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Hadji-Murat

Relógio D' Água Editores


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Título: Hadji-Murat
Título original: Hadji-Murat (1904)
Autor: Lev Tolstói
Tradução: Nina Guerra e Filipe Guerra
Revisão de texto: Joana Serafim
Capa: Carlos César sobre ilustração de Lanceray

© Relógio D' Água Editores, Julho de 2009

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Composição e paginação: Relógio D 'Água Editores


Impressão: Guide Artes Gráficas, Lda.
Depósito Legal n.º 296089/09
Lev Tolstói

Hadji-Murat
Tradução e Notas de
Nina Guerra e Filipe Guerra

Clássicos
Nota da Tradução

Nos meados do século XIX , as numerosas etnias do Cáucaso falavam as suas


próprias línguas dentro de cada povo ou tribo, mas na comunicação intertribal
utilizavam na maioria dos casos uma das línguas turcas, por exemplo o kumique.
Além disso, essa linguagem intertribal incluía palavras árabes, turcas, irania­
nas, ávaras, tchetchenas, etc . Na comunicação com os russos, esse pidgeon com­
preendia também palavras russas. Por sua vez, os russos chamavam genérica e
incorrectamente «tártaro» a todas as falas que ouviam.
Lev Tolstói, neste livro, não traduz para russo aquelas palavras e expressões
que são intraduzíveis ou se referem a realidades locais muito típicas, translite­
rando-as apenas. Escolhemos também manter no idioma original, sem itálico,
essas palavras que o autor não traduziu para russo, introduzindo chamadas nu­
meradas para notas explicativas no fim do texto.
Regressava a casa atravessando os campos . Estávamos a meio do
Verão . O feno já tinha sido levado dos prados , preparava-se a ceifa do
centeio .
Nesta temporada há toda uma série de flores maravilhosas : os mi­
lefólios vermelhos , brancos , rosados , aromáticos , vaporosos ; as mar­
garidas descaradas ; os malmequeres brancos de leite com o coração
amarelo-vivo e um cheiro condimentado , pútrido; o agrião-da-terra
amarelo com o seu odor meloso; as campânulas altas , de cor branca
e lilás , com a flor em forma de tulipa; as ervilhacas rastejantes; as es­
cabiosas amarelas , vermelhas , rosadas , liláceas , todas apuradas; a
tanchagem com a sua penugem ligeiramente rosada e o seu cheirinho
agradável , quase imperceptível; as centáureas exibindo-se ao sol , em
azul vivo na juventude e em azul claro e avermelhado na velhice; e
as temas flores do linho-de-cuco , cheirando a amêndoa e céleres no
murchar.
Depois de ter juntado um grande ramo de flores diversas , ia para
casa quando descobri , num fosso , um maravilhoso cardo , carmesim ,
em plena flor, daquela espécie que entre nós se chama de «tártaro» e
que , durante a sega da erva, é sempre contornado com cuidado e , ca­
so seja cortado sem querer, é tirado do feno pelos gadanheiros para
não picar as mãos . Apeteceu-me colher o cardo e pô-lo no meio do
ramo . Desci ao fosso e , depois de enxotar um abelhão felpudo que
adormecera deleitosamente agarrado à flor, comecei a partir o caule .
Muito difícil , porém: a haste não só picava por todos os lados , mes­
mo através do lenço com que eu tinha envolvido a mão , mas era tam­
bém tão duro que lutei com ele uns cinco minutos , pelo menos , ras­
gando os filamentos um a um. Quando , por fim , arranquei a flor, a
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haste estava toda em farrapos e a flor já não parecia fresca nem bo­
nita . Além disso , o seu aspecto tosco e berrante não condizia com as
ternas flores com que eu compusera o ramo . Lamentei ter destruído
inutilmente uma flor que , no seu lugar, era tão linda. Deitei-a fora.
«É impressionante a força , a energia daquela flor - pensei , recor­
dando o que me custara arrancá-la. - Lutou muito ·pela vida e ven­
deu-a caro .»
O trajecto passava pelo barbecho de terra negra, acabado de lavrar.
Eu seguia pelo caminho negro e poeirento , ligeiramente a subir. O
campo lavrado era senhorial , muito grande , de maneira que de ambos
os lados e em frente do caminho não se via nada além do arrotea­
mento negro , com sulcos regulares , ainda por gradar. A lavra fora óp­
tima, em lado nenhum se via planta ou erva - tudo negro . «Que ser
destruidor e cruel é o homem, quantas criaturas vivas , quantas plan­
tas de todo o género ele exterminou para sustentar a sua própria vida»
- pensava eu , procurando involuntariamente qualquer coisa viva no
meio desse campo morto e negro . À minha frente , à direita do cami­
nho , via-se um pequeno arbusto . Quando me aproximei dele , reco­
nheci um «tártaro» igual ao anterior, a que tinha arrancado inutil­
mente uma flor que depois deitara fora.
O arbusto de «tártaro» tinha três hastes . Uma fora arrancada, as
outras duas espetavam-se como cotos de braço . Cada qual com a sua
flor, dantes vermelha , agora preta . Um caule dobrava-se , partido ,
com a sua flor suja na ponta; o outro , embora coberto de lama negra,
ainda se erguia. Era evidente que o arbustinho fora pisado por uma
roda e só depois se levantara, estando por isso retorcido . E mesmo
assim de pé . Era como se lhe tivessem arrancado um pedaço do cor­
po e um braço , o tivessem esventrado , lhe tivessem vazado um olho ,
mas segurava-se em pé e não se entregara ao homem que matara to­
dos os seus irmãos à volta .
«Mas que energia ! - pensei . - O homem venceu tudo , extermi­
nou milhões de ervas , mas ele continua a resistir.»
Então , lembrei-me de uma história caucasiana que em parte teste­
munhei , em parte ouvi contar por outros , e o resto fantasiei . Esta his­
tória, tal como se formou na minha memória e imaginação , é a que re­
lato a seguir.
Hadji-Murat 11

Aconteceu no fim do ano de 1 85 1 .


Numa tarde fria de Novembro , Hadji-Murat entrou no aúl 1 Mahket,
o dos tchetchenos belicosos , sobre o qual se levantava o fumo aro­
mático de kiziak2 queimado .
Há uns instantes silenciou-se o canto tenso do muezim e no mon­
tanhoso ar puro impregnado do odor de fumo do kiziak ouviam-se ni­
tidamente , no meio do mugido das vacas e do balido das ovelhas , que
recolhiam às sáklias 3 coladas entre si como favos , as vozes guturais
dos homens a discutirem e as vozes femininas e infantis vindas de
baixo , dos lados da fonte .
Este Hadji-Murat, famoso pelas suas façanhas , era o nafu4 de Sha­
mil e nunca se metia a caminho senão com o seu estandarte e acom­
panhado por algumas dúzias de murides 5 cavalgando à sua volta.
Agora, porém, coberto de bachlik6 e burka7, da qual se assomava a
espingarda, ia acompanhado apenas por um murid , tentando dar o
menos possível nas vistas e perscrutando cautelosamente , com os
seus rápidos olhos negros , as caras da gente local que encontrava pe­
lo caminho .
Chegado ao centro do aúl , Hadji-Murat não meteu pela rua que de­
sembocava na praça mas virou à esquerda, para uma viela estreitinha.
Ao acercar-se da segunda sáklia, cavada na parede do monte , parou ,
lançando olhares à sua volta. Sob o alpendre não havia ninguém, mas
no telhado, por trás da chaminé recentemente rebocada de barro , esta­
va deitado um homem coberto com um tulup 8 . Hadji-Murat tocou com
o cabo do azorrague , ao de leve , no homem deitado e estalou a língua.
Debaixo do tulup soergueu-se um velho , de barrete de noite e um
bechmet9 coçado e roto . Os olhos do velho, privados de pestanas , es­
tavam vermelhos e húmidos , e pestanejava para os despegar. Hadji­
Murat pronunciou o habitual «Salam aleikum» e descobriu a cara.
- Aleikum salam - disse o velho ao reconhecer Hadji-Murat e,
sorrindo com a boca desdentada, endireitou-se nas pernas magras e
enfiou os pés nos tamancos de saltos de madeira que pusera junto à
chaminé . Já calçado , enfiou devagar as mãos no encarquilhado tulup
sem forro e começou a descer do telhado, de frente para a escada. En­
quanto se vestia e descia, o velho não parava de baloiçar a cabeça no
pescoço fino , enrugado e bronzeado , e de mascar com a boca des­
dentada. Chegado ao chão , pegou , hospitaleiro , na rédea e no estribo
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direito do cavalo de Hadji-Murat. Porém, o murid hábil e forte apeou­


se de um salto e, afastando o velho , substituiu-o .
Hadji-Murat apeou-se também e, coxeando ligeiramente , entrou no
alpendre . Da porta saiu rapidamente ao seu encontro um rapazito dos
seus quinze anos que , surpreendido , espetou nos recém-chegados os
olhos brilhantes , negros como a groselha madura.
- Corre à mesquita, chama o teu pai - mandou o velho e , ultra­
passando Hadji-Murat, abriu-lhe a porta leve que rangeu . Quando
Hadji-Murat estava a entrar, uma mulher de meia-idade , fina e magra,
de calças azuis e bechmet encarnado por cima da camisa amarela,
surgiu de uma porta interior carregando uma braçada de almofadas .
- A tua visita traz-nos felicidade - disse ela. E, dobrando-se , co­
meçou a encostar as almofadas à parede da frente para o convidado
se sentar.
- Que os teus filhos estejam salvos - respondeu Hadji-Murat, ti­
rando a burka, a espingarda e o sabre , e entregando-os ao velho .
O velho pendurou com cuidado a espingarda e o sabre num prego
ao lado das armas do dono de casa, no meio de dois alguidares gran­
des que brilhavam na parede rebocada, lisa e impecavelmente caiada.
Hadji-Murat ajeitou atrás das costas a pistola, dirigiu-se para as al­
mofadas dispostas pela mulher e , fechando a tcherkeskalO no peito ,
alapou-se nelas . O velho sentou-se sobre os calcanhares descalços em
frente do convidado, fechou os olhos e levantou as mãos de palmas
para cima. Hadji-Murat fez a mesma coisa. A seguir, ambos leram a
oração e passaram as mãos pelas caras , juntando-as nas pontas das
barbas .
- He habar? (o que há de novo?) - perguntou Hadji-Murat ao ve­
lho .
- Habar iok (nada de novo) - respondeu o velho , fitando os seus
olhos vermelhos e mortiços no peito, e não na cara de Hadji-Murat. -
Vivo no colmeal, só hoje vim visitar o meu filho. O filho é que sabe.
Hadji-Murat percebeu que o velho não lhe queria dizer o que sabia
e o que ele , Hadji-Murat, queria saber, de maneira que acenou leve­
mente com a cabeça e não voltou a fazer perguntas .
- Nada do que há de novo é bom - voltou a falar o velho . - De
novo há somente que as lebres discutem como é que podem expulsar
as águias . Mas as águias fazem-nas em frangalhos , umas atrás das ou­
tras . Na semana passada, os cães russos queimaram o feno dos Mit­
chítski . Que seja rasgada a cara deles - rouquejou o velho com raiva.
Hadji-Murat 13

Entrou o murid de Hadji-Murat e , avançando n o passo suave dos


seus pés grandes e fortes pelo chão de terra batida, tirou a sua burka,
a espingarda e o sabre , tal como fizera Hadji-Murat, e pendurou-os
nos mesmos pregos onde estavam as armas deste .
- Quem é? - perguntou o velho , apontando para o homem.
- É o meu murid. O nome dele é Eldar - disse Hadji-Murat.
- Está bem - disse o velho . E indicou a Eldar um lugar no tape-
te de feltro , ao lado de Hadji-Murat.
Eldar sentou-se com as pernas cruzadas e , silenciosamente , fixou
os seus belos olhos de carneiro no velho que, entretanto , se tomara lo­
quaz . O velho contava que , na semana anterior, uns valentões tinham
apanhado dois soldados russos: mataram um deles e mandaram o ou­
tro para Vedeno , para Shamil . Hadji-Murat ouvia distraidamente , lan­
çando olhares para a porta e atento aos sons de fora. Sob o alpendre
da sáklia ouviram-se passos , a porta rangeu e entrou o dono da casa.
O dono da sáklia, de nome Sado , era um homem dos seus quaren­
ta anos, com uma barbicha curta, narigudo e com uns olhos que , em­
bora menos brilhantes , eram tão negros como os do filho , o rapaz de
quinze anos que fora buscá-lo e que agora, entrando com ele , se sen­
tou ao pé da porta. À entrada, o dono da casa tirou os tamancos de
madeira, puxou o gorro velho e coçado para a nuca - pelo cabelo ne­
gro que lhe cobria a cabeça, havia muito que não tinha sido rapada -
e logo a seguir sentou-se de cócoras em frente de Hadji-Murat.
Tal como fizera o velho , fechou os olhos, levantou as mãos de pal­
mas para cima, disse a oração , passou as mãos pela cara e só depois
disso começou a falar. Disse que tinha chegado ordem de Shamil pa­
ra deter Hadji-Murat, vivo ou morto , que os mensageiros de Shamil
se haviam ido embora apenas no dia anterior e que o povo tinha me­
do de desobedecer a Shamil; por isso era preciso ter cuidado .
- Em minha casa - disse Sado - , enquanto estiver vivo , nin­
guém fará mal ao meu kunakll . Mas no campo? É preciso pensar.
Hadji-Murat ouvia com atenção e acenava com a cabeça, aprovan­
do . Quando Sado acabou de falar, disse:
- Está bem. Agora há-de mandar aos russos um homem com a
carta. O meu murid vai lá, precisa apenas de um guia.
- Mando com ele o meu irmão Bata - disse Sado . - Chama o
Bata - dirigiu-se ao filho .
O rapazinho , como que disparado por uma mola, pôs-se de pé nas
pernas ágeis e, baloiçando os braços , saiu rapidamente da sáklia. Pas-
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sados dez minutos voltou com um tchetcheno bronzeado até à negru­


ra, nervudo, de pernas curtas, vestido com uma tcherkeska amarela,
toda desfeita, com as mangas em farrapos e as nogovitsas12 pretas
descaídas. Hadji-Murat cumprimentou-o e, logo a seguir, sem mais
palavras, perguntou-lhe:
- Podes levar o meu murid aos russos?
- Posso - respondeu Bata rápida e animadamente. - Posso tu-
do. Nenhum tchetcheno sabe passar como eu. Ou então vai dizer que
sim, prometer tudo, mas não faz nada. Mas eu posso.
- Está bem - disse Hadji-Murat. - Recebes três pelo serviço -
acrescentou, mostrando três dedos.
Bata acenou com a cabeça em sinal de que compreendera, mas de­
clarou que para ele não era o dinheiro que tinha importância, mas a
honra de servir Hadji-Murat. Toda a gente dos montes sabe como
Hadji-Murat batia os porcos russos...
- Está bem - disse Hadji-Murat. A corda é boa quando é com­

prida, a fala quando é curta.


- Fico calado - disse Bata.
- Onde o Argun faz uma curva, em frente da escarpa, há uma cla-
reira na floresta, com duas medas. Conheces?
- Conheço.
- Os meus três cavaleiros estão lá à minha espera.
- Sim - disse Bata, acenando com a cabeça.
- Perguntas por Khan-Magoma. Khan-Magoma sabe o que deve
fazer e dizer. Leva-o ao chefe russo, o príncipe Vorontsov. És capaz?
- Sou.
- Leva-lo e traze-lo de volta. És capaz?
- Sou.
- Depois de o levares, voltas à floresta. Vou estar lá.
- Faço tudo - disse Bata, levantou-se, apertou as mãos contra o
peito e saiu.
- É preciso ainda mandar um homem a Guekhi - disse Hadji­
Murat ao dono da casa quando Bata saiu. - Em Guekhi é preciso...
- começou ele, pegando num dos gazires da sua tcherkeska, mas
baixou de imediato a mão e calou-se, ao ver duas mulheres a entra­
rem na sáklia.
Uma delas era a mulher de Sado, aquela magra de meia-idade que
trouxera as almofadas. Outra era uma rapariga novinha, de calças ver­
melhas e bechmet verde, e com um colar de vários fios de moedas de
Hadji-Murat 15

prata a cobrir-lhe todo o peito. Na ponta da sua trança negra pouco


comprida mas grossa e rija, descendo-lhe sobre as costas magras,
pendia um rublo de prata; os olhos negros como a groselha, iguais aos
do pai e do irmão, brilhavam com alegria no seu rosto jovem que ten­
tava manter-se sisudo. Não olhava para os convidados, mas via-se
que sentia a presença deles.
A mulher de Sado trouxe uma mesinha baixa e redonda em que ha­
via chá, pilguiches, crepes com manteiga, queijo e tchurek13 - pão
de massa estendida - e também o mel. A rapariga trouxe um algui­
dar, um kumgan14 e uma toalha.
Sado e Hadji-Murat mantiveram-se ambos calados enquanto as
mulheres, movendo-se silenciosamente com os seus tchuviakes ver­
melhos, sem solas, punham perante os convidados o que haviam tra­
zido. Quanto a Eldar, permanecia imóvel como uma estátua, com os
olhos fixos nas suas pernas cruzadas, durante todo o tempo em que as
mulheres estavam dentro da sáklia. Apenas quando saíram e os pas­
sos suaves delas já não se ouviam por trás da porta, Eldar suspirou
com alívio. Hadji-Murat tirou um dos gazires da tcherkeska, e dele a
bala que o tapava, e debaixo desta um bilhete enrolado.
- Entregar ao meu filho - disse, mostrando o bilhete.
- E a resposta a quem? - perguntou Sado.
- A ti, e tu a mim.
- De acordo - disse Sado e meteu o bilhete no gazir da sua tcher-
keska. Depois pegou no kumgan e aproximou o alguidar de Hadji­
Murat. Este arregaçou as mangas do bechmet e expôs os seus braços
musculados, brancos acima dos pulsos, ao jorro de água fria e trans­
parente que Sado verteu do kumgan. Ao limpar as mãos com uma toa­
lha limpa de tecido cru, Hadji-Murat mudou de posição, aproximan­
do-se da comida. Eldar fez a mesma coisa. Enquanto os convidados
estavam a comer, Sado ficou sentado em frente deles e, por várias ve­
zes, agradeceu-lhes a visita. O rapazinho ao pé da porta, sem desviar
os seus olhos negros e brilhantes de Hadji-Murat, sorria, como que a
confirmar com o sorriso as palavras do seu pai.
Apesar de Hadji-Murat estar sem comer há mais de um dia, serviu-se
apenas de um pouco de pão e de queijo e, pegando numa pequena faca
que trazia à cinta por baixo do punhal, barrou o pão de mel com ela.
- O nosso mel é bom. Este ano é melhor do que nunca: há muito
e é bom - disse o velho, visivelmente contente por Hadji-Murat co­
mer o seu mel.
16 Lev Tolstói

- Obrigado - disse Hadji-Murat e afastou-se da comida. Eldar


ainda não saciara a fome, mas fez o mesmo que o seu murchid -
afastou-se da mesa; depois chegou a Hadji-Murat o alguidar e o kum­
gan.
Sado sabia que, recebendo em sua casa Hadji-Murat, arriscava a vi­
da porque, depois da zanga de Shamil com Hadji-Murat, fora anun­
ciado a todos os habitantes da Tchetchniá que não podiam receber
Hadji-Murat, sob a ameaça de morte. Sabia que os habitantes do aúl
podiam, a qualquer momento, descobrir a presença de Hadji-Murat
em casa dele e exigir a sua entrega. Este perigo, porém, não só não
intimidava mas, pelo contrário, dava alegria a Sado. Sado considera­
va seu dever proteger o convidado kunak, nem que lhe custasse a vi­
da, e estava contente e orgulhoso consigo próprio porque procedia co­
mo devia proceder.
- Enquanto estiveres em minha casa e eu trouxer a minha cabeça
presa aos ombros, ninguém te faz mal - repetiu a Hadji-Murat.
Hadji-Murat olhou Sado nos olhos brilhantes, com atenção, e, ao
compreender que era verdade, disse num tom solene:
- Oxalá tenhas felicidade e vida.
Sado, em silêncio, levou uma mão ao peito em sinal de agradeci­
mento pelas boas palavras.

* * *

Depois de fechar as portadas da sáklia e acender a lareira, Sado,


num estado de muito boa disposição e excitação, saiu da sala dos ku­
nakes e entrou na parte da casa onde vivia a fann1ia. As mulheres ain­
da não se tinham deitado e conversavam sobre os perigosos visitan­
tes que ficavam a pernoitar em sua casa.

Nessa mesma noite, na fortaleza de vanguarda Vozdvijênskaia, a


quinze verstás do aúl em que Hadji-Murat pernoitava, três soldados
e um oficial inferior saíram pelo portão de Tchakhguirin. Os solda­
dos estavam de casacos de pele curtos, com os capotes enrolados so­
bre os ombros, e de botas altas, acima do joelho, como naquela altu­
ra se calçavam os soldados no Cáucaso. De espingardas ao ombro,
Hadji-Murat 17

os soldados meteram primeiro pelo caminho e, andados uns qui­


nhentos passos, desviaram-se dele e, restolhando com as botas pelas
folhas secas, avançaram mais vinte passos para a direita e pararam
ao lado de um plátano quebrado, cujo tronco negro se distinguia na
escuridão. Era neste lugar que tomavam posição os postos de guarda
avançados.
As estrelas claras que, enquanto os soldados rompiam pela flores­
ta, pareciam correr por sobre as copas das árvores, agora estavam pa­
radas, lançando um brilho forte por entre os ramos desnudos.
- Pelo menos está seco - disse o oficial inferior Panov, tirando
do ombro a espingarda comprida, com baioneta, que tiniu quando a
encostou ao tronco do plátano. Os três soldados fizeram o mesmo.
- Perdi-o, pronto - resmungou Panov zangado -, ou esqueci­
me dele, ou então caiu-me pelo caminho.
- Do que andas à procura? - perguntou um dos soldados num
tom animado.
- Do cachimbo... sei lá onde foi que o perdi, c 'os diabos!
- Mas não perdeste o tubo? - perguntou a voz animada.
- Não, está aqui.
- Não queres fumar do chão?
- Eh, dá muito trabalho.
- Não, é num instante.
Era proibido fumar no posto secreto, mas aquele posto quase não
era secreto, era mais uma guarda avançada que servia para impedir
que os montanheses levassem para lá um canhão, às escondidas, e
disparassem contra a fortaleza (como já tinham feito antes); portan­
to, Panov não achava necessário privar-se da cachimbada e aceitou
a proposta do soldado. Este tirou do bolso um canivete e pôs-se a
escavar na terra. Fez um buraquinho, alisou-o, ajustou o tubo ao bu­
raco, depois encheu-o de tabaco, pisou-o com os dedos, e pronto,
estava montado o cachimbo. O fósforo acendeu-se, alumiando por
um momento a cara de maçãs salientes do soldado deitado de bru­
ços. O tubinho assobiou e Panov sentiu o cheiro agradável do taba­
co forte.
- Já está? - disse, pondo-se de pé.
- Está, olha.
- Bom rapaz, Avdéev, esperto. Então...
Avdéev afastou-se, expelindo fumo pela boca e virando-se de lado
para abrir espaço a Panov.
18 Lev Tolstói

Panov deitou-se de barriga e, depois de limpar o tubo com a man­


ga, começou a lançar baforadas.
Fumando, os soldados encetaram uma conversa.
- Ouvi dizer que o comandante da companhia voltou a meter a
mão na caixa, pois perdeu no jogo - disse um dos soldados pregui­
çosamente.
- Ele restitui o dinheiro - disse Panov.
- Com certeza, é um bom oficial - apoiou-o Avdéev.
- Bom, bom... - continuou sombriamente o soldado que come-
çara a conversa -, mas no meu entender a companhia tem de falar
com ele: levantaste dinheiro, então diz lá quanto e quando é que o de­
volves.
- A companhia é que vai decidir - disse Panov, interrompendo
as fumaças.
- É claro, a palavra da companhia acima de tudo - confirmou
Avdéev.
- É preciso comprar aveia e arranjar botas para a Primavera, é tu­
do dinheiro, mas se ele o tirou ... - insistia o descontente.
- Já te disse que a companhia é que vai decidir - repetiu Panov.
- Não é a primeira vez: já tem tirado e depois devolve.
Naqueles tempos, no Cáucaso, cada companhia tratava sozinha da
sua intendência, através dos seus eleitos. Recebia do erário seis rublos
e cinquenta copeques por pessoa e cuidava do fornecimento dos seus
víveres: plantava o repolho, segava o feno, tinha os seus próprios car­
ros, orgulhava-se dos seus cavalos bem alimentados. Ora, o dinheiro
ia para uma caixa, sendo a chave guardada pelo comandante da com­
panhia; este recorria então a empréstimos, o que sucedia muito, le­
vantando dinheiro da referida caixa. Foi o que aconteceu dessa vez, e
era disso que falavam os homens. Nikítin, o soldado sombrio, queria
exigir contas ao comandante, mas Panov e Avdéev achavam isso des­
necessário.
Depois de Panov, fumou também Nikítin, que se sentou em cima
do capote, encostado à árvore. Os soldados calaram-se. Ouvia-se ape­
nas o bulir do vento nas copas altas das árvores, por cima das cabe­
ças. De repente, no meio desse ininterrupto e baixinho farfalhar, ou­
viu-se o uivo, o ganido, o choro, o riso dos chacais.
- Irra, como cantam esses malditos - disse Avdéev.
- Estão a rir-se de ti, da tua cara torta - pronunciou a voz fina,
com sotaque ucraniano, do terceiro soldado.
Hadji-Murat 19

Tudo voltou a silenciar-se, apenas o vento mexia nos ramos das ár­
vores, ora abrindo, ora tapando as estrelas.
- Diz lá - perguntou de repente o animado Avdéev a Panov - ,
acontece-te alguma vez ficares aborrecido?
- Que aborrecimento pode haver? - respondeu Panov a contra­
gosto.
- Comigo, às vezes o enfado é tanto que nem sei o que sou capaz
de fazer comigo.
- Não me digas! - disse Panov.
- Daquela vez, lembras-te? Derreti o dinheiro todo na bebedeira,
só por causa desta chatice. Tomou conta de mim, e pensei: vou em­
borrachar-me até cair.
- Às vezes ainda se fica pior com os copos.
- Mas também, o que se pode fazer?
- E é porquê, esse teu aborrecimento?
- Porquê? Porque tenho saudades de casa!
- E como era a tua vida, a tua farm1ia é rica?
- Ricos não, mas vivíamos bem. Nada mal, até.
E Avdéev pôs-se a contar o que já tinha contado muitas vezes a
Panov.
- Alistei-me por minha própria vontade, na vez do meu irmão. Ele
já tinha cinco filhos, e eu não, tinha acabado de me casar. E a minha
mãe pediu-me tanto. Pensei: não me importo! Mais tarde talvez me
agradeçam o bem que lhes fiz. Fui falar com o meu senhor. O nosso
senhor é bom, disse: «Fazes bem, rapaz, vai!» E vim, em vez do meu
irmão.
- Fizeste bem - disse Panov.
- Mas agora é um tédio, acredita. E aborreço-me sobretudo por-
que vim na vez do meu irmão. Penso: ele agora está a viver como um
rei, e eu aqui a sofrer. Quanto mais penso, pior me sinto. É uma ten­
tação, acho eu.
Avdéev ficou um pouco calado.
- Vamos fumar? - perguntou.
- Vamos, prepara lá isso!
Não tiveram tempo para fumar. Mal Avdéev se levantou para pre­
parar o cachimbo, no meio do sopro do vento ouviram-se passos no
caminho. Panov pegou na espingarda e empurrou Nikítin com o pé.
Este levantou-se logo e apanhou o capote. Também Bondarenko, o
terceiro homem, se levantou.
20 Lev Tolstói

- Que sonho eu tive, meus amigos...


Chut! , fez Avdéev a Bondarenko, e os soldados imobilizaram-se, à
escuta. Os passos, suaves, de gente sem botas, estavam a aproxi­
mar-se. Os estalidos dos ramos secos e das folhas ouviam-se cada vez
mais. A seguir, começaram a soar palavras daquela língua esquisita e
gutural em que falam os tchetchenos. Depois, os soldados não só ou­
viam, mas também já viam duas sombras que passavam no meio das
árvores. Uma era mais alta, outra mais baixa. Quando as sombras
chegaram ao perto dos soldados, Panov, com a espingarda em riste,
saiu-lhes ao caminho juntamente com os camaradas.
- Quem vem lá? - gritou.
- Tchetcheno pacífico - respondeu o homem mais baixo. Era o
Bata. - Espingarda iokl5, espada iok - disse ele, apontando para si
próprio. - Precisar o príncipe.
O mais alto estava parado e silencioso junto do seu companheiro.
Também não estava armado.
- Emissário. Leva-se ao comandante do regimento - explicou
Panov aos seus camaradas.
- Precisar muito o príncipe Vorontsov, grande coisa precisar -
disse Bata.
- Está bem, de acordo, levamo-los - disse Panov. - Bem, le­
va-os tu e mais o Bondarenko - dirigiu-se a Avdéev. - Depois de
os entregares ao oficial de serviço, volta aqui. E vê se tens cuidado,
leva-os à tua frente. Olha que esses testas rapadas são espertalhões.
- Então, e isto serve para quê? - disse Avdéev, fazendo um mo­
vimento de arremetida com a espingarda e a baioneta. - Espeto-lha,
e adeus.
- Se o matares, que proveito se tira dele? - replicou Bondaren­
ko. - Pronto, toca a andar!
Quando os passos dos dois soldados e dos emissários se silencia­
ram, Panov e Nikítin voltaram para o seu posto.
- Que diabo os faz andar por aqui de noite? - disse Nikítin.
- Portanto, é porque têm necessidade - respondeu Panov. - Es-
tá mais frio - acrescentou e, desenrolando o capote, vestiu-o e sen­
tou-se junto à árvore.
Duas horas depois, Avdéev e Bondarenko voltaram.
- Então, entregaram-nos? - perguntou-lhes Panov.
- Já está. Em casa do comandante ainda não dormem. Levámo-los
directamente para lá. Ouve, amigo, esses rapazes de testa rapada são
Hadji-Murat 21

muito boa gente - continuou Avdéev. - É verdade! Falei muito com


eles.
- Já se sabe, para ti é só tagarelar, não queres outra coisa - dis­
se Nikítin com desgosto.
- Mas juro, são tal qual os russos. Um é casado. «Maruchka
bar?l6», pergunto-lhe eu. «Bar», diz ele. «Barantchuk bar?l7», per­
gunto-lhe. «Bar.» «Muitos?» «Dois», diz ele. Falámos muito bem.
São bons rapazes.
- Isso é o que tu pensas - disse Nikítin. - Mas se ele te apanha
sozinho, estripa-te, podes crer.
- Acho que vai amanhecer, falta pouco - disse Panov.
- É, as estrelinhas já começaram a apagar-se - disse Avdéev,
sentando-se.
E os soldados voltaram a calar-se.

Havia muito que as janelas das casernas e das barracas dos solda­
dos estavam escuras, mas numa das melhores casas da fortaleza to­
das as janelas ainda luziam. Esta casa era ocupada pelo comandante
do Regimento de Kurá, ajudante-de-campo da corte, príncipe Se­
mion Mikháilovitch Vorontsov, que era filho do
comandante-em-chefe. Vorontsov vivia com a sua mulher Mária
Vassílievna, uma famosa beldade de Petersburgo, e faziam uma vida
nessa pequena fortaleza do Cáucaso como nunca alguém tivera na­
quele lugar. Vorontsov, porém, e sobretudo a sua mulher achavam
que a sua vida ali não era apenas modesta mas também cheia de pri­
vações; ora, os habitantes locais espantavam-se com o luxo extraor­
dinário em que vivia o príncipe.
Agora, à meia-noite, numa grande sala de estar, em que um tapete
cobria todo o chão e os pesados reposteiros estavam corridos, os do­
nos da casa e os convidados abancavam à mesa de jogo, iluminada
por quatro velas. Um dos jogadores era o próprio coronel Vorontsov,
de cara comprida e cabelo loiro, com os monogramas e as agulhetas
de ajudante-de-campo da corte na farda; o seu parceiro era um licen­
ciado da Universidade de Petersburgo, jovem de cabelo desgrenhado
e ar sombrio, contratado havia pouco tempo pela princesa como pre­
ceptor do pequeno rapazinho, filho do seu primeiro casamento. Os
22 Lev Tolstói

seus adversários eram dois oficiais: o comandante de companhia Pol­


torátski, de cara larga e corada, que antes servia na guarda imperial,
e o ajudante-de-campo do regimento, sentado com as costas muito di­
reitas e uma expressão fria no seu rosto bonito. A princesa Mária Vas­
sílievna, mulher alta e bela, de olhos grandes e sobrancelhas negras,
estava sentada ao lado de Poltorátski, tocando as pernas dele com a
sua crinolina e espreitando para as suas cartas. Nas palavras, nos
olhares e no sorriso da princesa, em todos os movimentos do seu cor­
po, no perfume a que cheirava, havia qualquer coisa que levava Pol­
torátski ao esquecimento de tudo além da sensação da sua proximi­
dade, por isso cometia erros atrás de erros, irritando cada vez mais o
seu parceiro.
- Não, assim é impossível! Voltou a perder o ás! - disse, enru­
bescendo, o ajudante-de-campo, quando Poltorátski jogou um ás.
Poltorátski, como se acabasse de acordar, olhava para o ajudante,
sem perceber, com os seus bondosos olhos negros e afastados.
- Perdoe-lhe! - disse Mária Vassílievna, sorrindo. - V ê? Não
lhe disse? - dirigiu-se a Poltorátski.
- Mas disse outra coisa - respondeu este também sorridente.
- Foi outra coisa? - disse ela e voltou a sorrir. E este sorriso
emocionou e alegrou Poltorátski de tal modo que ficou rubro e se pôs
a baralhar as cartas.
- Não eras tu a baralhar - observou severamente o ajudante-de-
-campo e, com a mão branca em que se destacava um anel, começou
a dar cartas com o ar de quem apenas desejava ver-se livre delas.
O criado grave do príncipe entrou na sala e anunciou que o oficial
de serviço procurava o príncipe.
- Peço desculpa, meus senhores - disse Vorontsov com um so­
taque inglês. - Marie, senta-te, joga por mim.
- Estão de acordo? - perguntou a princesa, levantando-se rápida
e levemente, alta, com o vestido de seda a roçagar e com um sorriso
radiante de mulher feliz.
- Estou sempre de acordo com tudo - disse o ajudante, muito
contente porque iria enfrentar uma jogadora, a princesa, que pura e
simplesmente não sabia jogar. Quanto a Poltorátski, apenas abriu os
braços, sorrindo.
O príncipe voltou à sala quando o róber estava a acabar. Entrou
muito contente e excitado.
- Vou propor-lhes uma coisa.
Hadji-Murat 23

- O quê?
- Bebamos champanhe.
- Quanto a isso, estou sempre de acordo - disse Poltorátski.
- Está bem, com muito prazer - disse o ajudante.
- Vassíli, sirva-o - mandou o príncipe.
- Porque te chamaram? - perguntou-lhe Mária Vassílievna.
- Era o oficial de serviço e mais um homem.
- Quem? Porquê? - apressou-se a perguntar Mária Vassílievna.
- Não posso dizer - respondeu Vorontsov, encolhendo os om-
bros.
- Não podes - repetiu Mária Vassílievna. - Bem, veremos.
O champanhe foi trazido. Os convidados beberam e, terminado o
jogo, ajustaram contas e começaram a despedir-se.
- Qual foi a companhia designada para ir amanhã à floresta, a
sua? - perguntou o príncipe a Poltorátski.
- Sim, a minha. Porquê?
- Então vemo-nos amanhã - disse o príncipe com um ligeiro sor-
riso.
- Muito bem - respondeu Poltorátski, quase sem perceber o que
lhe estava a dizer Vorontsov e preocupado apenas com a mão grande
e branca de Mária Vassílievna que ia apertar.
Mária Vassílievna, como sempre, não só apertou com força mas
ainda sacudiu a mão de Poltorátski. E, ao lembrar-lhe mais uma vez
o seu erro de ter jogado ouros, dirigiu-lhe, como pareceu a Poltoráts­
ki, um sorriso encantador, carinhoso e significativo.

* * *

Poltorátski regressava a casa naquele estado de ânimo exaltado que


apenas compreendem as pessoas que, tal como ele, viveram e foram
educadas na sociedade aristocrática, depois viram-se obrigadas a
muitos meses de restrições da vida militar e, de repente, voltaram a
encontrar uma senhora pertencente ao seu ambiente social, ainda por
cima uma dama como a princesa Vorontsov.
Chegado à casa que partilhava com um camarada, Poltorátski em­
purrou a porta, mas estava trancada. Bateu. Não abriam. Irritou-se e
pôs-se às pancadas na porta fechada com o pé e a espada. Do outro
lado ouviram-se passos e Vavilo, servo de Poltorátski, desprendeu o
ferrolho.
24 Lev Tolstói

- Fechaste a porta porquê? Imbecil!


- Mas, Aleksei V ladimirovitch, como é que se pode. . .
- Outra vez bêbedo. Já te mostro como é que se pode. . .
Poltorátski fez menção de bater em Vavilo, mas conteve-se.
- Vai pró diabo. Acende a vela.
- Sim, senhor.
Vavilo estava razoavelmente bebido, era um facto, porque tinha
ido à festa de anos do quarteleiro. Quando voltava para casa, pensa­
va na sua vida e comparava-a com a do quarteleiro Ivan Makéitch.
Este obtinha rendimentos, estava casado e tinha a esperança de pas­
sar à desmobilização definitiva dali a um ano. Ora ele, Vavilo, fora
posto ao serviço doméstico dos senhores ainda em criança e agora já
passava dos quarenta mas não se casara e acompanhava o seu senhor
desordenado na sua vida de campanhas militares. O senhor não era
mau, raramente chegava a vias de facto. . . mas que vida era aquela?
«Prometeu-me a carta de alforria quando voltasse do Cáucaso, mas
onde é que eu vou com essa alforria? Que vida de cão! » - pensava
Vavilo. E estava com tanto sono que, para dormir descansado e sem
medo de alguém entrar e roubar alguma coisa, trancou a porta e ador­
meceu.
Poltorátski entrou no quarto onde dormia ele e o seu camarada Tí­
khonov.
- Então, perdeste? - perguntou-lhe o Tíkhonov, acabando de
acordar.
- Não, ganhei dezassete rublos e ainda bebemos uma garrafinha
de Cliquot.
- E olhaste para Mária Vassílievna?
- E olhei para Mária Vassílievna.
- Daqui a pouco temos de nos levantar - disse Tíkhonov. - Às
seis pomo-nos em marcha.
- Vavilo! - gritou Poltorátski. - V ê lá se me acordas às cinco.
- Como é que o vou acordar, se o senhor me bate logo?
- Não ouviste o que te disse? Acorda-me.
- Sim, senhor.
Vavilo saiu, levando consigo as botas e a farda do senhor; Polto­
rátski deitou-se e, sorrindo, acendeu um cigarro e apagou a vela. Es­
tava a ver na escuridão o rosto sorridente de Mária Vassílievna.

* * *
Hadji-Murat 25

Em casa dos Vorontsov, também demoraram a adormecer. Quando


os convidados saíram, Mária Vassílievna aproximou-se do marido e
disse com rigor:
- Eh bien, vous allez me dire ce que c'est?
- Mais, ma chere...
- Pas de «ma chere»! C'est un émissaire, n'est-ce pas?
- Quand même je ne puis pas vous le dire.
- Vous ne pouvez pas? Alors e' est moi qui vais vous le dire.
- Vous?l8
- Hadji-Murat, não é? - disse a princesa que tinha ouvido falar
sobre as conversações com Hadji-Murat havia já vários dias, supon­
do assim que o próprio Hadji-Murat viera ter com o seu marido.
Vorontsov não podia negá-lo, mas desiludiu a mulher dizendo que
não viera Hadji-Murat em pessoa mas sim um emissário deste para
lhe comunicar que Hadji-Murat ia encontrar-se com ele no sítio onde
se planeava cortar as árvores.
No meio da vida monótona na fortaleza, os jovens Vorontsov, tan­
to o marido como a mulher, estavam entusiasmados com esse aconte­
cimento. Passava das duas da madrugada quando, depois de falarem
do grande contentamento que a notícia ia sem dúvida dar ao pai do
príncipe, os esposos deitaram-se.

Depois das três noites sem sono que passara fugindo dos murides
de Shamil, Hadji-Murat adormeceu logo que Sado, tendo-lhe dado as
boas-noites, saiu da sáklia. Dormia vestido, apoiando a cabeça no co­
tovelo afundado nas almofadas vermelhas de penugem que o dono da
casa lhe pusera. Perto dele, junto à parede, dormia Eldar, deitado de
costas, com os membros fortes e jovens muito abertos e com o peito
proeminente, com os gazires pretos da tcherkeska branca, mais altea­
do do que a cabeça rapada de fresco, azulada, reclinada para trás e
caída da almofada. O seu lábio superior, alongado de forma infantil,
com uma penugem a cobri-lo ligeiramente, apertava-se e descon­
traía-se, como que a bebericar. Dormia como Hadji-Murat: sem se
despir, com uma pistola à cintura e um punhal. Na lareira da sáklia,
as brasas estavam a extinguir-se, na abertura do fogão uma candeia
lançava a sua luz fraca.
26 Lev Tolstói

A meio da noite a porta rangeu e Hadji-Murat levantou-se de ime­


diato, levando a mão à pistola. No quarto entrou Sado, pisando sua­
vemente o chão de terra batida.
- O que é? - perguntou Hadji-Murat numa voz tão enérgica co­
mo se não tivesse acabado de acordar.
- É preciso pensar - disse Sado, sentando-se de cócoras em fren­
te de Hadji-Murat. - Uma mulher viu-te do telhado quando chegas­
te, ela contou ao marido e agora todo o aúl já sabe. Uma vizinha veio
dizer à minha mulher que os velhos se reuniram junto à mesquita e te
querem prender.
- Tenho de partir - disse Hadji-Murat.
- Os cavalos estão prontos - disse Sado. E saiu rapidamente.
- Eldar - sussurrou Hadji-Murat. E o jovem, ao ouvir o seu nome
e, sobretudo, a voz do seu murchid, ficou assente, de um salto, nos pés
fortes, ajustando o gorro na cabeça. Hadji-Murat prendeu as armas e
vestiu a burka. Eldar fez a mesma coisa e os dois, silenciosos, saíram
e pararam debaixo do alpendre. O rapazinho de olhos negros che­
gou-lhes os cavalos. Ao ouvir o som dos cascos pela terra batida da rua,
uma cabeça assomou à porta da sáklia vizinha, e um homem, batendo
com os sapatos de madeira, correu, subindo o monte, até à mesquita.
Não havia luar, mas as estrelas brilhavam muito no céu negro, e no
negrume distinguiam-se os contornos dos telhados, sobretudo o edi­
fício da mesquita com o seu minarete, na parte alta do aúl. Da mes­
quita chegava o rumor das vozes.
Hadji-Murat pegou rapidamente na espingarda, meteu o pé no es­
tribo estreito e, lançando sem barulho o corpo, ficou sentado na al­
mofada alta da sela.
- Que Deus vos pague! - disse, dirigindo-se ao dono da casa e
procurando, num movimento automático do pé direito, o outro estri­
bo; depois tocou ao de leve com o azorrague no rapazinho que segu­
rava o cavalo, para que se afastasse. O rapaz arredou-se, e a monta­
da, como se soubesse de cor o que tinha de fazer, arrancou em passo
enérgico, saindo da viela para o caminho principal. Eldar cavalgava
atrás de Hadji-Murat; Sado, de peliça, baloiçando rapidamente os bra­
ços, seguia-os a pé, quase a correr, passando de um lado para o outro
da rua estreita. À saída, no outro lado do caminho, surgiu uma som­
bra em movimento, depois outra.
- Alto! Quem é? Pára! - gritou uma voz. E vários homens bar­
raram o caminho.
Hadji-Murat 27

Em vez de parar, Hadji-Murat sacou a pistola do cinto e, aceleran­


do o passo, dirigiu o cavalo contra a barreira humana. Os homens abri­
ram o caminho e Hadji-Murat, sem olhar para trás, meteu o cavalo pe­
lo caminho abaixo num passo largo e célere. Eldar seguia-o a trote
acelerado. Nas costas deles estalaram dois tiros e assobiaram duas ba­
las que não apanharam um nem outro. Hadji-Murat mantinha o mes­
mo passo. Depois de percorrer cerca de trezentos passos, fez parar o
cavalo ligeiramente ofegante e ficou à escuta. À frente, em baixo, ma­
rulhava uma corrente rápida. Atrás, ouviam-se os galos a cantar no
aúl. No meio destes sons também já soava, na retaguarda de Hadji­
-Murat, o bater dos cascos e o rumor das vozes que se aproximavam.
Hadji-Murat tangeu o cavalo e foi andando no mesmo passo regular.
A gente atrás dele ia a galope e não tardou a apanhar Hadji-Murat.
Eram cerca de vinte cavaleiros, moradores do aúl, que resolveram de­
tê-lo ou, pelo menos, para se justificarem perante Shamil, fingir que
o queriam deter. Quando se aproximaram ao ponto de se distinguirem
na escuridão, Hadji-Murat parou, largou a brida e, abrindo a bainha
da espingarda com um movimento maquinal da mão esquerda, tirou
a arma com a mão direita. Eldar fez a mesma coisa.
- O que querem? - gritou Hadji-Murat. - Querem prender-me?
Então, força! - E levantou a espingarda. Os homens do aúl pararam.
Hadji-Murat, com a espingarda na mão, começou a descer para a
comba. Os cavaleiros, sem se aproximarem, foram no seu encalço.
Quando Hadji-Murat atravessou a comba, os homens atrás dele grita­
ram-lhe que parasse para ouvir o que lhe queriam dizer. Em resposta,
Hadji-Murat disparou a espingarda e lançou o cavalo a galope. Quan­
do parou, já não se ouvia a perseguição; também já não lhe chegavam
aos ouvidos os cantos dos galos, apenas o murmúrio mais claro da
água na floresta e, de vez em quando, o choro do bufo. A muralha ne­
gra da floresta já estava muito perto. Era naquela floresta que os mu­
rides estavam à sua espera. Na orla do arvoredo, Hadji-Murat parou,
encheu os pulmões de ar e assobiou; depois ficou à escuta, em silên­
cio. Um minuto depois chegou da floresta, em resposta, um assobio
idêntico. Hadji-Murat saiu do caminho e entrou na mata. Cem passos
adiante, através dos troncos das árvores, enxergou uma fogueira, vul­
tos humanos à volta do fogo e, meio alumiado pelo lume, um cavalo
selado e com as patas presas com a peia.
Um dos homens sentados à fogueira levantou-se rapidamente e
aproximou-se de Hadji-Murat, pegando na brida e no estribo do seu
28 Lev Tolstói

cavalo. Era um homem irmanado com Hadji-Murat, um ávaro19 de


nome Khanefi, que cuidava dos seus bens.
- Apagar o fogo! - mandou Hadji-Murat, apeando-se.
Os homens começaram a desfazer a fogueira e a pisar os ramos em
brasa.
- O Bata passou por aqui? - perguntou-lhes Hadji-Murat, acer­
cando-se da burka estendida no chão.
- Passou, e há muito que se foi embora, ele e mais o Khan-Ma­
goma.
- Por que caminho eles foram?
- Por este - respondeu Khanefi, apontando para o lado contrário
àquele pelo qual chegara Hadji-Murat.
- Está bem - disse Hadji-Murat. E pegando na espingarda, vol­
tou a carregá-la. - É preciso muito cuidado, fui perseguido - diri­
giu-se ao homem que estava a apagar a fogueira.
Este era um tchetcheno, chamado Gamzalo. Gamzalo aproximou­
-se da burka, apanhou de cima dela uma espingarda dentro do estojo
e, silenciosamente, foi postar-se na margem da clareira, no lugar por
onde acabara de chegar Hadji-Murat. Eldar apeou-se, pegou no cava­
lo de Hadji-Murat e, levantando muito as cabeças de ambos os cava­
los, atou-os às árvores; depois, tal como Gamzalo, pôs-se noutra mar­
gem da clareira, com a espingarda a tiracolo. A fogueira foi apagada,
e a floresta já não parecia tão negra, e as estrelas, embora fracas, bri­
lhavam no céu.
Olhando para as estrelas, para as Plêiades que se tinham levantado
até ao meio do céu, Hadji-Murat calculou que havia muito que pas­
sara da meia-noite e que chegara a hora da oração noctuma. Pediu a
Khanefi um kumgan, coisa que sempre se levava nos alforges, vestiu
a burka e foi até à água.
Quando se descalçou e fez a ablução, Hadji-Murat pôs os pés des­
calços sobre a burka, depois sentou-se sobre as barrigas das pernas e,
tapando primeiro os ouvidos e fechando os olhos, pronunciou as ora­
ções habituais, virado para levante.
Acabadas as orações, voltou para o seu lugar, onde estavam postos
os alforges, sentou-se em cima da burka e, de mãos nos joelhos e ca­
beça baixa, pôs-se a reflectir.
Hadji-Murat sempre acreditou na sua sorte. Quando empreendia al­
guma coisa, tinha desde o início a certeza do êxito - e conseguia tu­
do. Sempre assim foi, com excepção de alguns casos raros, durante
Hadji-Murat 29

toda a sua impetuosa vida guerreira. Tinha pois a esperança de que,


desta vez, seria a mesma coisa. Imaginava que, à frente da tropa que
lhe ia dar Vorontsov, atacava Shamil, o fazia prisioneiro e se vingava
dele, e que o czar russo o recompensava, e ele, então, passava de no­
vo a governar não só a Avária mas toda a Tchetchniá, que se lhe sub­
meteria. Com estes pensamentos, adormeceu sem dar por isso.
Sonhou que ele, com os seus bravos guerreiros, cantando e gritan­
do «Vai contra vós Hadji-Murat!», corre contra Shamil e o apanha
com todas as suas mulheres, e ouve as mulheres chorando e soluçan­
do. Acordou. A canção «La illakha» e os gritos «Vai contra vós Had­
ji-Murat!» e o choro das mulheres de Shamil - tudo isso era o uivo,
o choro e o riso dos chacais que o acordaram. Hadji-Murat levantou
a cabeça, olhou através dos troncos das árvores para o céu que já cla­
reava no oriente e perguntou por Khan-Magoma a um murid que se
sentava um pouco afastado dele. Ao saber que este ainda não voltara,
Hadji-Murat baixou a cabeça e, logo a seguir, voltou a adormecer.
Despertou-o a voz animada de Khan-Magoma que, juntamente
com Bata, voltara da sua missão. Khan-Magoma sentou-se sem de­
mora ao pé de Hadji-Murat e começou a contar-lhe como os soldados
os receberam e os levaram ao próprio príncipe, e como falara com o
próprio príncipe, e como o príncipe ficara contente e prometera en­
contrar-se com eles de manhã no lugar onde os russos iam cortar as
árvores - por trás de Mitchik, na clareira de Shalin. Bata interrom­
pia de vez em quando o seu companheiro, introduzindo os seus por­
menores.
Hadji-Murat quis saber em pormenor com que exactas palavras Vo­
rontsov respondera à proposta de um encontro entre Hadji-Murat e os
russos. Tanto Khan-Magoma, como Bata afirmaram que o príncipe
prometera receber Hadji-Murat como um convidado e fazer com que
se sentisse bem. Hadji-Murat indagou-os também sobre o caminho e,
quando Khan-Magoma lhe garantiu que conhecia bem o caminho e o
ia levar lá directamente, Hadji-Murat tirou o dinheiro e deu a Bata os
três rublos prometidos; e mandou que os homens lhe tirassem dos al­
forges as armas com entalhe de ouro e o gorro com o turbante, e que
os murides se limpassem para aparecerem perante os russos com as­
pecto decente. Enquanto limpavam as armas, as selas e os arreios, as
estrelas apagaram-se, o ar clareou e começou a soprar o vento do
amanhecer.
30 Lev Tolstói

De manhã cedo, ainda na escuridão, duas companhias sob o co­


mando de Poltorátski, munidas de machados, avançaram até dez vers­
tás do portão de Tchakhguirin e, depois de distribuírem as linhas
avançadas de atiradores, iniciaram o corte das árvores logo que ama­
nheceu. Cerca das oito da manhã, o nevoeiro misturado com o fumo
aromático dos ramos húmidos que crepitavam e silvavam nas foguei­
ras começou a subir, e os soldados, que antes disso apenas se ouviam
mas não se viam uns aos outros a uma distância de cinco passos, já
podiam ver as fogueiras e o caminho florestal coberto de árvores cor­
tadas; o sol ora despontava no nevoeiro como uma mancha clara, ora
se ocultava. Na clareira, sentados nos tambores e afastados do cami­
nho, estavam Poltorátski, com o seu oficial subalterno Tíkhonov, dois
oficiais da terceira companhia e o barão Frese, ex-oficial da guarda de
cavalaria, despromovido por causa de um duelo, e que tinha sido co­
lega de Poltorátski na Escola de Pajens. À volta dos tambores esta­
vam espalhados os papéis com que tinham sido embrulhados os pe­
tiscos, pontas de cigarros e garrafas vazias. Os oficiais, que já tinham
emborcado vodca e petiscado, estavam a beber Porter. O tambor abria
a oitava garrafa. Poltorátski, apesar de ter dormido pouco, encontra­
va-se no estado especial de elevação das forças de ânimo e de bon­
dosa e despreocupada alegria em que costumava sentir-se no meio
dos seus soldados e camaradas nas situações de um possível perigo.
Os oficiais comentavam animadamente a última notícia - a mor­
te do general Sleptsov. Ninguém via nessa morte o importantíssimo
momento em que acontece o fim da vida humana e o regresso à fon­
te donde ela manou; viam apenas a bravura de um oficial destemido
que se atirara de sabre em punho contra os montanheses, acutilan­
do-os arrojadamente.
Embora todos, sobretudo os oficiais que tinham participado em
combates, soubessem e pudessem saber que naquela guerra caucasia­
na, como de resto em todo o lado, nunca se cruzavam armas corpo a
corpo da maneira que sempre se pressupõe e se descreve (e mesmo
que acontecesse um combate corpo a corpo com sabres e baionetas,
os acutilados eram sempre só os que fugiam), esse combate corpo a
corpo fictício era reconhecido como verdadeiro pelos oficiais, o que
lhes dava o tranquilo orgulho e a alegria com que eles - alguns com
galhardia, outros, pelo contrário, numas atitudes muito modestas -
Hadji-Murat 31

estavam sentados sobre os tambores, fumavam, bebiam e tagarela­


vam, sem se preocuparem com a morte que, do mesmo modo que a
Sleptsov, podia atingir cada um deles a qualquer momento. E de fac­
to, no meio da conversa, como que para confirmar as suas expectati­
vas, à esquerda do caminho ouviu-se o animador e bonito som de um
tiro de espingarda, estalando brusco, e uma bala, assobiando alegre­
mente, voou algures no ar enevoado e bateu contra uma árvore. Em
resposta, várias espingardas dos soldados dispararam estrondosa e pe­
sadamente.
- Ena! - gritou Poltorátski com uma voz animada. - É na linha
dos atiradores. Bem, amigo Kóstia - disse a Frese - , estás com sor­
te. Vai ter com a tua companhia. Vamos já travar um combate mara­
vilhoso! E depois, um relatório para te promover.
O barão despromovido pôs-se em pé de um salto e, num passo es­
tugado, dirigiu-se para a área de fumo, onde estava a sua companhia.
Trouxeram a Poltorátski o seu cavalinho cabardino, de cor marron,
ele montou-o e, depois de pôr a companhia em formação, levou-a até
à linha avançada, na direcção dos tiros. Os atiradores estavam na or­
la da floresta, em frente do declive do barranco nu. O vento soprava
para a floresta e não só o declive do barranco mas também o seu ou­
tro lado eram claramente visíveis.
Quando Poltorátski se aproximou da linha, o sol surgiu de entre o
nevoeiro e vários homens a cavalo ficaram à vista na outra margem
do barranco, ao lado de outra mata, a cerca de cem braças de dis­
tância. Eram os tchetchenos que tinham perseguido Hadji-Murat e
queriam ver se ele se ia encontrar com os russos. Um deles disparou
contra a linha. V ários soldados ripostaram. Os tchetchenos recuaram
e o tiroteio parou. Porém, quando Poltorátski e a companhia dele
chegaram, ele mandou abrir o fogo e, mal foi dada a ordem, estoi­
raram por toda a linha os tiros alegres e excitantes, acompanhados
por fuminhos que se dispersavam no ar de forma pitoresca. Os sol­
dados, contentes com o divertimento, carregavam as armas rapida­
mente e davam tiro após tiro. Os tchetchenos, sentindo o entusias­
mo do desafio, começaram a saltar para a frente e, cada um por sua
vez, alvejaram os russos. Um dos tiros feriu um soldado. Era aque­
le mesmo Avdéev que passara a noite no posto avançado. Quando os
seus camaradas se aproximaram dele, Avdéev estava deitado de bru­
ços, apertando com ambas as mãos a ferida no ventre e baloiçando
o corpo.
32 Lev Tolstói

- Começo a carregar a espingarda quando oiço: uma bala - es­


tava a dizer o soldado que fazia par com Avdéev. - Olho: ele largou
a arma.
Avdéev pertencia à companhia de Poltorátski. Ao ver que um gru­
po de soldados se tinha juntado, Poltorátski aproximou-se deles.
- O que foi, meu amigo, apanhaste um balázio? - perguntou. -
Onde?
Avdéev não respondeu.
- Vossa senhoria, começo a carregar - disse o mesmo soldado -,
quando oiço: uma bala; olho: ele largou a arma.
- Tst-tst-tst - estalou a língua Poltorátski. - Avdéev, dói-te?
- Não dói, mas não me deixa andar. Um bocadinho de vodca, por
favor, vossa senhoria.
A vodca, ou seja, o álcool que os soldados bebiam no Cáucaso, foi
arranjada e Panov, carregando severamente o sobrolho, chegou à bo­
ca de Avdéev a tampa do frasco. Avdéev começou a beber, mas logo
a seguir afastou a tampa com a mão.
- Não consigo - disse - , bebe tu.
Panov emborcou o álcool. Avdéev repetiu a tentativa de se levan­
tar, mas voltou a sentar-se. Estenderam no chão um capote e deitaram
nele Avdéev.
- Vossa senhoria, o coronel vem aí - disse o vagomestre.
- Está bem, faz o que é preciso aqui - disse Poltorátski e, bran-
dindo o azorrague, foi a grande trote ao encontro de Vorontsov.
Vorontsov vinha montado no seu cavalo ruivo, um inglês puro-san­
gue, acompanhado pelo ajudante-de-campo do regimento, por um
cossaco e um intérprete tchetcheno.
- O que se passa? - perguntou a Poltorátski.
- Apareceram uns tchetchenos, atacaram a linha - respondeu-lhe
Poltorátski.
- Pois, pois, foi o senhor que os instigou.
- Não fui eu, príncipe - sorriu Poltorátski -, eles é que come-
çaram.
- Disseram-me que um soldado foi ferido.
- Foi, é pena. É um bom soldado.
- É grave?
- Parece que é, na barriga.
- Sabe onde vou agora?
- Não sei.
Hadji-Murat 33

- Nem adivinha?
- Não.
- Hadji-Murat chegou e vem ao nosso encontro.
- Não me diga!
- Ontem veio ter comigo um homem dele - disse Vorontsov,
contendo a custo um sorriso de contentamento. - Já deve estar à mi­
nha espera na clareira de Chalin; então coloque os atiradores daqui
até à clareira e junte-se a mim.
- Sim, meu coronel - disse Poltorátski, levando a mão ao gorro,
e foi ter com a sua companhia. Levou a linha para o lado direito, dan­
do ordem ao vagomestre para que fizesse o mesmo do lado esquerdo.
O ferido, entretanto, estava a ser levado por quatro soldados para a
fortaleza.
Poltorátski ia já reunir-se a Vorontsov quando, na sua retaguarda,
se aproximavam uns cavaleiros. Poltorátski parou, à espera.
À frente de todos, montado num cavalo de crina branca, vinha um
homem de ar imponente, de tcherkeska branca, turbante por cima do
gorro e armas guarnecidas de ouro. Era Hadji-Murat. Chegou ao pé
de Poltorátski e pronunciou qualquer coisa em tártaro. Poltorátski le­
vantou o sobrolho e abriu os braços em sinal de não compreender, e
sorriu. Hadji-Murat devolveu-lhe o sorriso, um sorriso que impres­
sionou Poltorátski pela sua bonomia infantil. Não esperava que o ter­
rível montanhês fosse assim. Esperava ver uma pessoa sombria, seca,
alheia, mas à sua frente estava um homem muito simples, com um
sorriso tão bondoso que não parecia um estranho mas sim um amigo
de longa data. Nele, apenas uma coisa era invulgar: os seus olhos
muito afastados que fitavam os olhos dos outros com uma atenção
calma e penetrante.
A comitiva de Hadji-Murat consistia em quatro homens. Um
era aquele Khan-Magoma que, de noite, fora falar com Vorontsov.
Era um homem de olhos negros e brilhantes, e de cara redonda e
corada, irradiando a alegria de viver. Havia mais um, atarracado,
peludo, com sobrancelhas unidas. Era o ávaro Khanefi, que geria
todos os bens de Hadji-Murat. Trazia consigo um cavalo de reser­
va, com alforges muito cheios no dorso. Mas dois homens desta­
cavam-se sobremaneira na comitiva: um jovem, com uma barbi­
cha ruça muito recente, cintura fina como a de uma mulher e
ombros largos, um bonitão de olhos de carneiro - era Eldar; e o
outro, zarolho, sem sobrancelhas nem pestanas, com uma barbi-
34 Lev Tolstói

cha ruiva aparada e uma cicatriz no nariz e na face - o tchetche­


no Gamzalo.
Vorontsov surgiu no caminho e Poltorátski indicou-o a Hadji-Mu­
rat, que foi ao seu encontro; quando se aproximou dele, levou a mão
direita ao peito e, dizendo qualquer coisa em tártaro, parou. O intér­
prete tchetcheno traduziu:
- Entrego-me, diz ele, ao czar russo, quero servi-lo, diz ele. Há
muito que o quero, diz ele, mas Shamil não deixava.
Depois de o intérprete ter falado, Vorontsov estendeu a Hadji-Mu­
rat a mão de luva de camurça. Hadji-Murat olhou para aquela mão,
hesitou um segundo, mas depois apertou-a com força e disse mais al­
guma coisa, olhando ora para o intérprete, ora para Vorontsov.
- Diz que não queria encontrar-se com ninguém a não ser conti­
go, porque és filho do sardar20. Tem muito respeito por ti.
Vorontsov acenou com a cabeça em sinal do agradecimento. Had­
ji-Murat voltou a falar, apontando para a sua comitiva.
- Diz que estes homens, os murides dele, vão servir os russos tal
como ele.
Vorontsov virou-se para eles e acenou-lhes também.
O alegre Khan-Magoma, de olhos negros sem pálpebras, acenando
também com a cabeça, disse a Vorontsov uma coisa provavelmente
engraçada, porque o ávaro peludo arreganhou os dentes brancos num
sorriso largo. Quanto ao ruivo Gamzalo, apenas lançou a Vorontsov o
brilho momentâneo do seu único olho vermelho e voltou a fixar o
olhar nas orelhas do seu cavalo.
Quando Vorontsov e Hadji-Murat, acompanhados pela comitiva, se
dirigiam para a fortaleza, um grupo de soldados tirados da linha não
deixou de fazer os seus comentários:
- A quanta gente ele tirou a vida, maldito seja! Mas agora não sa­
bem o que lhe hão-de fazer para lhe agradar! - disse um soldado.
- É verdade. Foi o melhor comandante do Shamil. Agora, com
certeza...
- Mas é um valentão, nada a dizer.
- E o ruivo, o ruivo... o olhar dele é como o de uma fera.
- Um cão raivoso, com certeza.
Sim, o ruivo atraía a atenção de todos.

* * *
Hadji-Murat 35

No lugar onde estavam a cortar as árvores, os soldados que traba­


lhavam mais perto do caminho acorriam para os verem passar. O ofi­
cial ralhou com eles, mas Vorontsov conteve-o.
- Deixa que olhem bem para o seu velho conhecido. Sabes quem
é? - perguntou Vorontsov com o seu sotaque inglês ao soldado mais
próximo.
- Não sei, Vossa Alteza.
- É Hadji-Murat... não ouviste falar?
- Com certeza, ouvi, Vossa Alteza, batemo-lo muitas vezes.
- Mas também já levaram muita coça dele.
- Exactamente, Vossa Alteza - respondeu o soldado, muito con-
tente por lhe ter calhado falar com o chefe.
Hadji-Murat percebia que estavam a falar dele e um sorriso alegre
luzia nos seus olhos. Vorontsov, muito bem-humorado, voltou à for­
taleza.

Vorontsov não cabia em si de contente por ter sido ele, precisa­


mente ele, quem havia feito sair da toca e recebido o principal e o
mais poderoso, depois de Shamil, inimigo da Rússia. Havia só uma
coisa desagradável: o comandante das tropas em Vozdvijênskaia era
o general Meller-Zakomélski e as formalidades exigiam que tudo is­
so fosse feito com a autorização dele. Ora, Vorontsov fez tudo sozi­
nho, sem o informar. Portanto, podiam surgir complicações. Esta
ideia estragava um pouco a alegria de Vorontsov.
Quando chegaram, Vorontsov entregou os murides aos cuidados do
ajudante-de-campo e convidou Hadji-Murat para sua casa.
A princesa Mária Vassílievna, ataviada e sorridente, com o seu fi­
lho de seis anos, bonito, com o cabelo encaracolado, recebeu Hadji­
Murat na sala de estar; Hadji-Murat, com as mãos apertadas contra o
peito, declarou com bastante solenidade, através do intérprete, que se
considerava o kunak do príncipe porque estava a ser recebido em sua
casa e que para ele toda a fanu1ia do kunak passava a ser sagrada co­
mo o próprio kunak. Todo o aspecto e maneiras de Hadji-Murat agra­
daram a Mária Vassílievna. E Hadji-Murat conquistou ainda mais
simpatia por parte da princesa porque corou muito quando ela lhe es­
tendeu a sua mão grande e branca. A princesa pediu-lhe que se sen-
36 Lev Tolstói

tasse, perguntou-lhe se tomava café e mandou servi-lo. Hadji-Murat,


contudo, recusou o café quando lho serviram. Compreendia um pou­
co a língua russa, mas não sabia falar e, quando não compreendia,
sorria; Mária Vassílievna gostou do seu sorriso tal como Poltorátski
já havia gostado. Quanto ao rapazinho de cabelo encaracolado e olhar
atento, a quem a mãe chamava Bulka, estava sempre ao pé dela, sem
desviar os olhos de Hadji-Murat, de quem ouvira falar como um guer­
reiro extraordinário.
Deixando Hadji-Murat com a mulher, Vorontsov foi ao escritório
e deu ordens para que se comunicasse aos chefes a visita de Had­
ji-Murat. Depois de ter escrito um relatório para Gróznaia, para o ge­
neral Kozlóvski, comandante do flanco esquerdo, e uma carta para o
seu pai, Vorontsov voltou rapidamente a casa, com medo de ter cau­
sado qualquer desgosto à mulher ao impor-lhe a companhia daquele
homem estranho e terrível que, porém, devia ser tratado de maneira
a não se sentir ofendido, mas, ao mesmo tempo, sem ser exagerada­
mente acarinhado. Afinal, o seu medo era infundado. Encontrou
Hadji-Murat acomodado na poltrona, com o seu enteado Bulka sen­
tado no joelho, ouvindo com atenção, por intermédio do intérprete,
o que lhe dizia uma sorridente Mária Vassílievna. Ora, Mária Vassí­
lievna estava a dizer-lhe que, se ele oferecesse a um qualquer kunak
aquela coisa que esse kunak lhe gabasse, não tardaria a andar como
Adão...
Hadji-Murat, vendo o príncipe a entrar, tirou do joelho Bulka,
surpreendido e ofendido com isso, e levantou-se, mudando de ime­
diato a expressão da cara de jocosa para rigorosa e séria. Voltou a
sentar-se apenas quando Vorontsov se sentou. Continuando a con­
versa, respondeu a Mária Vassílievna que aquela obrigação era para
eles uma lei: é preciso oferecer ao kunak tudo aquilo que agradar ao
kunak.
- Tua filho kunak - disse em russo, acariciando o cabelo enca­
racolado de Bulka que voltara a sentar-se ao seu colo.
- É encantador, este teu bandido - disse Mária Vassílievna ao
marido.
Bulka admirou o punhal de Hadji-Murat e este ofereceu-lho.
Bulka mostrou o punhal ao padrasto.
- C'est un objet de prix - disse Mária Vassílievna.
- Il faudra trouver l'occasion de lui faire cadeau21 - disse Vo-
rontsov.
Hadji-Murat 37

Hadji-Murat estava sentado com olhos baixos e, afagando a cabe­


ça encaracolada do petiz, repetia:
- Djiguit22, djiguit.
- É um excelente punhal, mesmo excelente - disse Vorontsov, ti-
rando da bainha, até ao meio, o aguçado punhal damasquino com um
sulco ao longo da lâmina. - Obrigado.
- Pergunta-lhe em que posso ser-lhe útil - disse Vorontsov ao in­
térprete.
O intérprete traduziu e Hadji-Murat respondeu de imediato que não
precisava de nada, apenas pedia que o levassem a um qualquer lugar
onde pudesse rezar. Vorontsov chamou o criado grave e mandou-o
cumprir o desejo de Hadji-Murat.
Logo que Hadji-Murat ficou sozinho na sala que lhe fora destaca­
da, a sua cara mudou: a expressão de prazer - ora carinhoso, ora so­
lene - desapareceu e transpareceu-lhe no rosto um ar preocupado.
Foi recebido por Vorontsov muito melhor do que tinha esperado.
Porém, quanto mais bem era recebido, menos confiava em Vorontsov
e nos seus oficiais. Tinha receio de tudo: que o prendessem, que o
agrilhoassem e o mandassem para a Sibéria, ou, então, que pura e sim­
plesmente o matassem; por isso estava alerta.
Perguntou a Eldar, que viera ter com ele, onde tinham sido coloca­
dos os murides e se não lhes haviam tirado as armas, e onde estavam
os cavalos.
Eldar informou-o: os cavalos estavam na cavalariça do príncipe, os
homens tinham sido instalados num barracão, conservavam as armas
e o intérprete estava a servir-lhes comida e chá.
Hadji-Murat, cheio de dúvidas, abanou a cabeça e, depois de se des­
pir, pôs-se a rezar. Ao acabar a prece, mandou que lhe trouxessem um
punhal de prata, vestiu-se, prendeu a arma à cintura e sentou-se com
as pernas cruzadas no sofá, esperando o que viria a seguir.
Já passava das quatro quando foi convidado para o almoço com o
príncipe.
Ao almoço, Hadji-Murat não comeu nada além do plov23 que tirou
para o seu prato do mesmo sítio donde se servira Mária Vassílievna.
- Tem medo de que o envenenemos - disse Mária Vassílievna ao
marido. - Serviu-se do mesmo sítio que eu. - E, a seguir, dirigiu-se a
Hadji-Murat, perguntando-lhe com a ajuda do intérprete a que horas
voltaria a rezar. Hadji-Murat levantou cinco dedos e apontou para o Sol.
Portanto, não faltava muito.
38 Lev Tolstói

Vorontsov tirou o relógio Breguet e premiu a mola - o relógio to­


cou as quatro e um quarto. Hadji-Murat, pelos vistos, ficou surpreen­
dido com aquele som e pediu a Vorontsov que o repetisse e o deixas­
se ver o relógio.
- Voilà l'occasion! Donnez-lui la montre24 - disse Mária Vassí­
lievna ao marido.
Vorontsov, de imediato, ofereceu o relógio a Hadji-Murat. Hadji­
-Murat levou a mão ao peito e aceitou o relógio. V árias vezes premiu
a mola, ouvindo e baloiçando a cabeça com aprovação.
Depois do almoço, anunciaram ao príncipe a chegada do ajudan­
te-de-campo de Meller-Zakomélski.
O ajudante comunicou ao príncipe que o general, quando soube do
aparecimento de Hadji-Murat, ficou muito descontente por não ter si­
do informado e exigia que Hadji-Murat fosse levado imediatamente à
presença dele. Vorontsov disse que a ordem do general ia ser cumpri­
da e, ao transmitir a Hadji-Murat, pelo intérprete, a exigência do ge­
neral, pediu-lhe que fosse com ele para o apresentar a Meller.
Mária Vassílievna, ao saber por que motivo viera o ajudante, per­
cebeu que entre o seu marido e o general poderia acontecer um con­
flito e, apesar de todas as tentativas de o príncipe a dissuadir, quis ir
com o marido e Hadji-Murat a casa do general.
- Vous feriez beaucoup mieux de rester; c'est mon affaire, mais
pas le vôtre .
- Vous ne pouvez pas m'empêcher d'aller voir madame la géné-
rale .25
- Podia fazê-lo noutra altura.
- Mas quero ir agora.
Nada a fazer. Vorontsov cedeu, e lá foram os três.
Quando entraram, Meller, com uma cortesia sombria, acompanhou
Mária Vassílievna até ao quarto da sua mulher e deu ordem ao aju­
dante-de-campo para levar Hadji-Murat para a sala de espera e não o
deixar ir ao lado nenhum até às próximas ordens.
- Entre - disse a Vorontsov, abrindo a porta do seu gabinete e
deixando o príncipe passar à frente dele.
No gabinete, parou em frente do príncipe e, sem o convidar a sen­
tar-se, disse:
- Aqui, sou eu o comandante do exército, por isso todas as con­
versações com o inimigo têm de ser feitas por mim. Por que razão o
senhor não me informou sobre o encontro com Hadji-Murat?
Hadji-Murat 39

- Foi falar comigo um mensageiro e informou-me do desejo de


Hadji-Murat em se entregar a mim - respondeu Vorontsov, pálido de
emoção, à espera de uma qualquer grosseria por parte do general ira­
do e, ao mesmo tempo, contagiado pela ira deste.
- Estou a perguntar-lhe: por que não me informou?
- Queria fazê-lo, barão, mas...
- Para si não sou barão mas Vossa Excelência.
Foi então que a cólera do barão, contida durante tanto tempo, aca­
bou por rebentar. Exprimiu tudo o que havia muito se vinha acumu­
lando na sua alma.
- Não ando a servir o meu imperador durante vinte e sete anos pa­
ra que pessoas que entraram no serviço ontem aproveitem as suas re­
lações de parentesco e, debaixo do meu nariz, mandem no que está
fora das suas competências.
- Vossa Excelência! Por favor, não diga coisas injustas - inter­
rompeu-o Vorontsov.
- Estou a dizer a verdade e não aceito que... - proferiu o gene­
ral com uma irritação afüda maior.
Nesse momento entrou Mária Vassílievna, roçagando as saias e,
atrás dela, uma senhora modesta, de pequena estatura - a mulher de
Meller-Zakomélski.
- Deixe-se disso, barão, não foi intenção do Simon causar-lhe
desgosto - disse Mária Vassílievna.
- Princesa, não estou a falar de...
- Oiça, é melhor esquecermo-nos disso. Como quem diz: uma má
discussão é melhor do que uma boa discórdia26. Ah, o que estou a di­
zer! .. - E a princesa riu-se.
E o general zangado submeteu-se ao sorriso encantador da bela
mulher. Sob o seu bigode esboçou um sorriso.
- Reconheço que não tive razão - disse Vorontsov - , mas...
- Também eu exagerei - disse Meller e estendeu a mão ao prín-
cipe.
A paz foi restabelecida e foi decidido deixarem Hadji-Murat, pro­
visoriamente, com Meller e, depois, mandarem-no ao comandante do
flanco esquerdo.
Hadji-Murat estava na sala vizinha e, embora não compreendesse
do que eles falavam, percebeu o mais necessário para ele: que esta­
vam a discutir por causa dele e que o seu rompimento com Shamil era
de suma importância para os russos e que, por isso, caso não fosse de-
40 Lev Tolstói

portado nem morto, estava em condições de lhes exigir muita coisa.


Além disso, compreendeu que Meller-Zakomélski, embora fosse o
chefe, não tinha a mesma importância que Vorontsov, seu subordina­
do, e que para ele tinha mais importância a pessoa de Vorontsov do
que a de Meller. Por isso mesmo, quando Meller-Zak:omélski convi­
dou Hadji-Murat para falar e começou a fazer-lhe · perguntas, este
manteve um ar orgulhoso e solene, dizendo que saíra dos montes pa­
ra servir o Czar Branco e que ia prestar contas ao sardar do czar, ou
seja, ao comandante-em-chefe de Tiflis, príncipe Vorontsov.

O ferido Avdéev foi levado para o hospital instalado numa casa


bastante pequena, com um telhado de ripas, junto ao portão da forta­
leza; puseram-no numa enfermaria comum, numa das camas vagas.
Na enfermaria já havia quatro pacientes: um doente de tifo, a agitar-se
na cama com febre; outro, um homem pálido', com olheiras, sofrendo
de terçãs, a bocejar a cada instante enquanto esperava pelo paroxismo
da febre; e ainda dois soldados feridos durante a última incursão, três
semanas atrás - um atingido na palma da mão (este andava) e outro
no ombro (estava sentado na cama). Todos, menos o tifoso, rodearam
o novo ferido e puseram-se a fazer perguntas aos soldados que o trou­
xeram.
- Às vezes disparam tanto que parece uma chuva de ervilhas, mas
não acontece nada; desta vez, deram cinco tiros, não mais, e olha pa­
ra isto - estava a contar um dos soldados.
- Cada qual tem a sua sina.
- Oh! - gritou alto Avdéev, suportando a dor a grande custo,
quando começaram a pô-lo na cama. Mas depois de estar deitado car­
regou o sobrolho e não se queixou mais, apenas mexia os pés sem pa­
rar. Apertava a ferida com as mãos e olhava em frente com os olhos
imóveis.
Chegou o doutor e mandou virar o ferido, para ver se a bala saíra
por trás.
- E isto o que é? - perguntou o doutor, apontando para as gran­
des cicatrizes brancas, cruzadas, nas costas e no traseiro.
- São coisas antigas, vossa senhoria - respondeu Avdéev, ge­
mendo.
Hadji-Murat 41

Eram marcas de um castigo pelo dinheiro derretido na bebedeira.


Voltaram a virá-lo de barriga para cima e o médico demorou mui­
to a esgaravatar-lhe o abdómen com a sonda, até que encontrou a ba­
la; mas não conseguiu extraí-la. Depois de lhe fazer urna ligadura e
de a colar com um penso rápido, o doutor saiu. Enquanto o doutor lhe
mexia na ferida e punha a ligadura, Avdéev manteve-se imóvel com
os dentes e os olhos cerrados. Mas quando o médico se foi embora,
abriu os olhos e passou o olhar à sua volta com espanto. Aparente­
mente, os olhos de Avdéev fitavam os doentes e o auxiliar médico,
mas era corno se não os visse, corno se fixasse qualquer outra coisa
que o surpreendia muito.
Chegaram de visita os camaradas de Avdéev - Panov e Serióguin.
Avdéev continuava a olhar da mesma maneira surpreendida. Durante
muito tempo, não reconheceu os camaradas, embora olhasse directa­
rnente para eles.
- Não queres mandar dizer alguma coisa à tua farm1ia? - disse
Panov.
Avdéev não respondeu, embora tivesse os olhos postos na cara de
Panov.
- Estou a perguntar se não gostarias de mandar dizer alguma coi­
sa à tua farm1ia? - insistiu Panov, tocando-lhe na mão fria e de os­
sos largos.
Avdéev pareceu voltar a si.
- Ah , és tu, Antónitch, vieste!
- Pois, vim. Não queres mandar dizer alguma coisa aos teus? Se-
rióguin vai escrever.
- Serióguin - pronunciou Avdéev, transferindo com dificuldade
os olhos para Serióguin - , vais escrever?... Então, escreve: o vosso
filho Petrukha entregou a alma a Deus... Tinha inveja do irmão. Fa­
lei-te disso, foi hoje. Mas agora estou contente. Muitos anos de vida
para ele. Que Deus o ajude, estou contente. Escreve isso mesmo.
Depois de o dizer, ficou muito tempo calàdo, com os olhos fixos
em Panov.
- Encontraste o cachimbo? - perguntou de repente.
Panov abanou a cabeça e não respondeu.
- O cachimbo, o cachimbo... encontraste-o? - repetiu Avdéev.
- Estava no saco.
- Estás a ver? Agora dai-me urna vela, vou morrer já - disse Av-
déev.
42 Lev Tolstói

Neste momento apareceu Poltorátski, de visita ao seu soldado.


- Então, amigo, dói-te? - disse ele.
Avdéev fechou os olhos e abanou negativamente a cabeça. A sua
cara de maçãs salientes estava pálida e rigorosa. Não respondeu, ape­
nas repetiu, dirigindo-se a Panov:
- Dá-me uma vela, vou morrer.
Puseram-lhe nas mãos uma vela, mas os se dedos não se dobravam,
então enfiaram-lha entre os dedos e seguraram-na. Poltorátski saiu
entretanto e, cinco minutos depois, o auxiliar médico apertou o ouvi­
do ao coração de Avdéev e disse: faleceu.
No relatório mandado para Tiflis, a morte de Avdéev foi descrita da
seguinte forma: «No dia 23 de Novembro, duas companhias do Regi­
mento de Kurá saíram da fortaleza com a tarefa de cortar a floresta.»
«A meio do dia, um grupo considerável de montanheses atacou su­
bitamente os lenhadores. A linha avançada começou a recuar, e a se­
gunda companhia foi ao ataque de baioneta calada e pôs em fuga os
montanheses. No combate, houve, entre os soldados, dois feridos li­
geiros e um morto. As baixas dos montanheses foram de cerca de cem
homens, entre feridos e mortos.»

No mesmo dia em que Petrukha Avdéev estava a morrer no hospi­


tal da fortaleza Vozdvijênskaia, o seu velho pai, a mulher do irmão na
vez do qual ele se alistara no exército e a filha do seu irmão mais ve­
lho, rapariga casadoira, debulhavam a aveia na eira fria das malhadas.
Na véspera tinha nevado muito e a manhã abriu com um frio de ra­
char. Quando o galo cantou pela terceira vez já o velho estava acor­
dado e, ao ver a luz da lua bater na janela gelada, desceu do catre do
fogão, calçou as botas, vestiu a peliça, enfiou na cabeça o gorro e foi
para a eira. Depois de ter trabalhado cerca de duas horas, o velho vol­
tou à isbá e acordou o filho e as mulheres. Quando as mulheres e as
raparigas chegaram à eira, o malhadouro já tinha sido limpo da neve
funda, a pá de madeira estava espetada na neve branca e friável, jun­
to à vassoura com o seu feixe de varas para cima, e as gavelas de
aveia estavam estendidas no chão, em duas filas, espiga com espiga,
como uma corda comprida em cima do malhadouro limpo. Pegaram
nos malhos e começaram a trabalhar, num ritmo regular de três bati-
Hadji-Murat 43

das. O velho dava golpes fortes com o malho pesado, quebrando a pa­
lha, a rapariga batia por cima, a nora virava.
A lua desapareceu, começava a amanhecer; já estavam a acabar
quando Akim, o filho mais velho, de peliça curta e gorro, se aproxi­
mou dos trabalhadores.
- Porque andas tu a mandriar? - gritou-lhe o pai, interrompendo
o trabalho e apoiando-se no malho.
- É preciso tratar dos cavalos.
- Tratar dos cavalos - arremedou o pai. - A velha pode tratar
deles. Pega no malho. Ganhaste gordura a mais. Seu bêbedo.
- Pagaste-me a bebida ou quê? - resmungou o filho.
- O quê? - perguntou o velho, carregando com ameaça o sobro-
lho e deixando passar um golpe.
O filho pegou silenciosamente no malho e a malhada, agora a qua­
tro, recomeçou: trap, ta-pa-tap, trap, ta-pa-tap... Trap - fazia a quar­
ta pancada do malho pesado do velho.
- Olha para a tua nuca, é mesmo como a de um senhor. Eu é que
tenho as calças a cair - disse o velho, perdendo a sua vez de bater e,
apenas para não perder o ritmo, virando no ar o mangual.
Acabaram, e as mulheres começaram a afastar a palha com os an­
cinhos.
- O Petrukha foi tão parvo que se alistou por ti. A ti, lá na tropa,
metiam-te na linha, e ele, cá em casa, valia cinco iguais a ti.
- Deixe lá isso, paizinho - disse a nora, atirando para o lado os
atilhos partidos.
- Pois é, dou de comer a seis bocas, mas não vejo ninguém a
trabalhar. O Petrukha trabucava por dois, lembro-me bem, não era
como...
Pela vereda que levava do quintal à eira vinha a velha, com as al­
pargatas novas, por cima das grevas de lã bem apertadas, a rangerem
por cima da neve batida. Os mujiques estavam a juntar o cereal, as
mulheres a varrê-lo.
- Veio cá a casa o regedor. Toda a gente vai levar os tijolos para
o senhor - disse a velha. - Pus o dejejum na mesa. Vindes ou quê?
- Está bem. Atrelas o Ruço e podes ir - disse o velho a Akim. -
Mas vê lá, que não seja como da última vez, não quero responder pe­
las tuas asneiras. Se fosse o Petrukha...
- Quando Petrukha estava em casa, o pai ralhava com ele - refi­
lou Akim - , agora, em vez dele, é a mim que mói o juízo.
44 Lev Tolstói

- Porque mereces - disse a mãe, também zangada. - Não te


compares com o Petrukha.
- Bem, chega! - disse o filho.
- Chega uma ova. Derreteste a farinha na bebedeira e dizes
«chega».
- Águas passadas não movem moinhos - disse a nora, e toda a
gente largou os malhos e foi para casa.
As discórdias entre o pai e o filho começaram havia muito, quase
a partir do alistamento de Petrukha. Já naquela altura, o velho sentiu
que dera ouro por palha. É claro que pela lei, no entender do velho, o
homem sem filhos devia ir para a tropa em vez de quem tinha uma fa­
mília. Akim tinha quatro filhos, Petrukha não tinha nenhum, mas era
tão bom trabalhador como o pai: hábil, esperto, forte, resistente e, so­
bretudo, laborioso. Trabalhava sem parar. E quando passava por pes­
soas a trabalhar, tal como o seu pai, oferecia sempre a sua ajuda: fa­
zia duas filas com a gadanha, ou carr egava uma carroça, ou cortava
uma árvore, ou cortava a lenha. O velho tinha pena dele, mas não ha­
via nada a fazer. O recrutamento era o mesmo que a morte. O solda­
do era como uma mão cortada, e não valia a pena recordá-lo, avivan­
do a dor. Raramente, e apenas para alfinetar o filho mais velho, o pai
lembrava-se de Petrukha. Quanto à mãe, falava muito do seu filho
mais novo e, havia muito, mais de um ano, pedia ao velho que man­
dasse algum dinheirinho a Petrukha. Mas o velho esquivava-se à res­
posta.
A casa dos Avdéev era rica e o velho tinha algum dinheiro amea­
lhado, mas nunca ousaria mexer nas poupanças. Agora, a velha, ou­
vindo-o a recordar o filho mais novo, resolveu que iria pedir-lhe mais
uma vez que, vendida a aveia, mandasse ao filho pelo menos um ru­
blo. Foi o que fez. Quando os jovens foram trabalhar para o senhor e
ela ficou a sós com o marido, conseguiu convencê-lo a mandar um ru­
blo para Petrukha. Portanto, quando a aveia foi ventilada e doze al­
queires foram colocados sobre as serapilheiras em três trenós, e as se­
rapilheiras foram cuidadosamente presas com pinos de madeira, a
velha deu ao marido uma carta que o salmista escrevera por ela e o
velho prometeu que, na cidade, mandava a carta juntamente com um
rublo.
O velho, de peliça e cafetã novos, com grevas limpas de lã branca
nos pés, pegou na carta, guardou-a na carteira e, depois de rezar a
Deus, sentou-se no trenó da frente e partiu para a cidade. No trenó de
Hadji-Murat 45

trás ia o seu neto. Na cidade, o velho pediu a um guarda-portão que


lhe lesse a carta e ouviu-a com atenção e aprovação.
Na carta da mãe de Petrukha era dada, em primeiro lugar, a bênção,
em segundo eram mandados os cumprimentos de toda a gente e, fi­
nalmente, era dada a notícia de que Aksínia (a mulher de Petrukha)
não quisera viver com eles e tinha ido trabalhar como criada. Que se
ouvia falar que ela «vivia bem e honestamente». Mencionava-se o ru­
blo e acrescentava-se o que a velha entristecida, com lágrimas nos
olhos, mandara escrever palavra por palavra:
«E ainda, meu filhinho querido, meu pombinho Petrúchenka, des­
fiz-me em lágrimas, com tantas saudades tuas. Meu sol, meu filho,
por que me abandonaste?..» Neste lugar a velha gemeu, chorou e
disse:
- Que fique assim.
E ficou assim, mas o destino não quis que Petrukha recebesse nem
a notícia de que a sua mulher se fora embora de casa, nem o rublo,
nem as derradeiras palavras da mãe. A carta e o dinheiro voltaram pa­
ra trás juntamente com a notícia de que Petrukha fora morto na guer­
ra, «defendendo o czar, a Pátria e a fé cristã». Assim a redigiu o es­
crivão do regimento.
A velha, quando recebeu a notícia, chorou, enquanto teve tempo
para isso, depois voltou ao trabalho. Logo no domingo seguinte foi à
igreja, mandou rezar uma missa de requiem, inscreveu o Petrukha na
lista de amenta pelos defuntos e distribuiu bocadinhos de pão sagra­
do à boa gente em memória do Piotr, servo de Deus.
A viúva Aksínia também chorou um pouco quando soube da mor­
te do caro marido, com quem tinha vivido apenas um ano. Lamentou
o marido e toda a sua vida estragada e, carpindo, recordou o cabelo
ruço de Piotr e o seu amor e a sua vida amarga com o órfão Vanka, e
censurava Piotr por ter tido pena do seu irmão mas não dela, pois não
tivera piedade da desgraçada, deixada a passar a vida em casas
alheias.
Porém, no fundo da alma, Aksínia estava contente com a morte de
Piotr. O fiel de armazém com quem ela vivia voltara a engravidá-la e
por isso, agora, já ninguém podia censurá-la, além de que poderia fi­
nalmente casar-se com ela, tal como lhe prometera quando a andava
a seduzir.
46 Lev Tolstói

Mikhail Semiónovitch Vorontsov, criado na Inglaterra, era filho do


embaixador russo, sendo que, no seio dos altos funcionários russos,
um homem de educação europeia era raro naqueles tempos; era am­
bicioso, meigo e carinhoso para com os subordinados e um cortesão
esmerado com os superiores. Não compreendia a vida sem o poder e
sem a obediência. Tinha todas as patentes e condecorações mais altas,
e era considerado um chefe militar habilidoso, vencedor de Napoleão
em Krásnoe. Em 1 85 1 passava dos setenta anos, mas estava ainda
fresco, mantendo toda a energia física e, sobretudo, toda a habilidade
do intelecto fino e afável necessário para conservar o seu poder e con­
solidar, e também aumentar, a sua popularidade. Possuía uma grande
fortuna - sua própria e da sua mulher, condessa Branítskaia - e um
enorme vencimento como governador-geral, e gastava a maior parte
dos seus recursos na construção de um palácio e de um parque na cos­
ta sul da Crimeia.
Na noite de 4 de Dezembro de 1 85 1 , uma troica da posta chegou
ao seu palácio em Tiflis. Um oficial fatigado, negro de pó, trazendo a
notícia de que Hadji-Murat entrara em comunicação com os russos,
passou, desentorpecendo as pernas, ao lado das sentinelas e subiu a
escada larga do palácio do governador. Eram seis da tarde, e Voront­
sov ia almoçar quando lhe anunciaram a chegada do correio. O prín­
cipe recebeu o correio sem demora, por isso atrasou-se alguns minu­
tos para o almoço. Quando entrou na sala de estar, os convidados,
cerca de trinta pessoas - umas sentadas ao lado da princesa Elisave­
ta Ksavérievna, outras reunidas em grupos junto às janelas - levan­
taram-se e viraram-se para o príncipe. Vorontsov envergava a sua ha­
bitual sobrecasaca militar preta, sem dragonas, apenas com pequenas
platinas, e com a ordem da cruz branca ao pescoço. A sua cara de ra­
posa, rapada, esboçava um sorriso afável e observava os convivas
com os olhos semicerrados.
Entrou na sala num passo suave e rápido, pediu desculpa às senho­
ras pelo atraso, cumprimentou os homens e aproximou-se da princesa
georgiana Manana Orbeliáni, uma beldade alta e corpulenta de qua­
renta e cinco anos, com traços de rosto mediterrâneos, e ofereceu-lhe
o braço para a levar à mesa. A princesa Elisaveta Ksavérievna ofere­
ceu o braço a um general de cabelo arruivado e pêlos do bigode como
cerdas, que estava em Tiflis de visita. O príncipe georgiano deu o bra-
Hadji-Murat 47

ço à condessa Choiseul, amiga da princesa. O doutor Andreévski, o


ajudante-de-campo e os outros, com senhoras ou sem elas, seguiram
os três pares. Os lacaios de cafetãs, meias e sapatos afastavam as ca­
deiras e, depois, chegavam-nas aos convidados para se sentarem, o
mordomo servia com solenidade a sopa fumegante da terrina de prata.
Vorontsov sentou-se no meio da mesa comprida. Em frente dele
sentou-se a princesa, sua mulher, e o general. À sua direita ficou o seu
par, a bela Orbeliáni, e à sua esquerda a jovem princesa georgiana, es­
belta, morena, de faces coradas, com jóias brilhantes e um sorriso
permanente na cara.
- Excellentes, chere amie - respondeu Vorontsov à pergunta da
mulher sobre as notícias que lhe trouxera o correio. - Simon a eu de
la chance27.
E pôs-se a contar alto, para que todos os comensais pudessem ou­
vir, a notícia impressionante - aliás, era o único para quem não era
propriamente uma novidade, uma vez que as conversações se tinham
realizado desde há muito - , a notícia de que Hadji-Murat, o famoso
e o mais destemido braço-direito de Shamil, se entregara aos russos
e, de um dia para outro, ia ser trazido a Tiflis.
Todos os convidados, inclusivamente os jovens, ajudantes-de-cam­
po e funcionários, sentados nos extremos da mesa e que até então es­
tavam a rir-se discretamente, calaram-se e puseram-se a ouvir.
- O general alguma vez viu esse Hadji-Murat? - perguntou a
princesa ao seu vizinho, o general ruivo com bigode cerdoso, quando
o príncipe acabou de falar.
- Por mais de uma vez, princesa.
E o general contou como, em 1 843 , depois da tomada de Guergue­
bil pelos montanheses, Hadji-Murat esbarrara com o destacamento do
general Pássek e como, à vista deles, por pouco não matara o coronel
Zolotúkhin.
Vorontsov estava a ouvir o general com um sorriso afável, pelos
vistos agradado por o general desatar finalmente a língua. De repen­
te, porém, a cara de Vorontsov adquiriu uma expressão distraída e de­
salentada.
O entusiasmado general passou a relatar o seu segundo encontro
com Hadji-Murat.
- Foi ele mesmo - dizia o general - , Vossa Alteza tem de se
lembrar disso, quem fez uma emboscada (na altura do «socorro» du­
rante a «expedição das galetas»28 ).
48 Lev Tolstói

- Onde foi isso? - perguntou Vorontsov, estreitando os olhos.


Acontecia que o corajoso general chamava de «socorro» àquele
episódio da infeliz campanha de Dargo, em que todo o destacamento
comandado por Vorontsov teria sido exterminado se não fosse socor­
rido pelas tropas de reforço. Era do conhecimento geral o facto de que
toda a campanha de Dargo sob o comando de Vorolitsov, em que os
russos perderam muitos soldados, mortos e feridos, e vários canhões,
foi um acontecimento vergonhoso e, por isso, se alguém chegava a
mencioná-lo na presença de Vorontsov, fazia-o apenas no sentido que
este lhe dera no relatório apresentado ao czar, ou seja, que tinha sido
uma brilhante façanha das tropas russas. Ora, a palavra «socorro»
apontava directamente para o erro que custara a vida a tantas pessoas
e não para uma façanha brilhante. Todos os presentes o perceberam;
alguns fingiam não se dar conta do real significado das palavras do
general, outros receavam o que iria seguir-se; havia quem, sorrindo,
trocasse olhares. O general ruivo com o bigode de cerdas era o único
a não reparar em nada; entusiasmado com a história que contava, res­
pondeu com calma:
- Durante o socorro, Vossa Alteza.
E, dada corda ao seu tema preferido, o general contou em porme­
nor como «esse Hadji-Murat cortara o destacamento ao meio com
tanta destreza que, se não chegasse o socorro (parecia repetir a pala­
vra «socorro» com especial afeição), teria sido o fim de nós todos
porque... »
O general não teve tempo de contar tudo porque Manana Orbeliá­
ni, ao compreender de que se tratava, interrompeu o general, pon­
do-se a perguntar-lhe se estava alojado com conforto em Tiflis. O ge­
neral, surpreendido, olhou para todos e, muito especialmente, para o
seu ajudante-de-campo que, sentado no extremo da mesa, lhe dirigia
um olhar persistente e significativo - e de repente compreendeu.
Sem responder à princesa, carregou o sobrolho, calou-se e apressou­
se a comer, sem mastigar, uma iguaria delicada de aspecto e até de sa­
bor incompreensíveis para ele.
Todos se sentiram embaraçados, mas o príncipe georgiano, mui­
to estúpido, mas um bajulador palaciano incrivelmente esmerado e
hábil, sentado defronte da princesa Vorontsov, remediou a situa­
ção . Como se não tivesse reparado em nada, começou a contar em
voz alta como Hadji-Murat raptara a viúva do Cão Akhmet de
Mekhtuli:
Hadji-Murat 49

- Entrou na povoação de noite , levou o que precisava e fugiu com


todos os seus homens .
- Mas porque quis levar precisamente essa mulher? - perguntou
a princesa.
- Porque era inimigo do marido . Perseguiu o Cão mas não chegou
a apanhá-lo porque este morreu; portanto , vingou-se na viúva.
A princesa traduziu-o para francês à condessa Choiseul, sua amiga,
sentada do lado do príncipe georgiano .
- Quelle horreur! - disse a condessa, fechando os olhos e aba­
nando a cabeça.
- Oh, não - disse Vorontsov com sorriso - , disseram-me que
ele tratara a prisioneira com respeito cavaleiresco e que depois a pôs
em liberdade .
- Sim, recebendo um resgate .
- Obviamente, e mesmo assim procedeu com nobreza.
Estas palavras do príncipe deram o tom para mais histórias sobre
Hadji-Murat. Os palacianos perceberam que quanta mais importância
atribuíssem a Hadji-Murat, tanto mais agradavam a Vorontsov.
- Esse homem é de uma coragem espantosa ! Uma pessoa notável !
- Pois é , em 1 849 , irrompeu em pleno dia em Temir-Cão-Chura e
assaltou várias lojas .
Um arménio sentado n o extremo d a mesa, e que naquela altura es­
tava em Temir-Cão-Chura, contou os pormenores dessa proeza de
Hadji-Murat. Em geral , durante todo o almoço apenas se contaram
histórias sobre Hadji-Murat. Toda a gente se mostrava pressurosa em
elogiar a sua coragem, a sua esperteza e a sua magnanimidade . Al­
guém contou que , numa ocasião , ele mandara matar vinte e seis pri­
sioneiros; porém, para isso também foi arranjada habitual objecção:
- Nada a fazer! À la guerre comme à la guerre29 .
- É um grande homem.
- Se nascesse na Europa, talvez desse um novo Napoleão - pro-
feriu o estúpido príncipe georgiano que possuía o dom da bajulação .
Sabia que uma menção qualquer a Napoleão era agradável para o
príncipe Vorontsov com a sua cruz branca ao pescoço, outorgada pe­
la vitória precisamente sobre Bonaparte .
- Napoleão talvez não , mas um bravo general da cavalaria com
certeza - disse Vorontsov.
- Se não Napoleão , então Murat.
- O nome dele , aliás , é Hadji-Murat.
50 Lev Tolstói

- Hadji-Murat entrou em comunicação , será o fim de Shamil -


disse alguém.
- Eles estão a sentir que agora (este agora significava na gover­
nação de Vorontsov) não poderão resistir - disse outro .
. - Tout cela est grâce à vous3 0· - disse Manana Orbeliáni .
O príncipe Vorontsov tentava moderar as ondas de bajulação que
já começavam a inundá-lo . Mesmo assim, gostava e , acabado o al­
moço, ia numa óptima disposição de ânimo quando levou a sua da­
ma à sala de estar.
Na sala, quando estavam a servir café , o príncipe mostrou-se mui­
to carinhoso com toda a gente e foi falar com o general do bigode cer­
doso , tentando dar-lhe a entender que não reparara no lapso dele .
Depois de conceder atenção a todos os convidados , o príncipe sen­
tou-se a jogar as cartas . Jogava exclusivamente o antigo jogo l'hom­
bre . Jogavam com Vorontsov o príncipe georgiano , o general arménio
que aprendera a jogar l'hombre com o criado grave de Vorontsov e ,
finalmente , o doutor Andreévski , famoso pela sua influência.
Depois de ter posto a seu lado uma tabaqueira de ouro com retrato
de Alexandre 1 , Vorontsov dedilhou velozmente o baralho acetinado
e ia já dispor as cartas na mesa quando entrou o criado grave , o ita­
liano Giovanni , com uma carta na bandeja de prata.
- Mais um correio , Vossa Alteza.
Vorontsov largou as cartas , pediu desculpa, abriu o sobrescrito e
começou a ler.
A carta era do seu filho . Descrevia o aparecimento de Hadji-Murat
e a desavença com Meller-Zakomélski .
A princesa aproximou-se do marido e perguntou-lhe o que contava
o filho .
- Escreve sobre mesma coisa. Il a eu quelques désagréments avec
le commandant de la place. Simon a eu tort. But all is well what ends
wezz3 I - disse ele , entregando a carta à mulher e , dirigindo-se aos
parceiros que esperavam respeitosamente , pediu para pegarem nas
cartas .
Quando as cartas foram dadas , Vorontsov abriu a tabaqueira com o
retrato em miniatura de Alexandre 1 e fez o que costumava fazer
quando estava muito bem-humorado: tirou com a mão senil e branca
uma pitada de tabaco francês , levou-a ao nariz e inalou .
Hadji-Murat 51

10

Quando, no dia seguinte, Hadji-Murat compareceu ao encontro com


o governador-geral Vorontsov, a sala de espera estava apinhada de
gente . Encontravam-se ali o general , aquele do bigode cerdoso , de uni­
forme completo e condecorações , que fora despedir-se; um coman­
dante regimental, que estava sob a ameaça de um processo judicial ,
acusado de infracções no aprovisionamento do regimento; um ricaço
arménio , protegido do doutor Andreévski , que era concessionário do
comércio de vodca e, nesse momento, tentava conseguir a renovação
do contrato; a viúva enlutada de um oficial morto em combate , que
pretendia pedir uma pensão , ou o mantimento para os filhos da parte
do erário público; um príncipe georgiano arruinado , de magnífico tra­
jo tradicional , solicitando para si uma abolida propriedade da igreja;
um chefe da polícia com um embrulho grande que continha o projec­
to de um novo método para conquistar o Cáucaso; e um Cão que ape­
nas ali se encontrava para depois poder contar em casa que visitara o
príncipe .
Todos esperavam a sua vez e , um a um, eram introduzidos no ga­
binete do príncipe pelo ajudante-de-campo , um jovem loiro e bonito .
Quando Hadji-Murat entrou , em passo enérgico e coxeando ligei­
ramente , na sala de espera todos os olhos se viraram para ele , e ouviu
o seu nome pronunciado em sussurro em todos os cantos .
Hadji-Murat envergava uma tcherkeska branca e comprida por ci­
ma de um bechmet castanho com gola adornada por um fino galão
prateado . Calçava as nogovitsas pretas e os tchuviakes da mesma cor
que lhe apertavam os pés como luvas ; na cabeça levava um gorro com
turbante , aquele mesmo turbante por causa do qual , denunciado pelo
Cão Akhmet, fora preso pelo general Klugenau , o que condicionara a
sua passagem para o lado de Shamil . Hadji-Murat andava em passa­
das rápidas pelo parqué da sala de recepção , baloiçando toda a sua fi­
gura fina de uma perna, mais curta, para a outra. Os seus olhos mui­
to afastados olhavam calmamente em frente e pareciam não ver
ninguém à sua volta.
O ajudante-de-campo bonitão cumprimentou Hadji-Murat e convi­
dou-o a sentar-se , enquanto anunciava a sua chegada ao príncipe, mas
Hadji-Murat recusou-se a sentar-se e, com uma mão metida por trás
do punhal e uma perna afastada, continuou de pé , observando com
desprezo todos os presentes .
52 Lev Tolstói

O intérprete , príncipe Tarkhánov, aproximou-se de Hadji-Murat e


falou com ele . Hadji-Murat respondia a contragosto e de forma en­
trecortada. Do gabinete saiu um príncipe kumique , que tinha ido quei­
xar-se do chefe da polícia, e a seguir o ajudante-de-campo chamou
Hadji-Murat, acompanhou-o até à porta e fê-lo entrar no gabinete .
Vorontsov recebeu Hadji-Murat de pé , ao lado da mesa. A cara ve­
lha e branca do comandante-em-chefe não estava sorridente como na
véspera, mas rigorosa e solene .
Ao entrar na sala espaçosa com uma mesa enorme e janelas gran­
des com gelosias verdes , Hadji-Murat apertou as mãos bastante pe­
quenas e bronzeadas contra aquele lugar do peito onde se cruzavam
as bandas da tcherkeska e disse vagarosa, nítida e respeitosamente na
língua kumique que dominava muito bem:
- Entrego-me à alta protecção do grande czar e do senhor. Pro­
meto servir lealmente , até à última gota de sangue , o Czar Branco e
espero ser útil na guerra contra Shamil , inimigo meu e vosso .
Ao ouvir o intérprete , Vorontsov olhou para Hadji-Murat e Hadji­
Murat olhou Vorontsov na cara.
Os olhares cruzados destes dois homens diziam um ao outro muita
coisa inexprimível em palavras e muito diferente do que dissera o in­
térprete . Sem palavras , exprimiam frontalmente toda a verdade: os
olhos de Vorontsov diziam que não acreditava em nenhuma palavra
de Hadji-Murat, que sabia que este , inimigo de tudo o que era russo ,
ia ficar assim para sempre e que agora se submetia apenas porque a
isso tinha sido obrigado . Hadji-Murat compreendia-o , mas continua­
va a afirmar a sua lealdade . Quanto aos olhos de Hadji-Murat, diziam
que o velho deveria pensar na morte , e não na guerra, mas que , ape­
sar de velho , era astuto e se tornava necessário ter cuidado com ele.
E Vorontsov também o entendia, e mesmo assim continuava a dizer a
Hadji-Murat tudo o que achava necessário para o êxito da guerra.
- Diz-lhe - dirigiu-se Vorontsov ao intérprete (tratava os jovens
oficiais por tu) - que o nosso soberano é tão misericordioso quanto
poderoso e que , a meu pedido , vai provavelmente perdoar:-lhe e ad­
miti-lo ao seu serviço . Traduziste? - perguntou , olhando para Had­
ji-Murat. - Diz-lhe que , até eu receber a decisão benevolente do meu
soberano , me encarrego de lhe oferecer a minha hospitalidade e lhe
garantir aqui uma estada agradável .
Hadji-Murat voltou a levar a mão ao peito e começou a falar com
entusias mo .
Hadji-Murat 53

Disse , como o intérprete traduziu , que já antes , em 1 83 9 , quando


governava a Avária, servia lealmente os russos e nunca os teria traído
se o Cão Akhmet, seu inimigo , não quisesse acabar com ele e não o
caluniasse perante o general Klugenau .
- Eu sei, eu sei - disse Vorontsov (embora, mesmo que o soubes­
se, havia muito que se esquecera de tudo isso) . - Sei - disse ele , sen­
tando-se e indicando a Hadji-Murat o sofá junto à parede . Hadji-Mu­
rat, porém, não se sentou, encolheu os seus robustos ombros em sinal
de que não se atrevia a sentar-se na presença de senhor tão importante.
- O Cão Akhmet e Shamil são ambos meus inimigos - conti­
nuou , dirigindo-se ao intérprete . - Diz ao príncipe: o Cão Akhmet
morreu e não me pude vingar dele , mas Shamil está ainda vivo , e não
morro sem que me pague o que fez .
- Pois, pois - disse calmamente Vorontsov. - Mas como é que
pensa vingar-se de Shamil? - disse ao intérprete . - A propósito ,
diz-lhe que se pode sentar.
Hadji-Murat voltou a recusar-se e respondeu à pergunta traduzida
afirmando que tinha sido precisamente a sua intenção de aniquilar
Shamil que o levara a encontrar-se com os russos .
- Está bem, está bem - disse Vorontsov. - Mas o que é que ,
concretamente , ele quer fazer? Senta-te , senta-te .
Hadji-Murat sentou-se e disse que , se o mandassem para a linha de
Lezguistão e lhe dessem tropas , garantia que sublevava todo o Da­
guestão e que , nesse caso , Shamil não poderia resistir.
- Muito bem. É possível - disse Vorontsov. - Vou pensar nisso .
O intérprete traduziu . Hadji-Murat ficou pensativo .
- Diz ao sardar - acrescentou - que a minha família está nas
mãos do meu inimigo e que , enquanto a minha família estiver nos
montes , tenho as mãos atadas e não posso fazer nada. Ele mataria a
minha mulher, a minha mãe , os meus filhos , se eu avançasse aberta­
mente contra ele . Que o príncipe liberte a minha farm1ia, que a troque
por uns prisioneiros e, então , ou morro ou extermino Shamil .
- Está bem, está bem - disse Vorontsov. - Vamos pensar nisso .
Agora, que vá falar com o chefe do estado-maior e que lhe exponha
em pormenor a sua situação , as suas intenções e os seus desejos .
Assim acabou o primeiro encontro de Hadji-Murat com o príncipe
Vorontsov.
No mesmo dia, à noite , no teatro arranjado no novo estilo oriental ,
exibiam uma ópera italiana. Vorontsov estava no seu camarote; na
54 Lev Tolstói

plateia apareceu a notável figura de Hadji-Murat, manco, com o tur­


bante na cabeça. Entrou acompanhado por Loris-Mélikov, ajudan­
te-de-campo de Vorontsov, posto à sua disposição , e sentou-se na pri­
meira fila. Depois de assistir ao primeiro acto com uma dignidade
oriental , muçulmana, não só sem qualquer expressão de espanto , mas
com um ar de absoluta indiferença, Hadji-Murat levantou-se e, olhan­
do com calma para os espectadores , saiu , atraindo a atenção de toda
a assistência.
O dia seguinte era uma segunda-feira, o dia de os Vorontsov rece­
berem os convidados em sua casa. Numa grande sala fortemente ilu­
minada, soava uma música escondida vinda do jardim de Inverno . As
mulheres , jovens e menos jovens , com vestidos que lhes destapavam
os pescoços , os braços e quase os peitos, valsavam abraçadas pelos
homens de fardas vistosas . Junto ao bufete , os lacaios de casacas ver­
melhas , meias e sapatos serviam champanhe e ofereciam confeitos às
senhoras . A mulher do «sardar» , que , apesar da sua idade avançada,
estava também seminua, deambulava no meio dos convidados com
um sorriso amável e, por intermédio do intérprete , disse algumas pa­
lavras carinhosas a Hadji-Murat que , tal como no teatro , observava os
convidados com indiferença. Depois da anfitriã, outras senhoras
aproximavam-se de Hadji-Murat e , todas elas , sem se envergonha­
rem, paravam diante dele , sorriam e perguntavam-lhe a mesma coisa:
se gostava do que estava a ver. O próprio Vorontsov, com dragonas e
agulhetas douradas , a cruz branca e uma fita, foi ter com ele e per­
guntou-lhe a mesma coisa, certamente convencido , como todos os
outros , de que Hadji-Murat não podia não gostar do que estava a ver.
E Hadji-Murat respondeu a Vorontsov a mesma coisa que tinha res­
pondido aos outros: que entre os seus isso não existia - sem especi­
ficar se era bom ou mau o facto de entre eles não existir nada daqui­
lo .
Hadji-Murat também no baile tentou falar com Vorontsov sobre o
seu problema, o do resgate da farm1ia, mas Vorontsov fez de conta que
não o ouviu e afastou-se dele. Ora, Loris-Mélikov disse depois a Had­
ji-Murat que o lugar não era apropriado para se falar de assuntos sérios .
Quando o relógio da sala bateu as onze horas e Hadji-Murat veri­
ficou as horas no seu Breguet, prenda de Mária Vassílievna, pergun­
tou a Loris-Mélikov se já podia ir-se embora. Loris-Mélikov respon­
deu que podia, mas que seria melhor se ficasse . Apesar disso ,
Hadji-Murat não ficou , partindo , no faetonte posto à sua disposição,
para o apartamento em que fora alojado .
Hadji-Murat 55

11

No quinto dia da estada de Hadji-Murat em Tiflis , Loris-Mélikov


foi a casa dele por ordem do comandante-em-chefe .
- A minha cabeça e as minhas mãos estão felizes por servirem o
sardar - disse Hadji-Murat com a sua habitual expressão diplomáti­
ca, inclinando a cabeça e apertando a mão contra o peito . - Manda
- disse , olhando Loris-Mélikov nos olhos, com carinho .
Loris-Mélikov sentou-se na poltrona junto à mesa. Hadji-Murat
acomodou-se em frente dele , num sofá baixo , apoiou as mãos nos joe­
lhos , inclinou a cabeça e começou a ouvir com atenção . Loris-Méli­
kov, que falava tártaro fluentemente , disse que o príncipe , embora co­
nhecesse o passado de Hadji-Murat, desejava conhecê-lo contado por
ele próprio .
- Conta-me a tua história - sugeriu Loris-Mélikov - e eu vou
escrevendo , depois traduzo-a para o russo e o príncipe manda-a a Sua
Majestade .
Hadji-Murat, durante algum tempo , guardou silêncio (não só nun­
ca interrompia o seu interlocutor como ainda esperava, para o caso de
este dizer mais alguma coisa) , depois levantou a cabeça, colocou o
gorro na nuca e esboçou um sorriso especial , infantil , o sorriso com
que encantara Mária Vassílievna.
- Posso contar - disse , aparentemente lisonjeado com a ideia de
que a sua história seria lida pelo próprio czar.
- Conta-me (em tártaro , o «você» não existe) tudo desde o início ,
sem pressas - disse Loris-Mélikov, tirando do bolso um bloco de no­
tas .
- Posso contar, só que há muita, muita coisa para contar. Muita
coisa aconteceu - disse Hadji-Murat.
- Se não acabares num dia, contas o resto noutro dia - respon-
deu Loris-Mélikov.
- Conto desde o princípio?
- Sim, desde o início: onde nasceste , onde viveste .
Hadji-Murat baixou a cabeça e ficou muito tempo nesta posição;
depois pegou num pauzinho que estava no chão ao lado do sofá, tirou
de trás do punhal , com o cabo de marfim engastado de ouro , uma fa­
ca damasquina, bem afiada, e começou a cortar o pauzinho , ao mes­
mo tempo que contava.
56 Lev Tolstói

- Escreve: nasci em Tselmes , aúl pequeno , do tamanho da cabeça


de um burro, como se diz entre nós , lá nos montes . Perto de nós , a
dois tiros, ficava Khunzakh , onde viviam os Cãos . E a nossa fann1ia
tinha relações próximas com eles . A minha mãe amamentou o Cão
mais velho , Abununtsal , por isso fiquei chegado aos Cãos . Eram três:
o Cão Abununtsal , irmão de leite do meu irmão Osinan , o Cão Um­
ma, de quem me tomei irmão , e o Cão Bulatch , o mais novo , a quem
Shamil viria a atirar do precipício . Mas isso foi mais tarde . Eu tinha
quinze anos quando os murides começaram a andar pelos aúles . Ba­
tiam nas pedras com sabres de madeira e gritavam: «Muçulmanos ha­
zavat32 ! » Todos os tchetchenos passaram para o lado dos murides e
os ávaros começaram a juntar-se aos tchetchenos . Naquela altura, eu
vivia no palácio . Era como um irmão para os Cãos . Fazia o que me
apetecia, fiquei rico . Tinha cavalos , tinha dinheiro . Vivia a meu bel­
prazer, não me preocupava com nada. E vivi assim até que o Kazi­
Mulá foi morto e Gamzat ocupou o seu lugar. Gamzat mandou os
seus mensageiros para disserem aos Cãos que , se não aderissem ao
hazavat, ele arrasava Khunzakh . Era preciso pensar bem. Os Cãos ti­
nham medo dos russos , tinham medo de aderir ao hazavat, e a mãe
deles mandou-me , com o Cão Umma, seu segundo filho , a Tiflis , pa­
ra pedirmos ao principal chefe russo que nos protegesse de Gamzat.
O chefe principal era o barão Rosen . Recusou-se a receber o Cão
Umma e a mim. Mandou dizer-nos que dava ajuda, mas não fez na­
da. Apenas os seus oficiais começaram a visitar-nos e a jogar as car­
tas com o Cão Umma. Embebedavam-no e levavam-no para casas in­
decentes , e ele perdeu às cartas tudo o que tinha. De corpo , era forte
como o touro e corajoso como o leão , mas de alma era fraco como a
água. Teria perdido no jogo os últimos cavalos e as armas , se eu não
o levasse de lá. Depois de Tiflis , as minhas ideias mudaram, comecei
a convencer os jovens Cãos e a mãe deles a aderirem ao hazavat.
- Mas porque mudaste de ideias? - perguntou-lhe Loris-Méli­
kov. - Não gostaste dos russos?
Hadji-Murat demorou a responder.
- Não , não gostei - disse resolutamente e fechou os olhos. -
Ainda aconteceu mais uma coisa que fez com que eu decidisse aderir
ao hazavat.
- Que coisa?
- Junto a Tselmes , eu e o Cão esbarrámos com três murides , dois
deles fugiram e matei o terceiro à pistola. Quando fui ao pé dele pa-
Hadji-Murat 57

ra lhe tirar armas , estava ainda vivo . Olhou para mim. Disse: «Ma­
taste-me . Estou contente . Mas és muçulmano , és jovem e forte , ade­
re ao hazavat. É a vontade de Deus .»
- Então, aderiste?
- Não aderi , mas comecei a pensar - respondeu Hadji-Murat. E
continuou a sua história:
- Quando Gamzat chegou às portas de Khunzakh , mandámos-lhe
os nossos anciãos para lhe dizerem que estávamos de acordo , que ía­
mos aderir ao hazavat, só que nos devia mandar um sábio para expli­
car como é que se cumpria o hazavat. Gamzat, então , deu ordem pa­
ra raparem os bigodes aos velhos , para lhes furarem as narinas , para
lhes pendurarem rodelas nos narizes e os mandarem para trás . Os an­
ciãos disseram que Gamzat estava pronto a enviar um xeque que nos
ensinaria o hazavat, mas sob a condição de que a mãe dos Cãos lhe
mandasse o seu filho mais novo como amanat33 . A mãe acreditou e
deixou que o seu filho Cão Bulatch fosse ter com Gamzat. Este rece­
beu bem o Cão Bulatch e enviou-nos um mensageiro a convidar para
sua casa também os irmãos mais velhos, dizendo que queria servir os
Cãos como o seu pai tinha servido o pai deles . A mãe dos Cãos era
uma mulher fraca, estúpida e atrevida, como todas as mulheres que
vivem de acordo com a sua vontade . Teve medo de mandar ambos os
filhos e mandou só o Cão Umma. Fui com ele . Faltava-nos uma vers­
tá de caminho quando os murides vieram ao nosso encontro , cantan­
do, dançando e galopando à nossa volta. Quando chegámos , Gamzat
saiu da tenda, aproximou-se do estribo do Cão Umma e recebeu-o
com honras de Cão . Disse: «Não fiz nenhum mal à vossa casa nem
quero fazê-lo . Peço apenas que não me mateis e não me impeçais de
converter as pessoas ao hazavat. E vou servir-vos com todo o meu
exército , como o meu pai servia o vosso . Deixai-me viver em vossa
casa. Vou ajudar-vos com os meus conselhos , e fazei o que desejar­
des .» O Cão Umma era inepto na fala. Não sabia o que dizer e cala­
va-se . Então eu disse que , se fosse assim, que Gamzat fosse para
Khunzakh; o Cão e a sua mãe iriam recebê-lo com todas as honras .
Porém, não me deixaram dizer tudo porque dei de caras , pela primei­
ra vez, com o Shamil . Estava ali , ao lado do imã.
«Não é a ti que perguntam, mas ao Cão» - disse-me ele .
Calei-me e Gamzat levou o Cão Umma para a tenda. Depois , Gam­
zat chamou-me e deu-me ordem para ir com os seus emissários a
Khunzakh. Fui . Os emissários começaram a convencer a mãe para
58 Lev Tolstói

que deixasse também o Cão mais velho ir encontrar-se com Gamzat.


Desconfiei que havia ali traição e disse à mãe dos Cãos que não man­
dasse o filho . Mas uma mulher tem tanto juízo quanto um ovo tem ca­
belo . Ela acreditou e disse ao filho que fosse . Abununtsal não quis .
Então , ela disse: «Acho que tens medo .» Tal como a abelha, ela sabia
em que lugar a sua picada doía mais. Abununtsal esquentou-se , não
falou mais com ela e mandou selar o cavalo . Fui com ele . Gamzat re­
cebeu-nos ainda melhor do que ao Cão Umma. Ele próprio foi ao nos­
so encontro à distância de dois tiros do acampamento . Atrás dele , iam
os homens a cavalo com estandartes , cantando «La-illakha il alla» ,
disparando e galopando à nossa volta. Quando chegámos ao acampa­
mento , Gamzat levou o Cão para a tenda, enquanto eu ficava com os
cavalos . Eu encontrava-me no sopé do monte , quando na tenda de
Gamzat começaram os tiros . Fui a correr até à tenda. O Cão Umma
estava de bruços num charco de sangue , Abununtsal estava a lutar
com os murides . Metade da sua cara estava cortada com as carnes
penduradas . Segurava-a com uma mão e, com outra, acutilava com o
punhal todos que se aproximavam dele . Na minha presença, matou o
irmão de Gamzat e já ia atacar o outro , mas os murides dispararam e
ele caiu .
Hadji-Murat calou-se , a sua cara bronzeada enrubesceu , os olhos
raiaram-se-lhe de sangue .
- O medo dominou-me e fugi .
- Como? - disse Loris-Mélikov. - Pensava que nunca tinhas
medo de nada.
- Depois disso nunca mais tive medo . Nunca mais me esqueci
dessa vergonha e, quando a recordava, não tinha medo de nada.

12

- Agora chega. São horas da oração - disse Hadji-Murat. E tirou


do bolso interior da tcherkeska o Breguet de Vorontsov, premiu com
cuidado a corda e pôs-se a ouvir, com a cabeça inclinada para o lado
e contendo um sorriso infantil . O relógio tocou doze vezes e deu tam­
bém o quarto .
- Kunak Vorontsov pechkech - disse , sorrindo .
- Sim , é um bom homem, muito bom - disse Loris-Mélikov. -
E o relógio também é bom. Então vai lá, vai rezar, eu espero .
Hadji-Murat 59

- Iakchi , está bem - disse Hadji-Murat e foi para o seu quarto .


Ao ficar sozinho , Loris-Mélikov anotou o mais importante do que
Hadji-Murat lhe contara, depois acendeu um cigarro e começou a an­
dar para frente e para trás pela sala. Quando se acercou da porta opos­
ta à do quarto , ouviu as vozes animadas dos homens que falavam ra­
pidamente em tártaro . Percebeu que eram os murides de Hadji-Murat,
abriu a porta e entrou .
No quarto , pairava aquele cheiro especial, azedo , a couro , típico
dos montanheses . Perto da janela, Gamzalo , ruivo e zarolho , de bech­
met roto e sebento , estava sentado no chão sobre a burka e trançava
uma cabeçada. Dizia qualquer coisa, excitadamente , com a sua voz
rouca, mas calou-se logo que Loris-Mélikov entrou e , sem lhe prestar
mais atenção , continuou o seu trabalho . Em frente deste estava o ale­
gre Khan-Magoma que , arreganhando os seus dentes brancos e com
os olhos negros sem pestanas brilhando intensamente , repetia sempre
a mesma coisa. O bonitão Eldar, com as mangas arregaçadas nos bra­
ços fortes , estava a esfregar as ventrilhas da sela pendurada no prego.
Khanefi , o principal servidor e responsável pelos bens de Hadji-Mu­
rat, não se encontrava no quarto . Estava na cozinha, a preparar o al­
moço .
- O que estavam a discutir? - perguntou Loris-Mélikov a Khan­
Magoma, depois de o cumprimentar.
- Ele não pára de elogiar Shamil - respondeu Khan-Magoma,
estendendo a mão a Loris . - Diz que Shamil é um grande homem.
Ele é sábio , ele é santo , ele é djiguit.
- Mas como é, ele largou-o e continua a elogiá-lo?
- Pois, largou-o, mas gaba-o - disse Khan-Magoma, mostrando
os dentes e com os olhos a brilharem .
- Então , achas que ele é santo? - perguntou Loris-Mélikov.
- Se não fosse santo , o povo não lhe obedecia - disse Gamzalo
rapidamente .
- O santo não era Shamil , mas Mansur - disse Khan-Magoma.
- Era um verdadeiro santo . Quando ele era o imã, todo o povo era
outro . Andava pelos aúles e o povo saía ao seu encontro , beijava as
abas da sua tcherkeska e confessava-lhe os pecados , e jurava que não
iria fazer o mal . Os velhos dizem: naquele tempo , todas as pessoas vi­
viam como santos, não fumavam, não bebiam, não se esqueciam da
oração , perdoavam as ofensas uns aos outros, até perdoavam o san­
gue . Naquele tempo , se alguém encontrava dinheiro ou coisas perdi-
60 Lev Tolstói

das , atava o achado a uma vara e punha-a no caminho . Então, também


Deus dava ao povo boa sorte em tudo , não era como agora.
- Agora também não se fuma nem se bebe nos montes - retor­
quiu Gamzalo .
- O teu Shamil é lamaroi - disse Khan-Magoma, piscando o
olho a Loris-Mélikov.
«Lamaroi» era um nome pejorativo para os montanheses .
- Lamaroi é montanhês . É nos montes que vivem as águias - res­
pondeu Gamzalo .
- Boa ! Arrasaste-me ! - disse Khan-Magoma, mostrando os den­
tes , muito contente com a resposta hábil do seu adversário.
Ao ver uma cigarreira de prata na mão de Loris-Mélikov, pediu um
cigarro . E, quando este observou: como podia ser, se eram proibidos
de fumar? - Khan-Magoma piscou o olho e apontou com a cabeça
para o quarto de Hadji-Murat. - Pode ser - disse - , enquanto nin­
guém vê . E pôs-se a fumar, sem inspirar o fumo e juntando desajeita­
damente os seus lábios vermelhos quando soprava o fumo .
- Fazes mal - disse severamente Gamzalo e saiu . Khan-Mago­
ma piscou o olho , apontando também para ele e , fumando , começou
a perguntar a Loris-Mélikov onde era melhor comprar um bechmet de
seda e um gorro branco .
- Então , tens muito dinheiro?
- Tenho , dá para isso - respondeu Khan-Magoma, com mais
uma piscadela.
- Pergunta-lhe onde arranjou dinheiro - disse Eldar, virando pa­
ra Loris a sua cabeça bonita e sorrindo .
- Ganhei-o ao jogo - respondeu Khan-Magoma de imediato .
E contou como, no dia anterior, passeando por Tiflis , viu um gru­
po de pessoas , impedidos russos e alguns arménios que estavam a jo­
gar à cara ou coroa. A parada era grande: três moedas de ouro e mui­
ta prata. Khan-Magoma compreendeu num instante em que consistia
o jogo e , fazendo tilintar os cobres no bolso , juntou-se aos jogadores
e disse que apostava tudo .
- Tudo? Tinhas assim tanto? - perguntou-lhe Loris-Mélikov.
- Tinha só doze copeques - respondeu Khan-Magoína, esboçan-
do um sorriso .
- Mas se perdesses?
- Olha.
E Khan-Magoma apontou para a sua pistola.
Hadji-Murat 61

- Pagavas com a pistola?


- Pagar para quê? Fugia e, se alguém tentasse parar-me , matava-
-o. E pronto .
- Então , ganhaste?
- Aia34 . Apanhei tudo e fui-me embora.
Loris-Mélikov compreendia bem estes dois , Khan-Magoma e El­
d'1!. Khan-Magoma era um brincalhão , um estróina que não sabia pa­
ra onde canalizar a sua energia de vida a transbordar, sempre alegre ,
leviano , brincando com a sua vida e com a alheia, e que por causa
desse jogo com a vida se juntara agora aos russos e que da mesma
maneira seria capaz de passar, a qualquer momento , para o lado de
Shamil . Eldar também era bastante compreensível: era um homem
plenamente fiel ao seu murchid, calmo , forte e firme . Apenas o ruivo
Gamzalo era incompreensível . Loris-Mélikov via que este homem
não só era fiel a Shamil , mas ainda sentia repugnância, desprezo , no­
jo e ódio insuperáveis por todos os russos; por isso , Loris-Mélikov
não percebia o que obrigara este homem a juntar-se aos russos . Pas­
sava-lhe pela cabeça uma ideia, partilhada aliás por alguns superio­
res: que a decisão de Hadji-Murat se entregar aos russos e as suas his­
tórias sobre a hostilidade entre ele e Shamil eram uma artimanha, que
tencionava apenas espiar os pontos fracos dos russos para, fugindo
depois para os montes , lançar as suas forças contra esses pontos fra­
cos . E Gamzalo , com todo o seu ser, confirmava esta suposição .
«Aqueles dois e o próprio Hadji-Murat - pensava Loris-Mélikov -
sabem esconder os seus propósitos , mas este trai-se a si próprio com
o seu ódio aberto .»
Loris-Mélikov tentou falar com ele . Perguntou se se aborrecia ali .
Mas Gamzalo , sem interromper o seu trabalho e olhando de esguelha
com o seu único olho , rosnou:
- Não , não me aborreço .
E respondeu da mesma maneira a todas as outras perguntas .
Enquanto Loris-Mélikov estava nesse quarto, entrou o quarto mu-
rid de Hadji-Murat, o ávaro Khanefi , com a cara e pescoço peludos e
o peito proeminente e como que coberto de pêlo . Era um servente ro­
busto, que não raciocinava e estava sempre absorvido pelo seu traba­
lho , submisso de maneira incondicional ao seu senhor.
Quando ele entrou ,-pois viera buscar arroz , Loris-Mélikov fê-lo
parar e perguntou-lhe donde ele era e há quanto tempo servia Hadji­
-Murat.
62 Lev Tolstói

- Cinco anos - respondeu Khanefi . - Sou do mesmo aúl dele .


O meu pai matou-lhe o tio e eles queriam fazer-me o mesmo - disse
ele , olhando tranquilamente , por baixo dos sobrolhos pegados , para a
cara de Loris-Mélikov. - Então , pedi que me admitisse como irmão .
- O que quer dizer «admitir como irmão» ?
- Durante dois meses não rapei a cabeça, não cortei a s unhas e fui
à casa deles . Eles deixaram-me entrar no quarto de Patimat, a mãe de­
le. Patimat deu-me o peito , e tomei-me irmão dele .
No quarto contíguo ouviu-se a voz de Hadji-Murat. Eldar percebeu
de imediato a ordem do seu senhor e , limpando as mãos, foi à sala de
estar numa passada larga.
- Está a chamá-lo - disse , ao voltar. E, depois de dar mais um ci­
garro âo alegre Khan-Magoma, Loris-Mélikov dirigiu-se para a sala
de estar.

13

Quando Loris-Mélikov entrou , Hadji-Murat recebeu-o com uma


cara alegre .
- Então , continuamos? - disse , sentando-se no sofá.
- Sim, é claro - respondeu Loris-Mélikov. - A propósito , falei
com os teus nukeres 35 . Um dos rapazes é divertido - acrescentou .
- Sim, Khan-Magoma é um homem de trato fácil - disse Hadji-
-Murat.
- Mas gostei mais do jovem bonito .
- Pois , do Eldar. É jovem mas firme como o aço .
Calaram-se .
- Então , continuo?
- Sim, sim .
- Falei de como foram mortos os Cãos . Mataram-nos , e Gamzat
entrou em Khunzakh e instalou-se no palácio dos Cãos . Restava ain­
da a mãe deles . Gamzat chamou-a à sua presença. Ela começou a acu­
sá-lo . Gamzat piscou o olho ao seu murid Asselder e este deu-lhe um
golpe por trás e matou-a.
- Mas por que a mataram? - perguntou Loris-Mélikov.
- Nada a fazer: quem passa por cima da cerca com as patas dian-
teiras tem de passar também com as traseiras . Tinham de acabar com
toda a fann1ia. Foi o que fizeram. Shamil matou o mais novo , atirou-
Hadji-Murat 63

-o para o precipício . Toda a Avária se submeteu a Gamzat, só eu e o


meu irmão não queríamos obedecer. Queríamos o sangue dele , vin­
gando os Cãos . Fingimos submissão , mas o que tínhamos na cabeça
era derramar o seu sangue . Pedimos conselho ao nosso avô e resol­
vemos esperar até que ele saísse do palácio , e então faríamos uma em­
boscada para o matar. Alguém nos espiou , denunciou-nos a Gamzat,
e este chamou o meu avô e disse-lhe: «Vê lá, se for verdade que os
teus netos conspiram contra mim, serás pendurado na mesma forca
que eles . Estou a fazer o que Deus me manda e ninguém pode
impedir-me . Vai e lembra-te do que te disse .» O meu avô foi para ca­
sa e contou-nos isso . Então , decidimos não esperar e cumprir o nos­
so plano no primeiro dia da festa na mesquita. Os nossos companhei­
ros recusaram-se , ficámos só eu e o meu irmão . Pegámos · em duas
pistolas cada um, vestimos burkas e fomos à mesquita. Gamzat entrou
com trinta murides . Todos eles tinham nas mãos os sabres desembai­
nhados. Ao lado de Gamzat ia Asselder, o seu murid preferido , aque­
le mesmo que decapitou a mãe dos Cãos . Ao ver-nos , gritou que ti­
rássemos as burkas e aproximou-se de mim . Eu tinha o punhal na
mão , matei-o , depois atirei-me a Gamzat, mas o meu irmão Osman já
lhe tinha dado um tiro . Gamzat estava ainda vivo e lançou-se a Os­
man , levantando o punhal , só que eu atingi-o na cabeça e acabei com
ele . Os murides eram trinta e nós apenas dois . Ao meu irmão Osman
mataram-no , mas eu consegui rechaçá-los e fugir pela janela. Quan­
do correu a notícia de que Gamzat fora morto , todo o povo se suble­
vou , os murides fugiram e quem não fugiu foi exterminado .
Hadji-Murat parou e recuperou , com dificuldade , o fôlego .
- Estava tudo bem - continuou ele - , mas passou a estar mal .
Shamil ocupou o lugar de Gamzat. Mandou-me os seus emissários
para me dizerem que eu devia juntar-me a ele e fazer a guerra contra
os russos; e , se me recusasse , ameaçou que assolava Khunzakh e me
matava. Respondi que não ia ter com ele nem o deixava entrar na mi­
nha terra.
- Mas porque não te juntaste a ele? - perguntou-lhe Loris-
-Mélikov.
Hadji-Murat carregou o sobrolho e demorou a responder:
- Não podia. Shamil estava coberto com o sangue do meu irmão
Osman e do Cão Abununtsal . Não me juntei a ele . O general Rosen
deu-me uma patente de oficial e mandou-me ser comandante na Avá­
ria. Estava tudo bem, mas Rosen nomeou governante da Avária Mir-
64 Lev Tolstói

zá Magomet, Cão de Kazikumik:, primeiro , e depois o Cão Akhmet.


Este ganhou-me ódio . Pediu que lhe dessem Saltanet, irmã dos Cãos ,
para ser mulher do seu filho , mas não lha deram, e pensou que a cul­
pa era minha. Ganhou-me ódio e mandou os seus nukeres à minha
procura para me matarem, mas não me apanharam. Então , caluniou­
-me perante o general Klugenau , dizendo que eu proibia os ávaros de
fornecerem lenha aos soldados russos . Disse-lhe ainda que eu pusera
o turbante na cabeça, este aqui - disse Hadji-Murat, apontando pa­
ra o que trazia na cabeça - e que isso significava que me passara pa­
ra o lado de Shamil . O general não acreditou e disse que não me to­
cassem. Mas , quando o general partiu para Tiflis , o Cão Akhmet fez
o que queria: com uma companhia de soldados, prendeu-me , acor­
rentou-me e atou-me ao canhão . Mantiveram-me assim durante seis
dias . Ao sétimo dia, levaram-me a Temir-Khan-Chura. Quarenta sol­
dados com espingardas carregadas escoltavam-me . Tinha as mãos
atadas e foi dada ordem de me matarem se tentasse fugir. Eu sabia-o .
Quando passávamos ao lado de Moksokh, a vereda era estreita e à di­
reita havia uma escarpa de cinquenta braças . Contornei um soldado ,
pus-me à beira da escarpa. O soldado tentou fazer-me parar, mas sal­
tei para o precipício e arrastei comigo o soldado . Ele morreu na que­
da, mas eu sobrevivi . Parti tudo - costelas , cabeça, braços , pernas .
Tentei rastejar, mas não consegui . Tive vertigens , adormeci . Acordei
todo encharcado de sangue . Um pastor viu-me , chamou gente , leva­
ram-me para o aúl . As minhas costelas e a cabeça sararam, a perna
também sarou , mas ficou mais curta.
E Hadji-Murat esticou a perna torta.
- Anda, já não é mau - disse . - O povo soube disso , as pessoas
começaram a visitar-me . Convalesci , mudei-me para Tselmes . Os
ávaros pediram-me que voltasse a governá-los - disse Hadji-Murat
com um orgulho calmo e seguro . - Aceitei .
Hadji-Murat levantou-se rapidamente e tirou do alforge uma pas­
ta e, dela, duas cartas amarelecidas ; entregou -as a Loris-Mélikov.
As cartas eram de Klugenau . Loris-Mélikov leu-as . A primeira car­
ta dizia:
«Alferes Hadji-Murat: Serviste na minha tropa e eu estava conten­
te contigo , considerando-te bom homem. Há pouco tempo , o major­
general Cão Akhmet informou-me que eras traidor, que puseste na ca­
beça o turbante , que estavas em contacto com Shamil , que ensinaste
o povo a não obedecer às autoridades russas . Mandei que te prendes-
Hadji-Murat 65

sem e te levassem à minha presença, mas fugiste; não sei se foi pior
ou melhor, porque não sei se tens culpa ou não . Agora ouve . Se a tua
consciência estiver limpa perante o grande czar, se não tiveres qual­
quer culpa, vem ter comigo . Não temas ninguém, sou teu protector. O
Cão não te vai fazer mal , é meu subordinado . Por isso , não tens nada
que temer.»
A seguir, Klugenau escrevia que tinha cumprido sempre a sua pa­
lavra e era um homem justo, tentando ainda persuadir Hadji-Murat a
comparecer.
Quando Loris-Mélikov acabou de ler a primeira carta, Hadji-Murat
tirou a outra, mas , antes de a entregar a Loris-Mélikov, contou como
havia respondido àquela primeira carta.
- Escrevi-lhe que, de facto , usava o turbante, mas que não era pa­
ra Shamil e sim para a salvação da minha alma; que não queria nem
podia passar para o lado de Shamil , porque por ordem deste foram
mortos o meu pai , o meu irmão e os meus parentes , mas que também
não podia voltar para os russos porque fui desonrado por eles . Em
Khunzakh, quando eu estava atado , um canalha urinou-me em cima.
E não podia ir ter com os russos enquanto esse homem fosse vivo .
Mas que , sobretudo , tinha medo do mentiroso Cão Akhmet. Então , o
general mandou-me esta carta aqui - disse Hadji-Murat, estendendo
a Loris-Mélikov o outro papel amarelado .
«Respondeste à minha carta, obrigado - leu Loris-Mélikov. -
Escreves que não tens medo de voltar, mas que a injúria que te fez um
guiaúr36 não to permite; mas asseguro-te que a lei russa é justa e vais
ver com os teus próprios olhos a punição daquele que se atreveu a in­
sultar-te . Já mandei que o investigassem. Ouve , Hadji-Murat. Tenho
direito de estar descontente contigo , porque não acreditas em mim
nem na minha honra, mas perdoo-te porque conheço o carácter des­
confiado de todos os montanheses . Se a tua consciência estiver lim­
pa, se usavas o turbante apenas para a salvação da tua alma, então
tens razão e podes olhar-me sem medo nos olhos e nos olhos do go­
verno russo; quanto ao homem que te desonrou , vai ser castigado ,
acredita nisso, os teus bens ser-te-ão devolvidos, e verás e saberás o
que significa a lei russa. Ainda por cima, os russos vêem tudo de ou­
tro ponto de vista: na opinião deles , não te cobriste de opróbrio por­
que um canalha qualquer te injuriou . Eu próprio dei licença ao povo
de Guirnrin para que os homens usassem os turbantes e olho para as
suas acções com compreensão; portanto , repito , não tens nada a te-
66 Lev Tolstói

mer. Acompanha o homem que te envio e vem; é-me fiel e não é es­
cravo dos teus inimigos, mas é amigo do homem a quem o governo
russo concede favores especiais .»
A seguir, Klugenau voltava a tentar convencer Hadji-Murat a ir ter
com ele.
- Não acreditei nele - disse Hadji-Murat quando Loris-Mélikov
acabou de ler a carta - e não fui ter com Klugenau . Para mim, o prin­
cipal era vingar-me do Cão Akhmet, o que não podia fazer através dos
russos . Nesse mesmo tempo , o Cão Akhmet cercou Tselmes e quis
capturar-me ou matar-me . Eu tinha poucos homens e não estava ca­
paz de lhe fazer frente . E foi então que chegou a minha casa um emis­
sário com uma carta de Shamil . Este prometia-me ajuda contra o Cão
Akhmet e que me ajudava a matá-lo , e dava-me toda a Avária para go­
vernar. Pensei muito no assunto e acabei por me passar para o lado de
Shamil . Desde então , lutei contra os russos sem parar.
A seguir, Hadji-Murat centrou a narrativa em todas as suas campa­
nhas militares . Eram muitas e Loris-Mélikov conhecia uma parte de­
las . Todas as suas campanhas e incursões , sempre coroadas de êxito ,
eram impressionantes pela extraordinária rapidez das deslocações e
pela ousadia dos ataques .
- Nunca existiu qualquer amizade entre mim e Shamil - acabou
a sua história Hadji-Murat - , mas ele tinha medo de mim e precisa­
va de mim. Mas aconteceu que me perguntaram quem devia ser o imã
depois de Shamil . Eu disse que seria imã aquele que tivesse o sabre
afiado . Transmitiram-no a Shamil e ele quis livrar-se de mim. Man­
dou-me a Tabassaran . Fui lá, arrebatei mil carneiros e trezentos cava­
los . Mas Shamil disse que eu não fizera o que devia fazer, tirou-me o
cargo de naíb e ordenou que lhe mandasse todo o dinheiro . Enviei-lhe
mil moedas de ouro . Mandou então os seus murides e apossou-se de
todos os meus bens . Exigia que eu me apresentasse diante dele; eu sa­
bia que Shamil queria matar-me e não fui . Destacou então homens
seus para me prenderem. Rechacei-os e pus-me em comunicação com
Vorontsov. Só que não consegui levar comigo a minha farru1ia. A mi­
nha mãe , a minha mulher e o meu filho estão nas mãos dele . Diz ao
sardar: enquanto a minha farru1ia estiver lá, não posso fazer nada.
- Sim, digo - respondeu Loria-Mélikov.
- Intercede por mim, faz um esforço. O que é meu é teu , só que
fala por mim junto ao príncipe . Tenho as mãos atadas e a ponta da
corda está nas mãos de Shamil .
Hadji-Murat 67

Foi com estas palavras que Hadji-Murat acabou de contar a Loris­


-Mélikov a sua história.

14

No dia 20 de Dezembro , Vorontsov escreveu uma carta a Tchemi­


chov, ministro da Guerra. A carta era em francês .
«Caro príncipe: Não lhe mandei notícias com o último correio por­
que desejava primeiro decidir o que iríamos fazer com Hadji-Murat e
porque , durante dois ou três dias , me senti um pouco adoentado . Na
minha última carta, informei-o sobre a chegada de Hadji-Murat: foi
no dia 8 ; no dia seguinte , fiz conhecimento com ele e durante oito ou
nove dias ia falando com ele e pensando no que este homem poderia
fazer por nós ulteriormente , e sobretudo no que devíamos fazer com
ele agora, porque está muito preocupado com a vida da sua família e
diz , com todos os sinais de uma plena sinceridade, que enquanto a sua
fann1 ia permanecer nas mãos de Shamil está paralisado e incapaz de
nos servir e de nos provar a sua gratidão pela recepção carinhosa e o
perdão que lhe foram concedidos. A incerteza em que permanece re­
lativamente aos seus entes queridos provoca-lhe um estado febril e as
pessoas que destaquei para estarem junto dele afirmam que Hadji­
Murat não dorme de noite , não come quase nada, reza constantemen­
te e apenas pede autorização para passear a cavalo , acompanhado por
alguns cossacos - a única distracção e moção possíveis e necessá­
rias para ele , por causa de um hábito de muitos anos . Todos os dias
ele vem ter comigo para saber se tenho algumas notícias sobre a sua
fann1ia e pede-me que mande juntar todos os prisioneiros que temos
nas nossas linhas para os propormos a Shamil em troca, aos quais ten­
ciona acrescentar algum dinheiro . Há pessoas que lho vão dar com es­
te propósito . Não deixa de repetir: «Salve a minha fann1ia e dê-me ,
depois , possibilidade de vos servir (o melhor, na sua opinião , seria na
linha lezguina) e, se durante um mês não vos prestar um grande ser­
viço , castigai-me como quiserdes .»
«Respondi-lhe que tudo isso me parecia muito justo e que haveria
aqui muitas pessoas que não acreditavam nele enquanto a sua fann1ia
continuasse nos montes e não aqui , connosco , como garantia; que eu
ia fazer todo o possível para juntar os prisioneiros nas nossas frontei­
ras e que , como não tinha o direito , pelos nossos estatutos , de lhe dar
68 Lev Tolstói

dinheiro para o resgate , em complemento daquele que ele ia arranjar,


encontraria talvez outra maneira de o ajudar. Depois disso , exprimi­
-lhe abertamente a minha opinião: que Shamil jamais lhe entregará a
fann1ia e que talvez o vá declarar até abertamente; que vai prometer­
-lhe o perdão completo e os antigos cargos e vai ameaçar que , se Had­
ji-Murat não voltar, lhe mata a mãe , a mulher e os seis filhos . Per­
guntei-lhe se me podia dizer sinceramente o que faria se recebesse de
Shamil uma declaração desse teor. Hadji-Murat levantou os olhos e
as mãos ao céu e disse-me que tudo estava nas mãos de Deus , mas
que ele nunca se entregaria ao seu inimigo porque tinha toda a certe­
za de que Shamil não lhe ia perdoar e não o iria deixar vivo por mui­
to mais tempo . Quanto ao extennínio da sua fann1ia, não acha que
Shamil actue de maneira tão leviana: em primeiro lugar, para não o
transformar num inimigo ainda mais arrojado e perigoso; em segun­
do , porque há no Daguestão bastantes pessoas muito influentes que o
vão dissuadir de dar esse passo . Por fim, repetiu várias vezes que , fos­
se qual fosse a vontade de Deus em relação ao futuro , ele , Hadji-Mu­
rat, estava agora dominado apenas pela ideia de resgatar a fann1ia;
que me implorava, em nome de Deus , que o ajudasse e lhe desse au­
torização de voltar aos arredores da Tchetchniá onde ele , por inter­
médio e com a permissão dos nossos chefes , pudesse estabelecer con­
tactos com a sua família, ter constantemente notícias sobre a situação
dela e sobre as possibilidades de a libertar; que muitas pessoas e até
naíbes daquela parte do país inimigo eram pessoas que, umas mais e
outras menos , lhe eram afectas; que , no meio de toda aquela popula­
ção , já submissa aos russos ou neutra; seria fácil para ele , com a nos­
sa ajuda, arranjar contactos muito úteis para alcançar o objectivo que
não lhe dava sossego nem de dia nem de noite e que , se o conseguis­
se , ficaria tranquilo e com a possibilidade de agir a nosso favor e ga­
nhar a nossa confiança. Está a pedir que o mandemos de novo para
Gróznaia, com uma escolta de vinte ou trinta cossacos corajosos que
lhe sirvam de protecção dos inimigos e sejam , para nós , uma garan­
tia de que as suas intenções são verdadeiras .»
«Como deve compreender, meu caro príncipe , tudo isso me pôs pe­
rante um problema difícil de resolver porque, seja qual for a minha
decisão , fico a carregar com uma responsabilidade muito grande .
Dar-lhe toda a confiança seria muito imprudente; por outro lado , se
quisermos privá-lo da possibilidade de fuga, teremos de o manter fe­
chado , o que , no meu entender, seria injusto e uma má política. Esta
Hadji-Murat 69

medida, cuja notícia se propagaria rapidamente por todo o Daguestão ,


seria muito prejudicial para nós , acabando com a vontade das pessoas
(que não são poucas) de lutarem de maneira mais ou menos aberta
contra Shamil , pessoas que têm um grande interesse pela situação em
que está aqui connosco o mais corajoso e activo ajudante do imã, que
se viu obrigado a entregar-se a nós . Se tratarmos Hadji-Murat como
um prisioneiro , todo o efeito , favorável para nós , da sua traição a Sha­
mil vai desaparecer.»
«Creio , pois , que não poderia ter procedido de outro modo , sentin­
do , contudo , que seria possível acusar-me de ter cometido um grande
erro se Hadji-Murat se lembrasse de fugir outra vez. No serviço e em
casos tão embrulhados , é difícil , se não impossível , seguirmos só um
caminho directo , sem arriscarmos errar e sem carregarmos com a res­
ponsabilidade; mas quando o caminho nos parece directo temos de o
seguir - e seja o que Deus quiser.»
«Peço-lhe , meu caro príncipe , que apresente tudo isto à considera­
ção de Sua Majestade, e fico feliz se o nosso augustíssimo imperador
se dignar a aprovar o meu procedimento . Tudo o que lhe escrevo aci­
ma escrevi-o também aos generais Zavadóvski e Kozlóvski , com o
propósito de uma comunicação directa de Kozlóvski com Hadji-Mu­
rat, avisado por mim de que , sem o consentimento do general Koz­
lóvski , não poderá agir nem sair para lado nenhum. Anunciei-lhe que ,
para nós , seria ainda melhor se ele saísse sob a nossa escolta, de ou­
tro modo Shamil será capaz de divulgar que estamos a manter Hadji­
-Murat prisioneiro; mas , ao mesmo tempo , fi-lo prometer que nunca
iria a Vozdvijênskoe, porque o meu filho, o primeiro a quem Hadji­
-Murat se entregou e a quem considera o seu kunak (amigo) , não é
chefe desse local , e poderiam acontecer certos mal-entendidos . Aliás ,
Vozdvijênskoe encontra-se perto de mais de uma povoação inimiga,
com numerosos habitantes , enquanto Gróznaia é cómoda em todos os
sentidos para os contactos que ele deseja ter com os seus homens de
confiança.»
«Além de vinte cossacos eleitos que , a pedido do próprio Hadji­
-Murat, não se vão afastar dele um passo que seja, mandei com ele o
capitão de cavalaria Loris-Mélikov, oficial digno, excelente e muito
inteligente , que fala a língua tártara e conhece bem Hadji-Murat; es­
te , ao que parece , também tem plena confiança nele . Aliás , durante os
dez dias que Hadji-Murat passou aqui em Tiflis , viveu na mesma ca­
sa do tenente-coronel príncipe Tarkhánov, chefe do distrito de Chu-
70 Lev Tolstói

cha, que está aqui em serviço . É um senhor realmente digno de res­


peito e voto-lhe inteira confiança. Ele também ganhou a confiança de
Hadji-Murat e foi graças precisamente a ele , que fala tártaro perfeita­
mente , que pudemos discutir os mais delicados e secretos assuntos.»
«Aconselhei-me com Tarkhánov relativamente a Hadji-Murat e ele
concordou em tudo comigo: ou se fazia como fiz, ou se fechava Had­
ji-Murat na prisão , guardando-o com todas as possíveis medidas ri­
gorosas - porque , tratando-o mal , é difícil guardá-lo - , ou então le­
vá-lo para longe deste país . Porém, estas duas últimas medidas não só
teriam destruído todas as nossas vantagens decorrentes do conflito
entre Hadji-Murat e Shamil , mas teriam travado , ainda por cima, to­
do o crescimento do descontentamento e da possibilidade de uma su­
blevação por parte dos montanheses contra o poder de Shamil .
O príncipe Tarkhánov disse-me que ele próprio tinha a certeza da sin­
ceridade de Hadji-Murat e que este não duvidava de que Shamil nun­
ca lhe perdoaria e o mandaria executar, apesar do perdão prometido .
A única coisa que parecia preocupante a Tarkhánov, durante o seu
convívio com Hadji-Murat, era o apego deste à sua religião , não es­
condendo que Shamil poderia influenciá-lo por esse lado . Porém , co­
mo digo acima, Shamil nunca conseguirá convencer Hadji-Murat de
que não o vai matar de imediato , ou então algum tempo depois do seu
regresso .»
« É tudo , meu caro príncipe , o que tinha a comunicar-lhe relativa­
mente a este episódio dos acontecimentos locais .»

15

Este relatório foi mandado de Tiflis no dia 24 de Dezembro . Na


véspera do ano novo , o de 1 85 2 , o correio oficial , depois de ter re­
bentado uma dúzia de cavalos e de espancar até fazer sangue uma dú­
zia de cocheiros , entregou-o ao príncipe Tchemichov, ministro da
Guerra, e no dia 1 de Janeiro de 1 852 Tchemichov levou este relató­
rio , juntamente com outros , ao imperador Nicolau 1 .
Tchemichov não gostava de Vorontsov por causa do respeito geral
de que este gozava e por causa da sua enorme fortuna, e porque Vo­
rontsov era um verdadeiro senhor, enquanto Tchemichov, fosse como
fosse , era um parvenu , mas sobretudo porque o imperador tinha uma
simpatia especial por Vorontsov; por isso , Tchemichov aproveitava
Hadji-Murat 71

qualquer ocasião para, na medida das suas possibilidades , prejudicar


o príncipe Vorontsov. No relatório anterior sobre a situação no Cáu­
caso , Tchemichov conseguiu provocar algum descontentamento de
Nicolau para com Vorontsov porque , por descuido dos chefes , fora
exterminado , quase por completo , um pequeno destacamento russo .
Agora, Tchemichov tencionava apresentar a uma luz desvantajosa a
ordem que Vorontsov tinha dado relativamente a Hadji-Murat. Que­
ria convencer o imperador de que Vorontsov, desde sempre protector
e até indulgente em relação aos aborígenes , em prejuízo dos russos ,
procedera imprudentemente ao deixar Hadji-Murat no Cáucaso; que
era muito provável que Hadji-Murat se houvesse juntado aos russos
apenas para espiar os nossos meios de defesa e que seria melhor
mandá-lo para a Rússia central e aproveitá-lo apenas quando a sua fa­
ITI11 ia fosse libertada e levada para fora dos montes , e houvesse então
certeza da sua lealdade .
Porém, este plano de Tchemichov falhou e apenas porque , na ma­
nhã de 1 de Janeiro, Nicolau estava muito mal-humorado e não acei­
taria, por mero espírito de contradição, qualquer proposta, fosse qual
fosse e de quem proviesse; estava ainda menos inclinado a aceitar uma
proposta de Tchemichov, a quem apenas suportava, considerando-o
por enquanto um homem insubstituível , mas um grande canalha, por­
que estava a par dos esforços que este fizera, durante o processo dos
dezembristas , para destruir Zakhar Tchemichov e apoderar-se da sua
fortuna. Portanto , graças ao mau-humor de Nicolau , Hadji-Murat fi­
cou no Cáucaso e o seu destino não mudou como poderia mudar se
Tchernichov tivesse feito o seu relatório noutra altura.
Eram nove e meia de manhã, quando , na neblina do frio de vinte
graus negativos , o cocheiro gordo e barbudo de Tchemichov, com um
chapéu de veludo cerúleo e pontas agudas , sentado na boleia de um
pequeno trenó , igual àquele em que passeava Nicolau , parou em fren­
te da porta menor do Palácio de Inverno e acenou amigavelmente ao
seu amigalhaço , o cocheiro do príncipe Dolgorúki , que , já há muito ,
ao apear o seu senhor, estava à espera junto às portas , com a rédea
metida debaixo do seu gordo traseiro de algodão e esfregando as
mãos geladas .
Tchemichov estava de capote com uma gola felpuda de pele de
castor prateada e com um tricórnio de penugem de galo , posto na ca­
beça de modo formal . Ao abrir o avental de pele de urso , retirou do
trenó , com cuidado , os seus pés frios , sem galochas - orgulhava-se
72 Lev Tolstói

do facto de não usar galochas - , tomou um ar animado , com as es­


poras a tilintarem, e passou pelo tapete até à porta que o porteiro lhe
abriu respeitosamente. No vestíbulo , ao lançar o capote para as mãos
de um velho lacaio que acudira, Tchernichov foi ao espelho e, com
cuidado , tirou o chapéu da peruca frisada. Mirando-se, ondulou as pa­
tilhas e o topete com um gesto habitual das mãos senis , ajeitou a cruz,
as agulhetas e as grandes dragonas com monogramas e , no passo dé­
bil das velhas pernas que o traíam, começou a subir pelo tapete da es­
cada em declive suave .
Depois de passar ao lado dos lacaios de uniforme de gala, que lhe
faziam vénias servis , Tchernichov entrou na sala de espera. O oficial
de dia, ajudante-de-campo da corte recém-nomeado , exibindo farda,
dragonas e agulhetas novas , com uma cara de faces coradas , ainda
fresca, de bigodinho negro e patilhas penteadas na direcção dos olhos ,
imitando as de Nicolau , recebeu Tchernichov com reverência. O prín­
cipe Vassíli Dolgorúki , adjunto de Tchernichov, com uma expressão
entediada na cara lorpa, adornada com as mesmas suíças e patilhas , e
o mesmo bigode que usava Nicolau , levantou-se ao encontro de
Tchernichov e cumprimentou-o .
- L'empereur? - dirigiu-se Tchernichov ao ajudante-de-campo ,
apontando com os olhos , interrogativamente , para a porta do gabi­
nete .
- Sa Majesté vient de rentrer 3 1 - disse o oficial , aparentemente
com prazer em ouvir o som da sua voz . E em passo suave , tão fluen­
te que , se tivesse em cima da cabeça um copo cheio de água, não a te­
ria derramado , aproximou-se da porta que se abria inaudivelmente e,
manifestando com todo o seu ser uma veneração do lugar em que es­
tava a entrar, desapareceu por trás dessa porta.
Dolgorúki , entretanto , abriu a sua pasta, verificando os documen­
tos que trouxera.
Quanto a Tchernichov, passeava-se com ar carrancudo , desentor­
pecendo as pernas e recapitulando tudo o que devia relatar ao impe­
rador. Estava em frente da porta do gabinete quando esta voltou a
abrir-se e saiu dela o ajudante-de-campo com um ar ainda mais ra­
diante e respeitoso do que antes , convidando o ministro e o seu ad­
junto , com um gesto , a acederem à presença do imperador.
O Palácio de Inverno havia muito que fora recuperado depois do
incêndio , mas Nicolau vivia ainda no andar de cima. O gabinete em
que recebia os ministros e os altos funcionários era uma sala de tecto
Hadji-Murat 73

muito alto e quatro janelas grandes . Na parede principal havia um


grande retrato de Alexandre I; nos espaços entre as janelas , duas es­
crivaninhas; ao longo das paredes , várias cadeiras . O centro da sala
era ocupado por uma enorme mesa e, junto à mesa, estava o cadeirão
de Nicolau e as cadeiras para os recebidos.
Nicolau , de sobrecasaca preta, com pequenas platinas em vez de
dragonas , estava sentado, com as costas enormes deitadas para trás e
o ventre crescido fortemente apertado pelo cinto , e fixava os olhos
imóveis e sem vida nos senhores que entravam. A sua cara comprida
e branca, com uma fronte enorme e fugidia que se destacava por cau­
sa das têmporas alisadas , ligadas artisticamente ao chinó que lhe co­
bria a calvície, mostrava-se mais fria e imóvel do que nunca. Os seus
olhos, sempre baços, estavam ainda mais baços do que habitualmen­
te , os lábios apertados debaixo do bigode arqueado para cima e as bo­
chechas gordas , apoiadas numa gola alta, rapadas de fresco e ladea­
das pelos chouricinhos regulares das suíças , e o queixo apertado
contra a gola - tudo isto dava à sua cara uma expressão de descon­
tentamento , quase de ira. A causa deste estado de espírito era o can­
saço . Ora, a causa do cansaço era a seguinte: na noite anterior tinha
ido a um baile de máscaras e , enquanto passeava no meio do público
que se apertava a ele e abria com timidez o caminho à sua enorme e
arrogante figura, levando na cabeça, como de costume , o capacete de
cavaleiro da guarda encimado pela ave , voltou a encontrar aquela
máscara que , no baile anterior, fugira dele, tendo-lhe prometido um
encontro no baile de máscaras seguinte . No baile da véspera ela foi
ter com ele , e ele já não a deixou fugir. Levou-a para um camarote ,
que estava sempre preparado para o mesmo fim, onde podia ficar a
sós com a sua dama. Ao chegar em silêncio à porta do camarote , Ni­
colau olhou para trás , procurando com os olhos o camaroteiro , mas
não o viu . Nicolau carregou o sobrolho e empurrou , ele próprio , a
porta do camarote , deixando passar primeiro a sua dama.
- 11 y a quelqu'un38 - disse a máscara, parando .
De facto , o camarote estava ocupado . No canapé ·de veludo esta­
vam sentados , muito juntinhos , um oficial dos ulanos e uma mulher
novinha, bonitinha, de caracóis loiros , vestida de dominó e com a
máscara tirada. A loira, ao ver a figura erecta e irada de Nicolau ,
apressou-se a esconder o rosto por trás da máscara. Quanto ao ulano ,
ficou petrificado de terror e , sem se levantar do canapé , olhava para
Nicolau com os olhos pasmados .
74 Lev Tolstói

Por mais habituado que Nicolau estivesse a causar terror às pessoas ,


um tal terror agradava-lhe sempre e gostava, de vez em quando, de im­
pressionar as pessoas aterrorizadas com um contraste, dirigindo-lhes
algumas palavras carinhosas . Foi o que fez nesse momento .
- Bem, meu amigo , és mais novo do que eu - disse ao oficial hir­
to de pavor. - Podias ceder-me o lugar.
O oficial levantou-se de um salto e , ora pálido , ora vermelho , saiu
em silêncio atrás da máscara; Nicolau ficou a sós com a sua dama.
Era uma bela rapariga, dos seus vinte anos, filha de uma precepto­
ra sueca. Contou a Nicolau que se apaixonara por ele ainda na infân­
cia, pelos retratos , que o divinizava e decidira conseguir a sua aten­
ção custasse o que custasse . Conseguira-o e , como lhe disse , não
precisava de mais nada. A rapariga foi levada ao lugar habitual desti­
nado aos encontros de Nicolau com as mulheres , e este passou com
ela mais de uma hora.
Quando , naquela noite, Nicolau voltou para o seu quarto , se deitou
na cama estreita e dura de que se orgulhava e se cobriu com a capa
que considerava - dizendo-o em voz alta - tão famosa como o cha­
péu de Napoleão , demorou muito a adormecer. Ora recordava a ex­
pressão assustada e fascinada da rapariga, ora os ombros possantes e
cheios de Nelídova, a sua amante permanente , e tentava comparar as
duas mulheres . Não lhe passava pela cabeça que a depravação de um
homem casado era uma coisa feia e ficaria espantado se alguém o re­
provasse por isso . Contudo, apesar da convicção de ter procedido
bem, sentia um ressaiba qualquer, desagradável , e para abafar a sen­
sação começou a pensar numa coisa que o tranquilizava sempre: que
grande homem ele era.
Apesar de ter adormecido tarde , levantou-se como de costume,
pouco depois das sete , e , feita a sua toilette habitual - esfregar o cor­
po grande e cevada com gelo - , rezou , dizendo as orações que dizia
sempre , desde a infância: «Ave , Maria» , «Credo» e «Padre nosso» ,
sem atribuir às palavras pronunciadas qualquer significado , vestiu o
capote , pôs o boné na cabeça e saiu pela porta menor para a marginal .
Na marginal deparou com um aluno da Escola de Direito , de uni­
forme e chapéu , com uma estatura tão grande como a sua. Ao ver o
uniforme da escola que detestava pelo seu livre-pensamento , Nicolau
carregou o sobrolho; porém, a grande estatura, uma perfeita posição
de sentido e a continência do estudante , com o cotovelo acentuada­
mente afastado , atenuaram o seu desgosto .
Hadji-Murat 75

- Nome? - perguntou .
- Polossátov, Vossa Majestade .
- Bom rapaz !
O estudante continuava a fazer a continência. Nicolau parou .
- Queres servir no exército?
- Não , Vossa Majestade !
- Imbecil ! - E Nicolau virou-lhe as costas e seguiu , pronuncian-
do em voz alta as palavras que lhe passavam espontaneamente pela
cabeça. «Koperwein , Koperwein» - repetiu várias vezes o nome da
rapariga mascarada. «Está mal , está mal .» Não pensava no que dizia,
mas abafava assim o seu sentimento , concentrando a atenção nas pa­
lavras pronunciadas . «Pois é, o que seria a Rússia sem mim? - dis­
se para si próprio, ao sentir que o desgosto voltava a dominá-lo . -
Sim, o que seria sem mim não só a Rússia, mas toda a Europa?» Lem­
brou-se do seu cunhado , rei da Prússia, homem fraco e estúpido , e
abanou a cabeça.
Quando voltou , viu , à porta do palácio , o coche de Elena Pávlovna
que , acompanhada pelo lacaio vermelho , estava a chegar à entrada
Saltikóvski . Elena Pávlovna era, para ele , uma personificação daque­
las pessoas fúteis que se davam a liberdade de raciocinar não só so­
bre as ciências e a poesia, mas também sobre a governação , imagi­
nando que podiam governar-se a si próprias melhor do que ele ,
Nicolau , estava a governá-las . Sabia que , por mais que esmagasse es­
sas pessoas , elas reapareciam sempre . E recordou o seu irmão Mi­
khail , falecido há pouco . Inundou-o um sentimento de tristeza e des­
gosto . Carregou o sobrolho e, sombrio , voltou a sussurrar palavras
que lhe ocorriam espontaneamente . Deixou de sussurrar apenas quan­
do entrou no palácio . Foi para o seu quarto , alisou perante o espelho
as suíças , o cabelo nas têmporas e o chinó no cocuruto , torceu o bi­
gode e passou directamente para o gabinete onde recebia os relató­
nos .
O primeiro a quem recebeu foi Tchernichov. Este compreendeu de
imediato , pela cara e sobretudo pelos olhos de Nicolau , que o impe­
rador estava mal-humorado e, como sabia da sua aventura da véspe­
ra, percebeu porquê . Depois de o cumprimentar com frieza e de o
convidar a sentar-se , Nicolau pousou nele os seus olhos sem vida.
O primeiro assunto do relatório de Tchernichov era o caso do fur­
to por parte dos funcionários da intendência; a seguir, o problema da
deslocação das tropas na fronteira prussiana; depois , as nomeações de
76 Lev Tolstói

algumas pessoas omitidas na primeira lista, as condecorações por


ocasião das festas da passagem do ano; depois , era o relatório de Vo­
rontsov sobre Hadji-Murat e, finalmente, um caso desagradável de
um estudante da Academia de Medicina que atentara contra a vida de
um professor.
Nicolau , em silêncio , com os lábios apertados , afagava com as
mãos grandes e brancas , com um único anel de ouro no dedo anelar,
as folhas de papel e ouvia o relatório sobre o furto , sem desviar os
olhos da fronte e do topete de Tchemichov.
Nicolau estava convencido de que toda a gente roubava. Sabia que
era preciso castigar os funcionários da intendência e decidiu metê-los
a todos na tropa como soldados , mas sabia também que isso não iria
impedir que os substitutos nos cargos dos despedidos fizessem a mes­
ma coisa. A característica principal dos funcionários públicos era rou­
barem, enquanto a obrigação dele era castigá-los , e , por mais farto de
o fazer que estivesse , continuava a cumprir escrupulosamente essa
obrigação .
- Pelos vistos , cá na Rússia há apenas um homem honesto - dis­
se ele .
Tchemichov percebeu logo que esse único homem honesto era o
próprio Nicolau e sorriu com aprovação .
- É assim com certeza, Majestade - disse .
- Deixa aqui , eu lavro o despacho - disse Nicolau , pegando no
papel e pondo-o no lado esquerdo da mesa.
Depois disso , Tchemichov começou a informar sobre as condeco­
rações e a deslocação das tropas . Nicolau leu a lista, riscou vários no­
mes e depois ordenou , de forma breve e definitiva, a deslocação de
duas divisões até à fronteira da Prússia.
Nicolau nunca perdoou ao rei da Prússia a Constituição de 1 848 e,
por isso , apesar de exprimir ao cunhado os mais amigáveis sentimen­
tos nas suas conversas e cartas , considerava necessário , para o que
desse e viesse , ter tropas na fronteira prussiana. Essas tropas podiam,
eventualmente , servir para o caso de uma sublevação do povo na
Prússia - Nicolau via por todo o lado intenções de sublevação - ,
avançando então em defesa do trono do cunhado , tal como tinha
acontecido quando deslocara o exército em defesa da Áustria contra
os húngaros . Precisava ainda dessas tropas para carregar de mais pe­
so e significado aos conselhos que dava ao rei da Prússia.
«Pois é, o que seria a Rússia se não fosse eu?» - voltou a pensar.
Hadji-Murat 77

- Mais? - disse ele .


- Um correio do Cáucaso - disse Tchemichov. E começou a re-
latar o que Vorontsov escrevera sobre a entrega de Hadji-Murat.
- Pois - disse Nicolau . - É um bom começo .
- Pelos vistos , o plano concebido por Vossa Majestade começa a
dar frutos - disse Tchernichov.
Este elogio dos seus talentos estratégicos era especialmente agra­
dável para Nicolau que, embora orgulhoso destes seus talentos, no
fundo da alma percebia que não os tinha. De maneira que queria ou­
vir os louvores em mais pormenor.
- Em que sentido estás a falar? - perguntou .
- No sentido que deveriam ter seguido há muito o plano de Vos-
sa Majestade: avançar sempre , embora devagar, cortando as florestas
e liquidando as reservas de víveres . Se assim tivesse acontecido , há
muito que o Cáucaso estaria subjugado . O aparecimento de Hadji­
Murat, no meu entender, está relacionado apenas com isso . Ele com­
preendeu que já não tinham possibilidade de resistir.
- Certo - disse Nicolau .
Apesar de o plano de avançar lentamente para dentro do território
inimigo mediante o corte das florestas e a destruição dos víveres per­
tencer a Ermólov e a Veliamínov e ser absolutamente oposto à inten­
ção de Nicolau , que pretendia apoderar-se de um golpe da residência
de Shamil , arrasando esse ninho dos bandidos , desígnio esse em cum­
primento do qual foi empreendida, em 1 845 , a expedição de Dargo
que custou a vida a muitas pessoas; apesar disso tudo , portanto , Ni­
colau atribuía a si mesmo o plano de um avanço lento , do corte siste­
mático das florestas e da destruição dos víveres . Aparentemente , pa­
ra se acreditar que este último plano era da sua autoria, era necessário
esconder o facto de que tinha sido precisamente ele quem insistira,
em 1 845 , numa campanha diametralmente oposta. Mas não o escon­
dia e tinha tanto orgulho no seu plano de 1 845 como no do avanço
lento , apesar de os dois programas entrarem em evidente contradição
um com o outro . A adulação permanente , óbvia, contrária a qualquer
evidência, por parte das pessoas que o rodeavam, levou-o a um pon­
to em que deixava de reparar nas suas contradições , de ajustar os seus
actos e as suas palavras à realidade , à lógica e ao mero bom senso; es­
tava plenamente convencido de que todas as suas ordens , por mais
absurdas , injustas e incongruentes que fossem, se tomavam sensatas ,
justas e congruentes apenas porque era ele quem as emitia.
78 Lev Tolstói

Foi deste tipo , também, a sua decisão relativamente ao caso do es­


tudante da Academia de Medicina, sobre o qual Tchemichov o infor­
mou depois do relatório do Cáucaso .
O caso consistia em que um jovem, reprovado duas vezes num exa­
me , o fazia pela terceira vez e , quando o examinador voltou a repro­
vá-lo , o estudante , doentiamente nervoso , vendo nisso uma injustiça,
pegou no canivete de cima da mesa e , num ataque frenético , atirou-se
ao professor e provocou-lhe alguns ferimentos insignificantes .
- O nome dele ? - perguntou Nicolau.
- Brezowski .
- Polaco?
- De origem polaca e católico - respondeu Tchemichov.
Nicolau carregou o sobrolho .
Tinha causado muitas desgraças aos polacos . Para as justificar, pre­
cisava de ter certeza de que todos os polacos eram uns canalhas . E Ni­
colau considerava-os canalhas e odiava-os , e o seu ódio era à medida
do mal que lhes fizera.
- Espera - disse ele e, fechando os olhos , baixou a cabeça.
Tchemichov sabia, tendo-o ouvido por mais de uma vez da boca do
próprio Nicolau , que , para resolver um problema importante , lhe bas­
tava apenas concentrar-se por alguns instantes e então , por intuição , a
decisão mais certeira formava-se por si - como se alguma voz inte­
rior lhe sugerisse o que era preciso fazer. Agora, Nicolau estava a
pensar na maneira de satisfazer o mais plenamente possível o senti­
mento de raiva para com os polacos que a história desse estudante
avivara nele , e a voz interior sugeriu-lhe a decisão .
Pegou no relatório e escreveu na margem, na sua letra graúda:
«Merece a pena de morte . Graças a Deus , não há pena de morte na
Rússia. E não sou eu quem vai introduzi-la. Levá-lo 1 2 vezes através
de mil homens . Nicolau .» Assinou com a sua rubrica enorme , antina­
tural .
Nicolau sabia que doze mil vergastadas eram não só uma morte
certa e torturante , mas também uma crueldade inútil , porque basta­
vam cinco mil pauladas para matar o mais forte dos homens; porém,
agradava-lhe ser implacavelmente cruel e pensar, ao mesmo tempo ,
que na Rússia não havia pena de morte .
Ao escrever a sua decisão sobre o estudante , entregou-a a Tchemi­
chov.
- Lê - disse .
Hadji-Murat 79

Tchernichov leu e, em sinal do respeito pela sabedoria da decisão ,


inclinou a cabeça.
- E levar todos os estudantes à praça para assistirem ao castigo -
acrescentou Nicolau .
«Faz-lhes bem. Vou exterminar esse espírito revolucionário , erra­
dicá-lo» - pensou .
- Sim, Majestade - disse Tchernichov e, depois de uma pausa,
ajeitou o topete e voltou ao relatório do Cáucaso .
- O que deseja que escreva a Mikhail Semiónovitch?
- Seguir firmemente o meu sistema de destruição das habitações
e dos víveres na Tchetchniá, e incomodá-los com incursões - disse
Nicolau .
- O que manda em relação a Hadji-Murat?
- Mas Vorontsov já escreveu que queria utilizá-lo no Cáucaso .
- Não será arriscado? - disse Tchernichov, evitando os olhos de Ni-
colau. - Receio que Mikhail Semiónovitch seja demasiado confiante .
- E tu o que pensas? - perguntou rispidamente Nicolau , repa­
rando no desejo de Tchernichov de apresentar a uma luz negativa a
decisão de Vorontsov.
- Pensava que seria mais seguro trazê-lo para a Rússia.
- Pensavas - disse Nicolau com ironia. - Mas eu não penso as-
sim e estou de acordo com Vorontsov. Escreve-lhe isso mesmo .
- Sim, Majestade - disse Tchernichov, levantou-se e começou a
despedir-se .
Despediu-se também Dolgorúki que , durante todo o relatório, pro­
nunciara apenas algumas palavras sobre a deslocação das tropas , res­
pondendo às perguntas de Nicolau .
Depois de Tchernichov, foi recebido Bíbikov, governador-geral da
Região do Ocidente , que viera despedir-se antes da partida.
Ao aprovar as medidas tomadas por Bíbikov contra os camponeses
que se amotinavam , recusando a conversão ao cristianismo ortodoxo ,
Nicolau deu ordem de julgar todos os desobedientes em tribunal mi­
litar. Isto significava que seriam submetidos às vergastadas dos sol­
dados . Além disso , mandou meter na tropa como soldado o redactor
de um jornal que publicara a notícia sobre vários milhares de campo­
neses que perderam o seu estatuto de homens livres e passaram a ser
servos da gleba da coroa.
- Faço-o porque acho necessário - disse Nicolau . - E não ad­
mito que alguém o discuta.
80 Lev Tolstói

Bíbikov compreendia toda a crueldade da ordem dada sobre os


uniatas e toda a injustiça de transformação dos únicos camponeses li­
vres , naquele tempo , em servos da gleba da farm1ia real . Mas não se
podia objectar. Discordar de uma decisão de Nicolau significava, pa­
ra ele , perder a posição brilhante que demorara quarenta anos a con­
quistar e de que estava agora a usufruir. Por isso inclinou a sua cabe­
ça de cabelo escuro , a encanecer, em sinal de obediência e prontidão
em cumprir a cruel , louca e desonesta vontade imperial .
Depois de despachar Bíbikov, Nicolau , com a consciência do de­
ver cumprido , espreguiçou-se , olhou para o relógio e foi vestir-se pa­
ra a saída. Depois de pôr a farda com as dragonas , as condecorações
e a fita, entrou na sala de recepção , onde mais de cem homens far­
dados e mulheres de vestidos de gala decotados , colocados nos luga­
res previamente determinados , esperavam a tremer pelo seu apareci­
mento .
Com um olhar sem vida, com o peito inflado, fortemente cingido ,
e a barrig a a arredondar-se por cima e debaixo do cinto , fez a sua en­
trada na sala cheia das pessoas que o esperavam e, sentindo que todos
os olhos estavam postos nele com um servilismo aterrorizado , tomou
um ar ainda mais solene . Cruzando os olhos com pessoas familiares ,
recordando quem era quem, ele parava e dizia algumas palavras ora
em russo , ora em francês e , espetando neles o seu olhar frio e morti­
ço , ouvia o que lhe diziam.
Recebidas as felicitações , Nicolau foi à igreja.
Deus , através dos seus servidores , cumprimentava e louvava Nico­
lau da mesma forma que os leigos , e ele recebia esses louvores e fe­
licitações como coisa que lhe era devida, embora lhe fosse, havia
muito , enfadonha. Tudo isso devia ser assim, porque a prosperidade e
a felicidade de todo o mundo dependiam dele e , embora fatigado com
isso , ele não recusava ao mundo a sua colaboração . Quando , no fim
do ofício , um magnífico e bem penteado diácono pronunciou «mui­
tos anos da vida» e os coralistas repetiram estas palavras com vozes
excelentes , Nicolau olhou para trás e viu , junto à janela, a sua Nelí­
dova dos ombros sumptuosos e decidiu a seu favor a comparação com
a rapariga da noite anterior.
Depois do ofício foi aos aposentos da imperatriz e passou alguns
minutos no seio da família, em brincadeiras com a mulher e os filhos .
Depois , através do Ermitage , passou pelo gabinete de Volkônski , mi­
nistro da corte , e encarregou-o, a propósito , de retirar do seu orça-
Hadji-Murat 81

mento particular uma pensão anual para atribuir à mãe da rapariga da


noite anterior. Dali saiu para o seu passeio habitual .
Nesse dia, o almoço era na Sala de Pompeios; além dos filhos mais
novos , Nikolai e Mikhail , foram convidados o barão voo Lieven , o
conde Rjevússki , Dolgorúki, o embaixador da Prússia e o ajudante­
-de-campo do rei da Prússia.
Enquanto esperavam pela entrada do imperador e da imperatriz , o
embaixador prussiano e o barão voo Lieven encetaram uma conversa
interessante sobre as últimas notícias alarmantes recebidas da Poló­
nia.
- La Pologne et le Caucase, ce sont les deux cauteres de la Rus­
sie - disse Lieven. - Il nous faut 1 00 000 hommes à peu pres dans
chacun de ces deux pays.
O embaixador exprimiu uma surpresa fingida.
- Vous dites, la Pologne? - disse ele .
- Oh, oui, c'etait un coup de maftre de Maetternich de nous en
avoir laissé l'embarras . . 39
.

Neste momento da conversa entrou a imperatriz , com a sua cabeça


tremente e um sorriso imóvel , e , atrás dela, Nicolau .
À mesa, Nicolau contou que Hadji-Murat se entregara e que a guer­
ra do Cáucaso ia acabar rapidamente em consequência das suas or­
dens: vexar os montanheses mediante o corte das florestas e o desen­
volvimento do sistema de fortificações .
O embaixador, trocando olhares de relance com o ajudante-de­
-campo prussiano , com quem ainda nessa manhã tinha falado sobre a
infeliz fraqueza de Nicolau de se considerar um grande estratego , lou­
vou muito este plano que , mais uma vez , comprovava os grandes ta­
lentos estratégicos do imperador.
Depois do almoço , Nicolau foi ver um bailado, em que centenas de
mulheres marcharam vestidas de maillot. Uma delas agradou-lhe e,
chamando o coreógrafo , Nicolau exprimiu-lhe a sua gratidão e man­
dou oferecer-lhe um anel de diamànte .
No dia seguinte , quando Tchemichov foi de novo a despacho , Ni­
colau confirmou a sua ordem dada a Vorontsov para, tendo agora nas
mãos Hadji-Murat, intensificar as acções de constrangimento da
Tchetchniá e apertá-la entre as linhas fronteiriças .
Tchernichov escreveu tudo isso a Vorontsov e um outro correio , es­
falfando os cavalos e esmurrando os cocheiros , galopou até Tiflis .
82 Lev Tolstói

16

Em cumprimento dessa ordem do imperador Nicolau , foi em­


preendida sem demora, em Janeiro de 1 85 2 , urna incursão na
Tchetchniá.
O destacamento da incursão era composto por quatro batalhões de
infantaria, duas centúrias de cossacos e oito peças de artilharia. A co­
luna marchava pelo caminho . De ambos os lados da coluna, em linhas
ininterruptas , descendo e subindo os barrancos, andavam os caçado­
res de botas altas , casacos de pele curtos e gorros , com as espingar­
das ao ombro e os cartuchos nas bandoleiras . Corno sempre quando
se movimentava pelo território inimigo , o destacamento mantinha to­
do o silêncio possível . Apenas de vez em quando os canhões trinco­
lejavam nos solavancos , ou um cavalo de artilharia bufava ou relin­
chava, não compreendendo a ordem de guardar silêncio , ou um chefe
irritado ralhava, em voz rouca e moderada, com os seus subordinados
porque a fila se tinha esticado de mais, ou andava demasiado perto ou
demasiado longe da coluna. Só urna vez o silêncio foi quebrado quan­
do urna cabra, de barriga e traseiro brancos e costas cinzentas , e um
bode igual a ela e com os cornos pequenos , se empinaram e saltaram
de urna pequena mata espinhosa entre a coluna e a fila de caçadores .
Os animais , belos e assustadiças , aos grandes saltos , dobrando as pa­
tas dianteiras , foram contra a coluna e ficaram tão perto que alguns
soldados , gritando e rindo , correram atrás deles , tentando matá-los à
baioneta; as cabras , porém , viraram-se para trás , furaram a fila e , per­
seguidas por alguns cães da companhia e da artilharia, fugiram para
os montes , céleres corno aves .
Ainda era Inverno , mas o sol já subia mais alto , e ao meio-dia,
quando o destacamento , que saíra de manhã cedo , tinha andado cer­
ca de dez verstás , fazia calor e os raios do sol eram tão ofuscantes
que os olhos doíam com o brilho de aço das baionetas e com as chis­
pas que se acendiam de repente , corno pequenos sóis , no cobre dos
canhões .
Para trás ficou um pequeno rio , de corrente rápida e pura; à frente
eram os campos lavrados e os prados com barrancos pouco fundos;
ainda mais adiante , os misteriosos montes negros cobertos de flores­
ta; por trás dos montes negros , as rochas salientes e, no horizonte al­
to , montanhas com cumes de neve , eternamente fascinantes , eterna­
mente mutáveis , com um brilho de diamante .
Hadji-Murat 83

À frente da quinta companhia ia o oficial Butler, bonito , alto , de so­


brecasaca preta, gorro e o sabre ao ombro , recém-transferido da guar­
da imperial; estava cheio de energia e de alegria de viver, mas tam­
bém de um sentimento de perigo mortal , do desejo de actividade e da
consciência de pertencer a um todo enorme , dirigido por uma única
vontade . Nesse dia, Butler participava numa campanha pela segunda
vez e dava-lhe prazer pensar que , de um momento para outro , iam co­
meçar a disparar contra eles e que ele não apenas não dobrava a ca­
beça sob uma bala de canhão e não prestava atenção ao assobio das
balas , mas , como já lhe tinha acontecido , ia levantar a cabeça mais al­
to , olhando com um sorriso os camaradas e os soldados , e falando de
um qualquer assunto alheio àquilo numa voz impassível .
O destacamento desviou-se do caminho bom e meteu pelo outro ,
pouco transitado , que atravessava um restolhal de milho , e já se apro­
ximava da floresta quando - não se via de que lado - uma bala de
canhão voou com um sinistro assobio e bateu no meio do comboio ao
lado do caminho , no campo de milho , revolvendo a terra.
- Começou - disse Butler, com um sorriso alegre , para um ca­
marada que ia a seu lado .
Realmente , a seguir à bala apareceu de trás da floresta um grupo de
tchetchenos a cavalo, com estandartes . No centro do grupo , destacava­
-se um grande estandarte verde e o velho vagomestre da companhia,
muito presbita, comunicou ao míope Butler que era, provavelmente , o
próprio Shamil . O grupo saiu do monte , apareceu na margem do bar­
ranco mais próximo à direita e começou a descer. Um pequeno gene­
ral , de sobrecasaca quente, preta, e um gorro com uma grande borla
branca, montando um esquipador, foi ter com Butler e mandou-lhe que
fosse para a direita, ao encontro da cavalaria que estava a descer o bar­
ranco . Butler apressou-se a levar a sua companhia na direcção indica­
da, mas não tivera ainda tempo de chegar ao barranco quando ouviu
nas suas costas dois tiros de canhão , um atrás do outro . Olhou para trás:
duas nuvens de fumo azulado levantaram-se sobre dois canhões e es­
tenderam-se ao longo do barranco . Os tchetchenos que, pelos vistos ,
não tinham esperado a canhonada, começaram a recuar. A companhia
de Butler abriu o fogo contra os montanheses e todo o vale se cobriu
de fumo da pólvora. Apenas se via como , em cima, os montanheses es­
tavam a recuar rapidamente , disparando contra os cossacos que iam na
sua perseguição . O destacamento foi atrás dos montanheses , e no de­
clive do segundo barranco viram um aúl .
84 Lev Tolstói

Butler e a sua companhia, seguindo os cossacos , correram para o


interior do aúl . Não havia um único morador. Foi dada a ordem aos
soldados para que queimassem os cereais , o feno e as próprias sáklias .
Por todo o aúl se estendia o fumo acre e no meio do fumo formiga­
vam os soldados , tirando das sáklias o que encontravam, mas sobre­
tudo apanhavam e matavam a tiro as galinhas que os montanheses
não haviam levado . Os oficiais sentaram-se mais longe do fumo , to­
maram o pequeno-almoço e beberam. O vagomestre trouxe-lhes al­
guns favos de mel sobre uma tábua. Os tchetchenos não se ouviam.
Depois do meio-dia, foi dada a ordem de recuar. A companhia formou
uma coluna atrás do aúl e Butler ficou na retaguarda. Mal partiram,
apareceram os tchetchenos e, seguindo o destacamento , iam dispa­
rando .
Quando o destacamento saiu para campo aberto , os montanheses
deixaram de o perseguir. Na companhia de Butler não havia um úni­
co ferido , pelo que regressava muito bem-disposto e animado .
Quando o destacamento , depois de passar a vau o mesmo rio que
tinha atravessado de manhã, se estendeu pelos campos de milho e pe­
los prados , os cantores de cada companhia saíram para frente e co­
meçaram a cantar.
Não havia vento , o ar era fresco , puro e tão transparente que as
montanhas nevadas , à distância de centenas de verstás , pareciam mui­
to próximas , e quando os cantores se calavam ouvia-se o bater regu­
lar dos pés e o trincolejar metálico dos canhões , como música do fun­
do em que nascia e acabava uma canção . A canção executada pela
quinta companhia de Butler era da autoria de um junker em glória do
regimento e era cantada como música de dança, tendo como refrão:
«Não há ninguém, ninguém como os nossos bravos caçadores ! »
Butler cavalgava ao lado do major Petrov, seu chefe imediato , com
quem também morava na mesma casa, e sentia-se muito contente por
ter tomado a decisão de abandonar a guarda imperial e se oferecer pa­
ra o Cáucaso . A causa principal da sua transferência da guarda foi ter
perdido todo o seu dinheiro às cartas em Petersburgo , ficando sem um
tostão no bolso . Tinha medo de não ser capaz de se abster do jogo , se
ficasse na guarda imperial , e de já não ter dinheiro para perder. Ago­
ra tudo isso acabara. Começou uma nova vida, muito boa, galharda.
Foram esquecidas as dívidas impagáveis e a falência. Então , o Cáu­
caso , a guerra, os soldados , os oficiais , o major Petrov, bêbedo , bo­
nacheirão e destemido - tudo isso lhe parecia tão maravilhoso que,
Hadji-Murat 85

às vezes , quase não acreditava que não estivesse em Petersburgo , nas


salas infestadas de fumo de tabaco , duplicando paradas e jogando à
banca, odiando o banqueiro e sentindo urna pesada dor de cabeça,
mas que estivesse aqui , nesta terra divina, no meio do bravo exército
caucasiano .
«Não há ninguém, ninguém corno os nossos bravos caçadores ! » -
cantavam os seus soldados . O seu cavalo andava num passo animado ,
ao ritmo dos sons da lnúsica. O Tresorka , cão cinzento e felpudo per­
tencente à companhia, enroscando o rabo , corria à frente dos solda­
dos com um ar preocupado , corno se fosse um chefe . A alma de Bu­
tler transbordava de energia, de liberdade e de alegria. Para ele , a
guerra consistia apenas em que ele se submetia ao perigo , à possibi­
lidade da morte e, com isso , merecia ser condecorado e respeitado pe­
los seus camaradas actuais e pelos seus amigos da Rússia. O outro la­
do da guerra - a morte , os ferimentos dos soldados , dos oficiais , dos
montanheses - nem sequer lhe aflorava à imaginação , por mais es­
tranho que parecesse. Inconscientemente , para manter o seu conceito
poético da guerra, nunca olhava para os mortos e feridos . Também as­
sim fez nesse dia. Havia três mortos e doze feridos . Butler passou ao
lado do cadáver deitado de costas e , pelo canto do olho , reparou na
estranha posição da mão pálida corno a cera e na mancha vermelho­
-escura na cabeça, e não se deteve para ver melhor. Imaginava os
montanheses apenas como djiguites de quem era preciso defender-se .
- É assim mesmo , meu amigo - disse o major num intervalo en­
tre canções . - Não é corno em Petersburgo: olhar à direita, olhar à
esquerda ! Aqui , fizemos o nosso trabalho , então podemos ir para ca­
sa. Machka vai servir-nos o bolo , urna boa sopa de repolho . Bela vi­
da, não é? Rapazes , agora a «Raiou o dia» - e mandou entoar a sua
canção preferida.
O major vivia maritalmente com a filha do auxiliar médico , trata­
da de início por Machka, depois por Mária Drnítrievna. Era urna mu­
lher bonita, loira, cheia de sardas , de trinta anos , sem filhos . Fosse
qual fosse o seu passado , agora era uma fiel amiga do major, cuidan­
do dele corno urna ama-seca, coisa de que o major, muitas vezes bê­
bedo corno um cacho , bem precisava.
Quando chegaram à fortaleza, tudo se passou tal corno o major ti­
nha previsto . Mária Drnítrievna serviu - a ele , a Butler e a mais dois
oficiais convidados - um almoço bom e farto , e o major comeu e be­
beu tanto que , já incapaz de falar, se levantou da mesa e foi dormir.
86 Lev Tolstói

Butler, também cansado mas contente , e tendo abusado um pouco do


tchikhir4º , retirou-se para o seu quarto e , mal se despiu , adormeceu
como uma pedra, sem sonhos nem interrupções , com uma mão meti­
da debaixo da sua bonita cabeça encaracolada.

17

O aúl assolado pela incursão foi o mesmo em que Hadji-Murat pas­


sara a noite antes de se juntar aos russos .
Sado , anfitrião de Hadji-Murat, fugiu com a família para os mon­
tes quando os russos estavam a aproximar-se do aúl . Quando voltou ,
deparou com a sáklia destruída - o telhado ruído , as portas e os pi­
lares queimados , o interior devastado . O seu filho , aquele rapazinho
bonito de olhos brilhantes que tinha olhado com admiração para Had­
ji-Murat, regressou morto , num cavalo coberto com a burka, e foi le­
vado para a mesquita. Uma baioneta atravessara-lhe as costas . A mu­
lher bem-parecida que servira Hadji-Murat durante a sua visita, agora
com a camisa rasgada no peito , abrindo os seios velhos e caídos , com
o cabelo solto , estava parada ao lado do filho , arranhava a cara até
sangrar e uivava sem parar. Sado pegou na picareta e no pau e , com
outros familiares , foi cavar o túmulo para o filho . O velho avô , sen­
tado de costas contra a parede da sáklia destruída, aparava um pauzi­
nho e olhava fixamente em frente . Acabara de voltar do seu colmeal .
Ali , duas medas de feno foram queimadas; foram partidos e queima­
dos os damasqueiros e as ginjeiras plantados e cuidados pelo velho ,
mas o pior era as colmeias com as abelhas queimadas . O uivar das
mulheres ouvia-se em todas as casas e na praça, para onde foram tra­
zidos mais dois corpos . As crianças pequenas choravam juntamente
com as mães . O gado faminto , que não tinha nada para comer, mugia.
As crianças crescidas não brincavam, olhando assustadas para os
adultos .
A fonte estava suja de fezes , pelos vistos propositadamente , pelo
que não se podia tirar água dela. O mesmo haviam feito na mesquita,
e o moádi e os mutalimes4 1 já estavam a limpá-la. Os velhos reuni­
ram-se na praça e , sentados de cócoras , falavam da situação . Do ódio
pelos russos ninguém falava. O sentimento que todos os tchetchenos
experimentavam, desde as crianças aos velhos , era mais forte do que
o ódio . Não era ódio , era a recusa de reconhecer os cães russos como
Hadji-Murat 87

seres humanos e a abominação , o nojo e a perplexidade perante a


crueldade absurda dessas criaturas eram tão grandes que o desejo de
os exterminar, tal como o de exterminar as ratazanas , as aranhas ve­
nenosas e os lobos , era um sentimento tão natural como o instinto de
conservação . Os habitantes do aúl estavam perante a escolha: ficar no
mesmo lugar e reconstruir, com terríveis esforços , tudo o que tinha si­
do criado com um enorme trabalho e fora destruído com muita facili­
dade e sem qualquer sentido e esperar a qualquer momento uma re­
petição da mesma coisa, ou então , contrariando a lei religiosa, o
sentimento de abominação e o desprezo pelos russos , submeterem-se
ao poder deles .
Os velhos rezaram e resolveram por unanimidade mandar mensa­
geiros a Shamil , pedindo-lhe ajuda, e logo a seguir o povo começou
a reconstruir o que tinha sido destruído .

18

No terceiro dia após a incursão , numa manhã já adiantada, Butler


saiu pela porta das traseiras , com a ideia de dar uma volta e respirar
o ar puro antes do chá que costumava tomar na companhia de Petrov.
O sol já se levantara por trás das montanhas e os olhos doíam à vista
das casas de barro brancas do lado direito da rua banhada pelos seus
raios; porém, como sempre , era alegre e tranquilizante olhar para a
esquerda, onde os montes negros cobertos de floresta se erguiam e se
espraiavam para longe, e onde , para lá do desfiladeiro , se via uma ser­
ra opaca de montes nevados que , pelo seu hábito , tentavam disfarçar­
se de nuvens .
Butler olhava para os montes , enchia os pulmões de ar e rejubilava
porque vivia, precisamente ele , e vivia neste mundo maravilhoso .
Agradava-lhe também, de certo modo , ter-se comportado muito bem
na incursão da véspera, durante a ofensiva e , sobretudo , na retirada,
quando as coisas ficaram bastante quentes; estava igualmente satis­
feito ao recordar como , no dia anterior depois do regresso a casa, es­
sa Machka, enfim, Mária Dmítrievna, amante de Petrov, lhes servia o
almoço , muito simples e querida com todos, mas sobretudo com ele ,
ao que lhe parecia. Mária Dmítrievna, com a sua trança grossa, os
seus ombros largos , o seu peito alto e o seu sorriso radiante no rosto
sardento e bondoso, atraía Butler involuntariamente . Mas achava que
88 Lev Tolstói

isso seria feio em relação ao seu camarada bom e ingénuo , por isso
mantinha com Mária Dmítrievna o mais simples e respeitoso trato ,
pelo que estava contente consigo próprio . Nesse momento, reflectia
nisso .
As suas reflexões foram interrorppidas por um célere bater de mui­
tos cascos pelo caminho à frente dele , como se de uma cavalgada de
várias montadas se tratasse . Levantou a cabeça e viu ao fundo da rua
um grupo de cavaleiros que se aproximavam a passo . À cabeça de
duas dezenas de cossacos vinham dois homens: um, de tcherkeska
branca e gorro alto com turbante; outro , um oficial russo , moreno ,
com nariz adunco , de tcherkeska azul e grande abundância de prata
no trajo e nas armas . O cavaleiro de turbante montava um belo cava­
lo palomino de cabeça pequena e olhos bonitos; o oficial montava um
cavalo de Karabakh , alto e aperaltado . Butler, aficionado pelos cava­
los , logo à primeira vista deu um grande valor à força enérgica do
primeiro cavalo e parou para perguntar quem eram aqueles homens .
O oficial dirigiu-se a Butler.
- É casa chefe militar? - perguntou , revelando com a fala incor­
recta e o sotaque a sua origem não russa, e apontou com o azorrague
para a casa de Ivan Matvéevitch .
- É - disse Butler. - Mas quem é este? - perguntou , acercan­
do-se do oficial e indicando-lhe com os olhos o homem de turbante .
- É Hadji-Murat. Veio , viver convidado chefe militar - disse o
oficial .
Butler estava a par de Hadji-Murat e de que se juntara aos russos ,
mas nunca esperava vê-lo ali , naquela pequena fortaleza.
Hadji-Murat olhava para ele amigavelmente .
- Bom-dia, kochkildi - saudou-o Butler, acrescentando o cum­
primento em tártaro que aprendera.
- Saubul - respondeu Hadji-Murat, acenando com a cabeça.
Aproximou-se de Butler e estendeu-lhe a mão , com o azorrague pen­
durado em dois dedos .
- Chefe? - perguntou .
- Não , o chefe está ali , vem chamá-lo - disse Butler, dirigindo-
se ao oficial . Subiu a escada e empurrou a porta.
Mas a porta principal , como lhe chamava Mária Dmítrievna, esta­
va fechada. Butler bateu , mas não recebeu resposta e foi até a porta
traseira. Chamou o seu impedido , mas este não respondeu , e Butler,
depois de ter procurado inutilmente ambos os impedidos , foi à cozi-
Hadji-Murat 89

nha. Mária Dmítrievna, com lenço na cabeça, a cara corada e mangas


arregaçadas nos braços cheios e brancos , estava a cortar a massa es­
tendida, branca como as suas mãos, em pequenos bocados para os
pastéis .
- Onde se meteram os impedidos? - perguntou-lhe Butler.
- Foram embebedar-se - respondeu Mária Dmítrievna. - Para
que os quer?
- Para abrir a porta; aqui , à entrada, está uma chusma de monta-
nheses . Hadji-Murat chegou .
- Inventa cada coisa - disse Mária Dmítrievna, sorrindo..
- Não estou a brincar. É verdade . Estão à entrada.
- Não me diga !
- Para que ia mentir? Vá e veja, ele está à porta.
- Ena - disse Mária Dmítrievna, baixando as mangas e apalpan-
do os ganchos na sua trança basta. - Então , vou acordar Ivan Mat­
véevitch - disse .
- Não , vou eu . Eh, Bondarenko , vai abrir a porta - disse Butler.
- Está bem, pronto - disse Mária Dmítrievna. E voltou ao seu
trabalho .
Ao ser informado de que chegara Hadji-Murat, Ivan Matvéevitch ,
que já tinha ouvido que Hadji-Murat estava em Gróznaia, não se es­
pantou minimamente; soergueu-se na cama, enrolou um cigarro ,
acendeu-o e começou a vestir-se , pigarreando com barulho e resmun­
gando contra os chefes que lhe mandavam aquele diabo . Já vestido ,
exigiu ao impedido que lhe desse o «medicamento» . E o impedido ,
sabendo que o «medicamento» era a vodca, serviu-lhe um copo .
- Não há nada pior do que a mistura - resmungou Ivan Matvée­
vitch, emborcando a vodca e acompanhando-a com pão de centeio . -
Ontem bebemos tchikhir, agora dói-me a cabeça. Bem, estou pronto
- concluiu e foi para a sala de estar, onde Butler já introduzira Had­
ji-Murat e o oficial que vi(;!ra com ele .
O oficial transmitiu a Ivan Matvéevitch a ordem do comandante do
flanco esquerdo para receber Hadji-Murat, deixando-o em comunica­
ção com os montanheses através de mensageiros; mas nunca lhe au­
torizar a saída da fortaleza a não ser escoltado pelos cossacos.
Ivan Matvéevitch leu o papel , olhou com atenção para Hadji-Murat
e voltou a estudar o papel . Depois de passar várias vezes o olhar do
papel para o visitante e vice-versa, fixou-o finalmente em Hadji­
-Murat e disse:
90 Lev Tolstói

- lakchi , bek iakchi42 . Que fique aqui . Diz-lhe que tenho ordens
para não o deixar sair. E as ordens são sagradas . Hospedamo-lo . . . co­
mo achas , Butler? Hospedamo-lo no escritório?
Butler não teve tempo de responder porque Mária Dmítrievna, que
viera da cozinha e estava parada à porta, disse a Ivan Matvéevitch:
- Para quê no escritório? Aloje-o aqui . Damos- lhe a sala dos ku­
nakes mais a despensa. Pelo menos , estará sempre à vista - disse
ela e, ao cruzar os olhos com Hadji-Murat, virou-se dele apressada­
mente .
- Acho que Mária Dmítrievna tem razão - apoiou-a Butler.
- Vai , vai daqui , as mulheres não são para aqui chamadas - dis-
se Ivan Matvéevitch , carregando o sobrolho .
Durante toda essa conversa, Hadji-Murat manteve-se sentado , com
a mão metida por trás do cabo do punhal , com um ligeiro sorriso des­
denhoso . Disse que lhe era indiferente onde ia viver. Precisava ape­
nas - e tinha para isso a autorização do sardar - de manter a co­
municação com os montanheses , pelo que desejava que os deixassem
visitá-lo . Ivan Matvéevitch disse que sim e pediu a Butler que ficas­
se a falar com os convidados , enquanto lhes iam preparar uma refei­
ção e os quartos , e enquanto ele próprio ia ao escritório para redigir
os papéis necessários e dar as respectivas ordens .
A atitude de Hadji-Murat para com os seus novos conhecidos defi­
niu-se de imediato e com muita clareza. Por Ivan Matvéevitch sentiu
desde o princípio repugnância e desprezo , e viria tratá-lo sempre alti­
vamente . Mária Dmítrievna, que cozinhava para ele e lhe servia as re­
feições , agradou-lhe muito . Gostou da sua simplicidade e da sua be­
leza peculiar de mulher proveniente de etnia estranha; além disso , a
simpatia que Mária Dmítrievna sentia por ele transmitia-se-lhe in­
conscientemente . Hadji-Murat evitava olhar e falar com ela, mas os
seus olhos , sem querer, seguiam-lhe todos os movimentos .
No que respeita a Butler e Hadji-Murat, os dois homens ficaram
amigos desde o primeiro encontro e o montanhês falava-lhe com mui­
to ânimo e durante muito tempo , fazendo-lhe perguntas sobre a vida
dele e contando-lhe a sua própria, pondo-o também ao corrente das
notícias sobre a situação da sua farm1ia, trazidas pelos mensageiros , e
chegando a pedir-lhe conselhos .
As notícias que lhe traziam os mensageiros não eram boas . Duran­
te os primeiros quatro dias que Hadji-Murat passou na fortaleza, apa­
receram duas vezes e em ambas as notícias eram péssimas .
Hadji-Murat 91

19

A farm1ia de Hadji-Murat, pouco tempo depois de ele s e ter junta­


do aos russos , foi levada para o aúl Vedeno e mantida lá sob vigilân­
cia, à espera da decisão de Shamil . As mulheres - a velha Patimat e
duas esposas de Hadji-Murat - e cinco filhos pequenos viviam, bem
guardados , na sáklia de lbraguim Rachid , comandante da centúria;
Iussuf, o filho mais velho de Hadji-Murat, de dezoito anos , foi meti­
do no calabouço , ou seja, num buraco fundo , de mais de uma braça,
juntamente com quatro criminosos, todos à espera do seu destino .
A decisão não aparecia porque Shamil andava por fora, numa cam­
panha contra os russos .
No dia 6 de Janeiro de 1 85 2 , Shamil estava de volta a cas a em Ve­
deno , depois de uma batalha contra os russos , em que , na opinião dos
russos , fora derrotado e posto em fuga, mas , na opinião de Shamil e
de todos os seus murides , conseguira a vitória e expulsara os russos .
Nessa batalha acontecera uma coisa rara: ele próprio deu um tiro de
espingarda e , tirando o sabre da bainha, quis mandar o seu cavalo
contra os russos , mas os seus murides detiveram-no . Dois deles foram
mortos logo a seguir, ao lado de Shamil .
Era meio-dia quando Shamil chegou ao seu local de residência, ro­
deado pelos murides que galopavam à sua volta, davam fogo de es­
pingarda e pistola e cantavam sem parar «La-illakha il alla» .
Todo o povo do grande aúl de Vedeno estava na rua e nos telhados ,
recebendo o seu chefe e , em sinal da festa, disparando também as e s ­
pingardas e as pistolas . Shamil montava um cavalo árabe branco que ,
sentindo-se perto de casa, se excitava. O jaez do cavalo era muito
simples , sem adornos de ouro e prata: uma correia de cabeçada ver­
melha, trabalhada com esmero , com um sulco no meio , os estribos
metálicos em forma de copos e um xairel vermelho debaixo da sela.
O imã vestia uma peliça forrada de pano castanho , com o pêlo preto
junto ao pescoço e nas mangas , apertada na cintura fina e comprida
pelo cinto preto onde repousava o punhal . Levava na cabeça um gor­
ro alto de copa plana e borla preta, envolvida num turbante branco ,
com uma ponta caída para o pescoço . Nos pés calçava tchuviakes ver­
des e nas barrigas das pernas tinha nogovitsas pretas orladas de um
cordão simples .
Em geral , o imã não levava nada brilhante , nem de ouro , nem de
prata, e a sua figura alta, direita e forte , trajada sem adornos , rodeada
92 Lev Tolstói

pelos murides com trajos e armas enfeitados de ouro e prata, produ­


zia aquela impressão majestosa que ele procurava e sabia produzir no
povo . A sua cara pálida, orlada de uma barba ruiva, aparada, com os
olhos pequenos , sempre piscos , parecia de pedra, absolutamente imó­
vel . Quando estava a atravessar o aúl , sentia um milhar de olhos cra­
vados nele, mas ele próprio não olhava para ninguém. As mulheres de
Hadji-Murat, juntamente com todos os habitantes da sáklia, também
saíram para a galeria, para verem a entrada do imã. Apenas a velha
Patimat, mãe de Hadji-Murat, não saiu , deixando-se ficar sentada no
chão da sáklia, com o cabelo encanecido e desgrenhado , envolvendo
com os braços compridos os joelhos magros , piscando os olhos ne­
gros como breu enquanto olhava para o fogo a extinguir-se na larei­
ra. Tal como o filho , sempre odiara Shamil , mas agora o ódio era ain­
da maior, por isso não o queria ver.
Também o filho de Hadji-Murat não viu a entrada solene de Sha­
mil . Apenas ouviu, do seu buraco escuro e fétido , os tiros e o canto ,
e sofreu como sofrem apenas as pessoas jovens e cheias de vida que
são privadas da liberdade . Metido no buraco fétido e vendo sempre os
mesmos desgraçados , sujos e extenuados , ali enfiados com ele , ho­
mens enraivecidos , que na sua maioria se odiavam uns aos outros , in­
vejava agora loucamente aqueles que , deliciando-se com o ar, a luz e
a liberdade , galopavam nos seus bravos cavalos à volta do seu chefe ,
davam tiros e cantavam em coro: «La-illakha il alia» .
Depois de atravessar o aúl , Shamil entrou num grande quintal , con­
tíguo ao pátio onde se encontrava o seu serralho . Dois lezguines ar­
mados receberam Shamil à porta do quintal , que estava cheio de gen­
te vinda dos lugares mais distantes para apresentar os seus problemas
ou para fazer pedidos; também ali se encontravam os que , por ordem
de Shamil , iriam ser julgados. Quando Shamil fez a sua entrada, toda
a gente no quintal se levantou e saudou respeitosamente o imã, le­
vando as mãos ao peito . Alguns ajoelharam-se e ficaram assim en­
quanto Shamil atravessava o quintal desde porta da rua até à porta in­
terior. Embora Shamil reconhecesse , no meio da multidão , bastantes
pessoas que detestava e muitos solicitantes enfadonhos que lhe iam
pedir ajuda, passou por eles com a mesma cara imutavelmente pétrea
e , ao entrar no pátio , apeou-se junto à galeria da sua casa, ao lado do
portão esquerdo . Depois da tensão da campanha, nem tanto física
quanto moral - porque Shamil , apesar da proclamação de vitória, sa­
bia que era um malogro , que muitos aúles tchetchenos tinham sido
Hadji-Murat 93

queimados e arrasados , que os tchetchenos , povo incerto e leviano ,


estavam hesitantes , e que alguns deles , mais próximos dos russos , já
estavam prontos a passar para o lado deles - , Shamil , perante uma
situação tão grave , deveria tomar medidas; mas nesse momento não
lhe apetecia pensar em nada. Só queria uma coisa: o descanso e o en­
canto do carinho matrimonial da sua mais amada mulher, Arninet, a
dos olhos negros e dos pés céleres .
Porém, não só lhe era impossível pensar em ver Arninet que estava
tão perto , atrás da cerca que , no pátio , separava a parte masculina dos
aposentos das mulheres (Shamil tinha certeza de que , naquele mesmo
momento em que se apeava, Aminet e as outras mulheres o espreita­
vam pelas frinchas da cerca) , não só era impossível , portanto , ir ter
com ela como sequer estender-se simplesmente nos colchões e des­
cansar. Era necessário , antes de mais, cumprir o namázi43 do meio­
-dia e, francamente, não se sentia com disposição para isso; contudo ,
não cumprir a oração era impensável na sua situação de líder religio­
so do povo, além de que, também para ele próprio , o namázi era tão
necessário como o alimento de cada dia. Então , fez uma ablução e re­
zou . Quando acabou , chamou as pessoas que estavam à espera.
O primeiro a entrar foi o seu sogro e mestre , um ancião alto , enca­
necido , bem-apessoado , com uma barba branca de neve e umas faces
vermelhas , de nome Djemal-Edin; disse uma oração e começou por
indagar Sharnil sobre os pormenores da campanha, passando depois a
contar o que tinha acontecido nos montes durante a sua ausência.
No meio de todo o género de acontecimentos - vinganças de san­
gue , roubos de gado , acusações de não cumprimento das regras do ta­
riqat: não fumar, não beber vinho - , Djemal-Edin informou-o de que
Hadji-Murat mandara os seus homens para tentar resgatar a família e
levá-la para junto dos russos , mas que isso fora descoberto e a famí­
lia estava agora em Vedeno , bem vigiada, à espera da decisão do imã.
Na sala dos kunakes , a contígua, estavam reunidos os velhos para dis­
cutirem todos esses assuntos e Djemal-Edin aconselhou Sharnil no
sentido de despachar tudo com eles nesse mesmo dia, uma vez que o
esperavam havia já três dias .
Depois do almoço que lhe trouxe Zaidet, morena, de nariz afiado e
cara desagradável - também sua esposa, não amada mas a mais ve­
lha - , Sharnil foi para a sala dos kunakes .
Seis homens do seu conselho , anciãos de barbas brancas , cinzentas
e ruivas , com turbantes e sem turbantes , com gorros altos e bechme-
94 Lev Tolstói

tes e tcherkeskas novos , cingidos por cintos com punhais , levanta­


ram-se e foram ao seu encontro . Shamil era uma cabeça mais alta do
que qualquer um deles . Todos os velhos , tal como ele próprio , ergue­
ram as mãos com palmas para cima e , com os olhos fechados , disse­
ram uma oração , depois passaram as mãos pelas caras , descendo-as
pelas barbas e juntando-as no fim. Depois todos se sentaram, com
Shamil no centro , sobre a almofada mais alta, e começou a discussão
de todos os assuntos .
Deliberavam-se as sentenças sobre os casos das pessoas acusadas
de crimes com base da chária: dois homens foram condenados , por
roubo , ao corte de uma mão; um homem, por assassínio, à decapita­
ção; três homens foram indultados . Passaram seguidamente ao pro­
blema principal: medidas contra a passagem dos tchetchenos para o
lado dos russos . Para impedir essas passagens , Djemal-Edin redigiu a
seguinte proclamação:
«Desejo-vos a paz eterna com Deus todo-poderoso . Oiço dizer que
os russos vos aliciam e vos chamam à sua obediência. Não acrediteis
neles e não vos subjugueis , mas resisti . Se não fordes recompensados
por isso nesta vida, tereis uma recompensa na outra vida. Lembrai­
-vos do que aconteceu antes , quando nos estavam a tirar as armas . Se
Deus não vos desse juízo naquele ano de 1 840 , seríeis agora soldados
e andaríeis com baionetas em vez de punhais , e as vossas mulheres
andariam sem calças e seriam profanadas . Julgai o futuro pelo passa­
do . É melhor morrer na inimizade com os russos do que viver com os
infiéis . Resisti e eu irei ter convosco , levando nas mãos o Corão e o
sabre , e conduzir-vos-ei na guerra contra os russos . Mas agora orde­
no com rigor que não vos subjugueis aos russos , não só em intenção
mas nem sequer em pensamento .»
Shamil aprovou esta proclamação , assinou-a e decidiu divulgá-la.
Depois destes assuntos, foi discutido o caso de Hadji-Murat. Era
muito importante para Shamil . Embora não quisesse aceitá-lo , sabia
que , se tivesse ao seu lado Hadji-Murat com a sua destreza, coragem
e ousadia, não teria acontecido o que acabara de acontecer na
Tchetchniá. Seria bom fazer as pazes com ele e voltar a aproveitar os
seus serviços; mas , se isso fosse impossível , não se podia admitir que
ele ajudasse os russos . Por isso , em qualquer caso , era necessário
atraí-lo e , quando aparecesse , matá-lo . Havia duas maneiras de o fa­
zer: ou mandar a Tiflis um homem que o matasse lá, ou obrigá-lo a
vir e acabar com ele aqui . A única coisa de que poderia servir-se pa-
Hadji-Murat 95

ra isso era a farm1ia de Hadji-Murat, em primeiro lugar o seu filho , de


quem ele gostava muito - Shamil sabia-o muito bem . Portanto , era
preciso agir utilizando o filho .
Depois de o conselho ter discutido o assunto , Shamil fechou os
olhos e calou-se .
Os conselheiros sabiam o que isso significava: estava a ouvir a voz
do profeta a indicar-lhe o que devia ser feito . Passados cinco minutos
de silêncio solene , Shamil abriu os olhos , depois apertou-os ainda
mais e disse:
- Trazei-me cá o filho de Hadji-Murat.
- Já está ali - respondeu Djemal-Edin .
Efectivamente , o filho de Hadji-Murat, magro , pálido , esfarrapado
e malcheiroso , mas ainda belo de corpo e de cara, com os olhos ne­
gros como breu , iguais aos olhos da sua avó Patimat, já estava à por­
ta do quintal , esperando que o chamassem.
Iussuf não partilhava dos sentimentos que o seu pai alimentava por
Shamil . Não sabia tudo o que acontecera no passado , ou talvez sou­
besse mas , como não o tinha vivido , não compreendia por que razão
o seu pai era tão persistente na hostilidade para com Shamil . O rapaz,
que desejava apenas continuar a ter aquela vida fácil e festiva que , en­
quanto filho de naíb , levara em Khunzakh , achava aquela hostilidade
absolutamente inútil . Em oposição ao pai , admirava muito Shamil e
alimentava por ele um sentimento de veneração fascinada, um senti­
mento que era muito divulgado nos montes . Assim, entrou na sala dos
kunakes com um sentimento de devoção apaixonada ao imã e, ao pa­
rar à porta, recebeu o olhar penetrante de Shamil . Demorou um pou­
co parado , depois aproximou-se de Shamil e beijou a sua mão gran­
de , branca, com dedos compridos .
- És filho de Hadji-Murat?
- Sou , imã.
- Sabes o que ele fez?
- Sei , imã, e lamento-o .
- Sabes escrever?
- Preparava-me para ser moádi .
- Então , escreve ao teu pai que , se ele voltar para mim antes do
Bairam44 , perdoo-lhe e tudo vai continuar como antes . Se não , se ele
ficar com os russos , então - Shamil carregou o sobrolho severa­
mente - , mando a tua avó e a tua mãe como escravas para os aúles ,
e a ti corto-te a cabeça.
96 Lev Tolstói

Nenhum músculo tremeu na cara de Iussuf. Inclinou a cabeça em


sinal de que compreendia as palavras de Shamil .
- Escreve assim mesmo e entrega a carta ao meu emissário .
Shamil calou-se e olhou demoradamente para Iussuf.
- Escreve que tenho pena de ti e não te mato , mas vazo-te os
olhos , como faço a todos os traidores . Vai .
Na presença de Shamil , Iussuf parecia calmo , mas quando o leva­
ram da sala dos kunakes , atirou-se ao homem que o escoltava e , ar­
rancando-lhe o punhal da bainha, tentou matar-se , mas foi manietado
e levado outra vez para o buraco .

* * *

Nessa noite , quando acabou a oração nocturna e escureceu , Shamil


vestiu a peliça branca, franqueou a cerca para a parte do pátio onde
viviam as suas mulheres e foi ao quarto de Aminet. Aminet não esta­
va lá, mas nos aposentos das mulheres mais velhas . Então , Shamil ,
tentando passar despercebido , pôs-se por trás da porta e esperou . Só
que Aminet estava zangada com Shamil porque este oferecera um te­
cido de seda a Zaidet e não a ela. Aminet viu-o entrar no seu quarto ,
procurando-a, e não foi para lá propositadamente . Ficou muito tempo
parada junto à porta do quarto de Zaidet e , rindo baixinho , olhava pa­
ra a figura branca que ora entrava, ora saía do seu quarto . Depois de
ter esperado inutilmente , Shamil voltou para o quarto dele já na hora
da oração da meia-noite .

20

Hadji-Murat já vivia em casa de Ivan Matvéevitch, na fortaleza, ha­


via uma semana. Apesar de Mária Dmítrievna se arrenegar muito com
o felpudo Khanefi (Hadji-Murat trouxera consigo apenas dois homens ,
Khanefi e Eldar) e de uma vez o ter expulsado aos empurrões da cozi­
nha porque Khanefi por pouco não a matara com a faca, ela, ao que pa­
recia, alimentava por Hadji-Murat um sentimento de grande respeito e
simpatia. Já não lhe servia os almoços , tendo entregado este serviço a
Eldar, mas aproveitava qualquer ocasião para o ver e lhe agradar. Tam­
bém manifestava o mais vivo interesse pelas conversações sobre a fa­
rm1ia de Hadji-Murat, sabia quantas mulheres e quantos filhos ele ti-
Hadji-Murat 97

nha e as suas idades . De cada vez que chegava um mensageiro , fazia


perguntas a quem podia sobre os resultados das negociações .
Quanto a Butler, durante essa semana tomou-se um verdadeiro
amigo de Hadji-Murat. Umas vezes era Hadji-Murat quem ia ao seu
quarto para falar, outras vezes era Butler quem o visitava. Tanto con­
versavam com ajuda do intérprete como o faziam pelos seus próprios
meios , recorrendo aos gestos e, sobretudo , aos sorrisos . Hadji-Murat,
pelos vistos , afeiçoara-se a Butler, o que se via pela atitude de Eldar
para com este . Quando Butler entrava no quarto de Hadji-Murat, El­
dar recebia-o mostrando alegremente os seus dentes brilhantes , apres­
sava-se a pôr-lhe almofadas para se sentar e , quando Butler trazia o
sabre , tirava-lho e arrumava-lho .
Butler também convivia bem com o felpudo Khanefi , irmanado
com Hadji-Murat. Khanefi conhecia muitas canções dos montanheses
e cantava-as bem. Hadji-Murat, para agradar a Butler, chamava Kha­
nefi e mandava-o cantar, escolhendo as canções que achava boas .
Khanefi era contratenor e cantava com uma clareza e uma expressi­
vidade invulgares . Uma das canções , a preferida de Hadji-Murat, im­
pressionou Butler pela sua melodia solene e triste . Butler pediu que o
intérprete lhe traduzisse o conteúdo e apontou-a.
A canção era sobre a vingança de sangue - ou seja, aquilo que
existia entre Khanefi e Hadji-Murat.
A canção era assim:
«A terra na minha campa fica seca, e esqueces-me , ó minha mãe .
As ervas cobrem o cemitério e abafam a tua angústia, ó meu velho
pai . As lágrimas secam nos olhos da minha irmã e a amargura aban­
dona o seu coração .
«Mas não me esqueces tu , meu irmão mais velho , enquanto não
vingares a minha morte . Também tu , meu segundo irmão , não me es­
queces , até que te deites ao meu lado .
«És quente, ó bala, e levas a morte , mas não foste tu a minha es­
crava mais fiel? Terra negra, vais cobrir-me o corpo , mas não era o
meu cavalo que te pisava? É s fria, ó morte , mas não fui eu o teu se­
nhor? A terra toma o meu corpo, o céu recebe a minha alma.»
Hadji-Murat ouvia sempre esta canção com os olhos fechados e,
quando ela terminava numa nota arrastada, a esmorecer, dizia em russo:
- Bom canção , sábio canção .
A poesia da vida montanhesa, tão peculiar e cheia de energia, co­
meçou a envolver ainda mais Butler desde que Hadji-Murat e os seus
98 Lev Tolstói

murides chegaram e se tomaram amigos dele . Arranjou para si um


bechmet, uma tcherkeska e umas nogovitsas . Sentia-se também um
montanhês e parecia-lhe que tinha a mesma vida que eles .
No dia da partida de Hadji-Murat, Ivan Matvéevitch convidou
vários oficiais para uma pequena festa de despedida . Os oficiais es­
tavam sentados à mesa onde Mária Dmítrievna servia chá , ou a ou­
tra mesa, com vodca, tchikhir e petiscos , quando Hadji-Murat, ves­
tido para a viagem , entrou na sala , coxeando , num passo rápido e
suave .
Todos se levantaram e , um a um , lhe apertaram a mão . Ivan Mat­
véevitch convidou-o para se sentar no divã, mas Hadji-Murat agra­
deceu e sentou-se numa cadeira junto à janela. O silêncio que se ins­
talou no momento da sua entrada parecia não o embaraçar
minimamente . Passou um olhar atento por todas as caras e parou-o ,
com indiferença, na mesa com o samovar e os petiscos . O oficial
Petrokóvski , homem desembaraçado , que estava a ver Hadji-Murat
pela primeira vez , perguntou-lhe através do intérprete se gostara de
Tiflis .
- Aia - respondeu Hadji-Murat.
- Diz que sim - traduziu o intérprete .
- Então , de que gostou?
Hadji-Murat respondeu .
- Gostou sobretudo do teatro .
- E gostou do baile em casa do comandante-em-chefe?
Hadji-Murat carregou o sobrolho .
- Cada povo tem os seus costumes . Entre nós , as mulheres não se
vestem assim - disse , lançando um olhar a Mária Dnútrievna.
- E do que não gostou?
- Temos um provérbio - disse Hadji-Murat ao intérprete - : um
cão serviu carne a um burro , e o burro serviu feno ao cão , e ambos fi­
caram com fome . - Sorriu . - Para cada povo , o melhor é o seu cos­
tume próprio .
A conversa não foi mais longe . Os oficiais começaram a tomar chá,
a comer. Hadji-Murat pegou no copo de chá que lhe serviram e pô-lo
à sua frente .
- Então? Natas? Pão? - disse Mária Dnútrievna, servindo-lhos . .
Hadji-Murat inclinou a cabeça.
- Bem, adeus ! - disse-lhe Butler, tocando-lhe o joelho . - Quan­
do nos voltamos a encontrar?
Hadji-Murat 99

- Adeus , adeus - respondeu Hadji-Murat em russo e sorriu . -


Kunak bulm45 . Tua é firme kunak. Tempo toca a andar - disse ele,
sacudindo a cabeça naquela direcção que deveria tomar.
À entrada da sala apareceu Eldar, com qualquer coisa grande e
branca sobre o ombro e um sabre na mão . Hadji-Murat chamou-o
com um gesto e Eldar aproximou-se dele no seu passo largo , esten­
dendo-lhe a burka branca e o sabre . Hadji-Murat levantou-se , pegou
na burka e, lançando-a sobre o braço , estendeu-a a Mária Dmítrievna,
dizendo qualquer coisa ao intérprete . O intérprete traduziu:
- Gabaste-lhe a burka, fica com ela.
- Para quê? - disse Mária Dmítrievna, corando .
- Tem de ser. Adat46 assim - disse Hadji-Murat.
- Então , obrigada - disse Mária Dmítrievna, pegando na burka.
- Que Deus o ajude a salvar o filho . - Ulan47 iakchi - acrescen-
tou . - Que ele salve a fann1ia é o meu desejo, diga-lhe .
Hadji-Murat olhou para Mária Dmítrievna e acenou a cabeça em
sinal de aprovação . Depois tomou das mãos de Eldar o sabre e esten­
deu-o a Ivan Matvéevitch . Este pegou no sabre e disse ao intérprete:
- Diz-lhe que leve o meu cavalo castrado pardo , não tenho mais
nada para lhe oferecer.
Hadji-Murat abanou a mão à frente da sua cara, querendo dizer de
que não precisava de nada e que não o levava, depois apontou para os
montes e para o seu coração , e dirigiu-se para a saída. Toda a gente o
seguiu. Os oficiais que ficaram na sala desembainharam o sabre ofe­
recido e, depois de examinarem a lâmina, chegaram à conclusão de
que era uma verdadeira gurda48 .
Butler saiu juntamente com Hadji-Murat. Nesse momento aconte­
ceu uma coisa inesperada que podia custar a vida a Hadji-Murat se
não fossem a sua esperteza, firmeza e habilidade .
Os moradores do aúl kumique Tach-Kitchu , que tinham grande
respeito por Hadji-Murat e iam muitas vezes à fortaleza apenas para
verem o famoso naíb , três dias antes da sua partida mandaram-lhe os
seus mensageiros , convidando-o para a sua mesquita na sexta-feira.
Porém, os príncipes kumiques que viviam em Tach-Kitchu odiavam
Hadji-Murat e tinham em relação a ele uma vingança de sangue por
cumprir; assim, quando souberam desse convite , anunciaram ao povo
que não iam deixá-lo entrar na mesquita. O povo revoltou-se , houve
briga entre o povo e os apoiantes dos príncipes . As autoridades russas
reprimiram a revolta dos montanheses e mandaram a Hadji-Murat um
100 Lev Tolstói

mensageiro com o recado de que não deveria ir à mesquita. Hadji­


-Murat não foi , e todos pensavam que tudo ficava resolvido .
Contudo , precisamente no momento da partida de Hadji-Murat,
quando ele saiu da casa e os cavalos estavam à porta, apareceu o Cão
Arslan, príncipe kumique, que Butler e Ivan Matvéevitch conheciam
bem.
Ao ver Hadji-Murat, sacou da pistola e apontou-lha. Mas não teve
tempo de disparar porque Hadji-Murat, apesar da sua perna coxa, pre­
cipitou-se, rápido como um gato , para o Cão Arslan . Este deu um ti­
ro mas falhou . Hadji-Murat acercou-se dele , agarrou-lhe com uma
mão a brida do cavalo , tirou com a outra o punhal e gritou qualquer
coisa em tártaro .
Butler e Eldar chegaram ao mesmo tempo ao pé dos inimigos e
manietaram-nos . Ao ouvir o tiro , Ivan Matvéevitch também saiu da
casa.
- Irra, Arslan , porque fizeste esta porcaria em minha casa? - dis­
se quando soube o que acontecera. - Está mal, meu amigo . Campo
aberto , liberdade a dobrar, mas por que te lembraste de armar uma
carnificina em minha casa?
O Cão Arslan , homenzinho pequeno de bigode negro , pálido e to­
do a tremer, apeou-se do cavalo , olhou com raiva para Hadji-Murat e
foi para dentro com Ivan Matvéevitch . Hadji-Murat voltou para jun­
to dos cavalos , a resfolegar e a sorrir.
- Por que queria ele matá-lo? - perguntou Butler ao intérprete .
- Ele diz que é uma lei - traduziu o intérprete as palavras de
Hadji-Murat. - Arslan tem de se vingar dele pelo sangue . Por isso
quis matá-lo .
- E se o apanhar pelo caminho? - perguntou Butler.
Hadji-Murat sorriu .
- Se matar, é vontade de Alá. Bom, adeus - disse outra vez em
russo e , agarrando-se à crina do cavalo , passou os olhos por toda a
gente que se estava a despedir dele e dirigiu um carinhoso olhar a Má­
ria Dmítrievna.
- Adeus , mãezinha - disse-lhe . - Obrigado .
- Que Deus o ajude , que o ajude a salvar a famfüa - repetiu Má-
ria Dmítrievna.
Hadji-Murat não percebeu as palavras , mas captou a preocupação
que a mulher tinha por ele e acenou-lhe com a cabeça.
- Vê lá, não esqueças o teu kunak - disse Butler.
Hadji-Murat 101

- Diz-lhe que sou um fiel amigo dele . Nunca o esquecerei - res­


pondeu Hadji-Murat através do intérprete . E, apesar da sua perna tor­
ta, mal tocou no estribo já o seu corpo se catapultava, rápida e facil­
mente , para cima da sela alta; com gestos mecanizados pelo hábito ,
apalpou a pistola, ajustou o sabre e , naquele jeito orgulhoso , único e
especial , com que um montanhês monta o cavalo , foi afastando-se da
casa de Ivan Matvéevitch . Khanefi e Eldar também montaram nos ca­
valos e, despedindo-se amigavelmente dos donos da casa e dos ofi­
ciais, seguiram a trote o seu murchid .
Como sempre acontece , começaram a fazer comentários sobre o
homem que acabara de partir.
- Que valente , hã !
- Atirou-se ao Cão Arslan como um lobo, até a cara se lhe mudou .
- Vai aldrabar-nos, de certeza que é um grande malandro - dis-
se Petrokóvski .
- Oxalá que haja entre os russos mais malandros como este - in­
trometeu-se , de repente , a desagradada Mária Dmítrievna. - Viveu
cá connosco uma semana e não nos fez mal nenhum, só bem . Educa­
do , inteligente , justo .
- Como é que ficou a saber tudo isso?
- Soube , e pronto .
- Ficaste pelo beicinho , foi? - disse Ivan Matvéevitch à entrada.
- Foi , com certeza.
- Foi , e depois? O que é que isso lhe interessa? Só que não está
bem criticarem uma pessoa boa. É tártaro , mas é bom .
- É verdade , Mária Drnítrievna - disse Butler. - Defendeu-o , e
fez bem.

21

A vida dos habitantes das fortalezas avançadas da linha tchetchena


decorria como dantes . Houve mais alarmes e , de cada vez, saíram das
fortalezas as companhias de soldados , os cossacos e os milicianos ,
que bem galoparam mas não conseguiram apanhar os montanheses:
fugiam sempre e , numa ocasião , em Vozdvijênskaia, chegaram a rou­
bar do bebedouro oito cavalos dos cossacos e a matar um homem.
Desde a última incursão , quando foi arrasado o aúl , não houve outras .
Uma expedição importante à Grande Tchetchniá só era esperada de-
1 02 Lev Tolstói

pois e em consequência da nomeação do novo comandante do flanco


esquerdo, o príncipe Bariátinski .
O príncipe Bariátinski , amigo do príncipe herdeiro e antigo co­
mandante do Regimento da Kabárdia, sendo agora comandante de to­
do o flanco esquerdo , ao chegar a Gróznaia formou de imediato um
destacamento para continuar a cumprir as ordens do imperador, sobre
as quais Tchemichov escrevera a Vorontsov. O destacamento de
Vozdvijênskaia saiu na direcção do Regimento de Kura, para ocupar
uma posição. Aí, as tropas estavam a cortar a floresta. O jovem Vo­
rontsov vivia numa magnífica tenda de feltro e Mária Vassílievna, sua
mulher, visitava muitas vezes o acampamento e ficava lá a dormir. As
relações dela com o príncipe Bariátinski não eram segredo para nin­
guém e os simples oficiais e soldados , falando dela, injuriavam-na
grosseiramente porque , graças à sua presença no acampamento ,
mandavam-nos de noite para os postos de vigilância avançados . Os
montanheses costumavam trazer os canhões e disparar contra o acam­
pamento . Na maioria das vezes , as suas balas não acertavam, por is­
so no dia-a-dia não eram tomadas quaisquer medidas; porém, para
que os montanheses não pudessem avançar com os canhões e assus­
tar Mária Vassílievna, mandavam-se os soldados para os postos de vi­
gilância. Ora, ir lá todas as noites para sossego da senhora era insul­
tuoso e abominável , pelo que os soldados e os oficiais não
pertencentes à alta sociedade carregavam Mária Vassílievna de pragas
obscenas .
Butler, que estava de licença, também foi de visita a este acampa­
mento com a intenção de se encontrar com os seus colegas da Escola
Militar, os camaradas do Regimento de Kura, os ajudantes-de-campo
e as ordenanças dos chefes . Desde o início , foi tudo muito divertido .
Alojou-se na tenda de Poltorátski e encontrou muitos conhecidos que
o receberam com grande prazer. Foi ver também Vorontsov, que co­
nhecia um pouco porque , em tempos , tinham servido no mesmo regi­
mento . Vorontsov recebeu-o com muito carinho , apresentou-o ao
príncipe Bariátinski e convidou-o para o almoço de despedida que fa­
zia em honra do general Kozlóvski , ex-comandante do flanco esquer­
do , substituído por Bariátinski .
O almoço era magnífico . Foram trazidas e montadas lado a lado
seis tendas . A todo o comprimento das tendas foi armada uma mesa
com baixelas e garrafas . Tudo aquilo lembrava a vida da guarda im­
perial em Petersburgo . À s duas horas sentaram-se à mesa. A meio es-
Hadji-Murat 103

tavam: de um lado Kozlóvski, do outro Bariátinski; à direita de Koz­


lóvski o príncipe, à esquerda a princesa Vorontsov. Ao longo de toda
a mesa, de ambos os lados , sentavam-se os oficiais dos regimentos de
Kabárdia e de Kura. Butler ficou ao lado de Poltorátski e ambos taga­
relavam alegremente e bebiam com os seus vizinhos oficiais . Quando
chegou a vez do assado , e os impedidos começaram a servir champa­
nhe , Poltorátski disse a Butler com um medo e uma pena sinceros:
- O nosso «pronto» vai-se lixar bem.
- Porquê?
- Porque tem de fazer um discurso , mas ele , nesse particular, é
uma miséria.
- É verdade , não é a mesma coisa que tomar de assalto uma bar­
ricada. Ainda por cima, está aqui uma senhora e esses senhores da
corte . Francamente , mete pena olhar para ele - diziam os oficiais .
Chegou o momento solene. Bariátinski levantou-se e , com o copo
na mão , dirigiu-se a Kozlóvski com um breve discurso . Quando aca­
bou , Kozlóvski levantou-se e começou numa voz bastante firme:
- Cumprindo a vontade de Sua Majestade , senhores oficiais , vou-
-me embora, despeço-me de vós - disse ele . - Mas considerem-me ,
pronto , como se continuasse convosco . . . Conhecem, meus senhores ,
pronto , uma verdade: o soldado solitário não faz guerra. Pronto , de­
vo-vos tudo com que fui condecorado , pronto , no serviço , tudo com
que Sua Majestade o imperador me honrou , pronto , generosamente ,
toda a minha situação e o meu , pronto , bom nome , tudo , tudo defini­
tivamente, pronto . . . - aqui , a voz tremeu-lhe - devo só a vós , meus
queridos amigos ! - E a sua cara enrugada enrugou-se ainda mais .
Soluçou e as lágrimas banharam-lhe os olhos. - Exprimo-vos do
fundo do , pronto, coração a minha gratidão cordial e sincera . . .
Kozlóvski não conseguiu falar mais e começou a abraçar os ofi­
ciais que iam ao pé dele . A princesa tapou o rosto com o lenço . O
príncipe Semion Mikháilovitch entortava a boca e pestanejava. Mui­
tos oficiais também se comoveram até às lágrimas . Butler, que quase
não conhecia Kozlóvski , também não conteve as lágrimas . Adorava
tudo aquilo . Depois começaram os brindes : a Bariátinski , a Voront­
sov, aos oficiais, aos soldados - e os convidados saíram da mesa em­
briagados tanto pelo vinho emborcado como pelo entusiasmo militar,
para o qual tinham grande inclinação .
O tempo estava divino , calmo , com muito sol , com um ar fresco e
vivificante . Por todo o lado crepitavam as fogueiras , ouviam-se can-
1 04 Lev Tolstói

ções . Parecia que toda a gente estava a festejar. Butler, numa disposi­
ção feliz e enternecida, foi à tenda de Poltorátski . Estavam lá reuni­
dos alguns oficiais que prepararam a mesa do jogo e o ajudante-de­
-campo abriu a banca de cem rublos . Por duas vezes Butler saiu da
tenda, apertando com a mão o seu porta-moedas dentro do bolso das
calças , mas finalmente não aguentou e , apesar da palavra de honra da­
da a si próprio e aos seus irmãos , juntou-se ao jogo .
Menos de uma hora depois , Butler, vermelho como uma papoila,
suado , sujo de giz , estava sentado , com os cotovelos espetados na me­
sa, a escrever debaixo das cartas dobradas os números das suas para­
das . Perdera tanto que já tinha medo de contar. Mesmo sem contar,
sabia que , se entregasse todo o seu vencimento , que podia pedir
adiantado , mais o preço do seu cavalo , não ia pagar tudo o que apon­
tara aquele ajudante-de-campo que ele não conhecia. Teria jogado
mais , mas o ajudante , com uma cara severa, pôs na mesa as cartas ,
com as suas mãos brancas e limpas , e começou a contar a coluna de
números de Butler, escritos a giz . Butler, envergonhado , pediu des­
culpa por não poder pagar nesse momento tudo o que perdera, disse
que ia mandar dinheiro de casa e, quando o disse, viu que todos fica­
ram com pena dele e que todos , inclusive Poltorátski , evitavam o seu
olhar. Era a sua última noite no acampamento . Bastava-lhe , em vez
de jogar, ir a casa de Vorontsov, para onde fora convidado , e tudo se­
ria óptimo - pensava. Mas agora não era óptimo , era horrível .
Butler despediu-se dos camaradas e dos conhecidos e foi para ca­
sa. Mal chegou , deitou-se imediatamente e dormiu dezoito horas se­
guidas , como se dorme normalmente depois de um jogo em que se
perde . Mária Dmítrievna, quando ele lhe pediu cinquenta copeques
emprestados , para dar uma gorjeta ao cossaco que o acompanhara, e
também pelo ar triste e pelas respostas curtas que lhe dava, percebeu
o que tinha acontecido e ralhou com Ivan Matvéevitch , acusando-o de
o ter deixado ir.
No dia seguinte , portanto , já passava das onze quando Butler acor­
dou e, ao lembrar-se da sua situação , desejou mergulhar de novo no
esquecimento donde acabara de sair, mas não podia ser. Tinha de to­
mar medidas para pagar quatrocentos e setenta rublos que ficara a de­
ver a um estranho . Uma dessas medidas consistia em escrever uma
carta ao irmão , confessando o seu pecado e suplicando que, pela últi­
ma vez , lhe mandasse quinhentos rublos por conta do moinho que era
ainda propriedade comum de ambos . Depois escreveu a uma parente
Hadji-Murat 105

sovina, pedindo-lhe os mesmos quinhentos rublos a quaisquer juros


que ela exigisse . A seguir foi falar com Ivan Matvéevitch , porque sa­
bia que este, ou antes , Mária Dmítrievna, tinha dinheiro e pediu-lhe
quinhentos rublos de empréstimo .
- Por mim emprestava-tos . . . - disse Ivan Matvéevitch - , e já,
mas a Machka não os larga. Estas mulheres são agarradas , não sei . . .
Mas precisas , precisas mesmo de te desenvencilhar, c ' os diabos .
Olha, talvez aquele diabo , o vivandeiro , ele terá?
Mas nem valia a pena pedir ao vivandeiro . Portanto , a salvação de
Butler podia chegar apenas do irmão ou da parente somítica.

22

Como Hadji-Murat não tivesse conseguido o seu objectivo na


Tchetchniá, voltou a Tiflis e, todos os dias , ia falar com Vorontsov;
quando este o recebia, implorava-lhe que juntasse os prisioneiros
montanheses e os trocasse pela sua fann1ia; repetia que , sem isso , es­
tava atado de pés e mãos e não podia fazer o que desejava, ou seja,
servir os russos e aniquilar Shamil . Vorontsov prometia vagamente
fazer o possível , mas adiava sempre , dizendo que resolveria o pro­
blema quando chegasse a Tiflis o general Argutínski , com quem iria
falar. Então , Hadji-Murat começou a pedir a Vorontsov para o deixar
partir e viver algum tempo em Nukha, uma pequena cidade transcau­
casiana, onde , supunha ele , lhe seria mais fácil levar a cabo as con­
versações com Shamil e com os homens deste sobre a sua fann1ia.
Além disso , em Nukha, cidade maometana, havia uma mesquita on­
de lhe seria mais cómodo dizer as preces prescritas pela lei da sua re­
ligião . Vorontsov escreveu sobre isso para Petersburgo, mas , entre­
tanto , deu a sua autorização a Hadji-Murat para ir a Nukha.
No entender de Vorontsov e das autoridades de Petersburgo , tal co­
mo da maioria dos russos que conheciam a história de Hadji-Murat,
o caso dele representava uma de duas coisas: ou uma feliz reviravol­
ta na guerra caucasiana, ou simplesmente um episódio interessante;
ora, para Hadji-Murat, sobretudo nos últimos tempos , aquilo era uma
terrível viragem na sua vida. Fugira dos montes , em parte para salvar
a sua vida, em parte pelo ódio que nutria por Shamil; e , por mais di­
fícil que essa fuga se apresentasse , conseguira o seu objectivo e, a
princípio , até estava satisfeito com o seu êxito e pensava já no plano
106 Lev Tolstói

para atacar Shamil . Porém, ficou claro que a fuga da sua fanu1ia, que
julgara fácil de organizar, era no entanto um problema complicado .
Shamil levara-lhe a fanu1ia e , mantendo-a prisioneira, prometia dis­
tribuir as mulheres pelos aúles e matar, ou cegar, o seu filho . Agora,
Hadji-Murat partia para Nukha com o propósito de tentar, com ajuda
dos seus sequazes no Daguestão , mediante uma artimanha ou à força,
arrancar a sua família das garras de Shamil . O último mensageiro que
o visitou em Nukha comunicou-lhe que os ávaros que lhe eram abne­
gados haviam planeado resgatar-lhe a fanu1ia e levá-la para junto dos
russos , mas que havia pouca gente disposta a participar nisso e com
coragem para o fazer em Vedeno , lugar do cativeiro da fanu1ia; ape­
nas seria possível executar o plano se a fanu1ia fosse levada para ou­
tro sítio - então sim, prometiam levar a cabo o resgate pelo cami­
nho . Hadji-Murat mandou que dissessem aos seus amigos que pagaria
três mil rublos pela salvação dos seus familiares .
Em Nukha, alojaram Hadji-Murat numa pequena casa, de cinco sa­
las , perto da mesquita e do palácio do Cão . Na mesma casa viviam os
oficiais russos , o intérprete e os seus nukeres . A vida de Hadji-Murat
decorria entre a espera e a recepção dos mensageiros dos montes; da­
va ainda passeios a cavalo - que lhe tinham autorizado - pelos ar­
redores de Nukha.
Quando , no dia 8 de Abril , Hadji-Murat regressou do seu passeio ,
soube que viera um funcionário de Tiflis . Apesar do seu grande dese­
jo de saber o que lhe trouxera o funcionário , antes de se dirigir à sala
onde o esperavam o chefe da polícia e o tal funcionário , Hadji-Murat
entrou no seu quarto e rezou a oração do meio-dia. Quando acabou de
rezar, entrou no recinto que servia de sala de estar e de sala de espe­
ra. Um senhor gorducho , o conselheiro de Estado Kin1lov, o tal fun­
cionário vindo de Tiflis , transmitiu a Hadji-Murat o desejo de Vo­
rontsov o ver em Tiflis antes do dia doze , para um encontro com o
senhor Argutínski .
- lakchi - disse Hadji-Murat com irritação .
Não gostou do funcionário Kin1lov.
- Trouxeste o dinheiro?
- Trouxe - respondeu Kin1lov.
- De duas semanas - disse Hadji-Murat e mostrou dez dedos e
mais quatro . - Dá cá.
- Um momento - disse o funcionário , tirando a carteira do seu
saco de viagem. - Para que quer ele o dinheiro? - perguntou ao po-
Hadji-Murat 107

lícia em russo , pensando que Hadji-Murat não o compreendia. Mas


Hadji-Murat percebeu e olhou, abespinhado , para Kin1lov. Enquanto
tirava o dinheiro , Kin1lov, tentando meter conversa com Hadji-Murat
para ter alguma coisa que contar ao príncipe Vorontsov, perguntou­
lhe, através do intérprete , se não se aborrecia naquele lugar. Hadji­
Murat olhou de soslaio , com desprezo , para o homenzinho gorducho
vestido à paisana, sem armas , e não respondeu nada. O intérprete re­
petiu a pergunta.
- Diz-lhe que não quero falar com ele . Que dê o dinheiro .
E sentou-se à mesa para contar o dinheiro .
Kin1lov tirou as moedas de ouro e colocou na mesa sete pilhas de
dez moedas cada (Hadji-Murat recebia cinco por dia) ; depois , apro­
ximou-as de Hadji-Murat. Este guardou as moedas dentro da manga
da tcherkeska, levantou-se e, de supetão , deu uma palmada na careca
do conselheiro de Estado e dirigiu-se para a saída da sala. O conse­
lheiro de Estado deu um salto e mandou o intérprete dizer a Hadji­
-Murat que não se atrevesse a fazer uma coisa daquelas a um funcio­
nário com ·a patente de coronel . O chefe da polícia concordou . Mas
Hadji-Murat acenou com a cabeça em sinal de que já sabia e saiu da
sala.
- Nada a fazer com ele - disse o chefe da polícia. - Se for pre­
ciso espeta uma punhalada e desanda. São difíceis , estes diabos . Já
começou a enraivecer-se , vê-se .
Quando caiu a noite , chegaram dos montes dois mensageiros com
as caras tapadas até aos olhos com bachlikes . O chefe da polícia le­
vou-os aos aposentos de Hadji-Murat. Um deles era um montanhês
musculado e moreno, do Daguestão; o outro , um velho magro . As no­
tícias não eram nada felizes . Os amigos de Hadji-Murat que se tinham
encarregado de resgatar a sua fann1ia agora recusavam-se abertamen­
te a fazê-lo , com medo de Shamil que ameaçava com as mais terríveis
punições todos os que ajudassem Hadji-Murat. Ao ouvir o relatório
dos mensageiros , Hadji-Murat apoiou as mãos nas pernas cruzadas ,
baixou a cabeça e ficou muito tempo calado . Hadji-Murat estava a
pensar, a tomar uma decisão definitiva. Sabia que era a última vez que
tomava uma decisão . Levantou a cabeça, tirou duas moedas de ouro ,
entregou-as aos mensageiros e disse:
- Ide .
- Qual será a resposta?
- A resposta será aquela que Deus mandar. Ide .
108 Lev Tolstói

Os mensageiros levantaram-se e foram embora; Hadji-Murat con­


tinuou sentado no tapete , apoiando os cotovelos nos joelhos . Ficou
assim muito tempo , a pensar.
«Ü que faço? Confio em Shamil e volto lá? Essa raposa vai enga­
nar-me . Mesmo que não enganasse , nunca poderia submeter-me a es­
se ruivo mentiroso . Não posso , porque ele , agora que já vivi com os
russos , não me dará crédito» - pensava Hadji-Murat.
E lembrou-se de uma lenda daguestanesa sobre um falcão que foi
apanhado , viveu com os homens e depois voltou aos montes , para os
seus. Voltou , mas com peias , e nas peias pendiam guizos . E os falcões
não o aceitaram. «Vai - disseram-lhe - para onde te puseram os
guizos de prata. Nós não temos guizos , mas também não temos
peias .» O falcão não quis abandonar a pátria e ficou . Mas os outros
falcões não o quiseram e mataram-no às bicadas .
«É assim que também me vão matar» - pensava Hadji-Murat.
«Ficar aqui? Conquistar o Cáucaso para o czar russo, ganhar gló­
ria, títulos , riquezas?»
« É possível» - pensou , recordando os seus encontros com Vo­
rontsov e as palavras lisonjeiras do velho príncipe .
«Mas tenho de tomar uma decisão agora mesmo , senão ele dá ca­
bo da minha família.»
Hadji-Murat passou toda a noite acordado , a pensar.

23

A meio da noite, a sua decisão foi formada. Resolveu fugir para os


montes e, com os ávaros que lhe eram leais, irromper em Vedeno e, aí,
morrer ou libertar a família. Se depois levava a família para junto dos rus­
sos ou se a transferia rapidamente para Khunzakh e entrava na luta con­
tra Shamil - nisso Hadji-Murat não pensava. Sabia apenas que, agora,
precisava de fugir dos russos para os montes. E começou a pôr de pé um
plano de execução imediato. Tirou de baixo da almofada o seu bechmet
preto forrado de algodão e foi ao quarto dos seus nukeres . Alojavam-se
do outro lado do átrio. Mal entrou no átrio com a porta aberta, abrangeu­
-o a frescura orvalhada da noite de luar e estalou-lhe nos ouvidos o canto
chilreado e matraqueado de vários rouxinóis do jardim contíguo à casa.
Hadji-Murat atravessou o átrio , abriu a porta do quarto dos nuke­
res . Neste quarto não havia luz , apenas a lua em quarto crescente ver-
Hadji-Murat 109

tia a sua luz pela janela. A mesa e duas cadeiras estavam afastadas de
encontro às paredes e todos os quatro nukeres se deitavam no chão ,
em cima dos tapetes e das burkas . Khanefi dormia no quintal , com os
cavalos . Gamzalo , ao ouvir a porta a ranger, levantou-se , viu Hadji­
-Murat, voltou a deitar-se . Mas Eldar, que dormia ao lado dele , pôs­
se em pé de um salto e começou a vestir o bechmet, à espera das or­
dens . Kurban e Khan-Magoma não acordaram. Hadji-Murat colocou
o seu bechmet em cima da mesa, e qualquer coisa dura bateu contra
a tampa. Eram as moedas de ouro guardadas dentro do forro .
- Guarda também estas - disse Hadji-Murat, entregando a Eldar
o ouro recebido nesse dia.
Eldar pegou nas moedas e , sem demora, foi até um lugar alumia­
do , tirou uma faca que tinha por trás do punhal , no cinto , e começou
a descoser o forro do bechmet. Gamzalo soergueu-se e sentou-se com
as pernas cruzadas .
- E tu , Gamzalo , manda aos rapazes verificar as espingardas e as
pistolas , que preparem os cartuchos . Amanhã vamos para longe -
disse Hadji-Murat.
- Temos pólvora, temos balas . Já vai estar tudo pronto - disse
Gamzalo e rugiu mais qualquer coisa incompreensível . Gamzalo per­
cebera a finalidade com que Hadji-Murat mandara carregar as espin­
gardas . Desde o início , e cada vez mais , Gamzalo desejava uma úni­
ca coisa: matar, esfaquear os cães russos , tantos quantos fosse
possível , e fugir para os montes . Agora via que Hadji-Murat desejava
a mesma coisa e estava contente .
Quando Hadji-Murat saiu , Gamzalo acordou os seus companheiros
e todos os quatro passaram a noite a examinar as espingardas , as pis­
tolas , a pólvora, as pedemeiras , mudando as estragadas , pondo pól­
vora fresca nos fuzis , tapando com balas envoltas em trapos impreg­
nados de óleo os khozires cheios de pólvora, afiando os sabres e os
punhais , untando as lâminas com gordura.
Antes do amanhecer, Hadji-Murat saiu de novo para o átrio , indo
buscar água para as abluções . O canto em que se desfaziam os rouxi­
nóis recebendo a aurora era ainda mais alto e nítido . No quarto dos
nukeres soava o assobio regular do aço do punhal amolado na pedra.
Hadji-Murat tirou água da selha e já se aproximava da sua porta quan­
do ouviu , no quarto dos murides , além do som da amolação , a voz fi­
na de Khanefi a cantar uma canção que Hadji-Murat conhecia bem.
Parou e escutou .
1 10 Lev Tolstói

A canção contava a história do djiguit Gamzat que , com os seus ho­


mens , roubou aos russos uma manada de cavalos brancos e como o
príncipe russo o apanhou atrás do Terek e o cercou com o seu exérci­
to grande como uma floresta. Cantava-se depois que Gamzat degolou
os cavalos e se meteu por trás do montão ensanguentado de cavalos
mortos , e combateu os russos enquanto havia balas nas espingardas ,
punhais nos cintos e sangue nas veias . Mas , antes de morrer, Gamzat
viu umas aves no céu e gritou-lhes: «Aves aladas , voai até às nossas
casas e dizei às nossas irmãs , mães e raparigas brancas que morremos
pelo hazavat. Dizei-lhes que os nossos corpos não vão jazer nos tú­
mulos , mas os lobos insaciáveis vão rasgar e trincar os nossos ossos ,
e os corvos negros vão vazar os nossos olhos.»
A estas palavras , com que terminava a canção e que eram cantadas
numa melodia tristonha, juntou-se a voz enérgica do alegre Khan­
-Magoma que ainda gritou no fim: «La-illakha il all à» - e soltou um
guincho estridente . Depois , tudo se silenciou , e ficou de novo a ou­
vir-se apenas o chilreio dos rouxinóis do jardim e, por trás da porta, a
chiadeira, mesclada de vez em quando com assobios , do aço a desli­
zar rapidamente pela pedra.
Hadji-Murat ficou tão pensativo que não reparou que inclinava o
jarro , derramando a água. Abanou a cabeça, censurando-se, e entrou
no seu quarto . Depois de cumprir o namázi matinal , Hadji-Murat exa­
minou as suas armas e sentou-se na cama. Não havia mais nada que
fazer. Para sair era preciso pedir licença ao chefe da polícia. Mas ain­
da era noite , e o polícia estava a dormir.
A canção de Khanefi lembrava-lhe outra, composta pela sua mãe .
Esta canção falava do que aconteceu na realidade - quando Hadji­
Murat nasceu - e tal como a mãe lho contou .
A canção era assim:
«Ü teu punhal damasquino rasgou o meu peito branco , mas apertei
ao peito o meu sol , o meu menino , banhei-o com o meu sangue quen­
te e a ferida sarou sem ervas nem raízes curativas . Não tive medo da
morte e o rapaz djiguit não terá medo dela.»
As palavras desta canção eram dirigidas ao pai de Hadji-Murat e o
seu sentido era o seguinte: quando Hadji-Murat nasceu , a mãe dos
Cãos também teve mais um filho , o Cão Umma, e mandou que a mãe
de Hadji-Murat, que amamentara já o filho mais velho do Cão , Abu­
nuntsal , fosse a ama de leite do Cão recém-nascido . Mas Patimat não
quis abandonar o seu bebé e recusou-se . O pai de Hadji-Murat zan-
Hadji-Murat 111

gou-se e mandou-a ir. E, quando ela voltou a recusar-se , deu-lhe uma


punhalada e matava-a se não lha tivessem arrancado das mãos. As­
sim, Patimat não abandonou o filho e amamentou-o , e fez uma can­
ção sobre isso .
Hadji-Murat recordou a sua mãe quando ela, deitando-o ao seu la­
do no telhado , debaixo da peliça, lhe cantava esta toada e ele lhe pe­
dia que lhe mostrasse o lugar onde ficara a cicatriz . Imaginava ao vi­
vo a sua mãe - mas não como a deixara havia pouco , enrugada,
encanecida e com os dentes ralos , mas sim como era em jovem, bo­
nita e tão forte que, quando ele já tinha cinco anos e estava pesado ,
ela ainda o levava no cesto às costas , através dos montes , para casa
do avô .
Recordou também o avô , com a cara cheia de rugas e a barba cin­
zenta, que era cinzelador, moldava a prata com as suas mãos nodosas
e obrigava o neto a dizer orações . Recordou uma fonte no sopé do
monte , onde ia buscar água com a mãe, agarrando-se-lhe às calças .
Recordou um cão escanzelado que lhe lambia a cara e , sobretudo , o
cheiro e o sabor do fumo e do leite coalhado , quando ia com a mãe ao
barracão onde ela ordenhava a vaca e cozia o leite a fogo lento . Re­
cordou como a mãe, pela primeira vez , lhe rapara a cabeça e como vi­
ra, espantado , a sua cabecinha redonda e azulada, reflectida no algui­
dar de cobre brilhante .
Então , ao rever-se em criança, lembrou-se do seu querido filho lus­
suf, a quem ele próprio rapara a cabeça pela primeira vez . Agora o
Iussuf já era um djiguit jovem e bonito . Recordou o filho como o vi­
ra pela última vez. Foi no dia em que saiu de Tselmes . O rapaz che­
gou-lhe o cavalo e pediu licença para o acompanhar um troço do ca­
minho . Estava vestido e armado , e segurava o seu cavalo pela rédea.
A cara de Iussuf, jovem e bonita e de lindas cores , e toda a sua figu­
rá alta e fina (era mais alto do que o pai) , respirava coragem, juven­
tude e alegria de viver. Os ombros largos , apesar da juventude , a pél­
vis ampla de moço e o corpo fino e comprido , os braços fortes e
longos , a força, a flexibilidade e a destreza de todos os seus movi­
mentos sempre alegravam o pai, e era com prazer que , de todas as ve­
zes , o observava.
- Fica, é melhor. Agora és o único homem da casa. Protege a tua
mãe e a tua avó - disse Hadji-Murat.
E não se esquecia da expressão de galhardia e orgulho com que Ius­
suf corou de prazer, dizendo que , enquanto fosse vivo , ninguém faria
1 12 Lev Tolstói

mal à sua mãe e à sua avó . Mesmo assim, montou a cavalo e acom­
panhou o pai até ao riacho . Depois voltou para casa e desde então
Hadji-Murat nunca mais viu a mulher nem a mãe , nem o filho .
Era aquele o seu filho que Shamil queria cegar ! Quanto à mulher,
nem queria pensar no que lhe fariam.
Estes pensamentos emocionaram-no de tal maneira que não conse­
guia continuar sentado . Saltou do lugar e, coxeando , foi rapidamente
até à porta, abriu-a e chamou Eldar. O sol ainda não tinha nascido ,
mas já havia muita luz. Os rouxinóis não se calavam.
- Vai dizer ao chefe da polícia que desejo ir passear e selai os ca­
valos - disse ele .

24

A única consolação de Butler, naquele tempo , era a poesia guerrei­


ra a que ele se entregava não só no serviço , mas também na sua vida
pessoal . Vestido com o trajo circassiano , galopava armado em djiguit
e por duas vezes foi com Bogdanóvitch fazer emboscadas , embora
não chegassem a apanhar nem a matar ninguém. Esta bravura e a
amizade com Bogdanóvitch, famoso valentão , pareciam a Butler uma
coisa agradável e importante . Pagou a sua dívida, tendo pedido di­
nheiro emprestado a um judeu , com juros enormes , ou seja, apenas
adiou a solução do problema. Evitava pensar na sua situação e , além
da poesia guerreira, recorria ainda ao vinho para esquecer os proble­
mas . Bebia cada vez mais e, a cada dia que passava, ficava ainda mais
fragilizado no sentido moral . Em relação a Mária Dmítrievna, já não
era como José , o Belo , mas pelo contrário - começou a namoriscá­
la com grosseria e , para seu espanto , encontrou uma resistência reso­
luta e forte , e sentiu vergonha.
No fim de Abril chegou à fortaleza um destacamento destinado por
Bariátinski a uma nova ofensiva através de toda a Tchetchniá, consi­
derada intransitável. Integravam-no duas companhias do Regimento
da Kabárdia, que foram recebidas como convidadas pelas companhias
aquarteladas na fortaleza, de acordo com uma tradição já consolidada
no Cáucaso . Os soldados dispersaram-se pelas casernas e foram rega­
lados não só com um jantar (papas , carne de vaca) , mas também com
vodca. Os oficiais alojaram-se em casas dos oficiais locais . E, como
era costume, os anfitriões serviram um jantar aos recém-chegados .
Hadji-Murat 1 13

O jantar acabou com uma bebedeira acompanhada pelas cantigas


dos soldados e Ivan Matvéevitch , muito bêbedo , já não vermelho mas
cinzento-pálido , estava escarranchado na cadeira e , com o sabre na
mão , acutilava inimigos imaginários , e ora praguejava, ora ria às gar­
galhadas , ora abraçava os camaradas , ora dançava ao som da sua can­
ção preferida: «Shamil começou a amotinar-se em anos já passados ,
trai-rai-ratatai , em anos já passados» . Butler, também presente , tentou
ver nisso uma poesia guerreira, mas no fundo da alma tinha pena de
Ivan Matvéevitch e não tinha qualquer possibilidade de o fazer parar.
Então , Butler, sentindo a embriaguez a pesar-lhe na cabeça, saiu sor­
rateiramente e foi para casa.
A lua cheia lançava a sua luz sobre as casinhas brancas e as pedras
do caminho . O ar era tão claro que cada pedrinha, palha oti estrume
no caminho se distinguiam nitidamente . Ao aproximar-se de casa,
Butler viu Mária Dmítrievna, com a cabeça e os ombros cobertos pe­
lo lenço . Depois de Mária Dmítrievna o ter escorraçado , Butler tinha
vergonha e evitava encontrar-se com ela. Agora, porém, à luz da lua
e sob o efeito do vinho bebido , Butler ficou contente com este en­
contro e quis , mais uma vez , procurar o seu carinho .
- Onde vai? - perguntou-lhe .
- Vou ver como está o meu velho - respondeu amigavelmente .
Rejeitava os galanteios de Butler com toda a sinceridade e firmeza,
mas não lhe agradava ver que ele , nos últimos dias , a tinha evitado .
- Para quê? Ele vem sozinho , não se perde .
- E se não vier?
- Se não vier, trazem-no .
- Ora aí está, e isso não está bem - disse Mária Dmítrievna. -
Então não vou , o que acha?
- Não vá. Vamos para casa.
Mária Dmítrievna deu meia volta e encaminhou-se para casa ao la­
do de Butler. A lua brilhava tanto que , à volta da sombra movente da
sua cabeça, Butler via uma auréola a luzir. Olhava para a sua sombra
aureolada e tinha vontade de dizer a Mária Dmítrievna que continua­
va a gostar dela, mas não sabia como começar. Ela esperava o que
Butler lhe ia dizer. Assim, calados , já estavam muito perto de casa
quando de trás da esquina surgiram uns cavaleiros . Era um oficial e
mais a escolta.
- Quem será que Deus nos manda? - disse Mária Dmítrievna e
afastou-se .
1 14 Lev Tolstói

A lua iluminava o recém-chegado por trás e Mária Dmítrievna só o


reconheceu quando ele estava a dois passos . Era o oficial Kámenev
que, dantes , servira no mesmo destacamento que Ivan Matvéevitch e
que, por isso , ela conhecia.
- Piotr Nikoláevitch ! - exclamou .
- Sou - disse Kámenev. - Ah, é o Butler ! Viva:. Ainda não dor-
me? Leva a Mária Dmítrievna a passear? Cuidado , olhe que o Ivan
Matvéevitch diz-lhe . . . Onde é que ele está?
- Está ali , não ouve? - respondeu Mária Dmítrievna, apontando
para o lado donde chegavam os sons do tulumbaz49 e das cantigas . -
Estão na pândega.
- Os vossos?
- Não , vieram de Hassav-lurt, banqueteiam-se à grande .
- Fazem bem. Chego mesmo a tempo . Tenho de o ver, mas é só
um minuto .
- Alguma coisa de especial? - perguntou Butler.
- É, sim, há uma coisinha.
- Boa ou má?
- Depende ! Para nós é boa, mas há para quem seja má - disse
Kámenev e riu-se .
Entretanto , cavaleiros e peões chegaram à casa de Ivan Matvée­
vitch .
- Tchikhiriov ! - gritou Kámenev a um cossaco . - Vem cá.
O cossaco do Don avançou e aproximou-se dele . O homem enver­
gava o uniforme habitual dos cossacos do Don , mais botas , capote e
os alforges por trás da sela.
- Vá, tira aquela coisa - mandou-lhe Kámenev, apeando-se .
O cossaco também se apeou e retirou do alforge um saco com qual­
quer coisa. Kámenev pegou no saco e meteu a mão dentro dele .
- Então , quer que lhe mostre a notícia? Não se assusta? - dirigiu-
-se a Mária Dmítrievna.
- Não me assusto , porquê? - disse ela.
- Aqui está - disse Kámenev, tirando uma cabeça humana e ex-
pondo-a à luz da lua. - Conhecem?
Era uma cabeça rapada, com grandes saliências por cima dos olhos,
barbicha negra e bigode aparados, com um olho aberto e outro semicer­
rado, o crânio rapado, o nariz coberto de sangue negro coagulado. O pes..:
coço estava envolto por uma toalha ensanguentada. Apesar de todas as
feridas , os lábios azulados mantinham uma expressão infantil, bondosa.
Hadji-Murat 1 15

Mária Dmítrievna olhou e , sem dizer nada, virou-se e entrou a pas­


so rápido em casa.
Butler não conseguia desviar os olhos da cabeça terrível . Pertencia
àquele mesmo Hadji-Murat com quem, havia pouco, ele passava as
tardes , conversando amigavelmente .
- Mas como . . . ? Quem o matou? Onde? - perguntou .
- Queria fugir, mas apanhámo-lo - disse Kámenev. Entregou a
cabeça ao cossaco e entrou na casa juntamente com Butler.
- E morreu com galhardia - disse Kámenev.
- Mas como aconteceu?
- Espere , quando Ivan Matvéevitch vier, conto tudo em pormenor.
Foi para isso que me mandaram. Ando por todas as fortalezas e por
todos os aúles , a mostrá-la.
Mandaram buscar Ivan Matvéevitch que , bêbedo e acompanhado
por dois oficiais também bastante tocados , chegou a casa e desatou a
abraçar Kámenev.
- Vim para lhe mostrar uma coisa - disse Kámenev. - Trouxe a
cabeça de Hadji-Murat.
- Não me digas ! Mataram-no?
- Foi , quis fugir.
- Era o que eu dizia, que ele ia aldrabar-nos . Bem, onde está a ca-
beça? Mostra lá.
Chamaram o cossaco e este trouxe o saco com a cabeça. Tiraram­
-na, e Ivan Matvéevitch observou-a demoradamente com os olhos bê­
bedos .
- Seja como for, foi um bravo rapaz - disse por fim. - Deixa­
me beijá-lo .
- É verdade , foi um valentão - disse um dos oficiais.
Quando toda a gente acabou de observar a cabeça, devolveram-na
ao cossaco .
O cossaco meteu a cabeça no saco e pô-lo no chão com cuidado ,
tentando não bater com ele .
- Ouve lá, Kámenev, quando a mostras , fazes comentários ou
quê? - disse um dos oficiais.
- Não , deixa-me beijá-lo , ofereceu-me o sabre - gritava Ivan
Matvéevitch .
Butler saiu da porta. Mária Dmítrievna estava sentada no segundo
degrau da escada. Olhou para Butler e , logo a seguir, virou-lhe as cos­
tas , furiosa.
1 16 Lev Tolstói

- O que tem, Mária Dmítrievna? - perguntou-lhe Butler.


- São uns carniceiros , vocês todos, odeio-vos , são uns autênticos
carniceiros - disse ela, levantando-se .
- Podia acontecer a qualquer um - disse Butler, sem saber o que
dizer. - É a guerra.
- A guerra ! - exclamou Mária Dmítrievna. - E que guerra! Car­
niceiros , e está tudo dito . É preciso dar sepultura ao corpo morto , mas
eles ainda fazem troça. Carniceiros , francamente - repetiu , desceu a
escada e foi para casa pela porta traseira.
Butler voltou à sala de estar e pediu Kámenev para contar com
mais pormenores o que tinha acontecido .
Kámenev contou .
Aconteceu como se relata adiante .

25

Hadji-Murat tinha autorização para passear a cavalo perto da cida­


de e, obrigatoriamente , com uma escolta de cossacos. Em Nukha ha­
via ao todo meia centena de cossacos , dos quais uma dezena estava
ao serviço dos chefes; os outros , de acordo com as ordens , eram des­
tacados para a escolta em grupos de dez , um grupo de cada vez , dia
sim, dia não . Ora, se no primeiro dia ainda mandaram um grupo de
dez cossacos , a seguir decidiram que as escoltas seriam de cinco ho­
mens , mas pedindo a Hadji-Murat que não levasse consigo todos os
seus nukeres . No dia 25 , porém, Hadji-Murat saiu com todos os seus
cinco nukeres . Quando Hadji-Murat estava a montar a cavalo, o che­
fe militar viu que todos os cinco iam acompanhá-lo e fez-lhe o repa­
ro de que não lhe era permitido levá-los a todos , mas Hadji-Murat fin­
giu que não o ouviu e tangeu o cavalo . O chefe militar não quis
insistir. Entre os cossacos havia um oficial inferior, de nome Nazárov,
cavaleiro da Cruz de São Jorge , com o cabelo ruço cortado à tigela,
jovem e saudável , com uma cara de belas cores . Era o filho mais ve­
lho de uma pobre farru1ia pertencente à velha igreja ortodoxa, cresce­
ra sem pai e sustentava a sua velha mãe, três irmãs e dois irmãos .
- Vê lá, Nazárov, não o s deixes ir longe ! - gritou o chefe.
- Sim, vossa senhoria - respondeu Nazárov e , levantando-se no
estribo e ajeitando a espingarda que levava a tiracolo , arrancou a tro­
te no seu bom cavalo , grande e ruivo , com focinho arqueado . Atrás
Hadji-Murat 1 17

dele , seguiam quatro cossacos: Ferapóntov, esgrouviado e magro ,


grande ladrão e espertalhão - aquele mesmo que vendera pólvora a
Gamzalo; lgnátov, mujique de certa idade , que já cumprira o prazo
obrigatório do serviço , mas era robusto e gabava-se da sua força;
Míchkin , novinho e fraquinho , objecto de gozo para todos; e final­
mente Petrakov, jovem, loiro , filho único da sua mãe , sempre cari­
nhoso e animado .
A manhã era de nevoeiro , mas à hora do pequeno-almoço o tem­
po melhorou , e o sol brilhava na folhagem recém-desabrochada, nas
ervas jovens e virgens , na seara nova e na superfície encrespada do
rio rápido à esquerda do caminho . Hadji-Murat cavalgava a passo; os
cossacos e os nukeres seguiam-no sem se atrasarem . Saíram para o
caminho por trás da fortaleza. Encontravam de vez em quando mu­
lheres com os cestos à cabeça, soldados em carros e carroças atrela­
das a bois . Ao fazer cerca de dois verstás , Hadji-Murat esporeou o
seu cavalo branco; o esquipador acelerou de tal modo que os nuke­
res tiveram de mandar os seus cavalos a trote largo . Os cossacos
também .
- Eh, que bom cavalo ele tem - disse Ferapóntov. - Se não fos­
se pacífico , dava-lhe um tiro e o cavalo seria meu .
- Pois é , amigo, por este cavalinho davam trezentos rublos em
Tiflis .
- Ultrapasso-o com o meu - disse Nazárov.
- Querias ! - disse Ferapóntov.
Hadji-Murat continuava a acelerar.
- Eh, kunak, não faças isso ! Abranda! - gritou Nazárov, apa­
nhando Hadji-Murat.
Hadji-Murat virou a cabeça e, sem responder, continuou a cavalgar
à mesma velocidade .
- Acho que estão a tramar alguma - disse lgnátov. - Olha co-
mo correm.
Fizeram assim uma verstá na direcção dos montes .
- Já te disse , é proibido ! - voltou a gritar Nazárov.
Hadji-Murat não respondia nem se virava, mas continuava a acele-
rar e passou ao galope .
- Mentira, não foges ! - gritou Nazárov, ressentido.
Chicoteou o seu cavalo ruivo e , soerguendo-se nos estribos e lan­
çando o corpo para a frente , mandou-o a toda a brida atrás de Hadji­
-Murat.
118 Lev Tolstói

O céu era tão claro, o ar tão fresco e as forças da vida brincavam


na alma de Nazárov com tanta alegria quando ele , fundido numa só
criatura com o seu belo e forte cavalo , corria pelo caminho liso atrás
de Hadji-Murat, que nem lhe passava pela cabeça a possibilidade de
acontecer alguma coisa má, triste ou terrível . Agradava-lhe que , a ca­
da passo, estivesse a aproximar-se cada vez mais de Hadji-Murat. Es­
te percebeu , pelo bater dos cascos do cavalo grande , que o cossaco ia
apanhá-lo dentro de alguns momentos; então levou a mão direita à
pistola e , com a esquerda, começou a refrear um pouco o seu cavalo
esquentado e excitado com o bater dos cascos por trás dele .
- Estás proibido , ouviste? - gritou Nazárov, quase ao lado de
Hadji-Murat e estendendo a mão para agarrar a brida do seu cavalo .
Porém, não teve tempo de o fazer porque estoirou um tiro .
- O que fizeste? - gritou Nazárov, agarrando-se com a mão ao
peito . - Agarrai-os , rapazes - disse , cambaleou e tombou sobre o
arção da sela.
Mas os montanheses pegaram nas armas antes dos cossacos, co­
meçaram a disparar e a acutilá-los com os sabres . Nazárov pendia so­
bre o pescoço do cavalo assustado que corria com ele à volta dos seus
camaradas . O cavalo de lgnátov caiu , prendendo-lhe uma perna. Dois
montanheses , sem se apearem, assestavam-lhe golpes de sabre nas
mãos e na cabeça. Petrakov acorreu em socorro do camarada, mas foi
atingido por dois tiros , nas costas e de lado , e tombou como um saco
no chão .
Míchkin virou o cavalo para trás e galopou na direcção da fortale­
za. Khanefi e Khan-Magoma atiraram-se atrás dele , mas já estava
longe e os montanheses não o apanharam .
Vendo que não podiam apanhar o cossaco , Khanefi e Khan-Mago­
ma voltaram para junto dos seus . Gamzalo matou lgnátov à punhala­
da e degolou Nazárov, fazendo-o cair do cavalo . Khan-Magoma tirou
aos mortos os sacos com os cartuchos . Khanefi quis levar o cavalo de
Nazárov, mas Hadji-Murat gritou-lhe para não o fazer e arrancou pe­
lo caminho adiante . Os seus murides seguiram-no , enxotando o cava­
lo de Petrakov que não os largava. Já estavam a três verstás de dis­
tância de Nukha, no meio dos campos de arroz , quando soou um tiro
na torre , sinal de alarme .
Petrakov jazia de costas com a barriga aberta, a sua cara jovem es­
tava virada para o céu , e, soluçando como um peixe, agonizava.
Hadji-Murat 1 19

***

- Deus nosso Senhor, o que foram fazer! - exclamou o coman­


dante da fortaleza deitando as mãos à cabeça, quando soube da fuga
de Hadji-Murat. - Mataram-me ! Deixaram-no fugir, facínoras ! -
gritava, ouvindo o relatório de Míchkin .
O alerta foi dado por todo o lado e foram mandados em perseguição
dos fugitivos não só todos os cossacos dessa localidade , mas também
todos os milicianos que se conseguiram mobilizar nos aúles pacíficos .
Anunciaram que aquele que trouxesse Hadji-Murat, vivo ou morto, re­
cebia um prémio de mil rublos . E, duas horas depois de ele e os seus
homens terem fugido dos cossacos , mais de duzentos cavaleiros, co­
mandados pelo chefe da polícia, galopavam em busca dos fugitivos.
Depois de andar várias verstás pelo caminho grande , Hadji-Murat
refreou o seu cavalo branco , ofegante e cinzento de suor, e parou . À
direita do caminho viam-se as sáklias e o minarete do aúl Belardjik,
à esquerda estendiam-se os campos e, no seu extremo, corria o rio .
Apesar de o caminho para os montes ser à direita, Hadji-Murat virou
na direcção contrária para despistar os perseguidores , contando que
eles fossem em sua perseguição precisamente pelo lado direito . Ele ,
entretanto , atravessaria o rio Alazan , sairia para o caminho onde nin­
guém estaria à espera dele , chegaria à floresta e ali , atravessando de
novo o rio no meio da floresta, alcançaria os montes . Tomou esta de­
cisão e virou para a esquerda. Mas era impossível , afinal , chegar ao
rio . O campo de arroz que tinha de atravessar estava alagado , como
sempre na Primavera, transformado num pântano em que os cavalos
se atolavam pelos boletos . Hadji-Murat e os seus nukeres metiam pe­
la direita, pela esquerda, com a esperança de encontrarem uma passa­
gem mais seca, mas o campo a que foram parar estava alagado e en­
charcado de água por todo o lado . Os cavalos tiravam as patas da
lama viscosa com um «flop» da rolha sacada e , ao fim de alguns pas­
sos , tinham de parar, resfolegando .
Tanto tempo andaram naquela azáfama que começou a escurecer,
mas estavam ainda longe do rio . À esquerda havia uma ilhota cober­
ta de arbustos com uma folhagem nova e Hadji-Murat resolveu entrar
nessa mata para dar descanso aos cavalos esfalfados e ficar lá até a
noite cair.
Depois de entrarem para o meio dos arbustos , Hadji-Murat e os
seus nukeres apearam-se e , prendendo os cavalos com peias , deixa-
1 20 Lev Tolstói

ram-nos pastar e comeram pão e queijo que tinham levado . A lua no­
va escondeu-se por trás dos montes e a noite ficou escura. Em Nu­
kha havia muitos rouxinóis . Naqueles arbustos também havia dois .
Enquanto Hadji-Murat e os seus homens faziam barulho , entrando
nos arbustos , os rouxinóis calaram-se . Mas quando os homens se si­
lenciaram , os pássaros voltaram a chilrear, respondendo uns aos ou­
tros. Hadji-Murat, atento aos sons da noite , ouvia-os involuntaria­
mente .
E o canto dos rouxinóis lembrou-lhe aquela canção sobre Gamzat
que ouvira na noite em que fora buscar água. A qualquer momento
podia cair na situação de Gamzat. Pensou que ia ser precisamente as­
sim e ficou sério . Estendeu a burka e fez o namázi . Mal acabou , ou­
viu que se aproximava gente dos arbustos . Eram os sons de muitas
patas de cavalos a chapinharem na lama. O Khan-Magoma de olhos
penetrantes saiu para um lado da mata e enxergou no escuro as som­
bras negras de cavaleiros e peões que vinham na direcção dos arbus­
tos . Khanefi viu a mesma multidão d.;> outro lado . Era Kargánov, co­
mandante das tropas do distrito , com os seus milicianos .
«Então , vamos combater como Gamzat» - pensou Hadji-Murat.
Depois de ter sido dado o sinal de alarme , Kargánov, com uma cen­
tena de cossacos e milicianos , precipitara-se em perseguição de Had­
ji-Murat, mas não havia encontrado sequer as pegadas dele . Kargánov
já se preparava para regressar a casa, desesperado , quando ao fim da
tarde encontrou pelo caminho um velho tártaro . Tinha-lhe pergunta­
do se vira seis homens a cavalo . O velho respondeu que sim. Tinha
visto seis cavaleiros a darem voltas pelo campo de arroz e a entrarem
na mata onde costumava ir apanhar chamiço . Levando consigo o ve­
lho , Kargánov virara para trás e, quando viu os cavalos com peias e
percebeu que Hadji-Murat estava ali , cercou os arbustos e esperou pe­
lo amanhecer para apanhar Hadji-Murat vivo ou morto .
Quando percebeu que estava cercado, Hadji-Murat encontrou no
meio dos arbustos um velho rego , bem fundo , e decidiu meter-se lá e
resistir até lhe acabarem os cartuchos e as forças . Disse-o aos seus
companheiros e mandou fazer um abatis à volta do rego . De imedia­
to , os nukeres começaram a cortar ramos , a cavar a terra com os pu­
nhais , a construir um aterro . Hadji-Murat trabalhava com eles .
Mal começou a amanhecer, o comandante da centúria dos milicia­
nos aproximou-se da mata e gritou:
- Eh, Nadji-Murat ! Entrega-te ! Somos muitos e vós sois poucos !
Hadji-Murat 121

Em resposta, estoirou uma espingarda n o aterro , levantou-se um


fuminho e a bala acertou no cavalo do miliciano , que saltou para o la­
do e caiu . A seguir, estralejaram as espingardas dos milicianos que es­
tavam na orla dos arbustos e as balas , zunindo e assobiando , arranca­
vam as folhas e os ramos do abatis , mas não atingiam os homens
escondidos no aterro . Apenas o cavalo de Gamzalo , afastado dos ou­
tros , foi baleado , ferido na cabeça. Não caiu, mas rompeu a peia e
precipitou-se, partindo os arbustos , até junto dos outros cavalos e jun­
tou-se a eles , regando de sangue as ervas jovens . Hadji-Murat e os
seus homens disparavam apenas quando algum miliciano saía para
frente e era raro falharem um tiro . Três dos milicianos foram feridos
e os outros não só não se atreviam a atacar Hadji-Murat e os seus nu­
keres , como ainda se afastavam deles cada vez mais e davam tiros de
longe , ao deus-dará.
Assim continuou por mais de uma hora. O sol já subira até à altu­
ra de meia árvore , e Hadji-Murat começava a pensar que podiam
montar nos cavalos e, combatendo, tentar alcançar o rio, quando se
ouviram os gritos de mais um destacamento acabado de chegar. Era o
Agá Gadji de Mekhtuli com os seus homens , cerca de duzentos. O
Agá Gadji era, em tempos , kunak de Hadji-Murat e vivia nos montes
ao lado dele, mas depois passou para o lado dos russos . Com ele , che­
gou também o Cão Akhmet, filho do inimigo de Hadji-Murat. O Agá
Gadji, primeiro , fez o mesmo que Kargánov: gritou a Hadji-Murat
que se entregasse , mas este , tal como da primeira vez , respondeu com
um tiro .
- Ao sabre , rapazes ! - gritou Agá Gadji. Arrancou o sabre da
bainha e ouviram-se as centenas de vozes estridentes dos homens que
se atiraram para dentro dos arbustos .
Os milicianos entraram na mata, mas vários tiros trovejaram de trás
do abatis . Três homens caíram, os atacantes pararam na orla dos ar­
bustos e também abriram fogo . Disparavam e, ao mesmo tempo ,
aproximavam-se pouco a pouco do aterro , correndo de um arbusto
para outro . Alguns conseguiam-no , outros caíam sob as balas de Had­
ji-Murat e dos seus homens . Hadji-Murat não falhava um tiro; Gam­
zalo também raramente não acertava e sempre que via um inimigo
atingido guinchava de alegria. Kurban, sentado de um lado do rego ,
cantava «La-illakha il alla» e dava os tiros sem pressa, mas quase não
acertava. Quanto a Eldar, tremia-lhe o corpo todo de impaciência, an­
siando por se atirar aos inimigos com o punhal , e disparava rápida e
1 22 Lev Tolstói

descuidadamente , olhando a cada instante para Hadji-Murat e asso­


mando a cabeça do abatis . O peludo Khanefi , de mangas arregaçadas ,
também aqui fazia o papel de criado . Carregava as espingardas que
lhe atiravam Hadji-Murat e Kurban , enfiando aplicadamente , com
uma vareta de ferro , as balas envoltas em trapinhos oleosos e pondo
a pólvora seca nos fuzis . Ora, Khan-Magoma não ficara, como os ou­
tros , dentro do aterro , mas não parava de correr dali até aos cavalos ,
pondo-os num sítio mais protegido e , sempre guinchando , disparava
a espingarda com o braço solto , sem apoio . Foi o primeiro a ser feri­
do . A bala atingiu-o no pescoço e ele sentou-se , cuspindo sangue e
praguejando . Depois foi ferido Hadji-Murat. A bala atravessou-lhe
um ombro . Hadji-Murat arrancou um bocado de algodão do bechmet,
tapou a ferida e continuou a disparar.
- Ao sabre , está bem? - repetiu Eldar pela terceira vez .
Assomou-se do aterro , pronto a atacar os inimigos , mas no mesmo
instante foi baleado , cambaleou e caiu de costas , sobre a perna de
Hadji-Murat. Este olhou para ele . Os belos olhos de Eldar fitavam-no
atenta e seriamente . A boca, com o lábio superior saliente como o de
uma criança, contorcia-se sem se abrir. Hadji-Murat libertou a perna
e continuou a apontar. Khanefi inclinou-se sobre Eldar morto e pôs­
-se a tirar rapidamente os cartuchos da sua tcherkeska. Kurban, en­
tretanto , não deixava de cantar, carregando a espingarda e apontando
sem pressa.
Os inimigos , passando de um arbusto para outro , aproximavam-se
cada vez mais , com ululos e guinchos . Outra bala atingiu Hadji-Mu­
rat no lado esquerdo . Deitou-se no rego e, arrancando mais uma vez
um pouco de algodão do bechmet, tapou a ferida. Esta ferida era mor­
tal , Hadji-Murat sentia que chegara o seu fim. As recordações e as
imagens alternavam-se na sua imaginação com uma incrível veloci­
dade , umas atrás das outras . Ora via à sua frente o grandalhão do Cão
Abununtsal a segurar com uma mão a bochecha cortada e a atirar-se
ao inimigo com o punhal na outra mão; ora via o velho , fraco e exan­
gue Vorontsov, com a sua manhosa cara branca, e ouvia a sua voz sua­
ve; ora via o seu filho Iussuf, ou a sua mulher Sofiat, ou a cara páli­
da com a barba ruiva e os olhos piscos do seu inimigo Shamil .
E todas estas recordações corriam na sua imaginação sem lhe des­
pertarem qualquer sentimento: nem pena, nem raiva, nem qualquer
desejo. Tudo isso lhe parecia muito insignificante em comparação
com o que estava a começar, com o que já começara para ele . No en-
Hadji-Murat 1 23

tanto , o seu corpo forte continuava a agir. Juntou as últimas forças , le­
vantou-se do aterro , disparou a pistola contra um homem que se acer­
cava dele e atingiu-o . Depois saiu por completo do buraco e lançou­
-se em frente , com o punhal na mão , coxeando pesadamente , ao
encontro dos inimigos . Soaram vários tiros , ele cambaleou e caiu . Vá­
rios milicianos precipitaram-se , com guinchos rejubilantes , para o
corpo caído . Porém, o que lhes parecia um corpo morto de repente
mexeu-se . Primeiro levantou a cabeça rapada ensanguentada, sem
gorro , depois soergueu o tronco e , agarrando-se a uma árvore , pôs-se
completamente de pé . Parecia tão pavoroso que os atacantes pararam .
Ele , porém, estremeceu de repente , afastou-se da árvore e , como um
cardo cortado , caiu sobre a cara e não se mexeu mais .
Não se mexia, mas ainda sentia. Quando Agá Gadji, o primeiro a
acorrer, lhe bateu com um grande punhal na cabeça, pareceu a Hadji­
-Murat que lhe estavam a dar marteladas no crânio , e não percebia
quem o estava a fazer nem porquê . Foi a sua derradeira consciência
da ligação com o seu corpo . Não sentia mais nada e os inimigos es­
pezinhavam e cortavam um objecto que já não tinha nada a ver com
ele . Agá Gadji pisou-lhe as costas , decepou-lhe a cabeça com dois
golpes e , com cuidado , para não sujar os tchuviakes com o sangue , ro­
lou-a para o lado a pontapé . Inundando as ervas , o sangue vermelho
jorrou das artérias do pescoço e o sangue negro da cabeça.
Kargánov, Agá Gadji, o Cão Akhmet e todos os milicianos , como
caçadores ao pé de um animal abatido , juntaram-se sobre os corpos
de Hadji-Murat e dos seus homens (Khanefi , Kurban e Gamzalo fo­
ram amarrados) e, parados no meio dos arbustos envoltos no fumo da
pólvora, conversavam alegremente , rejubilando com a vitória.
Os rouxinóis que se haviam calado durante o tiroteio voltaram a
chilrear, primeiro um mais próximo , depois outros , no extremo dos
arbustos .

* * *

Foi esta a morte que me lembrou um cardo esmagado no meio da


lavra.
Notas

1 Aúl - povoação fortificada.


2 Kiziak - estrume do gado, misturado com palha e mato.
3 Sáklia - casa dos montanheses do Cáucaso, com paredes de pedra ou barro, e o te­
lhado plano .
4 Nafü - substituto, representante e ajudante do chefe; ou também superior de uma co­
munidade.
5 Murid - nos países muçulmanos , homem que se dedica ao islão; escolhe para si o
mestre, o murchid, a quem obedece incondicionalmente .
6 Bachlik - capucho de pano, pontiagudo, que se põe por cima do chapéu.
7 Burka - aqui , capa sem mangas feita de feltro. Os cavaleiros usam capas compridas ,
os peões capas curtas . .
8 Tulup - peliça, com o pêlo para dentro.
9 Bechmet - espécie de cafetã com gola alta.
1 0 Tcherkeska (da palavra tcherkés: circassiano) - peça de vestuário dos povos do Cáu­
caso: espécie de cafetã sem gola, feita de pano, com pregas na cintura e com khozi­
res (gazires) , tubinhos de couro para cartuchos .
11 Kunak - amigo, pessoa ligada a outra pelas obrigações da hospitalidade.
12 Nogovitsa - peça de calçado que cobre a perna e o joelho.
1 3 Tchurek - panqueca de farinha de milho .
14 Kumgan - jarro para a água com bico, asa e tampa.
15 Iok - não; não há.
1 6 Maruchka bar? - Tens mulher?
17 Barantchuk bar? - Tens filhos?
18 - Ora bem, vai dizer-me o que se passa?
- Mas , minha querida. . .
- Nada de minha querida. É um emissário, não é?
- De qualquer maneira, não lhe posso dizer.
- Não pode? Então sou eu quem lho vai dizer.
- Você?
1 26 Notas

1 9 Ávaros - um dos povos do Cáucaso.


20 Sardar - ministro da corte . Na Transcaucásia, o título era usado na província de Eri­
van. Entre o povo, esta palavra significava «governador da terra» .
2 1 - É um objecto de valor [ . . . ]
- Temos de encontrar a oportunidade de lhe dar um presente. (fr.)
22 Djiguit - significa «jovem» em turco. No Cáucaso chamavam-se assim, desde anti­
gamente , os cavaleiros destemidos , resistentes e de grande habilidade na equitação e
no manejo de todo o género de armas .
23 Plov - prato de arroz com carne de borrego .
24 Aqui está a oportunidade ! Dê-lhe o relógio (fr.) .
25 - Faria muito melhor se ficasse; é um assunto meu, e não seu .
- Não pode impedir-me de ir visitar a senhora generala. (fr.) .
26 Alteração do provérbio: «Uma má paz é melhor do que uma boa discórdia.»
27 Excelentes, querida amiga [ . . . ] O Simon teve sorte.
28 Expedição das galetas: Em 1 845 , o comandante-em-chefe Mikhail Vorontsov, no
cumprimento da ordem de Nicolau 1 no sentido de eliminar Shamil de um só golpe,
empreende uma campanha militar. Os russos , no decurso de toda a campanha, tinham
uma acentuada falta de provisões , forragens e medicamentos (em consequência da má
organização e das acções habilidosas de Shamil que , ao recuar, ia queimando todas as
povoações . Não impedia o avanço das tropas russas mas , ao mesmo tempo , cortava­
-lhes todas as possibilidades de recuarem e atacava os comboios de provisões russos) .
Quando o comandante Vorontsov conseguiu ocupar Dargo, este tornou-se , para os
russos , uma cilada. Foi então decidido mandar para lá uma coluna com provisões sob
o comando do general Klugenau . Esta parte da campanha ficou conhecida como «ex­
pedição das galetas» e constituiu uma derrota trágica das forças russas . As perdas fo­
ram enormes e o que sobrava dos destacamentos foi salvo apenas graças ao tal «so­
corro» de que fala o texto, socorro esse prestado pelo destacamento do general
Freitag .
29 A guerra é a guerra (fr.) .
30 Tudo isso graças a si (fr.) .
3 1 Teve alguns dissabores com o comandante da praça. Simon não tinha razão (fr.). Mas
tudo está bem quando acaba bem (ing.) .
32 Hazavat - guerra santa que os muçulmanos declaram aos infiéis (jihad) .
33 Amanat - refém, garantia do cumprimento de um acordo ou contrato.
34 Aia - sim.
35 Nuker - guerreiro, guarda-costas .
36 Guiaúr - não muçulmano, infiel .
37 Sua Majestade acaba de entrar (fr.) .
38 Está cá alguém (fr.) .
39 - A Polónia e o Cáucaso são os dois cautérios da Rússia [ . . . ] São precisos mais ou
menos 1 00 000 homens em cada um destes países .
[ . .]
.
Hadji-Murat 1 27

- A Polónia, disse? [ . . ]
.

- Oh, sim, foi um golpe de mestre de Maetternich ter-nos deixado este dissabor.
40 Tchikhir - vinho tinto caseiro caucasiano que não se deixa fermentar até ao fim.
4 1 Mutalim - aluno de uma escola corânica.
42 Iakchi - está bem; bek iakchi - muito bem.
43 Namázi - oração que os muçulmanos devem fazer cinco vezes ao dia.
44 Bairam - nome turco para as duas festas principais do islamismo, a «Festa do Sa-
crifício» e a «Festa do Açúcar>> .
45 Kunak bulur - vou ser o teu amigo.
46 Adat - costume
47 Ulan - rapaz.
48 Gurda - o expoente máximo de arma no Cáucaso.
49 Tulumbaz - antigo nome russo (proveniente do turco) dos instrumentos de percus­
são timbale e tambor.
NOTA

História da redacção e da publicação

Pré-História

1 895 . Janeiro e Maio: Ao visitar os Olsoufiev, seus vizinhos no campo ,


Tolstói lê , na revista O Mensageiro Histórico (Istoriceskij vestnik,
1 893 , n .05 1 a 10) , as memórias do general Vladimir Poltoratski
( 1 828- 1 889) , que , de serviço no Cáucaso desde 1 846 , participou
nas campanhas da Grande e da Pequena Tchetchénia, de 1 847 a
1 854 . Aí encontra, nomeadamente, o relato do anúncio da rendição
de Hadji-Murat face a Semion Vorontsov e da disputa entre este e o
seu superior.
28 de Maio (Diário) : «Continuo a ler Poltoratski . Gosto das suas
memórias .>>
1 896. (Diário , desenvolvendo uma nota do caderno; «0 tartarino no ca­
minho; ( 1 ) Hadji-Murat): Ontem atravessei um pousio de terra ne­
gra alteada pela segunda vez. Para onde quer que olhássemos , só
víamos terra negra - nem um pedacinho de erva. E eis , subitamen­
te, na berma do caminho acinzentado de pó , um tufo de tartarino
(répeiJ, três rebentos: um, quebrado , do qual pende uma flor branca,
sujada; outro, também quebrado, salpicado de lama, de caule negro
partido e maculado; o terceiro, elevando-se de lado, também escure­
cido de pó , mas ainda vivo, com algo de vermelho no meio. -
Lembrou-me Hadji-Murat. Vontade de escrever. Só, no meio da
imensidão do terreno, ele defende a vida por todos os meios .
Setembro (Caderno): «Está rodeado de ambos os lados . Por Maria
Dmitrievna, Vali Mahoma, a sua esposa, Chamil, e Alá.» (Os últi­
mos pensamentos de Hadji-Murat, acossado) .
1 30 Nota - História da redacção e da publicação

2 . Primeira redacção e trabalho de documentação

1 1 - 1 4 de Agosto: primeira redacção , intitulada Répei" (O Cardo),


durante a sua estadia no mosteiro de Chamardino , onde foi visitar a
sua irmã Maria na companhia da esposa.
1 2 de Setembro: visita a Arnold Zisserman ( 1 824- 1 897), seu vizi­
nho e historiador das guerras do Cáucaso, que lhe dedica as .suas
memórias Vinte e Cinco Anos no Cáucaso (São Petersburgo , 1 879) .
1 4 de Setembro (Diário) : «Escrevi sobre Hadji-Murat, muito mau ,
um rascunho .»
23 de Outubro (Diário) : «Reli Hadji-Murat; não é o que quero .»
Novembro: notas dos cadernos que testemunham o prosseguimen­
to do trabalho de documentação e de preparação dos materiais .
1 897 . 9 de Março (Diário) : «Grande vontade de escrever Hadji-Murat, o
que foi bem reflectido - com emoção .»
4 de Abril (Diário) : «Ontem pensei muito bem sobre Hadji-Murat
- nele trata-se de exprimir, sobretudo , o logro da fé . Como ele se­
ria bom, não fosse esse logro .»

3. Segunda fase: alargamento da novela inicial


e indagações (Setembro 1 897-Maio 1 898)

Setembro-Outubro (Caderno) e 14 de Outubro (Diário) : pormeno­


res para Hadji-Murat.
1 5 - 1 6 de Outubro e 1 1 de Novembro . Segunda redacção; cenas re­
centemente inspiradas pela leitura de Zisserman e Poltoratski: a de­
serção de Hadji-Murat, o acolhimento dos seus emissários por uma
patrulha de soldados russos , o anúncio da sua rendição a Semion
Vorontsov, a operação de desbaste e a própria rendição .
1 1 de Novembro (Diário): «De manhã, escrevi Hadji-Murat. Sem
resultado . Mas as coisas esclarecem-se na minha cabeça. E muita
vontade de escrever.»
14 de Novembro (Diário) : «Pensei escrever, como contrapartida a
Hadji-Murat, sobre outro fora-da-lei russo , Grigori Nikolaiev, que
via todà a ilegitimidade da vida dos ricos e viveria como guarda de
um pomar numa rica residência senhorial , com court de ténis .
1 7-20 de Novembro: terceira redacção - o almoço em casa de Mi­
khail Vorontsov, vice-rei do Cáucaso , o acolhimento dado a Hadji­
-Murat, a carta de Vorontsov ao ministro Tchernychov, o relato que
Hadji-Murat fez da sua vida ao intérprete Loris-Mélikov.
Hadji-Murat 131

20 de Novembro (Diário): «Pensei muito em Hadji-Murat e prepa­


rei materiais» (num folheto à parte , intitulado «Materiais para
Hadji-Murat» , lista de passagens extraídas de Colectânea de Infor­
mações Sobre Os Montanheses Caucasianos) .
20-2 1 de Novembro (Diário) : «Continuo sem encontrar o tom.»
(Carta a Sofia Tolstói) : a história «não avança» .
2 1 de Novembro: quarta redacção, intitulada pela primeira vez
Hadji-Murat, sob a forma de narrativa biográfica.
24 de Novembro: «Ontem preparei Hadji-Murat. Parece claro . . . »
Dezembro: Sofia Tolstói anota no seu diário que o trabalho sobre
Hadji-Murat não avança.
12 de Dezembro (Diário) : lista dos trabalhos em curso , Hadji­
-Murat em sétimo lugar entre os «menos bons» .
2 1 de Dezembro (Diário) : «Meditei Hadji-Murat, mas sem gosto
nem segurança.»
Dezembro 1 897-Janeiro 1 898: nomes de avatares anotados no seu
caderno .
28 de Dezembro: carta a Stassov pedindo livros sobre «a história, a
geografia e a etnografia do país do khan no século presente .
1 898 . Princípio de Janeiro: quinta redacção - fragmentos da bio­
grafia de Hadji-Murat e planos .
1 3 de Janeiro (Diário) : «Continuo a procurar uma forma satisfató­
ria para Hadji-Murat e continuo a não encontrá-la, apesar de pare­
cer aproximar-me dela.»
18 de Janeiro (Diário) : «Esclareci o plano de Hadji-Murat melhor
que nunca.»
Fevereiro: sexta redacção - projecto de reunir os fragmentos aca­
bados , extraídos da primeira, segunda e quinta redacções , com o ti­
tulo Hazawat (A Guerra Santa) para os publicar em Londres , na
editora de Tchertkov.
2 1 de Março (Diário) : «Existe um jogo inglês chamado peepshow
- sob o vidro , ora aparece uma coisa, ora outra. Assim se deve
mostrar o homem H[adji] M[urat] : o marido , o fanático , etc .»
Abril: regresso à terceira redacção .
4 de Maio (Diário): «Hoje, e também nos dias anteriores , parece
que concebo com mais clareza Hadji-Murat, mas não posso escre­
ver. É certo que me incomodam.»
Maio de 1 898-Fevereiro de 1 90 1 : cerca de três anos de interrupção .
Dedica-se a Pai Sérgio e Ressurreição .
1 32 Nota - História da redacção e da publicação

4. Terceira fase: últimas hesitações (primeiro semestre 1 901)

1 90 1 . Fevereiro: sétima redacção empreendida a pedido de Sofia Tolstói


para o seu serão de beneficência a 1 7 de Março de 1 90 1 (regresso
à primeira redacção) .
Março: oitava redacção , empreendida ao voltar a ler a sétima, reco­
piada por uma amiga (1. lgoumnova) . História completa em seis ca­
pítulos, narrada por Butler, «O ancião do Cáucaso» .
1 9 de Março (Diário): «Entretanto [desde 22 de Fevereiro) não es­
crevi nada, excepto a carta Ao Czar e aos Seus Assistentes e diver­
sas modificações , todas elas detestáveis , a Hadji-Murat, que reto­
mei , contrariado .»
28 de Março (Diário) : entretanto [desde 20 de Março] escrevi . . . um
pouco de Hadji-Murat.»
22 de Abril (Diário) : «Acabar Hadji-Murat.»
7 de Maio (Diário): «Vi , em sonho , alguém que Tchékov já anteci­
para. O velho homem tinha algo de particularmente interessante:
era quase santo e, no entanto , bebia bem e falava grosseiramente .
Pela primeira vez entendi claramente a força que adquirem certos
tipos devido a sombras audaciosamente marcadas . É o que farei pa­
ra H[adji] M[urat] e M[ária] D [mitrievna] .
Final de Junho: o trabalho sobre Hadji-Murat está interrompido .
5 de Setembro 1 90 1 - 22 de Abril 1 902: Tolstói partiu para a Cri­
meia, para se tratar, e adoece gravemente (meados de Janeiro- iní­
cio de Março de 1 902); o trabalho sobre Hadji-Murat é interrompi­
do pela doença, mas continua a pensar nele .
1 902 1 2 de Janeiro (Calendário do bloco-notas) : «Revi Hadji-Murat.»
23 de Fevereiro (Calendário do bloco-notas) : lista de trabalhos com
Hadji-Murat em sexto lugar.
22 de Abril: regresso a Iasnafa Poliana.
27 de Maio (Caderno): Notas para Hadji-Murat.

5. Quarta fase: afinamento do manuscrito


(Julho-Setembro 1902)

22 de Junho: releitura dos antigos manuscritos .


27 de Junho (Carta ao seu irmão Sérgio) : «Quero acabar Hadji­
-Murat. É uma bagatela, uma tolice , mas é preciso concluir o que
foi começado .»
Hadji-Murat 133

2 2 d e Julho (Diário de 5 d e Agosto): «Desde [esta data] , escrevo


Hadji-Murat, umas vezes com prazer outras de mau grado e com
vergonha.» Nona redacção , que retoma a forma biográfica (Calen­
dário do escritório - 25 de Julho: «Comecei Hadji-Murat a partir
do seu nascimento , revi o que era antigo. Há muitas coisas váli­
das») .
27 de Julho (Calendário do escritório): «Trabalho com prazer em
Hadji-Murat - tudo a partir do começo.»
30 de Julho (Calendário do escritório): «Escrevo sem gosto . Sinto
vergonha.»
1 de Agosto (Calendário do escritório): «Escrevo mal . Envergonho­
-me de escrever futilidades .»
5 de Agosto (Diário): «Não escrevo há quatro dias . Estou embre­
nhado nas minhas reflexões sobre Hadji-Murat. Parece-me que
agora é mais claro .»
5-6 de Agosto (Calendário do escritório): «Reflecti sobre Hadji­
-Murat.» «Escrevo-o desde o início .»
6 de Agosto - 23 de Setembro: Décima redacção (Diário do 20 de
Setembro: «Não escrevo há mês e meio [o meu diário] . Escrevo
sempre Hadji-Murat») .
8 de Agosto (Diário): «Escrevo sempre Hadji-Murat e continuo
com escrúpulos .»
9 de Agosto (Calendário do escritório): «Decidi não publicar.»
1 8 - 1 9 de Setembro (Calendário do escritório) . «Escrevo conve­
nientemente , estou a acabar.»
2 1 de Setembro: Coloco ponto final , datando o manuscrito: «21 de
Setembro de 1 902. Iasnafa Poliana.»
No entanto , a 23 de Setembro , escreve no seu diário: «Não paro de
corrigir Hadji-Murat>> , e a 26 de Setembro: «Pus de lado Hadji­
-Murat e não sinto ânimo para continuar.»

6. Releituras e últimos retoques


(Setembro 1 902-Dezembro 1904)

Final de Setembro: a filha de Tolstói e o seu marido, Nicolas Obo­


lenski, começam a recopiar o manuscrito.
6 de Outubr� (Carta de Maria Obolenski a V. Tchertkov): «Durante to­
do este tempo recopiámos e afinámos Hadji-Murat, mas creio que ain­
da está longe da sua conclusão , tanto mais que o próprio Lev Niko-
1 34 Nota - História da redacção e da publicação

laievitch receia trabalhar novamente nele pois recebeu mais material.»


1 1 de Outubro (Carta a V. Tchertkov): «Acabei Hadji-Murat, que
pus de lado sem lhe dar o último retoque e não o publicarei en­
quanto for vivo .»
23 de Outubro (Diário de Sofia Tolstói) : «Lev Nikolaievitch acabou
Hadji-Murat, que lemos hoje: o carácter estritamente épico está
muito bem observado , há muita arte , mas não nos toca muito . Aliás ,
lemos só metade , acabaremos amanhã.»
2-5 de Novembro: primeira releitura, correcções estilísticas .
1 1 de Novembro (Carta à sua filha Tatiana): «Acabei de afinar
Hadji-Murat, e decidi não o publicar enquanto for vivo .»
No entanto , continua a tomar notas (Caderno de 14 de Outubro de
1 902: «O cão de Hadji-Murat» ) e a documentar-se (carta de 1 1 de
Novembro ao grão-duque Nikolai Mikháilovitch , pedindo-lhe o to­
mo 10 das Actas da Comissão Arqueográfica do Cáucaso) .
3 de Dezembro: segunda releitura. Correcções importantes obrigam
a recopiar outra vez certas páginas do manuscrito . Tolstói interessa­
-se cada vez mais pela personalidade de Nicolau I; no dia 10 de De­
zembro , anota no seu caderno (numa folha à parte): «Para Hadji
Murat. Toda a vida dele não foi mais do que uma série ininterrupta
de transgressões» (trata-se , evidentemente , de Nicolau 1) .
1 903 . Janeiro-Fevereiro: o trabalho de releitura é interrompido devido à ne­
cessidade de precisar certos pormenores , que conduzem a novas inves­
tigações sobre as circunstâncias exactas da fuga de Hadji-Murat, as fa­
cetas políticas escondidas e a vida quotidiana de Nicolau 1. Tolstói
dirige-se aos seus correspondentes: a V. Stassov, ao qual pede obras
históricas sobre o czar, as publicações da imprensa dos anos 1 85 1 e
1 852 e o Diário Oficial da Corte, fazendo-lhe perguntas sobre o livro
de Custine, A Rússia em 1839; ao grão-duque Nikolai Mikháilovitch,
e, depois, ao escritor georgiano Ilya Nakachidze, aos quais pede as Ac­
tas da Comissão Arqueográfica do Cáucaso. Recolhe os testemunhos
de 1. Karganov e da sua mãe sobre a fuga de Hadji-Murat, da sua tia
Alexandra Tolstói sobre a vida privada de Nicolau 1 (ver o prefácio) .
Março: terceira releitura; modificação da disposição dos capítulos,
correcções e acrescentos .
6 de Maio (Carta à sua filha Maria): «Revi Hadji-Murat. Não que­
ro deixá-lo com todos os seus lapsos e envergonho-me por ainda ter
de me ocupar dele nos últimos tempos de vida, sobretudo quando
tenho na cabeça pensamentos mais apropriados a essa situação . Vou
fazê-lo às escondidas de mim mesmo .»
Hadji-Murat 1 35

Maio: quarta releitura dos capítulos I a XIII . Tolstói é parado pelo


capítulo XV, consagrado a Nicolau I, que o leva a novas investiga­
ções e à redacção de um segundo capítulo sobre o czar, rasurado e ,
depois , de um terceiro , dividido e m dois .
1 8 de Junho (Diário): «Decidir deixar Nic[olau] Pavl[ovitch] mais
ou menos como está e, caso for necessário , escrevê-lo à parte .» Re­
nunciando a acrescentar novos capítulos , nem por isso deixa de se
interessar pela personalidade do czar, continuando a recolher docu­
mentos e testemunhos e colocando em reserva a hipótese de lhe
consagrar outra obra.
4 de Julho: início de uma quinta releitura. Novamente parado pelo
capítulo XV sobre Nicolau 1 . Redacção de um novo capítulo , vio­
lentamente denunciador.
Setembro: novos documentos solicitados a V. Stassov, assinalando­
-lhe que alarga a suas investigações aos anos de juventude e forma­
ção do czar.
Dezembro 1 903- Janeiro 1 904: absorve-se no estudo de documen­
tos sobre Nicolau I, mas não escreve nada.
25 de Fevereiro de 1 904 (Diário): «Hoje corrigi Nicolau Pavlovitch
em Hadji-Murat e abandonei . Se tiver tempo , escreverei à parte so­
bre Nicolau.» Regresso ao capítulo XV.
1 9 de Dezembro: últimos retoques em Hadji-Murat (das últimas
lembranças deste sobre o filho , loussouf) .

7. História da publicação

Em conformidade com a decisão tomada por Tolstói a 9 de Agosto de


1 902 e confirmada numa carta escrita ao seu discípulo Vladimir Tchertkov
a 1 1 de Outubro e à sua filha Tatiana a 1 1 de Novembro de 1 902 (ver aci­
ma) , Hadji-Murat só será publicado depois da sua morte .
Após o seu falecimento , Vladimir Tchertkov, herdeiro dos seus direitos e
proprietário dos seus manuscritos para o período posterior a 1 880 , em­
preende a publicação das suas obras póstumas . Como a censura foi abolida
em 1 905 , para evitar uma Interdição , pede um exame prévio à Direcção­
-Geral da Imprensa. O director, A. V. Belgard , conclui que há «muitas coi­
sas ilegais» nessas obras; particularmente , em Hadji-Murat, «O imperador
Nicolau I é alvo de ataques inadmissíveis, extremamente grosseiros e que
constituem um insulto à sua memória» , e que nele se encontram « �xpostas ,
de forma insolente e desrespeitosa, opiniões sobre Nicolau I como detentor
1 36 Nota - História da redacção e da publicação

do poder supremo , bem como sobre os soberanos e soberanas que reinaram


antes dele» . Deste modo , no volume III das Obras Artísticas Póstumas de
Lev Tolstói (Posmertnye hudoestvennye proi'Z;vedenija), publicado em Mos­
covo em 1 9 1 2 , o capítulo XV de Hadji-Murat é reduzido a metade (os cor­
tes são assinalados nas notas) , e o capítulo XVII, que trata da expedição pu­
nitiva em que participa Butler, é reduzido à sua primeira frase .
Contudo, paralelamente à edição publicada na Rússia, em que as passa­
gens incriminadas são expurgadas , os três tomos de as Obras Artísticas Pós­
tumas de Lev Tolstói aparecem na sua íntegra, no mesmo ano , em Berlim,
publicadas pelo editor russo Ladyjnikov.
Ambas as edições reproduzem, com ou sem cortes , um texto estabeleci­
do por Pavel Boulanger ( 1 864- 1 925) , amigo e discípulo de Tolstói , que não
dispunha de manuscritos originais .
A edição «académica» , publicada em Moscovo em 1 950 , no tomo 35 das
Obras Completas, foi estabelecida por A. P. Sergeenko a partir dos manus­
critos originais .
A única correcção importante incide sobre o capítulo XI , em que o relato
que Hadji-Murat faz da sua infância, repetindo-se quase literalmente no ca­
pítulo XXIII (em que as recordações da infância lhe acodem à memória
quando tem de tomar uma decisão vital) , foi riscada por Tolstói , o que esca­
pou ao redactor da edição de 1 9 1 2 . A. P. Sergeenko levou em conta essa cor­
recção .

Esta nota é da autoria de Michel Aucouturier


ÜBRAS DO AUTOR NESTA EDITORA

Anna Karénina
A Morte de Ivan Iliitch
O Diapo e Outros Contos
NESTA COLECÇÃO

1 . Johann W. Goethe: Fausto


2. Choderlos Lados: As Ligações Perigosas
3 . Jean-Jacques Rousseau: Confissões
4 . Herman Melville: Moby Dick
5 . Oscar Wilde: O Retrato do Sr. W. H.
6. Gustave Flaubert: Madame Bovary
7 . Stendhal: A Cartuxa de Parma
8 . S . Masoch: A Vénus de Kazabai"ka
9 . Edith Wharton: Ethan Frome
10 . Heinrich Heine: O Livro de Le Grand
1 1 . Rainer Maria Rilke: Ewald Tragy
1 2 . Oscar Wilde: O Retrato de Dorian Gray
1 3 . Montaigne: Ensaios (Antologia)
14 . W. B . Yeats: Onde Nada Existe
15 . Hermano Melville: As Ilhas Encantadas
16 . Hõlderlin: A Morte de Empédocles
17 . Oscar Wilde: De Profundis
1 8 . Emily Bronte: O Monte dos Vendavais
19 . Anton Tchék:hov: Contos ( Volume I)
20 . Anton Tchékhov: Contos ( Volume II)
2 1 . Anton Tchék:hov: Contos ( Volume III)
22 . Oscar Wilde: O Crime de Lorde Artur Savile e Outros Contos
23 . Giacomo Leopardi: Pequenas Obras Morais
24 . Benjamin Constant: Adolfo
25 . Marcel Proust: Do Lado de Swann (Vol . 1 de Em Busca do Tempo Perdido)
26 . Marcel Proust: À Sombra das Raparigas em Flor (Vol. II de Em Busca do
Tempo Perdido)
27 . Marcel Proust: O úuJo de Guermantes (Vol. ill de Em Busca do Tempo Perdido)
28 . Marcel Proust: Sodoma e Gomorra (Vol. IV de Em Busca do Tempo Perdido)
29 . Marcel Proust: A Prisioneira (Vol . V de Em Busca do Tempo Perdido)
30. Marcel Proust: A Fugitiva (Vol. VI de Em Busca do Tempo Perdido)
3 1 . Marcel Proust: O Tempo Reencontrado (Vol. VII de Em Busca do Tempo
Perdido)
3 2 . Edith Wharton: Verão
3 3 . R . M . Rilke: As Anotações de Malte Laurids Brigge
34 . Franz Kafka: O Desaparecido
35 . Anton Tchékhov: Contos ( Volume N)
36 . Ivan Búnin: O Amor de Mítia
37 . Anton Tchékhov: Novelas (Drama na Caça e O Duelo)
3 8 . Rainer Maria Rilke: A Balada da Vida e da Morte do Alferes Cristoph Rilke
e Outros Contos de Juventude
39 . Miguel de Cervantes: D . Quixote de La Mancha
40 . Franz Kafka: A Metamorfose
4 1 . Franz Kafka: Contos
42. Giovanni Boccaccio: Decameron (vol s . 1 e Il)
43 . Charles Baudelaire: A Invenção da Modernidade (Sobre Arte, Literatura
e Música)
44 . Franz Kafka: O Castelo
45 . Anton Tchékhov: Contos ( Volume V)
46 . Honoré de Balzac: A Rapariga dos Olhos de Ouro
47 . Anton Tchékhov: Contos (Volume VI)
48 . Lev Tolstoi: Anna Karénina
49 . Gustave Flaubert: Salammbô
50 . Hugo von Hofmannsthal: Andreas
5 1 . Ivan Turguéniev: Pais e Filhos
52. Anton Tchékhov: Contos ( Volume VII)
5 3 . Willa Cather: Uma Mulher Perdida
54. Lev Tolstói: A Sonata de Kreutzer
55. Honoré de Balzac : Pierrette seguido de O Padre de Tours
56. Mikhail Bulgákov: Margarita e o Mestre
57. Lev Tolstói: A Morte de Ivan Iliitch
58. Murasaki Shikibu: O Romance do Genji (Tomo 1)
59. Ivan Turguénev: O Primeiro Amor
60 . Mikhail Lérmontov: O Herói do Nosso Tempo
6 1 . Murasaki Shikibu: O Romance do Genji (Tomo 2)
62 . Lev Tolstói: O Diabo e Outros Contos
63 . Gustave Flaubert: A Educação Sentimental
64. Machado de Assis : Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba
65 . Machado de Assis : Dom Casmurro e Esaú e Jacó

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