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FABRÍCIO RIBEIRO PEIXOTO

Mestrando em Ensino de História (UFPR/Capes)


fabricio.peixoto@ufpr.br

Distopias e Ensino de História, uma reflexão teórica.1

“Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente controla o


passado.” (ORWELL, 2009. Pg47)

Resumo

As distopias notavelmente têm tomado conta dos filmes, séries e demais discursos midiáticos.
Neste trabalho pretendo promover reflexões teóricas sobre o uso de distopias no ensino de
história, mobilizando para o passado e presente o conceito deste gênero narrativo que na
literatura e ficção é usado principalmente, no futuro. Pensando em trazer as distopias para o
ensino utilizarei como fontes, um texto historiográfico de Michel Foucault, o filme Wall-e e a
HQ Maus. As fontes serão usadas como narrativas distópicas que retratam e refletem o
passado, presente e futuro e podem ser usadas para ensinar conceitos teóricos da história, com
recursos que se aproximam da realidade dos discentes. E a partir daí observar que temos
muito a aprender com as distopias, utilizando-as para o estudo da história e também, da teoria
da história.

Palavras-chave: Distopia; Ensino de História; Teoria.

Proêmio.
Há uma grande soma de distopias sendo consumidas atualmente. Os estúdios de
cinema, aplicativos de streaming, games, quadrinhos e a literatura desde o fim do século
passado encontraram um nicho de mercado promissor. As narrativas distópicas têm ocupado

1Este texto faz parte de investigação que se encontra em fase de desenvolvimento dentro do Programa de
Mestrado Profissional em Ensino de História, sob orientação da Prof . Dr.Clóvis Gruner.
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um importante papel na formação das histórias fictícias consumidas. É difícil afirmar que a
vida imita a arte ou que a arte imita vida, ma,s vejo como uma importante observação
relacionar as produções distópicas com a construção do real e no que me interessa aqui,
utilizá-las dentro do ensino de história. E então para abrir essa discussão a partir da epígrafe
extraída da famosa distopia futurista orwelliana, lançarei uma questão somente para gerar uma
reflexão inicial: Será que o ensino de história, que se desenvolve com uso da historiografia
acadêmica, não pretende em larga escala promover um controle sobre o passado?
A professora Adriana Facina, ao analisar as relações entre a literatura e a sociedade,
assim como, o uso da literatura como fonte de pesquisa para as ciências sociais, reforça que:
“A literatura não é espelho do mundo social, mas, parte constitutiva desse mundo.
Ela expressa visões de mundo que são coletivas de determinados grupos sociais.
Essas visões de mundo são informadas pela experiência histórica concreta desses
grupos sociais que as formulam, mas são também elas mesmas construtoras
dessa experiência. Elas compõem a prática social material desses indivíduos e
dos grupos sociais aos quais eles pertencem ou como os quais se relaciona.”
(FACINA, 2004. P.25)
Nessa esteira procurarei usar essa compreensão em outros tipos de discursos que não
somente o literário, onde é possível denotar que eles são parte de uma realidade que se
constrói e é construída por uma visão de mundo que aqui neste momento proponho ser
distópica.

A situação problema
Foi em 19 de março de 2020, que recebi a notícia oficial que as escolas iriam fechar
devido à chegada da Pandemia de Covid-19 em Curitiba, assim como, a recomendação dada
enfaticamente pelas autoridades de saúde de promover o isolamento, ou melhor, dizendo,
confinamento em casa. Inicialmente a proposta era que ficaríamos 15 dias reclusos, e então a
vida voltaria ao normal, lembro-me de observar em jornais e na mídia em geral a expressão:
vai passar.
Leciono história em escolas da rede pública e privada desde maio de 2009, e neste ano
fomos acometidos por uma pandemia de H1N1, as escolas ficaram fechadas por 30 dias no
mês de julho, e logo as coisas começaram a voltar ao normal, essa experiência me
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proporcionava certa segurança, visto que então imaginava que realmente conforme a mídia
propunha: tudo iria passar.
A questão é que até o presente momento a Pandemia não passou, e continuamos
imersos, ou melhor, à deriva no mar, sobrevivendo como podemos ou conseguimos as ondas
de infecções que decorrem ininterruptamente, ao menos em nosso país. Em 2020 eu não era
um náufrago como Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, mas, posso dizer que em certa medida,
me senti na “Ilha do Desespero”.
Essa angústia e desespero tornavam-se mais evidentes quando dentro do contexto
relatado tive que experimentar o modelo de aulas síncronas via softwares e aplicativos de
videoconferência e aulas assíncronas através de e-mails e demais ferramentas da internet. Já
que a pandemia não cedia, e a recomendação era manter-se confinado, as escolas
organizaram-se a promover um ensino remoto, que diante da tecnologia disponível poderia ser
ao vivo.
O professor acostumado a circular pela sala de aula, que fazia do diálogo com os
alunos, seja através de debates ou reflexões, uma ferramenta importante para o ensino,
acostumado a utilizar a lousa para fazer esquemas, apresentar conceitos e ideias. Ficou mais
de um ano preso num canto da casa em frente ao computador, dando 5, 6 e até 10 aulas
diárias, falando sozinho ou quando uma boa alma interagia e respondia aos estímulos, ainda
assim, não abria a câmera então pra mim era uma voz que vinha de uma figurinha decorativa
que os alunos utilizavam como foto do perfil, essa figurinha às vezes era um personagem de
games, animes ou séries que os alunos gostavam, ou até mesmo o Presidente da República, o
que me deixava ainda mais incomodado. Enfim, a realidade se apresentava para mim e para os
alunos através de um cenário estranho, deslocado, complexo e, distópico.
Em 2022 ingressei no Programa de Mestrado Profissional em Ensino de História, na
UFPR, e a partir das discussões desenvolvidas optei por estudar e desenvolver estratégias de
ensino que pudessem utilizar as experiências vividas pelos alunos, juntamente com as séries,
filmes, HQs, Games e Literatura, que retratam distopias, que novamente reputo serem
importantes para ensino, seja como ferramenta metodológica e também teórica. Uma breve
pesquisa no Google Ngram Viewer, o mecanismo de pesquisa de ocorrência de termos da
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Google, pode-se perceber o aumento vertiginoso no uso do termo dystopia a partir da década
de 1980.2
Observando o relato da situação problema e o objetivo geral de pesquisa exposto a ser
investigado e neste artigo procurarei promover discussões e reflexões, a fim de iniciar a
pesquisa dentro do Mestrado Profissional em Ensino de História. E a partir daí, problematizar
e porque não dizer, realizar uma reflexão teórica acerca do conceito distopia e também sobre
as razões que promovem seu surgimento e também o aumento de seu uso nas produções
culturais e midiáticas.

Uma lacuna na teoria, pesquisa e ensino.


Inicialmente gostaria então de notar que há uma lacuna e hierarquização posta entre o
ensino de história e a pesquisa. Primeiramente, é necessário observar conforme já salientado
anteriormente por Manuel Luiz Salgado Guimarães, há uma separação evidente entre o que se
produz nas universidades e o que se ensina nas escolas, essa distância, no que se refere aqui
exclusivamente ao ensino de história, sem dúvida alguma produziu e ainda produz uma
espécie de crise no ensino. Assim, é necessário compreender que o ensino também se realiza
numa dimensão de larga atuação entre a memória e o escrito, profusões de possibilidades
temáticas são evidentes tanto quanto ao que se escreve para manifestar uma memória, assim
liberando-o para o esquecimento visto que está registrado, arquivado, e o que não se escreve
que indubitavelmente, manifesta também, um interesse de esquecimento (GUIMARÃES,
2009. P.36 e 37).
Podemos então compreender que dentro da sala o professor constrói o conhecimento
apoiado por mecanismos teóricos, porém, em alguma medida ele vai selecionar o que será
ensinado e reforçado para o entendimento dos alunos que em muitas das vezes não vai
necessariamente reproduzir ou até mesmo replicar o conhecimento acadêmico produzido.
Inicialmente porque é necessário aproximar-se da realidade dos alunos, situação que em
grande medida os textos acadêmicos não necessariamente pretendem acolher. Manoel Luiz
Salgado Guimarães propõe que a historiografia pode e deveria estar mais atenta a essa lacuna

2O Google Ngram Viewer é uma ferramenta de pesquisa utilizada para demonstrar a frequência do
aparecimento de termos nos livros disponíveis na plataforma entre publicações de 1800 a 2000. Em
uma breve pesquisa realizada em maio de 2022, na base de língua inglesa, foi possível constatar que
o uso do termo dystopia a partir da década de 1980 obteve um crescimento considerável.
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existente entre a pesquisa e o ensino de história (GUIMARÃES, 2009, p. 40), a partir daí
conclama aos historiadores que a teoria deverá ser usada para propor uma metodologia que
não que seja elaborada unicamente para produzir a pesquisa, mas, também tenha o ensino de
história em seu horizonte.
Feita esta marcação, gostaria de ressaltar que não terei como objetivo discutir as
relações entre teoria, ensino de história e pesquisa, mas para avançar na construção deste
artigo procurei tão exclusivamente apontar a separação entre a Escola e Universidade para
justificar a necessidade de desenvolvimento do uso de uma abordagem que ao pensar a teoria
e a história, pense também teoria e o ensino de história, como uma finalidade e não apenas
consequência.
Dentro desta ideia proposta, é possível alegar que pensar o ensino de história poderá
ser visto não apenas como a prática advinda de uma reflexão teórica, mas também, e porque
não pensar, que ele mesmo é um objetivo da teoria e da prática (GUIMARÃES, 2009, p. 40).
Portanto, ao estabelecer seus objetivos e estratégias para construir um plano de aula, o
professor utiliza a teoria. Visto que: “uma teoria da história é uma reflexão que interroga as
formas pelas quais o pensamento histórico pode se constituir em uma especificidade
científica” (GUIMARÃES, 2009, p. 39), e a partir disto, então a teoria deverá preocupar-se a
propor uma construção conceitual que vislumbre, ou melhor, dizendo, se preocupe com o
público-alvo que conforme orientou Manoel Luiz Salgado Guimarães de forma muito bem
clara.
[...] o público-alvo, parece claro, não está constituído apenas pelos pares da
academia, mas, também pelos diferentes públicos que demandam narrativas do
passado, entre eles os alunos que devem aprender história nas escolas. É preciso,
pois, considerar como parte dos problemas da interrogação teórico-historiográfica a
reflexão em torno do ensino e da didática da história. (GUIMARÃES, 2009, p. 39)
A partir desta ideia, penso que essa separação entre a história acadêmica e a história
escolar se desenvolveu também através de uma abordagem distópica, pois, criou uma história
exclusivamente científica e em certa medida totalitária e hostil, inacessível à maioria, posta
em um lugar fechado, deslocado, cuja linguagem não pretenderia abarcar as demandas
existentes.
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A distopia na história, no passado e no presente.


Diante da proposição acenada na primeira reflexão, irei para o segundo momento e a
meu ver ainda mais importante para o andamento do meu trabalho que é pensar o uso de
distopias no ensino de história, para tanto, usarei o trabalho desenvolvido por Júlio
Bentivoglio, que relaciona História e Distopia, nesta obra o historiador, desvinculou o
conceito da distopia que geralmente na literatura é utilizado para representar um futuro, ao
alegar que para a história a distopia poderá e em larga escala deverá ser utilizada para
representar o passado.
Distopia segundo Bentivoglio, não será utilizada simplesmente como o antônimo de
utopia, que se refere exclusivamente a um lugar específico que facilmente poderá ser
encontrado, mas então, a distopia será vista como um deslugar (BENTIVOGLIO, 2021, p.21)
visto que ela retrata um lugar deslocado e em deslocamento, onde há um ambiente hostil e
problemático ao desenvolvimento da vida humana.
Vejamos o exemplo que descrevo ao pegar um trecho do capítulo III, O Panoptismo,
do livro Vigiar e Punir do historiador Michel Foucault, onde ele observou nos arquivos da
cidade de Vincennes, na França, as medidas necessárias quando era declarada a peste em uma
cidade no final do século XVII.
Em primeiro lugar um policiamento espacial estrito: fechamento, claro, da cidade e
da “terra”, proibição de sair sob pena de morte, fim de todos os animais errantes;
divisão da cidade em quarteirões diversos onde se estabelece o poder de um
intendente. Cada rua é colocada sob a autoridade de um síndico; ele a vigia; se a
deixar, será punido de morte. No dia designado, ordena-se todos que se fechem em
suas casas: proibido sair sob pena de morte. O próprio síndico vem fechar, por fora,
a porta de cada casa; leva a chave, que entrega ao intendente de quarteirão; este a
conserva até o fim da quarentena. Cada família terá feito suas provisões; mas para o
vinho e o pão, se terá preparado entre a rua e o interior das casas pequenos canais de
madeira, que permitem fazer chegar a cada um sua ração, sem que haja comunicação
entre os fornecedores e os habitantes; para a carne, o peixe e as verduras, utilizam-se
roldanas e cestas. Se for absolutamente necessário sair das casas, tal se fará por
turnos, e evitando-se qualquer encontro. Só circulam os intendentes, os síndicos, os
soldados da guarda e também entre as casas infectadas, de um cadáver ao outro, os
“corvos”. (FOUCAULT, 2007, P. 162)

Escolhi este trecho da obra de um historiador que por si só ao utilizar o


conceito de distopia proposto acima já pode refletir um cenário distópico do passado, pois
trata de um passado deslocado e em deslocamento, deslocado, pois ele reflete um topos que
escapa em grande medida das características normalizadas e normatizadas das cidades atuais,
e está em deslocamento porque a cada uma das diversas representações produzidas deste
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passado o deslocam constantemente. Então, ao apresentar o cenário distópico que este excerto
pôde produzir, proponho iniciar os estudos sobre a Peste Negra tanto para turmas do ensino
fundamental como do ensino médio, produzindo aproximações com a história do tempo
presente, relacionando com a Pandemia de Covid-19.
E a partir daí construir junto aos alunos uma compreensão da realidade que sirva não
somente para construção de um passado histórico, mas, ainda assim, um passado prático onde
o conhecimento pretérito sirva também para resolver problemas rotineiros que a realidade
impõe (WHITE, 2018, P. 9-19) Como no exemplo elencado, a compreensão da necessidade
do isolamento social ante a chegada de uma doença altamente infecciosa. Obviamente,
observando as devidas reservas que o contexto espacial e temporal exprimem, para
principalmente evitar os anacronismos.

Finalmente, o tempo histórico.


Então a professora ou o professor ao iniciar o ano letivo nas turmas do ensino
fundamental ou médio, percebe a necessidade referendada pela BNCC, de discutir as
diferenças entre passado e história, assim como, refletir juntamente com os alunos acerca do
tempo histórico e tempo cronológico. E aqui fica evidente a necessária aproximação da teoria
com o ensino de história que apontei.
Para iniciar a discussão sobre o tempo no ensino fundamental no 6º ano, proponho
utilizar o filme Wall-E, produção da Disney-Pixar de 2008, onde sinteticamente, retrata um
futuro distópico, onde o planeta Terra se encontra destruído e abandonado devido a poluição,
o consumismo, enfim, consequências do alto desenvolvimento tecnológico. A proposta é usá-
lo para analisar o conceito de tempo histórico e cronológico. Observe, utilizando a chave de
leitura proposta magistralmente por Koselleck, são as distâncias entre o espaço de experiência
e o horizonte de expectativa que proporcionam a construção do tempo histórico, esta é uma
categoria heurística que é construída através de elementos antropológicos.
Segundo o historiador alemão, enquanto o espaço da experiência se mostrava tão
dilatado como no período feudal, por exemplo, o horizonte de expectativas estava em uma
dimensão tão longínqua que fazia com que o presente e, por conseguinte o futuro replicasse o
passado. Isto é, para o medievo as transformações tecnológicas aconteciam, mas, eram de tal
sorte produzida com uma dinâmica tão vagarosa, que pouco podia interferir na ruptura com o
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presente e com o futuro, assim, as expectativas eram as mesmas produzidas nas gerações
anteriores. Evidentemente que a característica cultural que é um fator elementar na construção
simbólica da humanidade não deverá ser suprimida desta análise e assim podemos dizer que
em um universo onde a religiosidade se coloca como força motriz das intenções e das
interpretações humanas, a expectativa sempre será o fim, apocalíptico ou paradisíaco.
(KOSELLECK, 2006, 304-327).
Na era moderna, Koselleck propõe que como fruto da dinâmica que se constrói com
uma gradativa alteração nas relações sociais e com o desenvolvimento de novas tecnologias e
paulatinamente, com a construção de um tempo mais acelerado, como consequência também
da revolução industrial, o espaço de experiência se torna mais curto, e o horizonte de
expectativas mais estendido, portanto surge o ideal do progresso e consequentemente uma
visão de mundo utópica, pensando aqui o conceito como um mundo perfeito, onde a
humanidade iria de forma muito feliz e próspera iria colher os frutos do progresso.
Assim ao observar que o passado como espaço de experiência deixará de servir
exclusivamente a construir um horizonte de expectativas no futuro, o passado futuro
(KOSELLECK, 2006, 304-327). Emerge uma orientação ou como Bentivoglio defende uma
imaginação distópica na atualidade que remete a um passado presente, e neste momento ao
observar a dilação do presente e consequentemente a redução do espaço de experiência e do
horizonte de expectativa, podemos observar a construção de narrativas distópicas onde o
futuro não mais ensejaria um bom lugar, assim como o passado e concomitantemente o
presente (BENTIVOGLIO, 2021, P. 93).
Registrada essa análise voltarei para o uso do filme distópico Wall-E para pensar o
tempo histórico e o tempo cronológico no Ensino Básico. O tempo cronológico é o tempo das
unidades de medida de tempo, decorre linearmente e gradativamente, não está
necessariamente sujeito a rupturas ou transformações. O tempo histórico por sua vez é uma
construção cultural, que está intrinsecamente ligado aos espaços de experiência e os
horizontes de expectativas. Pois são essas categorias meta-históricas que poderão deflagrar as
mudanças e rupturas e permanências.
O filme Wall-E demonstra um futuro que é uma expectativa construída a partir de uma
experiência que é dada no passado, mas é importante salientar que ambas são examinadas no
presente. Assim é possível verificar que a mensagem do filme é alertar aos males que a ação
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descontrolada dos humanos em relação ao meio ambiente desenvolve um olhar pessimista e


distópico ante ao futuro, mas ainda assim deve-se ressaltar principalmente no presente. E
deste modo é possível exemplificar aos alunos o decurso de múltiplas temporalidades que
estão concorrendo simultaneamente.

O Holocausto como distopia.


Neste momento gostaria de discutir as possibilidades do uso de distopias no ensino de
história através da mobilização de um HQ, Maus de Art Spiegelman, que sucintamente,
retrata através do modelo de história em quadrinhos o holocausto e toda a tragédia humana
que este evento representou para o século 20 e para os anos vindouros. Bem sucintamente
posso descrever que os quadrinhos retratam os personagens como animais: nazistas como
gatos, judeus como ratos e poloneses como porcos. A trama desenvolvida através de história,
onde o autor quis contar a história de seu pai Vladek Spiegelman, judeu polonês que
sobreviveu ao campo de concentração de Auschwitz, a partir das memórias que capturou
através de anotações e gravações que lhe permitiram então produzir um HQ que através dos
gráficos e do enredo, levam o leitor à compreensão do ambiente controlado, vigiado e por fim
de extermínio que notadamente tornou-se a parte da Europa durante a Segunda Guerra
Mundial. O objetivo é trabalhar trechos ou recortes da obra em sala de aula com alunos do
Ensino Médio, para produzir um diálogo com o recurso dos quadrinhos nas aulas de história.
É possível verificar nos quadrinhos a perseguição, assim como as táticas e estratégias
de controle e por fim, de extermínio dos judeus, assim como, também é importante diante de
uma análise tropológica conforme nos mostrou o historiador Hayden White, “os tropos geram
figuras de linguagem ou de pensamento mediante a variação do que normalmente se espera
deles” (WHITE, 2001, p.14). Demonstrar para os alunos que a linguagem metafórica utilizada
nos personagens que representam americanos como cachorros, judeus como ratos, poloneses
como porcos e alemães como gatos, estão revestidos de significados e sentidos que devem ser
discutidos e analisados em sala.
A temática do holocausto dentro da perspectiva já exposta segundo a proposição de
Bentivoglio poderá ser mobilizada como uma distopia, capaz de produzir reflexões
importantes em sala de aula que podem indubitavelmente extrapolar até mesmo a alegação do
historiador cultural Roger Chartier que confirmava que todo texto é produzido em um
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contexto (CHARTIER, 2010, p.29). Porém é importante salientar que o texto é produzido
dentro de um contexto que também é fruto de um texto visto que a realidade é essencialmente
uma construção narrativa (BENTIVOGLIO, 2021, p.64). Isto por si só poderá ser pensado em
associação com a ideia de letramento histórico, como apontado por Patrícia Bastos de
Azevedo, que nos mostra que a história ensinada é também um gênero discursivo realizado
através de múltiplas práticas de letramento (AZEVEDO, 2011, p. 55).
Dentro desta ótica, pensar que ensino de história é uma prática produzida por
narrativas que irão constituir de forma singular em sala de aula, uma leitura da realidade
passada com vistas ao futuro, portanto, conforme orientado por Rüsen, capaz de formar a
consciência histórica (RÜSEN, 2001, p. 57).
Ao usar o conceito de distopia para o holocausto, é possível verificar que a realidade
hostil, de controle excessivo, genocídio dos judeus, é um desdobramento de uma ação que
subvertia também algumas concepções científicas para legitimar uma catástrofe humana. Sim,
o nazismo que reportava promover a utopia promoveu uma distopia, e neste momento eu
gostaria de remeter a epígrafe usada no inicio do artigo, para reforçar que através da
construção de uma narrativa, foi possível construir uma atmosfera propícia o holocausto, e
essa narrativa também conforme o próprio HQ Maus pode revelar, foi construída através da
manipulação do passado.

Epílogo.
Neste texto registrei que há uma lacuna posta entre os objetivos da produção
historiográfica acadêmica e sua abordagem no ensino de história, relatando a necessidade
conforme apontado por Manoel Salgado Guimarães de uma produção acadêmica que vise
também o ensino de história como objetivo.
Utilizei um texto historiográfico de Michel Foucault como um texto histórico
distópico, lendo a história como uma distopia, mobilizando o conceito para o passado que no
caso abordado é usado como fonte e recurso pedagógico para ensinar conteúdos como a Peste
Negra assim como, aproximei da história do tempo presente ao pensar a Pandemia de
Covid19, mobilizei o filme Wall-E e que é uma ficção distópica futurista que me auxiliou a
trabalhar com o tempo histórico e as multitemporalidades que nos atravessam constantemente.
E usei a história em quadrinhos, Maus, que aborda o holocausto, como uma distopia do
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passado que nos ajuda a ensinar, fascismo, holocausto, mas, acima de tudo a produção de uma
discussão política acerca dos sentidos e possiblidades que este conceito recebeu no tempo.
Cabe ressaltar novamente, que a pretensão deste trabalho é abrir uma reflexão teórica
para o desenvolvimento de uma pesquisa no mestrado que busque não apenas estabelecer a
aproximação de discursos não tradicionais à educação e especialmente ao ensino de história,
como: filmes e quadrinhos que tematizam distopias, mas ainda assim, possibilitar ao professor
o uso destes, não apenas como um instrumento de trabalho, mas, que possibilite a
compreensão que ler uma realidade através das distopias que ela mesma produziu, seja no
passado, no presente ou no futuro, são recursos para pensar as temporalidades, pensar a
cultura, a política, produzindo uma alternativa para aproximar os alunos ao ensino de história
no ensino básico.
Por fim, retomo novamente a epígrafe do início do artigo baseado nas reflexões
apontadas por Bentivoglio, que suscita que os historiadores ao promoverem o controle do
passado, construindo verdades, seja através das fontes, ou através de suas interpretações,
quando oferecem à sua produção a característica de ciência para produzir uma legitimidade
incontestável, e também, promovendo o fechamento de possíveis relações do passado com o
futuro, estão em grande medida se valendo de uma abordagem distópica, visto que, pretendem
capturar e consolidar um passado, que certamente não foi e não é, exclusivamente, ou melhor
unicamente, aquilo que o historiador pretende cristalizar em sua pesquisa. Assim, a história
que se pretende unicamente como ciência se faz através de uma abordagem disciplinar
totalitária e por que não dizer, distópica (BENTIVOGLIO, 2021, p. 26).
Deste modo, quando o professor em sala de aula, também pretende demonstrar a
cientificidade do conhecimento histórico, promovendo o fechamento das diversas histórias
sobre os diversos passados, também exerce um controle sobre o passado. Valendo-se da
mesma abordagem totalitária, e assim, observo que professor fecha a lacuna apontada
anteriormente entre o ensino de história e a pesquisa, não com o diálogo aberto entre os dois
campos na produção de um saber, nem com a produção de uma historiografia que pense o
ensino de história como fim, mas, através da submissão do professor ao mesmo método
distópico para construção do passado.
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Referências.
AZEVEDO, Patricia Bastos de. História ensinada: produção de ensino em práticas de
letramento / Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de
Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, 2011.
BENTIVOGLIO, Júlio. História e Distopia: a imaginação histórica no alvorecer do século
XXI. 2 ed. Vitória: Editora Mil Fontes, 2021.
CHARTIER, Roger. Escutar os Mortos com os olhos. Estudos. Avançados. vol.24 no.69. São
Paulo, 2010.
FACINA, A. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2004.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão; tradução de Raquel
Ramalhete. ed. Petrópolis, RJ: Vozes 2007.
GUIMARÃES, Manuel Luiz Salgado in: ROCHA, Helenice; MAGALHÃES, Marcelo;
GONTIJO, Rebeca (orgs.). A escrita da história escolar: memória e historiografia. Rio de
Janeiro: FGV, 2009.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos.
Tradução de Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira; revisão técnica de César
Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006.
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: fundamentos da ciência histórica.
Tradução de Estevão de Rezende Martins. Brasília: Editora UNB, 2001.
WHITE, Hayden. O Passado Prático. Tradução:Arthur Lima de Avila, Mario Marcello Neto,
Felipe Radünz Krüger. ArtCultura. Uberlândia, v. 20, n. 37, p. 9-19, jul.-dez. 2018.
WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: Ensaios sobre a Crítica da Cultura; tradução de
Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Editora da USP, 2001.

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