as leis morais ou da liberdade, uma legislação que o ser humano, pela
capacidade prática da sua razão, é capaz de oferecer a si mesmo. Nesse sentido, com
a disciplina, há o início do processo educacional para que a criança, quando atingir a
idade juvenil e adulta, seja capaz de dar a si mesma, e seguir por querer, o princípio
supremo da ação, uma legislação própria e independente de toda e qualquer exterio-
ridade – apetitiva, social, religiosa, política – também, para que a criança, posterior-
mente, não se lance aos perigos ou siga, de fato e imediatamente, a cada um de seus
caprichos, instintos, impulsos ou inclinações, antes, possa querer e seguir as leis da sua
própria humanidade, possa agir segundo princípios práticos e, nesse sentido, realize
ações com valor moral no mundo. Nas palavras de Kant: “Disciplinar quer dizer: pro-
curar impedir que a animalidade prejudique o caráter humano [...] Portanto, consiste
em domar a selvageria”. (KANT, 1999, p. 25). Noutra palavras, a disciplina é o início
do processo educacional que possibilitará que a criança, ao atingir a idade juvenil e
adulta, possa manifestar e fazer uso da faculdade prática da sua razão, ou seja, dar-se
os princípios ou leis práticas que guiarão as suas ações. Para tanto, o primeiro passo
toca à disciplina, não à formação.
13  Eis, ademais, a relação de complementariedade da Sobre a pedagogia com as demais obras kantianas ditas autênticas.

Segunda Seção
INCLINAÇÕES, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
52 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

Afetado por tantas inclinações, em muitas situações, o ser humano por si só pode
não apresentar a capacidade imediata de efetivar a sua humanidade, para que isso
ocorra necessariamente, é preciso a educação, nesse sentido, podemos pensar que o
valor das ações humanas, e o próprio alcance da humanidade no/do ser humano,
pressupõe a educação, uma vez que “por natureza o ser humano não é um ser moral
em absoluto”. (KANT, 1999, p. 95).

Entretanto, é preciso a atenção para o fato de que o dizer não (negar) à selvageria,
o transformar a animalidade em humanidade, não significa destruir ou erradicar com
todo e qualquer instinto, não significa ter que abolir ou suprimir com toda e qualquer
inclinações, desejos, paixões, apetites ou sensações, em suma, não significa erradicar
com a porção sensível do ser humano, o que nem seria possível, dada a própria cons-
tituição humana, racional e sensível. Disciplinar, em Kant (1999, p. 13), significa, espe-
cificamente, procurar evitar que a animalidade cause danos à humanidade, significa
evitar que a selvageria, o estado de ausência de toda e qualquer lei, cause prejuízos ao
processo de formação e de desenvolvimento da humanidade. Kant (1999, p. 50) explica
que, no que diz respeito à disciplina, é preciso atentar-se para que no disciplinar não
se trate a criança como escrava, antes, que a faça começar a sentir a sua liberdade que
se manifesta pela faculdade prática de sua razão, conciliando, desse modo, sensibi-
lidade e razão. Do mesmo modo, como desenvolvido na Fundamentação da metafísica
dos costumes e Crítica da razão prática, na Sobre a pedagogia Kant, também, não afirma a
necessidade de qualquer erradicação das inclinações humanas.

Veja, ao tratar do fundamento moral na Fundamentação e na segunda Crítica, te-


mos que a inclinação não é, caso tenhamos a preocupação com o valor moral da ação,
um bom ou seguro fundamento da ação, já na Sobre a Pedagogia, há a indicação de que
a inclinação pode causar, por diversas vezes, danos à própria humanidade, então, há a
necessidade da disciplina, para que o que nos inclina não prejudique a nossa humani-
dade, impedindo, por exemplo, de desenvolver e alcançar essa humanidade.

Em momento algum, Kant afirma que as ações determinadas pelas inclinações


sensíveis são erradas do ponto de vista prático (moral), mas, segundo o filósofo, são
ações praticadas, precisamente, por razões errôneas, o problema centra-se, exclusiva-
mente, no porquê fazemos o que fazemos. Isso implica dizer que, por mais que a ação
por inclinação possa ser correta, pelas razões explicitadas em “2.1 Ação, inclinação
e princípio”, a determinação sensível retira todo o valor moral da ação, além de não
poder assegurar que essa ação vá ocorrer sempre, em todos os casos. Para compreen-
dermos melhor essa posição, consideremos mais um exemplo.

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
53

Suponhamos que eu vá à igreja e o padre me diga: ‘você deve ser boa, ser justa,
honesta e virtuosa, caso contrário, não ganhará o reino dos céus’. Ora, eu quero ganhar
o reino dos céus, então, serei boa, justa, honesta e virtuosa. As minhas ações, derivadas
do meu interesse em ir para o céu, certamente, serão corretas, mas, terá valor? Terá o
valor que, segundo Kant, é de longe o mais alto e sem comparação, o valor moral? O
que determina a minha ação, nesse caso, é o meu fim subjetivo, ou seja, o meu desejo
pelo reino dos céus. Quais os problemas desse tipo de determinação e por que, para
Kant, ela carece de valor?
i) Faço o que faço por causa dos meus interesses particulares e o que prevalece
ou sobressai é o meu Querido Eu;
ii) Amanhã, eu posso deixar de temer a Deus ou não ter mais o interesse no
reino dos céus, desse modo, não havendo mais o temor ou o meu desejo, posso
deixar de ser boa, justa, honesta e virtuosa.

Diferentemente de quando o que nos move é um princípio prático, independente


de toda e qualquer inclinação e particularidade, nos diz sempre e em todos os casos:
devo ser boa, justa, honesta e virtuosa. E disso depende, também, segundo Kant, a nos-
sa Humanidade, própria de todo ser humano e possível ser formada e desenvolvida
pela educação com formação e o desenvolvimento da faculdade prática da razão. Re-
correndo às obras Crítica da razão prática e Lições de ética, observamos que a inclinação
– aquilo que desejamos face às nossas sensações – pode até apresentar uma tendência
ao bem, à benevolência, porém são cegas e servis em relação à inclinação, como explica
Kant (1997) nas Lições de ética: “Temos um instinto benevolente, mas não um instinto
que sabe determinar o correto”. Vale destacar, se trata do correto do ponto de vista
moral.

Acerca das inclinações, tendências, sentimentos, paixões, afeições, para Kant


(1999, p. 106), “convém também orientar o jovem para a alegria e o bom humor” e,
nesse sentido, é reforçado a posição de Kant da não necessidade de erradicar toda e
qualquer inclinação ou sentimento, porém, tudo o que em geral nos inclina, segundo
Kant, é contingente e, para o filósofo, tendo em vista a vida humana, não se deve dei-
xá-la à sorte de qualquer contingência. Assim, a inclinação, além de não poder fornecer
o autêntico valor à ação, pode, em muitos casos, prejudicar o ser humano no processo
de desenvolvimento de sua humanidade.

Eis a necessidade da disciplina como o momento inicial da educação prática kan-


tiana, desempenhando uma tarefa preventiva, isto é, de impedir que a animalidade
assuma a motivação (Bewegungsgrund) das nossas ações. Assim, a disciplina, como o
primeiro momento da educação prática kantiana, é o que impedirá o ser humano des-
de cedo de se tornar refém dos instintos mais primitivos, “o que Kant denomina como
domar a selvageria”. (SANTOS, 2007, p. 5). A disciplina, por sua específica função de

Segunda Seção
INCLINAÇÕES, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
54 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

domar a selvageria, de modo que ela não cause danos ao ser humano na formação e
no desenvolvimento da sua humanidade, prepara o caminho à parte positiva (forma-
tiva) da educação prática e, nesse sentido, ela se torna necessária, visto que, de acordo
com Kant, não se pode abolir, mais tarde, o estado selvagem e corrigir um defeito de
disciplina.
A falta de disciplina é um mal pior que a falta de cultura, pois esta pode ser remedia-
da mais tarde, ao passo de que não se pode abolir o estado selvagem e corrigir um
defeito de disciplina. (KANT, 1999, p. 16).

Nesse sentido, podemos pensar a disciplina enquanto uma condição, preliminar


e necessária, ao desenvolvimento humano do educando, isto é, à possibilidade de um
ser humano que sustenta as suas ações por valores e princípios práticos – necessários e
universais – em suma, à possibilidade de efetivas ações éticas. Consequentemente, dis-
ciplinar, conforme posto pela educação prática kantiana, não diz respeito à mera im-
posição de quaisquer regras, leis ou ordens, de modo que se deva cumprir exatamente
o que fora comandado ou ordenado, o que se confunde com o mero autoritarismo, não
se trata de submeter a criança à servidão, mas, muito antes, trata-se de domar o instin-
to, o impulso, os caprichos e as inclinações imediatas, impedindo que a animalidade
cause danos e prejuízos ao que é peculiar ao ser humano – a sua humanidade.

Ao cuidar das inclinações, por meio da disciplina, abre-se o caminho para a parte
positiva da educação prática, abre-se o caminho para as leis, as normas e os princípios
da própria humanidade, “prepara-se, então, através da disciplina, o exercício de um
homem verdadeiramente livre”. (VICENTI, 1994, p. 23).

No entanto, a disciplina é somente como o primeiro momento da ideia de edu-


cação prática de Kant, pois os princípios práticos fundam-se em máximas e não sob a
disciplina, a disciplina impede os defeitos, a máxima forma o modo de pensar. (KANT,
1999, p. 75). Portanto, pensando no alcance da humanidade, a disciplina não basta,
a qual doma a animalidade, mas é capaz apenas de gerar um hábito que pode desa-
parecer com os anos. Segundo Kant (1999, p. 48), o hábito é uma ação convertida em
necessidade pela repetição contínua dessa ação, ou “Um hábito é o estabelecimento
de uma inclinação persistente sem nenhuma máxima” (KANT, 2004, p. 130). É preciso
continuar o processo educacional e “proceder de tal modo que a criança se acostume
a agir segundo máximas”. (KANT, 1999, p. 75). A disciplina é indispensável, mas a
educação prática exige, no momento seguinte, o olhar para a máxima da ação, “a edu-
cação prática não pode permanecer baseada unicamente sobre a disciplina, mas deve
assentar sobre máximas”. (SANTOS, 2011, p. 211).

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
55

Ressaltamos que a adoção de uma máxima moral é possível, para Kant, mediante
a ideia do dever14, mediante a consciência do dever, o agente reconhece o seu dever
e adota as leis práticas enquanto fundamento subjetivo da ação (máximas morais),
válido para o sujeito da ação e, ao mesmo tempo, válido para as ações de todos. Desse
modo, destacamos o olhar do outro momento da educação prática de Kant, ou seja, o
momento da formação e a tentativa de que o ser humano seja, mediante a consciência
do seu dever moral ou de virtude, de fato determinado por uma máxima que ao mes-
mo tempo é lei (uma máxima moral), o que significa transformar em móbil o motivo,
transformar em móbil o próprio dever. Inicialmente essas máximas são as máximas
gerais da escola, depois, as máximas morais da humanidade – humanidade presente
em todo ser humano, portanto, “no primeiro período, o constrangimento é mecânico;
no segundo, é moral”. (KANT, 1999, p. 30).

Observemos agora o que envolve a parte positiva do sentido prático da educação


kantiana, lembrando a
A educação prática ou moral (chama-se prático tudo que se refere à liberdade) é
aquela que diz respeito à construção (formação) do homem, para que ele possa viver
como um ser livre. (KANT, 1999, p. 35).

Refere-se à educação prática positiva: a educação escolástica, a pragmática e a


moral.

A educação escolástica diz respeito ao desenvolvimento das habilidades e apti-


dões dos seres humanos, por exemplo, ler e escrever, diz respeito ao desenvolvimento
da razão teórica e envolve a faculdade de conhecer especulativa, proporcionando um
conteúdo cognitivo. De acordo com Kant, abrange a instrução e vários conhecimentos
teóricos,
[...] é a criação da habilidade e esta é a posse de uma capacidade condizente com to-
dos os fins que almejamos. Ela, portanto, não determina por si mesma nenhum fim,
mas deixa esse cuidado às circunstâncias. Algumas formas de habilidade são úteis
em todos os casos, por exemplo, o ler e o escrever; outras só são boas em relação a
certos fins [...]. A habilidade é de certo modo infinita, graças aos muitos fins. (KANT,
1999, p. 26).

A educação pragmática prática, diz respeito à prudência que, segundo Kant, é


como um tipo de civilidade, um ser humano prudente, e, portanto, segundo a concep-
ção kantiana, civilizado, possui certas noções que a pessoa meramente habilidosa ou
instruída teoricamente não possui. Trata-se de uma qualidade de educação política, “a
civilização visa formar o cidadão para que ele tome parte ativa na vida da sociedade
em que está inserido”. (SANTOS, 2011, p. 211). Ainda que não trate especificamente
da ética e das ações com valor moral, a educação pragmática forma o cidadão com
bons modos, gentil e cortês em relação ao outro, se refere, por exemplo, à atenção com

14  Por dever, isto é, por razões morais, converto a minha máxima em uma máxima moral, o que significa o reconhecimento, o
respeito e a adoção do princípio prático fundamental.

Segunda Seção
INCLINAÇÕES, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
56 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

o outro de modo a não nos servirmos de outros seres para a realização dos nossos fins
pessoais. Segundo Kant, “[...] por um prazer universalmente comunicável e pelas boas
maneiras e refinamento na sociedade, ainda que não façam o homem moralmente me-
lhor, tornam-no porém civilizados”. (KANT, 1993, p. 274).

Finalmente, a educação moral, que diz respeito à ética e ao intrínseco valor das
ações humanas, a saber, o valor moral. A educação ou formação moral em Kant en-
volve os valores morais, o cultivo de máximas morais, a virtude e os deveres de vir-
tude conforme anunciado por Kant na Metafísica dos costumes, parte II, a autonomia,
a emancipação, a liberdade, o caráter, os bons fins, em suma, os princípios práticos
fundamentais com o desenvolvimento da consciência do dever prático (dever moral
ou dever de virtude) e a realização de ações por essa consciência, o que a faz distinta
de toda educação meramente moralizante15. Com o desígnio de formar moralmente a
educação deve,
[...] cuidar da moralidade. Na verdade, não basta que o homem seja capaz de toda
sorte de fins; convém também que ele consiga a disposição de escolher apenas os
bons fins. Bons são aqueles fins aprovados necessariamente por todos e que podem
ser, ao mesmo tempo, os fins de cada um. (KANT, 1999, p. 26).

Cuidar da moralidade, poder querer os fins bons, em si ou universais, poder ter


a razão prática efetiva nas ações reais, requer a ação sob princípios práticos, nesse sen-
tido, a etapa suprema da educação prática em Kant diz respeito ao ensino do dever, a
formação e o desenvolvimento da consciência do dever moral ou de virtude – “Se qui-
sermos solidificar o caráter moral das crianças, urge seguir o que se segue. É preciso
ensinar-lhes, da melhor maneira, através de exemplos e com regras, os deveres a cum-
prir” (KANT, 1999, p. 89), o que significa, em última instância, apontar sempre para os
motivos, as razões e o princípio da ação, observando o princípio do qual toda a ação
do ponto de vista moral deriva ou deve derivar, pois as razões ou o porquê fazemos o
que fazemos, são decisivas tratando-se da moralidade em Kant. Mediante a formação
e o desenvolvimento da consciência moral ou do dever, as razões que o sujeito da ação
tem, ou se dá para agir, estarão subordinadas, pelo próprio querer, ao dever. Eis todo
15  Sobre a “educação moral” moralizante, considerando a educação brasileira, podemos citar no passado a ‘Educação Moral e
Cívica’, presente nos currículos, em caráter obrigatório, em todos os níveis de ensino no Brasil de 1969 a 1993, estabelecido com o
decreto-lei nº 869 de 12 de setembro de 1969. Ou, mais recentemente, com o advento do neoconservadorismo (CORSETTI, 2019, p.
774), ou seja, a regulação, para além do capital, das ações, dos costumes e dos comportamentos dos seres humanos, que significa
uma imposição moralizante para os costumes, a qual cria seres ajustados a esta ou aquela prescrição “moral” da sociedade,
da nacionalidade, da educação, da religião ou de qualquer outra exterioridade. Em nossa visão, essa prescrição moralizante,
característica do neoconservadorismo, traz, para o campo das experiências e vivências cotidianas, o ‘querido eu’ posto por Kant.
Com o neoconservadorismo nascente, e crescente, que estabelece e impõe os códigos ou as receitas de ação, de conduta e de
costumes, em última instância, o resultado é uma verdadeira e profunda crise Humana, para longe da virtude, do caráter, da
autonomia, da liberdade, da autodeterminação e autolegislação, da consciência crítica – da consciência de si e do outro. Essa
nova onda conservadora moralizante em relação à educação brasileira, conforme pensamos, se expressa nas recentes mutações
educacionais, exemplificando: a Base Nacional Curricular Comum – BNCC (2017), o Novo Ensino Médio (2017), a Base Nacional
Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica – BNC/Formação (2019). Podemos então questionar: quais
são as intenções, interações, impactos e implicações dessas reformas e políticas educacionais em relação à humanidade do
ser humano? Verificamos a dependência persistente da orientação imediata, da mera prescrição e da subordinação às regras
estabelecidas e postas do tipo “faça” e “não faça”.
Porém, não é essa a proposta de uma autêntica formação moral, com a possibilidade de realizações éticas no mundo. A mera
moralização, isto é, as regras estabelecidas e postas do tipo “faça” e “não faça”, não possui espaço no desenvolvimento em valores
e princípios práticos, justamente porque a filosofia moral e ética de Kant guarda a autonomia e a liberdade dos sujeitos da ação.

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
57

o valor da ação, de acordo com a filosofia prática kantiana. Como ressalta Kant nas
preleções Sobre a Pedagogia: “Que a criança seja completamente impregnada não pelo
sentimento, mas pela idéia do dever!”, afinal:
É inútil tentar fazer as crianças sentirem o lado meritório das ações. Os padres co-
metem frequentemente o erro de apresentar os atos de beneficência como algo me-
ritório. Mesmo sem pensar que, em relação a Deus, não podemos fazer mais do que
o nosso dever; fazer benefícios aos pobres é simplesmente o nosso dever. Já que a
desigualdade de bem-estar entre os homens deriva de meras condições ocasionais.
(KANT, 1999, p. 92).

Queremos reforçar que a noção do princípio prático fundamental, não as paixões,


as tendências, as inclinações ou o interesse no mérito de uma ação, é o definitivo à mo-
ralidade e à formação moral em Kant. O filósofo explica (1999, p. 97) que, mesmo que
a criança não tenha ainda o conceito abstrato do dever moral ou do dever de virtude,
pode facilmente compreender que há um princípio prático, o qual determina tudo o
que deve necessariamente ocorrer do ponto de vista moral, ou seja, pode compreender
que há um princípio sob a ação. Pode facilmente compreender que a lei do dever não
está submetida ou é dependente, enquanto o motivo da ação, do prazer, da utilidade,
dos interesses meramente particulares ou de qualquer exterioridade, mas de algo mais
abrangente que não se resume aos nossos caprichos ou temor, mas diz respeito ao va-
lor da ação em si. Sobre essa independência de toda exterioridade, enquanto o motivo
da ação, Kant exemplifica dizendo que é preciso ensinar a criança a recusar o vício e
escolher (querer) a virtude,
[...] não pela simples razão de que Deus o proibiu, mas por ser desprezível em si
mesmo! De outro modo, elas pensariam facilmente que o vício poderia ser praticado
e que seria permitido, se Deus não o houvesse proibido, e que Deus bem que poderia
fazer uma exceção em seu favor. (KANT, 1999, p. 27).

Não se trata da recusa de Deus, antes, de não colocar a razão de nossas ações,
ou seja, as nossas escolhas e decisões sob a responsabilidade de Deus ou de qualquer
outro externo. Assim, continua Kant, “Deus é o ser soberanamente santo e não quer
senão o que é o bom, exige que pratiquemos a virtude pelo seu valor intrínseco e não
porque Ele o ordena”. (KANT, 1999, p. 27-8). Porém, alerta Kant, para que a formação
moral da criança seja possível, – “[...] o próprio mestre deve formar para si mesmo
esse conceito”. (KANT, 1999, p. 98). Podemos pensar que isso implica, também, as
exigências de uma formação moral e de tudo o que diz respeito à humanidade posto
por Kant, já na formação inicial dos professores, afinal é difícil representar e formar
no outro aquilo que não temos formado em nós: os valores morais autênticos não são
valores que podemos improvisar.

A parte (positiva ou formativa) final da educação prática kantiana, a formação


moral, irá tratar de conhecer e determinar o porquê da ação, de chamar a atenção do
educando para o princípio prático da ação, segundo Kant, para o próprio dever, moral

Segunda Seção
INCLINAÇÕES, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
58 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

ou de virtude. De acordo com o filósofo (1999, p. 68): “É necessário que ele veja sempre
o fundamento e a consequência da ação a partir do conceito de dever”. Assim, o ser
humano, além de saber o que deve fazer, sem depender necessariamente da orientação
de outrem, se ordenará, por querer e por princípio, a fazer16. Em um silogismo prático,
temos:

Segundo o princípio prático formal ou o dever moral:


A – um fim meramente particular.
Então B – máxima da ação (meio de realização do fim).
B – máxima que pode também ser lei (caso universalizável).

Segundo o princípio prático material ou dever de virtude:


A – fim que é ao mesmo tempo dever
Então B – máxima da ação (meio de realização do fim).
B – máxima que também é lei.

A partir da formação e do desenvolvimento moral, o ser humano será capaz de


querer, enquanto o seu motivo, uma espécie de regra de vida ou princípio e o seu
agir será determinado, necessariamente, em função desse querer, o que significa agir
segundo um princípio – por dever ou por razões morais: o respeito, o reconhecimento
e adoção de uma lei moral (princípio prático formal) ou o respeito, o reconhecimento
e a adoção de um fim que é ao mesmo tempo dever (princípio prático material)17. A
questão da formação moral em Kant é que, no processo de formação e desenvolvimen-
to de princípios práticos, não é suficiente que a criança, o jovem e o adulto sigam as
leis morais, o que implicaria mera moralização. É preciso que os educandos sigam as
leis morais, em Kant as leis da sua própria humanidade, porque escolheram segui-las,
e escolheram por elas mesmas e não por algum temor ou por alguma recompensa que
possam usufruir ou por alguma punição que possam sofrer. Ainda que Kant indique
que, em certas ocasiões, a criança deva ser punida, quando, por exemplo, mente, a
educação moral não consiste no temor ou na imposição, antes, fundamenta-se em fa-
zer com que a criança compreenda gradativamente e queira as leis práticas da ação
pela própria lei. (BUENO, 2012, p. 175).

Percebemos com a educação prática de Kant que há a proposta da união da subje-


tividade com a universalidade (do eu com o todo e com todo o outro) em um caminho
de mão dupla, pois para que o princípio prático universal da humanidade, seja ele em
seu aspecto formal ou material, tenha validade para um sujeito/agente específico, esse

16  Em linhas gerais, a independência do outro para o nosso pensar e agir é o que Kant chamou de Emancipação. Sobre a
emancipação em Kant: KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: o que é o esclarecimento? Rio de Janeiro: Vozes, 1985.
17  Sobre os princípios práticos materiais, de acordo com a Metafísica dos costumes, parte II: Dos deveres para consigo: reconhecer
e conservar a própria dignidade ou o amor próprio, conservar a própria vida, desenvolver e aumentar a perfeição natural e a
perfeição moral [...]. Dos deveres para com os outros: beneficência, gratidão, atenção, respeito, amor, amor universal ou amizade
[...].

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
59

agente deve querer que tal princípio seja o seu princípio, ou seja, seja o princípio de
suas ações. Por exemplo, ‘Todo ser humano deve preservar a sua vida’, um dever de
virtude para consigo exposto e justificado por Kant (2004) na Metafísica dos costumes,
para que esse princípio prático tenha validade para um ser humano específico, esse ser
deve, necessariamente, querer o princípio prático como seu, afinal de nada valeria a
universalidade de princípio moral da ação se o agente não o quisesse enquanto o seu
princípio, a sua lei, o seu motivo da ação. Nesse sentido, temos um princípio prático
universalmente válido que é, ao mesmo tempo, por ser querido pelo agente, subjetivo.
O que expressa o sentido de uma máxima moral ou máxima da ação universalmente
pessoal.

Podemos pensar esse caminho de mão dupla entre o subjetivo e o universal na


educação prática de Kant, como o que o filósofo chamou de querer autêntico – “O cum-
primento do dever consiste na forma do querer autêntico e não nas causas mediadoras
daquilo que é conseguido”. (KANT, 1993, p. 291). Trata-se de querer (subjetivo) fazer
o que deve (universal) ser feito, e no querer fazer o que deve ser feito, há a possibilida-
de do princípio prático universal realizado na ação particular. Colaborando com essa
ideia, Santos (2011, p. 212) explica que o “eu devo” válido para o ser humano devido à
sua natureza sensível, sujeito às inclinações, aos impulsos, às paixões, de acordo com
Kant, corresponde ao necessário do ponto de vista moral “eu quero”, o querer racional
ou moral, para o ser humano enquanto ser racional. Sensível e racional diz respeito à
dupla perspectiva que se encerra a natureza humana.

Nesse sentido, no poder querer fazer o que do ponto de vista da humanidade


deve ser feito, a educação moral desenvolve no educando um conhecimento prático
que é distinto do conhecimento teórico ou especulativo, por exemplo, da física, da
biologia ou da matemática, esse conhecimento prático se refere a uma espécie de auto-
conhecimento, nas palavras de Kant, “conhece-te a ti mesmo (examina-te, perscruta-se)
[...] segundo a perfeição moral, em relação ao teu dever – examina se o teu coração é
bom ou mau, se a fonte das tuas acções é pura ou impura”. (KANT, (2004, p. 81). O
autoconhecimento moral em Kant, que exige do ser humano o exame das causas das
ações, ou seja, o exame das razões de nossas ações, trata de conhecer e de determinar o
motivo da ação, o conhecimento prático ou o autoconhecimento moral é, para o filóso-
fo, o começo de toda a sabedoria humana da espécie humana – “[...] é preciso, por fim,
orientá-los sobre a necessidade de, todo dia, examinar a sua conduta, para que possam
fazer uma apreciação do valor da vida”. (KANT, 1999, p. 107).

O conteúdo moral das ações, de um modo geral o conteúdo da vida moral, cen-
tra-se no reconhecimento e adoção do princípio prático fundamental. De acordo com
Kant: “Devo considerar uma ação valiosa, não porque se adapta à minha inclinação,

Segunda Seção
INCLINAÇÕES, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
60 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

mas porque através dela eu cumpro o meu dever”. (KANT, 1999, p. 106)18. Eis a base,
de acordo com a educação kantiana, da formação e aperfeiçoamento moral da espé-
cie humana. Considerando a educação prática kantiana, os alunos devem ir à escola,
não somente para aprenderem técnicas e expressões, mas para aprenderem a pensar e
conduzirem-se do ponto de vista da moralidade por si mesmos, para desenvolverem a
capacidade de pensar e agir moralmente por si próprios, o que nos remete ao autoco-
nhecimento, à autodeterminação e à autolegislação. “Urge que aprendam a pensar” e
“observar os princípios dos quais todas as ações derivam”. (KANT, 1999, p. 27).

Note que, para poder querer uma ação sob princípios práticos, os quais o próprio
ser humano é capaz de oferecer a si graças à sua capacidade prática da razão, não é
requerida a instrução de como se comportar, sendo assim, a formação moral em Kant
não se trata de meras instruções de como é preciso agir do ponto de vista moral, não
se trata de exortações, conselhos ou advertências comportamentais19, mas trata-se do
exame, da reflexão, da compreensão prática e do cultivo da moralidade, que somente
poderão ocorrer se forem despertadas as forças morais do aluno, possibilitando a to-
mada de decisão moral, isso significa que, de acordo com pensamento moral e ético
kantiano, não se é possível ser ético ao acaso, ou seja, sem o querer, sem a escolha, sem
a deliberação.

Despertar as próprias forças morais do aluno implica, no pensamento prático


de Kant, em virtude. Essa força ou a fortaleza moral para tornar a moralidade efetiva
na ação humana é o que Kant denomina de virtude: “Virtude é a fortaleza moral da
vontade”. (KANT, 2004, p. 40). Porém, o filósofo observa que tal definição não esgota
o que é a virtude, afinal, é possível atribuir a mesma fortaleza moral a um ente san-
to (sobre-humano), desse modo, no que diz respeito ao conceito da virtude humana,
Kant completa a sua definição dizendo que: “[...] a virtude é a fortaleza moral da von-
tade de um homem no cumprimento do seu dever [...]” (KANT, 2004, p. 40). Noutras
palavras, “A virtude é a força da máxima do homem no cumprimento do seu dever”
(KANT, 2004, p. 29). Assim, para o alcance do ser humano ético (a ação realizada sob
valores e princípios práticos), para a efetivação da virtude humana, da moralidade (os
valores morais de uma ação), do caráter, a noção do dever e de fortaleza moral para
querer o princípio prático e cumprir o dever torna-se necessária, pois diante de tantas
inclinações, o ser humano pode deixar de realizar o que se deve ser feito do ponto de
vista moral, deixando de agir moralmente. Segundo Kant:
18  Grifos acrescentados. Aqui está a compatibilidade entre a decisão de um sujeito com a determinação do dever.
19  A instrução é um momento preliminar da educação prática, na segunda Critica, Kant aponta que, embora a formação moral
não ocorra pela mera instrução, a instrução pode apresentar-se enquanto um elemento preliminar do desenvolvimento moral,
nas palavras do filósofo: “Certamente não se pode negar que, para colocar pela primeira vez nos trilhos do moralmente-bom um
ânimo inculto ou mesmo degradado, precisa-se de algumas instruções preparatórias para atraí-lo por seu próprio proveito ou
atemorizá-lo pelo dano [...] (KANT, 2003, p. 535). Porém, Kant ressalta que, tão logo a instrução tenha produzido algum efeito,
o motivo da ação (Bewegungsgrund – motivo moral puro), ou seja, o princípio prático fundamental, será o único capaz de fundar o
caráter – “uma conseqüente maneira de pensar prático segundo máximas”, deve ser “levado integralmente à alma”, pois, fazendo
com que o ser humano sinta o seu próprio caráter, ele confere ao ânimo a força ou fortaleza moral necessária à ação moral.

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
61

O homem, com efeito, afetado por tantas inclinações, é na verdade capaz de conce-
ber a idéia de uma razão pura prática, mas não é tão facilmente dotado da força ne-
cessária para tornar eficaz in concreto no seu comportamento. (KANT, 1980, p. 105).

A própria capacidade moral do ser humano não implicaria em virtude se não


fosse suscitada pela fortaleza de querer subjetivamente seguir um princípio prático
da ação. A virtude humana em Kant refere-se a uma força que não se resume à mera
determinação da vontade pelo desejo sensível originário das inclinações, paixões ou
afecções, as quais podem brilhar num instante e produzir fadiga no outro. O que há
é uma força moral procedente de motivos ou razões morais da ação, eis a origem da
força ou fortaleza moral, da nossa preocupação com o valor moral da ação.

A ação moral, segundo Kant, requer a fortaleza moral, chamada por Kant de vir-
tude, justamente pelos obstáculos que o próprio ser humano pode gerar a si mediante
determinações sensíveis que, em muitas ocasiões, podem mesmo levar ao vício. No
que diz respeito ao vício e ao prejuízo moral de seguir uma inclinação como determi-
nante da ação, Kant aponta que o ser humano, ao se entregar e seguir uma inclinação
sustentando a sua ação, pode permitir ao ânimo forjar princípios que são opostos aos
princípios práticos fundamentais, de modo a permitir que se incorpore, por adotar
tais “princípios”, o mal na máxima da ação, o que é, na concepção do filósofo (2004, p.
43), um mal qualificado, ou seja, um verdadeiro vício. Os vícios são, para o filósofo, o
grande desafio moral, ou seja, o desafio que o ser humano, se há a preocupação moral,
deve combater, daí decorre a força moral entendida enquanto fortaleza – fortitudo mo-
ralis (KANT, 2004, p. 41). Segundo Kant (2004, p. 29-30), toda a força moral (virtude)
se reconhece pelos obstáculos que é capaz de superar, para o caso da virtude, o grande
obstáculo a ser superado são as inclinações da natureza humana, ou seja, a sua facul-
dade de desejar face às sensações enquanto a razão da ação.

Ainda sobre a virtude humana, vale dizer que, além de trazer à luz o cume do va-
lor de uma ação – o valor moral –, constituir a verdadeira sabedoria – a sabedoria prá-
tica –, recupera a natureza humana enquanto livre, sã e rica, pois, de acordo com Kant,
o ser virtuoso não perde a sua virtude, a posição de Kant é de que, quando é formada,
desenvolvida, estabelecida a (cons)ciência do dever-ser e o ser humano não a realiza, é
como se isso lhe causasse uma espécie de asco, de repulsa, de aversão, bem como uma
lástima ou desprezo mesmo com o menor desvio dela20. Daí a imprescindibilidade da
formação moral, possível via educação, em Kant. A fortaleza moral, a força de virtude,
diz respeito ao “ânimo tranquilo, com uma resolução reflectida e firme de pôr em prá-
tica o seu dever. Tal é o estado de saúde na vida moral”. (KANT, 2004, p. 44).

Entendemos que a moralidade, de acordo com a concepção de Kant, pode ser


ensinada, no sentido de formada ou desenvolvida, graças à faculdade prática da razão
20  Cf. KANT, 2008, p. 7 e KANT, 2003, p. 543.

Segunda Seção
INCLINAÇÕES, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
62 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

humana, como apontamos, a razão, segundo o filósofo, apresenta dois usos ou inte-
resses: o especulativo e o moral. Sendo a razão a faculdade dos princípios, do conheci-
mento e morais, se segue a possibilidade da formação moral, ou seja, a formação ou o
desenvolvimento de uma faculdade ou capacidade própria do ser humano. Não se tra-
ta de aprender regras ou normas morais, o que se encerraria em mera moralização, não
se trata de qualquer transferência ou imposição, mas antes, da formação e desenvolvi-
mento de uma capacidade própria da natureza humana. Dada a natureza racional do
ser humano, a moralidade pode ser ensinada, no sentido de formada ou desenvolvida,
dada a sua natureza sensível, a moralidade deve ser ensinada. O ser humano é o des-
tinatário da moralidade em sua perspectiva sensível e, ao mesmo tempo, o portador
da moralidade em sua perspectiva racional. Desse modo, o que é constitutivo do ser
humano, enquanto ser racional, é preciso ser desenvolvido e conquistado devido à
sua constituição também sensível. (SANTOS, 2011, p. 208-209). Um dos recursos que
podemos lançar mão para esse desenvolvimento e realização é a educação, de acordo
com Kant, a arte de educar. A educação enquanto uma das condições de possibilidade
para a efetivação da consciência da moralidade em nós.

No entanto, reforçamos que a educação kantiana diz respeito a um projeto, con-


ceito ou ideal para o processo de aperfeiçoamento da natureza humana, versa sobre
os traços fundamentais de uma arte acerca do ensino e do exercício que considera,
também, a dimensão moral e ética do ser humano. Enquanto um ideal, não devemos
deixar de considerar os limites de um pensamento, mas sem nos esquecermos da sua
oportunidade. Nesse sentido, Kant coloca a seguinte questão na Sobre a pedagogia: “[...]
o bem geral é uma Idéia que pode tornar-se prejudicial ao nosso bem particular?”
(KANT, 1999, p. 23). A posição de Kant é:
Nunca! Já que, ainda que pareça que lhe devemos sacrificar alguma coisa, na verda-
de trabalhamos desse modo melhor para o nosso estado presente. E, então, quantas
consequências nobres se seguem! (KANT, 1999, p. 23).

A consequência maior está na possibilidade do próprio valor das ações, o valor


moral, de longe o mais alto e sem qualquer comparação (KANT, 1980, p. 113), o que
resulta na autonomia moral, na virtude, no caráter, na liberdade, na perfeição moral,
bem como na futura felicidade da natureza humana. Em Kant, o próprio princípio prá-
tico revela, simultaneamente, a consciência da autonomia (se dar o princípio) e liber-
dade (querer agir segundo o princípio). Por se dar e por assumir a lei prática da ação,
o ser humano é autônomo e livre, ainda que por sua condição finita precise da ideia do
dever para a adoção do princípio prático fundamental, lembrando que o dever não diz
respeito a qualquer dever sustentado pelas inclinações ou por qualquer exterioridade.
Com a formação moral em Kant, a capacidade prática da razão humana é formada
e desenvolvida, o ser humano será, portanto, capaz de autonomia moral, de se dar
o princípio último de suas ações, porém, por ser um ser finito, pode por vezes não
Renata Cristina Lopes Andrade
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
63

seguir imediatamente esse princípio, para os seres humanos, esse princípio está sob
a forma do dever moral ou de virtude, com a formação e o desenvolvimento da ideia
do dever, o ser humano irá, por escolha, querer o princípio prático necessariamente
em suas ações, o que evidencia a sua liberdade, a independente de motivos alheios
que possam determinar a sua vontade, sendo movida apenas por um princípio prático
que o próprio ser oferece a si. Não podemos nos esquecer de que o princípio prático
fundamental é sempre universal, seja em sua forma “Age de tal modo que a máxima
de tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação
universal” (KANT, 2003, p. 103), ou material expresso pelos deveres de virtude. Eis o
significado derradeiro do pensamento prático de Kant:
E é este o sentido mais alto da moralidade kantiana: de formular uma concepção
moral que exige o respeito incondicional pelo ser humano enquanto capaz de auto-
nomia, ou de formular uma concepção que faz “do pensamento do dever – que abate
toda a arrogância e todo o vão amor-próprio – o princípio de vida supremo de toda
moralidade do homem”. (ROHDEN, 2003, XXIII).

Por isso, a oportunidade do que Kant concebeu como pedagogia e chamou de


educação21, considerando a educação em suas perspectivas e momentos com o olhar
atento à formação plena do ser humano, a formação da sua humanidade e efetividade
de ações éticas no mundo. “Podemos trabalhar num esboço de uma educação mais
conveniente e deixar indicações aos pósteros, os quais poderão pô-las em prática pou-
co a pouco”. (KANT, 1999, p. 17-18).

Esse esboço de educação em sua porção prática, particularmente com a formação


moral, busca resgatar as ações humanas, o sujeito agente, que poderá ser um sujeito
capaz de mover-se, agir e viver segundo valores e princípios práticos,
[...] não importa apenas saber o que é que se deve fazer (o que facilmente se pode
indicar, graças aos fins que todos os homens por natureza têm), mas trata-se do prin-
cípio interno da vontade, isto é, que a consciência deste dever seja, ao mesmo tempo,
o móbil das acções. (KANT, 2004, p. 07).

Segundo Kant, é nisso que se baseia a eticidade, vale dizer, o conteúdo moral da
ação em geral, poder e querer transformar em móbil o próprio dever, o que nos revela,
ademais, a junção e a inseparabilidade do puro e do empírico na filosofia prática de
Kant, a parte empírica que, neste momento, nos dedicamos com a educação. Revela,
do mesmo modo, a coerência da sua filosofia prática. A coerência e indispensabilidade
postas podemos evidenciar nas palavras do próprio filósofo:
Remontar aos princípios metafísicos para transformar em móbil o conceito de dever,
purificado de todo o empírico (de todo o sentimento), parece opor-se à própria ideia
desta filosofia (da doutrina da virtude). Pois, que conceito poderemos fazer de uma
força e de um vigor hercúleo para superar as inclinações que engendram vícios, se a
virtude tiver de ir buscar as suas armas no arsenal da metafísica, que é obra da espe-
culação, em que só poucos homens sabem adestrar-se? Por isso, todas as doutrinas
da virtude geram o ridículo nas aulas, do alto dos púlpitos e nos livros populares,
21  Kant, em sua filosofia da educação, utiliza os termos pedagogia (Pädagogik), educação (Erziehung), doutrina da educação
(Erziehungslehre), arte da educação (Erziehungskunst), entendemos que esses termos são substitutos e estão relacionados.

Segunda Seção
INCLINAÇÕES, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
64 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

quando se adornam com citações metafísicas. – Mas nem por isso é inútil, nem mui-
to menos ridículo, rastrear numa metafísica os primeiros princípios da doutrina da
virtude; pois alguém tem de ir, como filósofo, até os primeiros princípios do conceito
de dever; de outro modo, não seria de esperar segurança ou pureza alguma para a
doutrina da virtude em geral. (KANT, 2004, p. 07-8).

Concluindo a presente unidade, queremos enfatizar que a parte positiva da edu-


cação prática, a educação escolástica, pragmática e moral, tem propriamente o objetivo
de desenvolver as habilidades, a prudência e, por fim, a moralidade. Desse modo, a
educação, no sentido de formação e desenvolvimento dos seres humanos, somente
será plena quando enxergar o ser humano para além da sua dimensão técnica e cogni-
tiva, o que, em Kant, envolve o conhecer e o agir político e moral de toda a espécie hu-
mana. (DELBOS, 1969, p. 591). A educação prática da filosofia da educação kantiana,
com os seus momentos de disciplina e de formação, representa a possibilidade da ple-
na formação e desenvolvimento do ser humano, conforme posto, o desenvolvimento
da sua Humanidade, a qual, segundo Kant (1999, p. 15), pertence a todos sem exceção
e, se pertence a todos, deve, portanto, ser formada e desenvolvida em todos, sem que
seja permitida qualquer exclusão.

Veja, a ideia de educação concebida por Kant, a qual concebe o alcance da huma-
nidade do ser humano, é trazida a partir de uma visão cosmopolita e podemos pensar
essa universalidade pelo menos sob dois aspectos. Primeiro, porque a Humanidade é
intrínseca a todo ser humano sem exceção. Segundo, porque em Kant a humanidade ou
é para todos ou para ninguém, ou seja, o ser humano somente terá a sua humanidade
completamente desenvolvida no âmbito da espécie e não somente do indivíduo par-
ticular. Conforme expusemos, a ideia de educação kantiana “abre a perspectiva para
uma futura felicidade da espécie humana” (KANT, 1999, p. 17), ou ainda, a educação
oferece ao ser humano um valor que diz respeito à inteira espécie humana (KANT,
1999, p. 35) e, por fim, ao considerar a escolha dos nossos fins, de acordo com Kant, isso
pode indicar o nosso caráter, é justamente pela possibilidade do caráter da espécie hu-
mana que podemos nos definir enquanto Pessoa (KANT, 2006, p. 181), o ser que possui
conhecimentos, mas que principalmente pode e quer agir segundo valores e princípios
práticos, princípios que condicionam a nossa ação, porém não são condicionados por
qualquer capricho, bem como por nenhuma exterioridade. Isso, porque a justa medida
da plena formação humana via educação, segundo Kant, envolve a formação ética – a
moralidade, a virtude, a autonomia, a emancipação, a liberdade, o caráter, a pessoa.
Na filosofia da educação de Kant, há a possibilidade de uma ação educacional, pen-
sada e apresentada, com um importante desígnio, fundamentalmente, Moral e Ético.

Um valor moral e uma ética que cessam com o ‘querido Eu’, que retiram os in-
teresses e propósitos subjetivos e particulares da sustentação da vida ética, enquanto
a razão ou motivo das ações em detrimento da Humanidade, do mesmo modo, se
Renata Cristina Lopes Andrade
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
65

escusam, por exemplo, da ordem e das necessidades naturais, das tradições, do mero
anseio pela felicidade, do âmbito religioso. Sempre se viu os seres humanos ligados
a regras morais, mas ninguém supôs que essas regras poderiam estar no próprio ser
humano, então à educação cabe desenvolvê-las e, nesse sentido, desenvolver a huma-
nidade que se pode definir por suas ações com e por valor. (DELBOS, 1969, p. 592).
Como expõe Kant: “Fica claro, portanto, quantas coisas uma verdadeira educação re-
quer!”. (KANT, 1999, p. 27).

Os métodos, as técnicas ou meio experimental e a contrapartida prática, isto é,


as instruções teóricas possíveis da parte positiva (formativa) da educação prática, par-
ticularmente, os processos de educação ou formação moral para os seres humanos,
são apresentados por Kant, em especial, na obra Metafísica dos costumes. Na Metafísica
dos costumes – Princípios metafísicos da doutrina da virtude, na Doutrina ética do método, a
partir de uma Didática ética e da Ascética ética, Kant nos indica a alternativa educativa
que possa atingir o que é crucial da educação prática – a formação moral do educando,
consequentemente, a sua ação ética no mundo – a análise e exposição desses elemen-
tos, processos, métodos e cultivo deixaremos em aberto para um próximo momento.

Segunda Seção
INCLINAÇÕES, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
66
REFLEXÕES FINAIS
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
68 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

A o se interessar pelo ser humano de modo integral, pela humanidade do ser


humano, contemplamos na educação kantiana o interesse pelo ser humano,
também, em sua dimensão moral e ética. Assim, vemos a educação de Kant enquanto
um projeto educacional que se atenta para outros aspectos, dimensões e elementos,
muitos deles, constitutivos da própria natureza humana, para além, por exemplo, ape-
nas da sua dimensão epistemológica. O que é de grande importância pois, quando
analisamos a extensa ação educacional, buscando reconhecer e compreender o pro-
jeto de educação que estamos inseridos e fazemos parte, podemos apontar que, nos
dias de hoje, a proposta se caracteriza, principalmente, pela instrumentalização e pela
(de)formação dos sujeitos da educação, o que, nesse contexto, significa a primazia das
informações e das técnicas que o educando deve receber e acumular, formando nesses
sujeitos apenas os conhecimentos técnicos, porém, sem a capacidade de apreender, de
interpretar, de analisar, de problematizar as realidades e as ações do e no mundo. Vi-
vemos no tempo das informações e não podemos deixar de formar os educandos para
a convivência com esses elementos, contudo, conforme pensamos, não podemos dei-
xar de humanizá-los, ou seja, de formar o ser humano para o convívio consigo e com os
outros, de formar e desenvolver os diversos aspectos e dimensões que são intrínsecos
ao ser humano, outros aspectos e dimensões da natureza, da existência e da condição
humana, que podem (e devem) ser contemplados mediante a ação educativa – conhe-
cimento, ciência, emoção, paixões, cidadania, cultura (...) e, como vimos com Kant, os
valores e os princípios práticos/morais e a ética. Se a humanidade é algo significativo
e definitivo nas relações, situações, experiências e vivências tipicamente humanas, po-
demos recusá-la ou ignorá-la enquanto objetivo da ampla ação educacional?

Pensando junto de Kant, podemos questionar: há hoje, no âmbito da complexa


ação educacional, a preocupação com a formação e o desenvolvimento, além da razão
teórica, de uma razão prática? A razão que nos dirige às relações humanas, ao sentido
da vida e para os fins últimos da existência humana, uma razão emancipatória que nos
responde com segurança, independentemente de qualquer exterioridade, social ou re-
ligiosa, a questão – o que devo fazer? De modo a fazer com e por valor legítimo. Ou,
por outro lado, a formação escolar e/ou universitária volta-se somente para o ensino
especulativo e técnico?

Veja, não se trata de recusar a formação dos conhecimentos teóricos, a própria


proposta de Kant de educação prática ressalta a importância dos conhecimentos teóri-
cos, das habilidades e das aptidões, mas trata-se do alerta para a necessidade de trazer,
junto da formação cognitiva, junto dos conhecimentos especulativos, as outras dimen-
sões dos seres humanos, ressaltamos aqui as dimensões moral e ética. Nesse sentido,
a educação kantiana deve,

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
69

[...] sobretudo, cuidar do desenvolvimento da humanidade, e fazer com que ela se


torne não somente hábil, mas ainda mais moral e, por último – coisa muito útil –,
empenhar-se em conduzir a posteridade um grau mais elevado do que elas atingi-
ram. (KANT, 1999, p. 25).

Não assegurar a formação dos outros aspectos e dimensões dos seres humanos,
não garantir a formação da humanidade inerente de todo ser humano sem exceção,
implica, ademais, na tecnização dos conhecimentos e, no campo da humanidade e das
ações humanas, apenas a informação ou o conhecimento técnico não são suficientes.
Somente a instrução para os conhecimentos que, sem a atenção com a formação hu-
mana, podem se tornar apenas técnicos, além de não bastar ao pleno desenvolvimen-
to do ser humano, pode ser muito prejudicial pois, quando consideramos somente a
instrução para os conhecimentos técnicos, e nada além, corre-se o risco da barbárie,
exemplificando, a pior dentre todas, o paradoxo da civilização: Auschwitz (ADORNO,
1995, p. 119). Logo, é preciso extinguir a “formação” educacional que assegura e ofe-
rece somente a mera tecnização, as banais receitas do “faça” ou “não faça”, a qual des-
considera a humanidade, a prudência e a consciência moral em relação ao ser humano
total e plural. Decerto essa questão é, no campo das implicações éticas, o significado da
recusa da coisificação dos seres e de suas práticas.

Essa posição nos impõe, uma questão vital, a necessidade de pensar em uma
formação educacional que não se reduza à perspectiva epistemológica como a única
possível, mas que leve em conta o plano plural e heterogêneo do ser humano. O que
implica em uma crítica à formação meramente especulativa que, enquanto única, re-
duz todo conhecimento em mera técnica, empobrece as relações com o outro, retira da
vida a possibilidade de novos modos de pensar e de agir, traz o hábito das ações cris-
talizadas, é incapaz de cuidar dos diversos aspectos e dimensões humanas, consolida
o desrespeito por tudo o que diz respeito ao ser humano e às suas relações, sejam elas
privadas, públicas, sociais, políticas, amigáveis, educacionais.

Assim, apontamos a atualidade da filosofia prática (pura e empírica) de Kant, e


podemos recorrer a Adorno, um dos pensadores críticos da Filosofia Moderna que, ao
avaliar o texto kantiano acerca do Iluminismo, de acordo com Adorno (1995, p. 181),
Kant “determinou a emancipação de um modo inteiramente conseqüente, não como
uma categoria estática, mas como uma categoria dinâmica, como um vir-a-ser e não
um ser”. Constatamos a avaliação de uma das centrais preocupações filosóficas do
pensamento prático de Kant, a preocupação com todo o dever-ser, o qual pode se efeti-
var com a educação, com o desenvolvimento de uma razão prática para além de toda
instrumentalidade. O que significa, via ação educacional, o resgate do ser humano e a
sua formação para além de sua dimensão técnica, uma educação que considera o ser
humano de um modo integral e ampliado, não reduzido.

REFLEXÕES FINAIS
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
70 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

A filosofia da educação kantiana se trata de um ideal, no entanto, não se trata


de ilusão, antes, é um conceito de educação que, talvez, ainda não se encontrou na
experiência, mas, mediante a ideia de educação, a ação educacional pode regular-se
na experiência, o que permite que a educação não seja reduzida a simples empirismo.
(SANTOS, 2004, p, 54). Tendo em vista que as teorias pedagógicas de algum modo
discutem uma concepção de ser humano, pensamos que esse ponto nos auxilia a me-
lhor compreender a filosofia da educação de Kant, um filósofo que, no interior da sua
filosofia prática, pensou sobre a educação tendo em vista a plena formação do ser hu-
mano, o qual seria capaz, também, de responder por si só a questão inicial da reflexão
kantiana sobre a moralidade: o que devemos fazer? A resposta para essa pergunta
não pode ser encontrada de maneira imediata, apesar de que, com maior intensidade,
a busca pelas respostas diretas a essa questão “declina, enquanto se multiplicam as
receitas de ação com base em modelos para serem mimetizados sem a mediação do
pensamento, numa condição heterônoma e regredida”. (MAIA, 2012, p. 76). Pensando
junto de Kant, fazemos o convite na direção das indagações, afinal: o que nos leva a
agir? quais as razões ou motivos da nossa ação? o que devo ou devemos fazer?

Pensamos ser urgente o olhar atento para uma dignidade última, possível na
esfera do vir a ser humano. Talvez, ainda temos que negar e não aceitar o que o ser
humano é, daí a necessidade de pensar, com seriedade, e buscar efetivar, o que ele
pode e deve ser, contemplando o que é e o que não é possível na esfera de um vir a ser
humano. Em Kant, conforme vimos, isso significa atentar-se, fundamentalmente, para
uma faculdade própria do ser humano, a saber, a faculdade prática da nossa razão.
Uma capacidade da razão de determinação do querer fazer, do querer agir, das es-
colhas pelos bons fins e das decisões genuinamente morais, uma capacidade racional
prática que pode ser desenvolvida pela educação para a sociedade, o que se contrapõe
às interpretações da moralidade kantiana baseadas no entendimento de uma razão
individual e isolada.

Ainda que o valor da humanidade do ser humano pareça estar se diluindo e as


questões de valores íntimos, do caráter, da pessoa, sejam, aparentemente, cada vez
mais raros, ainda assim devemos olhar, com discernimento, para a sua possibilidade,
pois, conforme sugerido por Kant (2006, p. 190), o ser humano não recebe pronto um
caráter ou uma índole moral, mas pode e precisa ser desenvolvido, a humanidade em
Kant é algo que podemos exigir do ser humano, a partir de uma concepção de edu-
cação, de formação plena e humana, que leva em consideração as dimensões plurais
do ser humano – corpórea, sensível, cognitiva, política, antropológica, ética, dentre
outros. Se o presente, educacional e humano, nos incomoda, talvez devamos, com o
auxílio dos fundamentos, dos projetos e das ideias, vislumbrar um futuro em que es-

Renata Cristina Lopes Andrade


INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
71

sas realidades possam ser melhores e propícias, nas quais o ser humano se realize de
forma plena. Precisamos avistar um futuro como um modo de resposta ao presente.

A raridade do caráter ou a moralidade apenas como um sonho e nada além,


segundo Kant (2006, p. 191), ocorreu, em grande medida, por culpa dos próprios filó-
sofos, por nunca terem colocado o conceito de caráter separado em uma luz suficiente
clara, por terem tentado, repetidamente, apresentar a virtude, a moralidade, o caráter
e o valor do caráter, apenas fragmentariamente, “jamais inteiramente na beleza da sua
figura” de modo que pudesse despertar o real interesse de todo ser humano. Se isso se
sustenta, ou se em algum sentido se sustenta, será que nós, enquanto professores ou
agentes, estamos ainda nos comportando do mesmo modo? Ou seja, olhamos para as
questões internas de modo frouxo e fragmentado, não as iluminando o suficiente. Ou
ainda, será que em nome de um niilismo nos tornamos permissivos demais? Em de-
corrência disso, a humanidade do ser humano, nas mais diversas esferas da realização
humana não é efetiva, não se manifesta em nossas vidas e vivências.

Destacamos que atravessamos uma situação de crise humana intensa. Não são
poucas as situações que nos sinalizam para uma espécie de fracasso da humanidade
que se mostra, por exemplo, na barbárie das relações entre os externos, na violência, na
banalização do que é o bem ou o mal, no esvaziamento da pessoa humana, em resumo,
no desrespeito e desencantamento por tudo aquilo que se refere ao ser humano e suas
relações. No entanto, reforçamos, ainda que o interesse pelo ser humano tenha se per-
dido e as questões da pessoa, do caráter, da cidadania, da virtude, da autonomia moral
e da liberdade estejam, ao que parece, cada vez mais raras nas experiências cotidianas
da vida humana, ainda assim podemos, e devemos, olhar, com discernimento, para a
possibilidade do ser humano enquanto humano. Nesse sentido, “o ser humano tem,
pois, de ser educado”. (Kant, 2006, p. 219).

Tendo em vista que a educação, segundo a concepção kantiana, contempla a edu-


cação moral, então, vemos a sua filosofia da educação como uma ideia de formação
que podemos nos aproximar para alcançar o valor de ações humanas em seu maior
grau. Isso significa que, mesmo havendo obstáculos à sua realização, há um ideal de
educação que a humanidade pode perseguir para o seu aperfeiçoamento, sua futura
felicidade e a sua culminância humana. Em suma, o pensamento kantiano acerca da
educação concebe um projeto de educação que envolve, sobretudo, a Humanidade, os
valores humanos, o desenvolvimento da faculdade prática da razão humana. Nesse
sentido,
O projeto kantiano de educação destaca-se, de forma incisiva, o papel convergente
da experiência e do conhecimento no domínio da pedagogia. Não se pode educar sem
uma ideia clara do que se pretende, sem um projecto bem pensado em termos prospectivos
(PINTO, 2006, p. 426, grifo nosso).

REFLEXÕES FINAIS
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
72 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

À vista disso, trouxemos na presente obra o estudo teórico-filosófico acerca da


Educação e da Humanidade (acompanhado de alguns de seus elementos), para re-
fletir, compreender, e, quem sabe, promover a realidade, em particular as realidades
educacionais e formativas com o comprometimento humano, já que consideramos a
expressão conceitual e a alternativa teórica como uma ferramenta importante no au-
xílio do olhar dos problemas educacionais, uma expressão que pode ampliar o diálo-
go entre a filosofia e a realidade educacional e formativa. Por conseguinte, buscamos
subsídios na filosofia prática de Kant, a qual compreende os valores e os princípios
humanos, compreende o ser humano e as suas ações, o ser humano e a sua humani-
dade, e apreendemos que devemos olhar, com seriedade, para a sua possibilidade, ou
seja, a humanidade como uma exigência, tal exigência e alcance são possíveis, tendo
como um dos caminhos, pela educação. Então: podemos trazer a filosofia para junto
das experiências humanas, em especial, na ampla ação educacional? Se a educação
hoje tem assegurado, garantido e proporcionado a formação e o desenvolvimento do
ser humano, qual ser humano está sendo formando?

É importante deixar claro que, na oportunidade da união entre a filosofia e o real,


entre o pensamento e as realidades, não se trata de uma tentativa de aplicabilidade
rigorosa desses conceitos e ideias. Na união entre a teoria e a realidade trata-se da
interpretação, da compreensão, dos significados e dos sentidos, do esclarecimento e,
se possível, da modificação e transformação do mundo real. É nesse sentido, também,
que vemos e afirmamos os ganhos da união entre as investigações conceituais, seja
ela da sociologia, da filosofia, da história, com a realidade. Se pretendemos formar e
desenvolver o ser humano mediante a educação, o conhecimento dos fundamentos é
necessário e atual, seja por seu valor intrínseco, valor típico e próprio da filosofia, seja
por seu valor prático enquanto práxis, “[...] dar-lhe condições de se realizar como prá-
xis” (SEVERINO, 2001, p. 120), isto é, o diálogo íntimo entre a teoria e a realidade, entre
o pensamento e as experiências reais. Noutras palavras, a conexão entre as dimensões
da reflexão e da intencionalidade da dimensão teórica em termos de busca e de análise
e as de realidade, de intervenção e de transformação da atividade prática enquanto
práxis, o que pode, por exemplo, evitar os pensamentos cristalizados e as parcialida-
des, pois com a ação isolada e em si, desvinculada da teoria, corremos o risco do mero
ativismo: precisamos da realidade acompanhada do sério empenho do pensamento.
(FREIRE, 2005). Sendo assim, colocamos: em que medida, grau e intensidade, ainda
podemos experimentar, na atualidade, o pensamento, ou, por outro lado, devemos
declarar o pensamento como algo do passado? podemos caminhar juntamente dos
pensadores (filósofos, sociólogos, teóricos)?

Nossa posição é, seja por seu valor próprio, seja pelo seu valor prático enquanto
práxis, vemos a indispensabilidade da união entre o pensamento e a realidade. Por
Renata Cristina Lopes Andrade
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
73

isso, trouxemos a dimensão moral do educando como uma possibilidade de reflexão,


de debate, de compreensão e de efetivação, com a afirmação de um vir a ser de verda-
deira formação humana, o que proporcionaria, na atualidade e realidades, os valores
da ética. Ou será que iremos declarar os valores humanos como algo irrelevante e va-
mos apenas nos preparar para uma existência em que as relações entre os externos e as
pessoas são frágeis, precárias e transitórias? Afinal, quais são os valores que atualmen-
te sustentam, e quais poderiam ou deveriam sustentar, as ações dos seres humanos em
suas vidas e vivências?

Talvez essas questões confiram a todos a necessidade de reflexão, a crise humana


“obriga todos, em especial aos pensadores, a uma profunda reflexão”. (GRACIA, 2012,
p. 89). Entendemos que, para que as vidas, as existências e as condições humanas não
sejam frágeis, para que não fiquemos com o descaso da humanidade, para que o valor
ocupe o lugar do preço, esse é um tipo de reflexão inevitável. Desse modo, resgatamos
a filosofia da educação de Kant, inserida no interior de sua filosofia prática, como a
oportunidade de reflexão, compreensão, orientação e, quem sabe, de promoção das
ações na esfera da formação do ser humano via educação, e de olhar o ser humano em
suas diferentes dimensões, como é o caso aqui, em sua dimensão moral e ética. Uma
ocasião de afirmação da humanidade, justamente em um momento, o ano é 2020, em
que ela, a humanidade, clama, novamente, por essa afirmação, enfatizando: “[...] é
preciso, por fim, orientá-los sobre a necessidade de, todo dia, examinar a sua conduta,
para que possam fazer uma apreciação do valor da vida”. (KANT, 1999, p. 107).

Voltar-se para a dimensão humana, via educação, junto do estudo filosófico do


tema, dos conceitos e dos princípios, tem o significado de ajuizar sobre as contribuições
às discussões contemporâneas no campo da educação, junto da compreensão de quem
somos, podemos ou devemos ser em uma sociedade mais justa, cuidadosa e demo-
crática. Mas, também, tem o fim de construir propostas, sobretudo, reflexivas para a
práxis educativa. Levando em consideração a conexão inseparável entre a educação e o
ser humano, afirmamos que o que oferece o pensamento, a compreensão, a orientação
e a promoção da educação apresenta a sua importância para filósofos, educadores e
sociedade. A partir do momento em que olharmos para a humanidade do ser humano,
ampliamos os horizontes de modo que todo ser humano seja levado em consideração
como elemento constitutivo de nossa existência e condição, em um genuíno exercício
para a vida humana, o qual permite, ademais, a ampliação do alcance da filosofia. Eis
o trabalho filosófico ampliando o alcance da filosofia.

REFLEXÕES FINAIS
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
74 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

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INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
77

SOBRE A AUTORA

Renata Cristina Lopes Andrade


Doutora em Educação pela Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/Campus
de Marília.

Professora Colaboradora do Programa de Pós-Gradua-


ção em Educação - PPGEDU/FURG.

Pesquisadora dos Grupos de Estudos e Pesquisas:


“Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Ética
e Sociedade/GEPEES” – UNESP/Marília; “De-
senvolvimento sociomoral de crianças e adolescente”
– UNESP/São José do Rio Preto; “Formação de Profes-
sores e Práticas Educativas/NUFOPE” – UFJ e “Traba-
lho, Educação e Docência/GTED” - FURG.
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78 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

ÍNDICE REMISSIVO
A Dever 6, 12, 13, 14, 18, 19, 21, 22, 23, 26, 32, 35, 36,
37, 38, 39, 40, 42, 43, 49, 52, 57, 58, 59, 60, 61,
Acordo 12, 19, 20, 21, 27, 30, 31, 34, 36, 37, 40, 41, 62, 63, 64, 65, 66, 71
43, 45, 48, 51, 52, 53, 56, 57, 59, 60, 61, 62, 63,
64, 66, 71 Disciplina 48, 52, 53, 54, 55, 56, 66

Agir 9, 10, 18, 32, 34, 36, 37, 38, 40, 41, 42, 43, 47, 48, E
49, 52, 53, 56, 58, 60, 62, 64, 65, 66, 71, 72
Educação 3, 7, 29, 31, 33, 35, 37, 39, 41, 43, 45, 47, 49,
Alcance 12, 18, 19, 20, 22, 23, 24, 25, 26, 28, 39, 42, 51, 53, 55, 57, 59, 61, 63, 65, 67
47, 48, 54, 56, 62, 66, 74, 75
Empírica 9, 12, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 41, 43, 44, 65,
Análise 6, 9, 10, 13, 14, 18, 23, 47, 67, 74 71, 76
Animalidade 52, 53, 54, 55, 56 Empírico 19, 20, 23, 24, 25, 27, 40, 41, 42, 46, 65
Autonomia 39, 42, 47, 58, 64, 65, 66, 73, 77, 78 Ética 6, 9, 10, 13, 14, 19, 23, 24, 25, 26, 28, 35, 36, 45,
47, 48, 49, 55, 57, 58, 64, 66, 67, 70, 72, 75
B
Exemplo 9, 12, 14, 18, 19, 20, 22, 25, 26, 27, 30, 31,
Busca 12, 18, 19, 20, 21, 22, 24, 25, 27, 65, 72, 74 33, 34, 35, 36, 38, 41, 43, 45, 46, 47, 48, 49, 50,
51, 54, 57, 60, 61, 67, 70, 73, 74
C
Experiência 19, 20, 22, 24, 25, 39, 47, 72, 73
Capacidade 10, 36, 37, 39, 40, 42, 46, 47, 53, 54, 57,
62, 63, 64, 70, 72 F

Capaz 19, 20, 32, 33, 36, 37, 39, 40, 42, 43, 45, 48, 49, Faculdade 10, 21, 22, 25, 30, 31, 32, 34, 36, 39, 40,
53, 56, 58, 60, 62, 63, 64, 65, 72 42, 46, 53, 54, 55, 57, 63, 64, 72, 73
Caráter 13, 35, 42, 43, 44, 47, 48, 51, 53, 58, 62, 64, Filosofia 6, 10, 12, 13, 14, 15, 18, 19, 20, 21, 22, 23,
66, 72, 73 24, 25, 26, 27, 28, 36, 39, 43, 44, 45, 46, 47, 48,
Caso 13, 22, 23, 26, 30, 32, 33, 35, 38, 39, 41, 42, 44, 49, 52, 53, 58, 59, 65, 66, 71, 72, 73, 74, 75, 78
46, 48, 50, 51, 53, 54, 55, 60, 63, 75 Filósofo 6, 12, 13, 18, 19, 20, 22, 23, 24, 25, 26, 30,
Compreender 13, 22, 27, 28, 33, 34, 35, 38, 45, 59, 37, 38, 39, 40, 44, 46, 48, 49, 50, 51, 52, 54, 55,
70, 72, 74 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 72

Compreensão 6, 9, 13, 24, 27, 33, 34, 44, 62, 74, 75 Fins 5, 31, 39, 42, 43, 44, 47, 48, 57, 58, 65, 66, 70, 72

Conceitos 6, 9, 13, 14, 15, 18, 24, 28, 47, 52, 74, 75 Formação 6, 10, 13, 14, 25, 26, 28, 42, 46, 47, 48, 49,
50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 62, 63,
Concepção 6, 13, 14, 25, 26, 36, 42, 46, 47, 48, 49, 57, 64, 65, 66, 67, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 77
63, 65, 72, 73
Fundamentação 6, 18, 23, 24, 30, 31, 37, 38, 40, 43,
Condição 12, 22, 23, 24, 25, 26, 28, 32, 36, 39, 40, 41, 46, 54, 76
44, 46, 50, 52, 56, 64, 70, 72, 75
Fundamental 9, 10, 12, 13, 18, 25, 26, 40, 49, 57, 59,
Conhecimento 19, 22, 24, 33, 39, 48, 61, 64, 70, 71, 61, 62, 64, 65
73, 74
Fundamento 18, 19, 20, 21, 24, 25, 26, 33, 35, 37, 38,
Consciência 10, 33, 35, 36, 37, 40, 41, 45, 46, 57, 58, 39, 40, 41, 42, 45, 54, 57, 60
64, 65, 71
H
Costumes 6, 14, 18, 22, 23, 24, 25, 27, 30, 31, 40, 43,
46, 54, 58, 60, 61, 67, 77 Homem 22, 24, 27, 35, 36, 43, 45, 47, 50, 52, 53, 56,
Crítica 6, 18, 19, 21, 22, 23, 25, 27, 30, 35, 40, 41, 42, 57, 58, 62, 63, 65
43, 48, 52, 54, 55, 76, 77, 78 Humana 6, 9, 10, 12, 13, 19, 22, 23, 24, 25, 26, 35,
36, 37, 39, 40, 41, 42, 43, 46, 47, 48, 49, 50, 51,
D 52, 53, 54, 55, 61, 62, 63, 64, 66, 70, 71, 72, 73,
75, 77
Desejo 9, 12, 30, 31, 32, 34, 38, 39, 42, 45, 46, 52, 55,
63 Humano 9, 10, 12, 13, 14, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26,
27, 30, 32, 35, 36, 37, 39, 40, 42, 43, 44, 45, 46,
Desenvolvimento 18, 19, 26, 46, 47, 48, 49, 50, 51,
47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 60,
52, 54, 55, 56, 57, 58, 60, 62, 64, 65, 66, 70, 71,
61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 70, 71, 72, 73, 74, 75
73, 74
Determinação 14, 20, 21, 22, 23, 32, 35, 37, 39, 40, I
41, 46, 54, 55, 62, 63, 72
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT
79

Ideia 24, 32, 35, 42, 47, 56, 57, 61, 64, 65, 66, 72, 73, P
78
Paixões 9, 12, 25, 28, 36, 37, 44, 46, 54, 55, 59, 61,
Immanuel 4, 6, 9, 12, 26, 40, 45, 60, 76, 77, 78 63, 70
Inclinações 6, 9, 12, 13, 14, 15, 25, 28, 30, 31, 33, 34, Palavras 9, 18, 20, 25, 26, 32, 33, 35, 40, 43, 44, 48,
35, 36, 37, 39, 41, 42, 44, 45, 46, 47, 48, 50, 53, 53, 61, 62, 65, 74
54, 55, 56, 59, 61, 62, 63, 64, 65
Pedagogia 6, 14, 26, 27, 48, 50, 53, 54, 64, 65, 73, 76,
Instinto 50, 53, 54, 55, 56 77
Interesse 13, 27, 34, 35, 38, 41, 43, 46, 55, 59, 70, 73 Pensamento 6, 9, 12, 13, 14, 19, 21, 22, 23, 24, 25, 27,
Investigação 10, 14, 19, 21, 22, 23, 25, 40, 48 46, 47, 48, 52, 62, 64, 65, 71, 72, 73, 74, 75
Pensando 45, 56
K
Poder 20, 33, 35, 38, 54, 55, 58, 61, 62, 65
Kant 3, 7, 14, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27,
30, 31, 32, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 43, 44, 45, Possibilidade 13, 18, 20, 21, 22, 23, 25, 26, 28, 39,
47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 56, 57, 58, 59, 60, 41, 43, 48, 56, 58, 61, 64, 66, 71, 72, 73, 74, 75
61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 71, 75, 76, 77, 78 Prática 6, 12, 13, 14, 15, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25,
Kantiana 6, 12, 13, 14, 18, 19, 22, 25, 27, 30, 35, 36, 26, 27, 30, 35, 37, 39, 40, 42, 43, 44, 45, 46, 47,
39, 41, 42, 48, 49, 50, 51, 52, 55, 56, 57, 59, 62, 48, 49, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61,
64, 65, 66, 70, 72, 73 62, 63, 64, 65, 66, 67, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 78
Prático 6, 12, 13, 14, 18, 19, 20, 21, 22, 24, 25, 26, 30,
L 32, 36, 38, 39, 41, 42, 43, 44, 46, 48, 49, 52, 54,
55, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 71, 74
Lei 12, 18, 19, 22, 23, 24, 25, 35, 36, 37, 39, 40, 41, 42,
44, 45, 52, 53, 54, 57, 58, 59, 60, 61, 64 Preocupação 18, 19, 20, 23, 30, 39, 42, 43, 44, 46, 48,
49, 54, 63, 70, 71
Liberdade 14, 19, 35, 36, 37, 47, 48, 50, 51, 52, 53, 54,
57, 58, 64, 65, 66, 73, 78 Princípio 7, 12, 13, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 26, 30,
31, 32, 33, 34, 35, 38, 39, 40, 41, 42, 44, 45, 46,
Livre 14, 21, 36, 37, 46, 48, 52, 56, 57, 63, 64 48, 49, 53, 54, 55, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64,
65
M
Propósito 13, 30, 31, 32, 33, 34, 38, 40, 45, 46
Máxima 21, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 40, 41, 42, 49, 56, Própria 10, 12, 21, 26, 32, 35, 42, 43, 48, 50, 52, 53,
57, 60, 61, 62, 63, 65 54, 55, 56, 60, 63, 64, 65, 70, 72
Metafísica 6, 18, 20, 23, 24, 26, 30, 31, 40, 43, 46, 54, Próprio 13, 20, 25, 28, 36, 38, 40, 41, 42, 43, 49, 50,
65, 66, 77 54, 57, 58, 59, 60, 62, 63, 64, 65, 67, 74
Modo 9, 12, 14, 20, 23, 25, 26, 27, 30, 31, 33, 34, 35, Pura 12, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 35, 39,
36, 37, 40, 41, 42, 43, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 40, 41, 42, 43, 44, 46, 52, 61, 63, 71, 78
52, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 61, 62, 63, 64, 65, 66,
70, 71, 72, 73, 75 Q
Momento 13, 18, 19, 21, 24, 28, 40, 47, 48, 52, 54, 55,
56, 57, 62, 65, 67, 75 Querer 10, 12, 30, 31, 32, 34, 37, 38, 41, 42, 43, 48,
49, 52, 53, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 72
Moralidade 6, 9, 10, 12, 13, 14, 15, 18, 19, 20, 21, 22,
23, 24, 25, 26, 28, 30, 32, 36, 38, 39, 40, 41, 42, Questão 9, 18, 20, 22, 26, 27, 30, 33, 46, 47, 60, 64,
43, 44, 45, 47, 48, 52, 58, 59, 62, 63, 64, 65, 66, 70, 71, 72
72, 73
R
Motivo 19, 20, 21, 31, 32, 34, 35, 39, 42, 45, 46, 57,
59, 60, 61, 62, 66 Racional 9, 10, 12, 13, 22, 23, 24, 31, 35, 36, 39, 40,
41, 42, 46, 50, 54, 61, 64, 72
N
Razão 76, 77, 78
Natureza 10, 12, 13, 14, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 35, 36, Realidade 14, 20, 23, 25, 30, 74
37, 41, 42, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 61, 63, 64, 65,
70 Realização 12, 18, 22, 23, 26, 47, 48, 58, 60, 64, 73
Necessidade 18, 19, 20, 24, 25, 44, 45, 46, 52, 53, 54, Reflexão 9, 13, 14, 24, 62, 72, 74, 75
55, 56, 61, 70, 71, 72, 75 Relação 6, 9, 12, 13, 23, 30, 32, 35, 38, 42, 49, 51, 53,
55, 57, 58, 59, 61, 71
O
Respeito 9, 14, 18, 24, 27, 31, 34, 35, 36, 44, 47, 48,
Objeto 19, 27, 30, 31, 32, 33, 34, 38, 41, 45, 46 51, 52, 54, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65,
INCLINAÇÕES HUMANAS, MORALIDADE E EDUCAÇÃO
80 PENSANDO JUNTO DE IMMANUEL KANT

66, 71

Sensível 12, 13, 22, 23, 30, 34, 35, 36, 38, 39, 41, 42,
44, 46, 50, 51, 54, 61, 63, 64, 72
Sentido 10, 19, 21, 26, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39,
40, 43, 46, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58,
61, 63, 64, 65, 66, 67, 70, 73, 74
Seres 6, 9, 12, 13, 21, 25, 26, 27, 36, 40, 42, 43, 48, 50,
57, 58, 65, 66, 67, 70, 71, 75
Significa 10, 14, 18, 19, 28, 30, 31, 34, 37, 46, 47, 48,
49, 52, 54, 57, 58, 60, 62, 70, 71, 72, 73
Sujeito 19, 21, 22, 31, 32, 35, 36, 37, 41, 42, 43, 57, 58,
60, 61, 62, 65, 78
Supremo 13, 18, 19, 21, 23, 24, 26, 48, 53, 65

Universal 18, 19, 20, 21, 23, 26, 35, 37, 40, 41, 42, 44,
53, 60, 61, 65, 77

Vida 9, 12, 33, 41, 50, 55, 57, 60, 61, 63, 65, 66, 70,
71, 73, 75
Virtude 10, 20, 22, 27, 32, 35, 43, 44, 45, 47, 57, 58,
59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 73, 77
Vontade 10, 14, 18, 21, 25, 32, 33, 35, 36, 37, 38, 39,
40, 41, 42, 44, 46, 62, 63, 65
A partir da análise teórica-filosófica do pensamento Prático
de Immanuel Kant (1724-1804), oferecemos, neste livro, o
esclarecimento conceitual acerca das inclinações humanas,
moralidade e educação, bem como a compreensão das relações
entre esses conceitos na Pedagogia do filósofo alemão do século
XVIII. A filosofia prática de Kant requer a inteira supressão de
toda e qualquer inclinação ou sensibilidade humana? Como
a educação, segundo a concepção kantiana de educação, se
estabelece em relação às inclinações e à formação moral e ética
dos seres humanos? Qual é o dever da educação segundo
Kant? Abordamos aqui os conceitos de inclinações humanas,
moralidade e educação, em especial, nas obras de Kant:
Fundamentação da metafísica dos costumes, Crítica da razão prática
e Sobre a pedagogia. O que nos permite, ademais, observar a
complementaridade das obras que constituem o pensamento
prático de Kant, considerando a sua arquitetura, arranjo e
divisão.

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