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A Daniel

in memoriam
Para os homens não seria melhor se lhes sucedesse tudo quanto querem.
Heráclito
Sumário

Prólogo

OS ANOS DE APRENDIZADO DOS ALENCAR COSTA E OLIVEIRA


1. Heresia, meu amor
2. Quarta de Cinzas, 1992
3. D. Letícia
4. A graça de Abel
5. A graça de Daniel
6. Sábado de Aleluia, 2007
7. A desgraça de Benjamim
8. O último recurso
9. A porta destrancada

GLÓRIA
10. Homem que estava desaparecido é encontrado morto em sua
residência
11. Multidões
12. O frenesi de Pompônio
13. A pedra lá em cima
14. Descoberta de esquina
15. O Café Aleph
16. A volta do pastor Abel
17. Reforma
18. Jogo de cozinha
19. Comunicado aos condôminos (escrito à mão e colado no espelho do
elevador)
20. “Todo mundo no mundo é um Costa e Oliveira”
21. Formigas
22. Santinho matou aposentado, diz viúva
23. A Breve e muito concisa história da família Costa e Oliveira
24. A Igreja Global em Cristo
25. O mapa e o encontro
26. Conversa fora
27. Taberna da Glória
28. Anedota do homem vestido de século passado
29. A vida sexual das tartarugas
30. Ninguém rouba ninguém
31. Canal aberto, anteontem, 03h33 (reprise)
32. A morte de Antônio Vieira
33. Catapulta
34. Contagiante
35. Um homem sério
36. A morte de Pompônio
37. Primeira aparição do faqueiro
38. Segunda aparição do faqueiro
39. Viral
40. Benjamim desce ao inferno
41. No inferno
42. Ainda no inferno
43. Cancelamento de Nada Mais que a Verdade provoca “onda mística”
44. Urgências
45. Apud
46. Ano-Bom
47. Dia da Fraternidade Universal
48. A 117a morte de Hecateu de Mileto, o Logógrafo
49. As peripécias de Ambrósio na capital
50. Queda de energia
51. As confissões de mamãe
52. 12h22
53. Silêncio breve
54. Cozinha em jogo
55. Globo de ouro
56. O que faz o mar
57. Ruína circular
58. Inauguração
59. Todos os trens para Sodoma
60. Conceição

FUNDO FALSO
Epílogo
Prólogo

Que Ambrósio Silva Costa e Oliveira, madalenista convicto, tenha


escrito um romance composto somente de epígrafes é coisa que já não
escandaliza ninguém minimamente familiarizado com a história literária
deste país. Também não é incomum encontrar pessoas que, apesar de não
terem lido o cultuado Édipo de segunda mão (2010), sabem que o livro,
talvez o único de sua espécie, começa com um fragmento de Heráclito e
termina com as famosas palavras da oração de Renan — “Ó, abismo, tu és
o deus único”. No entanto, o fato de Silva Costa ter procurado um escritor
de menor calibre para escrever seu segundo livro foi tão chocante para
mim quanto o será para o leitor, assim que souber que fui eu o calibre
escolhido e que este, embora leve o meu nome na capa, é o segundo
romance do singular autor fluminense.
O encontro com Silva Costa — notável recluso — se deu da maneira
mais corriqueira possível: ele encontrou meu endereço de e-mail e me
propôs escrever um romance, coisa que, aliás, eu já planejava havia algum
tempo. A única condição que me impôs foi este prólogo, que, segundo ele,
serviria tanto para explicar as motivações que o levaram a me contratar
para escrever sua obra-prima quanto para dar alguma visibilidade ao livro,
visto que seu sobrenome está não só ligado ao fenômeno que é Édipo de
segunda mão como também à família que inspirou e impulsionou o
movimento madalenista. Eu ficaria encarregado de todo o resto, até
mesmo da redação deste texto preliminar, sobre o qual ele de fato não teve
nenhum controle e só lerá agora, depois de publicado. Enfim, o trato era
simples: a publicidade dele pagaria o meu trabalho, e vice-versa. Assim que
cheguei à conclusão de que o arranjo não me traria nenhum prejuízo, dei
a ele minha palavra e comecei a compor o romance que, sabe-se lá por
quê, o leitor agora tem em mãos.
Há duas razões para a aparentemente desajuizada decisão de Silva
Costa. A primeira, ele me explicou via e-mail e, como é seu costume, com
uma citação (de Cioran): “A máxima lucidez é a total inação”. Isso,
suponho, significa que a única saída encontrada por ele após atingir o auge
logo em seu primeiro romance foi escrever um livro propositalmente ruim
por meu intermédio e ainda assim manter sua genialidade intacta. Creio
que isso seja uma boutade tipicamente madalenista, isto é, afirmar — sem
afirmá-lo de todo — que livros intencionalmente ruins são os mais
engenhosos. No entanto, não tenho certeza; não sou teórico literário,
muito menos especialista em madalenismo. De todo modo, se me sai um
bom romance, Silva Costa pode considerá-lo seu também; do contrário,
assumo plena responsabilidade pelo fracasso.
O segundo motivo me foi explicado por meio de outra citação, esta da
própria obra de Silva Costa: “Édipo de segunda mão” — aliás, as únicas
palavras que ele realmente publicou em toda a vida. Neste contexto, o
significado não poderia ser mais claro. Entregando a mim a autoria de seu
segundo romance, e me apadrinhando no mundo literário,1 Silva Costa dá
o segundo e mais importante passo no projeto que teve início em seu livro
de estreia — escrever um texto totalmente de segunda mão, no qual o
poder de sua vontade seja quase nulo. A forma última dessa ambição, eu
acho, é a morte, mas, como já deixei claro, não sou especialista no assunto.
Em novembro de 2011, quando comecei a escrever a terceira e última
versão deste que receberia o título de Glória, Silva Costa quebrou um
silêncio de mais de seis meses e me enviou um e-mail encorajador, ao qual
anexou um texto seu, inédito e elogioso, para figurar no fim deste prefácio,
à moda do século XVII. Em agradecimento ao gesto, utilizo-o também
como epígrafe. Aconselhou-me ainda, citando o adágio popular, a não me
preocupar demais em tentar tapar o sol com a peneira. Acho que se referia
ao ofício literário em geral, não à minha demora em terminar sua obra-
mestra. Entretanto, sabendo que não receberia resposta, preferi não
perguntar se era mesmo esse o caso. Enfim, aí vai o romance; antes, o texto
que Silva Costa não publicou no Édipo de segunda mão. O inédito por si
só vale o preço do livro, indenizando o leitor pelas mais de duzentas
páginas que lhe sucedem:

Para os homens não seria melhor se


lhes sucedesse tudo quanto querem?
A. Silva Costa e O.
Victor Heringer, C. O.
Rio de Janeiro
21 de dezembro de 2012

1. Desde que aceitei a proposta de Silva Costa (em meados de 2010) até a presente
data, não me chegou a informação de que ele tenha apresentado a mesma ideia a
outros escritores.
OS ANOS DE APRENDIZADO DOS ALENCAR COSTA E
OLIVEIRA
1. Heresia, meu amor

Pois bem, será por gente que balbucia, será numa


língua bárbara que o Senhor falará a esse povo.
Isaías 28,11

“Deus é, era, gago”, murmurou a mãe ao abrir o forno e ver o pato quase
carbonizado lá dentro. Ninguém ouviu. Forçou uma tosse, pôs uma das
mãos na cintura e esperou, abanando a fumaça com o pano de prato. As
crianças e o marido logo perceberiam o cheiro de queimado.
Era a véspera do Natal de 1989. Naquele tempo, o pai ainda não tinha
deixado a barba crescer demais, porque ainda não havia lido Maiakóvski.
Os três meninos entraram correndo na cozinha, aos berros, pedindo
silêncio uns aos outros. Pararam num canto mais afastado para observar.
Sabiam o que ia acontecer. Enorme e ainda de samba-canção, o pai veio
depois, caminhando calmamente. Parou ao lado da mulher. Sorriu. As
crianças olharam para o pai e logo para a mãe, que apontou desolada para
o pato, incomível, sobre a pia:
— Deus é gago.
Os meninos seguraram o riso. Ainda não era hora.
— Era. Era gago — respondeu o marido, como sempre fazia, com os
dedos da mão fingindo bigodes, estufando a barriga e imitando o que ele
imaginava ter sido a voz de Nietzsche.
Só então os filhos desataram a gargalhada, e daí saíram saltitando pela
sala, repetindo que Deus é, era, gago.
Era o xingamento favorito do casal. Sempre que algo dava errado dentro
de casa, Deus era gago e, depois de ter deixado isso ou aquilo acontecer
(jarros quebrados, manchas em roupas, desastres culinários etc. e etcétera),
estava morto para eles, como um filho que tivesse gastado toda a pequena
fortuna da família no jogo, forçando-os a comer frango de padaria ao
molho de laranja na ceia de Natal.
Ela e o marido tinham inventado a blasfêmia quinze anos antes, quando
ainda eram namorados. O rapaz, estudante de geografia, sempre levava um
livro para os encontros. Como era simplesmente incapaz de se decidir
quanto ao que fazer com as próprias mãos, usava-as para mostrar à moça,
estudante de letras, as reproduções dos mapas de que mais gostava. Ela
achava graça, ria, fazia perguntas bobas para ouvir o namorado dizer coisas
óbvias. Uma vez, perguntou por que o desenho dos litorais do mundo era
assim, meio abrutalhado, e ele respondeu que era porque Deus era gago.
— Gago?
— É. Gago — e imitou o que imaginava ser a voz do narrador das
Escrituras. — E disse o Senhor, qui-qui-qui: “Que as águas que estão
debaixo dos céus se ajuntem num mesmo lugar, e apareça o elemento
árido”. Não é assim que está na Bíblia? Escrito não dá pra perceber a
gagueira, mas os sinais dela estão aí pra qualquer um ver.
Ela achou graça e apertou as mãos dele. Ele passou a repetir a ceninha
toda vez que se encontravam, para que ela lhe apertasse as mãos. De aperto
em aperto, acabaram carregando a brincadeira até o altar, e do altar até o
apartamento de Copacabana, como outros casais carregam dialetos
particulares, ressentimentos ou apelidos constrangedores.
Os filhos, Benjamim, o mais velho, Daniel, o do meio, e Abel,
descobriram cedo que a frase parecia mesmo gagueira e era engraçada
porque os pais só a diziam quando alguma coisa estava engraçada.
Passaram a repeti-la sempre que algo em seu pequeno universo dava errado
também. Só não podiam dizê-la fora de casa, regra que foi instituída no dia
em que uma das mães de seus colegas de classe reclamou que o filho tinha
voltado blasfemo da escolinha.
Como são pouquíssimas as coisas que dão certo neste mundo, a frase,
dita muitas vezes ao longo dos anos, acabou se tornando um bordão dos
Alencar Costa e Oliveira. Eram raras as brigas que não desmoronavam
com a mulher gaguejando ou o marido dizendo, com voz de Nietzsche,
que estava decidido a deserdar seu criador. Naturalmente, não era um
núcleo familiar muito devoto. O casal, no entanto, não tinha nada contra
religião alguma: os três meninos foram até batizados na Igreja, como
manda a tradição. E todos tinham nomes bíblicos. Na verdade, a escolha
dos nomes havia sido aleatória, mas, assim que os pais a notaram, a
coincidência foi incorporada à lista de pilhérias mais ou menos propositais
da família. Também não era um núcleo familiar particularmente austero.
Muito pelo contrário: dinheiro, religião, o jantar, a luta armada, Cézanne,
tudo que podia virar piada, virava. E a zombaria aos poucos ia se
sofisticando, ganhando plugues, articulações internas e externas, polias e
engrenagens, até se confundir com a própria personalidade dos Alencar
Costa e Oliveira. Em 1989, já quase nada escapava. Não era raro ouvir do
pai que naquela família — de todas as coisas, a mais sagrada — nada mais
era sagrado.
O globo terrestre, por exemplo. Naquela noite, entre os muitos outros
presentes de Natal, Abel se deparou com um globo terrestre de plástico do
tamanho de um melão maduro, que acenderia se o caçula não tivesse
arrebentado o fio assim que o teve nas mãos. Daniel, sete anos, gritou que
o irmãozinho tinha destruído o mundo. O pai respondeu com o bordão
familiar, a mãe riu e os filhos gargalharam, causando uma pequenina e
sussurrante indignação nas velhas senhoras Costa e Oliveira, um compacto
grupo de doze mulheres que não tinham sido convidadas, mas apareceram
para comer. Além de uma certa d. Letícia, que vivia longe e nunca
aparecia, essas doze eram as últimas Costa e Oliveira vivas, todas tias do
marido.
A mãe avisou que a comida estava esfriando, mas o pai ficou onde
estava, de pé diante do caçula, que, sentado no chão, girava
estabanadamente o brinquedo. Mesmo após o desastre na cozinha mais
cedo, ninguém comeria frango de padaria; a ceia foi encomendada de um
restaurante no Leblon. Não havia molho de laranja.
A mãe repetiu o aviso. O pai coçou a barba, levantou uma das
sobrancelhas, depois a outra, fez um mugido com o nariz e pôs a cara mais
malvada que tinha. Ergueu os braços e, imitando o que ele imaginava ser a
voz de Deus, começou a atirar pragas de gafanhotos invisíveis no pequeno
globo de plástico. Os três garotos correram imediatamente na direção do
pai, gigantesco, peludo e gaguejante, e se penduraram em seus braços e
pernas. E foram carregados de lá para cá e de cá para lá. E repetiam rindo
o “lavai-vos, purificai-vos” que o pai dizia, estrepitoso, fazendo chover
enxofre de enfeites natalinos dos céus. Ficaram em polvorosa com a nova
brincadeira. Não comeram direito. Só foram dormir às três da manhã.
Depois do tumulto, e da ceia, as senhoras da família perguntaram o que
tinha sido aquilo. O sobrinho respondeu, sem nenhuma afetação, que
estavam brincando de Velho Testamento. As doze sorriram educadamente
e em menos de dez minutos foram embora, alegando hora avançada e
velhice. Saíram como haviam entrado: de surpresa, em massa, desejando
feliz Natal. Na portaria do prédio, o bloco de senhoras burburejou
indignado, levantou algumas de suas mãos para os céus, fez caretas com
alguns de seus rostos. Na calçada, o ruído aumentou de volume. Algumas
das bocas chamaram o sobrinho de infiel, de herege, reclamaram que o
pato estava seco, que sentiram falta de um bom molho de laranja,
comentaram o calor. Enquanto alguns braços faziam sinais para os táxis, as
bocas juraram umas para as outras que só veriam o sobrinho de novo no
dia de seu enterro. Não importava que ele e seus filhos fossem os únicos
que levariam adiante o nome dos Costa e Oliveira. Heresia era heresia. Era
heresia. As mãos fizeram raivosamente o sinal da cruz e seguiram para suas
casas.
Paz na terra para todos os seres.
Quando as crianças finalmente se acalmaram e foram colocadas na
cama, o casal, já no quarto, pôde trocar seus presentes. A mulher, que
estava começando a estudar a obra de Beckett na universidade em que
trabalhava, ganhou uma edição limitada de Watt, autografada pelo marido,
que assinou como “Sammy B.” a dedicatória em português. Ele ganhou as
obras completas de Maiakóvski, por nenhum motivo específico. Ela só
achou que ele gostaria. De fato, gostou. Logo depois, trocaram os presentes
comuns: colares, camisas, vestidos, gravatas etc. e etcétera. Os meninos,
ainda acordados, podiam ouvir as risadas e conversas abafadas pela parede
que separava os dois quartos. Sorriam, no escuro. A mãe experimentava as
roupas e desfilava para o marido, que, deitado na cama, alternava o olhar
entre a mulher e o mapa-múndi pendurado na parede atrás dela. O mapa,
comprado num leilão de antiguidades, tinha sido um presente do Natal
retrasado e provavelmente não era uma antiguidade. Mesmo assim, o casal
gostava muito de olhar para os litorais do mundo antes de dormir. Às vezes,
quando havia o típico silêncio de um dia bom que termina, um dos dois
respirava um pouco mais fundo e dizia “Você vê aonde a gente veio parar”.
2. Quarta de Cinzas, 1992

And after this our exile.


T.S. Eliot

“Deus é, era, gago”, disse a mãe, para quem quisesse ouvir. A frase
ecoou lá dentro. Ninguém respondeu. Fazia calor. Alguns ainda bêbados
passavam lá fora, dentro dos ônibus da avenida Brasil, cansados de tanto
Carnaval. “Gago e morto”, ela repetiu, um pouco mais alto, com os olhos
cravados no marido, que, coincidência ou não, estava no caixão, afogado
até o pescoço numas flores brancas vagabundas, encomendadas por sabe-se
lá quem. Não sabia quem tinha cuidado do velório, do caixão, do enterro.
Os três meninos, sentados e arrumadinhos, estavam no fundo da capela de
número 8, sob a guarda de algumas das senhoras Costa e Oliveira, que
ficaram encarregadas de distraí-los. O pai queria ser cremado. Não foi.
Quando o padre chegou, esbaforido e desculpando-se pelo atraso —
trânsito, Rio de Janeiro, Carnaval etc. e etcétera —, viu umas sobrancelhas
tão raivosas na cara da mulher que, coincidência ou não, passou a gaguejar
de nervoso. Descobriu na hora que aquela era a viúva e, com medo de que
ela começasse a gritar e a ofender deus e o mundo, rapidamente deu início
à cerimônia. Não era a primeira vez que um escândalo se anunciava assim,
de sobrancelhas angulosas e defunto de meia-idade.
— A-alegrai-vos e exultai, porque é grande nos céus a vossa recompensa.
Não houve escândalo. A mulher simplesmente baixou a cabeça e ouviu
o que o padre tinha a dizer. Vez ou outra, soluçava. Muita gente apareceu:
colegas professores, parentes distantes, os barbados amigos do marido, as
amigas dela, pessoas desconhecidas. E todos solícitos, cara de velório.
Alguns pareciam sinceramente tristes. Não era o caso de reclamar.
Ninguém despenca de suas casas até o cemitério do Caju para
testemunhar um ataque de pelanca. E, afinal de contas, não era uma
tragédia tão enorme. É claro: três filhos pequenos, trabalhando fora e tudo
o mais, mas não ficaria desamparada. Eram os anos 90; mulher quase
nenhuma ficava desamparada. E tinha o dinheiro do seguro. E tinha a
família do marido para ajudar. E ainda era jovem, bonita. Como disseram
as senhoras Costa e Oliveira, podia casar de novo. Casar de novo. “O mais
velho é a cara dele”, uma delas chegou a dizer, ali mesmo, apontando para
o caixão aberto.
Gago, decididamente.
Até porque Benjamim não se parecia em nada com o pai. O marido,
vivo, tinha a cara dos que não se interessam muito pela vida como ela é, o
sorriso amigável dos céticos, a simpatia dos descrentes. O menino não, o
menino tinha cara de susto. Chorou ao nascer como todos os outros, mas
quando parou o rosto conservou a expressão de espanto. Seu filho mais
velho tinha olhos muito grandes, a boca estava sempre entreaberta. Um
respirador bucal, segundo o pediatra. Por isso a lentidão quase irritante em
reagir aos estímulos externos. No futuro, o garoto poderia ter problemas de
postura, de atenção, de apetite. Seria presa fácil para os mais diversos tipos
de virose. Daniel e Abel, por outro lado, eram sadios, perfeitos. Sem
problemas, segundo o pediatra. Mas amava os três igualmente, dizia a si
mesma quando saía do consultório.
Não quis pensar em mais nada.
Peculiares, as coisas que passam pela cabeça das pessoas durante um
velório. Um velho amigo do marido, num canto da capela, parecendo que
se pegava forte com Deus pela alma do finado, na verdade aproveitava o
ambiente religioso para rezar pelo bom resultado do Flamengo x Santos do
sábado seguinte.2 Algumas senhoras pensavam no calor e em reumatismo.
Abel, o filho mais novo, sentia saudades do seu globo terrestre, que tinha
ficado em casa. Daniel, o do meio, detestava usar aquela gravata apertada e
não entendia direito o que estava acontecendo. Benjamim, sentado ao lado
de uma prima adolescente, estava perdido em meditações metafísicas.
Contou nos dedos: doze. Tinha doze anos, já. Era grandinho. Descobriu
sozinho que aquela não era hora de dizer que o Deus é, era, gago, porque
o papai estava morto também, e não era engraçado, mesmo ele não
sabendo o que pode dar de mais errado no mundo que o papai ir morar
com papai do céu, que é o Deus também. Estava um calor danado com
essa gravata e esse jaquetão. Algumas pessoas disseram que ele era agora
homenzinho, o homem da casa. A prima de vez em quando abraçava e
dizia que tudo ia ficar bem, e os peitos dela amassavam na cara dele. Num
desses abraços, o menino pensou que era esquisito o Deus ser gago e estar
morto ao mesmo tempo. Tinha aprendido na escola que o Deus é, ou era,
uma pessoa só e também é (era?) três. Mas qual delas estava morta e qual
era gaga, ele não sabia. E ainda sobrava uma (um, dois, três, contou nos
dedos), que talvez estivesse viva e não falasse errado. Talvez fosse a pomba
branca, que também é o Deus, mesmo sendo um bicho que a gente
conhece. O padre estava ali também, gaguejando e vivo, então podia ser
ele. Quis perguntar para a prima, mas ela já era grande e por isso tinha ido
lá fora fumar cigarro. Talvez ele tivesse que fumar cigarro também, agora.
— V-vi-vinde em seu auxílio, santos de Deus.
Ninguém sabia dizer ao certo a causa da morte do marido. As senhoras
da família diagnosticaram o de sempre: morreu de desgosto. Esta era a
única real tradição dos Costa e Oliveira: morrer de desgosto. Outras
famílias fazem festas memoráveis, se reúnem todo domingo para almoçar
ou são conhecidas no ramo da odontologia, mas os Costa e Oliveira não.
Os Costa e Oliveira se reconheciam pelo fato de morrerem todos de
desgosto. Contraíam uma tristeza qualquer, que zombava tanto da
medicina avançada quanto do século XX, e em dois tempos morriam dela.
Era uma espécie de maldição, mas tinha a virtude de unir a família num
único sentimento. Alguns morriam de amores, outros de bilhetes de loteria
não premiados, outros ainda de uma substância misteriosa que as tias mais
velhas chamavam de bile preta e que magoava as pessoas. O marido tinha
morrido de Maiakóvski, segundo a maioria das velhas, apesar de o atestado
de óbito rezar infarto agudo do miocárdio.
Em 1990, ele leu a obra completa do poeta russo e, no ano seguinte,
começou a degringolar. Deixou a barba crescer até a beira do ridículo,
emagreceu muito, parou de brincar de Velho Testamento. “É preciso ser
bom”, dizia aos filhos, repetia aos vizinhos, repetia aos filhos, repetia à
mulher. “É preciso ser bom”, repetiu durante todo o ano de 1991,
solenemente, às vezes só para quebrar um silêncio. Ligava para as tias,
coisa que antes não costumava fazer, e recitava versos de Maiakóvski,
explicando depois de quem se tratava. Em dezembro, com a dissolução da
União Soviética, adotou um novo lema: “Deus, que será de ti quando eu
morrer?”, e repetia isso sempre que lhe dava na veneta, à mesa do jantar,
ao telefone com as tias, na sala de aula. Seus alunos achavam
divertidíssimo; alguns deles apareceram no velório. Em 1993, o professor
doutor Costa e Oliveira teria votado pela monarquia, mas morreu antes.
Antes, foi para o Carnaval fantasiado de fim de mundo. A causa mortis era
com certeza a Terça-Feira Gorda, sussurravam algumas das senhoras Costa
e Oliveira. Mas ele morreu mesmo foi de Maiakóvski, retrucavam outras.
Outras ainda afirmavam com toda a segurança, entre dentes, que o homem
tinha era morrido de comunismo. Um desgosto tremendo, o comunismo
— e fechavam os olhos, fazendo cara de condolência.
— … o eterno descanso, n-no-nos esplendores da luz perpétua.
Que era preciso ser bom. Papai dizia isso, e muito. E agora o papai não
estava mais vivo, não estava mais não. Mas ele era adulto agora, tinha que
cuidar da mãe e dos irmãozinhos. Por isso não chorou, nem quando
pegaram na mão dele e levaram para perto do papai e ele passou a mão na
mão dele, que não estava gelada nem nada, só um pouco azul-brancona. A
prima voltou e dessa vez não abraçou porque ficou com o rosto virado para
o outro lado por um tempinho. Depois o olho dela olhou para ele e estava
vermelho agora. Muito calor, muito. A roupa com gravata apertava o
pescoço e a garganta acabava tendo vontade de chorar, mas era só por isso,
por causa da gravata.
A prima deu outro abraço quando estavam andando pela estrada de
pedrinhas do cemitério. E ficou assim, abraçada. Os amigos do papai
carregavam o caixão e falavam rindo uns para os outros, mas estavam
muito tristes. O mais barbudo de todos fumava cigarro e falou “Esse puto
me dá trabalho até quando morre”, e os solavancos faziam cair as cinzas na
tampa de madeira. Ele já sabia o que era “puto”, mas não achou
engraçado. Aí ele perguntou para a prima por que é que o Deus é, era,
gago. Ela respondeu que os gagos cantam muito bem, porque achou que
ele era quem era gago ou porque não sabia o que falar mais. A gravata
apertava tanto, tanto que ele teve que chorar por causa dela. Era só por
causa da gravata, ele disse, entre um soluço e outro, e a prima apertou
também o abraço. Os peitos dela amassavam agora a orelha e a bochecha
dele, e ele pediu desculpa porque molhou o vestido dela. A prima falou
que não tinha problema nenhum.
Benjamim não sabia nada de gente que era gaga. Tinham dito para ele
que ele agora era o homenzinho da casa. Ele tinha que ser bom, disse para
a prima, que apertou ainda mais e começou a chorar também, só que sem
fazer nenhum barulho. Ele se sentiu esquisito na barriga, e, quanto mais a
prima apertava o abraço, mais ficava esquisito. Ela era molenga, os braços e
os peitos dela. Depois, a prima soltou os braços, virou o rosto e andou mais
rápido que ele. A prima era muito branca e tinha o cabelo muito preto,
mas muito preto mesmo. Os gagos cantavam bem, ela tinha falado. Ela já
estava lá na frente quando parou para fumar cigarro de novo. A roupa dela
tremelicou quando ela pisou o pé no chão e parou, a saia do vestido preto
tremeu, molenga, e ele se sentiu muito, muito esquisito na barriga. O
Deus estava cantando; ele achou que era isso.
Cantava bonito.
— Senhor, dia sem ocaso e fonte de misericórdia infinita, fazei-nos
recordar sempre como é breve a nossa vida e incerta a hora da morte. O
vosso Espírito Santo dirija os nossos passos, para que vivamos em santidade
e justiça, para que, depois de vos servirmos em comunhão com a vossa
Igreja, iluminados pela fé, confortados pela esperança e unidos pela
caridade, entremos todos na alegria do vosso reino. Por Cristo, nosso
Senhor…
— Amém — responderam as boas senhoras da família.

2. A partida terminou com o placar de 2 a 0 para o Santos. O amigo, flamenguista e


desolado, só então pôde enfim chorar pelo defunto.
3. D. Letícia

P: Qual a vossa posição entre os Espíritos?


R: Estou entre os entediados.
P: Mas isso não forma categoria…
R: Entre nós, tudo forma categoria.
O Céu e o Inferno

Depois da morte do sobrinho, as senhoras da família Costa e Oliveira


foram morrendo também, todas as doze com seu desgosto particular,
nenhum deles relacionado ao defunto. Quando a décima segunda morreu,
em janeiro de 1994, a décima terceira, d. Letícia, se esforçou para não
chorar. Chorar a morte da última irmã era abrir a porta ao desgosto, e
desgosto, no caso dos Costa e Oliveira, era a morte. Não foi um esforço
extraordinário: há quase uma década não tinha contato com as irmãs ou
mesmo com a família do sobrinho, de cuja morte, aliás, só teve notícias
meses depois do velório. Nas treze ocasiões, lamentou sem lamentar e
seguiu em frente.
D. Letícia vivia numa pequena chácara no município de Santa Maria
Madalena, conhecido por ter o terceiro melhor clima do Brasil. Em 1994,
contava setenta e um anos de idade. Era muito magra e tinha o rosto
ossudo e enrugado, razão pela qual parecia estar sempre sorrindo. Sua
única companhia era uma empregada ainda mais velha, Conceição, que
morava por perto e todos os dias ia fazer o almoço e espanar com uma
lentidão admirável os milhares de livros da casa, enquanto d. Letícia lia ou
escrevia nervosamente nos muitos cadernos que mantinha. Na manhã em
que ficaram sabendo que a última irmã havia morrido, Conceição
perguntou se a patroa não estava triste. Esta, sem levantar os olhos do
caderno que tinha diante de si, respondeu que não via motivo algum para
tristeza:
— O mundo há de ser pleno de senhoras, pois essa é a lei — disse,
como se estivesse lendo. — Não duvide: entre 1992 e hoje, outras doze
mulheres já envelheceram com o único intuito de substituir aquelas que se
foram.
A empregada fez “ughrrum” com a garganta, arqueando a coluna e
balançando a cabeça negativamente no processo. Riu, mas, como d.
Letícia não retribuiu o riso, parou de rir. Então, deu meia-volta e foi tirar o
feijão do fogo, com a cara dos derrotados. Não gostava muito das coisas que
d. Letícia dizia, porque eram quase sempre assim, difíceis de entender.
Nunca sabia direito se era para rir ou não, mas quase sempre achava que
não. Como a patroa de vez em quando falava esse tipo de coisa e
gargalhava, Conceição se confundia. d. Letícia era uma mulher muito fora
do juízo, a velha achava. Mas era boa gente. Tinha ensinado Ambrósio-
seu-neto a ler e a escrever, a fazer conta e a colorir livros que eram de
colorir. Além do mais, não fazia mal a ninguém, só lia e escrevia. O tempo
todo escrevendo e lendo, lendo e escrevendo. Além do mais, pagava
sempre em dia.
Conceição nunca perguntou o que tanto d. Letícia escrevia nos
cadernos.
4. A graça de Abel

Things fall apart; the centre cannot hold.


Yeats

O bordão “Deus é, era, gago” perdeu definitivamente a graça em


outubro de 1994. A mãe fez o que pôde. Tentou seguir a tradição e fazer o
teatrinho sempre que um copo se quebrava, um filho tirava nota baixa ou
voltava chorando da escolinha no dia dos pais, mas, sem o marido, o
verdadeiro protagonista, a cena não surtia tanto efeito. Ela simplesmente
não sabia imitá-lo imitando os bigodes e a voz de Nietzsche: embaralhava-
se com os dedos, engrossava a voz mas se esquecia do sotaque alemão (ou
fazia o sotaque mas se esquecia de engrossar a voz), trocava a ordem dos
verbos… Nos primeiros meses, os meninos riam da falta de traquejo — e
repetiam o bordão, para deixar claro que a mãe estava fazendo tudo errado
—, mas aos poucos foi ficando claro que ela era incapaz de interpretar dois
papéis ao mesmo tempo.
Num dia qualquer daquele outubro, no momento em que se deu conta
de que estava gaguejando palavras desconexas, com os dedos das duas
mãos balançando na frente da boca, enquanto Daniel e Benjamim se
atracavam violentamente no chão da sala sem nem perceber sua presença,
resolveu nunca mais tentar. Somente Abel, dez anos, sentado num canto
com o globo terrestre de plástico nas mãos, ria da mãe. Daniel, que aos
doze já era bem maior e mais forte que Benjamim, com um só braço o
mantinha deitado de costas para o chão, e usava o outro para acertar socos
rápidos nas costelas e no pescoço do mais velho. Não dizia nada, não
xingava. Benjamim suportava os golpes sem nem gemer. Tinha quatorze
anos, já; era um homenzinho.
O riso do caçula e a voz gaguejante da mãe eram os únicos ruídos
humanos da casa. Mas, de súbito, a voz calou. Daniel, percebendo o
silêncio, deixou um soco suspenso no ar. Os dois olharam para a mãe, que
veio na direção deles, ainda com as mãos na altura da boca. Brigavam pelo
direito de posse sobre um boneco que seria de Abel, se o caçula tivesse
outro interesse além de seu globo terrestre. O brinquedo estava esquecido
havia semanas, jogado numa prateleira, mas, no instante em que
Benjamim o tomou nas mãos, Daniel decidiu que era dele. Depois de
alguns minutos de discussão, um empurrou o outro, o outro retrucou com
um beliscão etc. e etcétera.
As mãos da mãe despencaram da altura da boca e acertaram em cheio os
braços dos dois meninos. Daniel e Benjamim começaram a chorar. Abel
também, de susto. A mãe gritou que Deus é, era, gago para calar a boca do
caçula e puxou os outros dois pelas orelhas até o quarto, gaguejando de
raiva que Deus é, era, gago.
Na única vez em que Daniel e Benjamim apanharam, e bastante, a
única coisa que ouviram foi o famoso bordão dos Alencar Costa e Oliveira
repetido nas mais variadas entonações. Deus é, era, gago, dizia a mãe,
furiosa, e estapeava a perna de um. Deus é, era, gago, dizia com o tom de
quem não sabe mais o que fazer para acalmar os filhos, e apertava o braço
de outro. Deus é, era, gago, gritava olhando para o alto, como se
perguntasse aos céus o que ela tinha feito para merecer aquilo. Deus é, era,
gago, sussurrava, os dentes cerrados com força, tentando se controlar. Deus
é, era, gago, berrou com o boneco que tinha causado a briga, logo antes de
atirá-lo pela janela.
Depois, trancou-se no banheiro e chorou durante três horas, decidida a
só sair dali quando o marido, e Deus, voltasse do mundo dos mortos.
O marido continuou morto, e o bordão foi raramente repetido pelos
Alencar Costa e Oliveira, a não ser em momentos nos quais não ter graça
era justamente a graça do momento. Em abril de 2000, porém, o Deus,
redivivo, regressou ao apartamento de Copacabana. Por obra de Abel.
Era um domingo. Almoçavam. Na época, o caçula tinha dezesseis anos.
Brincava distraidamente com a comida no prato e de vez em quando
olhava para o globo terrestre de plástico, já muito desbotado, em seu colo.
Sempre se voltava para o brinquedo quando estava triste. Àquela altura, os
litorais, nomes e fronteiras pintados no globo estavam quase invisíveis, mas
Abel se recusava a jogá-lo fora.
Os irmãos e a mãe sabiam o motivo da tristeza:
— Outras meninas vão aparecer — disse Daniel.
— E vão durar mais que duas semanas — Benjamim disse.
Silêncio longo. Ruído dos talheres nos dentes, nos pratos. O caçula
estava prestes a chorar. A mãe mudou de assunto:
— Já decidiu o que vai fazer de faculdade, filho?
— Teologia — respondeu, a seco.
Daniel, Benjamim e a mãe engasgaram, tossiram e foram forçados a
engolir o “Deus é, era, gago” que subiu à boca dos três como um refluxo.
Abel pediu licença e se levantou, dizendo que queria se tornar pastor
evangélico:
— Vou me entregar a Deus — disse, atirando dramaticamente o globo
no sofá.
Ao ouvir isso, sem saber se era uma piada ou não, a mãe repetiu pela
última vez as famosas palavras. Todos riram aliviados, menos Abel, que,
hormonalmente furioso, foi bater portas pelo apartamento. Silêncio.
Voltaram a comer sem comentar nada.
A reação de Abel, mais do que qualquer outra coisa, foi o que os deixou
confusos. O caçula deveria saber que a resposta da mãe não tinha sido uma
ofensa, porque não existia ofensa naquela casa, porque tudo era
brincadeira. Daniel e Benjamim, apesar de suas fases terríveis de buços e
rompantes adolescentes, sempre foram capazes de triturar, apontar e
zombar, inclusive e sobretudo de si mesmos, como era da personalidade
familial. Abel, porém, não tinha essa habilidade. Parecia ser imune à
atmosfera de constante zombaria que a mãe supunha ser o que mantinha a
família unida e, por esse motivo, dedicou tanto tempo e energia para
manter depois da morte do marido. Quase sempre conseguia fazer com
que tirassem boas notas, por exemplo, chamando-os de burros ou de muito
inteligentes em tom sarcástico. Se as notas ruins persistiam, eles zombavam
da péssima educação que os pais lhes deram, ela punha a culpa nos genes
do falecido, todos caíam na gargalhada e assim a família tocava a vida. O
risonho sistema funcionava com os mais velhos, mas não com Abel, talvez
por ser o mais novo, o que menos tinha lembranças do pai.
— Você é a cara da sua tia-avó — a mãe gritou, fazendo rir os outros
dois filhos.
— Qual delas? — respondeu o caçula, também gritando, de dentro do
quarto.
— Tanto faz!
Risadas.
Então, Abel voltou à sala, pôs a mão no ombro de qualquer um dos
irmãos e explicou, muito calmamente, que todas as criaturas de Deus são
únicas.
5. A graça de Daniel

Um príncipe, para captar a afeição de seus súditos,


deve também usar de artifício.
Ciropédia

— Os filhos têm o ótimo costume de crescer — disse a mãe, desolada,


para a sala vazia, horas depois de Daniel sair de casa para ir morar num
apartamento gigante no Leme, com uma mulher linda e um emprego.
Benjamim, trancado no quarto com seu computador, não ouviu.
Abel tinha sido o primeiro a ir embora. Assim que foi ordenado pastor,
resolveu viajar para a África como missionário do Cristo, e lá se casou com
uma americana igualmente neopentecostal. De duas em duas semanas,
religiosamente, mandava cartões-postais e cartas à família, narrando em
detalhes suas peripécias em Angola, Cabo Verde e Moçambique. Seu
trabalho, segundo contava, se resumia a oficializar casamentos, pregar a
palavra de Deus e ajudar os carentes. Escrevia limpo e sério: as cartas não
continham nenhum dito espirituoso, nenhuma piscadela irônica,
nenhuma anedota curiosa, nenhum salto, nenhum erro. Nem parecia filho
do pai. Quase sempre assinava como “Abel, filho do homem”, mas a mãe
tinha plena certeza de que era uma piada involuntária. De qualquer modo,
parecia estar feliz, de uma felicidade caligráfica e que nunca saía das
linhas pautadas. Deixou o globo terrestre no Brasil.
Na ausência do escandalizável caçula, o apartamento de Copacabana
voltou a ser mais ou menos o que era quando o pai era vivo. À noite,
Daniel, Benjamim e a mãe sentavam à mesa para jantar e zombavam dos
acontecimentos do dia, das sanguinolentas notícias cariocas, uns dos
outros, de Abel, do falecido. O filho mais velho tinha herdado muito do
pai: absolutamente nada lhe escapava, e sabia sustentar a galhofa por dias,
meses a fio, sem se tornar excessivo. Quando uma piada estava prestes a
morrer, Benjamim achava algo inusitado nela e dava vida nova ao gracejo.
Era capaz de dobrar, desdobrar e redobrar a língua como ninguém. Aos
vinte anos de idade, havia superado o pai em crueldade e engenho.
O do meio, por outro lado, compensava a falta de imaginação com uma
memória assombrosa, mas era incapaz de se lembrar de piadas que não
fossem de cunho racista, homofóbico ou misógino, o que depois de um
tempo tendia a ficar cansativo. Como não se destacava nas rodas de
zombaria dos Alencar Costa e Oliveira, dominadas prodigiosamente pelo
irmão, logo desistiu e foi procurar outras áreas em que poderia ter sucesso.
Formou-se em administração e conseguiu vaga numa empresa dedicada ao
comércio exterior, na qual passou de assistente de transações a gerente
geral em poucos meses. O cargo novo pagava o triplo, e pelo exercício da
mesma função: supervisionar a entrada e saída de contêineres do porto do
Rio de Janeiro. Em reuniões privadas, seus superiores creditavam a
meteórica ascensão de Daniel à sua fascinação pelo mar. Em geral, os
contêineres eram carregados de motocicletas, máquinas para indústrias
diversas e sandálias Havaianas. Mas às vezes não. Às vezes, Daniel topava
com um ou outro carregamento de cocaína, ocasiões em que costumava
tirar os óculos escuros para limpar as lentes na camisa e contemplar o mar,
tão lindo, lá longe.
Foi o segundo a sair da casa da mãe. Comprou o apartamento no Leme
(à vista) e casou-se com a filha do vice-presidente da empresa em que
trabalhava, uma garota de muitos anéis e cachecóis chamada Ana, que
teve, em 2006 e provavelmente com ele, um filho batizado de Benjamim.
Segundo dizia quando visitava o apartamento de Copacabana, amava sua
mulher e sua mulher o amava. E o filho era um orgulho, o trabalho era
gratificante, a família era a coisa mais importante do mundo etc. e etcétera.
Quando Ana estava presente, Benjamim e a mãe se esforçavam para não
zombar da engravatada vida de Daniel; quando não estava, zombavam,
mas ele sabia que não era por mal. Às vezes, ensaiava uma autodepreciação
leve para agradá-los. Na casa dos pais de Ana, entretanto, chamava o sogro
de “pai”.
— O urso abraçou um — disse a mãe, uma noite, à mesa com o filho
que tinha sobrado —, e então ficaram dois.
Benjamim, cara de susto, riu.
6. Sábado de Aleluia, 2007

And the mome raths outgrabe.


Carroll

Os quase dois anos que Benjamim e a mãe passaram sozinhos no


apartamento de Copacabana foram o ápice da graça familiar, enquanto
Abel buscava graças de outra natureza e Daniel vivia sua vida
aparentemente sem nenhuma.
Benjamim se formou em museologia, não se sabe ao certo o porquê, e
não arrumou um emprego na área. Desenvolveu propositalmente um caso
de insônia crônica, por motivos obscuros, e uma obsessão por mapas, em
homenagem ao pai. Convencido de que a intenção do falecido era educar
os filhos para que fossem artistas (livres, loucos etc. e etcétera), dizia-se
artista plástico. Pintava telas a óleo, desenhava e produzia o que ele jurava
ser videoarte. Mentia a si mesmo e aos familiares dizendo que tinha um
público modesto — mas fiel —, que acompanhava sua carreira pela
internet. A internet, dizia, era o futuro. Nas vezes em que Abel avisava que
estaria de passagem pelo Rio, cobria as paredes do apartamento com
retratos de mulheres nuas, cenas de sexo, desenhos de genitália e ditos
obscenos. Abel desmarcava sempre suas visitas, e Benjamim apagava tudo.
Tinha algum talento, segundo a mãe.
Daniel costumava visitar os dois nos fins de semana. Em ocasiões
especiais, levava a mulher e o bebê, pedindo antes, pelo telefone e pelo
amor de Deus, que “maneirassem na zombaria”. Ana estava habituada às
piadas dele, explicava, às piadas que todo mundo conta, mas não às da mãe
e do irmão, que não faziam nenhum sentido e não tinham graça, às vezes
muito pelo contrário. Na casa dos pais dela, nada de estranho acontecia,
ninguém falava nada fora do normal. Por que eles também não podiam
fazer um esforço? E reforçava: por quê? Quando quem atendia a ligação de
Daniel era a mãe, ela prometia não pôr nada de inusitado na comida,
prometia se comportar etc. e etcétera. Quando era Benjamim, este dizia
que Ana já era parte da família, que ele não tinha por que se preocupar, e
soltava uma risadinha maléfica.
Na Sexta-Feira da Paixão de 2007, Daniel telefonou às onze da noite.
Mulher e filho já estavam dormindo. A mãe atendeu e ouviu
pacientemente que o almoço de Páscoa seria na casa dos pais de Ana e
que, portanto, só poderiam visitá-los no sábado. Não tinha problema, ela
disse. Já sabia. Comeriam filé de tilápia ao molho tártaro, ela disse. Riu.
No meio da risada, a voz de Daniel assumiu um tom grave e perguntou se
eles podiam maneirar na zombaria, só aquela vez. É divino, a mãe
completou, referindo-se à tilápia. Só dessa vez, ele repetiu, e apelou para
Abel, que supostamente chegaria ao Rio de Janeiro na manhã de sábado e
almoçaria com a família:
— A esposa americana vem também. O que ela vai pensar?
— Não vai pensar nada, filho. Ela nem fala português.
— Mesmo assim. Maneirem um pouco.
— E é capaz dele nem vir. Não ligou, não deu sinal de vida.
— Como sempre…
— Pois é — suspirou a mãe. — E o Bê tinha uma surpresa pra ele…
Silêncio breve.
— Aquele terno azul-marinho ficou aí na sua casa? Queria usar ele no
domingo — Daniel disse, mais para dar a conversa por encerrada do que
pelo terno.
— O terno, seu pai está usando.
No sábado, Benjamim os recebeu com a usual cara de susto. Vestia
camisa social, gravata e um capacete de legionário romano. Sorriu,
abraçou o irmão e a cunhada, deu um beijo na testa do sobrinho que
levava seu nome. A mãe estava na cozinha, dando os últimos retoques na
tilápia, com um vestido que deixava os ombros à mostra. Na cabeça, um
capacete idêntico ao do filho, reprodução fiel dos elmos romanos do fim da
República, em metal. Daniel conteve o desespero: pelo menos não
estavam completamente fantasiados. Ana, depois de cumprimentar a sogra
e notar que ela havia feito uma tatuagem na omoplata, disse gentilmente
que, se tivessem avisado, teria aparecido de Maria Madalena. As duas
riram, ainda segurando as mãos uma da outra.
Daniel, como se ninguém estivesse trajando capacetes, perguntou onde
estava Abel, embora já soubesse a resposta. Benjamim baixou a cabeça e
olhou para o que havia escrito na parede da sala, uma espécie de prelúdio
à sua obra mais imponente até então, intitulada “Gomorra”, um mural
pintado nas paredes do quarto que havia pertencido ao irmão caçula. Era o
retrato de uma orgia na famosa cidade bíblica. A mãe respondeu que Abel
tinha ligado para avisar que não chegaria a tempo. Algum problema com
os africanos, Benjamim completou. Só poderia voltar no ano seguinte. A
mãe olhou para os próprios sapatos. Ana pediu licença e foi para um canto
da sala amamentar o filho. Benjamim tirou o capacete em sinal de respeito
e perguntou quando sairia o almoço. Na parede estava escrito o seguinte:

AN REFERT, UBI ET IN QUA ARRIGAS?

Ana cobriu o seio e a cabeça do bebê com um xale de seda e perguntou


o que a inscrição queria dizer. Benjamim respondeu que era uma frase de
Suetônio, em latim. Daniel, que não conhecia Suetônio e para quem
qualquer frase em latim só podia ser coisa de religião, suspirou aliviado.
Ainda tinham algum respeito pelo dia santo, pelo menos. Os pais de Ana,
sim, esses eram tementes a Deus. Nem comiam carne durante a Semana
Santa. Ana passou o indicador na sobrancelha. Nos dedos, dois anéis.
Colar de pérolas. No domingo, o almoço seria penne ao molho branco, o
sogro lhe dissera mais cedo ao telefone. Daniel fingiu tristeza quando
soube que não haveria cerveja. Riram muito, e o vice-presidente o chamou
de “meu garoto”.
— E significa o quê? — insistiu a cunhada.
— É uma frase que o imperador Augusto, de Roma, disse para Marco
Antônio. Quer dizer… — Benjamim levou uns segundos para traduzir —
“Que diferença faz saber quem te amou?”.
Ana disse, com os olhos meio distantes e os dentinhos do filho nos
mamilos, que era um amor muito bonito, porque era um amor sem
ciúmes. Daniel comentou qualquer coisa para desviar a atenção do irmão
dos peitos da mulher. A mãe avisou que o almoço estava na mesa.
Benjamim sorriu.3
Além de tilápia ao molho tártaro, a mãe tinha preparado arroz à grega,
salada Caesar e batatas assadas. As batatas, por serem o único alimento que
não aludia direta ou indiretamente à Paixão de Cristo, foram dispostas em
forma de cruz na travessa. Assim que notou a disposição das batatas, Daniel
atacou o prato com a colher, dizendo estar com muita fome. Levou um
tapa carinhoso na mão:
— Vamos dar graças antes — disse a mãe, estendendo as mãos aos dois
filhos.
Foi o pai-nosso mais longo de sua vida. Esperava, apavorado, que no
meio da oração Benjamim ou a mãe fizessem algum comentário
sarcástico, tossissem espalhafatosamente ou parodiassem um verso.
Manteve os olhos arregalados até o amém, alternando-os entre os três, que
recitavam a reza de olhos fechados. Torcia para que o filho começasse a
chorar lá dentro, num dos quartos, e interrompesse o ritual. Ana marcava o
ritmo das palavras apertando as mãos do marido e do cunhado. Benjamim
e a mãe sorriam maliciosamente, capacetes na cabeça, como se a qualquer
momento… Amém. Nada. Nenhuma piadinha. Ana abriu os olhos e
sorriu, fazendo cara de fome. Os três Alencar Costa e Oliveira sorriram
também, por motivos diferentes: Daniel, porque enfim pôde relaxar; a mãe
e o irmão, porque achavam graça em fazer algo absolutamente comum.4
À mesa:
— Está tudo muito gostoso, dona Noemi — diz Ana.
— Obrigada, querida — responde a mãe.
— A mãe da Ana faz uma feijoada sensacional — diz Daniel.
— A empregada faz, amor.
Silêncio breve.
— Conheci uma mulher que esqueceu o nome do próprio marido, de
tanto chamar de amor — diz Benjamim.
Todos riem ou sorriem. Daniel:
— Conheceu onde?
— Na internet, onde ele conhece todo mundo que conhece — a mãe
responde.
— Não sei onde — corrige Benjamim. E, batendo com os dedos no
capacete de legionário romano:
— O amor dá problema de memória.
Daniel abocanha um pedaço descomunal de tilápia:
— Abel nunca mais vai voltar?
Benjamim olha desapontado para a inscrição na parede e pensa no
painel que pintou no quarto do irmão caçula. Ainda não sabe se vai
mostrar à família. Nem a mãe tinha visto a obra. Para resguardar o que ele
imaginava ser sua integridade artística, passou a trancar o quarto assim que
as figuras humanas começaram a tomar forma, nuas e em posições
anatomicamente improváveis, sob a chuva de fogo e enxofre mandada por
Deus. Levou três semanas para concluir o retrato da orgia. Levará outras
quatro para apagar tudo. Teve alguns problemas em descobrir como pintar
enxofre, mas, enfim, tinha ficado bom: uma multidão de corpos nus ou
seminus, escolhendo seus parceiros ou já em ação (estupros, amores,
suingues), com alguns edifícios em ruínas no segundo plano. Um retrato
feliz, apesar de Javé, que aparecia muito zangado lá em cima, em meio a
algumas nuvens negras. Ficou a cara do pai.
— Espero que volte — diz a mãe, passando os dedos pela omoplata,
onde havia tatuado, no mês anterior, um globo terrestre acompanhado da
seguinte inscrição: “no symbols where none intended” (em minúsculas).
Hoje seria a grande noite de estreia da tatuagem, mas Abel não
apareceu. Daniel e a mulher notaram o desenho, e o óbvio significado,
mas preferiram não comentar nada, nem com a mãe, nem com Benjamim,
nem um com o outro. Benjamim, por sua vez, no dia em que a viu chegar
com o ombro enfaixado, limitou-se a perguntar se ela tinha tomado um
tiro. Quando soube o que era, também decidiu ficar calado. Uma senhora
de idade que de repente faz uma tatuagem não é coisa fácil de comentar.
— Gostei dos capacetes — diz Ana, para espantar o silêncio.
Benjamim e a mãe fazem uma reverência discreta.
— Vocês deviam usar isso no Carnaval — diz Daniel, com batatas na
boca.
— Ou num concurso de fantasias — Ana diz, delicadamente.
— Quando vocês vierem de novo — diz a mãe —, a gente vai se
fantasiar.
— E na próxima vez também — completa Benjamim.
— Eu de bruxa.
— Eu de pirata.
— Eu de Bettie Page.
— Eu de bebê gigante.
— Eu de Virginia Woolf fantasiada de nobre abissínio.
— Eu de Fernando Pessoa.
— Eu de quadro de Mondrian.
— Eu de Gasparzinho.
Ana ri muito. Daniel tenta fazer um gesto para que se contenham.
Benjamim:
— No último dia, o dia do julgamento final, eu abrirei a porta da frente
completamente nu.
Daniel engasga. Ana estala em gargalhada.
— E eu não vou nem aparecer. Vou estar fantasiada de marido.
Ana para engasgadamente de rir. Daniel fica da cor do molho tártaro.
Benjamim e a mãe sorriem orgulhosos. Silêncio. Daniel olha para o irmão
e faz um gesto negativo com a cabeça. Ana se esforça:
— Mas vocês já contaram tudo. Assim estraga a surpresa.
— Então — diz Benjamim, sem desviar os olhos dos de Daniel —,
vocês já podem decidir um vencedor. Melhor: um perdedor.
— O grande perdedor foi o bom senso — diz Daniel, sem pensar muito.
A mãe e Benjamim riem. Benjamim começa a chorar, lá dentro, no
quarto.
O filho de Daniel era alérgico a praticamente tudo. Por isso chorava. O
cheiro da tinta ainda não totalmente seca do painel que cobria as paredes
do quarto ao lado, mesmo trancado, passava ao outro cômodo e ia obstruir
as vias nasais da criança, que, por instinto, abriu a boca e começou a
estridular. Ana se levantou e foi ver o que acontecia. Só então sentiu o
cheiro. Perguntou, de lá, o que era aquilo.
— Benjamim — respondeu a mãe.
Daniel se levantou de um pulo e disse que era hora de ir embora. A
mulher foi até a sala, com o ruidoso bebê no colo, e perguntou novamente
o que era aquele cheiro. Benjamim explicou que era um painel que tinha
pintado para dar boas-vindas ao irmão mais novo, mas, como ele resolveu
não aparecer, era melhor não mostrar a ninguém. Ana, ainda que o filho se
esgoelasse a poucos centímetros de seu ouvido, foi gentil o bastante para
insistir em ver a obra do cunhado. A mãe coçou seu capacete de legionário
romano. Não tinha visto o mural, mas sabia do que se tratava. Daniel
repetiu três vezes que era hora de ir. Estava tarde. A criança, o almoço no
dia seguinte etc. e etcétera. Pegou a bolsa da mulher, deu um beijo de
despedida na mãe, um meio abraço no irmão e foi chamar o elevador.
— Melhor não — disse Benjamim.
Ana fez um gesto levíssimo com a cabeça e sorriu:
— É uma pena…
No carro, Daniel conteve um suspiro e dirigiu calado até o Leme.
A mãe lavava a louça do almoço quando Benjamim entrou na cozinha e
disse que sua primeira exposição estava sendo um sucesso. Ela deu os
parabéns, sem muito entusiasmo, e seguiu esfregando uma travessa.
Benjamim, ainda com o capacete de legionário na cabeça, se sentou no
chão e, olhos muito abertos, disse que seus quadros estavam expostos numa
galeria do centro da cidade. A mãe desligou a água e se virou para o filho.
As telas dele estavam todas em casa, nunca haviam saído de lá. Cruzou os
braços e começou a sorrir de antemão.
Benjamim contou que tinha sido entrevistado pelo telejornal das seis.
Disse que dissera ao repórter que aquela era a primeira e última vez que
expunha suas obras. Contou que deu como desculpa o fato de que o pai
lhe havia ensinado que o vermelho se chamava verde, que o verde se
chamava amarelo e que o amarelo se chamava Alfred Jarry. Depois, disse
que disse que esse problema já tinha causado um acidente de carro,
porque, como se pode imaginar, ele ficava muito confuso diante de sinais
de trânsito. Nem dirigia mais, disse que explicou ao repórter. A mãe riu.
Por trauma desse acidente, no qual tinha perdido a audição do ouvido
esquerdo — continuou —, nutria um pavor desgraçado das cores verde,
vermelha e amarela. Portanto, não podia ser pintor, disse que disse ao
repórter, porque ninguém pinta só com azul, nem Picasso. Para que não
editassem sua fala, imediatamente começou a explicar a cosmologia das
cores primárias: somente três dão origem a todas as outras, como papai e
mamãe e Deus etc. e etcétera. A mãe riu. Os jornalistas que fizeram o favor
de cobrir o evento (um amigo de um amigo era amigo de alguém) ficaram
sem entender se a desistência da carreira e a razão alegada, ambas
inventadas ali na hora, eram genialidade ou desrespeito. A matéria acabou
não indo ao ar, Benjamim disse, sorrindo muito.
— Minha carreira acabou — concluiu, ainda sorrindo.
— Maravilha; agora você pode começar outra — respondeu a mãe.
— Minha carreira acabou — repetiu Benjamim, tirando o capacete de
legionário romano. E repetiu novamente, e repetiu até que não estivesse
mais sorrindo.
3. A versão de Benjamim para o trecho de Vidas dos doze césares não é literal. A
tradução fiel seria: “De fato, que importa onde e por quem levantas o teu sexo?”.
4. O costume do inusitado, como o leitor pode deduzir, torna o costume inusitado.
7. A desgraça de Benjamim

But for humor he should go mad.


Sir Herbert Tree

Como não estava mais sorrindo, chorou. De todas as expressões


humanas disponíveis para ele ali, no chão da cozinha, Benjamim escolheu
o choro convulsivo. Uma opção curiosa, pensou, apertando o próprio rosto
com as mãos. Podia ter voltado a sorrir (de infinitas maneiras), podia ter
feito cara de tédio, cara de raiva ou cara nenhuma. Mas o desespero lhe
pareceu mais acertado, justamente por ser inevitável.
A mãe, que não o via chorar desde menino, ficou parada por quatro
minutos, olhando com metade de um sorriso na boca, sem saber se o choro
era piada ou não. Só quando Benjamim começou a gritar e a bater com os
punhos no assoalho, foi até ele. Tentou um abraço, mas o filho conseguiu
se desvencilhar: levantou os braços e escorregou por entre os dela como se
de repente tivesse despencado de um lugar muito alto. Mesmo sentado na
posição em que estava havia mais de meia hora, Benjamim começou a
rolar encosta abaixo, e o barranco parecia íngreme: balançava as mãos para
desviar dos galhos que vinham zunindo em sua direção, fazia cara de dor
quando topava com uma saliência no terreno, dizia “ai” e arqueava a
coluna quando batia de costas numa pedra qualquer. Estava caindo, e
poderia ter escolhido outra coisa. Uma opção curiosa, pensou, logo antes
de perder os sentidos.
Horas depois, veio a febre. Já um pouco mais calmo, deitado na cama da
mãe e coberto até o pescoço por um edredom, olhava fixamente para o
mapa-múndi pendurado na parede à frente e sentia o corpo aos poucos
ceder sob a mornidão da febre. Tremia. A mãe estava sentada ao lado da
cama, com as mãos entrelaçadas sobre o colo e a cabeça baixa. O mapa era
uma reprodução de uma reprodução. Quando desenvolveu sua obsessão
por assuntos cartográficos, Benjamim descobriu que aquele mapa na
parede era a cópia ampliada de um mapa-múndi do século XIX, de autoria
do cartógrafo alemão Konrad Miller, composto segundo as descrições do
geógrafo romano Pompônio Mela, que escreveu, no século I, o seu De
chorographia. A mãe levantou a cabeça, ensaiou uma risadinha malévola e
disse, fingindo reproche, que era melhor ele não morrer de desgosto.
Benjamim respondeu com o sorriso de Molière interpretando Argan.5
Silêncio breve. Benjamim, apontando para o mapa:
— Naquela época, o mundo era uma ilha.
— Era, filho — e se calou, voltando a olhar para as próprias mãos.
A mãe estava velha. Não tinha envelhecido de repente, Benjamim sabia
disso, mas estava velha: muito mais magra, os dentes inexplicavelmente
menores, os braços mais frágeis. E esses anos todos de risadas tinham
deixado rugas feias nos cantos dos olhos. Hoje, quando sorria depois de
uma galhofa qualquer, seu rosto parecia ficar cadavérico e as gengivas,
enormes. A pele erodia. A mãe secava, e secar, segundo ela própria dizia, é
a forma mais tradicional de envelhecer. A mãe não era cega. A tatuagem
do globo terrestre, ainda que recente, já murchava, ganhava rachaduras,
depressões e estrias, como se a velhice estivesse cavando relevos novos na
paisagem terrestre. De vez em quando, revirava um baú de fotografias e
examinava suas fotos de menina, de mocinha, de casada. Depois, ia às
estantes e relia passagens de seus livros preferidos, mas seus livros
preferidos nunca contavam uma história coerente.
O filho mais velho também não contava histórias coerentes. Aos vinte e
seis anos ainda vivia ali, enfurnado em seu quarto, inventando uma piada
que, ao que tudo indicava, duraria o quanto durasse sua vida. Poucos
empregos, todos temporários; algumas paixões, nenhuma duradoura.
Perdia o interesse rapidamente: as coisas só importavam enquanto tinham
graça. Esgotadas as possibilidades de extrair algum humor delas, Benjamim
as abandonava. Tinha alergia à estabilidade, costumava dizer, porque a
estabilidade só ri quando quer. Entretanto, passava os dias e noites no
mesmo apartamento, fazendo as mesmas coisas, em companhia das
mesmas pessoas, alimentando o hábito de surpreender a si próprio e aos
outros. Mas uma hora a rotina desabaria sob o próprio peso. Uma hora, a
mãe descobriu, enquanto Benjamim tremia de febre e olhava para o mapa-
múndi, a piada teria mesmo que perder a graça.
— E agora você vê onde a gente veio parar — ela disse, quebrando um
silêncio muito longo. Não sorriu.
A febre durou duas semanas, entre idas e vindas. Médicos foram
chamados e diagnosticaram virose, porque era a única saída
cientificamente aceitável, porque “virose” se aplica a basicamente
quaisquer sintomas. Os remédios receitados, porém, não surtiam efeito.
Benjamim seguia de cama, e às vezes a febre o fazia delirar. Chorava, dizia
que era preciso ser bom, repetia que era preciso ser bom, e chorava, com
os olhos cravados no mapa-múndi de Konrad Miller. A mãe fazia todo tipo
de sopa, falava de amenidades com ele: notícias dos irmãos, o tempo que
estava fazendo lá fora, literatura brasileira, anedotas de quando eram
garotos etc. e etcétera. Além disso, dava conselhos de mãe: arrumar um
emprego de verdade, seguir de verdade a carreira de artista plástico,
agarrar-se de verdade a algo, amar de verdade. A febre não cedia, mas
Benjamim ouvia tudo com interesse, como se disso dependesse sua vida.
Nos momentos em que ele achava que ia morrer e começava a gritar por
ajuda, rindo ou chorando ou os dois ao mesmo tempo, a mãe apelava para
uma piada muito ruim, em geral do repertório de Daniel. A medida era
extrema, mas dava resultado: Benjamim soltava uma risadinha não muito
entusiasmada e, ao cabo de alguns minutos, se acalmava.
No fim da segunda semana, a doença atingiu o clímax. A febre
ultrapassou os quarenta graus, os intestinos inflamaram e algumas placas
avermelhadas começaram a surgir na pele. De hora em hora, a
temperatura corporal subia muito e causava alucinações fortíssimas.
Benjamim gritava que ia morrer, gritava que estava vivo demais, gritava
que estava mais ou menos vivo, alternadamente. A mãe acudia com sopas,
amenidades e piadas ruins, mas nada funcionava. Nem um sorriso de canto
de boca. O filho olhava o mapa-múndi e ora gargalhava, ora chorava. Dizia
que estava vendo Deus, depois dizia que era o diabo, depois dizia que era
papai. A mãe ligou para os médicos, ligou para Daniel. Benjamim se
levantou e, como se estivesse cego, andou pela casa tateando as paredes e
balbuciando um magote de incoerências. Tentou entrar no quarto em que
havia pintado a orgia em Gomorra, mas não conseguiu. Repetia que tudo
era engraçado, tudo era engraçado, tudo era engraçado. Sussurrou que as
formigas iam dominar o mundo. Daniel disse que estava em Angra dos
Reis com os sogros. Os médicos responderam que era só uma virose e
receitaram um banho frio. Benjamim voltou para a cama, cobriu-se com o
edredom e berrou que Deus é, era, gago.
Então, d. Noemi resolveu telefonar para Santa Maria Madalena.

5. Na primeira montagem de O doente imaginário, o próprio Molière fez o papel de


Argan, o hipocondríaco. Teve que ser retirado do palco após um violento acesso de
tosse. Poucas horas depois, morreu de tuberculose.
8. O último recurso

Seus humores, descontrolados, revoltos, em


desordem, parecem galopar através de seu corpo.
Artaud

O município de Santa Maria Madalena, além de ter o terceiro melhor


clima do país, é muito silencioso. Portanto, quando o telefone da casa de d.
Letícia tocou no meio da noite, até os vizinhos mais afastados ficaram
sabendo que alguém tinha morrido, porque o telefone só toca assim de
madrugada quando alguém morreu. Aqueles com maior capacidade
auditiva e senso de direção mais apurado logo identificaram a casa que em
breve estaria de luto, e dois deles murmuraram uma prece ao defunto antes
de voltar a dormir. Quatro ou cinco, no entanto, excitados pela novidade,
telefonaram para outros quatro ou cinco, que telefonaram para outros
quatro ou cinco. Com o estardalhaço telefônico, o município inteiro
acordou, e não demorou até que alguém ligasse para Conceição, a
empregada — d. Letícia não conversava com ninguém —, para confirmar
o boato. A velha respondeu com seu “ughrrum” característico, disse que
podia ser um dos sobrinhos-netos, vestiu-se e foi até o sítio. Nos dias
seguintes, tentou desfazer o mal-entendido: dizia a quem encontrasse pelas
ruas que ninguém da família de d. Letícia havia morrido. Mas, como não é
um município tão pequeno, a notícia se espalhou e fincou raízes. Não
adiantava desmentir. Benjamim, o sobrinho-neto, estava
irremediavelmente morto para eles.
Quando d. Letícia atendeu, ainda esfregando os olhos, demorou a
distinguir a voz de uma mulher abafada pelos gritos de um homem. Levou
mais alguns segundos para entender quem eram. O homem pedia ajuda,
dizia que Deus é, era, gago, nada era engraçado, nada era engraçado, nada
era engraçado, nada era engraçado. A mulher também pedia ajuda, mas de
forma coerente: sabia seu nome, sabia onde morava e que ela era a última
das irmãs Costa e Oliveira. No entanto, só quando a voz disse que seu filho
estava morrendo de desgosto, d. Letícia percebeu que eram seus parentes.
Acendeu todas as luzes da casa, confirmando a funesta aposta dos vizinhos,
e correu para buscar seus cadernos. Ninguém acende todas as luzes da casa
no meio da noite, a não ser em caso de morte na família. A mãe foi
enumerando os sintomas: febre alta, alucinações, choro convulsivo. Já na
sala, com os cadernos à mão, d. Letícia ouviu o sobrinho-neto soltar uma
gargalhada funda, como se estivesse conversando com belzebu e belzebu
tivesse dito algo bastante curioso.
— Tomo três, seção cinco — disse de um estalo.
— O quê? — perguntou a mãe.
— Tomo… três… seção… cinco. Seção… seção… Aqui.
Todos os trinta e cinco cadernos, ou tomos, de d. Letícia estampavam o
mesmo título nas capas: Breve e muito concisa história da família Costa e
Oliveira. Fruto de décadas de pesquisa, e à época com mais de trezentas
páginas, o trabalho consistia basicamente em anotar nome e causa mortis
de todos os Costa e Oliveira com que se deparava em documentos
históricos ou na memória, na própria e na dos outros. Além do nome, de
uma pequena nota biográfica e da espécie de desgosto responsável pelo
óbito, d. Letícia anexava em seus cadernos fotografias, recortes de jornal,
anedotas e tudo que de mais relevante encontrava a respeito do defunto em
questão. Após décadas de investigação obstinada, havia chegado até a
origem da família e da doença, o primeiro Costa e Oliveira a aportar no
país, um lusitano que, a julgar por seu diário pessoal, morrera do desgosto
de ter que viver longe da amada. Em seu testamento, d. Letícia deixava
instruções claras para que a inserissem no catálogo dos desgostosos, de
modo que ficasse completo, como manda o bom senso metodológico.
Entretanto, ainda faltava organizar as anotações para escrever uma teoria
geral do desgosto, sua suposta missão de vida, que classificaria todos os
tipos de desgosto, seus sintomas e paliativos, além de explicar por que essa
epidemia, já quase erradicada no país desde o condoído século XIX, ainda
corria larga no sangue dos Costa e Oliveira, matando com dó, mas sem
piedade. Consideraria também a possibilidade de a epidemia cruzar as
fronteiras da família e se alastrar pelo mundo novamente, como a peste
bubônica. Segundo suas anotações, baseadas especialmente na obra do
monge Mendel, isso estava prestes a acontecer. Caso nenhuma providência
fosse tomada, o mundo inteiro se acabaria em suspiros desesperados.
Em 2007, quando d. Noemi telefonou no meio da noite para pedir
ajuda, d. Letícia ainda não sabia exatamente que tipo de providência seria
necessária para impedir que a peste se espalhasse. Por ora, entretinha a
vaga ideia messiânica de que só um legítimo Costa e Oliveira (e restavam
somente quatro)6 seria capaz de salvar o mundo da doença, pois veneno
com veneno se combate. Mas estava iniciando seus estudos
epidemiológicos; era somente questão de tempo, portanto, até chegar a
alguma conclusão sólida. O que d. Letícia não poderia prever, talvez em
razão da prepotência advinda dos estudos científicos amadores, é que
morreria, dois anos mais tarde, do desgosto de não ter concluído nada.
No caso do menino, porém, sabia perfeitamente o que fazer.
Seu sobrinho-neto era um desgostoso atrabiliário. Um melancólico. Os
sintomas eram claros: estava com a pele enegrecida, tinha ardências no
estômago, insônia e gritava porque ouvia um zumbido terrível na orelha
esquerda. Na seção cinco do tomo três da Breve e muito concisa história da
família Costa e Oliveira, d. Letícia se detinha na figura do desgostoso
melancólico, o tipo de desgostoso que sofre a vida inteira, aos pingos,
contrariamente aos desgostosos explosivos, por exemplo, que morrem de
um só golpe de infortúnio (rompimento amoroso, bancarrota, acidente
doméstico, entre outros), ou aos desgostosos maníacos, que morrem por
não saber o motivo de sua tristeza. Segundo aprendeu dos textos de
Dioscórides, Alcuíno e Ficino, a melancolia era causada por um sangue
espesso e escuro, pelo ócio, pelo muito dormir de costas e pela influência
maligna do planeta Saturno. A essas causas, d. Letícia acrescentou a
fatalidade genética, que produziria um distúrbio raríssimo no cromossomo
3p25-26 dos membros da família Costa e Oliveira, o que os distinguia dos
melancólicos comuns. Assim, além do temperamento tristonho e do
zumbido de orelha (etc. e etcétera), os desgostosos melancólicos da família
eram incuráveis e possivelmente contagiosos.
Deixando momentaneamente de lado a neutralidade típica do cientista,
d. Letícia chegava a lamentar — no tomo 5, seção 3 — a sorte dos pobres
Costa e Oliveira que nasceram desgostosos melancólicos. Eram
condenados desde a mais tenra idade a sofrer de amargura, inveja,
amoralidade, prisão de ventre, arroto ácido, sonhos macabros, histeria,
demência, epilepsia, lepra, hemorroidas, misantropia, sarcasmo, sarna,
esperteza e mania suicida. Ainda por cima, tendiam à depravação e à
fraude, como no exemplo do velhíssimo Umberto Costa e Oliveira, que no
século XIX forjara um título de conde para se aproximar da filha de um
barão paulista, violando-a em sua alcova meses depois. Na carta que
escrevera antes de tirar a própria vida, Umberto punha a culpa de seu
crime em Saturno, de modo que o diagnóstico não poderia ser outro: o
falso conde era achacado de melancolia e morrera de desgosto; era um
desgostoso melancólico, portanto. E não havia muito que fazer, tanto no
caso de Umberto quanto no de Benjamim. Como todos os Costa e
Oliveira, o sobrinho-neto estava fadado a morrer de desgosto, mas seu caso
era pior, pois morreria em banho-maria, de um desgosto ininterrupto.
Poderia tentar abrandar as angústias, mas o rapaz deveria ter em mente
que, até que se descobrisse a cura, o resultado final era inevitável.
Os paliativos recomendados por d. Letícia incluíam dormir de bruços,
ingerir pouco sal, assistir muita TV, chá de bertalha ou de hortelã, fígado
de ganso, diazepam, compressas mornas na testa, retenção do sêmen e um
emprego burocrático. Aconselha-se também, disse a d. Noemi, evitar
golpes de vento, música barroca, trufas, gengibre e qualquer atividade que
estimule a memória:
— O que o seu menino precisa é esquecer de si mesmo; os desgostosos
melancólicos são ególatras de maior marca. É a natureza deles. O melhor é
que a senhora deixe ele em paz…
E, assumindo um tom profético:
— O grande problema não é a doença da família, mas o que ela vai
fazer quando começar a se espalhar, Noemi querida, porqu—
D. Noemi desligou o telefone. Apesar de ter passado anos afastada das
demais irmãs, d. Letícia tinha o mesmo desagradável hábito de só chamar
as pessoas de “querido(a)” quando estava prestes a dizer algo que ninguém
queria ouvir.

6. Os quatro Costa e Oliveira a que a personagem se refere são os três filhos de d.


Noemi e a própria d. Letícia, que não sabia que Daniel havia procriado.
9. A porta destrancada

As doenças nos fazem, nos moldam.


Talvez sejam a própria saúde.
Cendrars

Assim que pôde ficar de pé, Benjamim decidiu apagar o painel que
havia pintado no quarto do irmão caçula. Antes, porém, fotografou quase
tudo, menos a figura de Javé, zangado, lá no alto. Queria, mais tarde,
reproduzir algumas dessas cenas, em cores menos depravadas, talvez para
uma exposição conjunta que de fato existisse. E, ao passo que o “Gomorra”
desaparecia, desapareciam também os sintomas de sua doença. A febre
arrefeceu nos primeiros dias, enquanto ele raspava a tinta do painel. Como
consequência, as alucinações cessaram e o intestino se regulou. No fim da
segunda semana, quando as paredes foram cobertas pela primeira demão
de branco, as placas avermelhadas na pele voltaram à cor normal.
Calculou que seriam necessárias outras cinco camadas de tinta para
esconder totalmente a orgia. Apesar do véu esbranquiçado, alguns corpos
ainda sobressaíam, priápicos ou ninfais, nas paredes do quarto. Javé,
retratado em cores fortes, daria muito trabalho: seria o último a sumir.
De tempos em tempos, d. Noemi aparecia no quarto e perguntava se ele
estava bem. Benjamim fazia que sim com a cabeça, e só. Às vezes, a mãe
ficava sentada numa poltrona já muito manchada, observando-o mover o
rolo de cima para baixo e de baixo para cima, apagando pela décima vez
algo que havia pintado para zombar do irmão que nunca aparecia. No
começo, por força do hábito, fazia piadas cruéis, apontava lugares em que
o branco não estava fazendo efeito ou defeitos nas cenas da orgia,
perguntava se ele se considerava um muralista com problemas de
autoestima ou um pintor de paredes com o ego inflado, comparava os
traços de Javé aos traços do falecido marido, perguntava se no fundo do
poço fazia frio etc. e etcétera. A tudo, porém, o filho respondia com uma
risadinha cada vez mais frouxa, mais apagada, até que ela parou de fazer
graça e ele, de rir.
Ao cabo de um mês, Benjamim estava completamente curado.7 Havia
removido todos os vestígios do “Gomorra” e agora falava em morar
sozinho, casar, arrumar um emprego como museólogo, investir na carreira
de artista plástico. A mãe fez o que pôde para não perturbá-lo enquanto ele
gradualmente se tornava a pessoa mais enfadonha possível no mais médio
dos mundos. A casa ficou muda de risadas ácidas. As únicas que se ouviam
eram as da conveniência: pequenas desventuras domésticas, anedotas
inofensivas, carinhos. Risadas bem demarcadas, em que a graça não está
escondida sob camadas e mais camadas de ironia, mas ali, diante de todos
e resplandecente de obviedade. Benjamim já não zombava de nada, nem
mesmo nas ocasiões apropriadas. A cara de susto (boca entreaberta, olhos
salientes) ficava impassível.
D. Noemi, como boa mãe, decidiu que a culpa era dela. Benjamim
tinha chegado à beira da morte porque ela e o marido nunca impuseram
limites ao bom humor naquela casa. Acabaram por viciar o garoto em dizer
sempre o contrário do contrário do contrário, o que era engraçado, mas
podia levar uma pessoa à loucura. Abel e Daniel encontraram a saída,
sozinhos e sem maiores dificuldades, mas seu filho mais velho era um
respirador bucal, o pediatra sempre dizia. Daí a lentidão quase irritante em
reagir aos estímulos externos. No futuro, a criança poderia ter problemas
de postura, de atenção e de apetite, o pediatra dizia. Aconselhou
tratamento imediato. O mundo que Benjamim havia conhecido quando
criança, com leis que mudavam o tempo todo, tinha deixado cicatrizes
horrendas na sua cabeça. Era especialista em todo tipo de virose, o
pediatra. Benjamim foi tratado do transtorno respiratório, mas a cara de
susto nunca desapareceu. Ele poderia realmente ficar deprimido — ela
imaginava, sem querer pensar na palavra “desgosto” —, porque, se tudo era
motivo de piada, a vida perdia todo o sentido. Se nada parecia sólido, não
havia ao que se agarrar. Benjamim tinha quase morrido por ser espirituoso
demais. E a culpa era dela. Era muito competente, no fim das contas, o
pediatra.
No fim de 2007, já com uma conta no banco em seu nome e um
emprego num dos maiores museus de belas-artes da cidade, Benjamim
saiu de casa. Uma saída triunfante para dentro da vida, disse a mãe, que só
não usou seu capacete de legionário romano para dar um ar de solenidade
à ocasião porque poderia trazer más lembranças ao menino, lembranças de
um tempo menos inocente. Mas era a verdade: seu filho finalmente saía
para o mundo, como Telêmaco.8 Estava orgulhosa. Sorria muito. A conta
era conjunta, e os poucos milhares de reais depositados foram presente
dela, mas já era um passo. O emprego no museu também tinha sido
iniciativa dela, mas sem a competência do filho e a memória do finado
professor Costa e Oliveira, a quem pelo menos um terço da atual
administração devia seus próprios cargos, de nada adiantaria.
Lá embaixo, na calçada, uma mulher muito feia o esperava, arrumando
algumas caixas de papelão no porta-malas do carro. Chamava-se Natália
Falcão e era atendente de telemarketing. Os dois se conheceram pela
internet, num fórum de discussões sobre história da arte, e se apaixonaram
antes mesmo de trocarem fotos, segundo o filho. Assim que soube que
viveriam juntos, sem casamento, a mãe pesquisou na internet o tempo
necessário para que o governo brasileiro reconheça uma relação como
“união estável”. Minutos antes de sair, Benjamim contou que dedicaria
todo o seu tempo livre à pintura. A porta estava destrancada. Ele saiu para
chamar o elevador, com a última mala numa das mãos, e deu tchau com a
outra. O sorriso não tinha uma ponta sequer de malícia, o gesto, nenhuma
intenção além de dar tchau. Seu mais velho estava, enfim, curado. A união
estável não depende de uma determinada quantidade de tempo para ser
configurada. D. Noemi não pôde conter uma lágrima.
Benjamim viveria na Glória.9

7. As reações à melhora de Benjamim foram diversas. Abel mandou um cartão-postal


de Moçambique dando graças a Deus. Os médicos deram graças aos antivirais.
Daniel disse “Que bom”. D. Letícia nem telefonou para saber se o sobrinho-neto
estava vivo.
8. A comparação literária é da própria d. Noemi, que, por estar emocionada e
aposentada da universidade havia muitos anos, não encontrou outra mais adequada.
9. No bairro da Glória. Mais precisamente, num apartamento de dois quartos, num
edifício chamado Glória, pleonasticamente localizado na ladeira da Glória.
GLÓRIA
10. Homem que estava desaparecido é encontrado
morto em sua residência

Amargo campo da vida, quem te semeou com


dureza?
Cecília Meireles

O técnico em informática Evaristo Câmara dos Santos, de trinta e


quatro anos, foi encontrado morto nesta quinta-feira (09/07/09),10 dentro
de sua residência, localizada na rua Benjamim Constant, no bairro da
Glória. De acordo com a polícia, Evaristo, que estava desaparecido há três
dias, foi encontrado por um amigo, que conseguiu entrar no apartamento
em busca de pistas.
Segundo a delegada responsável pelo caso, Laura Dias (9a DP, Catete), a
vítima foi encontrada no chão, de bruços e trajando pijama, e seu corpo
não apresentava marcas de violência. Apesar de nenhum objeto de valor ter
sido roubado, a polícia não descarta a possibilidade de assassinato. De
acordo com o amigo, que não quis ser identificado, Evaristo vivia sozinho e
não tinha familiares próximos, mas era alegre e não sofria de distúrbios
psiquiátricos. “Era um homem gordo, parecia um ogro ou um troll, mas
tinha um coração de passarinho”, disse à reportagem.
A perícia esteve no local e encontrou, próximos ao corpo, um exemplar
de Um certo capitão Rodrigo, de Erico Verissimo, e diversos aparelhos
eletrônicos. O corpo foi levado para o Instituto Médico Legal (IML) para
que seja descoberta a causa da morte. Os moradores do bairro temem uma
nova onda de violência na região, que vem sofrendo há anos com a falta de
policiamento.

10. Além da morte de Evaristo, outras coisas relevantes aconteceram entre o fim de


2007 e meados de 2009: atentados a bomba, eleições para Miss Universo, para o
prêmio Nobel, bombardeios, terremotos, planos econômicos, maremotos, nascimento
de gênios, de imbecis, de chefes de Estado, além de inúmeros pousos de óvnis não
confirmados, e mortes de bons comediantes, e criação e cancelamento de programas
de TV, e diminuição do analfabetismo no país, e queima de fogos no Ano-Novo e nas
finais dos campeonatos de futebol. Também entre fins de 2007 e meados de 2009,
doutos acadêmicos decretaram o fim do futuro; outros, o fim do fim do futuro; outros
ainda, o fim do fim do fim do futuro. E muita gente se perdeu. Algumas pessoas,
entretanto, pensam nesse tempo como o mais feliz de suas vidas. Talvez por esse
motivo, escolheu-se, aqui, não narrar o supracitado período.
11. Multidões

No meio da multidão, havia uma carruagem.


Crime e castigo, VI

Notícias das pequenas batalhas, vitórias e derrotas do Departamento de


Museologia, Conservação e Restauro chegavam aos seus funcionários por
e-mail, mas já havia alguns meses Benjamim não as lia. Passava quase todo
o expediente enfurnado no minúsculo gabinete que lhe designaram, nos
fundos do museu, digitalizando e organizando documentos de mediana
importância, sem ser incomodado por ninguém. Nem o Reis — chefe do
departamento e idealizador do projeto — ia até sua sala. Quando ia, estava
sempre de passagem: dava duas batidinhas apressadas na porta, sorria e o
chamava de “filho do homem!”, em alusão ao ilustre e finado professor
Costa e Oliveira. Os demais colegas mal conheciam o projeto. Portanto,
ele não tinha por que ficar sabendo dos problemas do departamento. Não
lhe diziam respeito. Mesmo na época em que pesquisava e sugeria temas e
obras específicas para as exposições, só lia os e-mails por alto, para ter algo
a dizer no caso de topar com algum colega falante na salinha do café.
Assim que percebeu que suas sugestões não seriam aceitas, decidiu levar
sua própria garrafa térmica para o trabalho.
Mas, a descontar o café e os colegas, Benjamim não tinha do que
reclamar. Ganhava bem, trabalhava pouco, sua sala tinha ar-refrigerado e,
apesar de ser perto da cozinha, era longe de todo o resto. Durante o dia,
fazia o que devia fazer e, nas cinco horas restantes, tomava o café que
Natália preparava — alguns dias com canela, outros sem, para surpreendê-
lo —, lia o jornal,11 visitava sites na internet ou desenhava. Chegou a
pensar em levar um cavalete, algumas telas e bisnagas de tinta, mas ainda
não tivera coragem. Às vezes, apoiava os cotovelos na mesa, descansava a
cabeça nas mãos e ficava olhando a janelinha de vidro da porta. Na maior
parte do ano, a única coisa que se podia ver era a parede do corredor, com
uma mancha de infiltração que nunca mudava de tamanho. De
aproximadamente dois em dois meses, porém, passavam cabeças de
garçons, suas orelhas, bandejas com vinho, água, refrigerante e alguns
salgadinhos. Nessas ocasiões, Benjamim planejava fazer e experimentar
coisas enquanto as orelhas apareciam e desapareciam na janelinha de
vidro.
Lá fora, depois do corredor, do almoxarifado e da salinha do café, o Reis
e outros chefes de departamento davam as boas-vindas aos convidados do
coquetel de inauguração da Multidões, exposição cujo nome Benjamim só
conhecia porque o havia lido no enorme painel pendurado na fachada do
museu. Como de costume, não foi chamado a participar de nenhuma das
equipes responsáveis pela mostra e não recebeu o convite formal para o
coquetel. De qualquer modo, decidiu aparecer. O Reis estaria lá,
provavelmente o chamaria de “filho do homem!” quando o visse, e o
apelido soaria curioso aos que estivessem por perto. Alguém perguntaria o
porquê do apelido, e o apelido evocaria a memória do pai, e a memória do
pai daria início a uma conversa. Iniciada a conversa, ele seria apresentado a
outras pessoas, que o apresentariam a outras pessoas etc. e etcétera. Era
assim que funcionava.
Decidiu aparecer. Mal não faria, disse a si mesmo. Saiu da sala, cruzou
o corredor, passou pelo almoxarifado, pela salinha do café e entrou no
salão lado a lado com um garçom que quase derrubou a bandeja quando
Benjamim, ao ajustar afetadamente o nó da gravata, acertou suas costelas
com o cotovelo.
Por sorte ou outra coisa, ninguém viu. Não houve a risada de quase
desastre, mas também não se ouviu o burburinho elegante causado por
uma boa primeira impressão, como acontece nos filmes quando alguém
interessante entra em cena, burburinho que ele esperava ouvir e que
ensaiara muitas vezes na própria cabeça.
Caminhou por entre as pessoas, fingindo interesse pelas obras e
esperando o característico chamado do Reis. Tentou ficar visível, coisa que
parecia lhe custar muito, em meio a socialites, vereadores e demais pessoas
que podiam estar num coquetel às cinco e meia da tarde. Seu chefe e
colegas de departamento, porém, o ignoraram solenemente, e todos os
outros chefes e empregados de todos os outros departamentos fizeram o
mesmo, alguns porque nem sabiam que ele trabalhava ali. O único que o
cumprimentou, com um aceno de cabeça, foi o Vieira, um dos vigias.
O aceno foi menos um alívio que uma condenação. Agora que alguém
tinha percebido sua presença ali, não poderia mais ir embora. Seria admitir
uma espécie de derrota, sair cinco minutos depois de ter chegado, sem
falar com ninguém e sem ao menos olhar os quadros. Seria vergonhoso.
Que estranho, o Vieira pensaria, ao vê-lo saindo de fininho. Ele não falou
com ninguém. Pessoas falam umas com as outras, o Vieira diria consigo,
na volta para casa, subindo o morro da Providência, onde Benjamim tinha
certeza de que ele morava. É natural que as pessoas se cumprimentem,
conversem sobre as coisas da vida, ele comentaria com a mulher antes de
dormir. Se ele não queria falar com ninguém nem ver as artes, por que
tinha ido ao coquetel? E, mesmo que quase nunca o encontrasse pelos
corredores, Benjamim passaria semanas imaginando o que o Vieira estaria
pensando dele. Isso o torturaria até que o vigia fosse demitido e sumisse ou,
melhor, fosse baleado por acaso num dos muitos tiroteios que acontecem
no morro da Providência e morresse. Morto, não pensaria mais em como o
rapaz com cara de assustado era estranho.
Benjamim chegaria ao ponto de desejar a morte do homem somente
para pôr fim às próprias angústias. Logo, tanto para que o simpático vigia
não morresse quanto para não publicar uma derrota pessoal, decidiu ficar
um pouco mais. Afinal, ele, o Vieira, não tinha culpa de nada. Pegou uma
taça de vinho e foi fingir que olhava as paredes.
Numa delas, uma obra em especial lhe chamou a atenção: um mapa-
múndi do século XIX, de autoria do cartógrafo alemão Konrad Miller,
composto segundo as descrições do geógrafo romano Pompônio Mela, que
escreveu, no século I, o seu De chorographia. Benjamim leu título, data,
autor e a pomposa explicação no cartão colado ao lado do quadro, mas era
desnecessário. Conhecia bem esse mapa: havia uma reprodução dele na
parede do quarto da mãe, em Copacabana. Sorriu, pensou que não tinha
por que sorrir, mas logo depois sorriu de novo. Tinha sugerido ao Reis esse
mesmo Konrad Miller há meses, para outra mostra com tema ambíguo.
Não fazia ideia de por que seus companheiros de trabalho o ignoravam,
mas considerou a escolha do mapa uma vitória e, por que não, uma
reconciliação. Procurou no meio dos presentes o rosto do Reis, para pelo
menos sorrir de longe, em agradecimento; o homem estava decidido a não
perceber sua presença.
Então, Benjamim viu Paula, no meio da Multidões.
Era um rosto conhecido, mas ainda sem nome. Morava no edifício
Glória, e de vez em quando Benjamim a encontrava no elevador. Não se
cumprimentavam. Talvez nem o reconhecesse. Parada diante de uma tela
de Muzzi,12 parecia se esforçar muito para não mover nenhum músculo da
face, como se prestes a rir ou a chorar, o que, em termos de músculos, dá
no mesmo.
Benjamim sentiu o rosto queimar. Paula cabia perfeitamente num
vestido que, por sua vez, cabia perfeitamente no Rio de Janeiro. Tinha
cabelos muito pretos e pele muito branca. Destoava das demais mulheres.
Era a mulher mais bonita da Multidões. Era a única mulher presente.
Pensou em ir até ela, se apresentar e dizer que ambos viviam no mesmo
prédio. Pensou em parar ao seu lado e dizer, como quem diz eu te amo a
uma desconhecida, que Muzzi era frequentemente confundido com o pai,
que tinha o mesmo nome, Francisco Muzzi, mas era cego. Depois, como
já estavam no assunto “nomes”, poderia perguntar o dela, com uma
risadinha fina.
Naturalmente, não fez nada disso.
Paula dava a impressão de não ter uma esquina sequer no corpo, de ser
uma única linha reta por debaixo do vestido. Ele não teria ao que se
agarrar, pensou, se fossem para a cama. Ela virou o rosto na direção dele.
Benjamim, a cara de susto coberta por cinco ou seis camadas de pavor,
cravou os olhos à frente e deu de cara com o mapa de Pompônio Miller.
Não podia ir embora, queria desaparecer e não fazia a mínima ideia de
para onde ir.

11. A manchete do dia 10 de julho de 2009 foi a seguinte: “Expectativa de vida do


brasileiro aumenta, diz IBGE”. Benjamim não leu a notícia inteira, mas, se tivesse
lido, saberia que, mesmo com tantos assassinatos e mortes por causa desconhecida, os
brasileiros vivem em média 72,8 anos. Se tivesse lido, o rapaz ficaria intrigado com a
expressão “mortes por causa desconhecida”.
12. A tela era a Fatal e rápido incêndio que reduziu a cinzas em 23 de agosto de 1789 a
igreja, suas imagens e todo o antigo Recolhimento de N. S. do Parto, salvando-se
unicamente ilesa dentre as chamas a milagrosa imagem de Nossa Senhora, de 1789.
12. O frenesi de Pompônio

An if we live, we live to tread on kings.


Henry IV, IV, II

A Multidões causou um pequeno alvoroço no meio cultural carioca. O


mapa de Pompônio se tornou a estrela da exposição após dois críticos de
jornal apontarem a falta de coesão da mostra, “que se supunha ser uma
apresentação de obras que retratassem, ou pelo menos sugerissem”, nas
palavras de um dos resenhistas, “grandes aglomerados humanos”. O outro
usou duas vezes o termo “fraude” em sua crítica, na qual também se
perguntava, retoricamente, “quem cargas-d’água é Konrad Miller”. A este
último, o próprio Reis respondeu, em carta aberta a um dos jornais.
Apresentou uma pequena nota biográfica sobre Miller e explicou o óbvio:
um mapa-múndi é o retrato do maior aglomerado humano que existe.
Outros jornais publicaram a carta. Comentadores comentaram. O Reis foi
chamado à TV para dar entrevistas e defender sua equipe. Etc. e etcétera.
A polêmica se estendeu por alguns dias, e, apesar disso, ou justamente
por isso, a exposição foi um sucesso estrondoso de público. O nome de
Benjamim não foi mencionado, mas mesmo assim três de seus colegas
passaram a sorrir moderadamente para ele nos corredores, quando o
encontravam.
13. A pedra lá em cima

É preciso imaginar Sísifo feliz.


Camus

Três meninos brincavam, sentados na calçada em frente ao Hotel


Turístico. Da janela do 303, que dava para a ladeira, Natália examinava os
movimentos que faziam ao atirar uns dados no chão de cimento, mas não
conseguia enxergar os resultados. Um dos três gritou, comemorando com
os braços para o alto, e moveu sua peça colorida adiante no tabuleiro. Os
outros fizeram cara de dor. Natália, que estava na janela havia alguns
minutos, tomando a segunda caneca de chá da manhã, de algum modo
pressentia que os três não eram irmãos. Benjamim lia o jornal, sentado
numa poltrona, e de vez em quando olhava para a mulher: o robe de
cambraia comprado em brechó, os chinelos de borracha, os cabelos
escovados e a maquiagem levíssima com que pensava atenuar a feiura. Os
dados rolaram para longe dos garotos e foram cair nos paralelepípedos da
ladeira. Um deles gritou que não estava mais valendo. Natália se maquiava
aos sábados. Benjamim tomava o café que ela havia preparado, sem canela.
— O tabuleiro é em forma de caracol — disse, continuando uma
explicação que o marido não tinha pedido.
— Hm…
A primeira coisa que Benjamim fez para tentar descobrir o nome da
vizinha de rosto imperturbável que havia visto no coquetel da Multidões
foi ler as colunas sociais, coisa que, aliás, fazia todos os dias, na esperança
de se deparar miraculosamente com o próprio nome. Havia uma nota
sobre a inauguração, mas nenhum nome de mulher. A única fotografia era
uma do Reis posando vaidoso ao lado do mapa-múndi de Konrad Miller e
de um dos críticos que no domingo o atacaria no suplemento cultural de
seu jornal. O crítico sorria muito, com uma taça de vinho nas mãos.
— Quando eu era pequena, a gente chamava esse jogo de “jogo da
glória”. Quem chega primeiro na última casa, no meio do caracol, chega
na glória. Não é estranho?
— Hm…
— Eles estão brigando pra ver quem chega primeiro na glória, mas os
três já estão na Glória! — e riu orgulhosa, como se tivesse inventado a
polissemia.
Benjamim se levantou da poltrona e foi lentamente até a janela, de onde
apontou para o alto da ladeira: o sol das quase onze desabava em cheio nos
mendigos, uns ainda dormindo, e iluminava as caixas de papelão, restos de
comida e colchões jogados na rua. Lá em cima, perto da igreja de Nossa
Senhora, ficava pior: gatos, dezenas de gatos vira-latas que os moradores
alimentavam por pena e se multiplicavam inutilmente, porque nem assim
a população de ratos diminuía. Uma brisa, vinda da baía mais adiante,
subia o outeiro, passava pela igreja e vinha soprar na janela do 303,
trazendo consigo tudo que encontrava pelo caminho: água poluída,
fumaça de escapamento, latim de padre, pelo de gato e suor de mendigo.
Benjamim sorriu e, indicando com um gesto as fileiras de formigas que
cruzavam o assoalho da sala, fez um mugido com o nariz e pôs a cara mais
malvada que tinha:
— Glória.
Silêncio constrangedor.
Natália, matando algumas formigas com os chinelos:
— Teu irmão mandou um cartão-postal.
Abel era dado a cartões-postais. No último, uma paisagem da ilha de
Santiago, dizia que em breve ele e a esposa estariam no Brasil. Passariam
duas semanas no sítio de d. Letícia, em Santa Maria Madalena, longe do
calor do Rio de Janeiro, e depois visitariam mãe e irmãos. “Lá o clima é de
Deus”, concluía, mandando abraços e saudades. Natália perguntou quem
era d. Letícia. Benjamim explicou que era uma tia-avó com quem só Abel
mantinha contato, sabe-se lá por quê, talvez só para ter mais uma pessoa a
quem enviar cartões-postais. Natália riu. Benjamim deu uma gargalhada
que mudou a forma de seu rosto e, atiçado pela risada da mulher,
começou a desfiar um longo rosário de zombarias. Perguntou se Deus era
contra o uso de e-mails; disse que era cruel um pastor ir para a África, uma
vez que só ele receberia o maná que o Senhor jogava dos céus, enquanto o
resto passava fome; perguntou o que Natália faria para o almoço etc. e
etcétera. Chegou a escarnecer do inocente município de Santa Maria
Madalena, que nunca teve nada com a história.13
Natália, que entre a terceira e a quarta galhofa tinha parado de rir, saiu
de casa para comprar o almoço. Benjamim, ainda rindo ou sorrindo, foi até
a cozinha misturar um pouco de canela e uísque no café. Depois, pensaria
num jeito de descobrir o nome da mulher que estava no coquetel.
Natália resolveu ir a pé até o largo do Machado, para ter tempo de
pensar no que fazer. Se até lá não achasse uma maneira de acalmar o
marido, telefonaria para a sogra. Compraria arroz e um galeto. Talvez
estrogonofe. D. Noemi avisara que algo assim poderia acontecer. Um dia,
ainda nos primeiros meses de Glória, a sogra ligou e disse que queria
almoçar com ela. Pediu que fosse até Copacabana, porque as duas
precisavam conversar.
Foi um almoço estranho, pelo que Natália se lembrava: tiveram que
comer com os pratos no colo, pois todas as mesas da casa estavam ocupadas
por quebra-cabeças ainda não completamente montados. Um passatempo
que havia arrumado depois que se aposentou do trabalho e dos filhos, disse
d. Noemi, logo antes de começar a explicar que Benjamim era um homem
diferente.
Natália concordou, dizendo que não havia outro igual no mundo.
Sorriu. D. Noemi respondeu que não era isso, mas foi gentil, apesar de
parecer não conseguir olhar diretamente para o rosto da nora. Explicou
que seu marido, o pai de Benjamim, tinha sido um bom homem, que ela
estava velha, que a família tinha sido muito feliz — e aqui Natália
estancou um choro quase automático ao ouvir falar do sogro morto, porque
era uma tragédia e tudo o mais. Com o nó ainda na garganta, perguntou
por que ela não tinha se casado de novo; era jovem, ainda era bonita, devia
ter sido linda na juventude, podia ter se casado de novo. D. Noemi ignorou
o comentário. A família tinha sido muito feliz porque naquele apartamento
sempre havia alguém rindo, continuou. Natália sorriu meio descrente:
Benjamim quase não ria. A sogra disse que seu filho sofria de uma doença.
Natália se espantou e fez “oh”, como havia visto acontecer muitas vezes
nas telenovelas.
Depois de alguns minutos tentando acalmar o choro histérico da nora,
que a fazia ficar mais feia do que o provável, d. Noemi levou uma hora e
meia para explicar qual era o real problema de Benjamim. Era doente de
zombaria, tentou dizer diretamente, e Natália não entendeu. Era como um
alcoólatra: podia sofrer recaídas, comparou, e Natália se confundiu. Era
como Sísifo, tentou uma aproximação mitológica, mas Natália disse que só
conhecia Sísifo de nome. D. Noemi, sem saber mais o que fazer,
pacientemente voltou aos seus anos de professora e contou a história de
Sísifo, no fim da qual a nora fez “aaah” e, com uma cara satisfeita, disse ter
finalmente entendido. A mesma cara que seus alunos faziam depois de
uma aula sobre Beckett.
Assim como os antigos pupilos de d. Noemi, Natália entendeu o básico,
com a certeza de ter compreendido tudo. De acordo com o mito, Sísifo era
mestre em enganar os deuses e a morte. Mas uma hora morreu. Como
castigo, os deuses o condenaram a rolar uma grande pedra, com as próprias
mãos, até o cume de uma montanha. Mas toda vez que ele alcançava o
topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida.
Isso por toda a eternidade. A sogra explicou que Benjamim era Sísifo (isso
ela entendeu perfeitamente) e, quando estava normal — isto é, sem fazer
piada de tudo —, era como Sísifo no alto do monte, com a pedra. A pedra
era a zombaria e estava amarrada aos tornozelos de Benjamim (aqui ela se
confundiu um pouco). Quando a doença voltasse a se manifestar — e a
sogra garantiu que um dia voltaria —, ele atiraria a pedra nas pessoas e
coisas lá embaixo, para destruir tudo, mas, como estava amarrado a ela,
seria arrastado morro abaixo logo depois. Isso queria dizer que ele sofreria
muito, mas ela não conseguiria perceber porque seria muito engraçado. E
ele, de tanto fazer piada, poderia morrer de desgosto se nada fosse feito
para aplacar o surto de gracinhas.
Por que ser engraçado era igual a destruir coisas ou como era possível
alguém morrer de tristeza, Natália não entendeu. De qualquer modo, era
melhor não perguntar demais. D. Noemi era mãe. Mães não brincam com
esse tipo de coisa.
Assim, desde o almoço com a sogra, Natália passou a acompanhar as
mínimas alterações de humor do marido com a atenção que só é
dispensada a crianças hemofílicas que, por um acaso cruel, também
sofrem de hiperatividade. Os sorrisos a colocavam em estado de alerta. As
raras risadas a apavoravam. Para não perturbar a cabeça dele, nunca
contava as coisas engraçadas que ouvia no trabalho. Tomava muito
cuidado em casa para não tropeçar ou fazer qualquer coisa que provocasse
uma gargalhada de escárnio. Quando conversavam, esforçava-se para não
dizer nada fora do comum. Evitava alegrias indevidas e, quando não as
conseguia evitar, harmonizava-as com uma notícia péssima. Parou de rir
com a mesma frequência e espalhafato de quando era mais nova. Passava
horas se examinando no espelho, ensaiando os gestos mais triviais que
conhecia. E jamais disse nada a ele, com medo de que a simples alusão a
uma doença tão inusitada deflagrasse um ataque de riso. Era melhor
prevenir, porque não saberia bem como remediar uma doença que matava
de tristeza, mas era causada por coisas cômicas.
Nas ocasiões em que ele pedia sua opinião a respeito de um quadro um
pouco mais incomum que estava começando a pintar, por amor ela
respondia que tinha gostado, mas não tanto quanto daquele jardim ou
daquela manada de cavalos atravessando a trote um riacho. Por amor,
deixou até mesmo de alugar filmes de comédia, seus favoritos.
Já no largo do Machado, esbarrou num homem alto, de cabelo
acinzentado e uns vinte e poucos anos, que, com o choque, deixou cair a
sacola de compras que carregava e quase foi ao chão. Nenhum dos dois
pediu desculpas. O homem deu uma risota. Dois transeuntes pararam para
ajudar a recolher os itens espalhados pela calçada. Natália se abaixou para
pegar um tomate e o homem começou a rir mais alto, mais alto, até que
uma gargalhada atraiu os olhares de todo mundo, encheu o largo e de
repente se multiplicou por dez, vinte, trinta motoristas, garçons, guardas
municipais. Natália se segurou, mordeu a parte interna das bochechas e
disse a si mesma que não havia nada de engraçado num encontrão.
Decidiu comprar arroz e estrogonofe. Repetiu mentalmente a palavra
“estrogonofe”. Os passantes lacrimejavam de tanto rir, apontavam,
comentavam entre si. Alguns, satisfeitos com sua porção de desgraça
alheia, suspiravam seus ai-ais e iam embora, mas a maioria diminuía ou
estacava o passo para observar o rapaz, que girou duas ou três vezes sobre o
próprio eixo, procurando uma laranja ou um pacote de papel higiênico.
Seu rosto era aberto, muito branco, sem nenhum susto. Parecia um deus
menor, esses de que as pessoas não se lembram. Natália sentiu uns calores
quaisquer, que podiam ser tanto inveja quanto paixão súbita.
Compraria estrogonofe; Benjamim adorava arroz com estrogonofe.
O homem sorriu, tocou seu braço e disse que não tinha problema, que
ela podia rir. Os dedos dele eram mornos e lisos. Desviou os olhos.
Benjamim era um amor de pessoa: carinhoso, educado, calmo, respeitoso,
e o sexo era ótimo sempre. Talvez comprasse batata palha. As risadas foram
aos poucos cedendo lugar aos ruídos públicos normais, mas o homem
ficou ali parado diante dela, dentes à mostra. Nunca quis ter um filho,
mas, ao fim e ao cabo, era um amor de pessoa. O homem riu. Natália
apertou os lábios com força, mas o corpo não obedeceu: sentiu umas
cócegas no diafragma, os músculos faciais estalaram num pequeno
espasmo, a garganta emitiu um borbulho, o borbulho roncou pelo nariz e
se transformou numa risadinha modesta.
“Estrogonofe” era uma palavra bem divertida.

13. O narrador distorce a verdade em prol do trocadilho, o que não chega a ser
condenável, ao menos não esteticamente. No entanto, há de se fazer justiça: Santa
Maria Madalena é, sim, figura importante da história brasileira. Foi o primeiro
município do país, por exemplo, a oficializar um divórcio.
14. Descoberta de esquina

Thou still unravish’d bride of quietness.


Keats

No domingo, Benjamim viajou seis vezes no elevador do prédio, em


horários estratégicos, esperando um encontro fortuito com a vizinha, não
para dizer alguma coisa a ela, mas para talvez ler seu nome de relance
num envelope. Para que o porteiro não suspeitasse que ele estava andando
de elevador por um motivo além do subir e descer, comprou pão duas
vezes. Na segunda, porém, para que Natália não suspeitasse de nada, deu a
sacola de pães a um mendigo. O mendigo agradeceu a caridade, sem
suspeitar de nada. Na terceira e última, não foi à padaria, para que o seu
Olavo, o dono do estabelecimento, que vivia no 103, não suspeitasse de
nada.
Caminhou em círculos até o cair da noite, com a atitude menos suspeita
possível, na fronteira entre o transeunte calmo e o turista assaltável,
procurando no rosto das passantes a expressão imperturbável que havia
visto no coquetel. Nada. Depois, decidiu fazer algo mais sensato: foi se
sentar no bar da esquina, a Taberna da Glória, de onde podia espreitar a
portaria do edifício Glória. Ela certamente passaria por ali.
Telefonou para Natália e a convidou para tomar um chope. Ela desceu
em menos de cinco minutos, arrumada, maquiada e temendo o pior. Em
dois anos de relacionamento, Benjamim nunca a tinha chamado para
tomar um chope, assim, sem razão. E estava agitado, sorridente,
espirituoso, mesmo antes de beber. Olhava para os lados, fazia comentários
divertidos sobre a roupa das pessoas, as maneiras blasées da Paula do 502 —
que passou por eles num momento qualquer da noite e não a
cumprimentou, apesar de ambas se conhecerem das reuniões de
condomínio —, a falta de tato do presidente da República — a quem
faltava um dedo — etc. e etcétera. Tudo que ela dizia era prontamente
respondido com um gracejo, um trocadilho, uma risada alta. Natália estava
em pânico. Seu amor ia morrer. Benjamim chamava os garçons de
“amigo” ou “irmão” e, quando ela se levantava para ir ao banheiro,
encorajava-a com um tapinha nas nádegas.
Depois que a vizinha passou por eles, Benjamim apertou as mãos da
mulher e perguntou, amável, se ela se lembrava dos tempos em que só
conversavam pela internet, no velho fórum sobre história da arte. Natália
respondeu que sim, claro.
— Lá todo mundo fingia ser blasé, como a Paola do 402 — Benjamim
disse, com olhos pedintes. Ela o corrigiu:
— Paula, amor, do 502.
E repetiu a informação, para que ele tivesse certeza; já estava um pouco
bêbado.
Satisfeito, Benjamim pediu a conta.
15. O Café Aleph

Eadem mutata resurgo.


Collège

O endereço do Café Aleph não era um segredo. Qualquer pessoa com


acesso à internet podia encontrá-lo e entrar, sem necessariamente ter sido
convidada. Grande parte dos internautas chegava até ele achando que se
tratava do site de um estabelecimento real, numa cidade de fato,
frequentado por pessoas de carne e osso, com nomes e certidões, mas esse
não era o caso. O Café Aleph era um fórum virtual de discussões sobre
arte, com o design inspirado nos cafés parisienses da primeira metade do
século XX, no qual os usuários quase nunca revelavam seus antropônimos
em conversas públicas, preferindo escolher um dentre os muitos nomes
importantes da história da cultura. Assim, a maioria dos que acessavam o
Aleph por engano se espantava com a profusão de Caravaggios, Malatestas,
Ionescos, Alighieris, Monks etc. e etcétera, e ia embora. Um ou outro,
porém, acabava gostando da ideia, ou do papel de parede em tons pastel do
site, e passava a frequentá-lo. Escolhia um apelido e aprendia rapidamente
a imaginar cômodos amplos e dourados, tapeçarias, espelhos biselados e
móveis em estilo art nouveau, bem como a se comportar como um
intelectual cosmopolita brasileiro fingindo ser um morto indispensável
para a humanidade.
Os membros mais assíduos, se indagados duas vezes, eram capazes de
contar em detalhes como e por que o Café Aleph havia sido criado. Na
primeira, em geral respondiam que Jorge Luis Borges, o real, havia escrito
pouco antes de morrer uma carta profetizando a invenção da internet, na
qual também deixava instruções e diretrizes para a fundação de um fórum
virtual que reunisse as mentes mais brilhantes do século XXI. Essa
explicação era comumente seguida pelas siglas LOL e RS, ambas
significando, na linguagem da internet, que a pessoa está rindo. Quando
perguntados pela segunda vez, costumavam dizer o que de fato ocorreu: o
Jorge Luis Borges — um professor secundário de Botucatu (SP) — resolveu
fundar o site em 2008, depois que o antigo fórum que frequentava (cujo
nome, “π”, era considerado pelos membros do Café Aleph um sinônimo
para os xingamentos mais escabrosos) foi invadido por adolescentes cuja
única relação aparente com arte era dizer que conheciam Andy Warhol e
que, por esse mesmo motivo, eram pessoas mais maduras que as outras
pessoas de sua idade.
Benjamim também havia sido membro do π, e lá conheceu Natália.
Semanas antes de abandoná-lo, no fim de 2007, testemunhou os primeiros
avanços dos adolescentes e cunhou o termo “império da piadinha sem
graça sobre qualquer coisa” para se referir ao peculiar senso de humor da
horda de infantes que havia decidido se instalar nos tópicos do fórum.14
Portanto, quando voltou a ele em busca de Paula, não foi difícil encontrar
menções ao Café Aleph, a que os membros do π, reciprocamente, se
referiam com profundo rancor. Detestavam-se, os do π e os do Café Aleph,
e o ódio em comum os unia em fraternidade. Alguns frequentadores de
um e outro site costumavam até mesmo atacar o território inimigo,
lançando um número acachapante de postagens contendo mensagens
raivosas no fórum adversário ou mesmo perpetrando atos de ciberpirataria.
No entanto, por serem em sua maioria crianças ou cidadãos pacatos,
nunca chegaram ao ponto da violência física.
Paz na terra para todos os seres.
Todos os perfis com o nome “Paula” registrados no π ou eram anteriores
a 2007 — que Benjamim, portanto, conhecia —, ou de meninas
claramente menores de idade. Só para ter certeza, postou uma mensagem
no fórum perguntando se alguém tinha visitado a Multidões, mas, depois
de três dias, somente um certo cap_Evaristo_666 havia respondido,
mandando-o para o inferno e rindo (em maiúsculas: HAHAHA) logo depois.
Por curiosidade, Benjamim acessou seu perfil. No campo destinado à
resposta da pergunta “Quem sou eu?”, cap_Evaristo_666 dizia ser amante
do metal melódico e de gadgets, além de citar Erico Verissimo: “No fim de
contas não era nenhum bicho e a coisa mais natural do mundo era uma
pessoa falar com outra”.
Após o fracasso no π, Benjamim decidiu se registrar no Café Aleph. Se
não encontrasse a vizinha — e provavelmente não a encontraria, mas não
custava tentar —, pelo menos poderia conversar com pessoas mais
educadas, num site com imagens e cores agradáveis. Seguindo a tradição
dos nomes históricos, escolheu para si o apelido “Hecateu de Mileto, o
Logógrafo” e, como fotografia do perfil, um mapa-múndi de Mercator,
ironia que foi rapidamente compreendida e aprovada pelos membros do
Aleph. Sentiu-se em casa, no sentido quase completo do termo.
Faltava ainda o batismo. Qualquer um podia se registrar no site, mas,
para ser efetivamente reconhecido como parte da café society, o internauta
devia passar por uma espécie de rodada de provas, correndo o risco de ser
banido e ter seu perfil apagado. Primeiro, o apelido era analisado pela
comunidade — as figuras históricas importantes, mas desconhecidas pelo
grande público, eram as que tinham melhor recepção. “Hecateu de
Mileto” foi aplaudido por quase todos. Depois, o usuário era obrigado a
suportar uma saraivada de ditos sarcásticos ou irônicos sobre sua persona e,
se fizera a besteira de se apresentar como pessoa real, sobre seu nome,
cidade natal, profissão etc. e etcétera. Benjamim passou por este último
estágio sem muita dificuldade: não revelou nenhum dado pessoal e
respondeu a todas as galhofas com um escárnio que maravilhou até os
frequentadores mais antigos. Sentados ao redor de suas mesas virtuais,
todos chuparam seus cachimbos e charutos fictícios e sorriram em
aprovação. Andy Warhol bateu palmas anêmicas; Julius Evola ajustou seu
monóculo em sinal de espanto. Hecateu de Mileto, o Logógrafo, era um
prodígio do chiste e da facécia.
Estava pronto para a terceira e última etapa.
Informaram a Benjamim a sala a que ele deveria se dirigir, um tópico do
fórum chamado Salão Artemisa, onde Heráclito de Éfeso, dito o Obscuro,
lhe faria algumas perguntas. Heráclito era uma persona coletiva. Qualquer
membro do Café Aleph que se sentisse disposto a entrevistar um novato
podia fazê-lo, desde que chegasse primeiro e fingisse ser Heráclito. Os
demais frequentadores tinham acesso ao tópico, mas a etiqueta ditava que
não podiam interferir. Alguns postavam frases entre asteriscos indicando as
ações de seus personagens, mas raramente conversavam, já que por escrito
não há como sussurrar sem explicar antes que se está sussurrando. No
primeiro dia em que Benjamim esteve no Salão Artemisa, três usuários
presenciaram seu colóquio com o filósofo grego, cujo papel, na ocasião,
era interpretado por Blaise Pascal, um enólogo de Sertãozinho (SP):

BLAISE PASCAL: [Heráclito] *Heráclito, o Obscuro, espera pacientemente por


Hecateu de Mileto. Bebe hidromel.*
JULIO CORTÁZAR: *Cortázar, sentado junto ao visconde de Taunay e à sóror
Juana Inés de la Cruz, brinca com seu maço de Gauloises.*
HECATEU DE MILETO, O LOGÓGRAFO: *Entra no Salão Artemisa.*
Saudações, Heráclito de Éfeso, filho de Blóson, ou, segundo outra tradição, de
Heronte.
BLAISE PASCAL: [Heráclito] Saudações. Panta rei! Tudo flui!
JUANA INÉS DE LA CRUZ: *Ergue os olhos para o teto e suspira.*
HECATEU DE MILETO, O LOGÓGRAFO: Estou em boa companhia. Eis uma
mulher que filosofava fritando ovos, um homem que via bichos verdes voadores e
um visconde. Além de um pré-socrático, o que não é um defeito.
BLAISE PASCAL: [Heráclito] *Ri.* De onde você é? O que você busca? O que te
impede de ser feliz?
HECATEU DE MILETO, O LOGÓGRAFO: Sou natural de Mileto. Procuro uma
mulher chamada Paula. Não me interesso pela felicidade.
ALFREDO MARIA TAUNAY: *O visconde tosse e se admira da resposta.*
BLAISE PASCAL: [Heráclito] Uma Paula Lavalle frequenta este lugar. É a filha
de Julio Cortázar.15 Há outras. Talvez você as conheça, se o deixarmos ficar…
*Toma um gole de hidromel.* Por quê?
HECATEU DE MILETO, O LOGÓGRAFO: Porque ainda sou jovem. *Se
aproxima da mesa e sorri melancolicamente para os três.* Tenho medo da hora
em que eu não vou achar mais nada que eu queira achar.
BLAISE PASCAL: [Heráclito] Esse drama todo é real?
HECATEU DE MILETO, O LOGÓGRAFO: Por favor, considere que tenho quase
2500 anos de idade.
BLAISE PASCAL: [Heráclito] Mas você é um cartógrafo, achar as coisas
conhecendo os mapas é bem mais fácil.
HECATEU DE MILETO, O LOGÓGRAFO: Quando o caminho para cima e o
caminho para baixo são um e o mesmo, não é tão fácil assim…
ALFREDO MARIA TAUNAY: *O visconde faz cara de confuso.*

Etc. e etcétera. A entrevista durou cinco dias, mais ou menos. Diversos


membros do Aleph se revezaram no papel de Heráclito. Todos eles
entravam no Salão Artemisa com a certeza de que eram capazes de superar
as prestidigitações verbais de Hecateu, mas em poucos minutos desistiam,
razão pela qual Heráclito passou a maior parte do diálogo sentado numa
das mesas do canto, repetindo “Ah, sim?”, “É mesmo?” e similares fáticos.
Os demais presentes se limitavam a indicar que estavam ouvindo,
deslumbrados, as perguntas sem respostas e as respostas sem perguntas que
o novato, no centro do palco virtual, tirava da cartola. Em outros tópicos,
comentavam com entusiasmo. Era um monstro zombeteiro de apetites e
humores pantagruélicos. Nada lhe escapava. Emanuel Swedenborg, uma
estudante de meteorologia de Santa Maria (RS), chegou a afirmar que
aquele Hecateu era o espírito irônico do Café Aleph encarnado num
espectro eletrônico. A maioria concordou; outros, porém, retrucaram que o
Aleph não tinha espírito nenhum, porque era só um fórum de internet.
Foi Oscar Wilde, um blogueiro de Dourados (MS), tomando a palavra
sob a forma de Heráclito, quem fez a pergunta cuja resposta enfim
confirmaria a entrada de Hecateu na café society:

OSCAR WILDE: [Heráclito] Por que você se esforça para ser amado por pessoas que
amam somente o contrário do que querem amar?
HECATEU DE MILETO, O LOGÓGRAFO: Pessoas, que pessoas?

Como metade dos presentes não entendeu bem a resposta e a outra


metade não havia entendido bem a pergunta, todos se calaram, simulando
assombro entre asteriscos. Fosse quem fosse, aquele era um homem, de
fato, admirável.
No instante em que se deu conta de sua fama entre os do Aleph,
Benjamim disse — meio brincando, meio a sério — que era artista
plástico. Ninguém fez piadas cruéis a respeito. Então, narrou a história de
sua ascensão e queda no mundo das artes, a mesma que contara à mãe,
anos antes, sentado no chão da cozinha. Nesta versão, porém, disse que a
exposição de que tinha participado era individual e que a aparvalhada
entrevista dada ao telejornal das seis havia, sim, ido ao ar. De qualquer
modo, não lhe descobririam a mentira, graças ao anonimato do agora
célebre Hecateu de Mileto.
Mário de Andrade, um estudante de letras de Juiz de Fora (MG), fez
uma longa análise da estrutura, dos motivos e tropos retóricos da anedota.
Chegou à conclusão de que se tratava de uma crítica jocosa, mas
penetrante, ao contexto cultural brasileiro, ao mercado de arte e à
decadência da cultura ocidental. Benjamim não discordou, mas disse que,
se alguém quisesse lhe dar uma segunda chance de se tornar um artista de
renome, ele a aceitaria. Todos riram. Alguns tentaram encontrar na
internet a entrevista revolucionária que ele supostamente tinha dado, mas,
sem saber o nome do homem por trás do Logógrafo, ficava quase
impossível.
Em menos de duas semanas, Hecateu se tornou unanimidade entre os
frequentadores do Café Aleph. Wallace Stevens e Ernest Hemingway,
Dante e o conde Ugolino, Noel Rosa e Wilson Batista, todos o tratavam
com uma grã-fina ironia, o que naquele lugar era sinal de estima e
respeito. Quando não estava presente, falavam dele como se de uma lenda:
citavam suas máximas, louvavam seu comportamento inusitado,
irmanavam-no aos grandes humoristas da história. Muitos tentavam imitar
seus cacoetes de estilo e eram criticados pelos demais. “Que inventem seus
próprios estilos!”, vociferava Charles Chaplin, um fotógrafo amador de
Cariacica (ES). Benjamim assistia a tudo com avidez. Fingia não ler ou
não se importar com o que diziam dele, mas se deliciava com a própria
originalidade e, sobretudo, com o esforço que faziam por copiá-la. Passava
horas relendo atentamente suas frases e ações para tentar imitá-las depois,
na vida real. Talvez assim algo da fama do Hecateu de Mileto da internet
respingasse no Benjamim Alencar Costa e Oliveira do mundo dos homens.
Não fazia nada de inusitado na realidade.
No museu, pelo menos, estava começando a ser reconhecido. Pessoas
davam bom-dia, boa-tarde, boa-noite. Ele respondia. Algumas até sabiam
seu nome. Depois da polêmica em torno do mapa de Pompônio, que havia
rendido ao Reis a reputação de enfant terrible da crítica de arte carioca, o
chefe do Departamento de Museologia, Conservação e Restauro passou a
visitar mais seu gabinete. Fazia o de sempre: dava duas batidinhas
apressadas na porta, sorria e o chamava de “filho do homem!”, mas a voz
era mais simpática, mais alta. Nas raras vezes em que parava para
conversar, Benjamim tentava explicar, de viés, que se considerava pintor.
Quando se sentia especialmente confiante, ensaiava observações ambíguas
sobre como as coisas são curiosas — uma pessoa dá uma sugestão inaudita,
que catapulta uma outra para as páginas de jornais de grande circulação, e
essa uma sabe que o trabalho dele é dar sugestões, sabe também que o
sistema de troca de favores é terrível, e por aí em diante, mas o que se há
de fazer? Como seria bom se ele escrevesse uma resenha, uma nota breve,
uma menção… —, que o Reis ou não entendia, ou fingia não entender.

14. As origens do império da piadinha sem graça sobre qualquer coisa são obscuras.
Trata-se de um regime em que os assuntos antes considerados importantes são alvo de
constante piada, ao passo que informações irrelevantes são alçadas ao primeiro plano,
para que se possa fazer piada despreocupadamente sobre coisas desimportantes. Esse
fenômeno, ainda que não seja produto da internet, foi intensificado após o seu
surgimento, que ocasionou uma desenfreada multiplicação de informações
irrelevantes, como se o mundo, de fato, fosse um conjunto acachapante de notas de
rodapé presumivelmente cômicas, e não o texto denso e terrível da condição humana
— o que, de certa forma, não deixa de ser engraçado.
15. Paula Lavalle é uma personagem do romance Los premios, de Julio Cortázar. À
época, não por falta de figuras históricas reais, os nomes de personagens de ficção
criadas por escritores mortos estavam virando moda no Café Aleph.
16. A volta do pastor Abel

E começaram a alegrar-se.
Lucas 15,24

Abel chegou ao Rio de Janeiro num domingo, depois de passar anos sem
ver a mãe e os irmãos e uns dias na casa de d. Letícia. Ninguém ousou
dizer que era estranho visitar uma tia-avó distante, em Santa Maria
Madalena, antes de ir até Copacabana, a poucos quilômetros do Santos
Dumont, o aeroporto em que havia desembarcado. Mas, durante a hora e
meia em que o esperaram reunidos na enorme sala do apartamento de d.
Noemi, pensaram uma ou duas vezes nisso.
Daniel, Ana e o filho estavam lá, assistindo a um programa de auditório
no canal quatro. Benjamim, sentado numa poltrona que havia sido do pai,
olhava para o sobrinho, muito crescido, e repetia de quando em quando,
admirado, que o sobrinho estava muito crescido. Natália, de pé,
observando a praia lá fora, temia que a ocasião festiva piorasse a doença do
marido. Ele podia rir de repente ou de alegria e ter uma convulsão ali
mesmo. Pendurado na parede, ao lado dela, um retrato de Jesus Cristo
com o cavanhaque repartido ao meio, de quinhentas peças e moldura
dourada.
A TV apresentava uma sequência quase interminável de pessoas caindo.
Crianças caindo de cara no bolo, gordos caindo em rios, velhos caindo de
cadeiras, mães caindo em piscinas com os filhos no colo, adolescentes
caindo de bicicletas, noivos caindo de emoção no altar etc. e etcétera. As
risadas da claque mecânica picotavam o silêncio, as de Daniel, um pouco
mais escandalosas, também. Natália estava apavorada com a possibilidade
de Benjamim achar alguma graça em tantas quedas. Mais cedo, tinha
tentado contar à sogra, da maneira mais sutil possível, que a doença de
zombaria de seu filho mais velho talvez estivesse se manifestando de novo.
D. Noemi, no entanto, não estava em condições de entender sutilezas.
Andava da cozinha para a sala e da sala para a cozinha, inquieta, gastando
prematuramente o café, bolinhos e suco de laranja que havia comprado.
Abel estava a caminho. Finalmente conheceria a nora americana.
Espalhadas pela casa, pequenas peças de quebra-cabeças perdidas. No
pescoço, um escapulário.
Intrigado pelo patuá e pelo Jesus pregado na parede, Benjamim
perguntou à mãe se ela tinha se convertido ao cristianismo por ocasião da
visita ilustre. D. Noemi respondeu, seca, que era um sintoma de velhice.
Explicou que os velhos têm medo de não existir mais nada depois da morte
e ainda mais medo do destino que espera aqueles que morrem sem ter um
retrato do Salvador em casa:
— Uni o útil ao agradável: gosto de montar quebra-cabeças e precisava
de um retrato de Jesus — disse, apontando para o quadro e rindo junto
com a campainha.
Abel estava bronzeado e bem mais musculoso. No rosto, algumas rugas,
que o trabalho ao sol lhe dera, e barbas bem aparadas, já com uns tantos
fios brancos, apesar dos vinte e pouquíssimos anos de idade. Estava ainda
mais bonito, quase radiante. Brilhava, quase. Benjamim achou que parecia
um surfista. Daniel não achou nada; sabia que ele ajudava a construir casas
para os desabrigados e que na África fazia muito sol. Era natural que
ficasse mais parrudo e moreno. Além do quê, se considerava mais bonito
que o caçula. E ganhava mais. Abel poderia entrar ali iluminado como
ardentes brasas de fogo, e mesmo se o fogo subisse e descesse por entre os
familiares, e mesmo se o fogo resplandecesse, e mesmo se do fogo saíssem
relâmpagos, Daniel não perceberia nada de mais.
Não houve fogo. Abel entrou sem muita cerimônia, abraçou os irmãos,
beijou as cunhadas e bagunçou os cabelos do sobrinho, deixando a mãe
por último, que já olhava com olhos que têm os filhotes de cachorro.
Vestia terno cinza e gravata vermelha. Falava muito e alto. Treinado para
encontrar Jesus, notou rapidamente o quadro na parede. Sorriu e abriu os
braços, com afetado ar bonachão:
— Ô, dona Noemi, a senhora nem envelheceu nada…
Ela também sorriu, não com tanto gosto.
Além da luminosidade e de um estranho sotaque, Abel trouxe consigo
uma mulher minúscula e loira, que entrou no apartamento com a cara
boba dos que não estão entendendo uma palavra sequer, mas sabem que é
o caso de sorrir. Chamava-se Ruth, e o marido explicou que era filha de
um pastor da Carolina do Sul, que aparecia muito na TV de lá: South
Carolina, ele disse. A mulher concordou com a cabeça e repetiu: South
Carolina. Silêncio longo. Sorrisos. O caçula contou, em inglês, que Ruth e
Naomi eram melhores amigas na Bíblia e que ele achava a coincidência
um ótimo presságio. Silêncio breve. D. Noemi apertou a mãozinha ossuda
de Ruth e sorriu. As outras duas noras também sorriram, Ana um pouco
antes de Natália, que não falava inglês, mas pelo sorriso da outra entendeu
muito bem o resto.
Jantaram, em inglês, pato ao molho de laranja, muito elogiado por
todos. O vinho era ótimo. Daniel e Benjamim abriram uma garrafa cada.
Abel tomou só uma taça e contou que a esposa não podia beber porque —
pausa para criar suspense — estava grávida. Alvoroço, palmas, bons votos.
Ruth disse que criariam o filho no Brasil, Benjamim bateu palmas e deu os
parabéns antes que a cunhada terminasse a frase. Abel, continuou a
mulher, queria fundar uma igreja em Santa Maria Madalena, que tem o
terceiro melhor clima do país. O pastor Abel confirmou e pigarreou para
citar um salmo ou um provérbio. Alvoroço, palmas, bons votos. Silêncio
breve. Sorrisos.
Depois, Benjamim traduziu tudo para o português, para que Natália
entendesse.
Quando a tradução já começava a ficar desconfortavelmente longa, a
mãe perguntou, para puxar um assunto paralelo, como estava d. Letícia.
No mesmo instante, Abel começou a tentar explicar, para puxar um
assunto paralelo, por que estava voltando ao Brasil. D. Noemi deixou que o
filho falasse primeiro. Abel disse, em inglês, que era porque não aguentava
viver longe da família, que tanto amava. Todos fizeram os ruídos agradáveis
— ouns, aaahns e ehns — de quem está sendo agradado (menos Natália).
A verdade, porém, era que o caçula de d. Noemi não tinha feito sucesso
como pregador em nenhuma cidade para a qual o mandaram. Havia
aprendido satisfatoriamente a retórica e discursava com extraordinária
inflamação — gritava, saltava e dava aleluia-irmãos nos momentos
apropriados —, mas não conseguia chegar a conclusões luminosas sem
uma nota sombria. Na maioria de suas mensagens, por exemplo, dizia que
o ser humano não aprende pelo amor e pelos atos de bondade dos outros,
mas por meio da terrível sensação de vergonha que o amor e os bons
exemplos causam no espírito dos homens que os testemunham. Em
algumas ocasiões, chegou a dizer que só a inveja era o que movia o
homem. Essas pequenas notas, como se pode supor, eram um balde de
água fria no fogo divino. Não demorou até que os superiores de Abel
percebessem que sua pregação deixava os fiéis amuados. Então, foi sendo
transferido para cidades cada vez menores e, finalmente, afastado do
púlpito. Após passar seis meses construindo casas e ajudando na
distribuição de alimentos aos carentes, resolveu voltar, também porque
sentia uma saudade danada de feijão.16
D. Letícia estava bem, começou Abel. E só então Natália soltou um
“oh” e deu os espalhafatosos parabéns aos cunhados. Todos tiveram que
reencenar a alegria de minutos antes: alvoroço, palmas, bons votos.
Silêncio breve. Sorrisos. Alguns ai-ais e que-bons suspirados. Silêncio
longo.
Enfim, d. Letícia estava bem. Era uma senhorinha ativa, disse o pastor.
Tinha dito ao casal que estava escrevendo um livro sobre os Costa e
Oliveira que mudaria o mundo, mas não quis mostrá-lo porque ainda não
estava pronto. Ruth contou, como que perguntando se era mesmo verdade,
que d. Letícia também lhes dissera que todos os Costa e Oliveira morrem
de desgosto, mas não soube traduzir o sentido luso-tupiniquim de
“desgosto” para o inglês. Estava preocupada com o filho futuro. Natália, ao
decodificar a palavra “desgosto” na fala rápida da cunhada, sentiu-se
aliviada. A conversa era sobre tristeza, graças a Deus. Silêncio breve. O
casal viveria no sítio da tia. Havia espaço. Era um sítio grande. Sorrisos.
Para o pequeno escândalo de Abel, Benjamim acendeu um cigarro. Ana
se levantou e carregou o filho alérgico, que dormia havia quase meia hora,
para um dos quartos. Quando voltou, pôs um cigarro na ponta de uma
piteira de marfim e acendeu-o como Hepburn o acenderia se estivesse ali.
Daniel, Natália e d. Noemi também acenderam os seus. Os dois irmãos
mais velhos já estavam bêbados.
Tantos cigarros acesos de repente deram a Ruth a impressão de que
entrariam num assunto delicado, talvez a morte do sogro. Talvez
estivessem se preparando para explicar que no Brasil as pessoas realmente
morrem de desgosto. Mas ninguém disse nada. Fumaram quietos. Abel
comentou algo que se perdeu na fumaça e riu como os Alencar Costa e
Oliveira geralmente riam quando zombavam de algo. Natália olhou
nervosa para os demais, com medo de que Benjamim gargalhasse também.
Silêncio longo. Do outro lado da mesa, Daniel observava a americana, que
afinal não era tão sem graça assim. Era realmente muito pequena, e o
formato da cabeça não parecia normal, mas o resto do corpo era
harmonioso, como uma boneca de tamanho quase natural. Imaginou
como seriam os seios e as coxas.
— Lembra da vez que a gente foi a Petrópolis? — disse a mãe, do nada,
em português. — Vocês eram pequenininhos. Lembram da casa do Santos
Dumont?
Ninguém se lembrava.
— Foi um bom passeio. O pai de vocês ainda era vivo.
Ninguém se lembrava. Ruth voltou a sorrir o sorriso de quem não está
entendendo absolutamente nada.
— Aí seu pai disse pra mim que Santos Dumont não gostava de sexo.
Foi uma coisa estranha, ele me dizer isso, em Petrópolis, na casa do Santos
Dumont. Cheio de turista por perto. Falavam todo tipo de língua, os
turistas. E seu pai me vira e diz isso pra mim. Santos Dumont não gostava
de sexo. Não gostava mesmo. E inventou o avião.
Silêncio breve.
— Vai ver que tem gente que nasce sem conseguir amar as pessoas só
pra fazer alguma coisa importante, como inventar o avião.
— Os irmãos Wright inventaram o avião, mãe — respondeu,
finalmente, qualquer um dos irmãos.
Silêncio breve.
— Pois é. Tem coisa que a gente acha de uma importância…
Silêncio longo. D. Noemi passou os dedos pela omoplata — onde estava
tatuado o globo terrestre, já muito desbotado — e depois pela correntinha
de ouro do escapulário.
Ruth concordava alegremente com a cabeça.

16. Saudade de feijão é uma moléstia comum entre os brasileiros que vivem no
exterior, mesmo em regiões das quais o feijão é nativo.
17. Reforma

In the house not right in the head,


A girl mad as birds.
Dylan Thomas

A vantagem dos edifícios virtuais é a sua maleabilidade. Os tijolos são


todos feitos dos números 0 e 1 sequenciados, e a única energia necessária
para erguer uma parede, uma laje, uma igreja ou a torre de Babel é a dos
dedos. O fato de resultarem invisíveis a olho nu não parece incomodar seus
moradores e visitantes, até porque, se duas ou mais pessoas acreditam que
eles estão ali, de pé, não há vivalma que as convença do contrário. Assim,
quando Benjamim resolveu que o famoso Hecateu de Mileto precisava de
um estúdio no segundo andar do edifício do Café Aleph, para pintar seus
quadros, ninguém disse que o apêndice era arquitetonicamente
desarrazoado.
Muitos membros do fórum, inclusive, dedicaram tempo e dedos à
empreitada: visitavam o tópico que ele havia inaugurado — chamado
“Studeo Glória” —, comentavam as pinturas que Hecateu descrevia como
sendo suas, levavam presentes, conviviam, diziam ver cortinas, espelhos
vitorianos, janelas enormes, apetrechos de artista. Não demorou, portanto,
até que o Glória se tornasse um típico estúdio de pintura. Na centésima
mensagem postada (aliás, por Amedeo Modigliani, jornalista cultural de
Taubaté, SP), já havia a desorganização costumeira: muitas telas,
fotografias, frutas, gente, garrafas de absinto e cartelas de remédios
controlados, um cachorro de estimação batizado de Pompônio e até
mesmo pequenos detalhes, como manchas de tinta, teias de aranha ou
formigas nas paredes.
Foi no Glória que Benjamim conheceu Paula Lavalle. A primeira coisa
que ela disse ao entrar foi que, sim, sim, estava todo mundo cansado, em
resposta a uma mensagem de J. D. Salinger — aspirante a escritor de Santo
André (SP) —, que havia perguntado a Jack London — aspirante a cineasta
de Suzano (SP) — se as pessoas nunca se cansavam de “romances que
dissecam o tédio existencial de uma geração”. Por meio de dois asteriscos,
Hecateu produziu imediatamente um exemplar de Los premios, para
chamar a atenção da mulher, mas era desnecessário. Ela estava ali por
causa dele, para ver as telas do famigerado Hecateu de Mileto e conversar.
Sentou-se numa cadeira próxima à janela e abriu o livro que trazia,
reproduzindo o primeiro verso de um poema de Dylan Thomas: “Uma
estranha chegou”. Hecateu se aproximou, com as mãos sujas de tinta, e
perguntou se Dylan Thomas era seu namorado. Paula perguntou de qual
Dylan Thomas ele estava falando. Benjamim sorriu e fez seu Hecateu
sorrir também.
Jack London teve que ir embora porque sua mãe o proibia de ficar na
internet até tarde. Como o assunto era relacionado a livros, J. D. Salinger
tentou entrar na conversa, dizendo que estava ouvindo um disco chamado
Assassinada com a Bíblia na mão.17 Nem Benjamim nem Paula
responderam, e o garoto parou de enviar mensagens. Enfim, ficaram
sozinhos no estúdio. Paula olhou à volta e perguntou em qual tela ele
estava trabalhando no momento. Benjamim fez uma descrição minuciosa
da Fatal e rápido incêndio que reduziu a cinzas em 23 de agosto de 1789 a
igreja, suas imagens e todo o antigo Recolhimento de N. S. do Parto,
salvando-se unicamente ilesa dentre as chamas a milagrosa imagem de
Nossa Senhora, de Muzzi, obviamente sem mencionar o título (o que foi
bastante difícil) ou o fato de que não era obra dele (bem mais fácil). A
mulher achou o traçado familiar, mas disse só que parecia encantadora.
Talvez já tivesse visto algo parecido. No entanto, como disse o poeta ou um
dos membros do Aleph, na vida há mesmo dessas semelhanças esquisitas.
Os dois sabiam que tudo que diziam estava sendo publicado para quem
quisesse ler. Por esse motivo, Hecateu não perguntou onde ela morava ou
qual era seu real sobrenome. Paula tampouco perguntou por que ele havia
chegado ao Café Aleph procurando por ela. Dentro das fronteiras de uma
conversa com muitas testemunhas, tom obrigatoriamente irônico e pelo
menos quatro identidades diferentes, fizeram o possível para demonstrar o
interesse que sentiam um pelo outro. Benjamim buscou o romance de
Cortázar no Google e citou um trecho em que se diz que “Paula Lavalle”
parece pseudônimo de atriz de cinema. Mesmo sem saber o nome
verdadeiro de Hecateu de Mileto, Paula confessou ambiguamente, por
meio de uma analogia com o polo magnético do planeta, que o
considerava uma pessoa atraente.
Os dois, em suas casas, abriram uma garrafa de vinho, e suas personas no
Glória fizeram o mesmo (ou vice-versa). A certa altura, Benjamim,
protegido pela máscara do Logógrafo, disse que queria pintar um retrato
dela, com seus cabelos pretos e pele muito branca. Paula disse que Paula
Lavalle era ruiva. Hecateu sorriu e mudou de assunto, que puxou outro,
que puxou outro etc. e etcétera.
Conversaram até o nascer do sol, espontâneos e sinceros como os
amantes nos filmes, amantes esses que quase nunca têm os mesmos nomes
de seus atores.

17. Assassinada com a Bíblia na mão é um disco do grupo de rock paulista Nada Mais
que a Verdade, conhecido por utilizar manchetes do extinto periódico Notícias
Populares como títulos de suas músicas. Segundo o release da banda, o grupo é
considerado vanguardista por “fazer experimentações com a histeria coletiva”. Sua
canção de maior sucesso é “Nasceu o diabo em São Paulo”.
18. Jogo de cozinha

O amor é o milagre da civilização.


Stendhal

Benjamim levou trinta dias para convencer a mulher de que realmente


queria o divórcio. No dia seguinte à conversa com Paula, um sábado, ele
pediu a separação e Natália achou que era piada. Não riu, mas sentiu
vontade, pelo inusitado do pedido. Sorriu pacientemente, beijou-lhe a testa
e foi fazer outra coisa. D. Noemi tinha avisado que algo assim aconteceria,
que Sísifo atiraria a pedra engraçada lá de cima da ladeira e tentaria acertar
quem estivesse no caminho. Natália, que estava sempre por perto, sabia
que seria o alvo mais à mão. Há anos se preparava para receber as pancadas
e ficar de pé. Porque, segundo a sogra, a crise passaria. Era só questão de
tempo. Cabia a ela resistir o mais que pudesse, sem levar a sério as galhofas
do marido, mas sem rir, para não agravar a doença. Versada que era nas
artes da platitude, não foi muito difícil. Todos os dias, Benjamim chegava
do trabalho ou do Café Aleph com um sorriso sincero no rosto assustado e
pedia, por favor, o divórcio. Ela sorria pacientemente, beijava-lhe a testa e
ia fazer outra coisa.
Receber sempre a mesma resposta para a mesma pergunta, ao contrário
do que se poderia imaginar, confundia a cabeça de Benjamim. Como
ninguém nunca lhe tinha dito — por motivos óbvios — que ele era doente
de zombaria, supunha que a reação de Natália era fruto unicamente de
muito amor e paciência. Quando tanto amor e paciência o irritavam e ele
fazia algum comentário sarcástico, ouvia uma risadinha abafada e
incongruente ecoada de algum lugar do apartamento.
Então ia para o bar da esquina secar a extenuação com uma tulipa de
chope. Sentava-se à mesa do costume, de onde conseguia enxergar a
portaria do edifício Glória. Quase sempre levava um livro sobre Hecateu
de Mileto e o colocava em cima da mesa, com a capa virada para cima, na
esperança de que Paula passasse por ele e notasse que aquele homem era o
amor da sua vida. Nas poucas vezes em que a viu sair, a mulher sempre
rumou na direção oposta.
Na noite de 21 de setembro, Natália finalmente cedeu. Àquela altura, ele
já a cumprimentava com um veloz “quero o divórcio”, que era respondido
com um “não” monótono e automático, sempre seguido de um beijo na
testa. Como se sabe, porém, uma mesma frase repetida muitas vezes tem a
virtude de se tornar cada vez mais engraçada, a ponto de virar um bordão,
até que o bordão perca a graça. A noite do 21 de setembro foi o ápice.
Benjamim reiterou o pedido, sem muita esperança, e ela não se conteve.
Tentou morder a parte interna das bochechas, pensar em catástrofes
naturais, em filhotinhos de gato abandonados, em Daniel. Os lábios, no
entanto, não lhe obedeceram e abriram um sorriso. O sorriso logo se
transformou num risinho; o risinho, numa risota; a risota, numa gargalhada
inabafável. A cara de susto de Benjamim arregalou os olhos, levantou as
sobrancelhas e perguntou qual era a graça, cinco vezes, enquanto todos os
meses de riso acumulado vazavam pela boca, olhos e nariz da mulher.
Depois da enxurrada, Natália falou de Sísifo, da zombaria e de d. Noemi.
Nesse instante, a frase “quero o divórcio” começou a rolar encosta
abaixo, carregando todo o resto consigo, ganhando velocidade e perdendo
a graça. Benjamim disse que evidentemente não sofria de doença alguma.
Aliás, se sofresse, seria justamente o oposto da mazela que a mãe havia
inventado. Os Costa e Oliveira eram hipocondríacos, explicou, uma
família de doentes imaginários. Natália, que ainda enxugava as lágrimas
com a manga do robe e suspirava, engasgou a rir de novo. O pior problema
de saúde que enfrentou não passou de uma virose forte, disse. Natália
gargalhou da palavra “virose” e pediu que ele esperasse um pouquinho,
por misericórdia. Benjamim esperou, por misericórdia.
Em seguida, disse que não queria mesmo estar casado com ela.
A pedra atingiu de um só baque o sopé da ladeira. Natália, sorriso ainda
morrendo no rosto, subitamente se deu conta de que os tornozelos
amarrados à pedra eram os seus. Ela era a doente imaginária. Sofria de
uma doença imaginária que a fazia imaginar que Benjamim sofria de uma
doença imaginária. A gravidade de tudo puxou seus lábios para baixo.
Sentiu um aperto na garganta. Tossiu de leve.
Nenhum dos dois ouviu as sirenes da ambulância ou percebeu que
havia um corpo estendido lá embaixo, no início da ladeira da Glória.
Todas as conversas entre futuros ex-amantes se parecem. Ela pergunta se
ele tem outra, ele diz que sim ou que não, tanto faz: ela atira talheres nele
sem ouvir a resposta. Ela diz que foram seu amor e paciência que
destruíram o relacionamento. Ele discute até entender que só o que ela
quer é acusá-lo de desprezar todo seu amor e paciência. Então, ele
concorda. Aí ela começa a chorar, praguejar e incriminar. Quando ele
percebe que ela choraria e praguejaria e incriminaria de qualquer
maneira, pensa que teria sido muito mais fácil saltar direto para essa parte.
Ela diz que ninguém conhece ninguém. Ele concorda ou não, tanto faz.
Ela pergunta se ele não a ama mais. Ela pergunta se ele não a ama mais.
Ela pergunta se ele não a ama mais.
Na tarde do dia seguinte, ela já está na casa dos pais, narrando sua versão
da história, na qual figura como vítima de suas avaliações e decisões
acertadas. Ela não fala mal dele, por pena e uma obscura convicção de que
farão as pazes num futuro próximo, porque tudo não passa de uma
brincadeira.
19. Comunicado aos condôminos (escrito à mão e
colado no espelho do elevador)

A desgraça sempre tem alguma serventia.


Esopo

É com pesar que o condomínio Glória comunica aos residentes o


falescimento do sr. Olavo Antunes do Nascimento, do 103, que aconteceu
anteontem (dia 21). O sr. Olavo, que era conhecido por tôdos nós como o
simpático e sempre amável e engraçado e gentil dono da Padaria Pão da
Glória. A maneira que êle escolheu para partir para o plano superior de lá
chocou nossos corações, porque como ele próprio dizia nós éramos
também a familia que êle tinha nas reuniões do condominio Glória, além
da sobrinha amiga moça que vivia com êle. Tôdos sabem a tristeza que
levou o sr. Olavo a fazer o que êle fez, mas não é a hora de apontar para as
pessoas e dizer coisas feias ou desagradáveis pelos corredores. As pessoas
tem que cuidar de suas vidas próprias e aceitar as escolhas dos outros,
mesmo as tristes assim porque ninguém é dono de ninguém e a vida é
assim mesmo. Já que não dá para fazer a missa para o sr. Olavo,
convidamos os amigos dêle e nossos para uma reunião em homenagem ao
sr. Olavo. Pede-se aos condôminos que tragam bebidas e comidas (menos
pão) para a gente poder homenagear nosso querido amigo que se foi de
maneira tão triste.

Maria Gorete Costa dos Santos


Síndica
20. “Todo mundo no mundo é um Costa e Oliveira”

Não posso imaginar que esse relógio exista


sem que haja um relojoeiro.
Voltaire

No dia seguinte, quarta-feira, Benjamim acordou sozinho e gozando da


mais plena liberdade: a ausência de Natália havia deixado um buraco em
sua vida, que ele poderia tapar quando e como quisesse. Poderia contratar
os serviços de uma prostituta. Poderia transformar a sala de estar num
estúdio de pintura. Poderia comprar um carro esporte. Poderia tirar férias e
viajar pelo interior do país retratando o cotidiano da gente humilde.
Poderia passar uns anos em Paris e voltar irreprochável, elegante, fumando
cigarros que ele mesmo enrolaria. Poderia conquistar o circuito de artes
plásticas do Rio de Janeiro empunhando uma personalidade nova e
excêntrica. Poderia ganhar na loteria. Poderia finalmente conhecer Paula.
Mas antes precisava ir ao mercado, porque Natália, que costumava fazer as
compras, tinha ido embora sem abastecer a despensa. Faria isso assim que
voltasse do museu. Depois, viveria.
Talvez por questões de equilíbrio cosmológico, no mesmo dia em que
Benjamim começou a planejar a vida futura, d. Letícia perdeu a sua. Abel,
que já estava vivendo em Santa Maria Madalena, aproveitando o clima
ameno da cidade e erguendo o edifício de sua igreja, telefonou para dar a
notícia. De acordo com ele, a tia-avó havia morrido de desgosto, seguindo
a tradição familiar. Louvou muito as qualidades da defunta, entre as quais
ressaltou a sabedoria. Logo em seguida, Daniel ligou para dizer que a
velha havia morrido de um AVC e deixado tudo que tinha para Abel: o
sítio, a biblioteca, uma quantidade surpreendente de dinheiro e uma
empregada. Bem mais tarde, a mãe telefonou para contar as últimas
palavras de d. Letícia: “Todo mundo no mundo é um Costa e Oliveira”.
Benjamim perguntou como ela sabia disso. A mãe respondeu que o caçula
anotava tudo que a velha dizia, pondo alguma ênfase nas sílabas da palavra
“velha”. Benjamim contou que ele e Natália estavam se separando. D.
Noemi disse que sentia muito, com a voz de quem não sente tanto.
— Você disse pra ela que eu era doente de zombaria?
— O quê?
— Ela disse pra mim que você tinha avisado que eu era uma espécie de
Sísifo com um estilingue, ou coisa parecida. Não entendi direito. “Doente
de zombaria”, foi esse o termo que ela usou.
— Nossa, mas isso faz tempo…
— Ela achava que eu ia morrer de desgosto se eu contasse muitas
piadas.
— Ela acreditou nisso?
— Parece que sim.
— Cristo! Era uma brincadeira, filho.
— Óbvio — disse Benjamim, casquinando.
— Óbvio.
Paz na terra para todos os seres.
21. Formigas

Esmago o formigueiro, Instauro, deus, o pânico.


Drummond

As formigas pareciam gostar da Glória. Nas semanas que se seguiram ao


divórcio, Benjamim passou a prestar mais atenção na horda que invadia o
bairro, a Taberna da Glória, a ladeira, seu apartamento e, ele imaginava,
todos os outros apartamentos de todos os outros edifícios, incluindo o 502
do edifício Glória, onde vivia Paula. As conversas entreouvidas no bar e
nos corredores do prédio confirmavam suas observações: uns diziam que
era uma epidemia de insetos causada pelo lixo mal recolhido; outros, que
havia um imenso formigueiro secreto sob os paralelepípedos das ruas; uns
poucos alertavam para uma praga bíblica por vir; o porteiro do turno da
noite dizia que era um problema social e repetia que ou o Brasil acaba
com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil; etc. e etcétera. O fato é que
havia formigas, muitas, e não era tão mau, segundo Benjamim. Nada em si
é mau ou bom sem o pensamento que o faz assim, Hamlet sempre dizia no
Café Aleph.
Porque uma dessas formigas, após visitar o apartamento 303 e passear
despreocupada pelos dedos das mãos de Benjamim, poderia muito bem
marchar até a janela, e da janela subir até o quarto andar. Se estivesse
particularmente disposta, uma dessas formigas seria capaz de caminhar até
o quinto andar e entrar, sem que ninguém percebesse, pela janela do 502,
ainda com algum traço da pele dele nas patinhas. Uma formiga
extremamente disposta poderia vagar pelo apartamento de Paula em busca
de comida e só encontrar o corpo da mulher, nu, deitado na cama. A
formiga, com as mãos de Benjamim nas patas, poderia subir pelos pés da
cama e ir direto aos braços dela, e dos braços aos seios, dos seios ao ventre,
do ventre aos pelos, dos pelos às coxas, das coxas aos pés, dos pés à cabeça,
até se cansar. E a mão dele, de alguma forma, iria junto. Portanto, um
surto de formigas não era tão mau. Visto de um ângulo determinado, é a
única coisa capaz de ligar um homem à mulher que ele pensa que ama.
Por amor, Benjamim passou a tomar nas mãos o máximo de formigas que
conseguia encontrar e capturar.
Enquanto isso, o Glória, o estúdio de pintura de Hecateu de Mileto, o
Logógrafo, no segundo andar do Café Aleph, prosperava. Mesmo durante o
horário comercial, sempre havia um número considerável de mensagens
postadas. Ainda que o dono do ateliê não estivesse presente, os
frequentadores passavam horas no tópico. Reliam as descrições que
Benjamim fazia das obras que tentava passar como suas, davam opiniões,
bebiam absinto virtual ou simplesmente andavam para lá e para cá,
assombrados pela quantidade e qualidade das coisas que viam. Tintorettos,
Wesselmanns, Mondrians, Duke Lees, Hoochs, Constables, Klimts,
descritos pelo teclado desvirtuado de Benjamim, tornavam-se obras de
estonteante originalidade. O rapaz relatava as telas dos outros com
tamanha habilidade, sem revelar que não eram dele, que nem os próprios
autores as reconheciam. Édouard Manet, um advogado de Bela Vista (MS),
chegou a afirmar, diante de uma reprodução de Mulher com papagaio, de
Édouard Manet, que Hecateu era um gênio, nada menos que um gênio.
Pierre Bonnard, um gastrenterologista de Boa Vista (RR), por outro lado,
achou que a descrição de Dois cães numa rua deserta, de Pierre Bonnard,
era uma tentativa um tanto canhestra de infundir novidade numa obra já
consolidada, e tão brilhantemente.
Quando Hecateu não estava, Paula Lavalle assistia a tudo calada,
sentada numa cadeira que só ela dizia ocupar. Às vezes fazia um gesto de
impaciência ou praguejava sozinha. Assim que Benjamim se manifestava
na forma do Logógrafo, porém, ficava outra: falava muito, ria alto, bebia,
contracenava feliz. Um dia, alguém — provavelmente Novalis ou outro
romântico alemão — perguntou o que toda a café society queria saber, isto
é, se Hecateu e Paula eram namorados. Nenhum dos dois negou o fato.
Animado pela resposta, Novalis ou outro romântico alemão perguntou se
eram namorados fora do baile de máscaras que era o Café Aleph. Paula
respondeu que ninguém nunca estava fora do baile de máscaras. Então,
todos tiveram certeza. Amam-se, disse o visconde de Taunay para José de
Alencar, que repassou a informação a Castro Alves, que contou para
Casimiro de Abreu, que contou para todo mundo.
Amavam-se, mas ainda não se conheciam pessoalmente. Depois que a
notícia do namoro se espalhou,18 passaram a trocar carícias e beijos no
Café Aleph. Fora dele, trocavam e-mails. Mas, se nas mensagens públicas
encenavam juras de amor eterno, nas confidenciais tratavam tudo como
uma brincadeira ora mais, ora menos séria, um temendo que a paixonite
do outro não passasse de encenação. Diziam sempre que precisavam se
encontrar, mas não marcavam uma data. Sabiam que ambos viviam no Rio
de Janeiro, mas não disseram em quais bairros. Ela sabia que ele se
chamava Benjamim, e ele, que ela realmente se chamava Paula, mas não
havia certeza de nada. Hecateu de Mileto podia muito bem ser uma
menina pré-adolescente esperta demais para sua idade. Paula Lavalle podia
ser um analista de sistemas de cento e vinte quilos apaixonado cegamente
por uma menininha, a quem chamava pelo carinhoso apelido de “Teu”.
Para passar o tempo ou mascarar o que realmente queriam dizer,
inventavam cenários cada vez piores (um solteirão amargo apaixonado por
outro, uma dona de casa insatisfeita e um meninote fanático por desenhos
japoneses, um travesti de meia-idade e o presidente da República) e riam,
enquanto o que realmente queriam dizer estava bem diante dos olhos de
todos os outros personagens.
Paula foi a primeira a dizer que também via as formigas que Benjamim
fez Hecateu de Mileto ver no Glória. Numa tarde de quarta-feira em que
ambos estavam praticamente sozinhos, Hecateu disse, flanando pelo
estúdio, que achava incrível como as formigas se multiplicavam. Todas as
cinco pessoas que estavam lendo secretamente a conversa do casal se
manifestaram de repente, contando fatos curiosos a respeito das formigas,
que tinham acabado de pesquisar no Google. Nível avançado de
sociedade, mais de doze mil espécies, vontade irresistível de atacar
aparelhos elétricos, suicídios em massa, capacidade de escravizar outros
insetos, métodos de desinsetização etc. e etcétera. Franz Kafka, gerente de
vendas de Chapadinha (MA), citou-se. Charles Darwin, professor de
biologia de Nova Friburgo (RJ), disse que, pelos seus cálculos, as formigas
constituíam quinze por centro de toda a biomassa animal do aposento.
Paula Lavalle fez as contas: sete pessoas equivaleriam a mais ou menos
quinhentos e trinta quilos, o que significava que havia cerca de noventa
quilos desses pequeninos insetos vivendo entre os detritos e a poeira do
ateliê.19 Todos se espantaram.
Hecateu anunciou, magnificente, que traçaria o mapa das formigas do
estúdio Glória. Durante dias, observaria sem ser notado (a não ser, talvez,
pela sombra monstruosa que lhes atiraria em cima), sem alterar nada, sem
se aproximar demais. Desenharia as trilhas vistas do alto. Vários arabescos
surgiriam. Às vezes, ele explicou, uma ou outra ramagem de repente
desapareceria para reaparecer um pouco mais à frente: era a marcha em
subida dos insetos (um balcão, uma parede em direção à estante etc. e
etcétera). Outras vezes, desapareceriam por completo, mas não quis
explicar o motivo. Darwin fez cara de admiração, Paula também. Algumas
linhas, ainda, se multiplicariam em tantas outras que seriam necessárias
horas a fio para cartografar tudo. Quando já mal se visse a cor de fundo,
daria o trabalho por terminado. Kafka disse que era uma ideia de gênio. E
o painel só levaria em conta o caminho de ida até determinado alimento,
Hecateu completou. Num pedaço de mortadela ou em outro inseto maior
já morto, a linha se enroscaria como a boca das borboletas e ali seria o fim.
O trajeto da volta ao lugar nenhum de onde vêm as formigas não seria
computado.
Paula, visivelmente orgulhosa, perguntou aonde esse mapa os levaria.
Hecateu de Mileto, o Logógrafo, disse que mostraria o caminho até ela.
Os demais indicaram, entre asteriscos, que tinham achado linda a
declaração de amor. A Paula por trás de Paula enrubesceu.

18. Os membros do Aleph pareciam aprovar o namoro de Paula e Hecateu. Em geral,


relacionamentos amorosos virtuais eram ridicularizados pela comunidade, a não ser
quando se tratava de casos históricos — Sartre e Simone de Beauvoir, Ismael e
Adalgisa Nery etc. Talvez pelo respeito que a figura de Hecateu infundia, as piadas
eram evitadas ou inofensivas, quase todas relacionadas à notável diferença de idade
entre os dois (aproximadamente vinte e quatro séculos).
19. Curiosamente, a porcentagem é a mesma quando se trata de toda a biomassa
terrestre: quinze por cento. Esses números indicam também que, se mais duas pessoas
estivessem presentes, por exemplo, haveria aproximadamente cento e vinte quilos de
formigas no estúdio de Hecateu-Benjamim. O impressionante aumento no número
de formigas (trinta quilos a mais) levará o leitor a concluir que a quantidade de
pessoas em um espaço é diretamente proporcional ao grau de imundície desse
mesmo espaço.
22. Santinho matou aposentado, diz viúva

¿Ves la gloria del mundo?


Santa Teresa

A viúva do aposentado Ademar Balila, que sofreu um mal súbito na


última terça-feira, enquanto almoçava numa confeitaria do centro do Rio
de Janeiro, deu hoje a seguinte declaração ao jornal O Dia: “Ele estava
muito incomodado com a campanha do Diógenes [Albuquerque,
candidato a deputado estadual pelo PBC-RJ], aquela com imagens que
parecem ser de santos nos santinhos, com o número e o nome dele
embaixo. Dizia que era uma vergonha e que está certo que os santos
sempre foram vendidos, que se pode comprar santos, mas aquilo era uma
sem-vergonhice. Aí ele saiu e morreu do coração. Isso só pode ser culpa do
santinho, porque a confeitaria diz que não foi nada que ele comeu, os
médicos dizem que não sabem direito do que ele morreu, dizem que
parecia virose. Ninguém tem culpa de nada, então eu boto a culpa no
santinho”. A viúva disse ainda que pretende processar o candidato e o
partido.
A assessoria de Diógenes Albuquerque emitiu nota dizendo que as
imagens impressas nas propagandas não são de santos e lamentou a morte
do aposentado. Ontem, em entrevista, o candidato afirmou que respeita
todas as religiões e que a imprensa está se aproveitando de um caso isolado
para tentar destruir sua reputação. Em seguida, citou um salmo bíblico e
mostrou que usava uma fitinha do Senhor do Bonfim no punho esquerdo.
Albuquerque, que se declara “ecumênico”, já havia se envolvido numa
polêmica de cunho religioso em 1996, ao invocar são Tomás Moro,
padroeiro dos políticos, em um depoimento dado a uma comissão que
investigava seu suposto envolvimento num esquema de desvio de verbas
públicas.
O Partido Brasileiro Cristão não quis se pronunciar sobre o assunto.
23. A Breve e muito concisa história da família Costa e
Oliveira

Cada ser mais ou menos se reporta


próximo à fonte sua.
Paraíso, 1, 110-111

O velório de d. Letícia não foi concorrido. Contando com Abel, Ruth,


Conceição e Ambrósio, seis pessoas compareceram à capela do cemitério
municipal. Uma senhora que passava por ali quis ver quem tinha morrido.
A outra era o coveiro, que esperava a hora de agir. Iluminado por lâmpadas
fluorescentes, o salão ecoava os “ughrruns” de Conceição (e foi tudo o que
ela disse). A velha chorou muito, amparada pelo neto. Ruth se sentiu
enjoada e foi embora pouco tempo depois de chegar.
O corpo minúsculo repousava num caixão desproporcionalmente
grande, e o rosto da defunta, ossudo e enrugado, parecia estar sorrindo,
como sempre. O pastor Abel quis fazer um pequeno discurso, mas desistiu.
Pouca plateia. Se o fizesse, diria que a tia-avó havia morrido exatamente
como viveu: sorrindo porque assim era o formato do seu rosto. Achou que
era um ótimo necrológio para alguém que dedicara a vida à pesquisa da
tristeza. Pensou em mais tarde mandar publicar essa frase, junto com uma
breve nota laudatória (boa tia, boa patroa etc. e etcétera), no jornal local.
Era o mínimo que podia fazer. No testamento, a tia-avó o nomeava
herdeiro universal. Receberia sítio, fortuna e todo o resto, contanto que se
dispusesse contratualmente a organizar e publicar sua obra única e prima,
a Breve e muito concisa história da família Costa e Oliveira. Naturalmente,
aceitou a tarefa de bom grado. Ainda não havia lido os cadernos, nem sabia
se as ideias de d. Letícia eram dignas de publicação, mas admirava sua
sabedoria, sua biblioteca, sua casa e o jardim da frente, no qual planejava
instalar um balanço para que o filho futuro pudesse brincar. Faria tudo
com gosto; sentia-se honrado por ter sido escolhido. O sepultamento foi
rápido, a redação do contrato também. Em alguns meses de juridicagens,
tudo seria dele, graças a Jesus Cristo, Nosso Senhor. Esqueceu-se de
mandar publicar a nota no jornal, mas nem por isso se sentia menos grato.
Alguns dias depois do enterro, separou os trinta e cinco cadernos da tia e
começou a folheá-los para ter uma ideia do trabalho que a organização lhe
daria, se era coisa de que poderia se livrar em uma semana ou duas. Ao ler
pela primeira vez as anotações de d. Letícia, no entanto, descobriu que não
seria tão simples. A caligrafia era aracnídea, com letras finíssimas e de patas
longas, de modo que cada linha escrita ocupava duas pautas, mas as
palavras e letras estavam tão coladas umas às outras que cada linha do
caderno se transformaria em três no computador, em quatro na página de
um livro. E não havia uma rasura sequer. O estilo era tortuoso e mudava
sem motivo aparente, o que de início o confundiu. O parágrafo inicial do
tomo vinte, seção um, por exemplo, dizia isto:

Esta seção tem por objetivo apontar os danos causados pela proliferação
desenfreada, nos mais diversos ecossistemas do planeta, da espécie popularmente
conhecida como “árvore genealógica”. Após 3 (três) anos de pesquisa, verificou-se
que a presença expressiva dessa espécie está diretamente relacionada à
apresentação de sintomas como a cegueira temporária, variadas formas de delírio,
visão dupla, taquicardia, roubos, furtos, monarquia, intolerância religiosa, filosofia
dualista ou arborescente, egoísmo, acumulação de capital, noções profundas de
sujeito e objeto, utilização constante do termo “árvore da vida” em verso e prosa, a
profissão de relojoeiro e a de economista, visitação de jardins botânicos com o
único intuito de tirar fotografias, festividades como o dia das mães, dia dos pais e
dia dos avós, e, especialmente, o tríptico parricídio/fratricídio/matricídio, e,
especialmente, a epidemia de desgosto que ameaça se espalhar pelo planeta
(Terra) e aniquilar a raça dos homens (humana).

E era seguido de outro que, ao que tudo indicava, não mantinha relação
alguma com o que o antecedia:

Existe no corpo humano, próximo à glândula pineal, outra glândula mais,


descoberta por Johann Huysk em 1732, cuja real função permaneceu encoberta até
meus estudos de 1979 (tomo 8, seção 9) revelarem tratar-se de um apêndice
escurecido e viscoso, também presente em cães e gatos. No organismo desses
animais, a glândula de Huysk cumpre função parasitária: absorve energia
hormonal para redistribuí-la ao cérebro, para que sintam fome e, alimentados,
sobrevivam. No homem, contudo, tal glândula se tornou ociosa após o surgimento
do Homo sapiens, cuja sensação de fome é regulada pelos sucos estomacais. Desse
modo, a glândula de Huysk, que creio por bem rebatizar de “nervo escuro”,
tornou-se mero apêndice animalesco, cuja função principal é secretar uma
substância preta que faz as pessoas dizerem coisas tenebrosas umas às outras.
Contrabalanceando o nervo escuro, há, no hemisfério norte do cérebro, o nervo
cristão (nome provisório), de coloração esbranquiçada e seca, que regula as
atitudes éticas e filosoficamente acertadas.

Abel fechou os cadernos, derrotado. Enquanto empilhava novamente


uns sobre os outros na mesa da sala, disse a si mesmo que seria uma tarefa
de meses, organizar e transcrever toda aquela sandice. Olhou em volta —
sala, casa, janela, jardim frontal — e se arrependeu do insulto. A tia não
era louca, pobrezinha; ela lhe dera abrigo quando ele mais precisava,
comida e conversa etc. e etcétera. Era o mínimo que ele podia fazer.
Desempilhou os cadernos e procurou novamente o que havia lido. Releu,
agora com boa vontade: “Contrabalanceando o nervo escuro, há, no
hemisfério norte do cérebro, o nervo cristão, de coloração esbranquiçada e
seca, que regula as atitudes éticas e filosoficamente acertadas”.
Fazia sentido. Claro que não era uma observação anatomicamente
correta, mas, relativizando as coisas, não era senão por causa do tal nervo
escuro que ele havia amuado as plateias africanas com discursos
melancólicos e, consequentemente, perdido o emprego. Decidiu que o
nervo era uma metáfora para a imperfeita natureza humana, e isso lhe deu
ânimo para continuar lendo. Relativizando as coisas, podia acreditar no
que d. Letícia escrevia.
Foi acreditando. Quando não estava fora de casa, cuidando do
inventário da falecida ou dos preparativos para a fundação da igreja,
passava horas sentado à mesa da sala, folheando e transcrevendo,
organizando e escaneando fotografias, lendo anedotas e relendo atestados
de óbito. A Breve e muito concisa história da família Costa e Oliveira
ganhava forma nas dedicadas mãos de Abel. E, como costuma mesmo
ocorrer com as palavras, as da tia foram se entranhando na mente dele, às
vezes fazendo-o rir ou concordar violentamente com a cabeça.
Com o tempo, sua voz mesma foi assumindo o tom dos parágrafos.
Falava conciso e breve quando narrava a Ruth as histórias de seus
antepassados, exatamente como na primeira parte do livro, o “Catálogo dos
desgostosos”:

José Lorde Costa e Oliveira nasceu em 1891, nos arredores de Santa Maria
Madalena. Tinha o apelido de Dindindão até a ascensão do Getúlio Vargas ao
poder. Depois, por muito se parecer ao Getúlio Vargas, ganhou os apelidos “O
homem” e “Getúlio”. Detestava ser comparado ao Getúlio Vargas. Morreu em
1939. Causa mortis: desgosto (ou Getúlio Vargas). (Acompanha fotografia de
Getúlio Vargas fumando charuto.)
Maria das Dores Costa e Oliveira Magalhães nasceu no primeiro quarto do
século XIX. Sua filha mais nova fugiu com um comerciante de charque e foi viver
em Maricá. Faleceu por volta de 1850. Causa mortis: desgosto (ou Maricá).
(Acompanha cartão-postal de Maricá.)
Simão Genuíno Costa e Oliveira nasceu em 1901, no Rio de Janeiro. Não
conseguiu ser deputado ou, sua outra opção, rainha de Sabá. Morreu em 1942.
Causa mortis: desgosto (ou Governança).
Antônio Abraão Costa e Oliveira nasceu em 1955. Ficou doutor e enriqueceu na
capital. Sua esposa o presenteou com as obras de Maiakóvski e ele ficou doudo.
Causa mortis: desgosto (ou Maiakóvski).

E falava em barroco ou romântico quando debatia com os colegas de


outras igrejas, com o povo ou com os vereadores da cidade. E as ideias cada
vez mais eram as da tia. Algumas eles copiava, amiúde palavra por palavra,
da segunda parte da Breve e muito concisa história da família Costa e
Oliveira, intitulada “Investigação moral, científica e filosófica do sentido
simbólico e prático do morrer de desgosto”:

Não há coisa sobre a terra que seja a coisa mesma: entre nós e as coisas mesmas
existe um muro transparente, mas que não se pode pular. “Olhe, mas não toque”,
é o que diz o diabo. A virtude do diabo não está em suas entranhas, mas em seu
temperamento humorístico. E pelo humor, Ele-o-tinhoso pode destruir e causar
tristeza. Mas veneno com veneno se combate. E Deus é também um deus de
alegria.
Portanto, aquele messias do Messias, que virá a curar a humanidade da
iminente epidemia de desgosto, deve ser como Epimênides de Creta (Tito 1,12),
que falava por meio de engraçados paradoxos e disse que todos os cretenses são
sempre mentirosos. E não era Epimênides de Creta um cretense? Ora, pois, sim,
era-o. E não foi esse Epimênides quem livrou a cidade de Atenas de uma praga?
Pois então. O Costa e Oliveira que salvará o mundo da epidemia do desgosto deve
ter as qualidades do cretense, isto é, ser um paradoxo ambulante e gracioso. Pois as
regras da boa Lógica não valem para Deus, muito menos para o diabo.
A respeito, pois, do princípio geral do cosmo, basta o que eu disse.

Outras ele improvisava, baseando-se no que havia lido e ouvido. As


últimas palavras de d. Letícia, por exemplo, “Todo mundo no mundo é
um Costa e Oliveira”, se transformaram em slogan de sua infundada igreja.
Para o pastor Abel, a frase significava a fraternidade universal, o princípio
pelo qual todos os seres humanos são irmãos em Deus e, portanto,
suscetíveis de morrer de desgosto como legítimos Costa e Oliveira. Era isso
que a tia quisera expressar com seu último suspiro — ele dizia —, mas a
boa velha não havia podido formular o pensamento claramente, por falta
de tempo. Se tivesse gozado de mais alguns minutos de vida — ele tinha
certeza —, ela diria com todas as letras que a epidemia não precisava
cruzar nenhuma fronteira física ou biológica, porque já estava grassando
nas populações, porque todos eram irmãos, porque todos eram Costa e
Oliveira. Nesse momento, se estivesse diante de um grupo de cinco ou
mais pessoas, o pastor Abel levantava o dedo indicador, ficava em silêncio
por uns segundos e completava pomposo:
— Ademais, é de boníssimo tom perdoar a falta de clareza dos
moribundos. — Ao que todos assentiam com a cabeça, pios e
compadecidos.
Quando queriam saber mais sobre o que era morrer de desgosto, o
pastor Abel falava científico e recitava a seguinte passagem, com pouca ou
nenhuma variação:

No início, os sintomas da doença do desgosto são semelhantes aos de uma virose


comum: dores no corpo, fadiga, sensação de frio e febre. O contágio se dá por
meio de toques, palavras e ações mal interpretadas ou interpretadas corretamente,
o que faz com que toda a população mundial se enquadre no grupo de risco
endêmico. O período de incubação da doença varia de 1 (um) dia a 190 (cento e
noventa) anos. Não há prevenção. Não há terapêutica comprovadamente eficaz.
Os sintomas apresentados por pacientes em estado avançado de desgosto são, entre
outros: febre alta, glossolalia, alucinações, fome e sede, sonolência à noite e
agitação no período diurno, longos períodos de desânimo, incapacidade de se
levantar da cama, rinite, hepatite, bursite, miopia e astigmatismo, irritação nos
olhos, congestão nasal, pânico e dores abdominais.
A maioria pensava por uns momentos e se dava conta de que conhecia
alguém que de fato havia morrido logo depois de apresentar um ou vários
dos sintomas listados pelo recém-chegado profeta. Ficavam assustados.
Clamavam por misericórdia. Davam aleluias. Quando os interlocutores
mais desconfiados faziam cara de descrença, Abel sorria e apelava para o
discurso jornalístico: sacava um recorte de jornal da pasta (de couro
marrom) e lia em voz alta que os mais respeitados pesquisadores das mais
respeitadas universidades previam que até 2015 a depressão se tornaria o
transtorno a atingir o maior número de pessoas no mundo.20 E o que era
depressão se não um sinônimo para desgosto? Os interlocutores ficavam
sem o que responder. O pastor Abel aproveitava o silêncio, sorria mais uma
vez e contava uma anedota engraçada ou uma piadinha para aliviar as
consciências de seu rebanho. Depois, reiterava: era preciso combater a
epidemia de desgosto.
O povo, curioso, confabulava. O vírus do desgosto já estava se
espalhando? Como seria a igreja do pastor Abel? Aquela mulher do pastor
Abel era americana ou europeia? Como era branca! Usava filtro solar
naquela cara dela? O povo queria saber quem era o salvador, o messias do
Messias, se era o próprio pastor Abel, ou uma entidade que desceria dos
céus, ou outra pessoa.
Ele sorria e respondia, com ar de quem já sabe de tudo:
— Em breve, o Senhor nos revelará mais esse mistério.
E sorria, e sorria. Os dentes brancos, bem cuidados. Sorriu tanto durante
os contatos preliminares com o povo de Santa Maria Madalena que o rosto
engessou num formato anguloso, bonito, sadio. Algumas rugas nos cantos
dos olhos, mas nada que lhe tirasse a beleza. O povo dizia que mesmo
sério ele parecia que estava sempre sorrindo ou quase rindo. A maioria,
assim que o via, sorria de volta.

20. A equipe de pesquisadores do King’s College London responsável pela previsão


também identificou relações fortes entre o cromossomo 3p25-26 e o desenvolvimento
de distúrbio depressivo.
24. A Igreja Global em Cristo

[…] que sobre un huevo pone la gallina, y muchos


pocos hacen un mucho, y mientras se gana algo no
se pierde nada.
Dom Quixote, II, 7

Assim que recebeu o primeiro telefonema de Abel após o devastador


contato com as teorias da tia-avó, d. Noemi viajou até Santa Maria
Madalena, decidida a não deixar seu caçula enlouquecer. Ele havia ligado
para contar trivialidades: como andava a construção do edifício da igreja, o
tamanho da barriga de Ruth, o clima ameno que fazia na cidade etc. e
etcétera. A mãe respondeu com outras notícias domésticas: o preço do
leite, o último quebra-cabeça que havia montado, o resfriado que pegou na
rua um dia desses e que a tinha colocado de cama, com dores nas juntas,
no estômago… E, ao ouvir do resfriado, a voz de Abel se transformou.
Murmurou algo que a mãe não entendeu e, logo em seguida, perguntou se
ela estava triste. D. Noemi brincou, dizendo que não era uma Costa e
Oliveira de nascimento, só por casamento; não morreria de desgosto; riu.
O pastor Abel também riu:
— Todo mundo no mundo é um Costa e Oliveira.
Depois, citou 1 Coríntios 11,30:
— Por causa disto há entre vós muitos fracos e doentes.
— Disso o quê, meu filho?
Silêncio breve.
— O grande problema — respondeu Abel — é outro. Está nos jornais,
querida, a epidemia de desg—
D. Noemi o interrompeu, mudando bruscamente de assunto. Disse que
pretendia passar uma temporada em Santa Maria Madalena. Mataria as
saudades. Faria companhia a Ruth, que devia se sentir muito sozinha
enquanto ele dava duro para erguer o edifício da igreja. Aproveitaria o
clima ameno da cidade. Ficaria com eles até a chegada do netinho ou
netinha:
— Que tal?
— Será muito bem-vinda, querida, mas—
Arrumou as malas e, na mesma noite, estava num ônibus rumo ao
interior do estado, aterrorizada. O filho já falava como a tia-avó defunta. O
motorista parecia não ser muito experiente, o que, nas curvas,
potencializava o medo. E conhecia aquele tom de voz, o mesmo que o
marido usava logo assim que perdeu o juízo: doce e lento, como se
soubesse perfeitamente que era louco. Talvez chegasse tarde demais.
Rezou uma ave-maria, a sério, enquanto o ônibus sacolejava na subida da
serra.
A influência das teorias de d. Letícia em Abel era tanta que, quando d.
Noemi chegou a Santa Maria Madalena, ele ainda não tinha decidido qual
nome daria à sua igreja, mas as duas opções eram o bucólico “Templo
Jardim das Oliveiras” e o loquaz “Igreja dos Breves e Muito Concisos Dias
em Cristo”. Na noite seguinte, enquanto mãe, filho e nora estavam
sentados na varanda da casa do sítio observando como a cidade era escura,
d. Noemi apelou para o globo terrestre de que Abel tanto gostava quando
menino. Sugeriu, como quem não quer nada, o nome “Igreja Global em
Cristo”:
— É mais conciso, mais breve, meu filho.
Ao cabo de alguns segundos de reflexão, o pastor acatou alegremente a
sugestão. Abraçou a mãe e agradeceu a Deus por usar aquela senhora
como instrumento de Sua vontade. E emendou outras aleluias: pelo teto
do edifício, que estava quase pronto; pelo dinheiro para as telhas, doado
pelos vereadores e pelo prefeito, que se mobilizaram e fizeram vaquinhas;
por Daniel, que tinha entrado desinteressadamente com o capital inicial;
pela população madalenense, que o havia acolhido tão bem; por
Benjamim, seu irmão querido; pela chave da cidade que lhe deram antes
mesmo de começar a pregar; e, por fim, pela generosidade de d. Letícia,
que havia deixado tudo para ele, graças a Jesus Cristo, Nosso Senhor de
toda bondade e presteza.
— Hallelujah — disse Ruth.
D. Noemi sorriu.
A Igreja Global em Cristo seria inaugurada com grande pompa dali a
algumas semanas. O prefeito estaria presente, haveria uma solenidade e,
depois do primeiro culto, uma festa. Todas as manhãs, bem cedinho, Abel
saía à varanda, de roupão, e tomava café olhando para o edifício ainda sem
pintura, que antes havia sido um edifício sem teto, e antes sem paredes, e,
antes de ele chegar a Santa Maria Madalena, uma colina sem nada — terra
seca e mato amarelo. Do nada, ele havia erguido aquele pequenino templo
de Salomão particular. Além disso, havia gerado um filho em Ruth do
mesmo modo que Davi gerou Salomão: surpreendendo a mulher no
banho. Sua esposa não era propriamente uma Betsabá, era mirrada e um
pouco pálida, mas o Senhor dá o que pode. Enquanto tomava o café e
observava os primeiros pedreiros subindo a colina, Abel ia aos poucos se
transformando em pastor Abel. Ensaiava discursos, pensava em Salomão,
pensava em Davi, em seu filho futuro e em si próprio. Um tempo de
turbulência estava por vir, tempo de tristeza e tribulação. Estava tudo
explicado no livro de d. Letícia. Era preciso alertar o rebanho e preparar a
paz para o herdeiro. Cabia a ele, o pastor Abel, lutar contra a epidemia de
desgosto, para que o filho o sucedesse nos tempos de alegria. Terminado o
café, vestia o eterno terno cinza com gravata vermelha e já era pastor Abel
por inteiro. Voltava à varanda e olhava uma última vez para sua igreja. Um
dia, aquilo tudo seria do filho.
De longe, os pedreiros pareciam formiguinhas.
Logo nos primeiros dias, d. Noemi notou que, pela manhã, Abel não
gostava de ser incomodado. Qualquer um que se aproximasse era recebido
com um olhar meio vago, frases desarticuladas e uns gemidos sofridos, os
mesmos que fazia, na infância, quando estava longe de seu globo terrestre
de plástico. A única pessoa que não parecia incomodar era Conceição, a
velha empregada de d. Letícia, que lhe servia o café e que, depois da morte
da antiga patroa, tinha ficado praticamente muda.
Lá pelas onze, ele saía, quase sem dar tchau, e no fim do dia voltava
sempre falante, risonho, com notícias da Câmara de Vereadores, das outras
igrejas da cidade e da vida de Santa Maria Madalena em geral: quem
morreu, quem nasceu, quem nasceria dali a nove meses etc. e etcétera.
Não era raro aparecer acompanhado e gritar, lá da entrada do sítio, que
havia convidados para o jantar. Peões de obra e secretários de finanças,
padres e médiuns espíritas, divorciadas e ex-drogados, todos podiam se
sentar à mesa do pastor Abel. E a todos ele a apresentava como “Noemi, a
católica”, logo antes de rir e dizer que era sua mãe.
Foi durante esses jantares que d. Noemi percebeu por que o filho era
querido em Santa Maria Madalena. O pastor Abel era zombeteiro com os
piadistas, grave com os sisudos e amável com todo mundo. Piscava para as
mulheres casadas há muito tempo e dava tapinhas nas costas de seus
maridos. Ouvia lamúrias e respondia com palavras alegres; ouvia boas
notícias e respondia com outras ainda melhores. Aos puritanos, oferecia
vinho e citava o Eclesiastes — “bebe com coração contente o teu vinho,
pois já Deus se agrada das tuas obras” —; aos alcoólatras, oferecia sucos e
citava Provérbios — “não estejas entre os beberrões de vinho”. Abraçava as
pessoas, olhava nos olhos. Era bonito. Era casado com uma estrangeira.
Dizia que o Deus deles era um Deus de alegria e, mesmo quando falava da
epidemia de desgosto, o que sempre acontecia, usava um tom quase
brincalhão, que não assustava ninguém. Uma peste de tristeza não era
exatamente o tipo de profecia que as pessoas queriam ouvir, mas na boca
do pastor Abel não parecia tão ruim. E ele sempre contava algum caso
engraçado logo depois. Muitos ficavam até de madrugada. Ao sair, todos
prometiam ir aos cultos da Igreja Global em Cristo, padres e bêbados, ex-
comunistas e solteironas.
25. O mapa e o encontro

Olhai para as aves do céu.


Mateus 6,26

Benjamim levou menos de uma hora para confeccionar o mapa das


formigas. Arrumou uma tela de cem por cento e vinte centímetros e traçou
linhas pretas a esmo, até formar algo parecido a um arabesco. Depois,
rabiscou a lápis algumas coordenadas, para dar a impressão de que havia
passado dias estudando os trajetos que os insetos descreviam pelo estúdio, a
sala de estar de seu apartamento. Correu levemente a borracha sobre os
riscos em grafite para aparentar que tinha tentado apagá-los. Rascunhou
diversas figuras geométricas em quatorze folhas de papel A4, que deixou
sobre a mesa da sala, dispostas em calculada desorganização. Em algumas
delas, transcreveu frases e fórmulas de antigos tratados de matemática que
encontrou na internet.
Colocou o cavalete de frente para a porta de entrada. Olhou. O mapa
das formigas era a única obra original que havia descrito para os
frequentadores do Café Aleph; deveria ser a primeira e única coisa a
chamar a atenção de Paula, que provavelmente pediria para ver as telas
que tanto maravilhavam a café society. Não queria passar por mentiroso.
Diria que seus outros trabalhos estavam na casa da mãe, em Copacabana, o
que não era propriamente uma mentira.
No dia anterior, Paula havia mandado um e-mail pedindo seu número
de telefone, sem dar oi nem tchau. Ligou no instante em que recebeu a
resposta:
— Alô.
— Teu?
— Oi?
— Benjamim?
— Não. Não é daqui não.
Enviou outro e-mail. Benjamim respondeu que tinha dado um número
velho, um erro que sempre cometia, que cabeça, a dele etc. e etcétera, e
que lá ia o número certo.
Ligou novamente:
— Teu?
— Oi…, Paula…?
— Teu, quero te ver.
Sem dar oi nem tchau, marcaram de se encontrar na Taberna da Glória,
por sugestão dele. Nenhum dos dois disse se era perto ou longe de suas
casas. Não disseram como estariam vestidos. Não combinaram um sinal
para se reconhecerem. Não precisavam.
— Te amo.
— Eu também.
Comemorariam o aniversário de dois meses de namoro.
Olhou novamente para o mapa e considerou as formigas. Imaginou as
formigas olhando para o mapa de seus próprios movimentos, como os
homens antigos olhavam para as estrelas e enxergavam nelas os caminhos
traçados por um deus qualquer. As formigas, espécimes crédulos, tinham
encontrado o maior amor do mundo em Benjamim. Grande efervescência,
grande esperança no mundo formicular. Pois aquele era o homem que
lhes havia feito um mapa. Aquele era o homem que mostraria a elas os
atalhos para os lugares mais lindos. Aquele era o caminho, a verdade e a
vida. Glória a Benjamim, diriam as formigas na língua das formigas, que é
o som nenhum. E lhe prestariam homenagens, reservariam uma parte de
suas folhas para ele, ergueriam pequeninas capelas em seus formigueiros
para adorá-lo. No fim e no início só haveria Benjamim. E elas o amariam
mais porque aquele que conhece os caminhos conhece, sobretudo, a saída.
Naturalmente, as formigas pouco entendem de assuntos cartográficos.
Se entendessem, saberiam que há mapas sem saída. Que o mapa que
descrevia seus movimentos no interior do apartamento 303 do edifício
Glória estava dentro do mapa do bairro da Glória e que o mapa do bairro
da Glória estava dentro do da cidade do Rio de Janeiro, e o da cidade
dentro do do estado, o do estado dentro do do país, o do país dentro do do
mundo. Saberiam, enfim, que deste último, do mapa-múndi, não há
escapatória para as formigas, seres que ainda não dominaram a tecnologia
das viagens interplanetárias. Pobres bichos sem saída, Benjamim pensou, e
foi fazer outra coisa: trancar a porta de entrada, tomar uma rua em direção
a outra rua,21 olhar para o céu e suspirar ou passar as mãos numa parede e
sentir como era sólido o edifício Glória.

21. Que dá para outra rua, que dá para outra rua, que dá para outra rua e assim por
diante.
26. Conversa fora

Nada, realmente nada, pero sucede que nada más


nada no da nada sino que a veces da un poquito de
algo.
Cortázar

Ser esposa de um popstar de Santa Maria Madalena, de uma estrela em


escala divina,22 não era fácil para Ruth. Antes da visita da sogra, suas únicas
companhias durante o dia eram a quase inexistente Conceição e seu neto,
Ambrósio, um garoto muito preto, de rosto oval. A velha não dizia nada
além de “ughrrum”. Ruth respondia com o mesmo som, que acabou se
tornando uma espécie de língua franca entre as duas. O menino, por outro
lado, não fazia “ughrrum”, não falava inglês e entendia pouco do que ela
tentava dizer em português. Parecia ter uns quatorze anos e uma
disposição tremenda para segui-la pelos corredores, como um fantasma ou
um bichinho de estimação. Às vezes, o garoto lhe oferecia um pedaço de
manga ou uma jabuticaba. Às vezes, saía correndo sem motivo. Quando
ela estava lendo, ele alcançava um volume das muitas estantes espalhadas
pela casa, sentava perto e fingia ler, quase sempre com o livro virado de
cabeça para baixo. Sentia-se sozinha.
— A senhora estando aqui é como um bem vento — arriscava em
português.
D. Noemi sorria e, depois de corrigir pronúncia e sintaxe, dizia que o
prazer era dela, em inglês. Preferia usar o idioma da nora, porque assim
podiam falar livremente sobre tudo. E Ruth falava. Sobre tudo. Narrava
fatos da infância, em detalhes. Reclamava dos enjoos da gravidez, dos
tornozelos inchados, do nariz abatatado, das varizes. Perguntava a respeito
do falecido sogro, perguntava como estava Daniel, como era a vida dele, a
mulher dele, se o filho dele estava grande ou pequeno ou médio, se os
irmãos se davam bem. Contava como Abel gostava de d. Letícia, como ele
só falava no livro de d. Letícia, que já tinha sido publicado, com uma
tiragem de dez exemplares. Falava que esperavam com grande esperança a
vinda do messias do Messias. Dizia que rezava todo dia para que seu bebê
fosse menino, porque o homem não provém da mulher, mas a mulher, do
homem. Comentava as árvores do quintal, a vida na roça, a vida na
Carolina do Sul, a vida na África. E d. Noemi ouvia atentamente tudo que
a agora frutiforme nora dizia. Tinha engordado muito. Parecia uma pera.
Suava. Como suava, a americana. E quantos quebra-cabeças ela tinha
montado na vida? Muitos, poucos ou mais ou menos? Era um passatempo
interessante? Por quê? E o Rio de Janeiro, como era viver no Rio de
Janeiro? Bonito, feio ou médio? Antes de conhecer Abel, ela achava que a
capital do Brasil era o Rio de Janeiro e que todo mundo era feliz. E ria, e
chorava, e suava. Às vezes, corria para o banheiro e vomitava. Quando a
sogra falava sobre Benjamim, ela ficava sem graça, calava ou mudava de
assunto.
— I think the boy is homeschooled or something — disse numa dessas
vezes, apontando para o garoto Ambrósio, trepado na jabuticabeira.
— Ughrrum — disse Conceição, aparecendo de repente.
— Ughrrum — respondeu Ruth.
D. Noemi não disse nada.
Minutos depois, Conceição voltava com café e bolo de fubá numa
bandeja.
— Quem é esse messias do Messias, afinal? — perguntou d. Noemi,
como se não importasse muito.

22. Estrela esta que, no caso específico, é um corpo celeste de menor grandeza, dado
o tamanho da cidade.
27. Taberna da Glória

Nós, os homens nervosos.


João do Rio

— O que que foi? Você tá com uma cara de assustadinho… — disse a


mulher, pela terceira vez na noite.
— Nada…
Paula apareceu vestindo uma camiseta branca com a cara do Woody
Allen estampada, sandálias e calças jeans. Benjamim estava na mesa de
sempre, vestido como quem espera o amor da vida. Olhava fixamente para
a portaria do edifício Glória quando a mulher cutucou sua nuca e
perguntou se ele era o famoso Hecateu de Mileto, o Logrógafo.23
Benjamim riu que sim enquanto girava o pescoço. Os ossos estalaram.
Arregalou os olhos.
Ela deu um gritinho agudo, segurou suas bochechas com as palmas das
mãos abertíssimas e lhe acertou dois beijos: primeiro na testa, como se o
conhecesse há anos, depois na boca. Benjamim não piscou uma vez
sequer. Paula se sentou. Não era Paula:
— Assim a gente vai digerir melhor nossa comida, sem ficar tenso pra
ver quem vai dar beijo, quem não vai…
Obviamente, não era a mulher que havia visto no coquetel da
Multidões. A Paula que estava diante dele era bem mais nova, mais baixa,
mais cheia de corpo e um pouco corcunda. Não era sua vizinha: contou
que morava em Santa Teresa, onde também trabalhava, numa galeria de
arte naïf. Seios pequenos para tanta corpulência. Cabelos castanhos, com
uma rebelde mecha vermelha. Suava — de nervoso, né, ela disse. Algumas
espinhas perto do sorriso apaixonado. Os poros da pele em cima da boca
denunciavam depilação recente. Disse três vezes que o amava antes de
terminar a primeira tulipa de chope. Benjamim respondeu três vezes que
também a amava. Ficava um silêncio longo depois de cada uma delas, que
a mulher preenchia:
— O que que foi? Você tá com uma cara de assustadinho…
Na terceira vez, Benjamim não respondeu. O rosto dela deprimiu:
— Acho que você estava esperando uma pessoa diferente, né.
— Nada…
Paula se esforçou num sorriso e mudou de assunto. Correu os olhos pela
Taberna da Glória, movendo a cabeça em golpes, como um galo, e disse
que se sentia bem em lugares com história. Naquelas mesas tinham se
sentado (ela começou a contar nos dedos, lembrando-se dos nomes que
havia pesquisado horas antes na internet) Mário de Andrade, Pixinguinha,
Noel Rosa, Ari Barroso, Otávio Dias Leite, Dante Viggiani, Clementina de
Jesus, Moacir Werneck e até Madame Satã.
— Até Madame Satã — repetiu.
— Nós conhecemos todos esses personagens — disse Benjamim, rindo.
— Os verdadeiros, amor.
— Os do Aleph não são verdadeiros?
Paula gargalhou alto e pôs as mãos sobre as dele. Ou já estava bêbada,
ou muito contente. Benjamim teve pena de dizer que a Taberna da Glória
original, que toda aquela gente histórica frequentava, ficava a algumas
quadras dali e havia sido destruída nos anos 70 para dar lugar a uma
estação de metrô. O bar em que estavam tinha o mesmo nome, mas não
era o mesmo — mais ou menos como ela, cuja virtude principal era quase
ter sido outra mulher, na imaginação dele. No entanto, concordou.
Também gostava de lugares com história:
— Lamartine Babo e Lúcio Rangel também vinham aqui.
A garota não tinha culpa de nada. As pessoas só podem ser o que são e,
afinal de contas, possuir a virtude de quase ter sido outra já era melhor que
não possuir virtude alguma. Passou a chamá-la de “amor” também e a
sorrir com cara de bobo para as coisas que ela dizia. Mas podia ser por
causa do chope. Contou da sua vida como a entendia: museólogo,
divorciado, artista plástico, bem-humorado, amante carinhoso, irmão de
um pastor. Ela também contou: dezenove anos, estudante de produção
cultural, solteira, bipolar, sempre quis ser ruiva, adorava viajar e comida
japonesa. Brindaram os dois meses de namoro e trocaram juras de amor
duradouro.
De tempos em tempos, Paula se ajeitava na cadeira de modo a parecer
mais farta do que era, apertando os braços contra as laterais dos seios e se
inclinando levemente na direção dele. Quando o assunto morria,
Benjamim olhava para a rua e fazia um comentário inconvenientemente
romântico sobre o bairro da Glória: a cor da noite, um homem que passa
vestido de século passado, a paz que reina na interioridade das coisas etc. e
etcétera. Aí ficava quieto, para dar maior efeito ao que tinha dito. A cada
silêncio, a garota se inclinava e sorria um pouco mais.
Lá pelas onze da noite, voltaram ao assunto dos lugares com história.
Benjamim disse a ela que tinha certeza de que existiam lugares na cidade
com uma vibração diferente, “uma alma menos de chumbo”, e que a
Taberna da Glória era especialmente “menos de chumbo”. Não chegou a
dizer que a causa era a presença dela, mas a menina imediatamente se
apropriou do elogio, transmutando “menos chumbo” em “leveza”, e
“leveza” em “eu poderia amar você para todo o sempre”. Os hormônios dos
supostos dezenove anos e suas alquimias converteram os elementos, ela se
levantou — o rosto vermelho, ardendo — e disse que ia ao banheiro:
— Pede a conta, amor. Vamos pra casa.
Ele a encorajou com um tapinha nas nádegas e olhou para a portaria de
seu prédio no instante em que Paula, a vizinha, abria o portão de ferro para
sair.

23. [Sic].
28. Anedota do homem vestido de século passado

No mundo não existe cousa mais fértil


do que uma ideia má.
Visconde de Cairu

Esta é a última noite do homem vestido de século passado — bigode,


terno Ducal, óculos de aro grosso, brilhantina.24 Chama-se Flaviano, nome
de séculos ainda mais passados. Flaviano Mascarenhas. Morrerá do
desgosto de ter contado uma anedota que lhe custou o emprego de
almoxarife numa firma de pequeno porte e também do século passado. A
firma se dedicava à venda de produtos inventados antes dos anos 2000 e
nunca se interessou por atividades filantrópicas, nem a título de
publicidade.
O Mascarenhas, ao contrário, ajudava a comunidade, e por puro
sentimento patriótico. Cada cidadão que dê o seu pouco para fazer muita a
glória do Brasil, como se aprendia no século passado, nas extintas classes de
Moral e Cívica. Assim, durante anos o Mascarenhas praticou o que
praticava, na calada dos ônibus e bondes e trens, certo de que estava
contribuindo. E era desnecessário divulgar. A mulher (que, no dia em que
soube da demissão do marido, fugiu com um primo), os dois ou três
amigos e os colegas de trabalho nada sabiam das boas ações do
Mascarenhas. Ele não se importava; que a mão direita não saiba o que fez
a esquerda, para que fique escondido. A Nação é um monstro sem olhos,
porque não precisa ver.
Mas há de se perdoar um almoxarife que, na hora do almoço, sentado à
mesa com cinco ou seis colegas contadores de vantagem, se sinta impelido
a se vangloriar um pouco. Um poucochinho. Ninguém pode diminuir um
cidadão com o carro novo que comprou ou com as boas notas dos filhos,
pois todos os cidadãos são iguais, pensou o Mascarenhas, logo antes de
dizer, sorriso de orelha a orelha, que tinha o costume de atormentar
crianças desconhecidas.
“Atormentar” foi o verbo que se usou depois, nos corredores da firma,
porque a história que o Mascarenhas contou foi toda de palavras bonitas e
patrícias.
Estava no ônibus para a Central, manhã cedinho, e do seu lado sentou-
se um meninote, muito miúdo, sozinho, trajando roupa de escola, os pés
balançando. O que o homem comum faz?, perguntou aos colegas, olhando
rapidamente à volta, e emendou: nada; pois segue seu caminho. Mas,
agora, o que um cidadão faz, nessa mesma situação, neste mesmo século
perdido de Deus, pátria e família? Um cidadão insufla na criança a
vontade de ser maior, de ser alguém na vida! Ergueu o garfo, com um
pedaço de filé espetado, salpicando o ar com a farofa que havia em cima.
Pois é o que eu faço. Aliás, meus colegas, é o que venho fazendo há anos.
As crianças são o futuro da nação do Brasil, disse, girando o garfo para
enfeitar a frase. Os colegas ouviam, interessados pela metade. O
Mascarenhas inflava o peito, orgulhoso. A vantagem que contaria se
sobrepunha avantajada. Nunca mais fariam pouco-caso do almoxarife, do
“pobre almoxarife Mascarenhas”, pensava, imitando na cabeça a voz de
pena que imaginava que eles usavam para falar dele. Pois o pobre
almoxarife tinha uma alma de ouro. De ouro. Era um exemplo de
abnegação.
Na manhã da anedota, o Mascarenhas aproximou a boca do ouvido do
garoto e disse, quase sussurrando, mas com a voz firme, que ele nunca
seria nada na vida. Um vermezinho, um repolho, uma barata tonta, um
bostinha, um teleguiado, um pobretão, um burro, um estúpido, uma mula
sem cabeça. A criança fungou uma ou duas vezes. Um desvalido, um
canalha, um coliforme fecal, um enjeitado, um peão, uma podridão de
gente. O garoto baixou a cabeça e começou a chorar baixinho. Um
ladrãozinho, um percevejo, um sem-posses, um eleitor de merda, um
marginal, um alienado, um grandessíssimo filho de uma puta, isso sim. O
menino virou o rosto na direção dele, olhinhos vermelhos, bochechas
molhadas, uma lágrima quase pingando do queixo. Então, o Mascarenhas
repetiu o que sempre dizia nessas horas:
— Lembra de mim, moleque.
A mesa assombrou. O Mascarenhas continuou. Pois se não era assim
que se mudava um Brasil, ele não sabia mais como. Todas aquelas crianças
se lembrariam para sempre do homem de bigode e terno Ducal, e a
memória daquelas palavras as acompanharia até a madureza. Madureza,
mais dureza, ele disse, abrindo um parêntese. E repetiu, fechando o
parêntese e sublinhando as palavras com o garfo: madureza, mais dureza.
Enfim, aquelas palavras (duras, mas necessárias) seriam o combustível para
a subida delas. A cada dificuldade, os meninos e meninas, já crescidos, se
lembrariam do homem de bigode, com rancor ou não, e se sentiriam
desafiados. E o desafio é a energia de um país. É ou não é? “Quem era ele
para dizer que eu não serei nada nunca?”, pensariam as já-crescidas, cheias
de despeito, sempre que um problema aparentemente insolúvel
aparecesse. Pois saberiam resolver. Ah, se saberiam… O despeito constrói,
disse. Era preciso preparar a juventude para as vicissitudes. Madureza, mais
dureza!
A mesa ainda pasma. O Mascarenhas sorriu. Pelos seus cálculos, já havia
ajudado quase uma centena de pequenos cidadãos. Não era muito, ele
sabia, mas cada um que dê o seu pouco, concluiu, finalmente
abocanhando o filé.
A firma rumorejou indignada durante alguns dias, e a notícia das
caridades do Mascarenhas, o homem vestido de século passado, chegou à
sala do patrão. Evidente que foi demitido. E esta é sua última noite. Doída.
Noite cor de noite. A paz reinando na interioridade das coisas. Amanhã,
acordará sem mulher, sem emprego e cabisbaixo, prestes a ser atropelado
por um ônibus na avenida Beira Mar. Morrerá nove anos depois do século
XX, manhã cedinho, no asfalto mesmo, olhando para um cidadão que
passava por ali e que não tentará os primeiros socorros porque não conhece
os procedimentos. Não se sabe ainda se terá forças para dizer, segundos
antes de expirar, que o sentimento exato é o de que a vida o havia passado
para trás.

24. O mesmo que providencialmente passava diante da Taberna da Glória no


capítulo anterior, aliviando o autor, aliás, da tarefa de inventar a história de ainda
outro desgostoso moribundo, o que, acredite o leitor ou não, é muito extenuante.
29. A vida sexual das tartarugas

Trolls are not held to be malignant beings, and have


often had friendly intercourse with mankind.
William & Robert Chambers

Ela sai do banho, úmida, com o braço direito escondendo os mamilos, e


beija os cabelos de Benjamim. Ele sente o banho frio que ela tomou: a
pele eriçada, gelada, os pés molhando o tapete do quarto. Nem sinal da
toalha. Não pretende se vestir tão cedo. Ela se deixa cair no colo dele e diz
que seu nome de verdade pode não ser Paula, como ele vai saber, né, se se
conheceram pela internet? Ele diz que o nome dele é Benjamim e tenta
ler o dela na pele arrepiada, mas a escrita em braile se apaga num calafrio.
Ela mostra um documento de identidade — Paula Descotte Silva,
dezembro de 1989; filiação: Raúl Silva, Cláudia Descotte Silva — e faz
pose para uma foto três por quatro imaginária. Ri sozinha. Ela tem as letras
“cal(e)idoscópio” tatuadas no cóccix. Ele percebe e ela faz questão de
explicar o porquê, com a sintaxe precisa dos discursos ensaiados. Ele se
esquece quase imediatamente da explicação.
Paz na terra para todos os seres.
Uma hora depois, Paula ainda estava nua. Andava pelo apartamento, em
pelo, como se de fato conhecesse o namorado há dois meses. Agora estava
de pé, com um cigarro apagado nas mãos (evitava os males do tabaco),
observando o mapa das formigas. Benjamim, sentado um pouco atrás,
olhava para tela e menina. Fazia um esforço sincero para admirar menos o
seu trabalho que o corpo de Paula, que, guardadas as devidas proporções,
não era horrível. As mãos e os pés eram menores do que se poderia esperar
numa mulher do seu tamanho. Os quilos a mais, não muitos, se
concentravam na parte externa das coxas e nas laterais do abdômen.
Pouquíssima carne nos glúteos. As costas eram um pouco encurvadas,
como se lhe pesassem os seios murchos. Parecia uma tartaruga. Mas tinha
o rosto bonito.
Benjamim acendeu um cigarro e tentou sentir alguma ternura.
— Isso aqui é que é a vida? — ela perguntou, sem tirar os olhos do
mapa.
— Hm…
— Hm o quê?
— Hm não sei.
Silêncio breve.
— A gente não deveria estar se transformando em alguma outra coisa?
— No quê, por exemplo?
Ela girou o corpo e foi até ele. Sorriu. Suspirou. Apertou as bochechas e
os braços do namorado, afastou discretamente o pacote vazio da camisinha.
Depois de uns momentos, perguntou, retórica e afetuosa:
— Você é de verdade, Teu?
— Hm… Você é, Paula?
— Sou, né. É uma coisa que a gente nasce sabendo. — Pausa dramática
—. Não dá pra aprender a ser real. É como aprender a ser um anão.
Benjamim riu. Conhecia essa frase de algum lugar.25
— Me dá o mapa das formigas?
— É seu.
— As formigas daqui não vão ficar perdidas?
— Pode ser… Mas você é mais importante.
Ela estridulou de contentamento com o elogio.
De madrugada, ambos na cama:
— Lá no Aleph a ideia é mesmo dizer o contrário do que se quer dizer o
tempo todo, né. Acho até meio cruel, mas é engraçado.
— Hm… Aqui não?
— Acho que não, né.
— Hm…
— Você é o mesmo que o Hecateu de Mileto da internet?
— Não sei…
— Tudo é uma piada pra você, Teu?
— Eu estou sorrindo?
— Não sei, está escuro.
Riram. As risadas morreram.
— Eu pensava que você não fosse pintor de verdade.
— É?
— É. Lá todo mundo é o que não é, né… Mas cadê as outras telas que
você mostrou pra gente no Café?
— Hm… Algumas em Copacabana, na casa da minha mãe, que é
maior…
Silêncio.
— Vou deixar a camiseta do Woody Allen aqui de presente pra você se
lembrar de mim. Não vale a mesma coisa que a tela que você me deu,
mas… Você quer?
— Você vai sumir?
— Não, né.
Silêncio longo o suficiente para que ela compreendesse o motivo do
longo silêncio. Nada foi compreendido.
— Tenho medo que alguém te roube de mim, Teu.
— Ninguém rouba ninguém, amor.

25. É uma fala do filme A rosa púrpura do Cairo (1985), de Woody Allen.
30. Ninguém rouba ninguém

Cada nova flor cega os imbecis.


A. W. Schlegel

No dia seguinte, Benjamim foi até uma agência de correio e enviou


para o número 502 de seu próprio edifício a camiseta com a cara do
Woody Allen estampada. Remetente: “Benjamim — Taberna da Glória,
rua do Catete, no 1, Glória, Rio de Janeiro”, que era o endereço antigo do
estabelecimento, o original. Destinatário: “Paula — ladeira da Glória, no 8,
ap. 502, Glória, Rio de Janeiro”.
Chovia fino e persistente. Fazia um pouco de frio.
Imaginou sua vizinha abrindo o pacote e se deparando com o estranho
presente. Por que uma camiseta feminina, mas não do seu número? Por
que o endereço trocado, se a Taberna da Glória ficava logo ali na esquina,
na rua do Russel? Quem era Benjamim e como sabia seu nome? Ela
ergueria a camiseta para observá-la melhor, como se as respostas estivessem
na cara do Woody Allen, e um envelope cairia em seu colo. Lá dentro
encontraria dois anéis: uma aliança masculina e um anel menor, de ouro
branco, com pedrinhas vermelhas incrustadas.
E então talvez entendesse tudo.
Para Benjamim, os significados de seu gesto não poderiam ser mais
claros. O número 1 da rua do Catete já não existia há décadas, mas havia
sido o primeiro endereço da Taberna da Glória. Portanto, ao remeter os
presentes daquele endereço, declarava a Paula que seu amor por ela não
admitia falsificações. Todos os dias, ao sair de casa, a mulher via o letreiro
e os clientes da Taberna da Glória atual, sem saber (ou sem lembrar, tanto
fazia) que antes dela existira outra, mais original e, portanto, mais
verdadeira. Seu amor, ele queria dizer, era como a taberna que ficava na
rua do Catete: mais original e mais verdadeiro que o amor que ela
conhecia ou achava que conhecia. Não tinha precedentes. Tal como a
Taberna da Glória, o amor que sentia por ela resistiria a todas as
intempéries cotidianas. Nenhuma mudança o mudaria. Nenhuma
demolição seria capaz de demoli-lo.
Quanto aos anéis e à camiseta, tampouco poderia restar dúvida. Van
Gogh cortou a própria orelha e a enviou à amada. Ao mandar sua aliança
de casamento e um anel feminino, além da camiseta, Benjamim extirpava
todas as outras mulheres de sua vida e as oferecia a Paula. Acostumada a
ver obras de arte — afinal, frequentava coquetéis em museus —, ela
certamente perceberia que aqueles itens compunham algo muito similar a
uma natureza-morta. E, se interpretasse corretamente a disposição de
objetos, nomes e intenções, chegaria à conclusão de que o que ele havia
posto dentro do envelope era o próprio passado. Seu admirador estava
disposto a voltar a ser menino, a apagar a memória de todo o amor que
havia experimentado até aquele momento, para que só ela povoasse suas
lembranças como melhor entendesse. Benjamim, ao fim e ao cabo, lhe
mandava a própria vida, por inteiro, pelo correio.
Ainda chovia fino quando saiu da agência de correio, sem perceber que
estava sorrindo. Mesmo se Paula não compreendesse sua sofisticada
declaração de amor, uma hora ficaria curiosa e apareceria na Taberna da
Glória, porque, apesar do endereço trocado, o nome era igual. E ele, como
de costume, estaria lá à espera. A alegria foi se espalhando pelo corpo: as
mãos nos bolsos, nos cabelos, no peito; as pernas rápidas, esquinas,
avenidas, nenhum beco. As vitrines também alegres, o estoque colorido das
roupas de verão começava a dar as caras. Tudo daria certo. Planejou fazer
caridade. “É preciso ser bom”, dizia o pai, logo depois de enlouquecer.
Chovia fino, fazia um pouco de frio (vinte e quatro graus) e reconhecer
a fisionomia de um mendigo é uma das operações mais complicadas do
mundo. Quando se está contente, ainda por cima, torna-se quase trabalho
de santo. Por isso, Benjamim não reconheceu o homem a quem doou o
casaco que estava vestindo. Era gordo, enorme.26 Sentado numa raiz de
árvore na calçada, mostrou as mãos abertas a Benjamim, que, por força do
hábito, passou fingindo não ouvir o pedido de esmola, que envolvia fome,
frio ou qualquer outra coisa. Mas, alguns metros adiante, parou e deu
meia-volta, já tirando o casaco. Perguntou de longe se o mendigo estava
com frio. Ele respondeu, quase ofendido: — Tu acha que não? —
Benjamim disse que achava que sim e lhe entregou o casaco. Ainda tinha
o calor do corpo. O homem não sorriu nem agradeceu, mas os transeuntes
admiraram a boa ação: fizeram cara de quebra de rotina, a mesma que
fazem quando veem uma reportagem na TV sobre alguém que achou uma
mala de dinheiro e a devolveu ao legítimo dono. Benjamim sorriu como se
o estivessem fotografando. Voltou para casa com os pelos da nuca
arrepiados.

26. Era o Vieira, de quem o santo leitor certamente se lembra.


31. Canal aberto, anteontem, 03h33 (reprise)

… pacapacapacapão!… pacapão! pão! pão!…


Mário de Andrade

Vinheta: música bombástica, pessoas de olhos fechados, mãos para o


alto e cara de dor divina, fogo dentro das letras, que pouco a pouco vão
aparecendo na tela: “Show de Cristandade na TV”. Corta para: pastor
Washington, terno e gravata, corda enrolada no corpo, tenta abrir os braços
e não consegue. Pastor Isaque diz “Sua vida está assim, amarrada? Liga
para a gente, em nome do Senhor Jesus sua vida vai desamarrar”. Pastor
Washington se desamarra sozinho e diz “Meu irmão, minha irmã, vocês
podem estar vindo à Catedral da Fé, em Maria da Graça, e nossa nação vai
estar orando pela sua vida. Nós vamos desafiar o diabo com o tapete de
fogo e o óleo santificado vindo de Israel e sua vida vai prosperar, porque,
como diz a palavra—” Corta para: vinheta, voz tonitruante recita “Dai, e
ser-vos-á dado!”, Lucas 6,38. “Sim ou não? Amém. Veja os testemunhos das
pessoas que estavam com a vida arruinada, devastada, derrubada, perdida,
destruída, avassalada, arrasada—” Corta para: paisagem bucólica, música
inspiradora. Corta para: palco da Catedral da Fé, pastor Isaque
paramentado (capa amarela), microfone apontado para um homem feliz:
Pr. Isaque: Sua vida como era antes, seu Antônio?
Antônio: Assim, pastor, eu trabalhava em dois empregos, de vigia e de
garçom, e nem conseguia dormir direito, por causa de que as contas
vinham vindo, vinham vindo cada vez mais altas e mais delas, mais contas.
Pr. Isaque: E você sofria?
Antônio: Sofria, né, pastor. A gente sofre muito.
Pr. Isaque: E aí como Jesus entrou na sua vida?
Antônio: Aí eu vim pro Dia D de Glória, né, pastor, e recebi o óleo
santo no alto da cabeça, assim, e tudo virou. Eu virei um vencedor. Hoje
eu tenho dinheiro, muito dinheiro. Foi assim: eu ganhei no— Corta para:
paisagem bucólica, vinheta: Salmos 23,1. Corta para: Antônio: E agora sou
eu é que tenho dinheiro, muito mesmo. Comprei minha casa, agora eu
moro é na Barra da Tijuca e tenho uma lancha e outra casa de praia em
Iguaba Grande.
Pr. Isaque: Grande ou pequena?
Antônio: Iguaba Grande.
Pr. Isaque: A casa é grande?
Antônio: É grande, pastor. E eu vou abrir meu próprio negócio, glória
ao Senhor se Deus quiser. Larguei os trabalhos, né, pastor. Nunca mais
quero ver um museu na vida porque ninguém aguenta ficar acordado a
noite toda e não dormir depois.
Pr. Isaque: E você não sofre mais?
Antônio: Olha, pastor, a gente sempre sofr— Corta para: paisagem
bucólica, vinheta: Filipenses 4,13.
Corta para: estúdio. Pastor Washington diz “O irmão está vendo
histórias só de vitória. Nunca vi — você já viu, pastor Isaque? (pastor
Isaque faz que não, nunca viu) —, quer dizer, eu já vi gente que era
mendigo entrar no Dia D de Glória e sair próspero, mas entrar rico e sair
mendigo eu nunca vi não”.
32. A morte de Antônio Vieira

Se servistes à pátria, que vos foi ingrata,


vós fizestes o que devíeis.
Antônio Vieira

Se alguém era merecedor do epíteto supostamente catastrófico de Costa


e Oliveira, esse alguém era Antônio Vieira. Nascido no morro da
Providência, sob o signo de Saturno, falhou miseravelmente em tudo que
tentou fazer na vida. A frustração mais recente: não conseguir sair de cima
de um formigueiro sobre o qual se havia sentado. Recostado nas grades que
cercam a praça Paris, tomado pela depressão característica dos usuários de
crack quando acabam as pedras, o agora mendigo Antônio Vieira aceitava
as picadas. Para que resistir? Diziam por aí que antes de morrer todo
mundo vê sua própria vida passar na frente dos olhos. Se fosse verdade, ele
estava mesmo morrendo, subindo no telhado, indo para a terra dos pés
juntos, porque já se via menino, correndo pelas vielas do morro, querendo
abraçar esse mundo todo. Morreria em alguns minutos, de overdose e
desgosto. Sentia que estava com febre. Parecia gripe. Só faltava mais essa.
As formigas, irritadas, beliscavam.
O grande sonho de Antônio-menino era fazer um curso de radiologia e
se tornar uma das figuras mais queridas pelo povo brasileiro: o rapaz pobre
que subiu na vida. Compraria uma casa para a mãe, uma lancha, iria ao
Paraguai fazer compras. Não conseguiu. Foi crescendo, crescendo e ficou
enorme, gordo, fortão, se formou na escola e, ano após ano, saltou de um
bico a outro. Não tinha formação, diziam os entrevistadores das clínicas de
radiologia. Assim não dá. Havia vaga para vigia, entregador, faxineiro…
Técnico em radiologia, só para técnicos em radiologia. E, toda vez que ia a
uma dessas sessões de tortura social, o Vieira sentia um beliscão na nuca
ou nas partes mais baixas do corpo, que dizia, na língua dos beliscões:
— Você não vai subir.
Uma hora, desistiu. Aceitou um emprego de porteiro. Foi demitido
porque dormia demais. Depois foi segurança de boate. Foi demitido
porque apanhou de um menino de dezessete anos. Depois foi anotador do
jogo do bicho e se demitiu por motivos de consciência. Depois foi vigia
noturno de museu, garçom, empreendedor no ramo das quentinhas. Tudo
gorou. Não casou, não teve filhos, poucos amigos. A mãe morreu e as
coisas pioraram sem a aposentadoria dela. Passou a aceitar qualquer coisa:
consertar ventiladores, máquinas de escrever ou equipamentos de
radiologia, vender relógios e DVDs pirateados na Uruguaiana, ajudar a
polícia para receber recompensas. Em nada teve sucesso.
Recentemente, tinha arrumado um emprego na área teísta. Recebia uns
trocados para visitar igrejas e fingir que estava possuído pelo demônio, pela
Pombajira ou pelo Exu Caveirinha e que, depois de uma ou duas
sacudidelas na cabeça, os pastores tinham tirado o demônio, a Pombajira
ou o Exu Caveirinha do seu corpo. Em outras igrejas menos dadas ao
espetáculo, era contratado para dar testemunhos de vitória, geralmente
divididos em duas partes: o que de fato havia acontecido em sua vida
(sofrimentos, falta de dinheiro etc. e etcétera) e o que ele gostaria que
tivesse acontecido (glória, riqueza, felicidade etc. e etcétera). Inventava os
cenários mais improváveis (na maioria deles, virava dono de uma clínica
de radiologia), mas parecia tão verdadeiro que os religiosos começaram a
se perguntar se Deus tinha mesmo feito tudo aquilo.
33. Catapulta

O dinheiro é belo, porque é uma libertação.


Bernardo Soares

O Reis deu duas batidinhas apressadas na porta do gabinete de


Benjamim e entrou sem chamá-lo de “filho do homem!”. Deu bom-dia,
passou as mãos pelas bochechas como se estivesse exausto. Andou em
círculos por algum tempo, olhando à volta. Falou do clima, das manchas
nas paredes e do estado da arte contemporânea até que Benjamim se
levantou e cedeu sua cadeira, a única da sala. O Reis tomou assento,
solene, fazendo uns barulhos de velhice (uhrgs gemidos) e de fatalidade
(ai-ais suspirados). Perguntou se ele estava a par da mais recente derrota
sofrida pelo Departamento de Museologia, Conservação e Restauro. Não
esperou a negativa; descarrilou a falar que o financiamento, que o
ministério, que o dispêndio, que o trabalho, que a relevância, que a crise,
que a cultura… Estava tudo nos e-mails internos, disse. Benjamim não os
lia há tempos. Que a arte, que os documentos, que as prioridades, que o
público, que o privado etc. e etcétera. A mensagem era cristalina: o projeto
em que trabalhavam teria que ser desativado.
— Vamos ter que cortar pessoal, filho do homem.
— Hm… Já tinha entendido quando você falou “financiamento”.
O Reis soltou uma risota e, após um suspiro e um silêncio breve,
prometeu uma compensação. Apagou do rosto a expressão de pesar e
rejuvenesceu.
Benjamim era um artista, ele sabia disso, já tinha percebido. Portanto,
seu lugar não era no museu, pelo menos não ainda. Seu lugar era a glória.
Não se podia esperar menos de um filho do brilhante professor doutor
Costa e Oliveira. Começou a se balançar na cadeira, que, enferrujada,
rangia e estalava. E o início da glória era uma pequenina nota no jornal.
— Mas não tão pequenina — corrigiu.
Esticou os braços e, como se alisasse um cartaz com o nome do recém-
demitido, disse que a obra de Benjamim Alencar Costa e Oliveira estava
prestes a ser conhecida pelo grande público. Era questão de tempo até se
tornar um nome maior que o próprio nome, profetizou, olhando fixo para
a cara de Benjamim, mais assustada que o usual. Como não sabia se o
susto era causado pela notícia da demissão ou pela promessa de fama, o
Reis continuou: queria visitar seu ateliê, fotografar algumas telas, saber um
pouco mais das influências. Talvez uma entrevista. Coisa rápida, breve,
bombástica. Uma ou duas fotos em pose promissora.
E, se tudo isso pudesse ser feito por e-mail, melhor ainda.
— Aqui não é o seu lugar. Seu lugar é na glória — repetiu.
Benjamim levou alguns segundos para digerir as palavras do agora ex-
chefe e mais outros, poucos, para ficar tonto. A vista se cobriu de bege,
depois de vermelho, depois de preto. As pernas bambearam, mas ele
apoiou as costas na parede e conseguiu se manter de pé. Deslumbrou.
Sentia que estava sendo colocado numa catapulta. Radiante. Ouvia o
ranger das engrenagens, o estalar das cordas se esticando, preparando o
disparo. Luminoso. Tudo daria certo. Seria lançado, catapultado, e
estouraria lá no alto, ante os olhos dos que ficaram no chão. Em todos os
coquetéis de inauguração de todas as exposições, as pessoas saberiam quem
ele era. Os do Aleph saberiam seu nome. Paula, sua vizinha, saberia quem
ele era. Enfim viveria.
Ficou uns momentos no escuro, sem saber se sorria abertamente ou se
fingia que aquilo não tinha tanta importância. De dentro do preto
surgiram pontinhos brancos luminescentes, que foram aumentando de
tamanho e dissipando o negrume, até que recobrou plenamente a visão. Lá
estava o Reis, sentado e balançante, a cadeira rangendo, o rosto inclinado
na direção dele, entre curioso e impaciente:
— Tudo bem?
— Hm…
Naturalmente, aceitou. Disse, com a voz um tanto trêmula, que naquela
mesma noite mandaria um e-mail com fotografias de seu trabalho e que
responderia às perguntas que ele enviasse assim que as recebesse. O Reis se
ergueu, ágil, cortante, e foi saindo. As patas da cadeira estalaram sob o
impacto. Já com a mão na maçaneta:

Ó
— Ótimo. Tenho que ir. Você tem todo o tempo do mundo agora. Eu
não.
Saiu e fechou a porta no instante em que Benjamim começava a rir do
gracejo. Deu um passo para o lado e contou um minuto e meio no relógio.
Em seguida, fingindo que se esquecera de dizer algo não tão importante
assim, voltou:
— Ah, por favor: diz pra sua mãe que eu não pude fazer nada. O
financiamento, o ministério, as prioridades, você sabe…
— Sei, sei.
34. Contagiante

E zombará cada um do seu próximo.


Jeremias 9,5

Agora, quando o pastor Abel caminhava pelas ruas de Santa Maria


Madalena, havia sempre duas ou três, três ou seis, seis ou vinte e quatro
pessoas atrás dele. O povo conhecia seu carro, um Jeep Wrangler 2008
vermelho. Cochichavam ao vê-lo passar: pneus enormes, importado,
brilhante, potente etc. e etcétera. Quando ele descia do automóvel, muitos
paravam para olhar e apontavam como se vissem um artista de novela.
Deus é muito bom com quem é bom com Ele. Alguns tomavam coragem
para acenar e recebiam um caloroso tchauzinho de volta. Outros iam
além: desviavam seus caminhos para segui-lo, mesmo que ele estivesse só
indo ao banco ou levando a redonda esposa ao médico. Os mais tímidos ou
tementes não diziam nada e mantinham uma distância respeitosa, talvez
com medo de que alguma manifestação do poder divino lhes arrancasse
um olho ou perna. A maioria, contudo, chegava perto, oferecia a mão ou
os braços, dava boas-vindas à cidade pela milésima vez. Os mais
desenvoltos contavam histórias de gente desgostosa, confirmavam presença
no culto inaugural da Igreja Global em Cristo ou pediam para tirar fotos
com o famoso pastor Abel, que, simpático, sorria cintilante para os flashes.
Aos domingos, dias santos e de folga, o assédio dos fiéis era maior. Não
por acaso, ele já saía de casa paramentado — terno cinza e gravata
vermelha, a Bíblia e um exemplar da Breve e muito concisa história da
família Costa e Oliveira debaixo do braço —, limpando a garganta e
ensaiando mentalmente o que diria ao povo. Rumava sempre para a praça
mais movimentada da cidade; falava com um, cumprimentava outro, e em
poucos minutos havia uma multidão em volta. Muitos telefonavam para os
amigos e parentes, convidando-os para algo que eles nunca tinham visto
antes, um espetáculo de fazer a brasa cair dos céus. Moças e rapazes
testavam a altura dos bancos próximos, erguiam o pescoço, saltitavam
procurando o melhor lugar para assistir ao trailer dos cultos que o pastor
Abel celebraria na futura igreja. Vendedores ambulantes surgiam do nada,
empurrando carrinhos de pipoca, algodão-doce, churros. Vereadores
apareciam para abraçar o pastor Abel, que abraçava situação e oposição
com o mesmo carinho. Pregadores de outras igrejas vinham tentar
reconquistar parte do rebanho perdido. Curiosos se acotovelavam, alguns
pelo puro prazer de acotovelar. Os mais jovens levavam seus celulares e
máquinas fotográficas para registrar o evento.
Enquanto esperava o povo se organizar, o pastor Abel olhava para a
parede de homens e mulheres que o cercavam como se os amasse muito.
Sorria, ria, chegava perto, chamava as pessoas pelos nomes, apertava
braços, agradecia.
Quando a primeira caixa de madeira se elevava por sobre as cabeças,
todos se calavam. Homens desconhecidos entravam no círculo do pastor
Abel e improvisavam rapidamente um púlpito com dez ou doze caixas de
feira. Depois, voltavam para o meio da multidão para ver aquela palma de
mão branca pedir mais silêncio ainda. Mais silêncio se instaurava, e Abel
subia ao palco.
Começava a discursar com a voz amistosa e serena.
Primeiro, para esquentar, dava olá-meu-povo, dava aleluias, dava glórias
mil, agradecia ao Senhor pela criação da cidade, do país e do universo.
Contava casos da Bíblia, aconselhava prudência, ética, retidão. Salvava
casamentos e empresas com palavras de sabedoria tiradas de livros sagrados
e de autoajuda celestial. Contava mais algumas anedotas. Aleluia, aleluia.
Falava que o Deus deles era um Deus de alegria e festa, mas também de
seriedade e milagres. Apontava para um e dizia que o Senhor o convidava
para a salvação, apontava para outro e profetizava grandezas miúdas (um
carro ou caminhão, saldo de dívida, paz conjugal, colocações de emprego).
A plateia sorria e assentia, erguia as mãos em louvamento.
Assim que o povo começava a olhar com algum fervor, o pastor Abel
ajeitava a gravata, limpava um suor inexistente na testa, dava uns pulinhos
prudentes nas caixas de madeira e berrava, apontando para o céu:
— Coisas grandes estão guardadas para nós!
Era o início da segunda parte do culto. Após repetir uma ou duas vezes
que coisas grandes estavam guardadas para eles, o pastor Abel abria sua
pasta marrom e fuçava lá dentro em busca de um recorte de jornal. Ruídos
ansiosos. Grande parte da audiência, reincidente, já sabia do que se tratava,
mas mesmo assim, quando o cinzento pedaço de papel aparecia, todos se
seguravam: esposas apertavam as mãos dos maridos, mães abraçavam seus
filhotes, amigos alentavam uns aos outros com abraços laterais.
A voz do pastor Abel descia um tom e começava a ler, ecoada pelo coro
murmurante dos fiéis: “‘Causa desconhecida’ vira epidemia e mata mais
brasileiros que a diabete”.27 Gaguejava como se tomado de pavor: “Cerca
de 80 mil pessoas morrem por ano sem ter a causa da morte identificada, o
equivalente a 7,4% dos óbitos do país”. A plateia entoava as vogais “o”, “u”
e “i”. Alguns, sobretudo os que já sofriam de diabete, clamavam
antecipadamente por misericórdia. O pastor Abel guardava o jornal e
olhava para o céu, num breve silêncio de suspense.
Em seguida, tornava a se dirigir à plateia com a voz mais calma. A tal
causa desconhecida nada mais era que o desgosto, explicava. O desgosto, a
depressão, a tristeza era a epidemia do século XXI. Olhos arregalavam. Os
que ainda não sabiam da peste de desgosto consultavam os fiéis mais
próximos, e a notícia se estabelecia no meio do povo. De repente, a praça
silenciava quase por completo. Onze ou doze segundos depois, soltava um
gemido coletivo.
Sofriam por antecipação. Era iminente: morreriam, morreriam todos de
desgosto! Os homens soltavam queixumes. As mães baliam para os seus
filhotes, que baliam de volta. Pastores e padres rezavam em voz alta, à beira
do desespero. Vereadores abraçavam eleitores. Vendedores distribuíam
seus produtos de graça para que o Senhor, em toda Sua graça, os visse com
bons olhos. Colegiais viravam as mãos para o céu, esperando a palmatória
divina.
O pastor, sorrindo sem querer porque assim era o formato do seu rosto,
deixava a dor assentar no coração do povo, gemida e longamente.
Antes que a plateia se amuasse e fosse embora, porém, ele forçava uma
risada barulhenta, que se prolongava e ia inchando, retumbando no meio
do rebanho entristecido. A multidão ficava parada, confusa. Abel
gargalhava, puxava o ar, levava a mão ao ventre, secava as lágrimas, pedia
misericórdia. Ria, apontava e ria. A praça silenciava novamente e, onze ou
doze segundos depois, caía numa gargalhada conjunta.
O fogo divino, que estava quase a se apagar, reacendia chamejante. As
crianças, inocentes, riam primeiro, contagiando suas mães, que
contagiavam os homens, que sentiam umas cócegas na garganta, fingiam
tosse, espirros, engasgues, mas era impossível segurar. Desatavam a rir
também, desatando a cara amarrada dos vizinhos.
O pastor ria, encurvado e espasmódico. Saltitava. Só a alegria era capaz
de retardar o avanço da peste, dizia. Gesticulava como se apagasse um
fogo. Falava com as mãos, ajeitava o penteado. O povo batia palmas,
gargalhava, transbordando. Glória a Deus! A peste já corria solta no sangue
do mundo, Abel gritava. Juntava mais gente, cada vez mais gente para ver,
tirar fotos, gravar as palavras do pastor, que coçava o queixo, levantava uma
das sobrancelhas, depois a outra, fazia mugidos com o nariz e punha a cara
mais malvada que tinha:
— “Lavai-vos, purificai-vos! Lavai-vos, purificai-vos! Tirai o desgosto de
vossos atos de diante dos meus olhos; cessai de fazer mal!” Isaías, 1,16!
A plateia ia à loucura. Rugido grave, volumoso. Uns gritavam, outros
choravam, outros ainda falavam línguas estranhas. Crianças corriam,
comiam pipoca. Os mais suscetíveis caíam em transe, dançavam, abriam os
braços, caíam rodopiando no chão. A maioria das caras era de dor e riso
santos. Os vendedores de algodão-doce esgotavam seus estoques, os
vereadores ganhavam promessas sinceras de votos, os padres e os outros
pastores davam amém.
Abel lia a Bíblia, lia o livro de d. Letícia, fazia piadas. Encorajava os fiéis
a zombarem do irmão do lado, em boa-fé. Carecas, bigodudos, magricelas,
pecadoras, gordas, bigodudas, pernetas, desdentados. Risos grupais subiam
tremelicando do chão, mais fortes, mais fortes. Cafajestes, vagabundas,
maus pagadores, maus goleiros, péssimas manicures, tratantes, frígidas,
beberrões, ignorantes, grandessíssimos filhos da puta! O pregador levantava
os braços e, imitando o que ele imaginava ser a voz que Deus dava aos
profetas, repetia aos berros:
— “Servi ao Senhor com alegria!”, Salmos, 100,2!
E completava em tom mais grave:
— “Porque até no riso o coração sente dor, e o fim da alegria é tristeza”,
Provérbios, 14,13.
— Glória a Deus! — a plateia respondia, de alma lavada.
Passados os minutos de êxtase, um novo silêncio se instalava. A multidão
aos poucos ia lembrando que, apesar de toda a alegria, a doença do
desgosto era incurável. Segundo o próprio pastor Abel, tantas piadas e
pilhérias serviam somente para protelar o fim último e inevitável, que era a
morte triste. De que adiantava, então? O povo fazia cara de fatalidade,
calava-se, encolhia os ombros. Alguns poucos iam embora desiludidos,
prometendo nunca mais voltar.
A maioria que ficava, entretanto, erguia as mãos e fechava os olhos,
esperando alguma palavra de consolo. Abel, diante de tanta ânsia,
murmurava Isaías 40,1 — “Consolai, consolai o meu povo, diz o vosso
Deus” — e parava de saltitar e zombar por uns momentos. Os reincidentes
sorriam: aquela era a hora em que o pastor Abel falava do messias do
Messias, o filho do filho de Deus que um dia aterrissaria na Terra para
salvar a humanidade da peste da tristeza. Esperança, aleluia, esperança.
Quando o culto já se aproximava do fim, Abel narrava a história de
Epimênides de Creta, o único homem que havia conseguido contar uma
piada nas Sagradas Escrituras sem que quase ninguém percebesse. A
plateia, consumida pelos sucessivos aclives e declives emocionais
experimentados no decorrer da pregação, entregava-se ao pastor sem muita
resistência. O messias do Messias, dizia Abel, aquele que surgiria para
acabar com todo desgosto, seria como Epimênides de Creta, que falava por
meio de paradoxos, piadas, contrassensos. O povo assentia com a cabeça.
Amém. O pastor balançava a mão no alto, pigarreava e contava a piada do
Epimênides, citando Tito 1,12:
— “Um deles, seu próprio profeta (Epimênides de Creta), disse: ‘Os
cretenses são sempre mentirosos, bestas ruins, ventres preguiçosos’.”
Parte da plateia dava aleluia, batia palmas, assobiava. Outra parte (os
que entenderam a piada) se juntava ao pastor, que gargalhava, de olhos
muito abertos, espiando a multidão.
Depois, parafraseava João 4,25:
— Eu sei que o messias do Messias vem; quando ele vier, nos anunciará
tudo!
— Amém! — respondia o povo, logo antes de ir embora cheio de futuro.
Pelo resto da semana, as palavras do pastor Abel repercutiam nos
escritórios e salas de jantar da cidade. Crentes e ateus entravam no debate,
para atacar ou defender, com o mesmo fervor com que discutiam gols
anulados e a vida das celebridades. Os defensores concediam que a
previsão de uma epidemia de desgosto era nefasta, mas afinal não era
também a prova de que aquele homem estava dizendo a verdade da
palavra de Deus? O boato da peste de tristeza estava na boca de toda Santa
Maria Madalena. Abel confirmava o que Deus havia colocado na boca do
povo. A voz do povo era a voz de Deus. Logo, o pastor Abel era a voz de
Deus.
Os céticos retrucavam que havia sido o próprio pastor quem espalhara o
boato. Para a lógica dos devotos, no entanto, dava no mesmo — se Abel
havia posto o boato na boca do povo, tanto melhor: era ainda mais santo,
porque fazia o povo afirmar as palavras de Deus, porque a voz de Deus era
a voz do povo.
Nessa hora, os acusadores desistiam. Pressentindo a derrota, ficavam
quietos ou partiam para a grosseria, praguejando ou fazendo piadas cruéis a
respeito da religiosidade alheia. Malucos, carolas, papa-hóstias. Em todos
os casos, porém, os devotos saíam vitoriosos da discussão. Aceitavam o
silêncio e o escárnio dos céticos e, ainda além, davam a outra face. Riam a
bandeiras despregadas e concordavam com os adversários, porque assim
lhes havia ensinado o pastor Abel. Rir, rir de tudo para combater o
desgosto. Histéricos, cegos, alienados. O messias do Messias era uma farsa,
o pastor Abel era um charlatão. A raiva dos acusadores crescia. E, quanto
mais eram atacados, mais os fiéis gargalhavam e zombavam.
A maioria dos detratores, diante de rostos copiosamente risonhos, não se
continha e acabava rindo também. Rendiam-se, contagiados pelo amor
divino, pondo um fim amistoso à discussão. Muitos prometiam
comparecer ao culto na semana seguinte. Todos voltavam para casa ou iam
dormir sorridentes.
Paz na terra para todos os seres.

27. A matéria lida pelo profético pastor Abel é de autoria de Marta Salomon e foi
publicada no jornal O Estado de S. Paulo.
35. Um homem sério

Se a obra não tiver realidade tão viva e tanta


personalidade quanto as tem a mulher amada, é
melhor nem começar a compor.
Cartola

Benjamim escolheu seis telas para fotografar e enviar ao Reis. A


primeira, sem título, era um retrato a óleo de Virginia Woolf fantasiada de
nobre abissínio, cuja história a mãe lhe havia contado quando menino. A
segunda, intitulada Buraco Negro, era uma cena contemporânea, também
a óleo: um garoto negro, de boné, sentado em posição claramente
desconfortável, boca aberta, olhos entrecerrados encarando o espectador,
braços em linha sinuosa, pistola na mão esquerda — falava, ou estava entre
uma palavra e outra. Era um personagem real, de nome Jorge Lopes Filho,
morador do bairro de Madureira, no Rio de Janeiro.28 A terceira tela,
Fome, era uma representação de um pedaço de carne crua, com uma capa
suculenta de gordura, sobre um fundo branco e amarelo. A quarta,
Fumegante, era uma paródia do brasão da cidade do Rio de Janeiro na qual
o barrete vermelho, símbolo do regime republicano, havia sido substituído
pelo copo de plástico que os viciados cariocas usavam para fumar crack. A
quinta, Mapa de Água Santa, era a cartografia detalhada de uma ilha
imaginária onde, ao que parecia, reinava o sublime anarquismo. A sexta e
última, Padim Ciço, era um retrato de padre Cícero, maquiado como um
travesti, vestindo uma túnica rosa, com o sertão acastanhado ao fundo.
Mandou também os links de alguns vídeos, nos quais aparecia sua
própria imagem distorcida em espelhos quebrados, espelhos de loja de
departamento, espelhos da Confeitaria Colombo etc. e etcétera. Além
disso, escaneou alguns desenhos e aquarelas — todos retratando pedaços
de corpos femininos —, que, segundo explicou, faziam parte da série
intitulada The Seven Year Itch. Antes que o ex-chefe respondesse, enviou
um pequeno texto biográfico, ao estilo das enciclopédias virtuais, para que
o crítico tivesse por onde começar:

Benjamim Alencar Costa e Oliveira (Rio de Janeiro, 3 de março de 1980) é um


pintor, desenhista e videoartista brasileiro. Formado em museologia, foi
influenciado por artistas como David Hockney, Bill Viola, Nam June Paik, Andy
Warhol, Bruegel, Brueghel, Carlos José de Reis e Gama, Robert de Vaugondy,
Pedro Reinel, Hiparco de Alexandria, Hecateu de Mileto, dito o Logógrafo,
Gerardus Mercator e Tom Wesselmann. Participou de algumas exposições
conjuntas, nas quais apresentou telas e performances de vídeo. Destacam-se, em
suas obras, a temática do absurdo do amor e as inúmeras referências ao pop e à
filosofia. Em 2007, Benjamim de Alencar Costa e Oliveira (que assina suas obras
utilizando um ideograma com suas iniciais, B.A.C.O.) abandonou o circuito de
artes plásticas do Rio de Janeiro, voltando à ativa recentemente, em 2009.

As perguntas que o Reis lhe enviou, dias depois, foram respondidas com
a maior sobriedade que Benjamim pôde simular. Não contou nenhuma
piada, evitou a autoironia, falou do mercado e do público de artes como
quem fala da própria mãe, com muitos eufemismos. Fez o possível para
deixar claro que, se não fosse artista, morreria, pois uma coisa estava
inalteravelmente atrelada à outra. Tentou ser irreprochável. Mentiu que os
cigarros que fumava eram enrolados por ele mesmo. Como fazia frio,
escreveu que estava usando um cachecol felpudo e roxo. Usou a palavra
“patuá”, que considerava requintada, algumas vezes. Fez um elogio
discreto da pobreza e da timidez, supostos patuás de todo artista que se
preza. Confessou ser pós-moderno, porque ser pós-moderno significava
aceitar o modo cultural dos seres humanos sofisticados, o que não era um
elogio, mas sim uma condenação ao silêncio e à incompreensão do
público. O que ele fazia, explicou, não podia ser mais claro para ele
mesmo. Citou Schlegel. Depois, para equilibrar o discurso, citou uma
entrevista de Cartola, concedida à revista Manchete. Revelou que não
gostava muito de Paris. Manifestou grande apreço pelos socialistas
utópicos. Escreveu que sua obra inteira não passava de um mapa para
lugar nenhum, com indicações desencontradas. No fim, agradeceu a
atenção do crítico sem usar nenhuma vez a palavra “oportunidade”.
28. Benjamim descobriu a história de Jorge Lopes Filho, vulgo Buraco Negro, por
acaso, na internet. Jorge havia alcançado o status de microcelebridade virtual após
publicar um vídeo no site de compartilhamento YouTube, no qual canta a cappella
um trecho de um funk em louvor à facção criminosa a que alegadamente pertencia.
Depois, com lágrimas nos olhos, confessa sonhar com a carreira de cantor. Meses
mais tarde, segundo os jornais, o menino foi baleado nas costas durante uma incursão
da polícia no morro da Serrinha.
36. A morte de Pompônio

Todos são cães mudos, não podem ladrar.


Isaías 56,10

Pompônio era o cachorro de estimação do Glória, o estúdio de Hecateu


de Mileto no Café Aleph. O próprio Benjamim o havia inventado e
batizado, numa cerimônia paródica na qual se fez de padre, e os demais
presentes (na ocasião: Dostoiévski, Tolstói e Anna Akhmátova), de
coroinhas. Apesar de ser um bicho cuja vida dependia somente da boa
vontade dos frequentadores do fórum em mantê-lo vivo, mencionando-o
em suas mensagens (“*Boris Vian faz carinho em Pompônio*”, por
exemplo, bastaria para atestar sua existência), Pompônio morreu de causas
naturais, quando muito bem poderia não ter morrido nunca. Assim, ainda
que em senso estrito ninguém tivesse assassinado o pobre cão, foi Paula
Lavalle quem alertou os demais convivas para o fato de que o encontrara
morto num canto, o que, naquele lugar, era o equivalente exato a ter posto
veneno em seu potinho de ração.
Como ninguém envenena um cachorro sem motivo, a café society
deduziu que o romance de Paula e Hecateu não ia às mil maravilhas.
Depois de alguns dias ausente, Benjamim voltou ao site, adentrou o
estúdio, olhou à volta e ressuscitou Pompônio (*Hecateu afaga Pompônio,
que abana o rabo e faz festa*), como se nada. Alertado por Casimiro de
Abreu, um estudante secundarista de Santa Maria Madalena (RJ), de que
seu cão tinha morrido dois dias antes, Hecateu se espantou. Leu o histórico
de mensagens e descobriu que Paula era a responsável. Postou que estava
muito triste, fez uma breve homenagem ao amigo canino, citando uns
versos melosos de J. C. Squire (“We shan’t see Willy any more, Mamie,/ He
won’t be coming any more”), e telefonou para a namorada, que atendeu
como quem diz “finalmente”:
— Alô.
— Paula, você matou meu cachorro?
— Não, né. Quando encontrei, ele já estava morto.
— Era um bicho virtual.
— Você me ignorou uma semana inteira. Imagina o que não faz com o
cachorro. Ele deve ter ficado com fome e morrido.
— Hm…
— Ele deve ter ficado olhando pro mapa das formigas o tempo inteiro,
babando de sede, esperando o dono chegar… Morreu de tristeza, eu acho,
o pobrezinho.
Silêncio.
— Desculpa. Eu fui demitido do museu. Meu tio morreu. Tudo deu
errado.
— Não é desculpa, né. Eu te amo, você poderia me ligar pra contar isso.
— Tudo bem. Desculpa.
— Aliás, eu esqueci um anel na sua casa. Era da minha mãe, gosto
muito dele. Um de ouro branco, com pedrinhas vermelhas. Viu ele por aí?
— Hm… Não.
Silêncio breve.
— Te amo.
— Também.
Silêncio breve.
— Não acredito que você matou meu cachorro.
A morte de Pompônio foi o primeiro golpe na reputação de Hecateu de
Mileto. O mesmo Casimiro de Abreu foi quem espalhou pelo Aleph que,
ao saber da morte do cão, o mítico zombeteiro não havia feito mais que
enunciar versinhos. “Simplesmente aceitou a morte do bicho como um
acontecimento irrevogável”, disse o suave poeta a Machado de Assis,
escritor do Rio de Janeiro (RJ), que respondeu misterioso: “Late-se como se
morre, tudo é ofício de cães”. Depois, foi ao visconde de Taunay, que,
menos experiente nas artes da maledicência, atestou que, com o cachorro,
morria também o talento galhofeiro de Hecateu. Curiosamente, no
entanto, não a de Machado, mas a paralelística frase de Taunay foi passada
adiante na boca miúda do café. Os que aguardavam ansiosos por um
tropeço do Logógrafo, por inveja ou gosto chão pela queda dos outros, se
deliciaram. O reinado de Hecateu estava por um triz. “Um cão, um cão!
*Ri*. Meu reino por um cão!”, postou Ricardo III, ator amador de
Londrina (PR).
37. Primeira aparição do faqueiro

Não se deve pôr um rifle carregado em cena se


ninguém está pensando em dispará-lo.
Tchékhov

— Olha que estranho — Paula disse, oferecendo a boca —: acabei de


ver uma mulher lá embaixo usando uma camiseta igualzinha à que eu te
dei.
— Hm… — fez Benjamim, aceitando o beijo.
Dentro do corpo, a região logo abaixo do coração formiguejou. Foi até a
cozinha, fechou os punhos com muita força e sorriu, olhando para o
faqueiro que Natália tinha esquecido ali, meses antes. As palmas das mãos
ficaram brancas de alegria. A vizinha tinha gostado do presente. Perguntou
lá de dentro se ela queria vodca ou vinho. Paula fez um ruído de indecisão
e escolheu a vodca. Benjamim voltou à sala com uma garrafa de vinho.
Riu, fez uma graça qualquer e foi de novo até a cozinha para poder sorrir
livremente. Ela estava vestindo a camiseta, na frente da Taberna da Glória.
Retornou com a vodca e uma cara de exclamação. O rosto quelônio de
Paula queria fazer uma pergunta. A vizinha tinha entendido sua
declaração de amor. E queria que ele falasse com ela, queria conhecê-lo.
Benjamim estacou, fez um gesto vago, voltou à cozinha e trouxe a garrafa
de vinho, enfim:
— Na verdade, eu queria vinho. Tem problema?
— Não, não.
Desde o dia em que enviara o pacote com a camiseta e os anéis, duas
semanas antes, Benjamim evitava a Taberna da Glória, por medo de que
Paula não aparecesse nunca. Imaginava-se apoiado com os cotovelos na
mesa de sempre, o queixo nas mãos, esperando, durante dias, meses, anos.
Os garçons começariam a especular. Não era um bêbado comum.
Simplesmente se sentava virado para a portaria do próprio prédio, pedia
um chope e observava, com cara de cachorro que caiu do caminhão de
mudança, o vaivém da rua. Por quê? Solidão, uma culpa não redimida,
tédio? E a cara aos poucos envelheceria, os cabelos ficariam brancos. De
tanto descansar o queixo nas mãos, desenvolveria um problema nas
articulações dos pulsos, que não trataria. Os garçons não teriam coragem
de perguntar nada, mas seriam testemunhas da desilusão de Benjamim. Os
olhares o torturariam. Lá vinha de novo o homem da mesa só para um,
diriam uns aos outros, na língua dos garçons, bandejas em punho.
Benjamim lhes desejaria a demissão ou a morte. Um dia, os punhos rotos
infeccionariam e ele acabaria morrendo do desgosto de nunca ter visto a
mulher vestindo a camiseta com a cara do Woody Allen estampada ou
usando o anel de pedrinhas vermelhas.
— Também gosto de vinho, né — Paula disse, desabotoando a blusa.
Então, confiava na morosidade do serviço postal. Dizia a si mesmo, todo
dia, que ainda não era a hora, porque o correio era lento. Os presentes
ainda não tinham chegado. Era inútil passar a noite inteira sentado,
sozinho, olhos fixos na portaria do edifício Glória, suportando os cochichos
dos garçons. O correio era lento. Maldizia os serviços públicos do país e a
desculpa ganhava respaldo na realidade. O correio era realmente lento. No
dia seguinte, iria à Taberna da Glória. Assim, os garçons não suspeitariam.
No dia seguinte, ele se sentaria como quem não quer nada, a vizinha
apareceria e ele a abordaria como a uma velha conhecida, como se fosse
um encontro fortuito. A mulher aceitaria o convite para se juntar a ele,
pediria um chope, ele outro etc. e etcétera. Aos olhos dos garçons, não
pareceria que aquele homem se sentava ali, noite após noite, esperando
aquela mulher. O correio era lento, muito lento. No dia seguinte, iria à
Taberna da Glória.
— Gostoso, o vinho — Paula disse, já com os peitos de fora.
Antes de enviar os presentes, quando frequentava a taberna noite após
noite esperando por ela, não era a mesma espera. Antes, sentar-se ali e
olhar para a portaria do Glória quase não tinha sentido, era um absurdo
como outros tantos. Paula, a vizinha, nunca apareceria procurando por ele
porque ainda não tinha recebido sua vida inteira, embrulhada em papel
pardo, pelo correio. Agora era diferente. Os garçons perceberiam que agora
aquele homem se sentava àquela mesa com um propósito. Era claro que
esperava, com aquela cara de tédio mortal e assustado, que alguém viesse
lhe restituir a existência. Talvez começassem a apostar em quanto tempo o
homem da mesa só para um esperaria: duas semanas, três, seis meses, dois
anos, até morrer.
— Sinto muito pelo seu tio — Paula disse, puxando as calças pelos pés.
Silêncio breve.
— Obrigado.
— Ele morreu de quê?
— Desgosto.
— Oi?
Benjamim não se conteve e sorriu ali mesmo, diante da namorada, que
acabava de tirar a calcinha. Trocaram dez ou doze palavras e ela já estava
nua, esperando, com a taça de vinho nas mãos e o rosto manso. As costas
de tartaruga afundadas nas almofadas do sofá, as banhas da barriga alojadas
confortavelmente sobre as coxas cruzadas. Era a segunda vez que se viam
em carne e osso. Benjamim sorriu de novo e, enquanto Paula começava a
fazer uma dança mais ou menos sensual, sem sair do lugar, tentou
entender como exatamente aquela mulher tinha ido parar no seu
apartamento. Aquele corpo meio murcho e meio inchado, naquele sofá e
naquele momento, não tinha serventia alguma. Ela precisava ir embora.
Paula deixou cair um pouco de vinho nos próprios peitos e levou os
dedos à boca, com a luxúria dos cágados. Talvez a vizinha estivesse sentada
na Taberna da Glória esperando por ele. Ela precisava ir embora. Gemeu
fraquinho e olhou para o namorado, redondamente convidativa.
Não existe maneira sutil de se dispensar uma mulher nua. Paula
descruzou as pernas e tentou se levantar de um impulso só. Benjamim
pensou no que dizer. Pensou em todos os estopins de guerra que conhecia:
a invasão da Polônia, o assassinato de Francisco Ferdinando, o rapto de
Helena, a violação das fronteiras do Mato Grosso etc. e etcétera. Paula
tomou impulso de novo, apoiou as duas mãos no encosto do sofá e se
ergueu, batendo os calcanhares com força no tapete, o que a fez tremelicar
toda. Pensou numa justificativa razoável para que ela se vestisse e fosse, por
favor, embora. Naturalmente, não encontrou nenhuma. Assim que a
repelisse, enfiando a mão por entre as duas bocas ou empurrando-a para
longe, a guerra estaria declarada. Paula sairia do apartamento aos berros,
chorando, sentindo-se violada como o Mato Grosso. A retaliação viria em
poucos minutos. Ela chegaria a casa e iria direto ao Café Aleph. Sua Paula
Lavalle inundaria o fórum com mentiras e verdades sobre o
relacionamento, sobre sua intimidade, sobre o quão covarde ele era. Seria
a ruína da já abalada reputação de Hecateu de Mileto. E sabe-se lá o que
ela faria depois. Tinha matado seu cachorro de estimação; era capaz de
qualquer crueldade.
— Meu amorzinho — ela disse, vagarosa, esfregando-se nele.
Imaginou Paula, a vizinha, na Taberna da Glória, observando os
homens que passavam na calçada. O rosto impassível, a bochecha direita
apoiada na mãozinha fechada, o cotovelo graciosamente amortecido por
um guardanapo dobrado, um copo de suco de laranja sobre a mesa.
Enquanto isso, a outra Paula tentava arrancar sua camisa, beijava-lhe o
peito e a barriga e ia descendo, deixando a nuca encurvada e peluda à
mostra. Era corcunda, decididamente corcunda. Aos homens com cara de
tímidos, a vizinha lançaria olhares mais longos. Respiraria fundo e
endireitaria discretamente a coluna, para que pudessem ver a cara do
Woody Allen na camiseta. Eles seguiriam seus caminhos, e a cada
decepção ela diria a si mesma que aquilo era ridículo, que o tal Benjamim
não apareceria, que era melhor ir embora. Paula desabotoou sua calça,
ganindo obscenidades. Por quanto tempo o esperaria? Meia hora, duas,
três? Paula tirou sua cueca. Voltaria à Taberna da Glória vestindo a mesma
camiseta se ele não aparecesse hoje? Paula abriu a boca, Benjamim pôs
dois dedos sob o queixo da mulher e o puxou delicadamente para si.
Olharam-se. Alguma ternura.
— Você tem que ir embora.
Silêncio breve.
— O quê?
Silêncio breve.
— Por favor…?
Ela tentou se afastar e tombou para trás, os olhos atônitos, como os de
uma tartaruga que de repente se dá conta de que está de barriga para cima.
Benjamim consultou disfarçadamente o relógio de pulso e subiu as calças.
Depois de quase um minuto, Paula se levantou, calada, e começou a se
vestir: o pé esquerdo da meia, a calça, a blusa, o pé direito, um brinco, as
pulseiras, o outro brinco. Ficou com a calcinha nas mãos, sem entender
bem o que tinha dado errado. Não disse nada. Guardou a calcinha na
bolsa e saiu, fechando a porta maciamente atrás de si.
38. Segunda aparição do faqueiro

Life is life and fun is fun, but it’s all so quiet when
the goldfish die.
Beryl Markham

Benjamim, então, foi tomar banho. Após o banho, fez a barba e um


pequeno discurso encorajador para o espelho. Consultava o relógio em
intervalos irregulares, torcendo para que a vizinha ainda estivesse na
Taberna da Glória, esperando por ele e tomando seu segundo ou terceiro
suco de laranja. Passou perfume. Ainda eram oito e meia da noite. Havia
formigas no chão do apartamento, ao redor de uma mariposa morta.
Imaginou o que Paula, a ex, faria com o mapa das formigas que ele lhe
dera. Talvez o devolvesse. Seria o ideal. Foi até a cozinha e se serviu uma
taça de vinho. Pediria o melhor vinho da casa. Apesar de estar
desempregado, não havia motivo para ser sovina. Olhou para o faqueiro,
presente de casamento dos pais de Natália. Oito e trinta e nove. Foi
escovar os dentes. Foi até a janela. Não fazia frio. Oito e quarenta e sete.
Não poderia usar cachecol. Oito e quarenta e sete.
Por quanto tempo a vizinha o esperaria? Trocou de roupa três vezes, até
encontrar uma combinação que não parecesse planejada para
impressionar. Oito e cinquenta e seis. Foi novamente até a janela. Tinha
pressa, mas não queria descer já. Oito e cinquenta e seis. A cada minuto
transcorrido, Paula o esperava por mais um minuto. Quanto mais ela ficava
lá, mais interesse tinha em conhecê-lo, mais encantada tinha ficado com
os presentes. Oito e cinquenta e sete. Quanto mais interesse Benjamim
achava que Paula tinha por ele, mais queria ficar em casa por mais alguns
minutos, porque, quanto mais ela o esperava, mais interesse tinha por ele.
Foi até o elevador, voltou. Oito e cinquenta e nove.
Sentou-se no sofá em que a agora ex-Paula havia dançado sem sair do
lugar, minutos antes, e respirou fundo. Nove e nove. Paula já tinha
esperado demais. Tomou mais uma taça de vinho e olhou para o faqueiro
uma última vez.
Nove e treze.
Nove e quatorze.
Nove e dezessete. Paula não estava na Taberna da Glória.
Paz na terra para todos os seres.
39. Viral

O germe primordial é incapaz de viajar sozinho; ele


precisa de um hospedeiro, que pode ser um homem,
um livro, um panfleto, sem contar o rádio, o cinema
ou a televisão.
André Siegfried

O anônimo, num momento de tédio, vasculha o gigantesco arquivo de


vídeos disponível no site de compartilhamento YouTube em busca de algo
para assistir e passar o tempo. O anônimo não quer ver, naquele momento
de tédio, nada que demande muita reflexão. Portanto, dá preferência a
vídeos de pegadinhas, bêbados tropeçando, gente tomando susto ou
crianças falando besteira para a câmera.
Passados alguns minutos, cansa-se das crianças e dos bêbados e digita a
palavra “boredom” no mecanismo de busca do site. O rosto de um senhor
barbudo, em preto e branco, aparece na tela. O anônimo assiste a um
quarto do vídeo29 e clica noutro, este em cores, mas também em inglês. O
anônimo não entende muito bem o inglês. Possivelmente se arrepende de
não ter prestado atenção nas aulas do cursinho que fez quando criança.
Digita a palavra “arrependimento” no mecanismo de busca e, após passear
por dezenas de links, depara-se com um vídeo intitulado “culto santo em
Santa Maria Madalena”.
O anônimo se espanta com o que vê e ouve. Um pastor, numa praça
lotada, fala que o mundo está prestes a ser consumido por uma praga de
desgosto. A plateia ri. O anônimo ri da plateia. O tal pastor aconselha a
zombaria como remédio. Os fiéis parecem zombar uns dos outros. O
anônimo, provavelmente agnóstico ou católico não praticante, agora fica
sem saber se ri da credulidade dos fiéis ou não. Se rir, estará obedecendo
ao pastor; se não, estará levando aquilo a sério. Mostra um sorriso ambíguo
para a tela. A plateia bate palmas e grita amém.
O anônimo pensa enquanto o pastor salta, corre e dá risadas. Sente um
desejo incontrolável de gargalhar, muito maior que o experimentado com
os vídeos dos bêbados. Como está sozinho e entediado, deixa-se rir à
vontade. Depois, um tanto confuso e culpado, decide que a única coisa a
fazer é mostrar o vídeo aos amigos para ver o que eles acham daquilo.
O anônimo passa o link do “culto santo em Santa Maria Madalena”, por
e-mail, à sua lista de contatos. Os anônimos dessa lista de contatos,
também entediados, assistem ao vídeo e, por sua vez, passam o link para
suas respectivas listas de contatos, deflagrando uma incontrolável onda de
replicações. O efeito é impressionante: em poucas horas, centenas de
anônimos entram em contato com as palavras do pastor Abel e, após darem
boas risadas ou se indignarem, propagam-nas para mais milhares de
anônimos. Pequenos milhares viram grandes milhares, grandes milhares
viram meio milhão de acessos em alguns dias. Outros anônimos, por
motivos não muito claros, copiam o arquivo e publicam-no em suas
próprias páginas, com títulos diversos (“pastor maluco diz que o mundo vai
acabar”, “pastor comédia”, “igreja do riso santo”, entre outros). Novas
gravações feitas por pessoas que estiveram nos cultos também ganham
destaque, e a imagem do pastor Abel multiplica-se como antes se havia
multiplicado.
As reações são diversas. Quase todos os anônimos querem emitir alguma
opinião — em blogues, sites de relacionamento etc. e etcétera — a respeito
do pastor Abel. Há anônimos que gostam dele porque ele está dando uma
nova roupagem à religião, e todos precisam de uma religião. Há outros que
gostam dele porque ele é engraçado. Muitos não gostam nem desgostam,
mas mesmo assim fazem questão de dizer que não gostam nem desgostam.
Grande parte dos anônimos acha que o método do pastor Abel é uma
palhaçada sem sentido e que ele deveria ser internado num hospício. Uma
minoria crê piamente que ele é uma peça-chave da conspiração maligna
que tem como único objetivo alienar a população brasileira. Centenas de
milhares de anônimos, mesmo sem assistir ao vídeo, têm certeza de que
todo pastor é ladrão. Alguns anônimos dizem que o mundo atravessa uma
nova Idade das Trevas, outros, que os neopentecostais vão dar um golpe de
Estado e instaurar uma teocracia. Os anônimos menos pacientes ofendem
todos os anônimos que têm uma opinião a respeito do pastor Abel.30 Um
grupo de anônimos mais curiosos se interessa pelo que aquele homem diz,
sem se ater a questões doutrinárias. O usuário Cabreu_1992, um estudante
secundarista de Santa Maria Madalena (RJ), que gravou e publicou (em 21
de dezembro de 2009) o vídeo que deu origem ao frenesi, nunca imaginou
que tal coisa pudesse acontecer. Sente-se, de certo modo, uma celebridade.
Nos dias seguintes à publicação do “culto santo em Santa Maria
Madalena”, surgem as paródias. No 23 de dezembro, por exemplo, vários
vídeos com garotas e garotos anônimos dizendo-se o messias do Messias
circulam pela internet. A maioria esmagadora usa barbas postiças, carrega
um livro qualquer nas mãos e tenta fazer alguma graça para a câmera antes
de revelar sua natureza divina. Uns poucos ensaiam uma imitação da
gargalhada do pastor Abel. Todos, sem exceção, contam uma piada no fim,
para provar que são o verdadeiro piadista salvador da humanidade.
Nos dias 26 e 27, surgem as paródias das paródias. Vídeos com gente que
se diz o messias do messias do Messias começam a aparecer. A mise en
scène é basicamente a mesma dos vídeos anteriores, só que às avessas: os
meninos e meninas, em sua maioria imberbes, não tentam fazer nenhuma
graça para a câmera antes de anunciar quem são (o messias do messias do
Messias), porque os vídeos parodiados já são engraçados. Ser engraçado
depois de algo engraçado, de acordo com a binária lógica da internet, não
é mais tão engraçado assim. Portanto, uns poucos ensaiam uma imitação
propositalmente penosa do pastor Abel. Muitos carregam um livro virado
de ponta-cabeça nas mãos. Alguns dizem, com a cara mais séria do mundo,
que são devotos de si mesmos ou que não são devotos de si mesmos, tanto
faz. Todos, sem exceção, contam uma piada ruim no fim, para provar que
são o verdadeiro piadista salvador da humanidade, na esperança de que
não ser cômico acabe por ser muito cômico.
Etc. e etcétera.

29. No vídeo em questão, o poeta John Berryman é entrevistado por Al Alvarez, em


Dublin, e lê, em inglês, um poema intitulado “Dream Song 14”, cujo primeiro verso
pode ser traduzido por “A vida, amigos, é um tédio”.
30. Em 2009, era consenso entre os especialistas que uma nova raça de internautas
havia surgido: os trolls. A palavra “troll” designa uma pessoa cujo comportamento
tende, sistematicamente e por motivos obscuros, a desestabilizar uma discussão,
provocando e enfurecendo as pessoas envolvidas nela.
40. Benjamim desce ao inferno

Quisque suos patimur Manes.


Virgílio

Os Alencar Costa e Oliveira celebraram o Natal na casa de Abel, em


Santa Maria Madalena. À exceção de Daniel, que sempre comemorava as
datas importantes com os sogros, estavam todos lá, inclusive Mara, a
recém-nascida filha de Abel e Ruth.31 Conceição preparou uma ceia farta,
de muitas misturas: pernil com abacaxi, presunto com ameixa, carneiro
com mel, arroz com frutas secas, farofa com ovos, torta de limão e
damasco, bolo de cenoura com chocolate, café com açúcar mascavo. Abel
comprou quinze garrafas de vinho e fez questão de que tanto Conceição
quanto Ambrósio sentassem à mesa com eles. Conceição fez “ughrrum”
recusando o convite. Comeu na cozinha, sentindo saudades de d. Letícia.
O garoto aceitou. Apareceu vestindo terno cinza e gravata vermelha.
Levou uma cesta de jabuticabas para oferecer à anfitriã. Jantou calado,
olhando curioso para Ruth e Benjamim. Só se manifestou quando Abel,
depois da quinta taça de vinho, disse que queria adotá-lo, cuidar dele e
pagar seus estudos.
Ambrósio e Ruth arregalaram os olhos.
D. Noemi e Benjamim não.
Abel:
— O Senhor achou por bem me dar uma filha, mas…
Silêncio longo.
Benjamim observou que era maldade condenar o garoto a morrer de
desgosto pondo-lhe o agourento sobrenome dos Costa e Oliveira. Abel riu
alto, descomedido. D. Noemi e Ruth comentaram algo, ao que Benjamim
respondeu, depois Abel.
Ambrósio não ouviu muita coisa. Estava ocupado, torturado, em afastar
da cabeça a ideia de que a mulher do pastor Abel seria sua mãe, porque
tinha uns pensamentos impuros com ela sempre que ia dormir. Imaginava-
se no colo dela, ela sem nenhuma roupa, fazendo carinho nele, comendo
jabuticabas com ele. As vozes foram se apagando. Todos os olhos se
cravaram nele, o pastor moveu a boca, virou-se para o irmão e moveu a
boca, virou-se novamente para o garoto e sorriu. Ambrósio comeu uma
jabuticaba, duas, três, sem dizer palavra, ouvindo um zumbido agudo e
nada além. Teria que chamá-la de mamãe? Ela tiraria a roupa na frente
dele? Pior: teria que chamar aquele homem de pai?
Benjamim riu e disse que de boas intenções o inferno estava cheio.
O riso geral trouxe Ambrósio de volta à mesa.
— Sua avó concordou — Abel disse.
Silêncio longo. O garoto olhou para Ruth, que olhava para o teto, para
os garfos, para a sogra. Ajeitou-se na cadeira. Gaguejou. Ergueu as pernas,
abraçou os joelhos e tentou dizer alguma coisa. Todos os adultos
esperavam uma resposta.
Ambrósio pôs as duas mãos na mesa, sorriu e saiu correndo na direção
do quintal. Os adultos, surpresos, riram. O menino cruzou a varanda em
poucas pernadas. Antes de saltar por cima do portão e ganhar a noite,
passou a mão pela última vez no tronco da jabuticabeira. Se tivesse olhado
para trás, veria a silhueta de Ruth na porta da casa. Não olhou. Correu até
não ouvir mais as risadas dos adultos — a gravata como uma capa de super-
herói, tremulando vermelha às suas costas. Correu sem saber ao certo para
onde. Para longe. Árvores (nenhuma jabuticabeira), casas mal iluminadas,
uma lua minguante. Os risos dos Costa e Oliveira foram substituídos pelos
gritos e palavrões dos bares, depois pelo barulho dos bichos da noite,
depois pela conversa dos vagabundos de beira de estrada, depois pelo ruído
de um motor. Quando deu por si, estava na RJ-180, na boleia de um
caminhão, rumo à capital.
Ruth voltou à mesa e disse, sorridente, que era um pecado fazer aquilo
com o menino. Levou um tempo para se dar conta de que o marido não
estava falando sério. Só quando Ambrósio desapareceu na noite e os
risinhos da família não minguaram, percebeu que toda a cena tinha sido
arquitetada para zombar dela. Sentou-se e olhou para Abel como quem
repreende uma criança travessa. Todos os adultos sorriram de volta,
perversos e divertidos.
Abel riu, deu uns tapinhas no ombro do irmão e foi até a mulher. Num
abraço, perguntou se ela realmente achava que o sexo do filho fazia
alguma diferença para ele. Ruth respondeu, tímida, que não sabia. Tinha
orado dia e noite para que o bebê nascesse menino e, quando Mara
nasceu, teve medo de que Abel a trocasse por um ventre mais fértil em
varões. Chorava escondida. Tinha pesadelos horríveis com a catástrofe
conjugal. Abel apertou o abraço e disse que a amava. Ruth foi à beira do
choro. D. Noemi achou uma graça o amor dos dois. Benjamim deu um
gole no vinho e falou em probabilidade genética, em Mendel etc. e
etcétera.
Silêncio breve. Entreolharam-se. Gargalhadas estalaram.
No meio do riso, Conceição apareceu e soltou um “ughrrum”
interrogativo. Ruth respondeu com um “ughrrum” que significava que
estava tudo ótimo, que não precisavam mais dela. Depois, agradeceu em
seu português rasgado. Enquanto tirava a mesa, a velha fez “ughrrum”
perguntando onde estava o neto. Ruth respondeu com um “ughrrum” que
Conceição não entendeu.
Benjamim disse ao irmão que, durante a viagem, se preparara para
encontrar uma multidão de romeiros no quintal do sítio, à espera de uma
palavra de consolo, de uma revelação ou da oportunidade de tirar uma
fotografia com o astro-pastor Abel. E nada, nem dois fiéis fazendo vigília.
Afinal, ele era ou não era uma celebridade de Deus? Abel respondeu com
Salmos 102,7:
— “Vigio, sou como o pardal solitário no telhado.”
D. Noemi perguntou qual versículo ele citaria se de fato houvesse uma
multidão lá fora. Benjamim riu. O pastor levantou o indicador:
— “Busca satisfazer seu próprio desejo aquele que se isola; ele se insurge
contra toda sabedoria”, Provérbios, 18,1.
Riram. Conceição saiu apressada, com os pratos no colo.
D. Noemi e a nora se recolheram mais cedo, deixando os dois irmãos a
sós, conversando na varanda. No escuro, não dava para ver o edifício da
Igreja Global em Cristo, que estava quase pronto. Abel abriu mais uma
garrafa de vinho e explicou que só faltava instalar o globo, uma imensa
estrutura de metal dourado em forma de globo terrestre que penderia do
teto do templo como um lustre. O dinheiro para a compra do acessório
tinha sido doação de um deputado do Rio de Janeiro chamado Diógenes
Albuquerque, que decidira contribuir para a glória de Nosso Senhor Jesus
depois de assistir aos vídeos dos multitudinários cultos que Abel celebrava
na praça principal da cidade. A inauguração estava marcada para o dia 14
de fevereiro.
— Queria que você estivesse lá, Bê.
— Que vídeos? — respondeu Benjamim.
— Na internet.
— Hm…
Silêncio breve. Benjamim:
— Você sabe que eu vou sair no jornal?
Abel riu, levantou-se da cadeira e perguntou se ele queria conhecer a
casa.
Benjamim acompanhou o irmão pelas salas e corredores do pequeno
mas labiríntico edifício sem prestar muita atenção à conversa. Abel, taça de
vinho em punho, ia caminhando e contando as histórias dos velhos Costa e
Oliveira que havia lido no livro de d. Letícia. Como o final era sempre o
mesmo — “aí morreu de desgosto” —, Benjamim logo se desinteressou
pela vida angustiada de seus antepassados.
Estantes e mais estantes disputavam o exíguo espaço da casa com as
samambaias de Ruth, com os suvenires baratos de Abel e as fotografias da
família de Ruth, de Ruth sorrindo, Ruth séria, Ruth vestida de boa moça.
Ruth, aliás, que parecia ter ficado muito amiga de mamãe, observou
Benjamim. Abel disse “Pois é” e completou que o tal Gumercindo Costa e
Oliveira tinha morrido do desgosto de não ter passado num concurso para
o Banco do Brasil. A cada corredor ou sala, topavam com um novo quebra-
cabeça montado pela mãe ou com minúsculas peças espalhadas em cima
das mesas e pelo chão. Paisagens do mar da Galileia, representações do
Sermão da Montanha, da abertura do mar Vermelho etc. e etcétera.
Benjamim disse, muito calmo, que a mãe provavelmente morreria do
desgosto de não conseguir terminar um quebra-cabeça. Abel abafou uma
gargalhada forte, para não acordar o resto da casa, e apontou para uma
porta igual a todas as outras. Explicou, sussurrando, que do outro lado
daquela porta havia uma escada para um porão, onde ficavam encerrados
os livros “de caráter licencioso”. Benjamim respondeu, em seu tom de voz
normal, que esse tipo de sala, segundo a bibliologia, se chama “inferno”. O
pastor Abel não sabia que tinha um inferno em casa. Riu baixinho,
agradeceu o ensinamento e tirou uma chave brilhante do bolso, fazendo a
cara que ele imaginava ser a de quem está prestes a entrar num bordel.
Benjamim não entendeu a cara de prostíbulo do irmão. Abriu a porta.
Desceram.

31. Ruth queria batizar a filha com o nome da sogra. Abel, no entanto, após consultar
as Escrituras, decidiu-se por “Mara”: “Não me chameis Noemi; chamai-me Mara,
porque grande desgosto me tem dado o Todo-Poderoso” (Rute, 1,20).
41. No inferno

Excess of sorrow laughs. Excess of joy weeps.


Blake

O inferno era um cubículo escuro, empoeirado e cheirando a mofo.


Como em todos os demais cômodos da casa, as paredes eram escoradas por
uma segunda parede de estantes de livros, o que aumentava a sensação de
claustro. Uma pequena mesa de estudos e uma cadeira. Benjamim correu
as mãos pelas lombadas de alguns volumes: O amante de Lady Chatterley,
Libertinagem, a Bíblia em tradução católica, Paulo e Virgínia, O Anticristo,
A origem das espécies. Abel fechou a porta. A impressão que ficou foi que a
casa lá em cima, o quintal, a jabuticabeira, Santa Maria Madalena, tudo
tinha desaparecido. No único pedaço de parede não ocupado pelas
estantes, havia um quebra-cabeça montado por d. Noemi, com uma
moldura imitando ouro. A imagem era uma reprodução do mapa-múndi
de Ortelius (1570), cento e trinta por duzentos centímetros.
— Dez mil peças — disse o pastor Abel.
— Não chega nem perto do de verdade — Benjamim disse —, que tem
seis bilhões de peças que nunca encaixam.
O pastor riu, mas não com o mesmo fervor de antes. Depois, pediu
silêncio, com ar de mistério. Tinha algo importante para mostrar ao irmão.
Foi até uma das estantes e, como se abrisse um cofre, puxou o primeiro
exemplar da segunda edição da Breve e muito concisa história da família
Costa e Oliveira, mandado pela gráfica.
Explicou que a tiragem da primeira edição havia sido de dez exemplares
somente, o que bastava para que a condição imposta pela tia-avó ao
recebimento da herança (organizar e publicar o livro) fosse satisfeita.
Porém, após perceber o poder profético da obra, resolvera usar metade do
dinheiro herdado para custear uma edição de luxo: quinhentos
exemplares, trezentas páginas em papel-bíblia, laterais douradas, capa dura,
revestimento de couro. Entregou o livro a Benjamim, que o folheou sem
muito entusiasmo. Essa nova edição também continha um prefácio,
continuou Abel, que ele mesmo havia escrito para engrandecer a memória
de d. Letícia e elucidar algumas questões que a autora deixara em aberto.
Benjamim passou os olhos pela primeira parte do livro, o “Catálogo dos
desgostosos”, como quem tem que suportar uma tia alheia mostrando o
álbum de fotografias de uma família que não é a sua. Ao lado dele, Abel,
excitadíssimo, expunha as minúcias do pensamento de d. Letícia, apontava
um ou outro personagem mais interessante, uma ou outra frase de maior
efeito poético. Quando Benjamim parecia se desinteressar, tomava o livro
das mãos do mais velho e vasculhava rapidamente as páginas em busca de
uma foto rara, um bilhete suicida escrito no século XIX ou o fac-símile de
um atestado de óbito. Subia e descia na ponta dos pés, saltitando sem sair
do chão. Lia em voz alta algumas citações bíblicas importantes: “E se o
profeta for enganado, e falar alguma coisa, eu, o Senhor, terei enganado
esse profeta” (Ezequiel, 14,9), “Se houver alguém que, andando com
espírito de falsidade, mentir, dizendo: ‘Eu te profetizarei sobre o vinho e a
bebida forte’; será esse tal o profeta deste povo” (Miqueias, 2,11) etc. e
etcétera. Ria, ria muito, com a cara dos traquinas.
— E então?
— Acho que papai ficaria orgulhoso de você.
Abel estufou o peito:
— É?
— Tenho certeza…
Silêncio longo. Benjamim:
— Você acredita mesmo nisso tudo?
— O que você acha?
— Hm…
Silêncio ainda mais longo.
Abel puxou a cadeira e a ofereceu ao irmão. Sobre a mesa, as duas taças
de vinho, pela metade, e o livro da tia-avó. Benjamim achou que a cena
parecia a de um interrogatório. Riu, mas não disse o motivo. O caçula riu
também e, sem mais nem menos, contou o que havia acontecido na
África.
Ele tinha assassinado um homem. Um pobre-diabo cujo nome ele se
forçou a esquecer, moçambicano ou cabo-verdiano, não sabia ao certo.
Viúvo, solitário, rude, bondoso como um elefante. O rosto lembrava um
pouco o de Ambrósio, neto de Conceição: redondo, muito preto. Um
homem fiel. Todos os domingos, assistia aos cultos que Abel celebrava no
vilarejo agora também sem nome, mas de cor ocre e ventania. Prestava a
maior das atenções à pregação, mas nunca batia palmas ou gritava aleluia
quando devia. Tinha um desprezo rarefeito nos olhos, na boca, nos
cabelos. Era um homem esparso, apesar da corpulência. No entanto,
sorria. Era o único a sorrir quando o pastor dizia, por exemplo, que era
preciso combater os vícios, mas tendo em mente que a cada virtude
conquistada um novo vício surgiria, porque assim era o ser humano. E
chegava a mostrar os dentes amarelos quando ouvia que se arrepender era
quase o mesmo que criticar o Senhor, que impôs o pecado aos homens
para que eles se purificassem em vida. Por outro lado, se ele falasse de
prosperidade e alegrias, amenidades, o homem ficava impassível e distraía-
se com o voo das moscas, com o penteado das moças…
Benjamim estava perplexo. Enquanto se confessava, Abel caminhava em
volta da mesa, olhando para todos os lados, menos para o irmão e para o
mapa-múndi da mãe pendurado na parede.
No domingo do crime, Abel não lembrava mais o mês ou o ano, o
homem sem nome foi o primeiro a chegar e o último a sair da igreja. O
culto daquela semana havia sido planejado para arrebatar violentamente as
almas. O texto-base era o capítulo quinto das Lamentações, páginas de rara
inspiração e bonita poesia, as preferidas de Abel. E aquela foi a vez em que
o pastor mais se inflamou no púlpito. Era como se o próprio Deus vivo
estivesse articulando as palavras que saíam da sua boca: “Aos jovens
obrigaram a moer, e os meninos caíram debaixo das cargas de lenha”. Os
fiéis abanavam-se, murchavam os ombros, suspiravam. Mas o homem, lá
no fundo, de pé, sorria escancarado. Nós, mortais, Abel explicava aos
presentes, somos aqueles a quem o Senhor obriga a moer, e nós mesmos
passamos pelo moinho, reduzimos e somos reduzidos a pó, porque do pó
viemos e a ele devemos retornar. O homem fazia que sim com a cabeça,
assentindo com todos os dentes. A vida nada mais é do que sofrer e causar
sofrimento aos outros, triturar e ser triturado. Portanto, nas horas breves em
que somos felizes e abençoados, é preciso lembrar que a mó logo voltará a
girar, triturando-nos mais uma vez. A audiência se deixava afundar nas
cadeiras de plástico, sob o peso da verdade divina. “E vós também
regozijai-vos e alegrai-vos comigo por isto mesmo!” Não há motivo para
desespero, pois a espera nunca é em vão. “Cingindo os lombos do vosso
entendimento, sede sóbrios, e esperai inteiramente na glória que se vos
ofereceu na revelação do Cristo, o Messias.”
Abel interrompeu a narração para tomar o vinho que restava nas duas
taças.
Benjamim, cara de susto, não disse nada.
Encerrado o culto, os fiéis se levantaram e foram saindo, lentos, de pés
arrastados, como se carregassem nas costas a metafórica carga de lenha que
o Senhor lhes atirou no lombo. O homem sem nome, coluna ereta e meio
sorriso no rosto, ficou onde estava, olhando fixo na direção de Abel, mas
para lugar nenhum.
O pastor sorriu, acenou com a cabeça, depois com as mãos, mas o
homem não respondeu. Nem o rosto reagiu. Era como se não estivesse
mais lá.
Na volta para casa, encontraram-se na estradinha, e o homem sem nome
o abraçou. Um abraço caloroso, de peito suado e camisa aberta até o
ventre. O homem não tinha pelos ou os pelos eram muito curtos.
Duas horas mais tarde, uns meninos do povoado o encontraram morto,
enforcado numa árvore cujo nome (tanto o científico como o vulgar) Abel
preferiu apagar da memória. Morrera asfixiado; o peso do corpo não tinha
sido o suficiente para quebrar o pescoço. No chão, havia uma Bíblia —
que o homem provavelmente queria ter nas mãos no momento da
passagem — e, marcando a página inicial do Livro das Lamentações, um
bilhete no qual agradecia por tudo que o pastor Abel tinha feito por ele.
Silêncio longo.
— Você só pode estar de brincadeira — disse Benjamim.
Abel soluçou, por causa do vinho.
— Mesmo se… — o mais velho insistiu. — Você não teve culpa.
Abel sorria, porque assim era o formato do seu rosto.
— É uma piada, né? Só pode.
Silêncio breve.
42. Ainda no inferno

Os mortais e, por isso, trocistas conscientes, sabemos


rir nos momentos mais atormentados de nossa
existência!
Strindberg

Benjamim não teria como saber se a história do suicida africano era ou


não uma piada. Abel emudeceu e fez uma careta oca. Depois do breve
silêncio de torpor, balançou o corpo para trás, para a frente, apoiou as
mãos nos ombros do irmão e perguntou, com a cara mais séria que pôde
armar, se realmente importava. Riu, repetiu a pergunta, tropeçando a
língua dentro da boca. Não importava.
O hálito de fazer incender os carvões:
— Todo mundo no mundo é um Costa e Oliveira.
— Isso não quer dizer nada, Abel…
O caçula empurrou o irmão para tomar impulso e prumo, sem muito
sucesso. Benjamim, ainda sentado, lhe ofereceu a cadeira. Abel,
caminhando às apalpadelas até a parede de livros, se sentiu ofendido.
Estava, como todo bêbado, bem. Levantou só o lábio superior, num sorriso
improvisado, mas sincero. Como todo bêbado, amava profundamente o
próximo como a um irmão, e o próximo mais próximo calhava de ser seu
irmão de fato. Disse isso a Benjamim, que achou graça do raciocínio.
Abel tossiu como se fosse vomitar, mas no meio do caminho a tosse
virou uma risada longa e feliz. Foi até o mapa-múndi de Ortelius, mal
iluminado, e fez um gesto melodramático, como se abraçasse o planeta:
— Você viu que eu apareci naquela internet?
— Não vi ainda…
— O povo está todo rindo de mim, me contaram.
Benjamim riu também. Abel encostou-se a uma das estantes:
— Não é maravilhoso?
Silêncio breve. Benjamim:
— Eu perdi meu emprego.
Os dois se entreolham.
Silêncio breve.
Caem na gargalhada.
Abel, ainda rindo:
— Você pode vir trabalhar aqui na igreja.
Benjamim sobe um tom:
— Hm… Eu posso ser o messias do Messias.
Abel fecha os olhos e solta uma risada que lhe arremessa a cabeça para
trás. Topa a nuca num exemplar da Anatomia da melancolia, de Burton
(ou em qualquer outro), cambaleia, escorrega, tenta se segurar, mas cai
sentado, derrubando alguns outros livros no processo. Benjamim vai até
ele, mas o pastor, soluçando, está bem:
— Tudo bem, estou bem. Está tudo bem. Tudo bem no inferno.
43. Cancelamento de Nada Mais que a Verdade
provoca “onda mística”

Sejamos nós os renovadores desta vida terrena.


Zoroastro

A organização do festival Sonora Fest 2010 anunciou na quarta-feira (09)


o cancelamento dos shows da banda Nada Mais que a Verdade, que se
apresentaria no palco Nevralgia nos dias 21 e 22 de janeiro. Segundo a
assessoria do evento, os músicos alegaram “motivos de força maior” para a
desistência. Três dias após o anúncio, o vocalista do grupo, Timóteo Lira,
explicou, em nota no site oficial da banda, que os três integrantes estão se
preparando para a chegada do “messias do Messias”: “Eu, Oscar [Jâniger,
tecladista] e Henrique [Doblin, baterista] decidimos sair fora do Sonora
porque estamos indo para a cidade mística de Santa Maria Madalena
[interior do estado do Rio de Janeiro], onde o pastor Abel Costa e Oliveira
vem fazendo um trabalho maravilhoso de conscientização da humanidade.
Nós queremos ser independentes do sistema econômico. Queremos
explorar outras coisas, aprimorar nossos espíritos. Afinal, nós nos
chamamos ‘Nada Mais que a Verdade’. Esse é o nosso nome e essa é a
nossa busca”.
Ainda segundo Lira, a banda, que vinha fazendo shows cada vez mais
curtos desde que o guitarrista Ricardo Alberto foi internado com problemas
de depressão nervosa, entrou em recesso por tempo indeterminado: “A
Nada Mais está morrendo de desgosto junto com o Ricardinho, e só o
contato direto com a energia de Santa Maria Madalena e do pastor Abel
pode salvar o nosso amigo e a nossa música”.
Os fãs da banda se manifestaram nas redes sociais. Ontem (12), o termo
“morrer de desgosto” atingiu o topo da lista de expressões mais utilizadas
no Twitter, e alguns internautas afirmaram que pretendem se juntar aos
integrantes da Nada Mais em sua peregrinação. O movimento ganhou
força e já é chamado de Onda Mística (OM).
Na onda da Onda, a organização do Sonora divulgou uma nota
revelando que já estuda levar o festival para Santa Maria Madalena no ano
que vem. O anúncio irritou os músicos e peregrinos da Onda Mística
(OM), que pretendem boicotar o evento. “Estão querendo tirar proveito do
genuíno interesse espiritual das pessoas”, afirmou um fã da Nada Mais que
a Verdade, que preferiu não se identificar.
O pastor Costa e Oliveira, que não foi encontrado pela reportagem para
comentar o caso, ficou famoso depois que o vídeo de um de seus cultos foi
publicado na internet. Na inusitada gravação, que se tornou sensação nas
mídias sociais, o religioso afirma que o planeta está à beira de uma
epidemia de desgosto que dizimaria quase toda a população mundial.
Considerado motivo de piada pela maioria dos internautas, o vídeo
chamou a atenção dos integrantes da Nada Mais que a Verdade: “O pastor
Abel fala justamente a respeito de uma coisa que a gente está vivendo com
o Ricardo”, afirmou Jâniger. “Começou como mais uma das curiosidades
da internet, mas depois a gente viu que era sério, muito sério”, concluiu
Lira.
44. Urgências

Oh “enjoying oneself”! Another modern form of


sickness.
D. H. Lawrence

Benjamim voltou para o Rio no dia 27 de dezembro, ainda com o


sangue ralo e o corpo magoado pela ressaca. A Glória se preparava para a
passagem do ano sem muito capricho: cartazes publicitários desejando
prosperidade, uma ou outra queima de estoque, pessoas mais ou menos
sorridentes, e nada além. Nenhum palco montado, nenhum carro de som,
poucos turistas.
O réveillon no Rio de Janeiro é um festejo essencialmente praiano,
virado para o horizonte marítimo, de onde sobem os fogos de artifício
quando bate meia-noite. A Glória, que já teve o seu cais, sua lagoa e suas
praias, hoje vive afastada do mar. Aterros sucessivos foram afogando as
águas do bairro, até que a Glória secou quase por completo. O rio Catete,
que corria por ali, desapareceu. O outeiro da igreja de Nossa Senhora, que
virava uma ilha nas cheias, hoje é uma ponta de pedra cercada de asfalto
por todos os lados. A praia desapareceu. O ano, portanto, nunca vira por
inteiro na Glória; seus habitantes não conseguem ver os fogos, não pulam
as sete ondas para dar sorte, não têm onde depositar suas oferendas a
Iemanjá, rainha do mar. Ficam sem saber se é 1999, 2002 ou 1817. Isso
talvez explique por que o bairro parece ter parado no tempo, ao passo que
Copacabana, Ipanema ou Barra da Tijuca remoçam ano trás ano.
A primeira coisa que Benjamim fez, ao chegar a casa, foi pesquisar o
próprio nome no Google, a ver se a nota do Reis sobre sua obra já havia
sido publicada. O site de buscas o redirecionou para o site do jornal, e lá
estava a matéria, ilustrada pelo retrato de Virginia Woolf vestida de nobre
abissínio e por uma aquarela (um rosto de mulher prestes a rir ou a
chorar). Tinha sido publicada na edição de sábado (26). A manchete —
“Altíssima definição” — o agradou instantaneamente, menos pelo
significado que pelo superlativo. Mas ainda não conseguia ler com
atenção. O olho palpitava, salivava, media a extensão do texto. Na versão
impressa do jornal, ocuparia uma coluna inteira.
Primeiro, procurou os adjetivos: “desconhecido”, “corretas”, “tímido”,
“elegantes”, “pop-acadêmico”, “jovem”, “absurdo”, “pobre”, “simétrico”,
“ácido”, “irônico”, “derrotistas”. Depois, foi aos advérbios, aos verbos e, por
último, aos substantivos. Só então, após se certificar de que o ex-chefe não
havia destruído sua carreira com uma palavra mal escolhida, pôde ler o
que dizia.
Era uma crítica dócil. O Reis o pintava como um jovem de talento,
pouco conhecido e com uma obra ainda em formação, mas promissor.
Algumas declarações que poderiam gerar polêmica (como a confissão de
que se considerava um pós-moderno) foram cortadas da entrevista, fazendo
com que Benjamim soasse entre desinteressado e desinteressante, um
homem de mediocridade quase arcádica, quase proposital. As telas mais
ousadas — o retrato de padre Cícero maquiado como um travesti e a
paródia do brasão da cidade do Rio de Janeiro — não foram mencionadas.
O trabalho de Benjamim, o crítico argumentava, era um híbrido de
William-Adolphe Bouguereau e David Hockney, isto é, a cria resultante do
cruzamento entre o pop e o erudito, como acontecia com a maioria de
seus pares da “geração 10”, na qual Benjamim foi involuntariamente
encaixado. Para o Reis, a “geração 10” tinha uma só preocupação: lidar
com o imenso repertório de obras de arte disponível a qualquer ser
humano alfabetizado e com acesso à internet. Pois, se os antigos tiveram o
absinto, a heroína e a cocaína, os novíssimos perigavam morrer de overdose
de informação. E Benjamim, apesar da sigla com que assinava seus
trabalhos (B.A.C.O.), parecia ter a sobriedade necessária para não definhar
em meio à orgia de estímulos externos. Não redundaria no sarcasmo —
produto do excesso de confiança na memória e no conhecimento — nem
em ironia alguma que não fosse a estritamente necessária para a
compreensão do que, afinal, era um ser humano.
Benjamim concordou pela metade, e discordaria de praticamente tudo
se o texto não tivesse sido publicado num jornal de grande circulação.
Mas, quando calculou quantos olhos deviam estar lendo seu nome
naquele exato instante, o coração amoleceu, junto com as opiniões. Talvez
ele não fosse mesmo o anacoreta que achava que era, um trabalhador
solitário destinado a morrer ignorado e miserável somente para renascer
mais tarde nos braços dos curadores e nos bolsos dos leiloeiros. Talvez
existisse mesmo uma geração 10, que talvez sofresse com a abundância de
informação. Afinal, os críticos nem sempre estão errados. Há de se dar
nome aos bois de vez em quando: geração de 22, 45, 70, geração de 68,
geração de 1833 etc. e etcétera — todos esses tinham ficado para a história,
bem ou mal. Por que não? Há de se dar nome aos bois, e ele, Benjamim,
talvez fosse mesmo um deles, talvez o maior. Entretanto, quem eram seus
companheiros geracionais, aqueles com os quais compartilharia a década
seguinte, ele não sabia. Mas haveria tempo para descobrir: 2010 nem havia
começado ainda. Era pasto virgem, campo aberto.
Cinco internautas comentaram a matéria no site do jornal. Um deles,
sob a alcunha “Corisco”, esbravejava contra os políticos da nação, exigia o
fechamento do Senado e da Câmara, conclamava as massas a tomarem as
ruas, provavelmente na caixa de comentários errada. Os outros, todos
anônimos, limitavam-se a rir, gritando em letras maiúsculas:
HAHAHAHAHAHAHAHA.
À noite, Benjamim foi à Taberna da Glória, levando o jornal de ontem
debaixo do braço, comprado mais cedo na banca da esquina. Por sorte, o
jornaleiro disse, tinha sido um sábado ruim de vendas: nenhuma notícia
atraente, manchetes mornas, e com a internet, então, ninguém mais
comprava jornal. Estava tudo encalhado. O boato era que havia pilhas e
mais pilhas de exemplares não vendidos nas bancas da cidade, tantos que
os rapazes da entrega nem tinham conseguido levar todos de volta para a
distribuidora. Voltariam no dia seguinte para buscar o resto. Um dia negro
para o jornalismo impresso, concluiu o vendedor, repetindo algo que lera
há muitos anos no editorial de um jornal. Tentou empurrar mais alguns
exemplares para Benjamim, que se contentou com um só, por timidez,
mas andou três quarteirões até outra banca para comprar o segundo. O
terceiro foi comprado já no largo do Machado, a um quilômetro e meio de
distância. Em todas as bancas, a mesma cantilena: tudo encalhado, tudo
perdido.
Tomou dezessete chopes, sem tirar os olhos da portaria do edifício
Glória. Paula não passaria nunca mais. Abriu o jornal várias vezes, para
que as pessoas ao redor enxergassem seu nome, mas era inútil; ninguém ali
sabia seu nome. Então, apresentou-se a um garçom, fingindo a voz alta dos
bêbados: Benjamim Costa e Oliveira, prazer. Disse que sempre se sentava
àquela mesa porque gostava de lugares com história, e a Taberna da Glória
tinha muita história. O garçom respondeu “Como não, senhor” e
perguntou se ele desejava algo mais. Benjamim engoliu em seco, e algo
nos músculos da garganta não funcionou como deveria, porque sentiu que
inflamava. Pensou em responder escabrosidades, mas só pediu outro
chope. O garçom sugeriu uma porção de frango a passarinho ou de batatas
fritas, filé aperitivo, que tal? Especialidades da casa, o frango e o filé. A
vizinha não apareceria. Talvez tivesse se mudado. Não, não, não, não, só o
chope mesmo.
— Como não, senhor.
Escancarou o jornal novamente, para fazer algum barulho. Forçou uma
tosse de tuberculoso. Sorriu ao ler seu nome. Por cima do papel, observou
a rua. Mulheres passavam de sandálias, saias de verão, blusinhas curtas.
Algumas, bronzeadas, com cheiro de protetor solar, voltavam das praias
(Copacabana, Ipanema, Leblon, próprias para o banho). Outras, vestidos e
cabelos longos, iam para o culto dominical da igreja ali perto. Os homens
continuavam homens: aquele olhar de quem viu seu time de futebol
perder ou ganhar a partida de domingo do campeonato tal, que, se
conquistado, concede uma vaga para o campeonato tal, que concede uma
vaga para o campeonato tal. Olhar de quem não vê fim nas coisas. Paula
não passava. Não passaria mais: quase onze da noite. Benjamim dobrou o
jornal e desistiu. Voltaria amanhã. Quando levantou o braço para chamar
o garçom e pedir a conta, ouviu seu nome.
As entranhas gelaram. Um frêmito. Aguçou as orelhas e ouviu, outra
vez, às suas costas: “Costa e Oliveira”. Virou o rosto discretamente. Três
homens e duas moças, todos vestidos de domingo, conversavam alegres.
Copos de cerveja. Frango a passarinho e filé aperitivo. Uma gargalhada
geral.
Benjamim se sentiu depravado. O grau mais excitante de voyeurismo é
observar a si mesmo, na boca dos outros, às escondidas. Um dos rapazes
comentou algo e o nome surgiu de novo na boca de uma das moças:
“Costa e Oliveira”. Benjamim deu um sorriso obsceno, olhando para a
frente, para a portaria do edifício Glória. Pensou em ir até eles e se
apresentar. Que mal faria? A coisa mais natural do mundo é uma pessoa
falar com outra. A mesa riu. No máximo, não acreditariam nele. Mostraria
seus documentos. Pareciam pessoas divertidas. Levantou-se de um pulo e
foi. Uma das moças percebeu o movimento e olhou para ele, despistada,
com a sobra de um sorriso na boca. A voz da amiga a puxou de volta para a
conversa. Benjamim se aproximou com pés de dançarino, sentindo-se um
pouco mais alto do que era.
A dois passos da mesa, ouviu:
— … que o pastor Costa e Oliveira…
Num átimo, a expressão quase amistosa que tinha conseguido armar
desapareceu, transformando-se na cara neutra de quem bebeu chopes
demais e precisa ir ao banheiro. Falavam do irmão. Óbvio que falavam do
irmão. Entrou na cabine e simulou que urinava. Nunca usava os urinóis.32
O pastor Abel, o sacerdote circense, a celebridade de internet, seu irmão
caçula cinco ou seis centímetros mais alto que ele. Calculou o tempo que
deveria permanecer dentro da cabine para aparentar que realmente tinha
urinado. Mais ou menos três minutos, não mais do que isso, ou
imaginariam que ele estava fazendo outra coisa. Seu irmão, ao mesmo
tempo piadista e alvo de chacotas, tinha atingido o topo do mundo. Não
havia como derrubá-lo. Pregava a zombaria como a única saída, como ato
de devoção. Portanto, que zombassem dele não era uma ofensa, mas sim
um agrado, quase uma profissão de fé. Os sarcásticos e zombeteiros não só
falhavam em humilhá-lo como se convertiam ao seu dogma escarninho,
tornavam-se fiéis à Lei de Abel sem perceber: a zombaria era a lei, e
zombar da zombaria ainda era, e sempre seria, zombaria. Benjamim
deixou a cabine, um tanto tonto, e voltou para a mesa de sempre. O pastor
Abel tinha dado um nó no mundo. Não havia maneira de vencê-lo a não
ser ignorando-o por completo, o que, àquela altura, era virtualmente
impossível.
Lá estavam as duas moças e os rapazes, rindo como boas ovelhas.
No instante em que se sentou, sentiu uma necessidade urgente de
urinar.

32. Evitava os urinóis por respeito a Marcel Duchamp, não por vergonha, dizia a si
mesmo.
45. Apud

Qualquer um que fale em nome de outrem


é sempre um impostor.
Cioran

O dia 28 amanheceu como todas as demais segundas-feiras. Benjamim,


porém, acordou mais cedo que de costume, às sete e meia da manhã, hora
em que se levantam os que ainda têm emprego. Sol ameno, vento
agradável, nenhuma nuvem no céu. Arrastou a mesa da sala para perto da
janela, para poder observar a Glória, lá fora, enquanto tomava o café
(preparado com um toque de canela — como Natália fazia quando eram
casados). Comeu algumas maçãs frescas. Demorou a acender o primeiro
cigarro do dia. Sentia-se saudável, como se o céu claro lhe bastasse para ser
feliz, ou alegre, ou nem alegre nem triste. Ficou pensando, humildemente,
como o poeta, na vida e nas mulheres que havia amado, ou admirado, ou
das quais não havia nem gostado nem desgostado. Recortada pela janela, a
paisagem — céu, igreja, nacos de prédios, algumas árvores — parecia saída
de um filme, desses que têm como cenário o Rio de Janeiro e, como trilha
sonora, regravações cada vez mais modernas das canções da bossa nova.
Não era por acaso que os frequentadores do Café Aleph inventavam
personas para viver suas vidas por eles num café imaginário, copiado de
cafés passados. Não havia nada de extraordinário em fazer de si próprio
uma citação de outra pessoa ou personagem. O mundo mesmo, como a
paisagem da janela, era uma citação de outras coisas — filmes, livros,
canções, quadros, fofocas, notícias de jornal. Ele, Benjamim, era
igualmente uma contrafação — de Sísifo, segundo Natália; dos humoristas
históricos, segundo a café society; dos artistas de sua geração, segundo o
Reis. Aquela cena que estava protagonizando, sentado diante da Glória,
por exemplo, não passava de uma cópia malfeita de um poema do Manuel
Bandeira.33 Seu casamento com Natália, por mais inusitado que parecesse,
era também um retrato de todos os casamentos do mundo: estragado por
causa de uma piada mal compreendida. Suas telas eram simulacros das
obras dos grandes mestres. Mesmo o messias do Messias do pastor Abel era
uma citação, um salvador de segunda mão. Não havia nada de novo
debaixo do sol.
Paula, sua vizinha, também seria uma paráfrase de outra pessoa, talvez
da mãe ou de uma tia por quem nutria um carinho imenso. A ex-Paula,
não restava dúvida, era toda construída de citações roubadas dos filmes do
Woody Allen. Daniel, seu irmão desaparecido, parecia se esforçar muito
para imitar os modos e pensamentos do sogro. A mulher, Ana, emulava as
divas do cinema das décadas de 1940 e 1950. Etc. e etcétera. Os membros
do Café Aleph ao menos não tinham pudor em assumir que eram cópias
deslavadas de pessoas que eles nunca teriam coragem de ser.
Ao fim e ao cabo, o irmão e a tia-avó louca podiam ter razão: uma
epidemia de desgosto era, de fato, o destino mais provável da humanidade.
Discordava, porém, da panaceia. Nenhum messias surgiria para nos salvar.
Zombar de tudo de nada adiantaria. Não existe piada engraçada o
suficiente para superar o absurdo anedótico do cosmo. O universo — os
automóveis, o amor, as colocações de emprego, a invenção da pasta de
dente etc. e etcétera — não passa de uma muito elaborada pegadinha, da
qual todos, sem exceção, somos vítimas. O próprio e todo-poderoso Deus,
se tal coisa existisse, já não seria capaz de escapar da armadilha que Ele
mesmo construíra com tanto esmero: a Criação tinha ficado tão boa que
superara todas as expectativas. Era a piada perfeita. Deus tinha dado a volta
em Deus e agora ria d’Ele pelas costas. Deprimido pelo constante assédio
(piadinhas de mau gosto, agressões verbais, apelidos cruéis), não seria
surpresa para ninguém se Deus de repente morresse de desgosto.
Lá fora, a Glória, ainda ensolarada, vento refrescante, algumas nuvens
no céu.
Benjamim notou que havia uma fileira de formigas na parede, subindo
em direção à janela. Sorriu, pensando na ex-Paula. Mesmo sem o mapa
que fizera para elas, as formigas ainda sabiam que caminho tomar. Tentou
descobrir de onde vinham, mas não pôde: a fileira desaparecia atrás da pia
da cozinha, sobre a qual repousava, empoeirado, o faqueiro que Natália
tinha esquecido no apartamento.
Ao se aproximar da janela, no entanto, percebeu para onde estavam
indo. Uma a uma, carregando nas costas um fardo que Benjamim não
conseguia enxergar, as formigas chegavam à beira da esquadria de
alumínio, cruzavam a fronteira e, assim que o sol iluminava suas patinhas,
eram levadas pelo vento. Muitas hesitavam, tentavam dar meia-volta, mas
topavam as antenas nas das companheiras que vinham atrás e, sem outra
opção, endireitavam a marcha. Desapareciam mais adiante. Compadecido,
Benjamim passou várias vezes o dedo sobre o trajeto que elas seguiam, para
que se dispersassem e procurassem um caminho melhor, mas não surtia
efeito: logo antes de se deixar ir embora, a primeira da fila
inadvertidamente secretava seus feromônios gregários, atraindo as demais
para o mesmo destino. Saíam voando, num vórtice, e em pouco mais de
um segundo ele as perdia de vista.
Naquela noite, a Taberna da Glória não abriu, por motivos de
segurança. O estabelecimento tinha sido dedetizado à tarde. Usaram os
venenos mais poderosos disponíveis no mercado para acabar de uma vez
por todas com a praga das formigas. Benjamim foi se deitar antes das dez.
Dormiu profundamente, como se narcotizado. Sonhou com quase todas as
mulheres que conhecia.
No sonho, as mulheres não tinham corpo, só rosto, e os rostos de todas
elas — Natália, as duas Paulas, a mãe, Ana, Ruth, a filha de Ruth, a caixa
do supermercado… — eram centenas, milhares, e olhavam para ele sem
guardar mágoas. Não guardavam mágoas, mas se afastavam aos poucos;
Benjamim não sabia por quê. Quando os rostos já estavam bem longe,
tornavam-se uma massa disforme e ele percebia que, na verdade, se tratava
de um rosto só, formado pelos milhares de outros rostos que o fitavam sem
mágoa. E esse novo rosto era também o de uma mulher conhecida e
também se afastava, indo se juntar a outra multidão de rostos de mulheres
que ele conhecia, formando uma nova massa disforme, que era outro rosto.
O processo se repetia infinitamente: os rostos se afastavam, tornavam-se
uma massa disforme, que logo era percebida como um rosto só, que se
tornava parte de outro grupo de rostos inexpressivos que se afastavam,
dando origem a uma nova massa disforme e inexpressiva, que etc. e
etcétera. A sensação, no sonho, era desesperadora. O clímax se deu quando
a sutil força gravitacional dessa sucessão de rostos começou a atrair o rosto
do próprio Benjamim para dentro da multidão que olhava para ele sem
guardar mágoas.
Nessa hora, acordou.

33. O autor crê que Benjamim e o narrador estejam se referindo ao “Poema só para
Jaime Ovalle”, de Belo Belo (1948). No entanto, parece também haver referências ao
“Poema do beco” (Estrela da manhã, 1936) e a “Maçã” (Lira dos cinquent’anos, 1940).
46. Ano-Bom

If a man will be beaten with brains, a’ shall wear


nothing handsome about him.
Much Ado About Nothing, 5, 4

Majestosa, a silhueta magérrima de Benjamim apareceu na porta que


dava para a sala de estar, trazendo na mão o faqueiro de Natália, dentro do
qual repousava, empoeirada e fosca, a prataria. A luz da cozinha era a
única acesa, de forma que uma sombra longa se projetava no chão da sala
e ia bater na parede adiante. Na parede, a janela; na janela, a noite da
Glória. Benjamim estava nu.
Aproximou-se da janela, e a sombra ficou maior e mais curta. Sentiu-se
um pouco mais baixo do que era. O relógio de pulso acusava 11h58 da
noite. Quase 2010, quase a década destinada a ser dele. Lá fora, um
silêncio baço, as ruas desertas, a igreja apagada. Ergueu o faqueiro acima
da cabeça e esperou o alarme do relógio bater meia-noite, com a certeza de
que o que estava prestes a fazer nunca tinha sido feito antes em toda a
história da humanidade.
O Ano-Bom nunca chega na Glória. Não há queima de fogos, não há
shows, ninguém pula as sete ondas ou oferece barquinhos de madeira a
Iemanjá, porque o bairro aterrou suas águas para desafogar o trânsito da
cidade e acabou se tornando apenas mais um lugar de passagem. Não se
permanece na Glória, não se vai a ela, não há volta; passa-se pela Glória
em direção a Botafogo, Ipanema ou Leblon.
Na noite do 31 de dezembro, a rua da Lapa, que depois se transforma na
da Glória, parecia não notar que um novo ano estava às portas. Prostitutas
esperavam seus clientes, como se nada. Os bares estavam abertos, e seus
bêbados usuais não percebiam coisa alguma. Os poucos moradores que
não debandaram para os bairros praianos caminhavam para cá e para lá,
calmos, com cara de feriado, mas não de Dia da Fraternidade Universal,
porque a Glória não é irmã de ninguém. Está muito bem sozinha. Está
satisfeita com seu calendário particular, que quase não avança. Não se
importa em não ouvir a barulheira dos fogos de artifício; não quer festa.
Tem seu próprio ritmo, quer ser deixada em paz. A Glória não enxerga
nada de especial em ritos de passagem.
Meia-noite. O toque acanhado do relógio de pulso foi o único som que
Benjamim ouviu. No céu, os clarões distantes, mas inaudíveis, dos fogos
das praias do Flamengo e de Botafogo confirmaram a virada do ano.
Abriu o faqueiro e atirou os primeiros talheres pela janela.
Os garfos e colheres despencaram com alguma preguiça e aterrissaram
nos paralelepípedos da ladeira da Glória, perturbando o silêncio sufocante
do bairro. Os sinos da Nossa Senhora, prostrados. Os vizinhos, calados,
provavelmente ausentes. Talvez Paula tivesse se mudado para um bairro
mais badalado.
Benjamim começou a cantarolar baixinho uma melodia improvisada,
absolutamente original, que nascia naquele momento e em poucos
minutos desapareceria para sempre. Outros garfos, facas e colheres de chá
choveram na ladeira, trincolejando. Uma concha de feijão ricocheteou no
muro do Hotel Turístico, e foi a única vez em que uma concha de feijão
fez isso naquele muro.34 Benjamim estufou o peito descoberto e quis gritar
o próprio nome para a Glória, mas teve vergonha. Uma faca de peixe
descreveu um arco, brilhou por um átimo no escuro e foi se chocar contra
a parede do edifício em frente.
Atirou os últimos talheres para o alto, com força.
Estava nu, puramente nu.
Não chorou porque não tinha motivos para isso.
Solitária, uma gargalhada de mulher ecoou na noite da Glória.

34. O autor pede encarecidamente ao leitor que não atire conchas de feijão no muro
do Hotel Turístico.
47. Dia da Fraternidade Universal
48. A 117a morte de Hecateu de Mileto, o Logógrafo

Por ele! Por ele eu sofreria mil mortes.


Balzac

Paula Lavalle passou dezembro e grande parte de janeiro assassinando


Hecateu de Mileto no Café Aleph. Toda vez que Benjamim se manifestava
no fórum, fazendo suas piadinhas e seus comentários irônicos, a mulher o
matava, de maneiras variadas: abrindo alçapões, soltando animais selvagens
ou míticos atrás dele, esfaqueando-o com pequeninas facas de legume,
esquartejando-o com serras elétricas ou cutelos, envenenando seu absinto,
colocando explosivos em seus cigarros ou chumbinho na comida, usando
pistolas, metralhadoras, estilingues, socos e pontapés, instrumentos
medievais de tortura etc. e etcétera. A café society, que desconhecia as
circunstâncias em que Hecateu havia terminado o relacionamento, achava
graça. O lendário zombeteiro ressuscitava assim que a ex-namorada ia
embora e, como se nada tivesse acontecido, retomava o assunto exatamente
do ponto em que havia sido interrompido pela fúria vingativa da
personagem da mulher.
No entanto, entre a 87a e a 116a morte, os métodos de Paula começaram
a ganhar em crueldade. A ex-namorada, a única que sabia quem ele era,
começou a dar indícios de que mirava não mais em Hecateu, mas no
homem por trás dele. O 91o assassinato levou-o à beira do desespero: Paula
Lavalle o amarrou numa poltrona e colocou um par de megafones na
altura de seus ouvidos, torturando-o até a morte com o áudio de um culto
do pastor Costa e Oliveira, em loop. Na 99a vez, rachou o crânio do ex-
amante com o mapa das formigas que ele lhe dera de presente e, numa
clara violação de um dos mais sagrados princípios da café society,35 postou
uma foto da tela verdadeira (com um rasgo a faca do tamanho de uma
cabeça humana), para que todos pudessem ver. Na 110a, enfiou-lhe cinco
cartelas de analgésico garganta abaixo e, depois de vê-lo estrebuchar e
morrer, disse aos presentes que Hecateu de Mileto tinha morrido de
desgosto. Nos cinco assassinatos seguintes, as circunstâncias foram
diferentes, mas a causa mortis persistiu: desgosto. Os frequentadores do
café, familiarizados com o fenômeno que eram os vídeos do pastor Costa e
Oliveira, riram das seis mortes como se fossem absolutas novidades.
Benjamim fazia seu Hecateu rir também, mas estava apavorado. Casimiro
de Abreu, aproveitando-se da ocasião, postou a seguinte mensagem no
tópico “Salão Macária”:

CASIMIRO DE ABREU: *Casimiro, sentado à mesa de mármore, olha


para o salão e recita versos de sua própria obra:*

Tendo n’alma atroz desgosto


E as leves sombras de infantil desgosto
E uns doces longes, como dum desgosto,
A sombra fugitiva dum desgosto,
Nalgum remoto desgosto.

O poemeto de Casimiro foi bem recebido pela café society e propagou-


se por todos os tópicos do fórum. Torquato Neto, um artista plástico de
Vila Velha (ES), e Bert Jansch, enfermeira de Amargosa (BA), inventaram
uma coreografia para acompanhar os versos, uma espécie de quadrilha da
qual deveriam participar setenta e três pessoas. A dança não pôde ser posta
em prática por falta de quórum. Outros poetas tentaram repetir o mesmo
processo de corte e colagem em suas próprias obras, mas não havia
nenhum autor com tantas menções a “desgosto” quanto Casimiro de
Abreu, de modo que o romântico madalenense permaneceu como o gênio
inconteste dos versos de tristeza fingida.
Em homenagem ao velho Casimiro, Paula Lavalle recitou o recém-
famoso poema antes de assassinar Hecateu de Mileto pela 117a e última
vez. Era um domingo de janeiro (24). O “Studeo Glória”, recanto preferido
do ex-casal, estava lotado: parnasianos e simbolistas, figurativistas e
abstratos, teósofos e pré-modernos, sambistas e concretos e neoconcretos
discutiam, folgavam, bebiam e comiam. Jorge Luis Borges, fundador e
administrador do Café Aleph, também dava o ar de sua graça e bengala. O
mestre argentino observava as telas que Hecateu expunha no ateliê e fazia
alguns elogios, mas em geral dizia não ver nada de especial nelas. Hecateu,
por medo de ser banido do site, não fez nenhuma piada a respeito. Kurt
Vonnegut, um técnico em radiologia de Saquarema (RJ), andava para lá e
para cá, dando uns muxoxos que tanto podiam significar carinho como
desdém pelo cosmo. O próprio cão Pompônio, multiplamente redivivo,
estava presente, assistindo a tudo com o rabo impertinente, as patinhas
pedindo afagos e comida aos convivas.
Então, na hora em que mais da metade dos membros do fórum estava
on-line e reunida num só local, Paula resolveu aparecer. Alguns, certos de
que testemunhariam mais um assassinato pitoresco, começaram a rir de
antemão, em letras toscamente maiúsculas: HAHAHAHAHA. Os mais
reservados aguardaram, com ar blasé; já estava ficando sem graça o
repetitivo teatrinho da morte. Hecateu não se manifestou, na esperança de
que a mulher achasse que ele não estava mais lá e desistisse de
protagonizar ainda outra cena inconveniente.
Não houve cena. Paula Lavalle entrou no estúdio Glória,
cumprimentou algumas pessoas e pediu, por favor, silêncio. Subiu numa
cadeira, recitou os versinhos de Casimiro e recebeu os aplausos gerais.
Depois, limpou a garganta e disse que Hecateu de Mileto, o Logógrafo, se
chamava Benjamim de Alencar Costa e Oliveira, tinha vinte e nove anos,
era carioca, museólogo e vivia no bairro da Glória.
Silêncio longo.
Revelar a identidade de um membro do Café Aleph era deselegante,
mas não chegava a ser uma ofensa grave. Muitos conheciam as personas
reais de seus amigos virtuais, não raro pessoalmente, mas no ambiente do
café era de mau tom fazer menção à realidade. Borges bufou, em claro
sinal de reprovação, e muitos outros o acompanharam. Paula tinha ido
longe demais.
E foi ainda mais longe. Publicou uma fotografia de Benjamim, tirada
com o celular enquanto o rapaz estava distraído, numa pose
anatomicamente peculiar: calçando os sapatos. Strindberg, poeta menor de
Parnaíba (PI), indignou-se e foi embora, guinchando que, se ninguém
respeitava mais a boa e saudável zombaria, a café society estava acabada.
Hecateu ficou mudo. Paula, então, fez um favor aos atônitos convivas.
Enviou-lhes um link para um vídeo do pastor Costa e Oliveira e repetiu o
sobrenome: Costa e Oliveira. Todos os olhos virtuais se voltaram para
Hecateu.
Silêncio breve.
Benjamim se lembrou de um dos bordões da Igreja Global em Cristo,
certamente conhecido pelos internautas, e tentou uma última defesa:
— Todo mundo no mundo é um Costa e Oliveira.
Ninguém ouviu.
Hans Christian Andersen, num golpe de excepcional obviedade, gritou,
do fundo do salão, que o rei estava nu. HAHAHA, responderam os mais
excitados.
Borges ameaçou banir a moça por perturbação da ordem, mas Paula
mostrou-lhe a palma da mão e disse que já estava terminando. Depois
deletaria a própria conta, suicidaria Paula Lavalle. Nunca mais retornaria.
Estava cansada de fingir ser uma mulher que não era; aquilo tudo era uma
perda de tempo etc. e etcétera. Antes, porém, tinha outra coisa para
mostrar. Os convivas se calaram. Benjamim gelou.
Ainda de pé na cadeira, Paula Lavalle abriu um jornal amarelado e leu
uns trechos da crítica que o Reis havia publicado sobre a obra de
Benjamim Alencar Costa e Oliveira, vulgo B.A.C.O. Um homem sério, ela
disse, nada além de um homem devidamente sério. Em seguida, enviou-
lhes o endereço da matéria no site do jornal, para que vissem que não
estava inventando coisa alguma.
Silêncio.
O silêncio durou até que Clarice Lispector, um analista de sistemas de
Poços de Caldas (MG), voltou ao site do Café Aleph após ter lido a crítica e
perguntou, um tanto ingenuamente, o que havia de tão medíocre e
humilhante no texto. Paula Lavalle respondeu que nem se dignaria a
responder e saiu da sala atirando-se pela janela. Pouco tempo depois, o
perfil de Paula Lavalle foi apagado. Benjamim, que partilhava da opinião
de Clarice, não disse nada. James Joyce (professor de inglês, Maringá, PR),
entretanto, aproximou-se de onde a ucraniana estava sentada e lhe
perguntou, ao pé do ouvido: “Oh, querida, é sério que você não vê?”.
Então, Clarice viu tudo. Fingiu um espanto descomedido, depois uma
risota gutural, que fez Caio Fernando Abreu (desempregado, Santarém,
PA), que ainda não tinha enxergado nada de mais, de repente ver também.
Quando Caio F. viu, Sylvia Plath viu; quando Sylvia Plath viu, Ana C. viu;
quando Ana C. viu, Emily Dickinson viu etc. e etcétera. Assim, em poucos
minutos toda a opinião pública do Aleph havia visto.
Lá do fundo, novamente: HAHAHAHA.

35. A comunidade do Café Aleph, como toda comunidade baseada na interpretação


de papéis, via com desconfiança o intrometimento da realidade real na realidade
virtual, ainda mais quando acompanhada de registro fotográfico, por motivos óbvios.
49. As peripécias de Ambrósio na capital

He thought that it was loneliness which he was


trying to escape and not himself. But the street ran
on.
Faulkner

Conceição não morreu de preocupação pelo sumiço do neto. Ficou


tristonha e ainda mais muda, mas não morreu. Descuidou ligeiramente
dos serviços domésticos. Manchou camisas, deixou cair pratos e copos, fez
café fraco. Soltava uns gemidos roucos quando ninguém estava por perto.
Sentia a carcaça pesada, os pés inchados, a cabeça na tumba. Tropeçava
nas peças dos quebra-cabeças de d. Noemi. Durante duas semanas
Ambrósio não deu notícias, o que equivaleu a quatorze almoços insossos
na mesa do pastor Abel. Arroz empapado, feijão sem sal, carne borrachuda.
Os Costa e Oliveira cochichavam entre si, muito desagradados. Ruth a
confrontava na cozinha todo dia. A sogra lhe havia ensinado uma frase
inteira em bom português:
— Ou a senhora se emenda ou vamos ter que dispensar a senhora.
Conceição balançava a cabeça, sem emitir ruído.
Um dia de manhã, lá por meados de janeiro, Ambrósio ligou para a casa
dos patrões e pediu para falar com a avó. Abel atendeu, deu um alô e um
tudo-bem indiferentes e passou o telefone para a empregada, como se o
menino não estivesse desaparecido desde o ano anterior. Conceição
arrastou as sandálias o mais rápido que pôde e agarrou o aparelho com as
duas mãos:
— Ughr—
Silêncio breve.
— Ughrrum?!
Silêncio longo.
— Uuughrruuum…
Silêncio longo.
Conceição começou a chorar.
— Ughrrum…!
Silêncio longuíssimo.
A velha sorriu, ainda chorando:
— Ughrrum…?
Silêncio de média duração.
Conceição pôs o telefone no gancho e ficou parada, olhando para o
chão com um sorriso estupefato no rosto durante uns bons dois minutos.
Abel a trouxe de volta à realidade com uma pergunta, uma risada e outra
pergunta:
— E então, como vai o meu filhote?
Conceição não respondeu, nem com os olhos. Abel riu.
— E o que vamos ter para o almoço?
Como se tivesse recebido um choque leve, Conceição se aprumou e
voltou aos seus afazeres. Naquele dia, os Costa e Oliveira almoçaram como
nababos.
50. Queda de energia

Laughter itself is madness according to Solomon.


Burton

As luzes do mercado de repente se apagaram. Os clientes frearam seus


carrinhos e se lamentaram quase felizes, em uníssono enérgico, como
faziam nos tempos de colégio. Houve alguns segundos de profunda
camaradagem entre os desconhecidos, que se entreolharam com sorrisos
de bois contentes; faltou luz, todos compartilhariam a mesma escuridão.
Até Benjamim sorriu para os outros, mas ninguém viu. Lá fora, o sol era
tanto que ainda era de manhã. Os corredores estavam lotados: velhos,
velhas, donas de casa, crianças e desempregados. Gente com tempo, como
ele, gente que, depois do almoço, se dedicaria exclusivamente a esperar o
dia passar.
Houve uma pausa alegre. Ninguém resmungou.
Ainda no escuro, o tempo voltou a correr: os carrinhos retomaram a
marcha, iluminados pelas lanternas dos aparelhos celulares, e as compras
continuaram. Os desconhecidos novamente se desconheceram quando os
olhos se acostumaram ao breu. Nenhuma agitação incomum: mãos, rostos
desconfiados dos preços, listas de compras, latas de milho e ervilha,
pepinos em conserva, sacos de arroz, feijão, macarrão. Todos já
acostumados ao escuro, ninguém mais fingia que devia estar claro.
Benjamim ficou parado, barra de chocolate (meio amargo) e saco de
pão em punho, esperando a energia voltar. Estava no centro de um
corredor ainda mais sombrio, o de frios e laticínios, e seu celular não tinha
lanterna. Os demais clientes esbarravam nele, pediam desculpas, meio
risonhos, e seguiam adiante. Ainda queria comprar mortadela e queijo,
talvez batata palha e ingredientes para um estrogonofe.
Algo havia sido irreparavelmente quebrado, mas ele não sabia o quê.
Não foi um momento de revelação.
As luzes se acenderam. Poucos comemoraram.
Os balconistas o atenderam com sorrisos desabridos. Quando ele pediu
duzentos gramas de mortadela e cento e cinquenta de queijo prato, quase
estouraram em gargalhada. Não teve coragem de perguntar qual era a
graça. Na fila do caixa, um menino apontou para ele e soltou uma risada
estridente, que a mãe interrompeu tapando-lhe a boca. Benjamim passou
as mãos no rosto, inspecionou as próprias roupas, examinou-se
discretamente no espelho e não enxergou nada de tão hilário. Uma
funcionária do mercado, ao longe, empinou o queixo para duas clientes e
depois na direção dele. As três olharam de esguelha e trocaram ri-ri-ris
entre si. Mais atrás, na fila, uma senhorinha o observava com uma cara
simpática, quase de pena. Benjamim considerou a possibilidade de
estarem todos só muito felizes, mas o absurdo da ideia o convenceu do
óbvio: estavam rindo dele. Algo estava fora dos eixos.
Mais cedo, havia recebido uma carta da ex-Paula, com a data de
postagem anterior ao incidente no Café Aleph. A mulher se deu o trabalho
de lhe enviar, pelo correio comum, cinco páginas de gargalhadas
impressas, em letras maiúsculas:
HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA
HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA
HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA
HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA
HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA
HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA
HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA
HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA
HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA
HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA
HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA
HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA
HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA
HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA etc. e
etcétera, o que era, provavelmente, sua ideia de desfecho perfeito para uma
trama de vingança. Benjamim achou o esforço adorável, de certa maneira.
Mas ela calculara mal: a carta só chegou três dias depois do seu último
assassinato. Àquela altura, ele já havia planejado toda uma nova existência,
que prescindia da figura de Hecateu de Mileto, da fama e do amor da ex-
Paula. Só Paula, sua vizinha, importava agora. Portanto, ao ler as risadas da
boa e velha ex-Paula, Benjamim riu junto, mais para agradá-la que por
qualquer outra coisa. Aquela piada, ele já conhecia.
51. As confissões de mamãe

And the poor old lousy earth, my earth and my


father’s and my mother’s and my father’s father’s and
my mother’s mother’s and my…
Beckett

O quarto em que d. Noemi dormia, na casa de Santa Maria Madalena,


havia abrigado o arquivo morto de d. Letícia: doze caixas com fotos de
juventude, recortes de jornal e documentos mundanos — contas, recibos,
passaportes virgens, cartas de antigos amantes. No dia em que soube que o
sobrinho-neto viria morar com ela, no entanto, a velha pediu a ajuda de
Conceição para destruir tudo.
As duas passaram uma tarde memorável sentadas no quintal, ao redor da
fogueira que ia consumindo as lembranças que d. Letícia atirava, uma a
uma, ao fogo. Trocaram histórias de mocidade. Fizeram as pazes com os
desafetos do passado, muitos deles já mortos, e com as próprias vidas.
Choraram juntas, mas sem se abraçar. Após aquele dia, a patroa começou a
definhar e, quando morreu, Conceição ficou tão desamparada que se deu
conta de que não precisava dizer mais coisa alguma. Reduziu a voz aos
“ughrruns” e resolveu que esperaria a morte grunhindo.
Ao contrário do que havia imaginado, os “ughrruns” acabaram lhe
servindo muito bem. Os poucos que realmente queriam entender
entendiam-na sem a necessidade de mímica ou de outros jogos
adivinhatórios. A maioria, porém, gostava só de falar, e Conceição
compreendeu logo que roncar, tagarelar, gritar ou ficar quieta, no mais dos
casos, dava no mesmo. As pessoas simplesmente concordavam com os
“ughrruns” e seguiam falando, porque tinham certeza de que os
“ughrruns” concordavam com elas. E, mesmo se Conceição dissesse, com
todas as letras, que não concordava com isto ou com aquilo, elas ainda
assim ouviriam um “sim” cristalino num “não”, um “sim” num “talvez”,
um “sim” num “cala a boca” etc. e etcétera. Gastar saliva era inútil. As
conversas em geral não passam de comércio de grunhidos, Conceição
pensava (não nesses termos). Uma mulher tem só uma conversa
verdadeiramente significativa na vida. Duas ou três, se der sorte.
Às vezes, Conceição passava horas dentro do antigo arquivo morto,
limpando o já limpo, tirando uma poeira que não existia mais, com uma
expressão que podia tanto ser de medo como de saudade. Não se importava
com a presença dos outros. Com a lentidão de sempre, espanava as paredes
nuas, a mobília decrépita e o imenso espelho carcomido de manchas
avermelhadas, que insistia em devolver imagens mais velhas que as
originais. Começava pelo espelho. Assim que dava a volta e chegava de
novo a ele, substituía o espanador pelo pano, ou o pano pela vassoura, e
recomeçava.
D. Noemi observara muitas vezes aquele ritual. Nos primeiros dias de
sua estada no sítio, quando ainda não sabia até que ponto ia a mudez da
empregada, tentava puxar assuntos variados, mas logo percebeu que ela
não ouvia, ou fingia não ouvir, nada que não fosse uma ordem direta.
Tinha quase certeza de que a tia do marido havia morrido naquele
cômodo.
Dormir onde possivelmente alguém havia morrido não a incomodava.
A aparente tristeza de Conceição tampouco a incomodava.
— A senhora tem medo do diabo? — perguntou certa vez.
Não recebeu resposta.
Ao longo dos dias e das horas, as perguntas foram subindo de tom:
— A senhora não tem medo de ter vivido para nada?
— A senhora tem quantos anos, mais de cem?
— A senhora quer um quebra-cabeça para montar?
Conceição ou não respondia ou fazia um “ughrrum” quase inaudível,
sem interromper a limpeza do quarto, com a mesma cara e os mesmos
ouvidos moucos, a mesma boca de cova vazia, as bochechas chupadas. D.
Noemi nunca a tinha visto abrir a boca, mas a imaginava sem nenhum
dente, sem a língua e sem o dinheiro para comprar dentaduras. Sentia que,
para a velha, sua voz não passava de mais um ruído doméstico, como o
farfalhar da piaçaba no assoalho ou o agudo dos panos úmidos nos vidros.
Ao contrário do que se poderia imaginar, era uma sensação boa.
E as perguntas aos poucos foram virando afirmações:
— O silêncio da senhora parece coisa religiosa.
— Está frio.
— Os quebra-cabeças de cinco mil peças são mais fáceis que os de mil.
Por virtude de tanto silêncio, d. Noemi passou a confiar naquela criatura
tardia, quase imortal, que entrava sem pedir licença e saía sem cerimônias,
muitas vezes bem no meio de uma frase. Passou a esperá-la no quarto todos
os dias, com a ansiedade que deviam sentir os fiéis de Abel antes dos
cultos. Quando a velha enfim aparecia, depois de ausências longas ou
curtas, o silêncio se instalava forte, espraiava-se, fazia cócegas no nervo
cristão de d. Noemi. Como se fosse natural, a quietude acabou por
transformar os ouvidos surdos de Conceição no substituto ideal para os
ouvidos surdos de Deus. O antigo arquivo morto de d. Letícia ganhou ares
de capela. As afirmações de d. Noemi desapertaram em confissões.
Confessou, por exemplo, que não via valor simbólico em montar
quebra-cabeças, que para ela era um passatempo sem nenhum sentido. No
entanto, achava que só poderia morrer em paz depois de montar uma
reprodução de Dois caranguejos, de Van Gogh, porque gostava muito do
quadro, não sabia por quê. O caso era que não conseguia encontrar um
quebra-cabeça com aquela imagem.
Disse que havia experimentado todas as posições sexuais imagináveis
com o marido, mas nunca com outros homens. Com os outros, limitava-se
ao papai e mamãe. O motivo ela também não conhecia.
Contou que sabia perfeitamente, como todas as mães, quais de seus
filhos redundariam em nada. Nenhuma mãe admitiria, mas todas nós
sabemos, não é?, ela disse. Nenhum dos seus três meninos ergueria a
cabecinha acima da superfície, nem ao menos para respirar um pouco.
Tentavam, sem dúvida. Eram desajustados, sem dúvida, mas à maneira dos
mendigos e veteranos de guerra, não à de Artaud ou Qorpo-Santo
(explicou à velha quem foram Artaud e Qorpo-Santo). Seus filhos
morreriam afogados no caudaloso rio de brasileiros e seriam esquecidos
décadas, talvez meses depois de defuntos, disse. Venceriam por WO, como
ela e o marido e os avôs e os bisavôs e os tataravôs e os pais e avôs dos
tataravôs antes deles. O mundo nem sequer lhes faria o favor de aceitar o
convite para a briga. Não o desafiavam o bastante.
Ela tinha preparado os filhos com amor. Sabia que cedo ou tarde teriam
que entrar no ringue e fazer alguma coisa. Ela, enquanto vivesse, só
poderia ficar do lado de fora das cordas, dando instruções. O mundo viria,
com sua musculatura planetária, e os espancaria. Bem-aventurado aquele
que não fosse nocauteado no primeiro soco, que em geral é um amor de
adolescência não correspondido ou um constrangimento público. Depois
que absorvessem a primeira pancada e ficassem de pé, o combate seria
mais fácil, mas mais sangrento. Anos e décadas estudando o adversário,
desferindo golpes ridículos e recebendo as notícias mais aterradoras, as
tristezas mais injustificadas, as humilhações desnecessárias. Uma surra
vitalícia. O mundo, profissional acostumado à violência, é covarde, mas
não destrói de uma só vez. Vai matando aos poucos, soco a soco, rasteira a
rasteira, cicatriz a cicatriz. É a lei da autoconservação, d. Noemi explicou a
Conceição: para vencer por mérito, por nocaute e não por cansaço, o
mundo teria que preparar um golpe tão monstruoso que seria preciso abrir
a própria guarda. O mundo não é de baixar a guarda; só gosta de
hematomas nos outros.
Educou os três, portanto, para suportar — e, talvez, num momento de
distração do mundo, vencer — a luta. Inspirou neles o que pôde,
transmitiu-lhes o gosto pela batalha, leu historinhas da guerra de Troia e
contou como Ulisses, o mais esperto, era o verdadeiro herói. Era mais feliz
que Aquiles. Era o herói da gente minúscula, que faz o que pode. Tinha
amor até pelos cães, e os cães morriam de amores por ele. Todos os seus
filhos deveriam ser Ulisses, mas se esqueceram das historinhas que a mãe
contava, porque esse é mesmo o destino das histórias. Ela os treinou com a
malícia das piadas, certa de que músculo nenhum vence o mundo, que há
milênios já se dedicava ao halterofilismo. Preparou cada um com todo
veneno e toda alegria, mas, como acontecera com ela e o marido e os avôs
e os bisavôs e os tataravôs e os pais e avôs dos tataravôs antes deles, o
mundo não apareceu para lutar. Estava ocupado com napoleões e
madreteresas, picassos e billgates.
Mas, seguindo a tradição, os três se apresentaram no ringue, desajeitados
e tateantes, já suados de pavor ou excitação. Imagine, d. Noemi pediu a
Conceição, um estádio completamente vazio, sem plateia, sem gritos por
sangue nem caras de dor. O que há é o eco dos próprios gemidos.
Abel, apesar de ser o mais novo, foi o primeiro a adentrar o cercadinho,
crente que seu amigo imaginário, Deus ele mesmo, era poderoso o
bastante para amedrontar o inimigo. Mal sabia que todos os homens, sem
exceção, levam um amigo imaginário para lutar com eles ou por eles e que
Javé já não assusta o mundo tanto assim. Seu caçula ficou no centro do
ringue, que é onde mais gosta de ficar, esperando, com a confiança dos
papas e dos homens-bomba. Chamou o mundo, falou alto e corajoso, mas
o mundo não veio. E Abel acabou se apaixonando pela própria voz, que
ecoava no estádio vazio. Teve a certeza de que ele e seu amigo imaginário
haviam vencido com honra. Acreditava piamente que o mundo tinha se
acovardado diante dele. Os que passavam na frente do estádio —
vagabundos, fugitivos, perdidos ou só curiosos — ouviram as palavras
solitárias de Abel e foram até ele. Sentaram-se nas cadeiras próximas e,
acreditando no que Abel acreditava, passaram a assistir a uma sova
extraordinária, em que o mundo perdia mesmo não estando lá.
Daniel foi o segundo. Antes de subir ao ringue, fez amizade com o dono
do estádio, com os bilheteiros e balconistas. Mandou telegramas ao
adversário louvando seu físico, seu poder e sua clemência. Colocou-se à
disposição do mundo, para o que fosse: secar-lhe a testa suada nos
combates mais importantes, passar a ferro os seus roupões brilhantes ou
segurar os sacos de pancada para que ele não machucasse as mãos.
Quando entrou no cercadinho e o mundo não apareceu, Daniel sorriu.
Com um sussurro, chamou o inimigo de frouxo, maricas etc. e etcétera. O
dono do estádio lhe ofereceu um emprego, Daniel aceitou. Tornou-se uma
fibra muscular, um nervo do mundo. Transformou-se naquilo que faz as
unhas do mundo crescerem.
Benjamim entrou por último no ringue. Ao subir os degraus, tropeçou,
quebrou o nariz e se deu por vencido. Desmaiou quando viu o próprio
sangue, tentou fugir pela porta dos fundos, tentou embelezar as cordas da
arena com papelinhos coloridos. Dava uns pulos de terror quando achava
que o mundo finalmente estava chegando para lhe descer a porrada. A
mãe, que até então se limitava a torcer de longe, entrou em ação. Puxou
uma cadeira e foi dando instruções: não case com essa mulher, não se
mate, arrume um emprego. O filho, acuado numa esquina do ringue,
aproveitava as distrações dela para fugir e se esconder atrás de uma pilastra,
uma colocação de emprego ou uma timidez. O mundo, mesmo se
aparecesse, não se dignaria a procurá-lo.
Todas as telas que Benjamim pintou, d. Noemi disse a Conceição,
retratavam o mundo não vindo brigar com ele, o mundo arrebentando os
ossos de outra pessoa, uma paisagem fora do mundo, calma, maternal e
risonha.
Por fim, d. Noemi confessou que sonhava com o glorioso dia em que o
maldito globo terrestre tatuado na omoplata desapareceria. Detestava o
desenho. Queria morrer, estava cansada. A história parecia que não ia
acabar nunca. Parecia que nada que ela pudesse fazer mudaria o fim da
história. Para que continuar tentando?
Disse que, dos três filhos, seu preferido era Daniel.
E que pretendia comprar um xale, ou um passarinho, para esperar a
morte.
— Há quantos anos a senhora espera a morte?
— Ughrrum…
Conceição a absolvia de tudo.
52. 12h22

O caso é que temos que viver com os vivos.


Montaigne

Naturalmente, seu primeiro impulso foi fugir. Trocou um pé pelo outro,


depois destrocou, e mesmo assim não conseguiu sair do lugar. Dois
pedestres passaram por ele e riram de seu embaraço. A mulher, sentada à
mesa que ele sempre ocupava, bebericava um copo de suco de laranja (ou
manga, ou tangerina, ou pêssego) e folheava uma revista. Não vestia a
camiseta com a cara do Woody Allen, mas uma blusa de seda, azul-clara,
que deixava a pele, muito branca, respirar. Os cabelos muito pretos. O
rosto era o mesmo que Benjamim havia visto, meses antes, no coquetel de
inauguração da Multidões: marmóreo, como se prestes a rir ou a chorar,
tanto faz. As sacolas de compras pesavam. Não esperava encontrá-la ali,
àquela hora.
Consultou o relógio: 12h22.
A hora não significava absolutamente nada.
Na mente dele, o rosto de Paula não havia mudado de expressão desde o
dia do coquetel. Era incapaz de imaginá-la senão com aquela mesma cara
imperturbável, sempre no limite de algo que ele desconhecia, mas
supunha ser bonito. Nunca a tinha visto sorrir, falar ou sequer entreabrir a
boca. Para Benjamim, aquele rosto havia passado todo esse tempo no
mesmo ponto morto, entre o choro e o riso, esperando por alguém que
enfim desfizesse os nós que o mantinham amarrado. O rosto queria rir ou
chorar, queria ser comovido, esperava por ele. Paula olhou para a rua e
encontrou Benjamim, que, cara de susto apavorada, não teve coragem de ir
embora.
Pensou em desembrulhar a barra de chocolate que havia comprado e
comê-la, simulando despreocupação. Acenderia um cigarro, mas se
acovardou. Sentiu seu próprio rosto queimar, mas podia ser por causa do
sol.
Então, depois de tantos meses, o rosto de Paula olhou para ele e enfim
se decidiu. Entre o choro e o riso, escolheu um sorriso leve que, à medida
que Benjamim se aproximava, quase automaticamente, perdia a leveza.
Tu, ainda intacta noiva de quietudes, ele pensaria, parafraseando Keats, se
conhecesse Keats. Tu, filha adotada do silêncio e da demora. Ela fechou a
revista36 e girou o corpo na cadeira, para ficarem frente a frente. Os peitos
empinaram debaixo da blusa. Não usava sutiã. Abriu um sorriso largo — os
dentes bonitos, perfeitamente enfileirados, como formigas. Quando ele
estacou o passo, a uma distância segura, Paula perguntou se ele se
chamava Benjamim. No anular direito, o anel de ouro branco com
pedrinhas vermelhas incrustadas que havia sido da ex-Paula e, antes, da
mãe da ex-Paula.
Ela repetiu:
— Benjamim?
Tinha um tom de voz áspero, como se tivesse crescido com muitos
irmãos homens. Ele respondeu que sim com a cabeça, sem nem tentar
falar.
— Oi, Benjamim.
E sorriu.
Tudo desapareceu.37

36. A edição de dezembro de 2009 de Marie Claire estampava a atriz Penélope Cruz
na capa, bem como os dizeres “Horóscopo 2010: Amor e sexo em alta no ano de
Vênus” e “Festas com muito brilho: Looks repletos de paetês dourados e cintilantes”.
37. O personagem sentiu, com o perdão da expressão piegas, que finalmente se
tornaria o homem que planejara ser, ou melhor, que estava destinado a ser.
53. Silêncio breve

Pode tornar-se cômica toda deformidade que uma


pessoa bem-conformada consiga imitar.
Bergson

Não há razão para fugir, Benjamim pensou enquanto se afastava —


rapidamente, mas sem correr — e acenava para um táxi na rua do Catete.
Os olhos de Paula pesavam nas suas costas, mas ele não olhou para trás.
Não há mesmo por que fugir. Fugia. O táxi fez o retorno perto da praça
Paris, cercada por grades de ferro, e embicou na avenida da praia em
direção a Copacabana. Fugia sem ter dito uma palavra sequer a Paula. O
rádio do carro estava sintonizado numa estação que, entre uma música e
outra, propagandeava o bom gosto de seus ouvintes. As árvores do parque
do Flamengo escondiam o mar. O taxista aumentou o volume quando o
locutor anunciou que tocaria “Canto de Iemanjá”, a gravação original, de
1966. Benjamim enfim desembrulhou a barra de chocolate (meio amargo)
que havia comprado e começou a comer. Um homem fugindo, do ponto
de vista de quem está no local de destino, é só mais um homem que chega.
Em Copacabana, estaria livre da culpa de ter escapado. O rádio:

Iemanjá a cantar, na maré que vai


E na maré que vem

A voz de Paula, naquelas duas ou três frases. Pelo que pôde perceber, ela
falava com um sotaque muito tênue, que parecia não ter uma língua de
origem. Um sotaque independente, soberano e ilhéu. A enseada de
Botafogo surgiu debaixo do sol, uma fita luminosa na água preta
acompanhava o carro. Uns poucos veleiros singravam. Mais ao fundo, os
navios maiores, demorados. Lá da Glória, de vez em quando, ele podia
ouvir o apito dos grandes cargueiros que adentravam a baía ou iam
embora. Um lamento longo e grave, como o de um animal enorme que de
repente descobre que vai morrer. Na época em que ainda viviam juntos,
Natália se agarrava aos braços dele quando um desses apitos ecoava na
madrugada. Davam medo, ela dizia. Chorava. Achava a coisa mais triste do
mundo. Não conseguia dormir depois. Os apitos davam uma bruta solidão,
ela dizia.

Do fim, mais do fim, do mar


Bem mais além
Bem mais além do que o fim do mar
Bem mais além

A voz de Natália era a voz de uma atendente de telemarketing,


acostumada a ser ouvida sem ser ouvida. Começava todas as frases, mesmo
as mais comuns, com a certeza de que receberia um não, um tchau, um
muito obrigado sem valor. Uma voz que se agarrava com um amor
miserável àquelas que lhe prestavam alguma atenção. O sotaque, porém,
era obviamente carioca. Benjamim deu uma dentada no chocolate. Natália
era o tipo de mulher capaz de fazer com que um homem sinta falta da
cidade em que está, como se ela carregasse na bolsa, além de batom,
cartões de crédito e perfume, todas as ruas de Montevidéu, Pequim, Madri,
Wellington ou Cairo. Não havia por que fugir, nem para onde. Natália não
sabia os nomes de todas as capitais do mundo. Sabia poucas coisas,
geografia não era uma delas. Ele, por outro lado, sabia exatamente onde
estava: na avenida Princesa Isabel, a algumas quadras da casa em que
crescera. Ali perto, o pai havia pulado o Carnaval de 1991 ou 1992
fantasiado de fim dos tempos: barba branca postiça, túnica cor de pérola,
uma placa profetizando o apocalipse, a alegria, a alegria. A mãe estava em
Santa Maria Madalena, provavelmente tentando montar ainda outro
quebra-cabeça. Fugir não é fugir quando se sabe para onde se está indo. O
sol ou o chocolate meio amargo ou a praia quase vazia deram nele umas
saudades brutas de Natália.
O taxista perguntou em que rua de Copacabana ele queria ficar.
Benjamim não soube responder com exatidão:
— Vai indo, pela praia.
O motorista riu. Dele.
No rádio, uma música que Benjamim não conhecia.
Telefonou para Natália.
Ele a conhecia. Ela não diria não.
54. Cozinha em jogo

Aquilo que é repetido com muita frequência costuma


tornar-se entediante e insípido.
Boileau

Todas as conversas entre ex-amantes se parecem. Ele liga, ela atende.


Ela diz alô, ele diz oi, ela reconhece a voz e responde com um oi
desapontadamente surpreso, como se já estivesse cansada de tanta conversa
futura. Ela pergunta se está tudo bem, ele também, ao mesmo tempo.
Respondem que está tudo bem, ao mesmo tempo. Silêncio de poucos
segundos. Ele diz que ela esqueceu um faqueiro no apartamento, um de
que ela gostava muito, que havia sido presente dos pais; ela responde que
não tem problema, que ele pode ficar com o faqueiro. Ele pergunta como
ela está e não espera a resposta e confessa que está morrendo de saudades;
ela diz que também tem saudades, mas que não dá mais, que a vida agora
é outra, que já se desacostumou dele. Do cheiro dele, dos sapatos, essas
coisas. Ele diz que não acredita; ela diz que é para acreditar. Ele não
acredita; ela não acredita que ele não acredita! — depois de tudo que ele
fez!, depois de tudo que ela fez por ele! Ele pede desculpas, ela não aceita.
Ele chora, ela chora também. Ele pede desculpas, diz que está no fundo
da ladeira, estatelado, que ela sabe como é; ela aceita as desculpas, mas
não dá mais. Ele chora ou fica em silêncio e ela acha que ele está
chorando; ela diz que é para ele se tratar. Ele diz que vai carregar a
memória dela para sempre, como um câncer ou um chaveiro antigo. Ele
diz que a ama. Ele diz que a ama. Ele diz que a ama. Ele diz que a ama.
Ele diz que a ama. Ele desliga ou ela desliga, tanto faz agora.
Paz na terra para todos os seres.
55. Globo de ouro

O que o público reclama é a imagem da paixão, não


a paixão em si.
Barthes

— Mas isso foi um pouco decepcionante — o pastor Abel murmurou.


Abel tinha imaginado algo muito mais grandioso. Os urros ritmados dos
operários puxando as cordas, um capataz dando-lhes apoio moral, o globo
de ouro erguendo-se árduo, talvez um osso quebrado, ou três. Imaginara
suor, lágrimas e sacrifício para a glória de Nosso Senhor Deus, que
certamente estaria ali ao lado deles com sua toalha invisível, secando os
rostos e as penas dos trabalhadores. O pastor tinha o antigo modelo egípcio
em mente, mas a engenharia moderna estragou a fantasia. Nenhum
imprevisto aconteceu. Tudo muito limpo, preciso, ágil. Não tinha dado
tempo nem para murmurar o pedaço da “Canção dos barqueiros do Volga”
que ensaiara, mais cedo, no chuveiro.
Os homens sorriram para ele e fizeram sinais de positivo. Depois de
admirarem por uns momentos o colossal lustre em forma de planeta, foram
embora contentes, não muito cansados e bem remunerados. Abel ficou
sozinho, sentado nos degraus que levavam ao altar. Diante dele, o edifício
babilônico, apesar de pequeno. Paredes de brancura estonteante, assentos
acolchoados, ventiladores de última geração. Muitos canhões de luz no
chão e nas vigas do teto. Atrás, cortinas imensas, de veludo vermelho,
vinham acabar maciamente no piso de madeira nobre do altar. Muitos
amplificadores de som. O assoalho ainda estava empoeirado. Algumas
telhas, pedaços de mármore falso e tijolos abandonados aqui e ali. A obra
estava, enfim, terminada.
— Senhor, feito está como mandaste.
Faltava só limpar a bagunça.
O Carnaval estava às portas. A inauguração seria dali a poucos dias.
Abel riu, satisfeito, pensando em como todas as criaturas de Deus são
únicas. Caminhou ao longo da nave sentindo um amor grande por cada
tijolo escondido pela tinta, por cada detalhe de plástico, pelo mundo
pintado de dourado. Lembrou-se dos tempos de criança, do globo terrestre
de brinquedo. Murmurou 1 Coríntios 13,11:
— Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino,
discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com
as coisas de menino.
As palavras do apóstolo ecoaram na igreja vazia.
Abel riu novamente, de ternura.
Lembrou-se dos anos na África sem guardar mágoas. O homem também
deve recordar os dias trevosos, porque são muitos. Sentia um calor
agradável, quase acolhedor. Mesmo com os ventiladores desligados, o
clima ali dentro era ameno. A tarde ia caindo nos vitrais, projetando
sombras coloridas no chão. Vitrais sempre lhe pareceram ornamentos mais
católicos que protestantes, mas o arquiteto e o vitralista juraram por Deus
que eram enfeites laicos. Prometeram desconto no preço final. Abel
aceitou. De qualquer modo, em sua igreja não poderia haver intolerância
denominacional. Católicos ou não, todos seriam bem-vindos. Nenhum
ornamento seria deixado para trás. Além disso, o orçamento estava folgado.
Passeou por entre os canhões de luz, com um aperto no baixo-ventre.
Achou que parecia um jardim com flores pretas de miolos amarelos, azuis,
brancos. Sua obra estava completa. Sentia-se saciado, como se salivando
por uma sobremesa eterna. Forçou uma lágrima emocionada, mas se
descobriu incapaz de chorar de alegria. Contentou-se com os risinhos,
risotas e sorrisos: um dia, tudo aquilo seria do filho homem que, desde a
semana anterior, vinha tentando gerar em Ruth.
Assim que o garoto estivesse crescido o bastante, revelaria a ele os meios
de que teve de se valer para alcançar aquele fim glorioso, crivado de ouro e
ventiladores potentes. Narraria em minúcias os tempos de provação no
continente africano, como Jesus no deserto. Contaria de que maneira
seduzira o povo brasileiro para os caminhos do Senhor, como os
vendilhões do templo. O filho, ainda ingênuo, provavelmente ficaria
confuso. Abel, rindo, afetuoso, diria que há um embate constante entre a
sombra e a luz na alma do homem, e que a única razão possível para a
existência dos vícios é o desejo que Deus tem de que seus filhos os
utilizem para atingir a virtude. Não há sombra sem luz, e vice-versa,
explicaria, talvez usando um quadro do tio Benjamim como exemplo. Sem
luz, tudo é vazio, ele diria; toda forma é plana, sem sombra.
A noite, não por acaso, vinha descendo. A igreja já estava praticamente
às escuras, os desenhos dos vitrais quase apagando. Delicadamente, Abel
apontou alguns dos canhões de luz para o globo terrestre dourado e foi até
o interruptor. Disparou. Os feixes amarelos, azuis e brancos atingiram em
cheio o planeta, que reluziu altíssimo, com uma força tremenda. Tudo se
iluminou.
Os olhos marejaram.
56. O que faz o mar

O mar cor de vinho: “Eis o sepulcro de um homem


que a vida perdeu”.
Homero

O táxi já estava na praia do Recreio quando a conversa com Natália


terminou. O motorista, desconcertado pelo choro e pelas súplicas de
Benjamim, tinha decidido seguir o caminho da orla, como o cliente pediu.
De vez em quando, espiava pelo espelho retrovisor e sentia pena do rapaz,
mas preferiu não dizer nada. Cruzaria a fronteira do município, do estado,
do país, daria a volta ao continente para não ter que interromper o
desespero alheio. Tentava ignorar o que se passava cantarolando as canções
do rádio, contemplando a paisagem e as moças, torcendo pelo taxímetro.
Benjamim chorou convulsivamente durante quarenta quilômetros.
Ida e volta.
Teve que sacar dinheiro num caixa eletrônico para pagar a corrida.
Desceu em Copacabana, disposto a gastar o resto da tarde na praia. Só
voltaria para casa quando tivesse certeza de que Paula não estava mais na
Taberna da Glória, esperando por ele. No calçadão, tirou os sapatos, e o
gesto deflagrou as risadas de uma moça seminua que passava por ali.
Benjamim, cara de susto, não se importou. A areia queimava a sola dos pés,
mas Benjamim, cara de susto, não se importou. Tirou a camiseta e se
sentou perto das pessoas, por instinto, para parecer um banhista como
outro qualquer. Algumas delas sorriram para ele. Outras riram dele.
Diante do mar, verde-claro, todo seu embaraço desapareceu. Não há
nada mais velho que o mar, Benjamim disse a si mesmo, talvez ecoando
algo que o pai dissera logo antes (ou logo depois) de enlouquecer. O
oceano é mais sensato que os homens. Netuno, finado deus das águas
salgadas, Iemanjá, rainha do mar, Nossa Senhora dos Navegantes etc. e
etcétera, todas as divindades marítimas são desprovidas de senso de humor.
O mar não ri dos homens, por mais grotescos que sejam.
O mar, ao que tudo indica, não dá a mínima.
Ao longe, um navio cargueiro chegava ou ia embora, sem apitar.
Bem próximo de onde Benjamim estava sentado, dois irmãos gêmeos,
de uns saltitantes onze anos de idade, brincavam sozinhos. Numa barraca
próxima, homens envelhecidos — barrigudos, rugosos, avermelhados —
tomavam cerveja e devoravam camarões barrigudos, rugosos,
avermelhados. O pai dos meninos provavelmente estava entre eles. Uns
traziam os filhos a tiracolo. Não conversavam entre si. Não havia mulheres.
Muitos usavam bigode. O mar, por mais fora de moda que estivessem os
bigodes naquele verão, parecia não se importar.
Os garotos tentavam reconstruir pela enésima vez um castelinho de
areia. De tempos em tempos, uma onda mais forte punha o edifício abaixo,
mas os meninos não se davam por vencidos. A cada ruína, descobriam uma
artimanha diferente para impedir a devastação total: um fosso, uma
muralha, uma reza ou oferenda improvisada ao que batizaram de “o deus
da onda”. O mar, no entanto, insensível às súplicas e aos minúsculos feitos
de engenharia, vinha novamente e, espumando de indiferença, acabava
com a brincadeira. Os garotos soltavam um “ah! oooh…” desolado.
Segundos depois, recomeçavam a construção.
Benjamim esqueceu a timidez por uns instantes e sugeriu, rindo, mas
com o lábio superior ainda inchado de tanto choro, que se afastassem um
pouco do mar.
— Aí perde a graça — respondeu um deles, como se fosse óbvio.
Benjamim não prestou atenção à resposta.
Por fim, os gêmeos se cansaram do interminável ciclo de destruição e
arrumaram qualquer motivo para brigar. Olhares raivosos foram trocados.
Peculiaridades fisionômicas foram salientadas. Mães foram ofendidas. Um
estapeou o outro, o outro devolveu o golpe, mas, como já estavam ardidos
do sol, preferiram voltar aos xingamentos. Benjamim observava a disputa
com algum interesse. Os insultos eram diferentes, mas o teor variava
pouco: ou questionavam a opção sexual do oponente, ou sua capacidade
de raciocinar com presteza. A certa altura, um deles encontrou o mot juste
de que não conseguiriam mais se livrar até o fim da briga:
— Retardado!
— Retardado é você!
— Retardado é você!
Para um homem ou mulher que caminhava na areia:
— Ele é retardado!
— Não! Ele é retardado!
Gritando:
— Não! Ele é que é!
— Não sou! Ele é que é!
Etc. e etcétera.
Nesse meio-tempo, uma onda deu cabo da última versão do castelinho
de areia.
Os banhistas mais próximos riam. Uma senhora comentou a fofice dos
meninos, que, atiçados pela atenção recebida, aumentaram o volume e a
estridência das vozes. Benjamim olhou para a barraca dos homens
envelhecidos e distinguiu facilmente o pai dos garotos: um senhor gordo,
de costas e nuca roxas, o único que fingia não escutar. Pagava
discretamente a conta. Não usava bigode. Todos os demais observavam o
confronto com a cara de quem vê um trem se aproximar a toda velocidade
de alguém que está nos trilhos, dançando alegre, de costas para o
atropelamento.
Uns poucos tentaram fazer sinais com as mãos, mas foi inútil. A briga já
tinha virado espetáculo. Agora, os gêmeos diziam “retardado” como quem
conta uma piada cuja graça é intensificada pela repetição. Lançavam rostos
travessos à audiência — sorriso malvado, braços estendidos, a arrogância
dos que se sabem bem-vistos —, faziam uma pausa dramática e, mais uma
vez:
— Retardado!
Gargalhadas quase gerais.
Um dos garotos, possivelmente o mais vanguardista, teve a brilhante
ideia de interagir com a plateia, chamando-a, ora carinhosa, ora
cruelmente, de retardada. A audiência, amaciada pela simpatia da dupla,
levava a ofensa na brincadeira, ria, achava adorável. Uma voz disse que
queria levá-los para casa. Outra, que queria mordê-los. Um celular tocou.
Os dois apontaram para Benjamim e, em uníssono, reiteraram o insulto:
— Retardado!
Risadas. O celular tocou novamente.
Benjamim quis devolver o xingamento; não o fez. Riu também.
O pai afundou um boné na cabeça e veio na direção dos garotos,
pisando forte, quase furioso, sob os olhares apavorados dos homens da
barraca. Em silêncio, recolheu bolsas, brinquedos, chinelos e roupas.
Agarrou os dois pelos braços e foi embora o mais rápido que pôde, com o
rosto na sombra e o pescoço da cor do vinho. Os meninos, arrastados,
sorriram para trás, braços esticados, esperando os aplausos. Não houve
aplausos. O celular tocou de novo. Benjamim atendeu. Era a ex-Paula.
Passados alguns segundos de comentários e risinhos, os banhistas
voltaram aos seus afazeres de banhistas. O mar, verde-escuro, nem ligou.
Ele deu oi. Ela deu oi com a voz trêmula.
Benjamim olhou de novo para a barraca. Outro homem, este de bigode
e um pouco menos gordo e avermelhado, pagava discretamente sua conta.
Como não usava boné, não podia esconder o rosto. Parecia consternado,
ou bêbado.
A ex-Paula disse que precisava contar uma coisa.
Benjamim perguntou o que era.
A ex-Paula gaguejou, de propósito. Começou uma frase, desistiu,
recomeçou.
O homem de bigode deu um passo adiante, vasculhando a carteira. De
trás dele, surgiu uma menina rechonchuda, de uns sete anos de idade e
biquíni rosa-choque, agarrada ao braço do homem de bigode. Tinha olhos
amendoados, vidrados no vaivém das ondas. Dedos curtinhos, nariz
achatado. Parecia não ter pescoço. Tentava balançar a cintura ao ritmo da
água, mas não conseguia. Os dentes eram afiados, pequeninos. Gengivas
enormes. Sorria para o mar, inconsciente do mal-estar que seu pai devia
estar sentindo naquele momento. Tinha ouvido a barulheira dos meninos,
mas não entendeu direito o que diziam, porque o mar estava logo ali,
verde-preto, hipnotizando tudo.
A ex-Paula disse algo que Benjamim não entendeu direito.
Os outros homens velhos e arroxeados olhavam para o homem de
bigode, sem saber o que dizer. Uns iam embora, chocados ou desgostosos.
Outros iniciavam um afago no ombro do desconhecido, mas os braços
congelavam no ar, as mãos amoleciam ou se fechavam e eles desistiam.
Desviavam o rosto na direção do horizonte marítimo para apagar da
memória o resultado do acidente: os membros dilacerados, o sangue nos
trilhos, o trem indo embora feliz, ignorante do que tinha acabado de fazer.
O trem veio, os meninos saíram dos trilhos, o trem atropelou o homem de
bigode. Há coincidências infelizes neste mundo. Os garotos não tinham
como saber que ali perto estava o pai de uma menina com aquele
problema, como era mesmo o nome?
— Grávida! Grávida, Benjamim! — a ex-Paula repetiu, aos berros.
A garotinha sorria, com todos os dentes, para o mar cor de cinzas.
Paz na terra para todos os seres.
57. Ruína circular

Embora dignos de amor e afeição, não podiam


ascender a indivíduos.
Borges

O desaparecimento do lendário Hecateu de Mileto deixou o Café Aleph


em pé de guerra de sucessão. Antes dele, a café society não havia sequer
cogitado a possibilidade de responder a somente um zombeteiro reinante e
inzombável, mas, assim que o Logógrafo ascendeu ao trono, todos os
pequenos duques e barões cômicos, antes tão contentes com seus
minúsculos feudos de malícia, aprenderam que, se há rei, o rei pode cair.
E, se o rei pode cair, o rei deve cair, para que outro lhe tome o posto.
O aprendizado dessa simples matemática social deu cabo da era de ouro
do Aleph. Onde antes havia uma doce pax ironica, contrária a tudo (e,
portanto, a nada), agora dominavam a intriga cortesã, a perfídia e as piadas
ruins. O fórum rapidamente se transformou num imenso campo de minas
verbais, espalhadas pelos aspirantes ao trono para derrotar os adversários.
Um passo em falso e pisava-se num trocadilho ou numa ofensa disfarçada,
que explodia arrancando membros e dignidades, estraçalhando reputações
e frustrando ambições ao título de maior zombeteiro do site. Em poucas
semanas, dizer qualquer coisa, mesmo as mais inocentes, tornou-se uma
temeridade. Os adjetivos viraram granadas de mão, os substantivos,
porretes. Até mesmo as preposições perderam sua histórica neutralidade e
começaram a machucar. Havia uma gota de veneno em cada fonema, um
punhal escondido em cada serifa. O Café Aleph, outrora um decalque do
parnaso, estava fadado a implodir em silêncio.
No entanto, antes que os conflitos intestinos silenciassem por completo
a café society, os bárbaros atacaram. Aproveitando-se do tumulto causado
pelo vácuo de poder, alguns membros do π, o fórum arqui-inimigo, se
infiltraram no Café Aleph e descobriram uma brecha no código que
mantinha o site funcionando. Dias antes do Carnaval, um garoto muito
esperto para sua idade invadiu o servidor do Aleph e reescreveu algumas
linhas do código de modo a que tudo o que fosse dito no fórum se
convertesse automaticamente nos nomes que constavam da lista de
membros. Assim, qualquer texto, por mais extenso e elaborado que fosse,
aparecia transformado em “Vicente Huidobro” ou “Count Basie”, “Francis
Bacon” ou “Alasdair Gray” etc. e etcétera, mas nunca no nome do próprio
autor da mensagem.
A devastação foi total. Na noite seguinte à invasão, o Café Aleph era
uma mixórdia de nomes aleatórios, sem substância alguma, uma rede de
referências que podia tanto significar como não. A café society tentava, sem
sucesso, expressar qualquer coisa, mas qualquer coisa era substituída por
um nome inútil, ainda que ilustre.38 Jorge Luis Borges tentou reescrever
sobre o reescrito, mas o código do mundo que ele havia criado com tanto
esmero já não aceitava as linguagens usuais de programação. A estrutura
mesma do Aleph tornara-se outra. Nem mesmo os administradores do
servidor que hospedava o site conseguiram restabelecer a ordem. O estrago
era irreparável. A única saída era apagar tudo e começar novamente do
zero, coisa a que nem Homero (aposentado, Catalão, GO), um dos
membros mais antigos, se sentiu disposto.

38. Não se pode saber ao certo, mas é provável que algum dos membros tenha feito
piada a respeito. No entanto, o gracejo foi convertido em “Oswald de Andrade” ou
em “Maurice Ravel” e se perdeu.
58. Inauguração

Neste exato momento, há muitas pessoas invisíveis


no palco.
Ionesco

— Glória a Deus, que Ele vai vir — disse o pastor Abel.


A plateia murmurava confusa.
— Jesus vai vir, Jesus vai chegar. Aleluia!
— Aleluia — respondeu a audiência, quase sem querer.
O culto inaugural da Igreja Global em Cristo já se aproximava do fim,
mas o pastor não dava sinais de que entraria no assunto da peste de
desgosto ou em qualquer outro que não a salvação das almas e a felicidade
humana.
— É o que Jesus falou, irmãos: “se os teus olhos forem bons, o teu corpo
terá luz; se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será tenebroso”.
O povo estava aturdido. No início do culto, Abel subiu ao púlpito e
arrancou rumores de espanto dos fiéis. Estava diferente. O terno cinza e a
gravata vermelha eram os mesmos, mas o formato do rosto tinha mudado.
A expressão sorridente, que muitos julgavam eterna e involuntária, havia se
transformado numa cara neutra, como a de todos os homens. As risadas
ácidas, que corroíam os corações e deixavam vazar o sangue divino,
viraram risinhos contentes. O tom de voz, antes uma sucessão de ondas
monstruosas repuxando, rugindo e quebrando na cabeça dos danados,
tornara-se uma marola, praticamente um afago. As profecias flamejavam
menos, os olhos tinham menos fogo, todo o pastor Abel havia arrefecido.
— O pessimista, que só vê desgraça, acaba encontrando só desgraça!
— Amém…
Aproximadamente quatrocentas pessoas assistiam ao culto, menos da
metade da capacidade total do edifício. D. Noemi, Ruth, Conceição,
Daniel, Ana e Benjamim, o filho de Daniel, estavam na primeira fila. Ao
lado deles, o deputado Albuquerque olhava desapontado para os assentos
vazios. Benjamim nem telefonou para avisar que não poderia ir. Alguns
peregrinos da Onda Mística (OM), dois ou três, apareceram, mas a festança
depressiva que planejaram não aconteceu. Nenhum se converteu.39 Mais
atrás, o resto dos fiéis: gente que o pastor conhecera no corpo a corpo com
a população madalenense, homens e mulheres que ele havia convidado
para jantar no sítio e alguns dos pedreiros que ajudaram a erguer a igreja.
Muitas formigas. Duas mariposas tentavam dar a volta ao globo dourado,
sem sucesso.
Os batuques do domingo de Carnaval vinham morrer surdos nas
paredes externas da igreja, e eram os únicos ruídos bombásticos que se
podiam ouvir.
Bocejavam. Quase todos ali esperavam um terremoto santo, algo que
chacoalhasse as paredes, as fundações mesmas da terra, como acontecia na
praça principal da cidade. Os fiéis evitaram até mesmo ocupar os assentos
logo abaixo do descomunal globo dourado, temendo que o ribombar do
Espírito Santo desatarraxasse a estrutura e o mundo lhes despencasse sobre
a cabeça. Queriam mulheres vomitando cobras, paralíticos dançando
quadrilha, mudos cantando na língua dos anjos. Em vez disso, o pastor
Abel lhes dera uma lista com treze passos para a felicidade, música
inspiradora (sax meloso, harmonia, lentidão) e três ou quatro profecias que
eles já tinham ouvido em três ou quatro igrejas diferentes.
Sessenta minutos de conselhos e júbilo esgotaram completamente a
paciência dos presentes, acostumados aos altos e muito, muito baixos que o
pastor Abel lhes proporcionava nos bons e velhos tempos em que a peste
era iminente.
— Deus fez você pra ser feliz — berra Abel, dedo em riste.
A audiência vaza um amém.
O povo não é bobo. Uma epidemia mundial não se cura assim, em
silêncio, sem heróis, sem queima de fogos. O messias do Messias, então, já
havia baixado na Terra, curado o mundo e ido embora sem ao menos
deixar um bilhete divino, uma mensagem qualquer? Duvidoso. O outro
não só se alardeou aos quatro ventos como fez o favor de morrer
crucificado para que o povo tivesse um símbolo para pendurar nas paredes
e no pescoço. O messias do Messias, que viria para salvar o planeta inteiro
do aniquilamento total, deveria, no mínimo, igualar o feito. O povo não é
bobo, não. O povo percebeu que o pastor Abel lhes negaceava a peste.
Ninguém rouba uma peste do povo e finge que nada aconteceu. Já bastam
os políticos, alguém do povo pensa, enquanto o pastor Abel ora pelo
regozijo dos povos.
Um homem sussurra, dentes cerrados:
— Você só pode estar de brincadeira comigo…
Outro:
— Barrabás…
O povo não admite que lhe escondam a verdade. Não se pode encobrir
o descoberto: não falar do desgosto não faria sumir o desgosto. Aquele
silêncio era uma enganação que o povo não aceitaria. Onde foram parar as
risadas macabras e as luzes tenebrosas, a tristeza na alegria, a alegria na
tristeza? O povo não é tão crédulo; sabe que tais coisas existem. E a santa
zombaria? Já não precisavam dela? E agora só a Bíblia era o suficiente para
o pastor Abel? Onde estava aquele outro livro que ele sempre consultava e
que revelava o profundo e o escondido, que conhecia o que está em trevas?
Desapareceu num golpe de mágica?
O povo não é bobo; não acredita em mágica.
— Sejam felizes! Qualquer um que disser a essa montanha lá fora:
Ergue-te e lança-te no mar, e não duvidar em seu coração, mas crer, tudo o
que disser será feito!
Silêncio longo. Tosses ecoam.
O pastor Abel deixa escapar um sorriso.

39. Os integrantes da Nada Mais que a Verdade contrataram um guitarrista para


substituir Ricardo Alberto, que acabou desistindo da vida de músico e da vida em
geral. Os seguidores fiéis da banda mantiveram o boicote ao Sonora Fest 2010, mas a
Nada Mais decidiu subir ao palco mesmo assim, o que aumentou consideravelmente
a base de fãs do grupo. Dois anos mais tarde, foram convidados a se apresentar no
Eurofest, na Antuérpia, e no Lambacocoon, em Manchester. Hoje, cantam em inglês.
59. Todos os trens para Sodoma

Dando-se o tempo suficiente, o universo inteiro se


reintegrava na forma de um homem. Cada
fragmento podia ser qualquer outro.
César Aira

Benjamim desembarcou na Gare du Nord na manhã da Quarta-Feira


de Cinzas, indisposto e assustado como uma grávida de primeira viagem.
O voo Rio-Londres tinha arrancado aos solavancos o pouco de brio que
ainda restava no estômago, e o jantar (um pálido frango ao curry com coca-
cola) não foi o bastante para tapar o buraco que começava a se formar ali,
logo abaixo do coração. Quando o avião tropeçava e perdia altitude, os
ácidos estomacais forçavam a subida em direção ao esôfago. Em inglês,
esse azedume é chamado de “heartburn”. A língua inglesa não sabe onde
fica o coração, Benjamim pensou. Uma pessoa pode se virar muito bem no
mundo falando somente o inglês. Ganhavam altitude de novo e a boca
secava. Pela janela, as nuvens noturnas de sabe-se lá onde, sobrevoando o
Atlântico.
Nem sombra de Javé, zangado ou não.
Antes de qualquer outra coisa, queria uma ilha, qualquer ilha. Passar
algumas horas cercado de mar por todos os lados lhe daria a dose justa de
indiferença de que precisava para seguir viagem. O mar não dá a mínima,
não ri nem tem piedade dos homens. O mar é mais velho que tudo. O
moço que o atendeu no balcão da British Airways, no Galeão, pareceu
reprimir uma risada quando o ouviu pedir uma passagem para “a ilha de
Grã-Bretanha”. Ao notar a ausência de malas para despachar, sorriu
burocrático e desejou boa viagem, senhor Oliveira. Os passageiros na fila
soltaram uma gargalhada conjunta, hienídea. Benjamim não entendeu o
motivo.
De Londres, tomaria o trem até o continente. Cruzaria o túnel do canal
da Mancha em direção a Paris. Dali em diante, nem Deus sabia. Aonde
quer que fosse, no entanto, iria por terra e sobre trilhos. Quem inventou o
avião não sabia amar, a mãe disse uma vez. Teria que ir de trem. A Europa
tem a maior malha ferroviária do planeta, é o continente ideal para as
criaturas que fogem. Ele fugia sem ter dito uma palavra sequer a ninguém.
O trem é o único meio de transporte com verdadeira vocação para a fuga:
os trilhos foram assentados há décadas ou séculos; todos sabem para onde
levam e quais são as estações no caminho. Quando se sabe para onde se
está indo, fugir não é propriamente fugir. Sobre trilhos, ficaria livre de ter
escapado.
Ninguém o encontraria, nem mesmo se o perseguissem.
Deixou quase tudo na Glória. Saiu vestindo um terno e um sobretudo
que seu pai tinha comprado, depois de enlouquecer, para não usar jamais.
Comprou um cachecol felpudo numa queima de estoque e um guia
turístico do Leste Europeu. Na mochila, a única bagagem que levava
consigo, havia três mudas de roupa, pincéis, bisnagas de tinta e um
pequeno álbum com as fotografias que tirara do “Gomorra”, o painel que
havia pintado três anos antes para recepcionar o irmão mais novo. Desta
vez, porém, todos veriam sua obra. Planejava reproduzir a orgia bíblica nos
muros das cidades europeias, pedaço por pedaço: um casal em Sintra,
outro em Marselha, outros em Graz e em São Petersburgo; um masoquista
em Bergen, um ménage em Milão, um suingue em Salônica, um estupro
em Iaìi, um amor em Barcelona, um onanista em Hamburgo etc. e
etcétera. Na época, não fotografou Javé porque ele se parecia demais com
o pai morto. Agora percebia o próprio erro: sem um modelo, teria que
retratá-lo de memória, nas paredes de um mosteiro ou defumadouro de
pescado.
No túnel do canal da Mancha, a bordo do Eurostar, conseguiu dormir,
pensando em como esta década estava destinada a ser dele. O mar o
cercava, ainda mais, por todos os lados. Uma pressão descomunal,
hidráulica, salgada. O oceano apertava as paredes externas do túnel num
abraço que já durava duas décadas, desde a construção da galeria.
Indiferença maior, só a dos afogados e a dos deuses aquáticos. Por isso,
talvez, ninguém se sentia disposto a rir: muitos olhavam para ele e sentiam
aquela irritação agradável na garganta, mas abortavam a gargalhada no
último instante.
Algo tinha voltado aos eixos, Benjamim pensou.
Não foi um momento de revelação.
Sonhou pela segunda vez com todas as mulheres que conhecia, mas,
como estava sentado num banco virado para a traseira do trem, de costas
para o destino,40 o movimento dos rostos se inverteu. No sonho, um rosto
gigantesco olhava para ele sem guardar mágoa: o rosto da ex-Paula ou de
Paula, de Natália ou da mãe, de Ana ou de Ruth… O rosto não guardava
mágoa, mas se aproximava aos poucos; Benjamim não sabia por quê.
Quando o rosto já estava bem perto, tornava-se uma massa disforme e ele
percebia que, na verdade, era feito de milhares de outros rostos que o
fitavam sem mágoa. E esses novos rostos eram também de mulheres
conhecidas e também se aproximavam, até que ele pudesse ver somente
um rosto se aproximando. O processo se repetia infinitamente: o rosto se
aproximava, tornava-se uma massa disforme, que logo era percebida como
milhares de rostos, e a câmera do sonho se fixava num só rosto inexpressivo
que se aproximava e se tornava uma nova massa disforme e inexpressiva,
que etc. e etcétera. A sensação era desesperadora. O clímax se deu quando
a sutil força gravitacional dessa sucessão de rostos começou a atrair o rosto
do próprio Benjamim para dentro daquele rosto multitudinário que olhava
para ele sem guardar mágoa.
Nessa hora, acordou, ouvindo um resto de gargalhada, um ai-ai cansado
de rir. Era a voz da ex-Paula escoando do sonho. Ria dele, em letras
maiúsculas: HAHAHA. Ou era o som dos genes dos Costa e Oliveira dando
mais um passo adiante na horrenda teia da terra, um lamento quase
inaudível que também se parece a uma gargalhada. A risada de seu filho
que não nasceu. Ou era o choro de Natália, agora já calado pelos meses
em que não pensou no ex-marido. Ou era o som da vida de Paula, a
vizinha, se ajustando veludamente à ausência do ex-admirador. Ou eram as
rodas do vagão vutlique-vutliqueando, ou a interjeição contente e contínua
do ar-condicionado: “Hm”. Aos poucos, camada por camada, Benjamim
voltou ao trem em que estava: paredes de plástico cinza, assentos
acolchoados. Ou era um suspiro de velho, da mãe ou de Conceição, em
Santa Maria Madalena. O povo de Santa Maria Madalena achava que
Benjamim estava morto há muito tempo. Mas disso ele não sabia. Ou era o
murmúrio de uma reza, resquiecat in pacem, ecoada de três anos atrás.
Diante dele, um senhor de meia-idade, calvo, lia o Le Monde, e foi a única
vez em que um senhor de meia-idade, calvo, leu o Le Monde de 18 de
fevereiro de 2010 naquele trem rumo a Paris, numa quinta-feira, 18 de
fevereiro de 2010.
Benjamim consultou o relógio: 13h33.
A hora não significava absolutamente nada.
O senhor calvo de meia-idade era a cara de seu pai, logo antes (ou logo
depois) de enlouquecer. Talvez aceitasse posar para ele, para um esboço
do que seria o Javé, qui-qui-qui, que queria pintar no muro de uma vila de
pescadores ou no de um banco quase falido em Durrës. Retratá-lo de
memória talvez não fosse o suficiente. Já não tinha muitas lembranças do
pai ou mesmo dos retratos do pai. Seria incapaz de terminar sua obra-
prima sem o Javé, zangado, planando judicante acima da orgia dos
homens. Todos os bancos estão quase falidos, Benjamim pensou, no
momento em que outro senhor de meia-idade passava no reflexo preto da
janela. Levava um jornal debaixo do braço, mas não era o Le Monde, era o
Libération. Era a cara do pai também, era outro modelo em potencial,
indo ao banheiro.
Quantos homens iguais ao seu pai haveria na Europa? Para saber, teria
que tomar todos os trens, parar em todas as estações e olhar para todos os
homens. Teria que invadir os banheiros, examinar os espelhos e esperar:
uma hora, os homens sairiam das cabines para lavar as mãos, e outros
entrariam, e outros tomariam trens para Berlim ou Budapeste. Teria que
consultar todos os mapas ferroviários, cujas linhas às vezes desaparecem ou
se enroscam como boca de borboleta. Seria necessário fazer algum sentido
da geometria férrea para evitar que o modelo perfeito, o Javé correto,
escapasse. E se ele, Benjamim, não estivesse naquele trem para Berlim ou
Budapeste, e se estivesse no banheiro da estação errada ou no banheiro
errado da estação certa? E se num cochilo ou num piscar mais demorado
de olhos perdesse uma oportunidade que só se daria novamente dali a
quilômetros ou anos? Teria que tomar todos os trens para Gomorra, ver
todos os homens, olhar com cuidado para todos os homens.
O homem calvo notou o olhar impertinente de Benjamim, levantou
uma das sobrancelhas, depois a outra, e sorriu com a cara mais malvada
que tinha. Perguntou, em inglês, se ele desejava alguma coisa. Benjamim
sentiu a garganta inflamar, mas:
— No, sir, nothing, not a thing.
Uma pessoa pode se virar muito bem no mundo falando somente o
inglês.
A Gare du Nord era uma citação literal da Gare Saint-Lazare pintada
por Manet, Monet e Caillebotte no condoído século XIX. O senhor de
meia-idade desembarcou antes de Benjamim e sumiu na multidão sem
nem hesitar. Benjamim, sobretudo e cachecol felpudo (os pelos da nuca
arrepiados), procurou pelo outro Javé que havia visto no trem, mas foi
inútil. Então, cedeu à primeira inevitabilidade que encontrou: foi procurar
uma tabacaria. Comprou tabaco e mortalha e, irreprochável (na calçada),
enrolou seu primeiro cigarro europeu, como havia planejado nos bons e
velhos tempos em que tinha um buraco a preencher na vida, e não no
estômago, logo abaixo do coração. O cilindro torto e murcho, sem filtro,
queimou rapidamente, às labaredas, produzindo uma fumaça escura
infumável. Um passante, possivelmente feliz, lhe ofereceu um Lucky
Strike e também desapareceu. Não riu nem sorriu. Na Europa, as pessoas
desaparecem assim, sem mais nem mais. Na realidade, não existe labirinto.
Ele já não fugia. O passante não se parecia a ninguém conhecido.
Benjamim sorriu sozinho, em agradecimento. E sorriu. E sorriu até que
não estivesse mais sorrindo.
Quase conseguia ouvir o apito longo e grave de um navio cargueiro,
chegando ou indo embora, tanto faz.
40. O narrador se refere a Paris, e a nada além de “Paris”. O narrador também quer
dizer que um homem fugindo, do ponto de vista de quem está no local de destino
(Paris), é só mais um homem que chega.
60. Conceição

Se só tens riso, ri-te! É a mesma cousa.


Quincas Borba, CCI

Conceição morreu dali a seis meses, com a idade exata dos profetas. Ela
mesma escolheu seu leito de morte, o antigo arquivo morto de d. Letícia,
que, depois da volta de d. Noemi ao Rio de Janeiro, estocava os exemplares
da Breve e muito concisa história da família Costa e Oliveira que Abel
ainda não tinha enviado às livrarias da capital. A velha se instalou no
quarto e avisou com um grunhido que não sairia mais de lá. Nesse dia, a
família, Ambrósio inclusive, se reuniu em volta dela e esperou, dando os
adeuses silenciosos que se dão aos moribundos, mas Conceição os fez
esperar um pouco mais, por diversão ou qualquer outro motivo. O
teatrinho se repetiu por duas semanas: a família se reunia ao redor da
velha, ela olhava para eles, depois para o espelho que devolvia imagens
mais matusalênicas que as originais, e não morria. Aos poucos, um a um os
Costa e Oliveira foram desistindo de assistir ao momento da passagem.
Quando a velha morreu, só Ambrósio estava ao seu lado.
A cena não foi tocante. Conceição morreu de um riso e uma tosse
acatarrada, logo após contar ao neto, com a voz quebradiça de quem não
fala há muito tempo, a melhor piada que havia ouvido em toda sua vida.
FUNDO FALSO
Epílogo

Ó, abismo, tu és o deus único.


Renan

Desde que publiquei este Glória, em 2012, passaram-se quinze anos, e o


mundo, embora decididamente mais triste, não morreu de desgosto. Pode
ser que esteja caminhando para isso, mas o futuro, diz o provérbio,
pertence a Deus. A tristeza, disse Van Gogh, durará para sempre. Aliás,
essas foram suas últimas palavras.
Visitei Santa Maria Madalena pela primeira vez muito tempo depois de
inventá-la aqui. Em 2017, ano que mais tarde ficaria conhecido como o
ano da febre madalenista, fui convidado a participar de uma conferência
no recém-inaugurado Instituto Laetitia, dedicado à preservação da
memória de Letícia Costa e Oliveira e ao fomento de pesquisas
relacionadas ao passado & futuro do movimento madalena. Só conhecia a
cidade por fotografias, e o pouco que sabia de sua história (primeiro
município a oficializar um divórcio, terra natal de Dercy Gonçalves etc.)
aprendi pela internet. Quando cheguei, fazia um sol de fim de inverno
(amenos vinte e cinco graus, ótima umidade), e mais tarde me contaram
que é assim o ano inteiro.
Os artistas e professores que me receberam no Laetitia foram gentis,
apesar da minha galopante juventude. Um deles, que se apresentou como
Afonso Ferro Costa e Oliveira, descendente indireto de Caim (“Como
todos nós”, ele disse), parecia especialmente alegre com a minha presença
e fez questão de me mostrar as dependências do instituto, um prédio
assobradado e elegante que se erguia no topo de uma das incontáveis
colinas de Santa Maria Madalena. Está no mesmo lugar até hoje. À época
da minha visita, o mato amarelo crescia sem nunca ter sido aparado, por
uma espécie curiosa de respeito ou falta de verba. Insetos voadores e
percevejos proliferavam, espalhando um perfume igualmente curioso
dentro e fora do edifício. Hoje em dia, após a injeção monetária que se
seguiu ao boom da arte madalena, presumo que tenham contratado um
nativo jovem e saudável para aparar o mato.
Por dentro, o sobrado tinha um ar de velhice e doença, quase como a
cabeça daquele Teodoro ou Erasmo (assim se chamava mesmo: “Teodoro
ou Erasmo”), protagonista de uma das primeiras novelas madalenas de que
se tem notícia: a Íada, de Mário Carvalho Costa e Oliveira. Corredores
sinuosos iam desaguar em salões completamente nus, e os salões
completamente nus tinham divisórias de vidro quase invisíveis formando
corredores sinuosos, que iam desaguar em novos corredores sinuosos ou
salões (nus ou não). Achei parecido com um palácio em miniatura, uma
paródia de casa maçônica ou um colégio de ‘patafísica disfarçado. Por toda
parte, havia placas gentis indicando os caminhos, para ninguém se perder.
À parte o cristalino labirinto (cuja razão de ser o professor Ferro, meu
cicerone, não quis me explicar), o interior do Laetitia se assemelhava ao de
um instituto de pesquisa qualquer: paredes, cadeiras, tapetes e estantes
institucionais, gente quieta, cabeças baixas, nucas concentradas. Os
madalenas são criaturas discretas, anti-histriões por natureza. Vestem-se e
agem de maneira impecável para desaparecer na multidão ou numa sala,
mesmo naquelas em que não há ninguém. E isso, como todo o resto, não
quer dizer absolutamente nada para eles.
Depois de uma rápida visita à biblioteca, que ocupa todo o segundo
andar e abriga o maior acervo de obras madalenistas do planeta, fui
conduzido à minúscula sala de conferências. Pelo silêncio, imaginei que
não haveria ninguém no auditório, mas estava lotado. Cerca de cinquenta
pessoas, madalenas e simpatizantes, todos pacientes e calados e quase
imóveis, esperavam por mim. A sala tinha como único adereço uma
réplica do busto de Cioran (me contaram que o romeno é um dos mais
importantes pré-madalenas), esculpida em pedra-pomes. Dois autores
madalenistas formaram a mesa comigo: Tibério Gomes Costa e Oliveira e
Moacir Tavares Costa e Oliveira, que foram amáveis o bastante para
discordar de tudo o que eu disse. A plateia foi receptiva; à moda do
madalenismo, balançavam negativamente a cabeça a cada intervenção dos
palestrantes, para deixar bem claro seu desgosto profundo em relação à
coisa toda. Falávamos muito baixo, como se para não acordar alguém que
estivesse dormindo numa das cadeiras. E todos se entendiam.
Silva Costa, a quem nunca tive a coragem de chamar simplesmente de
Ambrósio, apesar da nossa longa e taciturna amizade, estava na audiência.
Entrou minutos depois do início e saiu antes do fim, sem falar comigo.
Não sei se ele considera este nosso livro a duas mãos como parte de sua
obra. No dia do lançamento, enviei a ele uma cópia eletrônica do
exemplar, via e-mail, mas não recebi resposta. Além daquele rápido
encontro no Instituto, nunca mais tive notícias dele a não ser pela leitura
de seus édipos (o mais recente, Édipo de décima nona mão, de 2021, é um
primor), o que é uma pena. Talvez me deteste por eu ter usado sua história
e a dos seus para pregar esta peça de mais de duzentas páginas de extensão.
Ou por achar que me aproveito injustamente da fama que o madalenismo
adquiriu na década passada. É provável que me considere uma fraude. Eu
talvez esteja morto para ele. De qualquer modo, aproveitei a palestra no
Laetitia para emendar meus erros e aclarar alguns pontos obscuros da
minha história. Por senso de justiça, mais do que por vontade de defender
este livro — que, como todos os outros, é indefensável —, achei que uma
breve e concisa explicação se fazia necessária naquele momento. Pelo
mesmo motivo, torno-a pública nesta segunda edição. Escrevo de um
ponto de vista dez anos mais velho (atualmente, uso óculos), mas a
essência da minha fala no Instituto, em 2017, está toda aí.
Embora ainda hoje me identifique com muitos de seus princípios, não
sou um madalena. Adotei o sobrenome dos Costa e Oliveira ao assinar o
prólogo do meu primeiro romance, como costumam fazer os madalenistas,
mas não me considero parte do movimento. Não assinei nenhum outro
como “Victor Heringer, C. O.”. Não estive em Santa Maria Madalena
quando as ideias começaram a fermentar. Não assisti aos históricos debates
sobre a Breve e muito concisa história da família Costa e Oliveira. Nada sei
sobre o catastrofismo madalena ou sobre o conceito de peste em Micróbio,
de Nogueira Costa e Oliveira (contam-me que é revolucionário,
entretanto). Desconheço o Novos métodos de entristecer e o História da
literatura pelo viés péssimo. Não me correspondi com nenhum dos autores
madalenistas, a descontar as lacônicas conversas com Silva Costa, o nosso
fragmentário Pierre Menard, que reina soberano nesta era de
pierremenardes. No fim das contas, não sou muito gregário.
Além da Breve e muito concisa história da família Costa e Oliveira,
nunca li mais do que um ou dois críticos que trataram do fenômeno
madalena. Daí retirei a matéria-prima para este romance. Não copiei nada,
nada me influenciou mais do que o espírito do meu tempo, e mesmo
quanto a isso tenho cá minhas dúvidas. Posso ter sintonizado o espírito
errado. Se eu tivesse sido um autor de romances concisamente irritados ou
melosamente vanguardistas até 2017 e só escrevesse o Glória depois do
encilhamento madalena daquele ano, vá lá, estaria plenamente de acordo
com o nosso zeitgeisito. No entanto, não foi isso que aconteceu. Escrevi na
calada do madalenismo, baseando-me em escritos ainda não disponíveis ao
grande público, na história que me foi contada e, sobretudo, no meu
desgosto próprio. Escrevi o Glória por encomenda, e o Glória me
extorquiu a alma. Admiro os madalenas, que já não tinham alma desde o
início e cujo único deus é o abismo. Levei anos até conseguir voltar a
escrever, a acreditar em meus personagens como eles tendem a acreditar
em mim.
Escrevi, admito, lançando mão (inadvertidamente) do estilo madalena
(negar, negar ad nauseam, ou, como foi dito por alguém muito mais
romântico do que eu: “despetalar a flor do não”), uma comédia de
costumes de costumes que ninguém tem, com personagens que talvez não
saltitem da página como o leitor gostaria que saltitassem. Admito também
que tentei escapar (pelo viés péssimo, bem sei) daquela prosa de
Kierkegaard de que a ironia é a negatividade infinita & absoluta, que
apenas nega, sem negar um fenômeno específico, sem estabelecer nada.
Eu quis um épico opaco. Evidente que não consegui, pelo absurdo da
tarefa, mas amo os erros do Glória como amo quase todos os demais erros
que cometi. Não posso, porém, levar todas as culpas. Nunca pretendi
escrever uma história oficial da Escola de Madalena. Não fui eu o
causador do acidente de Benjamim na Cracóvia. Não contatei os donos de
emissora para conseguir um espaço para o pastor Abel nas madrugadas
televisivas. Não espalhei o vírus de gripe alguma. A propósito, sempre fui
saudável como o menino que hoje apara o mato no Laetitia. Só o que fiz
foi relatar os fatos como Swift queria: exatamente. São os fatos, as pessoas
ocas que vivem e narram pelos meus dedos, que constituem os melhores
elogios e as censuras mais duráveis. O resto é o jovem que fui e vou
acabando de ser. Não sou um madalena; sou, no máximo, um Heróstrato,
aquele que incendiou uma das sete maravilhas do mundo para imortalizar
o próprio nome. E é bem provável que eu tenha ateado fogo a algo que
não era inflamável. Talvez de propósito.
A história dos Alencar Costa e Oliveira me foi narrada pelo próprio
Daniel, que conheci quando trabalhávamos juntos no porto do Rio de
Janeiro, no tempo em que a luta pelo pão e queijo diários era ainda mais
dura e eu só tinha publicado uns livros de poemas. O homem sabia que eu
era escritor. Contou-me toda a história sem medo de que eu a publicasse.
Talvez até quisesse vê-la nas estantes e nos e-readers alheios. Foi ele quem
me presenteou com um exemplar da primeiríssima edição do livro de d.
Letícia (deturpada pelo irmão caçula), dizendo que não há coisa mais
importante no mundo do que a família. E, na breve e muito concisa
história da família dele, encontrei o tom deste meu Glória. Meu e de Silva
Costa. Não sei ao certo, mas não me espantaria se descobrisse que Silva
Costa conheceu meu trabalho por seu intermédio. Sem Daniel, portanto,
este livro não existiria. Por isso é dedicado a ele.
O sangue dos Costa e Oliveira parece ser realmente menos vermelho do
que o dos demais. Em janeiro de 2012, Ana decidiu se separar do marido.
Desconheço os detalhes, mas, na última conversa que tive com Daniel, ele
me disse que se sentia órfão de pai pela segunda vez. O ex-sogro não só o
demitiu da empresa como cortou todas as relações com seu ex-garoto após
o divórcio, o que o levou ao ato último de orfandade, que é ficar órfão de si
mesmo. Morreu na terça-feira de Carnaval, como o pai biológico. Não fui
ao enterro. Ainda mantenho algum contato com a Ana. Seu segundo filho
se chama Eduardo, que é o nome do meu irmão.
Depois da morte de Daniel, perdi o pouco contato que tinha com a vida
dos Alencar Costa e Oliveira. Já ia me esquecendo deste romance e de seus
personagens, ocupado em tentar escrever outros, quando vi o pastor Abel
pela primeira vez na televisão. Ao que tudo indica, sua pequena
empreitada provinciana deu frutos. O trabalho com o rebanho
madalenense e a fugaz fama que adquiriu na internet chamaram a atenção
dos gigantes (e bispos) neopentecostais. Hoje, a Igreja Global em Cristo
não existe mais — fundiu-se a uma rede muito maior — e o pastor Abel é
universal e televangelista. Comanda um programa de ajuda espiritual nas
madrugadas: recebe ligações, aconselha o povo, abençoa copos d’água e
prega a palavra de Deus. Ainda é um homem de aspecto neutro, mas de
vez em quando gargalha meio sinistro. Nunca o ouvi mencionar a Breve e
muito concisa…, embora todos saibam (e sentem algum desconforto
quanto a isso) que ele é o responsável pelas primeiras edições da obra de d.
Letícia (recebe os direitos autorais até hoje).
Numa das minhas madrugadas em claro, assisti a um de seus telecultos
do início ao fim. Ele citou uma passagem das Escrituras da qual sempre
me lembro e que diversas vezes me serviu de consolo: “Deus escolheu as
coisas loucas deste mundo para confundir as sábias”. De certa maneira,
vivo segundo esse credo, o que faz de mim, tal qual o pastor, um homem
afinado à escolha de Deus. Desliguei a TV e fui para a cama como quem
sai de uma sala de cinema sem entender direito a graça da comédia que
acabou de assistir,41 mas senti uma simpatia funda por aquele personagem,
editor, herdeiro e sacerdote subcelebridade. Um vencedor, de acordo com
os nossos parâmetros. De qualquer maneira, se não fosse o nosso modesto
livrinho, a história pregressa de Abel, o miolo interessante de sua vida,
desapareceria completamente.
Benjamim, meu protagonista sem vocação para protagonista, sumiu
completamente. Segundo Ana me contou, a última notícia que tiveram
dele foi dada pela embaixada brasileira na Polônia, que a contatou
procurando por Daniel. Benjamim se envolvera num acidente
automobilístico (foi atropelado) e estava internado num hospital da
Cracóvia. Os ferimentos não eram graves, dada a pouca velocidade em que
ia o carro que o acertou, mas alguém precisava arcar com os custos do
tratamento. Benjamim informou o número do irmão do meio. Quando
soube que ele estava morto, fugiu do hospital e desapareceu outra vez. Há
quase dez anos, ninguém da família sabe onde está. Será esquecido, a
despeito do nosso modesto livrinho.
Quanto a Silva Costa, está claro que ele não precisa dos meus esforços
de ficcionista para ser memorável. Seu nome evoca a glória dos muitos
volumes de sua obra-prima e, não menos importante, a história de como
galgou corajosamente os degraus oleosos do parlamento da República das
Letras até chegar ao palanque em que se encontra hoje. Meu velho amigo
segue subindo, apesar de ter sido personagem secundário neste romance.
Nenhuma criatura que sou capaz de inventar teria tanta personalidade.
Houvesse meu narrador dado a ele algo mais do que um inusitado trauma
de infância e duas ou três cenas, Ambrósio-menino tomaria a trama de
assalto e se tornaria protagonista, arruinando o roteiro preestabelecido para
o livro. Não havia espaço para ninguém além de homens nem muito altos
nem muito baixos aqui. A altura de Silva Costa o faria bater com a cabeça
nas vigas de sustentação do Glória e derrubaria todo o edifício… Enfim,
quem quiser conhecer verdadeiramente a vida desse homem que consulte
os édipos; falam mais alto que qualquer coisa que escrevi.
O mesmo, mutatis mutandis, pode ser dito em relação a Letícia Costa e
Oliveira. Muitos, inclusive na ocasião em que palestrei no instituto que
leva seu nome, me perguntaram por que não a tratei como a figura que
realmente foi: um Homero, um Kafka, um Saussure, um Nietzsche. Por
que não a engrandeci como deveria? Eu poderia ter antecipado 2017,
poderia ter sido o primeiro autor da Febre. Não soube responder, e ainda
hoje não sei. Neguei-me a inventar o madalenismo antes dos madalenas
porque negar é mesmo a mola mestra do estilo.
Aliás, o que me restava além de reduzir Letícia Costa e Oliveira, o
máximo possível, à condição de d. Letícia, senhorinha humana? Evidente
que nada. Ainda assim, inexperiente que eu era, mal consegui disfarçar o
quanto ela tinha de força da natureza, de destruição em massa, de
epidemia. Minha versão miúda da fundadora do madalenismo foi negada,
renegada e tresnegada pelos madalenas. Considerando-se que são homens
e mulheres para quem negar, renegar e tresnegar são os prazeres estéticos
supremos, encarei-o como uma vitória, uma quase admissão. O mesmo
ocorreu com minhas opiniões a respeito da Breve e muito concisa história
da família Costa e Oliveira: foram pessimamente recebidas (pelo que, aliás,
agradeço).
Contrário à tendência dominante, ainda sustento que a obra-prima de d.
Letícia foi um golpe de gênio involuntário, o que obviamente não é um
demérito. Recuso-me a acreditar, por exemplo, que a profusão de registros
discursivos tem intenção paródica, que a peste de desgosto é uma metáfora
ou que tudo no livro é sátira ou alegoria. Sei perfeitamente que, nos
autores famosos, as coisas são sempre intencionais, mas tendo a achar que
a Breve e muito concisa… perde muito de sua graça quando lida à chave
solta. Não me queixo, porém. A história dos desgostosos Costa e Oliveira
causou rebuliço, acendeu uma centelha de revolução e inspirou culto. Foi,
sim, um petardo e nunca deixará de ser uma impressionante reflexão sobre
a infelicidade, quisesse a autora salvar o mundo da peste ou ser escritora.
Na verdade, tanto faz agora. A peste que ela profetizava não veio. Um surto
aqui ou ali, e só.
Em 2014, d. Noemi enfim encontrou um quebra-cabeça com a imagem
dos Dois caranguejos de Van Gogh, montou-o e morreu em paz. Semanas
antes, enviou-me uma carta na qual perguntava, entre outras coisas, por
que eu não dera mais atenção a Daniel no meu romance. Mal sabia ela
que todo este livro me foi contado por Daniel, o mais médio dos irmãos do
meio. A carta me enterneceu, apesar do inevitável tom condenatório. Era
longa, sábia, típica de quem se acostumou a perder. Não havia
ressentimento nas palavras, nenhum orgulho familial ferido. A boa velha
tinha plena consciência de que o escritor, na condição de escritor, é um
homem de muitas personalidades, não raro divergentes. Eu mesmo,
quando longe da escrivaninha, às vezes calunio o velho autor do Glória,
que está sempre ali sentado, escarafunchando, entediante, buscando a
maneira mais sofista de se chegar a lugar nenhum. Irrito-me com ele
sobretudo quando faz sol lá fora, visto que é um desperdício dar tanta
importância à literatura se o tempo está bom. Afinal, vivemos (eu e ele) no
Rio de Janeiro, e amar ou odiar um livro a esse ponto é, como bem disse
Vonnegut, quase o mesmo que vestir armadura completa para atacar um
hot fudge sundae ou para se defender de um. Essa citação foi d. Noemi
quem me ensinou. Na carta, ela dizia que era mesmo melhor dar nome e
sobrenome às invenções da gente, para que o povo não saia por aí
procurando os modelos que o escritor usou para criar tal ou qual
personagem, inventando anagramas e especulando neuroses. Também
servia para não descambar na sátira crua. Além disso, perguntava-me quem
era o narrador, se era o fantasma de seu marido morto. Disse que, pela foto
que ela havia visto, eu era a cara dele.
Antes que eu pudesse responder, ela me mandou pelo correio a
reprodução dos Dois caranguejos (cinquenta peças), emoldurada e
acompanhada de um bilhete que dizia que “a vida é uma anedota ótima e
engraçada, mas que contando perde a graça; você tinha que ter estado lá”.
Entendi que me absolvia, mas, como é meu costume ir protelando as
coisas quando elas se aproximam do final, d. Noemi morreu sem ouvir de
mim. Guardo os caranguejos até hoje, contudo.
Paz na terra para todos os seres.
Victor Heringer, C. O.
Rio de Janeiro
23 de janeiro de 2027

41. Espero que o leitor tenha saído deste romance com a mesma sensação.
RENATO PARADA

VICTOR HERINGER nasceu no Rio de Janeiro, em 1988.


Prosador, poeta e ensaísta, publicou, entre outros livros,
Automatógrafo (7 Letras, 2012), O escritor Victor Heringer (7
Letras, 2015) e O amor dos homens avulsos (Companhia das
Letras, 2016). Glória, lançado originalmente em 2012 pela 7
Letras, foi um dos vencedores do prêmio Jabuti de 2013, na
categoria romance. Morreu em 2018.
Copyright © 2018 by Valéria Doblas Heringer

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor
no Brasil em 2009.

Capa
Mateus Valadares

Foto de capa
Danita Delimont/ Getty Images

Imagem de miolo
DR/ Acervo pessoal do autor

Revisão
Clara Diament
Angela das Neves

ISBN 978-85-545-1255-2

Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a
pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles.

Todos os direitos desta edição reservados à


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