Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Mario Vargas Llosa - O Falador
Mario Vargas Llosa - O Falador
Mario Vargas Llosa - O Falador
Converted by convertEPub
A Luis Llosa Ureta,
em seu silêncio,
e aos kenkitsatatsirira machiguengas.
I
***
***
***
Compadre:
Vamos ver se esse osso mágico acalma seus ímpetos
e você deixa de andar soqueando os pobres
gambazinhos. O osso é de tapir e o desenho não é a
sacanagem que parece, uns riscos primitivos, mas uma
inscrição simbólica. Foi ditada por Morenanchiite, o
senhor do trovão, a um tigre, e este a um bruxo amigo
meu das selvas do Alto Picha. Se acredita que esses
símbolos são de redemoinhos de rio ou duas jibóias
enrascadas dormindo a sesta, pode ser que tenha razão.
Mas são, fundamentalmente, a ordem que reina no
mundo. Aquele que se deixa vencer pela raiva entorta
essas linhas e elas, tortas, não podem mais sustentar a
terra. Não vai querer que por sua culpa a vida se
desintegre e voltemos ao caos original do qual nos
tiraram, aos sopros, Tasurinchi, o deus do bem, e
Kientibakori, o deus do mal, não é, compadre? De modo
que não tenha mais essas raivas e menos ainda por
minha culpa. De qualquer maneira, obrigado.
Tchau,
Saúl
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
Estávamos em um pequeno café da Avenida Espanha,
comendo um pão com lingüiça. Já se tinham passado
vários dias do meu regresso da Amazônia. Logo que
voltei, por mais que o procurasse na Universidade e lhe
deixasse recados em La Estrella, não pude encontrá-lo.
E já estava temendo que viajaria à Europa sem me
despedir de Saúl, quando, na véspera de minha partida
para Madri, eu o encontrei, saindo de um ônibus, em
uma esquina da Avenida Espanha. Fomos até aquele café
onde, disse, ele me ofereceria uma despedida de
sanduíches de lingüiça e cerveja gelada cuja lembrança
me acompanharia durante toda a estada na Europa. A
lembrança que me ficou gravada, porém, foi a das
evasivas dele e seu incompreensível desinteresse por um
assunto, os faladores machiguengas, que, eu tinha
pensado, o entusiasmaria muitíssimo. Era um
desinteresse real? Naturalmente que não. Agora sei que
fingia não se interessar pelo tema e que mentiu quando,
acossado por minhas perguntas, assegurou-me não
haver ouvido jamais uma palavra sobre os tais faladores.
A memória é uma verdadeira armadilha: corrige,
sutilmente acomoda o passado em função do presente.
Tenho tentado tantas vezes reconstruir aquela conversa
de agosto de 1958 com meu amigo Saúl Zuratas,
naquele botequinho de cadeiras furadas e mesas bambas
da Avenida Espanha, que agora já não estou certo de
nada, salvo, talvez, de sua grande mancha cor de vinho-
vinagre, que imantava os olhares dos outros fregueses,
de sua alvoroçada mecha de cabelos vermelhos, de sua
camisinha de flanela, quadriculada em vermelho e azul,
e de seus sapatões de grande caminhador.
Mas minha memória não pode ter fabricado
totalmente a feroz catilinária de Mascarita contra o
Instituto Lingüístico de Verão, que me parece estar
ouvindo vinte e sete anos depois, nem meu espanto ao
ver a insensível cólera com que falava. Foi a única vez
que o vi assim: lívido de fúria. Naquele dia soube que
também o angélico Saúl era capaz, como o resto dos
mortais, de ceder àquelas raivas que, segundo seus
amigos machiguengas, podiam desestabilizar o universo.
Eu disse isso a ele, tentando distraí-lo:
— Você vai provocar um apocalipse com essa
explosão, Mascarita.
Mas ele não me ouviu.
— Eles são os piores de todos, esses seus apostólicos
lingüistas. Eles se incrustam nas tribos para destruí-las
de dentro, igualzinho que os bichos-de-pé. Em seus
espíritos, em suas crenças, em seu subconsciente, nas
raízes de seu modo de ser. Os outros tiram deles o
espaço vital e os exploram ou empurram para o interior.
No pior dos casos, eles os matam fisicamente. Esses
seus lingüistas são mais refinados, querem matá-los de
outro modo. Traduzindo a Bíblia para o machiguenga;
que é que você acha?
Eu o vi tão alterado, que não discuti. Várias vezes,
ouvindo-o, mordi a língua para não contradizê-lo. Sabia
que no caso de Saúl Zuratas as objeções ao Instituto não
eram frívolas nem inspiradas em preconceitos políticos;
que, por discutíveis que parecessem, refletiam um ponto
de vista profundamente meditado e sentido. Por que a
tarefa do Instituto parecia-lhe ainda mais nociva que a
daqueles dominicanos barbudos e daquelas freirinhas
espanholas de Quillabamba, Koribeni e Chirumbia.
Deve ter demorado a resposta dele, pois a senhora
que atendia aproximou-se naquele momento com uma
nova rodada de sanduíches. Depois de colocar o prato na
mesa, ficou olhando um bom tempo o sinal de Saúl,
enfeitiçada. Eu a vi retirando-se em direção ao fogão,
persignando-se.
— Não me parece mais nociva, você se engana —
respondeu-me afinal, com sarcasmo, sempre frenético.
— Eles também querem roubar-lhes a alma,
naturalmente. Mas, a selva está engolindo os
missionários, como ao Arturo Cova de La vorágine[7].
Você não os viu, em sua viagem? Meio mortos de fome e,
além disso, pouquíssimos. Vivem num tal desamparo que
já não estão em condições de evangelizar a ninguém,
felizmente. O isolamento embotou neles o espírito
catequizador. Não fazem mais que sobreviver. A selva
cortou-lhes as unhas, compadre. E, do jeito que vão as
coisas na Igreja Católica, logo não haverá mais curas
nem para Lima, o que dizer da Amazônia.
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
[1] Cushma, túnica longa e tosca, usada pelos índios da Amazônia peruana.
(N. do T.)
[2] Uta, do quéchua, Peru, enfermidade que provoca úlceras faciais, comum
[4] Trompetero, pássaro parecido com o pardal, de belo canto. (N. do T.)
[5] Yacumama (Eunectes murinus), cobra anfíbia que vive nos rios da
T.)
[9] Con vosotros y con zelas, menção ao modo de falar dos madrilenhos,