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FACULDADE DE LETRAS

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS


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Dois pesos e duas medidas Dois pesos e duas medidas
Luiz Felipe Pondé Francisco Bosco
FOLHA DE SP - 20/01/2014 O GLOBO - 05/03/2014
http://avaranda.blogspot.com/2014/01/dois-pesos- http://substantivoplural.com.br/dois-pesos-e-duas-
e-duas-medidas-luiz-felipe.html medidas-2/

Por qual razão seria incorreto fazer piadas sobre Minorias são discriminadas e sofrem consequências
negros e gays, mas não sobre o cristianismo? reais por causa de preconceitos que têm em mentalidades
como as dos monoteísmos uma fonte privilegiada de
Não sou religioso, só frequento templos vazios. formação
Tampouco considero o ateísmo prova de maior
inteligência ou coragem intelectual. Dias atrás, nesta Na semana passada foi noticiado que a Delegacia de
coluna, ataquei as dimensões picaretas das religiões. Crimes Raciais e Delitos de Intolerância vai investigar o
vídeo “Especial de Natal”, do Porta dos Fundos, a partir
Por que digo isso? Porque hoje em dia, em épocas de de uma representação feita pelo deputado Marco
exigências de pureza ideológica (no mundo da Feliciano. Nela, Feliciano argumenta que o filmete
cultura vivemos um fascismo descarado dos possui “conteúdo altamente pejorativo […] e de forma
bonzinhos, baseado em difamação de quem não infame atacou os dogmas cristãos e a fé de milhares de
frequenta as ideias que eles frequentam), se faz brasileiros que comungam deles, ferindo dialeticamente
necessário apresentar algumas "credenciais" quando o direito fundamente [sic] à liberdade religiosa”. Por si
se vai tratar de um assunto delicado que pode só, a notícia é soporífera (embora lamentável, como
ofender a sensibilidade totalitária dos bonzinhos. sempre). Mas dias depois, sem citar diretamente esse
Quando ofendidos, os bonzinhos passam à gritaria, episódio, o colunista da “Folha” Luiz Felipe Pondé
principalmente nessa masmorra escura que são as publicou uma coluna levantando questões sobre as
redes sociais. relações entre humor, preconceito e liberdades, entre
outras. A discussão é oportuna.
Apesar de não ser religioso, conheço o suficiente de
algumas religiões para saber que muitas delas Pondé se pergunta: “por que alguns acham politicamente
carregam um saber de valor inestimável, fato este incorreto fazer piadas com negros, índios, gays e
que escapa a muitos dos críticos banais das religiões. nordestinos (e julgam justificados processos legais contra
Você identifica um ignorante quando ele diz que a quem faz tal tipo de piada), mas julgam correto fazer
Bíblia é um livro opressor. piada com os ícones do cristianismo?” O trecho entre
parênteses me parece conter um problema mais difícil,
Dito isso, vamos ao que interessa. Há alguns anos, mas a pergunta é tão fácil de responder que causa espanto
um cartunista dinamarquês passou por poucas e boas sua formulação por uma pessoa inteligente. Negros,
quando fez piadas com Maomé. Lembro-me de índios, gays e nordestinos são minorias, identidades que
muitos dos bonzinhos defenderem o direito dos sofrem preconceitos, respectivamente, de “raça”, etnia,
muçulmanos de se ofenderem com a piada e jogarem sexualidade e região. Já os cristãos formam o maior
a atitude do cartunista no saco indiferenciado do grupo religioso do planeta, com cerca de 33% da
preconceito ocidental contra o Islã. população mundial (seguidos pelos muçulmanos, com
22%). No Brasil, segundo o censo de 2000, quase 90%
Fico feliz que no Brasil ainda se possa fazer humor da população brasileira é de cristãos.
com as religiões e que quem faz piada com Jesus
(que acho um cabra-macho, mas não acho que seja A diferença quantitativa ainda não é, entretanto, a
Deus) possa fazê-lo, ganhar dinheiro com isso e não resposta à pergunta de Pondé, mas ajuda a chegar até ela.
ser ameaçado de morte. Ou, quem sabe, perder o Minorias são discriminadas e sofrem consequências reais
emprego. Pedir a cabeça de alguém é um pedido por causa de preconceitos que têm em mentalidades
comum dos bonzinhos quando leem algo com que como as dos monoteísmos uma fonte privilegiada de
não concordam. formação. Não estou dizendo que é a única, nem que,
empiricamente, todo cristão é preconceituoso (pois há
Acho que o humor deve ser livre porque ele é uma outros fatores em jogo), mas sim que há uma relação
das dimensões por meio das quais o espírito humano estrutural, fulcral, entre a crença em um princípio
sobrevive, se alimenta e reflete sobre sua condição. positivo do mundo (Deus) e os preconceitos contra tudo
Não partilho da ideia de que o humor seja uma forma o que os dogmas ligados a esse princípio condenam.
menor de cultura. Por isso, discordo da tentativa de Monoteísmos são mundos fechados. Mundos fechados
qualquer grupo, religioso ou não, de querer barrar ou tendem a odiar tudo aquilo que contraria seus dogmas,
processar quem quer que seja por ter feito piada do pois a diferença coloca em questão esses dogmas. É um
que for. problema esclarecido pela psicanálise: o centro do eu, do
imaginário de um monoteísta, corre sempre risco de

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Mas me pergunto uma coisa: por que alguns acham desabar diante da diferença. Ora, a agressividade está
politicamente incorreto fazer piadas com negros, diretamente ligada aos abalos no imaginário (que
índios, gays e nordestinos (e julgam justificados sustenta o eu dos sujeitos).
processos legais contra quem faz tal tipo de piada),
mas julgam correto fazer piada com os ícones do A diferença entre fazer piada com minorias e maiorias
cristianismo? não está portanto na diferença quantitativa entre seus
grupos, mas sim no fato de que as maiorias em questão
Claro, quem pratica esse tipo de critério, com dois são estruturas mentais fechadas, que — apenas elas —
pesos e duas medidas, é gente boazinha e com atentam contra o pleno direito à existência das minorias
opiniões corretas. Defendem a própria liberdade, (que por isso, e não pela dimensão quantitativa do grupo,
mas negam imediatamente a liberdade de quem os são chamadas de minorias). Fazer piadas com minorias
aborrece. O nome disso é incoerência. A democracia reforça o preconceito e o atentado a esses direitos. Fazer
só vale para quem nos irrita, mas os bonzinhos não piadas com maiorias é uma tentativa de esvaziar esse
pensam assim. preconceito, ridicularizando a mentalidade fechada que
quer oprimir. Por isso os “dois pesos e duas medidas” que
Não me surpreende a incoerência dos bonzinhos, Pondé denuncia são, ao contrário, justos: uma vez que o
porque o que faz alguém ser bonzinho hoje é a falta mundo tem pesos e medidas diferentes, fazer justiça está
de caráter. Ser do "partido dos bonzinhos" hoje dá em adequar-se a essas diferenças, para repará-las.
dinheiro, ganha editais, cargos no governo, fotos em
colunas sociais, convites e prêmios culturais. Por outro lado é um tanto oportunista o personagem
Identificar um bonzinho hoje em dia como resistente criado por ele nessa coluna, o “bonzinho” que defende o
ao poder é uma piada e tanto! Eles estão no poder até direito dos muçulmanos de se ofenderem com uma piada
no RH das empresas e na magistratura. contra o islã, mas repudia o mesmo direito dos cristãos.
Aqui, já que o peso e a medida são equivalentes, o mesmo
Os cristãos têm todo o direito de ficar bravos com as argumento vale para uns e outros: deve-se defender o
piadas com Jesus (que aliás, costumam ser ótimas). humor sobre os discursos do islã e do cristianismo, uma
Mas, acho "engraçado" (já que estamos falando de vez que esse humor não atenta — diferentemente do que
humor) alguém não perceber que vivemos num afirma Feliciano em sua representação — contra a
mundo em que tirar sarro de cristão pode, mas de liberdade religiosa dos cristãos e muçulmanos, atenta
outros grupos não. Por quê? apenas contra o aspecto opressor que há nessas religiões.

Fácil: porque ninguém precisa ter "cojones" para Não acredito que “a moçadinha que quer salvar o Ártico”,
tirar sarro de cristão. No mundo da cultura, falar mal “o movimento estudantil” ou “gente que vive falando mal
de religião (menos da indígena, afro e budista) é da polícia mas treme de medo e chama a polícia logo que
bater em bêbado na ladeira. sente sua propriedade privada em risco” moveriam
processos contra piadas que os tivessem como objeto.
Proposta: que tal tirar sarro das pautas dos Discursos abertos são por definição abertos a críticas. A
bonzinhos? Tipo fazer piada com as "jornadas de que respondem com contracríticas, e não com tentativas
junho". Ou da moçadinha que quer salvar o Ártico. de calá-las.
Ou de gente que vive falando mal da polícia, mas
treme de medo e chama a polícia logo que sente sua Ps: De passagem, Pondé acaba tratando a polícia como se
propriedade privada em risco. Ou do movimento fosse Deus. Segundo a caracterização da frase acima,
estudantil. Ou de intelectual que glamoriza os quem a critica não pode convocá-la. Mas, diferentemente
"rolezinhos". Ou das feministas. Ou de ateus da lógica do dogma monoteísta, criticar, na lógica do
militantes. Ou do exército da salvação PSOL e mundo moderno, não ameaça a existência de nada: ao
PSTU. Ou de quem diz que bandidos são vítimas contrário, procura assegurar o aperfeiçoamento de tudo
sociais. que existe.

É isso aí: que tal fazer piadas com os preconceitos


dos bonzinhos? Missão impossível?

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