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GAZETA DO POVO

42 EDIÇÃO SEMANAL, DE 11 A 17 DE AGOSTO DE 2018

Ilustração: Marcos Tavares/Thapcom


ve, os estados com legisla-
ções menos permissivas ao
aborto têm menor mortali-
dade materna. Segundo es-
ses estudos, o que efetiva-
mente diminui a mortali-
dade materna é a melhora
do nível educacional das
mães e dos cuidados ofe-
recidos à gestante. Ou se-
ja, se a meta for realmente
evitar a mortalidade ma-
terna, esses deveriam ser o
foco das campanhas.
Além disso, há con-
sistentes evidências (de
Espanha, EUA, México e
Uruguai, por exemplo) de
que a liberação do aborto
gera um grande aumento
no número de abortos rea-
lizados nos anos seguintes.
Nos EUA, onde a legaliza-
ção ocorreu no início dos
anos 1970, os abortos reali-
zados subiram de 600 mil,
em 1973, para 1,3 milhão,
em 1979. Na Espanha, on-
de o aborto foi legaliza-
do em 1985, a prática su-
biu de 16 mil, em 1987, pa-
ra 49 mil em 1997, e pa-
ra 115 mil em 2008. Lorde
Steel, um dos líderes da
legalização do aborto na
Inglaterra, embora ainda
Seis pontos ilimitada; ela deve consi-
derar o impacto que po-
lidade, as melhores pes-
quisas publicadas em re-
defendendo essa posição,
reconheceu que não havia
centrais do debate de ter sobre as pessoas e o
mundo em que vivemos.
vistas científicas inter-
nacionais mostram que
previsto o grande aumen-
to de casos de aborto e que
sobre o aborto No aborto, não está em
questão somente o que a
no Brasil, no México e no
Chile o aborto (espontâ-
este seria usado de mo-
do “irresponsável” e “co-
mulher faz com seu pró- neo e provocado) respon- mo uma forma de contra-
❚ Alexander Moreira-Almeida prio corpo, mas o que ela e de por uma parte muito cepção”, como ele lamenta

O
o pai farão com o corpo do pequena (2% a 4%) do to- que tem ocorrido por lá.
debate de temas polêmicos como feto que geraram. Não há tal de mortalidade mater- Por fim, chegamos ao
o aborto costuma despertar “cer- nenhum argumento bioló- na, a qual vem caindo con- sexto ponto: ao contrário do
tezas” apaixonadas que são de- gico que justifique ser o fe- tinuamente ao longo das que muitas vezes se veicu-
fendidas agressivamente, em vez to parte do corpo da mu- últimas décadas. Segundo la, a oposição à legalização
de uma adequada análise das evidências lher, pois ele é genetica- dados oficiais do DataSUS, do aborto não é um con-
e argumentos apresentados. Para quali- mente diferente, tem sis- no Brasil, em 2016, houve fronto entre “homens bran-
ficar o debate atual sobre o tema, é pre- tema nervoso e circulató- 1.670 casos de morte ma- cos ricos” e “mulheres ne-
ciso esclarecer algumas questões funda- rio diferentes do da mãe. terna (relacionadas à ges- gras pobres”. O mais recen-
mentais, tanto teóricas como de supostas Ou seja, é um outro ser vi- tação, parto e puerpério). te levantamento sobre a
estatísticas apresentadas. E há seis pon- vo que depende da mãe Desse total, 3% representa- opinião do brasileiro em re-
tos centrais que devem ser considerados antes e mesmo depois de riam 50 mortes relaciona- lação ao aborto (Ibope, feve-
quando o tema é o aborto, com base espe- anos do nascimento para das ao aborto, o que é pró- reiro de 2018) mostra que a
cialmente em pesquisas de qualidade rea- ser cuidado, alimentado e ximo dos 56 casos de mor- oposição à sua legalização
lizadas em países da América Latina, pela se desenvolver. te materna relacionados ao é igual entre homens e mu-
similitude sociocultural com o Brasil. O terceiro aspecto é o aborto (induzido e espon- lheres e maior entre a po-
Em primeiro lugar, o debate sobre o da superestimação de da- tâneo) efetivamente regis- pulação de menor renda e
aborto não se restringe a uma questão dos. Há fortes indícios de trados no DataSUS. de cor preta/parda. A maio-
científica ou de saúde pública; trata-se de uma estratégia retórica de Mesmo contando com ria da população brasilei-
uma discussão principalmente ética: se superestimação do núme- considerável subnotifica- ra (80%) é contra a legaliza-
temos ou não o direito de eliminar um fe- ro de abortos clandestinos ção, chega-se a cifras deze- ção do aborto e apenas 15%
to no útero da mãe. Assim como foi fun- e de mortalidade mater- nas de vezes menores que são a favor. O apoio à lega-
damentalmente ético o debate público so- na decorrente desses abor- os vários milhares anun- lização do aborto não che-
bre abolição da escravidão no século 19 tos como justificativas pa- ciados nas campanhas. No ga a 25% em nenhum estra-
e o debate atual sobre a pena de morte. ra sua liberação. Pela fal- entanto, toda vida huma- to da população em termos
Os dados científicos podem fornecer sub- ta de dados oficiais, é sem- na deve ser preservada. de idade, sexo, renda, esco-
sídios à discussão, mas a questão bási- pre muito arriscado calcu- Assim, é preciso pergun- laridade, religião, cor ou re-
ca é se o aborto deve ou não ser pratica- lar o real número de abor- tar: será que a liberação do gião do país.
do. A ciência busca descrever como as coi­ tos clandestinos. Assim, a aborto reduz a mortalida- Temas tão relevantes e
sas são, e a ética reflete sobre como deve­ melhor estratégia é anali- de materna? Este é o nosso valiosos como a saúde, a
ríamos agir. Naturalmente, as escolhas éti- sar o número de abortos quarto ponto. Os experi- dignidade feminina e a ge-
cas devem também levar em consideração que ocorrem logo após sua mentos naturais ocorridos ração de novas vidas me-
dados científicos, pois eles nos informam legalização. Na Cidade do no México (que liberou o recem ser tratados com
qual a situação atual e quais as consequên- México e no Uruguai, os aborto em alguns estados maior rigor, equilíbrio e
cias das diversas opções de conduta. abortos efetivamente rea- em 2007) e no Chile (que busca sincera da verdade e
Com isso em mente, chegamos ao se- lizados após a liberação fo- proibiu o aborto em 1989) do bem comum.
gundo ponto: o princípio ético da autono- ram até dez vezes meno- indicam que as mudan-
mia da mulher (e do homem) deve ser le- res que as estimativas pré- ças na legislação do abor-
Alexander Moreira-Almeida,
vado em conta, mas precisa ser contraba- vias de abortos clandes- to (seja proibindo ou libe- médico com pós-doutorado pela
lanceado pelos princípios éticos da bene- tinos feitas pelos defen- rando) não impactaram as Duke University (EUA), é professor
associado de Psiquiatria da Faculdade
ficência e não maleficência (em relação sores do aborto em suas taxas de mortalidade ma- de Medicina da Universidade Federal
ao feto). A nossa liberdade de ação não é campanhas. Sobre morta- terna. No México, inclusi- de Juiz de Fora (UFJF).

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