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in memoriam
Para os homens não seria melhor se lhes sucedesse tudo quanto querem.
Heráclito
Sumário
Prólogo
GLÓRIA
10. Homem que estava desaparecido é encontrado morto em sua
residência
11. Multidões
12. O frenesi de Pompônio
13. A pedra lá em cima
14. Descoberta de esquina
15. O Café Aleph
16. A volta do pastor Abel
17. Reforma
18. Jogo de cozinha
19. Comunicado aos condôminos (escrito à mão e colado no espelho do
elevador)
20. “Todo mundo no mundo é um Costa e Oliveira”
21. Formigas
22. Santinho matou aposentado, diz viúva
23. A Breve e muito concisa história da família Costa e Oliveira
24. A Igreja Global em Cristo
25. O mapa e o encontro
26. Conversa fora
27. Taberna da Glória
28. Anedota do homem vestido de século passado
29. A vida sexual das tartarugas
30. Ninguém rouba ninguém
31. Canal aberto, anteontem, 03h33 (reprise)
32. A morte de Antônio Vieira
33. Catapulta
34. Contagiante
35. Um homem sério
36. A morte de Pompônio
37. Primeira aparição do faqueiro
38. Segunda aparição do faqueiro
39. Viral
40. Benjamim desce ao inferno
41. No inferno
42. Ainda no inferno
43. Cancelamento de Nada Mais que a Verdade provoca “onda mística”
44. Urgências
45. Apud
46. Ano-Bom
47. Dia da Fraternidade Universal
48. A 117a morte de Hecateu de Mileto, o Logógrafo
49. As peripécias de Ambrósio na capital
50. Queda de energia
51. As confissões de mamãe
52. 12h22
53. Silêncio breve
54. Cozinha em jogo
55. Globo de ouro
56. O que faz o mar
57. Ruína circular
58. Inauguração
59. Todos os trens para Sodoma
60. Conceição
FUNDO FALSO
Epílogo
Prólogo
1. Desde que aceitei a proposta de Silva Costa (em meados de 2010) até a presente
data, não me chegou a informação de que ele tenha apresentado a mesma ideia a
outros escritores.
OS ANOS DE APRENDIZADO DOS ALENCAR COSTA E
OLIVEIRA
1. Heresia, meu amor
“Deus é, era, gago”, murmurou a mãe ao abrir o forno e ver o pato quase
carbonizado lá dentro. Ninguém ouviu. Forçou uma tosse, pôs uma das
mãos na cintura e esperou, abanando a fumaça com o pano de prato. As
crianças e o marido logo perceberiam o cheiro de queimado.
Era a véspera do Natal de 1989. Naquele tempo, o pai ainda não tinha
deixado a barba crescer demais, porque ainda não havia lido Maiakóvski.
Os três meninos entraram correndo na cozinha, aos berros, pedindo
silêncio uns aos outros. Pararam num canto mais afastado para observar.
Sabiam o que ia acontecer. Enorme e ainda de samba-canção, o pai veio
depois, caminhando calmamente. Parou ao lado da mulher. Sorriu. As
crianças olharam para o pai e logo para a mãe, que apontou desolada para
o pato, incomível, sobre a pia:
— Deus é gago.
Os meninos seguraram o riso. Ainda não era hora.
— Era. Era gago — respondeu o marido, como sempre fazia, com os
dedos da mão fingindo bigodes, estufando a barriga e imitando o que ele
imaginava ter sido a voz de Nietzsche.
Só então os filhos desataram a gargalhada, e daí saíram saltitando pela
sala, repetindo que Deus é, era, gago.
Era o xingamento favorito do casal. Sempre que algo dava errado dentro
de casa, Deus era gago e, depois de ter deixado isso ou aquilo acontecer
(jarros quebrados, manchas em roupas, desastres culinários etc. e etcétera),
estava morto para eles, como um filho que tivesse gastado toda a pequena
fortuna da família no jogo, forçando-os a comer frango de padaria ao
molho de laranja na ceia de Natal.
Ela e o marido tinham inventado a blasfêmia quinze anos antes, quando
ainda eram namorados. O rapaz, estudante de geografia, sempre levava um
livro para os encontros. Como era simplesmente incapaz de se decidir
quanto ao que fazer com as próprias mãos, usava-as para mostrar à moça,
estudante de letras, as reproduções dos mapas de que mais gostava. Ela
achava graça, ria, fazia perguntas bobas para ouvir o namorado dizer coisas
óbvias. Uma vez, perguntou por que o desenho dos litorais do mundo era
assim, meio abrutalhado, e ele respondeu que era porque Deus era gago.
— Gago?
— É. Gago — e imitou o que imaginava ser a voz do narrador das
Escrituras. — E disse o Senhor, qui-qui-qui: “Que as águas que estão
debaixo dos céus se ajuntem num mesmo lugar, e apareça o elemento
árido”. Não é assim que está na Bíblia? Escrito não dá pra perceber a
gagueira, mas os sinais dela estão aí pra qualquer um ver.
Ela achou graça e apertou as mãos dele. Ele passou a repetir a ceninha
toda vez que se encontravam, para que ela lhe apertasse as mãos. De aperto
em aperto, acabaram carregando a brincadeira até o altar, e do altar até o
apartamento de Copacabana, como outros casais carregam dialetos
particulares, ressentimentos ou apelidos constrangedores.
Os filhos, Benjamim, o mais velho, Daniel, o do meio, e Abel,
descobriram cedo que a frase parecia mesmo gagueira e era engraçada
porque os pais só a diziam quando alguma coisa estava engraçada.
Passaram a repeti-la sempre que algo em seu pequeno universo dava errado
também. Só não podiam dizê-la fora de casa, regra que foi instituída no dia
em que uma das mães de seus colegas de classe reclamou que o filho tinha
voltado blasfemo da escolinha.
Como são pouquíssimas as coisas que dão certo neste mundo, a frase,
dita muitas vezes ao longo dos anos, acabou se tornando um bordão dos
Alencar Costa e Oliveira. Eram raras as brigas que não desmoronavam
com a mulher gaguejando ou o marido dizendo, com voz de Nietzsche,
que estava decidido a deserdar seu criador. Naturalmente, não era um
núcleo familiar muito devoto. O casal, no entanto, não tinha nada contra
religião alguma: os três meninos foram até batizados na Igreja, como
manda a tradição. E todos tinham nomes bíblicos. Na verdade, a escolha
dos nomes havia sido aleatória, mas, assim que os pais a notaram, a
coincidência foi incorporada à lista de pilhérias mais ou menos propositais
da família. Também não era um núcleo familiar particularmente austero.
Muito pelo contrário: dinheiro, religião, o jantar, a luta armada, Cézanne,
tudo que podia virar piada, virava. E a zombaria aos poucos ia se
sofisticando, ganhando plugues, articulações internas e externas, polias e
engrenagens, até se confundir com a própria personalidade dos Alencar
Costa e Oliveira. Em 1989, já quase nada escapava. Não era raro ouvir do
pai que naquela família — de todas as coisas, a mais sagrada — nada mais
era sagrado.
O globo terrestre, por exemplo. Naquela noite, entre os muitos outros
presentes de Natal, Abel se deparou com um globo terrestre de plástico do
tamanho de um melão maduro, que acenderia se o caçula não tivesse
arrebentado o fio assim que o teve nas mãos. Daniel, sete anos, gritou que
o irmãozinho tinha destruído o mundo. O pai respondeu com o bordão
familiar, a mãe riu e os filhos gargalharam, causando uma pequenina e
sussurrante indignação nas velhas senhoras Costa e Oliveira, um compacto
grupo de doze mulheres que não tinham sido convidadas, mas apareceram
para comer. Além de uma certa d. Letícia, que vivia longe e nunca
aparecia, essas doze eram as últimas Costa e Oliveira vivas, todas tias do
marido.
A mãe avisou que a comida estava esfriando, mas o pai ficou onde
estava, de pé diante do caçula, que, sentado no chão, girava
estabanadamente o brinquedo. Mesmo após o desastre na cozinha mais
cedo, ninguém comeria frango de padaria; a ceia foi encomendada de um
restaurante no Leblon. Não havia molho de laranja.
A mãe repetiu o aviso. O pai coçou a barba, levantou uma das
sobrancelhas, depois a outra, fez um mugido com o nariz e pôs a cara mais
malvada que tinha. Ergueu os braços e, imitando o que ele imaginava ser a
voz de Deus, começou a atirar pragas de gafanhotos invisíveis no pequeno
globo de plástico. Os três garotos correram imediatamente na direção do
pai, gigantesco, peludo e gaguejante, e se penduraram em seus braços e
pernas. E foram carregados de lá para cá e de cá para lá. E repetiam rindo
o “lavai-vos, purificai-vos” que o pai dizia, estrepitoso, fazendo chover
enxofre de enfeites natalinos dos céus. Ficaram em polvorosa com a nova
brincadeira. Não comeram direito. Só foram dormir às três da manhã.
Depois do tumulto, e da ceia, as senhoras da família perguntaram o que
tinha sido aquilo. O sobrinho respondeu, sem nenhuma afetação, que
estavam brincando de Velho Testamento. As doze sorriram educadamente
e em menos de dez minutos foram embora, alegando hora avançada e
velhice. Saíram como haviam entrado: de surpresa, em massa, desejando
feliz Natal. Na portaria do prédio, o bloco de senhoras burburejou
indignado, levantou algumas de suas mãos para os céus, fez caretas com
alguns de seus rostos. Na calçada, o ruído aumentou de volume. Algumas
das bocas chamaram o sobrinho de infiel, de herege, reclamaram que o
pato estava seco, que sentiram falta de um bom molho de laranja,
comentaram o calor. Enquanto alguns braços faziam sinais para os táxis, as
bocas juraram umas para as outras que só veriam o sobrinho de novo no
dia de seu enterro. Não importava que ele e seus filhos fossem os únicos
que levariam adiante o nome dos Costa e Oliveira. Heresia era heresia. Era
heresia. As mãos fizeram raivosamente o sinal da cruz e seguiram para suas
casas.
Paz na terra para todos os seres.
Quando as crianças finalmente se acalmaram e foram colocadas na
cama, o casal, já no quarto, pôde trocar seus presentes. A mulher, que
estava começando a estudar a obra de Beckett na universidade em que
trabalhava, ganhou uma edição limitada de Watt, autografada pelo marido,
que assinou como “Sammy B.” a dedicatória em português. Ele ganhou as
obras completas de Maiakóvski, por nenhum motivo específico. Ela só
achou que ele gostaria. De fato, gostou. Logo depois, trocaram os presentes
comuns: colares, camisas, vestidos, gravatas etc. e etcétera. Os meninos,
ainda acordados, podiam ouvir as risadas e conversas abafadas pela parede
que separava os dois quartos. Sorriam, no escuro. A mãe experimentava as
roupas e desfilava para o marido, que, deitado na cama, alternava o olhar
entre a mulher e o mapa-múndi pendurado na parede atrás dela. O mapa,
comprado num leilão de antiguidades, tinha sido um presente do Natal
retrasado e provavelmente não era uma antiguidade. Mesmo assim, o casal
gostava muito de olhar para os litorais do mundo antes de dormir. Às vezes,
quando havia o típico silêncio de um dia bom que termina, um dos dois
respirava um pouco mais fundo e dizia “Você vê aonde a gente veio parar”.
2. Quarta de Cinzas, 1992
“Deus é, era, gago”, disse a mãe, para quem quisesse ouvir. A frase
ecoou lá dentro. Ninguém respondeu. Fazia calor. Alguns ainda bêbados
passavam lá fora, dentro dos ônibus da avenida Brasil, cansados de tanto
Carnaval. “Gago e morto”, ela repetiu, um pouco mais alto, com os olhos
cravados no marido, que, coincidência ou não, estava no caixão, afogado
até o pescoço numas flores brancas vagabundas, encomendadas por sabe-se
lá quem. Não sabia quem tinha cuidado do velório, do caixão, do enterro.
Os três meninos, sentados e arrumadinhos, estavam no fundo da capela de
número 8, sob a guarda de algumas das senhoras Costa e Oliveira, que
ficaram encarregadas de distraí-los. O pai queria ser cremado. Não foi.
Quando o padre chegou, esbaforido e desculpando-se pelo atraso —
trânsito, Rio de Janeiro, Carnaval etc. e etcétera —, viu umas sobrancelhas
tão raivosas na cara da mulher que, coincidência ou não, passou a gaguejar
de nervoso. Descobriu na hora que aquela era a viúva e, com medo de que
ela começasse a gritar e a ofender deus e o mundo, rapidamente deu início
à cerimônia. Não era a primeira vez que um escândalo se anunciava assim,
de sobrancelhas angulosas e defunto de meia-idade.
— A-alegrai-vos e exultai, porque é grande nos céus a vossa recompensa.
Não houve escândalo. A mulher simplesmente baixou a cabeça e ouviu
o que o padre tinha a dizer. Vez ou outra, soluçava. Muita gente apareceu:
colegas professores, parentes distantes, os barbados amigos do marido, as
amigas dela, pessoas desconhecidas. E todos solícitos, cara de velório.
Alguns pareciam sinceramente tristes. Não era o caso de reclamar.
Ninguém despenca de suas casas até o cemitério do Caju para
testemunhar um ataque de pelanca. E, afinal de contas, não era uma
tragédia tão enorme. É claro: três filhos pequenos, trabalhando fora e tudo
o mais, mas não ficaria desamparada. Eram os anos 90; mulher quase
nenhuma ficava desamparada. E tinha o dinheiro do seguro. E tinha a
família do marido para ajudar. E ainda era jovem, bonita. Como disseram
as senhoras Costa e Oliveira, podia casar de novo. Casar de novo. “O mais
velho é a cara dele”, uma delas chegou a dizer, ali mesmo, apontando para
o caixão aberto.
Gago, decididamente.
Até porque Benjamim não se parecia em nada com o pai. O marido,
vivo, tinha a cara dos que não se interessam muito pela vida como ela é, o
sorriso amigável dos céticos, a simpatia dos descrentes. O menino não, o
menino tinha cara de susto. Chorou ao nascer como todos os outros, mas
quando parou o rosto conservou a expressão de espanto. Seu filho mais
velho tinha olhos muito grandes, a boca estava sempre entreaberta. Um
respirador bucal, segundo o pediatra. Por isso a lentidão quase irritante em
reagir aos estímulos externos. No futuro, o garoto poderia ter problemas de
postura, de atenção, de apetite. Seria presa fácil para os mais diversos tipos
de virose. Daniel e Abel, por outro lado, eram sadios, perfeitos. Sem
problemas, segundo o pediatra. Mas amava os três igualmente, dizia a si
mesma quando saía do consultório.
Não quis pensar em mais nada.
Peculiares, as coisas que passam pela cabeça das pessoas durante um
velório. Um velho amigo do marido, num canto da capela, parecendo que
se pegava forte com Deus pela alma do finado, na verdade aproveitava o
ambiente religioso para rezar pelo bom resultado do Flamengo x Santos do
sábado seguinte.2 Algumas senhoras pensavam no calor e em reumatismo.
Abel, o filho mais novo, sentia saudades do seu globo terrestre, que tinha
ficado em casa. Daniel, o do meio, detestava usar aquela gravata apertada e
não entendia direito o que estava acontecendo. Benjamim, sentado ao lado
de uma prima adolescente, estava perdido em meditações metafísicas.
Contou nos dedos: doze. Tinha doze anos, já. Era grandinho. Descobriu
sozinho que aquela não era hora de dizer que o Deus é, era, gago, porque
o papai estava morto também, e não era engraçado, mesmo ele não
sabendo o que pode dar de mais errado no mundo que o papai ir morar
com papai do céu, que é o Deus também. Estava um calor danado com
essa gravata e esse jaquetão. Algumas pessoas disseram que ele era agora
homenzinho, o homem da casa. A prima de vez em quando abraçava e
dizia que tudo ia ficar bem, e os peitos dela amassavam na cara dele. Num
desses abraços, o menino pensou que era esquisito o Deus ser gago e estar
morto ao mesmo tempo. Tinha aprendido na escola que o Deus é, ou era,
uma pessoa só e também é (era?) três. Mas qual delas estava morta e qual
era gaga, ele não sabia. E ainda sobrava uma (um, dois, três, contou nos
dedos), que talvez estivesse viva e não falasse errado. Talvez fosse a pomba
branca, que também é o Deus, mesmo sendo um bicho que a gente
conhece. O padre estava ali também, gaguejando e vivo, então podia ser
ele. Quis perguntar para a prima, mas ela já era grande e por isso tinha ido
lá fora fumar cigarro. Talvez ele tivesse que fumar cigarro também, agora.
— V-vi-vinde em seu auxílio, santos de Deus.
Ninguém sabia dizer ao certo a causa da morte do marido. As senhoras
da família diagnosticaram o de sempre: morreu de desgosto. Esta era a
única real tradição dos Costa e Oliveira: morrer de desgosto. Outras
famílias fazem festas memoráveis, se reúnem todo domingo para almoçar
ou são conhecidas no ramo da odontologia, mas os Costa e Oliveira não.
Os Costa e Oliveira se reconheciam pelo fato de morrerem todos de
desgosto. Contraíam uma tristeza qualquer, que zombava tanto da
medicina avançada quanto do século XX, e em dois tempos morriam dela.
Era uma espécie de maldição, mas tinha a virtude de unir a família num
único sentimento. Alguns morriam de amores, outros de bilhetes de loteria
não premiados, outros ainda de uma substância misteriosa que as tias mais
velhas chamavam de bile preta e que magoava as pessoas. O marido tinha
morrido de Maiakóvski, segundo a maioria das velhas, apesar de o atestado
de óbito rezar infarto agudo do miocárdio.
Em 1990, ele leu a obra completa do poeta russo e, no ano seguinte,
começou a degringolar. Deixou a barba crescer até a beira do ridículo,
emagreceu muito, parou de brincar de Velho Testamento. “É preciso ser
bom”, dizia aos filhos, repetia aos vizinhos, repetia aos filhos, repetia à
mulher. “É preciso ser bom”, repetiu durante todo o ano de 1991,
solenemente, às vezes só para quebrar um silêncio. Ligava para as tias,
coisa que antes não costumava fazer, e recitava versos de Maiakóvski,
explicando depois de quem se tratava. Em dezembro, com a dissolução da
União Soviética, adotou um novo lema: “Deus, que será de ti quando eu
morrer?”, e repetia isso sempre que lhe dava na veneta, à mesa do jantar,
ao telefone com as tias, na sala de aula. Seus alunos achavam
divertidíssimo; alguns deles apareceram no velório. Em 1993, o professor
doutor Costa e Oliveira teria votado pela monarquia, mas morreu antes.
Antes, foi para o Carnaval fantasiado de fim de mundo. A causa mortis era
com certeza a Terça-Feira Gorda, sussurravam algumas das senhoras Costa
e Oliveira. Mas ele morreu mesmo foi de Maiakóvski, retrucavam outras.
Outras ainda afirmavam com toda a segurança, entre dentes, que o homem
tinha era morrido de comunismo. Um desgosto tremendo, o comunismo
— e fechavam os olhos, fazendo cara de condolência.
— … o eterno descanso, n-no-nos esplendores da luz perpétua.
Que era preciso ser bom. Papai dizia isso, e muito. E agora o papai não
estava mais vivo, não estava mais não. Mas ele era adulto agora, tinha que
cuidar da mãe e dos irmãozinhos. Por isso não chorou, nem quando
pegaram na mão dele e levaram para perto do papai e ele passou a mão na
mão dele, que não estava gelada nem nada, só um pouco azul-brancona. A
prima voltou e dessa vez não abraçou porque ficou com o rosto virado para
o outro lado por um tempinho. Depois o olho dela olhou para ele e estava
vermelho agora. Muito calor, muito. A roupa com gravata apertava o
pescoço e a garganta acabava tendo vontade de chorar, mas era só por isso,
por causa da gravata.
A prima deu outro abraço quando estavam andando pela estrada de
pedrinhas do cemitério. E ficou assim, abraçada. Os amigos do papai
carregavam o caixão e falavam rindo uns para os outros, mas estavam
muito tristes. O mais barbudo de todos fumava cigarro e falou “Esse puto
me dá trabalho até quando morre”, e os solavancos faziam cair as cinzas na
tampa de madeira. Ele já sabia o que era “puto”, mas não achou
engraçado. Aí ele perguntou para a prima por que é que o Deus é, era,
gago. Ela respondeu que os gagos cantam muito bem, porque achou que
ele era quem era gago ou porque não sabia o que falar mais. A gravata
apertava tanto, tanto que ele teve que chorar por causa dela. Era só por
causa da gravata, ele disse, entre um soluço e outro, e a prima apertou
também o abraço. Os peitos dela amassavam agora a orelha e a bochecha
dele, e ele pediu desculpa porque molhou o vestido dela. A prima falou
que não tinha problema nenhum.
Benjamim não sabia nada de gente que era gaga. Tinham dito para ele
que ele agora era o homenzinho da casa. Ele tinha que ser bom, disse para
a prima, que apertou ainda mais e começou a chorar também, só que sem
fazer nenhum barulho. Ele se sentiu esquisito na barriga, e, quanto mais a
prima apertava o abraço, mais ficava esquisito. Ela era molenga, os braços e
os peitos dela. Depois, a prima soltou os braços, virou o rosto e andou mais
rápido que ele. A prima era muito branca e tinha o cabelo muito preto,
mas muito preto mesmo. Os gagos cantavam bem, ela tinha falado. Ela já
estava lá na frente quando parou para fumar cigarro de novo. A roupa dela
tremelicou quando ela pisou o pé no chão e parou, a saia do vestido preto
tremeu, molenga, e ele se sentiu muito, muito esquisito na barriga. O
Deus estava cantando; ele achou que era isso.
Cantava bonito.
— Senhor, dia sem ocaso e fonte de misericórdia infinita, fazei-nos
recordar sempre como é breve a nossa vida e incerta a hora da morte. O
vosso Espírito Santo dirija os nossos passos, para que vivamos em santidade
e justiça, para que, depois de vos servirmos em comunhão com a vossa
Igreja, iluminados pela fé, confortados pela esperança e unidos pela
caridade, entremos todos na alegria do vosso reino. Por Cristo, nosso
Senhor…
— Amém — responderam as boas senhoras da família.
Assim que pôde ficar de pé, Benjamim decidiu apagar o painel que
havia pintado no quarto do irmão caçula. Antes, porém, fotografou quase
tudo, menos a figura de Javé, zangado, lá no alto. Queria, mais tarde,
reproduzir algumas dessas cenas, em cores menos depravadas, talvez para
uma exposição conjunta que de fato existisse. E, ao passo que o “Gomorra”
desaparecia, desapareciam também os sintomas de sua doença. A febre
arrefeceu nos primeiros dias, enquanto ele raspava a tinta do painel. Como
consequência, as alucinações cessaram e o intestino se regulou. No fim da
segunda semana, quando as paredes foram cobertas pela primeira demão
de branco, as placas avermelhadas na pele voltaram à cor normal.
Calculou que seriam necessárias outras cinco camadas de tinta para
esconder totalmente a orgia. Apesar do véu esbranquiçado, alguns corpos
ainda sobressaíam, priápicos ou ninfais, nas paredes do quarto. Javé,
retratado em cores fortes, daria muito trabalho: seria o último a sumir.
De tempos em tempos, d. Noemi aparecia no quarto e perguntava se ele
estava bem. Benjamim fazia que sim com a cabeça, e só. Às vezes, a mãe
ficava sentada numa poltrona já muito manchada, observando-o mover o
rolo de cima para baixo e de baixo para cima, apagando pela décima vez
algo que havia pintado para zombar do irmão que nunca aparecia. No
começo, por força do hábito, fazia piadas cruéis, apontava lugares em que
o branco não estava fazendo efeito ou defeitos nas cenas da orgia,
perguntava se ele se considerava um muralista com problemas de
autoestima ou um pintor de paredes com o ego inflado, comparava os
traços de Javé aos traços do falecido marido, perguntava se no fundo do
poço fazia frio etc. e etcétera. A tudo, porém, o filho respondia com uma
risadinha cada vez mais frouxa, mais apagada, até que ela parou de fazer
graça e ele, de rir.
Ao cabo de um mês, Benjamim estava completamente curado.7 Havia
removido todos os vestígios do “Gomorra” e agora falava em morar
sozinho, casar, arrumar um emprego como museólogo, investir na carreira
de artista plástico. A mãe fez o que pôde para não perturbá-lo enquanto ele
gradualmente se tornava a pessoa mais enfadonha possível no mais médio
dos mundos. A casa ficou muda de risadas ácidas. As únicas que se ouviam
eram as da conveniência: pequenas desventuras domésticas, anedotas
inofensivas, carinhos. Risadas bem demarcadas, em que a graça não está
escondida sob camadas e mais camadas de ironia, mas ali, diante de todos
e resplandecente de obviedade. Benjamim já não zombava de nada, nem
mesmo nas ocasiões apropriadas. A cara de susto (boca entreaberta, olhos
salientes) ficava impassível.
D. Noemi, como boa mãe, decidiu que a culpa era dela. Benjamim
tinha chegado à beira da morte porque ela e o marido nunca impuseram
limites ao bom humor naquela casa. Acabaram por viciar o garoto em dizer
sempre o contrário do contrário do contrário, o que era engraçado, mas
podia levar uma pessoa à loucura. Abel e Daniel encontraram a saída,
sozinhos e sem maiores dificuldades, mas seu filho mais velho era um
respirador bucal, o pediatra sempre dizia. Daí a lentidão quase irritante em
reagir aos estímulos externos. No futuro, a criança poderia ter problemas
de postura, de atenção e de apetite, o pediatra dizia. Aconselhou
tratamento imediato. O mundo que Benjamim havia conhecido quando
criança, com leis que mudavam o tempo todo, tinha deixado cicatrizes
horrendas na sua cabeça. Era especialista em todo tipo de virose, o
pediatra. Benjamim foi tratado do transtorno respiratório, mas a cara de
susto nunca desapareceu. Ele poderia realmente ficar deprimido — ela
imaginava, sem querer pensar na palavra “desgosto” —, porque, se tudo era
motivo de piada, a vida perdia todo o sentido. Se nada parecia sólido, não
havia ao que se agarrar. Benjamim tinha quase morrido por ser espirituoso
demais. E a culpa era dela. Era muito competente, no fim das contas, o
pediatra.
No fim de 2007, já com uma conta no banco em seu nome e um
emprego num dos maiores museus de belas-artes da cidade, Benjamim
saiu de casa. Uma saída triunfante para dentro da vida, disse a mãe, que só
não usou seu capacete de legionário romano para dar um ar de solenidade
à ocasião porque poderia trazer más lembranças ao menino, lembranças de
um tempo menos inocente. Mas era a verdade: seu filho finalmente saía
para o mundo, como Telêmaco.8 Estava orgulhosa. Sorria muito. A conta
era conjunta, e os poucos milhares de reais depositados foram presente
dela, mas já era um passo. O emprego no museu também tinha sido
iniciativa dela, mas sem a competência do filho e a memória do finado
professor Costa e Oliveira, a quem pelo menos um terço da atual
administração devia seus próprios cargos, de nada adiantaria.
Lá embaixo, na calçada, uma mulher muito feia o esperava, arrumando
algumas caixas de papelão no porta-malas do carro. Chamava-se Natália
Falcão e era atendente de telemarketing. Os dois se conheceram pela
internet, num fórum de discussões sobre história da arte, e se apaixonaram
antes mesmo de trocarem fotos, segundo o filho. Assim que soube que
viveriam juntos, sem casamento, a mãe pesquisou na internet o tempo
necessário para que o governo brasileiro reconheça uma relação como
“união estável”. Minutos antes de sair, Benjamim contou que dedicaria
todo o seu tempo livre à pintura. A porta estava destrancada. Ele saiu para
chamar o elevador, com a última mala numa das mãos, e deu tchau com a
outra. O sorriso não tinha uma ponta sequer de malícia, o gesto, nenhuma
intenção além de dar tchau. Seu mais velho estava, enfim, curado. A união
estável não depende de uma determinada quantidade de tempo para ser
configurada. D. Noemi não pôde conter uma lágrima.
Benjamim viveria na Glória.9
13. O narrador distorce a verdade em prol do trocadilho, o que não chega a ser
condenável, ao menos não esteticamente. No entanto, há de se fazer justiça: Santa
Maria Madalena é, sim, figura importante da história brasileira. Foi o primeiro
município do país, por exemplo, a oficializar um divórcio.
14. Descoberta de esquina
OSCAR WILDE: [Heráclito] Por que você se esforça para ser amado por pessoas que
amam somente o contrário do que querem amar?
HECATEU DE MILETO, O LOGÓGRAFO: Pessoas, que pessoas?
14. As origens do império da piadinha sem graça sobre qualquer coisa são obscuras.
Trata-se de um regime em que os assuntos antes considerados importantes são alvo de
constante piada, ao passo que informações irrelevantes são alçadas ao primeiro plano,
para que se possa fazer piada despreocupadamente sobre coisas desimportantes. Esse
fenômeno, ainda que não seja produto da internet, foi intensificado após o seu
surgimento, que ocasionou uma desenfreada multiplicação de informações
irrelevantes, como se o mundo, de fato, fosse um conjunto acachapante de notas de
rodapé presumivelmente cômicas, e não o texto denso e terrível da condição humana
— o que, de certa forma, não deixa de ser engraçado.
15. Paula Lavalle é uma personagem do romance Los premios, de Julio Cortázar. À
época, não por falta de figuras históricas reais, os nomes de personagens de ficção
criadas por escritores mortos estavam virando moda no Café Aleph.
16. A volta do pastor Abel
E começaram a alegrar-se.
Lucas 15,24
Abel chegou ao Rio de Janeiro num domingo, depois de passar anos sem
ver a mãe e os irmãos e uns dias na casa de d. Letícia. Ninguém ousou
dizer que era estranho visitar uma tia-avó distante, em Santa Maria
Madalena, antes de ir até Copacabana, a poucos quilômetros do Santos
Dumont, o aeroporto em que havia desembarcado. Mas, durante a hora e
meia em que o esperaram reunidos na enorme sala do apartamento de d.
Noemi, pensaram uma ou duas vezes nisso.
Daniel, Ana e o filho estavam lá, assistindo a um programa de auditório
no canal quatro. Benjamim, sentado numa poltrona que havia sido do pai,
olhava para o sobrinho, muito crescido, e repetia de quando em quando,
admirado, que o sobrinho estava muito crescido. Natália, de pé,
observando a praia lá fora, temia que a ocasião festiva piorasse a doença do
marido. Ele podia rir de repente ou de alegria e ter uma convulsão ali
mesmo. Pendurado na parede, ao lado dela, um retrato de Jesus Cristo
com o cavanhaque repartido ao meio, de quinhentas peças e moldura
dourada.
A TV apresentava uma sequência quase interminável de pessoas caindo.
Crianças caindo de cara no bolo, gordos caindo em rios, velhos caindo de
cadeiras, mães caindo em piscinas com os filhos no colo, adolescentes
caindo de bicicletas, noivos caindo de emoção no altar etc. e etcétera. As
risadas da claque mecânica picotavam o silêncio, as de Daniel, um pouco
mais escandalosas, também. Natália estava apavorada com a possibilidade
de Benjamim achar alguma graça em tantas quedas. Mais cedo, tinha
tentado contar à sogra, da maneira mais sutil possível, que a doença de
zombaria de seu filho mais velho talvez estivesse se manifestando de novo.
D. Noemi, no entanto, não estava em condições de entender sutilezas.
Andava da cozinha para a sala e da sala para a cozinha, inquieta, gastando
prematuramente o café, bolinhos e suco de laranja que havia comprado.
Abel estava a caminho. Finalmente conheceria a nora americana.
Espalhadas pela casa, pequenas peças de quebra-cabeças perdidas. No
pescoço, um escapulário.
Intrigado pelo patuá e pelo Jesus pregado na parede, Benjamim
perguntou à mãe se ela tinha se convertido ao cristianismo por ocasião da
visita ilustre. D. Noemi respondeu, seca, que era um sintoma de velhice.
Explicou que os velhos têm medo de não existir mais nada depois da morte
e ainda mais medo do destino que espera aqueles que morrem sem ter um
retrato do Salvador em casa:
— Uni o útil ao agradável: gosto de montar quebra-cabeças e precisava
de um retrato de Jesus — disse, apontando para o quadro e rindo junto
com a campainha.
Abel estava bronzeado e bem mais musculoso. No rosto, algumas rugas,
que o trabalho ao sol lhe dera, e barbas bem aparadas, já com uns tantos
fios brancos, apesar dos vinte e pouquíssimos anos de idade. Estava ainda
mais bonito, quase radiante. Brilhava, quase. Benjamim achou que parecia
um surfista. Daniel não achou nada; sabia que ele ajudava a construir casas
para os desabrigados e que na África fazia muito sol. Era natural que
ficasse mais parrudo e moreno. Além do quê, se considerava mais bonito
que o caçula. E ganhava mais. Abel poderia entrar ali iluminado como
ardentes brasas de fogo, e mesmo se o fogo subisse e descesse por entre os
familiares, e mesmo se o fogo resplandecesse, e mesmo se do fogo saíssem
relâmpagos, Daniel não perceberia nada de mais.
Não houve fogo. Abel entrou sem muita cerimônia, abraçou os irmãos,
beijou as cunhadas e bagunçou os cabelos do sobrinho, deixando a mãe
por último, que já olhava com olhos que têm os filhotes de cachorro.
Vestia terno cinza e gravata vermelha. Falava muito e alto. Treinado para
encontrar Jesus, notou rapidamente o quadro na parede. Sorriu e abriu os
braços, com afetado ar bonachão:
— Ô, dona Noemi, a senhora nem envelheceu nada…
Ela também sorriu, não com tanto gosto.
Além da luminosidade e de um estranho sotaque, Abel trouxe consigo
uma mulher minúscula e loira, que entrou no apartamento com a cara
boba dos que não estão entendendo uma palavra sequer, mas sabem que é
o caso de sorrir. Chamava-se Ruth, e o marido explicou que era filha de
um pastor da Carolina do Sul, que aparecia muito na TV de lá: South
Carolina, ele disse. A mulher concordou com a cabeça e repetiu: South
Carolina. Silêncio longo. Sorrisos. O caçula contou, em inglês, que Ruth e
Naomi eram melhores amigas na Bíblia e que ele achava a coincidência
um ótimo presságio. Silêncio breve. D. Noemi apertou a mãozinha ossuda
de Ruth e sorriu. As outras duas noras também sorriram, Ana um pouco
antes de Natália, que não falava inglês, mas pelo sorriso da outra entendeu
muito bem o resto.
Jantaram, em inglês, pato ao molho de laranja, muito elogiado por
todos. O vinho era ótimo. Daniel e Benjamim abriram uma garrafa cada.
Abel tomou só uma taça e contou que a esposa não podia beber porque —
pausa para criar suspense — estava grávida. Alvoroço, palmas, bons votos.
Ruth disse que criariam o filho no Brasil, Benjamim bateu palmas e deu os
parabéns antes que a cunhada terminasse a frase. Abel, continuou a
mulher, queria fundar uma igreja em Santa Maria Madalena, que tem o
terceiro melhor clima do país. O pastor Abel confirmou e pigarreou para
citar um salmo ou um provérbio. Alvoroço, palmas, bons votos. Silêncio
breve. Sorrisos.
Depois, Benjamim traduziu tudo para o português, para que Natália
entendesse.
Quando a tradução já começava a ficar desconfortavelmente longa, a
mãe perguntou, para puxar um assunto paralelo, como estava d. Letícia.
No mesmo instante, Abel começou a tentar explicar, para puxar um
assunto paralelo, por que estava voltando ao Brasil. D. Noemi deixou que o
filho falasse primeiro. Abel disse, em inglês, que era porque não aguentava
viver longe da família, que tanto amava. Todos fizeram os ruídos agradáveis
— ouns, aaahns e ehns — de quem está sendo agradado (menos Natália).
A verdade, porém, era que o caçula de d. Noemi não tinha feito sucesso
como pregador em nenhuma cidade para a qual o mandaram. Havia
aprendido satisfatoriamente a retórica e discursava com extraordinária
inflamação — gritava, saltava e dava aleluia-irmãos nos momentos
apropriados —, mas não conseguia chegar a conclusões luminosas sem
uma nota sombria. Na maioria de suas mensagens, por exemplo, dizia que
o ser humano não aprende pelo amor e pelos atos de bondade dos outros,
mas por meio da terrível sensação de vergonha que o amor e os bons
exemplos causam no espírito dos homens que os testemunham. Em
algumas ocasiões, chegou a dizer que só a inveja era o que movia o
homem. Essas pequenas notas, como se pode supor, eram um balde de
água fria no fogo divino. Não demorou até que os superiores de Abel
percebessem que sua pregação deixava os fiéis amuados. Então, foi sendo
transferido para cidades cada vez menores e, finalmente, afastado do
púlpito. Após passar seis meses construindo casas e ajudando na
distribuição de alimentos aos carentes, resolveu voltar, também porque
sentia uma saudade danada de feijão.16
D. Letícia estava bem, começou Abel. E só então Natália soltou um
“oh” e deu os espalhafatosos parabéns aos cunhados. Todos tiveram que
reencenar a alegria de minutos antes: alvoroço, palmas, bons votos.
Silêncio breve. Sorrisos. Alguns ai-ais e que-bons suspirados. Silêncio
longo.
Enfim, d. Letícia estava bem. Era uma senhorinha ativa, disse o pastor.
Tinha dito ao casal que estava escrevendo um livro sobre os Costa e
Oliveira que mudaria o mundo, mas não quis mostrá-lo porque ainda não
estava pronto. Ruth contou, como que perguntando se era mesmo verdade,
que d. Letícia também lhes dissera que todos os Costa e Oliveira morrem
de desgosto, mas não soube traduzir o sentido luso-tupiniquim de
“desgosto” para o inglês. Estava preocupada com o filho futuro. Natália, ao
decodificar a palavra “desgosto” na fala rápida da cunhada, sentiu-se
aliviada. A conversa era sobre tristeza, graças a Deus. Silêncio breve. O
casal viveria no sítio da tia. Havia espaço. Era um sítio grande. Sorrisos.
Para o pequeno escândalo de Abel, Benjamim acendeu um cigarro. Ana
se levantou e carregou o filho alérgico, que dormia havia quase meia hora,
para um dos quartos. Quando voltou, pôs um cigarro na ponta de uma
piteira de marfim e acendeu-o como Hepburn o acenderia se estivesse ali.
Daniel, Natália e d. Noemi também acenderam os seus. Os dois irmãos
mais velhos já estavam bêbados.
Tantos cigarros acesos de repente deram a Ruth a impressão de que
entrariam num assunto delicado, talvez a morte do sogro. Talvez
estivessem se preparando para explicar que no Brasil as pessoas realmente
morrem de desgosto. Mas ninguém disse nada. Fumaram quietos. Abel
comentou algo que se perdeu na fumaça e riu como os Alencar Costa e
Oliveira geralmente riam quando zombavam de algo. Natália olhou
nervosa para os demais, com medo de que Benjamim gargalhasse também.
Silêncio longo. Do outro lado da mesa, Daniel observava a americana, que
afinal não era tão sem graça assim. Era realmente muito pequena, e o
formato da cabeça não parecia normal, mas o resto do corpo era
harmonioso, como uma boneca de tamanho quase natural. Imaginou
como seriam os seios e as coxas.
— Lembra da vez que a gente foi a Petrópolis? — disse a mãe, do nada,
em português. — Vocês eram pequenininhos. Lembram da casa do Santos
Dumont?
Ninguém se lembrava.
— Foi um bom passeio. O pai de vocês ainda era vivo.
Ninguém se lembrava. Ruth voltou a sorrir o sorriso de quem não está
entendendo absolutamente nada.
— Aí seu pai disse pra mim que Santos Dumont não gostava de sexo.
Foi uma coisa estranha, ele me dizer isso, em Petrópolis, na casa do Santos
Dumont. Cheio de turista por perto. Falavam todo tipo de língua, os
turistas. E seu pai me vira e diz isso pra mim. Santos Dumont não gostava
de sexo. Não gostava mesmo. E inventou o avião.
Silêncio breve.
— Vai ver que tem gente que nasce sem conseguir amar as pessoas só
pra fazer alguma coisa importante, como inventar o avião.
— Os irmãos Wright inventaram o avião, mãe — respondeu,
finalmente, qualquer um dos irmãos.
Silêncio breve.
— Pois é. Tem coisa que a gente acha de uma importância…
Silêncio longo. D. Noemi passou os dedos pela omoplata — onde estava
tatuado o globo terrestre, já muito desbotado — e depois pela correntinha
de ouro do escapulário.
Ruth concordava alegremente com a cabeça.
16. Saudade de feijão é uma moléstia comum entre os brasileiros que vivem no
exterior, mesmo em regiões das quais o feijão é nativo.
17. Reforma
17. Assassinada com a Bíblia na mão é um disco do grupo de rock paulista Nada Mais
que a Verdade, conhecido por utilizar manchetes do extinto periódico Notícias
Populares como títulos de suas músicas. Segundo o release da banda, o grupo é
considerado vanguardista por “fazer experimentações com a histeria coletiva”. Sua
canção de maior sucesso é “Nasceu o diabo em São Paulo”.
18. Jogo de cozinha
Esta seção tem por objetivo apontar os danos causados pela proliferação
desenfreada, nos mais diversos ecossistemas do planeta, da espécie popularmente
conhecida como “árvore genealógica”. Após 3 (três) anos de pesquisa, verificou-se
que a presença expressiva dessa espécie está diretamente relacionada à
apresentação de sintomas como a cegueira temporária, variadas formas de delírio,
visão dupla, taquicardia, roubos, furtos, monarquia, intolerância religiosa, filosofia
dualista ou arborescente, egoísmo, acumulação de capital, noções profundas de
sujeito e objeto, utilização constante do termo “árvore da vida” em verso e prosa, a
profissão de relojoeiro e a de economista, visitação de jardins botânicos com o
único intuito de tirar fotografias, festividades como o dia das mães, dia dos pais e
dia dos avós, e, especialmente, o tríptico parricídio/fratricídio/matricídio, e,
especialmente, a epidemia de desgosto que ameaça se espalhar pelo planeta
(Terra) e aniquilar a raça dos homens (humana).
E era seguido de outro que, ao que tudo indicava, não mantinha relação
alguma com o que o antecedia:
José Lorde Costa e Oliveira nasceu em 1891, nos arredores de Santa Maria
Madalena. Tinha o apelido de Dindindão até a ascensão do Getúlio Vargas ao
poder. Depois, por muito se parecer ao Getúlio Vargas, ganhou os apelidos “O
homem” e “Getúlio”. Detestava ser comparado ao Getúlio Vargas. Morreu em
1939. Causa mortis: desgosto (ou Getúlio Vargas). (Acompanha fotografia de
Getúlio Vargas fumando charuto.)
Maria das Dores Costa e Oliveira Magalhães nasceu no primeiro quarto do
século XIX. Sua filha mais nova fugiu com um comerciante de charque e foi viver
em Maricá. Faleceu por volta de 1850. Causa mortis: desgosto (ou Maricá).
(Acompanha cartão-postal de Maricá.)
Simão Genuíno Costa e Oliveira nasceu em 1901, no Rio de Janeiro. Não
conseguiu ser deputado ou, sua outra opção, rainha de Sabá. Morreu em 1942.
Causa mortis: desgosto (ou Governança).
Antônio Abraão Costa e Oliveira nasceu em 1955. Ficou doutor e enriqueceu na
capital. Sua esposa o presenteou com as obras de Maiakóvski e ele ficou doudo.
Causa mortis: desgosto (ou Maiakóvski).
Não há coisa sobre a terra que seja a coisa mesma: entre nós e as coisas mesmas
existe um muro transparente, mas que não se pode pular. “Olhe, mas não toque”,
é o que diz o diabo. A virtude do diabo não está em suas entranhas, mas em seu
temperamento humorístico. E pelo humor, Ele-o-tinhoso pode destruir e causar
tristeza. Mas veneno com veneno se combate. E Deus é também um deus de
alegria.
Portanto, aquele messias do Messias, que virá a curar a humanidade da
iminente epidemia de desgosto, deve ser como Epimênides de Creta (Tito 1,12),
que falava por meio de engraçados paradoxos e disse que todos os cretenses são
sempre mentirosos. E não era Epimênides de Creta um cretense? Ora, pois, sim,
era-o. E não foi esse Epimênides quem livrou a cidade de Atenas de uma praga?
Pois então. O Costa e Oliveira que salvará o mundo da epidemia do desgosto deve
ter as qualidades do cretense, isto é, ser um paradoxo ambulante e gracioso. Pois as
regras da boa Lógica não valem para Deus, muito menos para o diabo.
A respeito, pois, do princípio geral do cosmo, basta o que eu disse.
21. Que dá para outra rua, que dá para outra rua, que dá para outra rua e assim por
diante.
26. Conversa fora
22. Estrela esta que, no caso específico, é um corpo celeste de menor grandeza, dado
o tamanho da cidade.
27. Taberna da Glória
23. [Sic].
28. Anedota do homem vestido de século passado
25. É uma fala do filme A rosa púrpura do Cairo (1985), de Woody Allen.
30. Ninguém rouba ninguém
Ó
— Ótimo. Tenho que ir. Você tem todo o tempo do mundo agora. Eu
não.
Saiu e fechou a porta no instante em que Benjamim começava a rir do
gracejo. Deu um passo para o lado e contou um minuto e meio no relógio.
Em seguida, fingindo que se esquecera de dizer algo não tão importante
assim, voltou:
— Ah, por favor: diz pra sua mãe que eu não pude fazer nada. O
financiamento, o ministério, as prioridades, você sabe…
— Sei, sei.
34. Contagiante
27. A matéria lida pelo profético pastor Abel é de autoria de Marta Salomon e foi
publicada no jornal O Estado de S. Paulo.
35. Um homem sério
As perguntas que o Reis lhe enviou, dias depois, foram respondidas com
a maior sobriedade que Benjamim pôde simular. Não contou nenhuma
piada, evitou a autoironia, falou do mercado e do público de artes como
quem fala da própria mãe, com muitos eufemismos. Fez o possível para
deixar claro que, se não fosse artista, morreria, pois uma coisa estava
inalteravelmente atrelada à outra. Tentou ser irreprochável. Mentiu que os
cigarros que fumava eram enrolados por ele mesmo. Como fazia frio,
escreveu que estava usando um cachecol felpudo e roxo. Usou a palavra
“patuá”, que considerava requintada, algumas vezes. Fez um elogio
discreto da pobreza e da timidez, supostos patuás de todo artista que se
preza. Confessou ser pós-moderno, porque ser pós-moderno significava
aceitar o modo cultural dos seres humanos sofisticados, o que não era um
elogio, mas sim uma condenação ao silêncio e à incompreensão do
público. O que ele fazia, explicou, não podia ser mais claro para ele
mesmo. Citou Schlegel. Depois, para equilibrar o discurso, citou uma
entrevista de Cartola, concedida à revista Manchete. Revelou que não
gostava muito de Paris. Manifestou grande apreço pelos socialistas
utópicos. Escreveu que sua obra inteira não passava de um mapa para
lugar nenhum, com indicações desencontradas. No fim, agradeceu a
atenção do crítico sem usar nenhuma vez a palavra “oportunidade”.
28. Benjamim descobriu a história de Jorge Lopes Filho, vulgo Buraco Negro, por
acaso, na internet. Jorge havia alcançado o status de microcelebridade virtual após
publicar um vídeo no site de compartilhamento YouTube, no qual canta a cappella
um trecho de um funk em louvor à facção criminosa a que alegadamente pertencia.
Depois, com lágrimas nos olhos, confessa sonhar com a carreira de cantor. Meses
mais tarde, segundo os jornais, o menino foi baleado nas costas durante uma incursão
da polícia no morro da Serrinha.
36. A morte de Pompônio
Life is life and fun is fun, but it’s all so quiet when
the goldfish die.
Beryl Markham
31. Ruth queria batizar a filha com o nome da sogra. Abel, no entanto, após consultar
as Escrituras, decidiu-se por “Mara”: “Não me chameis Noemi; chamai-me Mara,
porque grande desgosto me tem dado o Todo-Poderoso” (Rute, 1,20).
41. No inferno
32. Evitava os urinóis por respeito a Marcel Duchamp, não por vergonha, dizia a si
mesmo.
45. Apud
33. O autor crê que Benjamim e o narrador estejam se referindo ao “Poema só para
Jaime Ovalle”, de Belo Belo (1948). No entanto, parece também haver referências ao
“Poema do beco” (Estrela da manhã, 1936) e a “Maçã” (Lira dos cinquent’anos, 1940).
46. Ano-Bom
34. O autor pede encarecidamente ao leitor que não atire conchas de feijão no muro
do Hotel Turístico.
47. Dia da Fraternidade Universal
48. A 117a morte de Hecateu de Mileto, o Logógrafo
36. A edição de dezembro de 2009 de Marie Claire estampava a atriz Penélope Cruz
na capa, bem como os dizeres “Horóscopo 2010: Amor e sexo em alta no ano de
Vênus” e “Festas com muito brilho: Looks repletos de paetês dourados e cintilantes”.
37. O personagem sentiu, com o perdão da expressão piegas, que finalmente se
tornaria o homem que planejara ser, ou melhor, que estava destinado a ser.
53. Silêncio breve
A voz de Paula, naquelas duas ou três frases. Pelo que pôde perceber, ela
falava com um sotaque muito tênue, que parecia não ter uma língua de
origem. Um sotaque independente, soberano e ilhéu. A enseada de
Botafogo surgiu debaixo do sol, uma fita luminosa na água preta
acompanhava o carro. Uns poucos veleiros singravam. Mais ao fundo, os
navios maiores, demorados. Lá da Glória, de vez em quando, ele podia
ouvir o apito dos grandes cargueiros que adentravam a baía ou iam
embora. Um lamento longo e grave, como o de um animal enorme que de
repente descobre que vai morrer. Na época em que ainda viviam juntos,
Natália se agarrava aos braços dele quando um desses apitos ecoava na
madrugada. Davam medo, ela dizia. Chorava. Achava a coisa mais triste do
mundo. Não conseguia dormir depois. Os apitos davam uma bruta solidão,
ela dizia.
38. Não se pode saber ao certo, mas é provável que algum dos membros tenha feito
piada a respeito. No entanto, o gracejo foi convertido em “Oswald de Andrade” ou
em “Maurice Ravel” e se perdeu.
58. Inauguração
Conceição morreu dali a seis meses, com a idade exata dos profetas. Ela
mesma escolheu seu leito de morte, o antigo arquivo morto de d. Letícia,
que, depois da volta de d. Noemi ao Rio de Janeiro, estocava os exemplares
da Breve e muito concisa história da família Costa e Oliveira que Abel
ainda não tinha enviado às livrarias da capital. A velha se instalou no
quarto e avisou com um grunhido que não sairia mais de lá. Nesse dia, a
família, Ambrósio inclusive, se reuniu em volta dela e esperou, dando os
adeuses silenciosos que se dão aos moribundos, mas Conceição os fez
esperar um pouco mais, por diversão ou qualquer outro motivo. O
teatrinho se repetiu por duas semanas: a família se reunia ao redor da
velha, ela olhava para eles, depois para o espelho que devolvia imagens
mais matusalênicas que as originais, e não morria. Aos poucos, um a um os
Costa e Oliveira foram desistindo de assistir ao momento da passagem.
Quando a velha morreu, só Ambrósio estava ao seu lado.
A cena não foi tocante. Conceição morreu de um riso e uma tosse
acatarrada, logo após contar ao neto, com a voz quebradiça de quem não
fala há muito tempo, a melhor piada que havia ouvido em toda sua vida.
FUNDO FALSO
Epílogo
41. Espero que o leitor tenha saído deste romance com a mesma sensação.
RENATO PARADA
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor
no Brasil em 2009.
Capa
Mateus Valadares
Foto de capa
Danita Delimont/ Getty Images
Imagem de miolo
DR/ Acervo pessoal do autor
Revisão
Clara Diament
Angela das Neves
ISBN 978-85-545-1255-2
Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a
pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles.