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80 Anos Pioneiros Da Educação Nova
80 Anos Pioneiros Da Educação Nova
Resumo
Palavras-chave
Abstract
Keywords
580 Diana Gonçalves VIDAL. 80 anos do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova: questões para debate
calor das batalhas pelo controle do aparelho Detenhamo-nos um pouco nessas ques-
educacional. Nesse sentido, tal personagem co- tões, iniciando pela vertente pedagógica. Mas an-
letivo não tinha poder explicativo para as aná- tes é interessante explicitar o que tenho entendido
lises que retroagiam às décadas anteriores, nem como fórmula. Para tanto, irei me valer das refle-
mesmo para as que avançavam além da primei- xões de Daniel Hameline (1995), não propriamen-
ra metade dos anos 1930, como tinha sido prá- te sobre a Escola Nova, mas sobre a Escola Ativa.
tica até o momento na investigação educativa. De acordo com o autor, a fortuna de uma
O século XIX e o início do XX pas- fórmula não se explica apenas pela admiração
saram a atrair a atenção dos historiadores. passageira de um grupo ou de uma população,
Contrariamente ao diagnóstico traçado no mas por uma conjunção de eventos no ritmo
Manifesto de um vazio de iniciativas, o período de uma história que entretece curta e longa du-
despontou como profícuo em ações educacio- ração e que espelha uma evolução das práti-
nais promovidas pelo Estado e pela sociedade cas e dos discursos pedagógicos. Nesse sentido,
civil, e como relevante para a compreensão do investigar a gênese de tal fórmula – no caso
debate educativo nacional. Nas duas direções, em questão, a Escola Ativa – supõe debruçar-se
possibilitava acompanhar os modos como se sobre a trajetória do qualificativo ativo aplicado
foi organizando o sistema educativo brasilei- ao contexto escolar desde o fim do século XIX;
ro – o que inclui a discussão sobre a educação da arbeitsschule (1895-1920), que na tradição
gratuita e obrigatória – e se conformando a(s) da escola do trabalho transformou-se em escola
cultura(s) escolar(es) no Brasil. Esse recuo no ativa nos enunciados de educadores genebri-
tempo propiciou ainda a abertura de novas li- nos, e da própria Escola Ativa, que entre 1917
nhas de interpretação da produção histórica da e 1920 firmou-se como expressão de uma nova
carta-monumento e de suas principais propos- concepção educacional.
tas, levando, portanto, à desmonumentalização Para Hameline (1995), é preciso ter em
do Manifesto e do grupo de seus signatários. A conta que a ideia nasce e se desenvolve em um
própria noção de grupo coeso e, nessa medi- meio onde ela não é, a princípio, um ato delibe-
da, do personagem coletivo pioneiros passou a rado ou formalizado de um autor, mas um termo
ser questionada, bem como o foi a unidade dos comum e pouco controlado. A história da fun-
princípios da Escola Nova. dação da Escola Ativa é para ele um exemplo
Nesse percurso, a Escola Nova eviden- da incapacidade coletiva de controlar o discurso
ciou-se como fórmula, com significados múl- que se tem sobre a atividade social, tanto no que
tiplos e distintas apropriações constituídas no concerne à educação (nível mais geral), quanto
entrelaçamento de três vertentes: a pedagógi- no que diz respeito à escolarização (particular).
ca, a ideológica e a política. No que tange ao Hameline (1995, p. 9) afirma: “nas propostas so-
primeiro aspecto, a indefinição das fronteiras bre a educação, não há um mestre do léxico”.
conceituais havia permitido que a expressão De acordo com o autor, então, três razões
Escola Nova aglutinasse diferentes educadores teriam permitido a aparição da fórmula Escola
— católicos e liberais — em torno de princí- Ativa: inicialmente, a expressão remetia à ati-
pios pedagógicos do ensino ativo. No segundo vidade engenhosa dos professores dentro da
caso, a fórmula oferecera-se como meio para classe; em seguida, era um slogan, mais do que
a transformação da sociedade, servindo às fi- um conceito; em terceiro lugar, constituía-se de
nalidades divergentes dos grupos em litígio. Já maneira inseparável de uma teoria do trabalho
na terceira acepção, tornara-se bandeira polí- manual, concebido como um meio de educação
tica, sendo capturada como signo de renova- do espírito. Se a fórmula difundiu-se na Suíça a
ção do sistema educacional pelo Manifesto e partir de 1919 e mais fortemente após 1922, ela
por seus signatários. não tardou a chegar ao Brasil. Mas aqui, talvez,
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novas alianças. Como bandeira, Escola Nova centralismo estéril, o Manifesto dos Pioneiros
acabou equivalendo a um movimento e esta- da Educação Nova expunha a fratura no cam-
beleceu as fronteiras de uma batalha, opondo po educacional, desviando-se das propostas
pioneiros a católicos. Sobre essa questão, que abraçadas por Francisco Campos e por um
remete à vertente ideológica, não me estende- contingente de educadores católicos, como
rei (indico, para tanto, o principal autor a esse o ensino religioso facultativo nas escolas
respeito, Carlos Jamil Cury, em particular seu públicas do país, já instituído pelo Decreto
livro Ideologia e educação brasileira: católicos nº19.941 em 30 de abril de 1931.
e liberais). Irei tangenciá-la apenas no que nos Entre os objetos em disputa, incluía-
ajuda a compreender melhor a dimensão políti- -se a formação para o magistério. Não deixa
ca do Manifesto. de ser significativo atentar para a coincidên-
Queria retomar alguns acontecimentos cia de data: no dia 19 de março de 1932 ocor-
que nos fazem entender o contexto de emersão reu tanto a publicação do Manifesto, quanto a
dessa carta-monumento. A história já é bem co- promulgação do Decreto 3.810, com o qual a
nhecida. Em 1931, a Associação Brasileira de administração de Anísio Teixeira da Instrução
Educação organizou a IV Conferência Nacional Pública carioca reformou o curso de prepara-
de Educação, aberta com orações proferidas por ção docente, criando o Instituto de Educação
Getúlio Vargas e Francisco Campos, primeiro do Distrito Federal. Também é relevante atentar
Ministro da Educação no Brasil. Solicitavam para a coincidência de propostas entre a carta-
aos educadores a fórmula feliz e o conceito de -monumento e a lei anisiana: ambas previam
educação da nova política educacional. A ex- a elevação da formação docente a nível supe-
pectativa foi frustrada e a IV Conferência aca- rior, o que, para o Manifesto dos Pioneiros da
bou por se constituir no episódio detonador da Educação Nova, deveria revestir-se de caráter
cisão entre grupos aglutinados na ABE, que universitário. Antecipava-se então o movimen-
ficaram conhecidos pela historiografia como to que, em São Paulo, em 1934, e no Rio de
pioneiros e católicos. O fato ocorreu apenas em Janeiro, em 1935, iria associar formação de pro-
1932, com a saída dos educadores católicos dos fessores e universidade (VIDAL; RODRIGUES,
quadros da entidade, a criação da Confederação 2004) e seria abortado a partir de 1937 pela
Católica Brasileira de Educação e a redação, por ação direta dos quadros católicos.
parte de Azevedo, do Manifesto dos Pioneiros Para além das disputas no campo edu-
da Educação Nova. cacional, é preciso recordar – e isso nem sem-
As manobras políticas que desenharam pre emerge nos debates que fazemos sobre
os trabalhos da Quarta Conferência foram se- o Manifesto – que, em 1930, a instalação de
guidas de perto por Marta Carvalho (1998) uma Nova República havia sido cantada com
e denunciaram as recomposições do campo otimismo pela imprensa paulista, capitaneada
educativo na luta pelo estabelecimento de di- por Julio de Mesquita Filho, como já dissemos,
retrizes à educação nacional. Entre os pontos signatário do Manifesto e proprietário do jornal
de divergência, encontrava-se o debate acerca O Estado de S. Paulo. A revolução significava
da função do Estado na organização do sistema para os novos liberais, aglutinados em torno
escolar, evidenciado na polarização entre cen- do Partido Democrático, o exorcismo do passa-
tralismo e federalismo, entre função educadora do – associado ao poder oligárquico, à fraude,
e subsidiária, entre dualidade do sistema (escola à imoralidade, à força, à tirania, ao atraso e à
para ricos e escola para pobres) e educação co- mentalidade bacharelesca – e um momento de
mum, bem como entre ensino religioso e laico. inflexão para a mentalidade moderna, carac-
Ao defender uma educação pública, terizada pelo saber científico, pelo progresso e
laica, gratuita e obrigatória e ao opor-se ao pela ordem.
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e amizade, tal como nos faz perceber Sirinelli Avizinhavam-se sem perceber da instalação do
(2003), mas com visões muito díspares sobre a Estado autoritário, que viria em 11 de novem-
escola e seus processos de ensino e aprendiza- bro com o cerco e o fechamento do Congresso
gem. No entanto, as mudanças pelas quais pas- Nacional por tropas da Polícia Militar e com o
saram o Brasil e o mundo nesses anos de 1930 anúncio de Getúlio Vargas à nação, via rádio,
rapidamente tornaram o Manifesto obsoleto em do início de uma nova era, orientada pela nova
algumas de suas reivindicações e reconfiguram Constituição elaborada por Francisco Campos.
as alianças políticas que lhe davam sustentação. De acordo com Marlos Rocha (2006), a
Com o fim do conflito armado em 1932, radicalização política que se evidenciava a par-
as conciliações entre os membros do Partido tir de 1935 no Brasil e no exterior, expressa na
Constitucionalista – do qual fazia parte o gru- difusão de ideologias totalitárias, levou educa-
po do Estadão – e Getúlio Vargas permitiram dores a reverem suas posições no que concerne
que Armando de Sales Oliveira assumisse a ao papel da União nos sistemas de ensino e à
interventoria de São Paulo em 1933 e dispu- nacionalização da educação. Em A cultura bra-
seram parcela dos intelectuais paulistas fa- sileira, por exemplo, obra publicada em 1943,
voravelmente à Constituição de 1934, consi- Fernando de Azevedo criticava o federalismo
derada como vitória educacional e política, excessivo, propugnando pela unificação dos
a despeito das concessões obtidas pelas hos- sistemas educativos, elogiava o Governo Vargas
tes da Igreja, galvanizadas pela Liga Eleitoral e concedia destaque ao Ministério de Francisco
Católica. Entretanto, como afirma Maria Helena Campos, considerado de caráter democrático.
Capelato (1989), a vitória dos liberais foi efê- Para Rocha (2006), expressando uma compre-
mera. Os acontecimentos do ano de 1935 iriam ensão do Estado Novo como autoritário e não
reorientar o rumo da política brasileira. Entre como totalitário, Azevedo, como de resto o fa-
eles podemos incluir: em março, tanto a criação zia parcela dos liberais paulistas, justificava a
da Aliança Nacional Libertadora (ANL), congre- contundência de suas ações pela excepcionali-
gando comunistas, socialistas, tenentes, liberais dade do momento histórico.
e católicos com o objetivo de combater o avan- Azevedo reconhecia, ainda, na preservação
ço do nazi-fascismo, quanto a transformação da de princípios dos renovadores na Carta de 1937
Ação Integralista Brasileira em partido político; e na expansão do ensino elementar, profissional
a promulgação da Lei de Segurança Nacional, e secundário, manifestações de uma dimensão
em abril; o fechamento da ANL, em julho; e o democrática do Estado. Ao não problematizar o
levante de novembro, que ficou conhecido pela regime político e sua legitimidade, alguns signa-
historiografia como Intentona Comunista. tários do Manifesto, como o próprio Fernando de
Entre o final de 1935 e o início de 1936, Azevedo e Lourenço Filho, estabeleceram com o
centenas de civis e militares foram presos em todo Governo Vargas uma relação de colaboração. Na
o país. Entre eles, encontravam-se os educadores expressão de Azevedo (1943, p. 401), em 1937,
Paschoal Lemme, Edgar Sussekind de Mendonça
e Armanda Álvaro Alberto, todos signatários do o golpe de Estado cortou pela autoridade o
Manifesto. As prisões forneceram a justifica- conflito [entre pioneiros e católicos], amai-
tiva para a decretação, em março de 1936, do nando as polêmicas, arrefecendo as paixões
estado de guerra, que vigoraria até meados de e impondo, como linha de conduta, no do-
1937. As medidas contavam com o apoio dos mínio educacional, uma política de compro-
liberais paulistas, compungidos a aceitar, no vór- misso, de adaptação, de equilíbrio.
tice da luta pela preservação do Estado liberal,
os atos de exceção, abdicando temporariamente Não foi o caso de outros pioneiros.
de sua liberdade para garantir a ordem social. Só para citar dois exemplos: Anísio Teixeira
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negociação política, na rearticulação históri- lutas que empreendemos. Talvez a razão seja,
ca das propostas e nas defecções. enfim, a de reivindicar que ainda há um lugar
Talvez seja esta a razão de comemorar os social e político para o intelectual no debate pú-
80 anos do Manifesto dos Pioneiros da Educação blico sobre a educação, sendo que nossa contri-
Nova: fazer-nos indagar sobre qual ideal de es- buição consiste principalmente na negociação de
cola defendemos; como concebemos o papel do propostas e agendas de trabalho em prol da edu-
Estado na disseminação da educação no país (a cação pública – e aqui se acrescenta – de qua-
relação entre Estado e educação); quais são os lidade. Nada, aliás, poderia ser mais auspicioso
compromissos políticos que se apresentam hoje às vésperas da comemoração do bicentenário da
no cenário educacional; como configuramos Independência do Brasil: balanço do passado e
nossas redes de solidariedade e sociabilidade nas estabelecimento de metas para o futuro.
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Diana Gonçalves Vidal é professora titular de História da Educação na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
(USP), pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e coordenadora do Núcleo
Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação (NIEPHE). Atualmente, assume a coordenação do Comitê de
Assessoramento da Educação (CA-Ed) do CNPq.
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