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A CRIANÇA FERIDA

Margaret Atwood

A criança ferida vai mordê-lo.


A criança ferida vai se tornar
uma criatura assustadora
e mordê-lo aí mesmo onde você está.

A criança ferida verá a pele se formar


sobre o ferimento que recebeu de você
– recebe não, porque o ferimento
não é um presente, um presente é aceito
livremente, e a criança não teve escolha.

Ela vai formar uma pele sobre o ferimento,


o ferimento acumulado, o ferimento que atravessa gerações
e que você extraiu com força de si mesmo feito uma bala
e implantou na carne da criança –
uma pele um couro um pelo
uma crosta escaldada,
e dentes afiados de peixe
como os de um bebê deformado –
e vai mordê-lo

e você vai dizer que não vale


como é o seu hábito
e haverá uma luta
porque você vai tirar a luta da caixa
com o rótulo Lutas que guarda com tanto cuidado
para as emergências, e esta é uma delas,
e a criança ferida perderá a luta
e irá cambaleando
para os subúrbios, e causará
pânico nas drogarias e estrago
nos churrascos
e eles dirão ajudem ajudem um monstro
e sairá no noticiário
e ela será caçada
com cães, e deixará um rastro
de cabelo, pelo, escamas e dentes de leite, e lágrimas
de onde foi rasgada
com vidro quebrado e coisas do tipo

e vai se esconder em canos de esgoto


em depósitos de ferramentas, debaixo de arbusto,
lambendo sua ferida, sua raiva,
a raiva que recebeu de você
e vai se arrastar até o poço

o lago o riacho o reservatório


porque tem sede
porque é monstruosa
com sua sede feroz
que parece toda coberta de espinhas

e os cães e caçadores vão encontrá-la


e ele ficará encurralada
e uivará sobre injustiças
e vão rasgar seu corpo e abri-lo

e vão comer seu coração


e todos darão vivas,
Graças a deus acabou!
E seu sangue escorrerá para dentro d’água
e você vai bebê-lo todos os dias.

*Poema retirado do livro, “A Porta”, Rocco, 2007.


Tradução de Adriana Lisboa

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