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Título: Hadji-Murat
Título original: Hadji-Murat (1904)
Autor: Lev Tolstói
Tradução: Nina Guerra e Filipe Guerra
Revisão de texto: Joana Serafim
Capa: Carlos César sobre ilustração de Lanceray
Se não encontrar nas livrarias o livro que procura da R. A., envie um e-mail para
relogiodagua@relogiodagua.pt
Hadji-Murat
Tradução e Notas de
Nina Guerra e Filipe Guerra
Clássicos
Nota da Tradução
haste estava toda em farrapos e a flor já não parecia fresca nem bo
nita . Além disso , o seu aspecto tosco e berrante não condizia com as
ternas flores com que eu compusera o ramo . Lamentei ter destruído
inutilmente uma flor que , no seu lugar, era tão linda. Deitei-a fora.
«É impressionante a força , a energia daquela flor - pensei , recor
dando o que me custara arrancá-la. - Lutou muito ·pela vida e ven
deu-a caro .»
O trajecto passava pelo barbecho de terra negra, acabado de lavrar.
Eu seguia pelo caminho negro e poeirento , ligeiramente a subir. O
campo lavrado era senhorial , muito grande , de maneira que de ambos
os lados e em frente do caminho não se via nada além do arrotea
mento negro , com sulcos regulares , ainda por gradar. A lavra fora óp
tima, em lado nenhum se via planta ou erva - tudo negro . «Que ser
destruidor e cruel é o homem, quantas criaturas vivas , quantas plan
tas de todo o género ele exterminou para sustentar a sua própria vida»
- pensava eu , procurando involuntariamente qualquer coisa viva no
meio desse campo morto e negro . À minha frente , à direita do cami
nho , via-se um pequeno arbusto . Quando me aproximei dele , reco
nheci um «tártaro» igual ao anterior, a que tinha arrancado inutil
mente uma flor que depois deitara fora.
O arbusto de «tártaro» tinha três hastes . Uma fora arrancada, as
outras duas espetavam-se como cotos de braço . Cada qual com a sua
flor, dantes vermelha , agora preta . Um caule dobrava-se , partido ,
com a sua flor suja na ponta; o outro , embora coberto de lama negra,
ainda se erguia. Era evidente que o arbustinho fora pisado por uma
roda e só depois se levantara, estando por isso retorcido . E mesmo
assim de pé . Era como se lhe tivessem arrancado um pedaço do cor
po e um braço , o tivessem esventrado , lhe tivessem vazado um olho ,
mas segurava-se em pé e não se entregara ao homem que matara to
dos os seus irmãos à volta .
«Mas que energia ! - pensei . - O homem venceu tudo , extermi
nou milhões de ervas , mas ele continua a resistir.»
Então , lembrei-me de uma história caucasiana que em parte teste
munhei , em parte ouvi contar por outros , e o resto fantasiei . Esta his
tória, tal como se formou na minha memória e imaginação , é a que re
lato a seguir.
Hadji-Murat 11
* * *
Tudo voltou a silenciar-se, apenas o vento mexia nos ramos das ár
vores, ora abrindo, ora tapando as estrelas.
- Diz lá - perguntou de repente o animado Avdéev a Panov - ,
acontece-te alguma vez ficares aborrecido?
- Que aborrecimento pode haver? - respondeu Panov a contra
gosto.
- Comigo, às vezes o enfado é tanto que nem sei o que sou capaz
de fazer comigo.
- Não me digas! - disse Panov.
- Daquela vez, lembras-te? Derreti o dinheiro todo na bebedeira,
só por causa desta chatice. Tomou conta de mim, e pensei: vou em
borrachar-me até cair.
- Às vezes ainda se fica pior com os copos.
- Mas também, o que se pode fazer?
- E é porquê, esse teu aborrecimento?
- Porquê? Porque tenho saudades de casa!
- E como era a tua vida, a tua farm1ia é rica?
- Ricos não, mas vivíamos bem. Nada mal, até.
E Avdéev pôs-se a contar o que já tinha contado muitas vezes a
Panov.
- Alistei-me por minha própria vontade, na vez do meu irmão. Ele
já tinha cinco filhos, e eu não, tinha acabado de me casar. E a minha
mãe pediu-me tanto. Pensei: não me importo! Mais tarde talvez me
agradeçam o bem que lhes fiz. Fui falar com o meu senhor. O nosso
senhor é bom, disse: «Fazes bem, rapaz, vai!» E vim, em vez do meu
irmão.
- Fizeste bem - disse Panov.
- Mas agora é um tédio, acredita. E aborreço-me sobretudo por-
que vim na vez do meu irmão. Penso: ele agora está a viver como um
rei, e eu aqui a sofrer. Quanto mais penso, pior me sinto. É uma ten
tação, acho eu.
Avdéev ficou um pouco calado.
- Vamos fumar? - perguntou.
- Vamos, prepara lá isso!
Não tiveram tempo para fumar. Mal Avdéev se levantou para pre
parar o cachimbo, no meio do sopro do vento ouviram-se passos no
caminho. Panov pegou na espingarda e empurrou Nikítin com o pé.
Este levantou-se logo e apanhou o capote. Também Bondarenko, o
terceiro homem, se levantou.
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Havia muito que as janelas das casernas e das barracas dos solda
dos estavam escuras, mas numa das melhores casas da fortaleza to
das as janelas ainda luziam. Esta casa era ocupada pelo comandante
do Regimento de Kurá, ajudante-de-campo da corte, príncipe Se
mion Mikháilovitch Vorontsov, que era filho do
comandante-em-chefe. Vorontsov vivia com a sua mulher Mária
Vassílievna, uma famosa beldade de Petersburgo, e faziam uma vida
nessa pequena fortaleza do Cáucaso como nunca alguém tivera na
quele lugar. Vorontsov, porém, e sobretudo a sua mulher achavam
que a sua vida ali não era apenas modesta mas também cheia de pri
vações; ora, os habitantes locais espantavam-se com o luxo extraor
dinário em que vivia o príncipe.
Agora, à meia-noite, numa grande sala de estar, em que um tapete
cobria todo o chão e os pesados reposteiros estavam corridos, os do
nos da casa e os convidados abancavam à mesa de jogo, iluminada
por quatro velas. Um dos jogadores era o próprio coronel Vorontsov,
de cara comprida e cabelo loiro, com os monogramas e as agulhetas
de ajudante-de-campo da corte na farda; o seu parceiro era um licen
ciado da Universidade de Petersburgo, jovem de cabelo desgrenhado
e ar sombrio, contratado havia pouco tempo pela princesa como pre
ceptor do pequeno rapazinho, filho do seu primeiro casamento. Os
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- O quê?
- Bebamos champanhe.
- Quanto a isso, estou sempre de acordo - disse Poltorátski.
- Está bem, com muito prazer - disse o ajudante.
- Vassíli, sirva-o - mandou o príncipe.
- Porque te chamaram? - perguntou-lhe Mária Vassílievna.
- Era o oficial de serviço e mais um homem.
- Quem? Porquê? - apressou-se a perguntar Mária Vassílievna.
- Não posso dizer - respondeu Vorontsov, encolhendo os om-
bros.
- Não podes - repetiu Mária Vassílievna. - Bem, veremos.
O champanhe foi trazido. Os convidados beberam e, terminado o
jogo, ajustaram contas e começaram a despedir-se.
- Qual foi a companhia designada para ir amanhã à floresta, a
sua? - perguntou o príncipe a Poltorátski.
- Sim, a minha. Porquê?
- Então vemo-nos amanhã - disse o príncipe com um ligeiro sor-
riso.
- Muito bem - respondeu Poltorátski, quase sem perceber o que
lhe estava a dizer Vorontsov e preocupado apenas com a mão grande
e branca de Mária Vassílievna que ia apertar.
Mária Vassílievna, como sempre, não só apertou com força mas
ainda sacudiu a mão de Poltorátski. E, ao lembrar-lhe mais uma vez
o seu erro de ter jogado ouros, dirigiu-lhe, como pareceu a Poltoráts
ki, um sorriso encantador, carinhoso e significativo.
* * *
* * *
Hadji-Murat 25
Depois das três noites sem sono que passara fugindo dos murides
de Shamil, Hadji-Murat adormeceu logo que Sado, tendo-lhe dado as
boas-noites, saiu da sáklia. Dormia vestido, apoiando a cabeça no co
tovelo afundado nas almofadas vermelhas de penugem que o dono da
casa lhe pusera. Perto dele, junto à parede, dormia Eldar, deitado de
costas, com os membros fortes e jovens muito abertos e com o peito
proeminente, com os gazires pretos da tcherkeska branca, mais altea
do do que a cabeça rapada de fresco, azulada, reclinada para trás e
caída da almofada. O seu lábio superior, alongado de forma infantil,
com uma penugem a cobri-lo ligeiramente, apertava-se e descon
traía-se, como que a bebericar. Dormia como Hadji-Murat: sem se
despir, com uma pistola à cintura e um punhal. Na lareira da sáklia,
as brasas estavam a extinguir-se, na abertura do fogão uma candeia
lançava a sua luz fraca.
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- Nem adivinha?
- Não.
- Hadji-Murat chegou e vem ao nosso encontro.
- Não me diga!
- Ontem veio ter comigo um homem dele - disse Vorontsov,
contendo a custo um sorriso de contentamento. - Já deve estar à mi
nha espera na clareira de Chalin; então coloque os atiradores daqui
até à clareira e junte-se a mim.
- Sim, meu coronel - disse Poltorátski, levando a mão ao gorro,
e foi ter com a sua companhia. Levou a linha para o lado direito, dan
do ordem ao vagomestre para que fizesse o mesmo do lado esquerdo.
O ferido, entretanto, estava a ser levado por quatro soldados para a
fortaleza.
Poltorátski ia já reunir-se a Vorontsov quando, na sua retaguarda,
se aproximavam uns cavaleiros. Poltorátski parou, à espera.
À frente de todos, montado num cavalo de crina branca, vinha um
homem de ar imponente, de tcherkeska branca, turbante por cima do
gorro e armas guarnecidas de ouro. Era Hadji-Murat. Chegou ao pé
de Poltorátski e pronunciou qualquer coisa em tártaro. Poltorátski le
vantou o sobrolho e abriu os braços em sinal de não compreender, e
sorriu. Hadji-Murat devolveu-lhe o sorriso, um sorriso que impres
sionou Poltorátski pela sua bonomia infantil. Não esperava que o ter
rível montanhês fosse assim. Esperava ver uma pessoa sombria, seca,
alheia, mas à sua frente estava um homem muito simples, com um
sorriso tão bondoso que não parecia um estranho mas sim um amigo
de longa data. Nele, apenas uma coisa era invulgar: os seus olhos
muito afastados que fitavam os olhos dos outros com uma atenção
calma e penetrante.
A comitiva de Hadji-Murat consistia em quatro homens. Um
era aquele Khan-Magoma que, de noite, fora falar com Vorontsov.
Era um homem de olhos negros e brilhantes, e de cara redonda e
corada, irradiando a alegria de viver. Havia mais um, atarracado,
peludo, com sobrancelhas unidas. Era o ávaro Khanefi, que geria
todos os bens de Hadji-Murat. Trazia consigo um cavalo de reser
va, com alforges muito cheios no dorso. Mas dois homens desta
cavam-se sobremaneira na comitiva: um jovem, com uma barbi
cha ruça muito recente, cintura fina como a de uma mulher e
ombros largos, um bonitão de olhos de carneiro - era Eldar; e o
outro, zarolho, sem sobrancelhas nem pestanas, com uma barbi-
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* * *
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das. O velho dava golpes fortes com o malho pesado, quebrando a pa
lha, a rapariga batia por cima, a nora virava.
A lua desapareceu, começava a amanhecer; já estavam a acabar
quando Akim, o filho mais velho, de peliça curta e gorro, se aproxi
mou dos trabalhadores.
- Porque andas tu a mandriar? - gritou-lhe o pai, interrompendo
o trabalho e apoiando-se no malho.
- É preciso tratar dos cavalos.
- Tratar dos cavalos - arremedou o pai. - A velha pode tratar
deles. Pega no malho. Ganhaste gordura a mais. Seu bêbedo.
- Pagaste-me a bebida ou quê? - resmungou o filho.
- O quê? - perguntou o velho, carregando com ameaça o sobro-
lho e deixando passar um golpe.
O filho pegou silenciosamente no malho e a malhada, agora a qua
tro, recomeçou: trap, ta-pa-tap, trap, ta-pa-tap... Trap - fazia a quar
ta pancada do malho pesado do velho.
- Olha para a tua nuca, é mesmo como a de um senhor. Eu é que
tenho as calças a cair - disse o velho, perdendo a sua vez de bater e,
apenas para não perder o ritmo, virando no ar o mangual.
Acabaram, e as mulheres começaram a afastar a palha com os an
cinhos.
- O Petrukha foi tão parvo que se alistou por ti. A ti, lá na tropa,
metiam-te na linha, e ele, cá em casa, valia cinco iguais a ti.
- Deixe lá isso, paizinho - disse a nora, atirando para o lado os
atilhos partidos.
- Pois é, dou de comer a seis bocas, mas não vejo ninguém a
trabalhar. O Petrukha trabucava por dois, lembro-me bem, não era
como...
Pela vereda que levava do quintal à eira vinha a velha, com as al
pargatas novas, por cima das grevas de lã bem apertadas, a rangerem
por cima da neve batida. Os mujiques estavam a juntar o cereal, as
mulheres a varrê-lo.
- Veio cá a casa o regedor. Toda a gente vai levar os tijolos para
o senhor - disse a velha. - Pus o dejejum na mesa. Vindes ou quê?
- Está bem. Atrelas o Ruço e podes ir - disse o velho a Akim. -
Mas vê lá, que não seja como da última vez, não quero responder pe
las tuas asneiras. Se fosse o Petrukha...
- Quando Petrukha estava em casa, o pai ralhava com ele - refi
lou Akim - , agora, em vez dele, é a mim que mói o juízo.
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ra lhe tirar armas , estava ainda vivo . Olhou para mim. Disse: «Ma
taste-me . Estou contente . Mas és muçulmano , és jovem e forte , ade
re ao hazavat. É a vontade de Deus .»
- Então, aderiste?
- Não aderi , mas comecei a pensar - respondeu Hadji-Murat. E
continuou a sua história:
- Quando Gamzat chegou às portas de Khunzakh , mandámos-lhe
os nossos anciãos para lhe dizerem que estávamos de acordo , que ía
mos aderir ao hazavat, só que nos devia mandar um sábio para expli
car como é que se cumpria o hazavat. Gamzat, então , deu ordem pa
ra raparem os bigodes aos velhos , para lhes furarem as narinas , para
lhes pendurarem rodelas nos narizes e os mandarem para trás . Os an
ciãos disseram que Gamzat estava pronto a enviar um xeque que nos
ensinaria o hazavat, mas sob a condição de que a mãe dos Cãos lhe
mandasse o seu filho mais novo como amanat33 . A mãe acreditou e
deixou que o seu filho Cão Bulatch fosse ter com Gamzat. Este rece
beu bem o Cão Bulatch e enviou-nos um mensageiro a convidar para
sua casa também os irmãos mais velhos, dizendo que queria servir os
Cãos como o seu pai tinha servido o pai deles . A mãe dos Cãos era
uma mulher fraca, estúpida e atrevida, como todas as mulheres que
vivem de acordo com a sua vontade . Teve medo de mandar ambos os
filhos e mandou só o Cão Umma. Fui com ele . Faltava-nos uma vers
tá de caminho quando os murides vieram ao nosso encontro , cantan
do, dançando e galopando à nossa volta. Quando chegámos , Gamzat
saiu da tenda, aproximou-se do estribo do Cão Umma e recebeu-o
com honras de Cão . Disse: «Não fiz nenhum mal à vossa casa nem
quero fazê-lo . Peço apenas que não me mateis e não me impeçais de
converter as pessoas ao hazavat. E vou servir-vos com todo o meu
exército , como o meu pai servia o vosso . Deixai-me viver em vossa
casa. Vou ajudar-vos com os meus conselhos , e fazei o que desejar
des .» O Cão Umma era inepto na fala. Não sabia o que dizer e cala
va-se . Então eu disse que , se fosse assim, que Gamzat fosse para
Khunzakh; o Cão e a sua mãe iriam recebê-lo com todas as honras .
Porém, não me deixaram dizer tudo porque dei de caras , pela primei
ra vez, com o Shamil . Estava ali , ao lado do imã.
«Não é a ti que perguntam, mas ao Cão» - disse-me ele .
Calei-me e Gamzat levou o Cão Umma para a tenda. Depois , Gam
zat chamou-me e deu-me ordem para ir com os seus emissários a
Khunzakh. Fui . Os emissários começaram a convencer a mãe para
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sem e te levassem à minha presença, mas fugiste; não sei se foi pior
ou melhor, porque não sei se tens culpa ou não . Agora ouve . Se a tua
consciência estiver limpa perante o grande czar, se não tiveres qual
quer culpa, vem ter comigo . Não temas ninguém, sou teu protector. O
Cão não te vai fazer mal , é meu subordinado . Por isso , não tens nada
que temer.»
A seguir, Klugenau escrevia que tinha cumprido sempre a sua pa
lavra e era um homem justo, tentando ainda persuadir Hadji-Murat a
comparecer.
Quando Loris-Mélikov acabou de ler a primeira carta, Hadji-Murat
tirou a outra, mas , antes de a entregar a Loris-Mélikov, contou como
havia respondido àquela primeira carta.
- Escrevi-lhe que, de facto , usava o turbante, mas que não era pa
ra Shamil e sim para a salvação da minha alma; que não queria nem
podia passar para o lado de Shamil , porque por ordem deste foram
mortos o meu pai , o meu irmão e os meus parentes , mas que também
não podia voltar para os russos porque fui desonrado por eles . Em
Khunzakh, quando eu estava atado , um canalha urinou-me em cima.
E não podia ir ter com os russos enquanto esse homem fosse vivo .
Mas que , sobretudo , tinha medo do mentiroso Cão Akhmet. Então , o
general mandou-me esta carta aqui - disse Hadji-Murat, estendendo
a Loris-Mélikov o outro papel amarelado .
«Respondeste à minha carta, obrigado - leu Loris-Mélikov. -
Escreves que não tens medo de voltar, mas que a injúria que te fez um
guiaúr36 não to permite; mas asseguro-te que a lei russa é justa e vais
ver com os teus próprios olhos a punição daquele que se atreveu a in
sultar-te . Já mandei que o investigassem. Ouve , Hadji-Murat. Tenho
direito de estar descontente contigo , porque não acreditas em mim
nem na minha honra, mas perdoo-te porque conheço o carácter des
confiado de todos os montanheses . Se a tua consciência estiver lim
pa, se usavas o turbante apenas para a salvação da tua alma, então
tens razão e podes olhar-me sem medo nos olhos e nos olhos do go
verno russo; quanto ao homem que te desonrou , vai ser castigado ,
acredita nisso, os teus bens ser-te-ão devolvidos, e verás e saberás o
que significa a lei russa. Ainda por cima, os russos vêem tudo de ou
tro ponto de vista: na opinião deles , não te cobriste de opróbrio por
que um canalha qualquer te injuriou . Eu próprio dei licença ao povo
de Guirnrin para que os homens usassem os turbantes e olho para as
suas acções com compreensão; portanto , repito , não tens nada a te-
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mer. Acompanha o homem que te envio e vem; é-me fiel e não é es
cravo dos teus inimigos, mas é amigo do homem a quem o governo
russo concede favores especiais .»
A seguir, Klugenau voltava a tentar convencer Hadji-Murat a ir ter
com ele.
- Não acreditei nele - disse Hadji-Murat quando Loris-Mélikov
acabou de ler a carta - e não fui ter com Klugenau . Para mim, o prin
cipal era vingar-me do Cão Akhmet, o que não podia fazer através dos
russos . Nesse mesmo tempo , o Cão Akhmet cercou Tselmes e quis
capturar-me ou matar-me . Eu tinha poucos homens e não estava ca
paz de lhe fazer frente . E foi então que chegou a minha casa um emis
sário com uma carta de Shamil . Este prometia-me ajuda contra o Cão
Akhmet e que me ajudava a matá-lo , e dava-me toda a Avária para go
vernar. Pensei muito no assunto e acabei por me passar para o lado de
Shamil . Desde então , lutei contra os russos sem parar.
A seguir, Hadji-Murat centrou a narrativa em todas as suas campa
nhas militares . Eram muitas e Loris-Mélikov conhecia uma parte de
las . Todas as suas campanhas e incursões , sempre coroadas de êxito ,
eram impressionantes pela extraordinária rapidez das deslocações e
pela ousadia dos ataques .
- Nunca existiu qualquer amizade entre mim e Shamil - acabou
a sua história Hadji-Murat - , mas ele tinha medo de mim e precisa
va de mim. Mas aconteceu que me perguntaram quem devia ser o imã
depois de Shamil . Eu disse que seria imã aquele que tivesse o sabre
afiado . Transmitiram-no a Shamil e ele quis livrar-se de mim. Man
dou-me a Tabassaran . Fui lá, arrebatei mil carneiros e trezentos cava
los . Mas Shamil disse que eu não fizera o que devia fazer, tirou-me o
cargo de naíb e ordenou que lhe mandasse todo o dinheiro . Enviei-lhe
mil moedas de ouro . Mandou então os seus murides e apossou-se de
todos os meus bens . Exigia que eu me apresentasse diante dele; eu sa
bia que Shamil queria matar-me e não fui . Destacou então homens
seus para me prenderem. Rechacei-os e pus-me em comunicação com
Vorontsov. Só que não consegui levar comigo a minha farru1ia. A mi
nha mãe , a minha mulher e o meu filho estão nas mãos dele . Diz ao
sardar: enquanto a minha farru1ia estiver lá, não posso fazer nada.
- Sim, digo - respondeu Loria-Mélikov.
- Intercede por mim, faz um esforço. O que é meu é teu , só que
fala por mim junto ao príncipe . Tenho as mãos atadas e a ponta da
corda está nas mãos de Shamil .
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- Nome? - perguntou .
- Polossátov, Vossa Majestade .
- Bom rapaz !
O estudante continuava a fazer a continência. Nicolau parou .
- Queres servir no exército?
- Não , Vossa Majestade !
- Imbecil ! - E Nicolau virou-lhe as costas e seguiu , pronuncian-
do em voz alta as palavras que lhe passavam espontaneamente pela
cabeça. «Koperwein , Koperwein» - repetiu várias vezes o nome da
rapariga mascarada. «Está mal , está mal .» Não pensava no que dizia,
mas abafava assim o seu sentimento , concentrando a atenção nas pa
lavras pronunciadas . «Pois é, o que seria a Rússia sem mim? - dis
se para si próprio, ao sentir que o desgosto voltava a dominá-lo . -
Sim, o que seria sem mim não só a Rússia, mas toda a Europa?» Lem
brou-se do seu cunhado , rei da Prússia, homem fraco e estúpido , e
abanou a cabeça.
Quando voltou , viu , à porta do palácio , o coche de Elena Pávlovna
que , acompanhada pelo lacaio vermelho , estava a chegar à entrada
Saltikóvski . Elena Pávlovna era, para ele , uma personificação daque
las pessoas fúteis que se davam a liberdade de raciocinar não só so
bre as ciências e a poesia, mas também sobre a governação , imagi
nando que podiam governar-se a si próprias melhor do que ele ,
Nicolau , estava a governá-las . Sabia que , por mais que esmagasse es
sas pessoas , elas reapareciam sempre . E recordou o seu irmão Mi
khail , falecido há pouco . Inundou-o um sentimento de tristeza e des
gosto . Carregou o sobrolho e, sombrio , voltou a sussurrar palavras
que lhe ocorriam espontaneamente . Deixou de sussurrar apenas quan
do entrou no palácio . Foi para o seu quarto , alisou perante o espelho
as suíças , o cabelo nas têmporas e o chinó no cocuruto , torceu o bi
gode e passou directamente para o gabinete onde recebia os relató
nos .
O primeiro a quem recebeu foi Tchernichov. Este compreendeu de
imediato , pela cara e sobretudo pelos olhos de Nicolau , que o impe
rador estava mal-humorado e, como sabia da sua aventura da véspe
ra, percebeu porquê . Depois de o cumprimentar com frieza e de o
convidar a sentar-se , Nicolau pousou nele os seus olhos sem vida.
O primeiro assunto do relatório de Tchernichov era o caso do fur
to por parte dos funcionários da intendência; a seguir, o problema da
deslocação das tropas na fronteira prussiana; depois , as nomeações de
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isso seria feio em relação ao seu camarada bom e ingénuo , por isso
mantinha com Mária Dmítrievna o mais simples e respeitoso trato ,
pelo que estava contente consigo próprio . Nesse momento, reflectia
nisso .
As suas reflexões foram interrorppidas por um célere bater de mui
tos cascos pelo caminho à frente dele , como se de uma cavalgada de
várias montadas se tratasse . Levantou a cabeça e viu ao fundo da rua
um grupo de cavaleiros que se aproximavam a passo . À cabeça de
duas dezenas de cossacos vinham dois homens: um, de tcherkeska
branca e gorro alto com turbante; outro , um oficial russo , moreno ,
com nariz adunco , de tcherkeska azul e grande abundância de prata
no trajo e nas armas . O cavaleiro de turbante montava um belo cava
lo palomino de cabeça pequena e olhos bonitos; o oficial montava um
cavalo de Karabakh , alto e aperaltado . Butler, aficionado pelos cava
los , logo à primeira vista deu um grande valor à força enérgica do
primeiro cavalo e parou para perguntar quem eram aqueles homens .
O oficial dirigiu-se a Butler.
- É casa chefe militar? - perguntou , revelando com a fala incor
recta e o sotaque a sua origem não russa, e apontou com o azorrague
para a casa de Ivan Matvéevitch .
- É - disse Butler. - Mas quem é este? - perguntou , acercan
do-se do oficial e indicando-lhe com os olhos o homem de turbante .
- É Hadji-Murat. Veio , viver convidado chefe militar - disse o
oficial .
Butler estava a par de Hadji-Murat e de que se juntara aos russos ,
mas nunca esperava vê-lo ali , naquela pequena fortaleza.
Hadji-Murat olhava para ele amigavelmente .
- Bom-dia, kochkildi - saudou-o Butler, acrescentando o cum
primento em tártaro que aprendera.
- Saubul - respondeu Hadji-Murat, acenando com a cabeça.
Aproximou-se de Butler e estendeu-lhe a mão , com o azorrague pen
durado em dois dedos .
- Chefe? - perguntou .
- Não , o chefe está ali , vem chamá-lo - disse Butler, dirigindo-
se ao oficial . Subiu a escada e empurrou a porta.
Mas a porta principal , como lhe chamava Mária Dmítrievna, esta
va fechada. Butler bateu , mas não recebeu resposta e foi até a porta
traseira. Chamou o seu impedido , mas este não respondeu , e Butler,
depois de ter procurado inutilmente ambos os impedidos , foi à cozi-
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- lakchi , bek iakchi42 . Que fique aqui . Diz-lhe que tenho ordens
para não o deixar sair. E as ordens são sagradas . Hospedamo-lo . . . co
mo achas , Butler? Hospedamo-lo no escritório?
Butler não teve tempo de responder porque Mária Dmítrievna, que
viera da cozinha e estava parada à porta, disse a Ivan Matvéevitch:
- Para quê no escritório? Aloje-o aqui . Damos- lhe a sala dos ku
nakes mais a despensa. Pelo menos , estará sempre à vista - disse
ela e, ao cruzar os olhos com Hadji-Murat, virou-se dele apressada
mente .
- Acho que Mária Dmítrievna tem razão - apoiou-a Butler.
- Vai , vai daqui , as mulheres não são para aqui chamadas - dis-
se Ivan Matvéevitch , carregando o sobrolho .
Durante toda essa conversa, Hadji-Murat manteve-se sentado , com
a mão metida por trás do cabo do punhal , com um ligeiro sorriso des
denhoso . Disse que lhe era indiferente onde ia viver. Precisava ape
nas - e tinha para isso a autorização do sardar - de manter a co
municação com os montanheses , pelo que desejava que os deixassem
visitá-lo . Ivan Matvéevitch disse que sim e pediu a Butler que ficas
se a falar com os convidados , enquanto lhes iam preparar uma refei
ção e os quartos , e enquanto ele próprio ia ao escritório para redigir
os papéis necessários e dar as respectivas ordens .
A atitude de Hadji-Murat para com os seus novos conhecidos defi
niu-se de imediato e com muita clareza. Por Ivan Matvéevitch sentiu
desde o princípio repugnância e desprezo , e viria tratá-lo sempre alti
vamente . Mária Dmítrievna, que cozinhava para ele e lhe servia as re
feições , agradou-lhe muito . Gostou da sua simplicidade e da sua be
leza peculiar de mulher proveniente de etnia estranha; além disso , a
simpatia que Mária Dmítrievna sentia por ele transmitia-se-lhe in
conscientemente . Hadji-Murat evitava olhar e falar com ela, mas os
seus olhos , sem querer, seguiam-lhe todos os movimentos .
No que respeita a Butler e Hadji-Murat, os dois homens ficaram
amigos desde o primeiro encontro e o montanhês falava-lhe com mui
to ânimo e durante muito tempo , fazendo-lhe perguntas sobre a vida
dele e contando-lhe a sua própria, pondo-o também ao corrente das
notícias sobre a situação da sua farm1ia, trazidas pelos mensageiros , e
chegando a pedir-lhe conselhos .
As notícias que lhe traziam os mensageiros não eram boas . Duran
te os primeiros quatro dias que Hadji-Murat passou na fortaleza, apa
receram duas vezes e em ambas as notícias eram péssimas .
Hadji-Murat 91
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* * *
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ções . Parecia que toda a gente estava a festejar. Butler, numa disposi
ção feliz e enternecida, foi à tenda de Poltorátski . Estavam lá reuni
dos alguns oficiais que prepararam a mesa do jogo e o ajudante-de
-campo abriu a banca de cem rublos . Por duas vezes Butler saiu da
tenda, apertando com a mão o seu porta-moedas dentro do bolso das
calças , mas finalmente não aguentou e , apesar da palavra de honra da
da a si próprio e aos seus irmãos , juntou-se ao jogo .
Menos de uma hora depois , Butler, vermelho como uma papoila,
suado , sujo de giz , estava sentado , com os cotovelos espetados na me
sa, a escrever debaixo das cartas dobradas os números das suas para
das . Perdera tanto que já tinha medo de contar. Mesmo sem contar,
sabia que , se entregasse todo o seu vencimento , que podia pedir
adiantado , mais o preço do seu cavalo , não ia pagar tudo o que apon
tara aquele ajudante-de-campo que ele não conhecia. Teria jogado
mais , mas o ajudante , com uma cara severa, pôs na mesa as cartas ,
com as suas mãos brancas e limpas , e começou a contar a coluna de
números de Butler, escritos a giz . Butler, envergonhado , pediu des
culpa por não poder pagar nesse momento tudo o que perdera, disse
que ia mandar dinheiro de casa e, quando o disse, viu que todos fica
ram com pena dele e que todos , inclusive Poltorátski , evitavam o seu
olhar. Era a sua última noite no acampamento . Bastava-lhe , em vez
de jogar, ir a casa de Vorontsov, para onde fora convidado , e tudo se
ria óptimo - pensava. Mas agora não era óptimo , era horrível .
Butler despediu-se dos camaradas e dos conhecidos e foi para ca
sa. Mal chegou , deitou-se imediatamente e dormiu dezoito horas se
guidas , como se dorme normalmente depois de um jogo em que se
perde . Mária Dmítrievna, quando ele lhe pediu cinquenta copeques
emprestados , para dar uma gorjeta ao cossaco que o acompanhara, e
também pelo ar triste e pelas respostas curtas que lhe dava, percebeu
o que tinha acontecido e ralhou com Ivan Matvéevitch , acusando-o de
o ter deixado ir.
No dia seguinte , portanto , já passava das onze quando Butler acor
dou e, ao lembrar-se da sua situação , desejou mergulhar de novo no
esquecimento donde acabara de sair, mas não podia ser. Tinha de to
mar medidas para pagar quatrocentos e setenta rublos que ficara a de
ver a um estranho . Uma dessas medidas consistia em escrever uma
carta ao irmão , confessando o seu pecado e suplicando que, pela últi
ma vez , lhe mandasse quinhentos rublos por conta do moinho que era
ainda propriedade comum de ambos . Depois escreveu a uma parente
Hadji-Murat 105
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para atacar Shamil . Porém, ficou claro que a fuga da sua fanu1ia, que
julgara fácil de organizar, era no entanto um problema complicado .
Shamil levara-lhe a fanu1ia e , mantendo-a prisioneira, prometia dis
tribuir as mulheres pelos aúles e matar, ou cegar, o seu filho . Agora,
Hadji-Murat partia para Nukha com o propósito de tentar, com ajuda
dos seus sequazes no Daguestão , mediante uma artimanha ou à força,
arrancar a sua família das garras de Shamil . O último mensageiro que
o visitou em Nukha comunicou-lhe que os ávaros que lhe eram abne
gados haviam planeado resgatar-lhe a fanu1ia e levá-la para junto dos
russos , mas que havia pouca gente disposta a participar nisso e com
coragem para o fazer em Vedeno , lugar do cativeiro da fanu1ia; ape
nas seria possível executar o plano se a fanu1ia fosse levada para ou
tro sítio - então sim, prometiam levar a cabo o resgate pelo cami
nho . Hadji-Murat mandou que dissessem aos seus amigos que pagaria
três mil rublos pela salvação dos seus familiares .
Em Nukha, alojaram Hadji-Murat numa pequena casa, de cinco sa
las , perto da mesquita e do palácio do Cão . Na mesma casa viviam os
oficiais russos , o intérprete e os seus nukeres . A vida de Hadji-Murat
decorria entre a espera e a recepção dos mensageiros dos montes; da
va ainda passeios a cavalo - que lhe tinham autorizado - pelos ar
redores de Nukha.
Quando , no dia 8 de Abril , Hadji-Murat regressou do seu passeio ,
soube que viera um funcionário de Tiflis . Apesar do seu grande dese
jo de saber o que lhe trouxera o funcionário , antes de se dirigir à sala
onde o esperavam o chefe da polícia e o tal funcionário , Hadji-Murat
entrou no seu quarto e rezou a oração do meio-dia. Quando acabou de
rezar, entrou no recinto que servia de sala de estar e de sala de espe
ra. Um senhor gorducho , o conselheiro de Estado Kin1lov, o tal fun
cionário vindo de Tiflis , transmitiu a Hadji-Murat o desejo de Vo
rontsov o ver em Tiflis antes do dia doze , para um encontro com o
senhor Argutínski .
- lakchi - disse Hadji-Murat com irritação .
Não gostou do funcionário Kin1lov.
- Trouxeste o dinheiro?
- Trouxe - respondeu Kin1lov.
- De duas semanas - disse Hadji-Murat e mostrou dez dedos e
mais quatro . - Dá cá.
- Um momento - disse o funcionário , tirando a carteira do seu
saco de viagem. - Para que quer ele o dinheiro? - perguntou ao po-
Hadji-Murat 107
23
tia a sua luz pela janela. A mesa e duas cadeiras estavam afastadas de
encontro às paredes e todos os quatro nukeres se deitavam no chão ,
em cima dos tapetes e das burkas . Khanefi dormia no quintal , com os
cavalos . Gamzalo , ao ouvir a porta a ranger, levantou-se , viu Hadji
-Murat, voltou a deitar-se . Mas Eldar, que dormia ao lado dele , pôs
se em pé de um salto e começou a vestir o bechmet, à espera das or
dens . Kurban e Khan-Magoma não acordaram. Hadji-Murat colocou
o seu bechmet em cima da mesa, e qualquer coisa dura bateu contra
a tampa. Eram as moedas de ouro guardadas dentro do forro .
- Guarda também estas - disse Hadji-Murat, entregando a Eldar
o ouro recebido nesse dia.
Eldar pegou nas moedas e , sem demora, foi até um lugar alumia
do , tirou uma faca que tinha por trás do punhal , no cinto , e começou
a descoser o forro do bechmet. Gamzalo soergueu-se e sentou-se com
as pernas cruzadas .
- E tu , Gamzalo , manda aos rapazes verificar as espingardas e as
pistolas , que preparem os cartuchos . Amanhã vamos para longe -
disse Hadji-Murat.
- Temos pólvora, temos balas . Já vai estar tudo pronto - disse
Gamzalo e rugiu mais qualquer coisa incompreensível . Gamzalo per
cebera a finalidade com que Hadji-Murat mandara carregar as espin
gardas . Desde o início , e cada vez mais , Gamzalo desejava uma úni
ca coisa: matar, esfaquear os cães russos , tantos quantos fosse
possível , e fugir para os montes . Agora via que Hadji-Murat desejava
a mesma coisa e estava contente .
Quando Hadji-Murat saiu , Gamzalo acordou os seus companheiros
e todos os quatro passaram a noite a examinar as espingardas , as pis
tolas , a pólvora, as pedemeiras , mudando as estragadas , pondo pól
vora fresca nos fuzis , tapando com balas envoltas em trapos impreg
nados de óleo os khozires cheios de pólvora, afiando os sabres e os
punhais , untando as lâminas com gordura.
Antes do amanhecer, Hadji-Murat saiu de novo para o átrio , indo
buscar água para as abluções . O canto em que se desfaziam os rouxi
nóis recebendo a aurora era ainda mais alto e nítido . No quarto dos
nukeres soava o assobio regular do aço do punhal amolado na pedra.
Hadji-Murat tirou água da selha e já se aproximava da sua porta quan
do ouviu , no quarto dos murides , além do som da amolação , a voz fi
na de Khanefi a cantar uma canção que Hadji-Murat conhecia bem.
Parou e escutou .
1 10 Lev Tolstói
mal à sua mãe e à sua avó . Mesmo assim, montou a cavalo e acom
panhou o pai até ao riacho . Depois voltou para casa e desde então
Hadji-Murat nunca mais viu a mulher nem a mãe , nem o filho .
Era aquele o seu filho que Shamil queria cegar ! Quanto à mulher,
nem queria pensar no que lhe fariam.
Estes pensamentos emocionaram-no de tal maneira que não conse
guia continuar sentado . Saltou do lugar e, coxeando , foi rapidamente
até à porta, abriu-a e chamou Eldar. O sol ainda não tinha nascido ,
mas já havia muita luz. Os rouxinóis não se calavam.
- Vai dizer ao chefe da polícia que desejo ir passear e selai os ca
valos - disse ele .
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***
ram-nos pastar e comeram pão e queijo que tinham levado . A lua no
va escondeu-se por trás dos montes e a noite ficou escura. Em Nu
kha havia muitos rouxinóis . Naqueles arbustos também havia dois .
Enquanto Hadji-Murat e os seus homens faziam barulho , entrando
nos arbustos , os rouxinóis calaram-se . Mas quando os homens se si
lenciaram , os pássaros voltaram a chilrear, respondendo uns aos ou
tros. Hadji-Murat, atento aos sons da noite , ouvia-os involuntaria
mente .
E o canto dos rouxinóis lembrou-lhe aquela canção sobre Gamzat
que ouvira na noite em que fora buscar água. A qualquer momento
podia cair na situação de Gamzat. Pensou que ia ser precisamente as
sim e ficou sério . Estendeu a burka e fez o namázi . Mal acabou , ou
viu que se aproximava gente dos arbustos . Eram os sons de muitas
patas de cavalos a chapinharem na lama. O Khan-Magoma de olhos
penetrantes saiu para um lado da mata e enxergou no escuro as som
bras negras de cavaleiros e peões que vinham na direcção dos arbus
tos . Khanefi viu a mesma multidão d.;> outro lado . Era Kargánov, co
mandante das tropas do distrito , com os seus milicianos .
«Então , vamos combater como Gamzat» - pensou Hadji-Murat.
Depois de ter sido dado o sinal de alarme , Kargánov, com uma cen
tena de cossacos e milicianos , precipitara-se em perseguição de Had
ji-Murat, mas não havia encontrado sequer as pegadas dele . Kargánov
já se preparava para regressar a casa, desesperado , quando ao fim da
tarde encontrou pelo caminho um velho tártaro . Tinha-lhe pergunta
do se vira seis homens a cavalo . O velho respondeu que sim. Tinha
visto seis cavaleiros a darem voltas pelo campo de arroz e a entrarem
na mata onde costumava ir apanhar chamiço . Levando consigo o ve
lho , Kargánov virara para trás e, quando viu os cavalos com peias e
percebeu que Hadji-Murat estava ali , cercou os arbustos e esperou pe
lo amanhecer para apanhar Hadji-Murat vivo ou morto .
Quando percebeu que estava cercado, Hadji-Murat encontrou no
meio dos arbustos um velho rego , bem fundo , e decidiu meter-se lá e
resistir até lhe acabarem os cartuchos e as forças . Disse-o aos seus
companheiros e mandou fazer um abatis à volta do rego . De imedia
to , os nukeres começaram a cortar ramos , a cavar a terra com os pu
nhais , a construir um aterro . Hadji-Murat trabalhava com eles .
Mal começou a amanhecer, o comandante da centúria dos milicia
nos aproximou-se da mata e gritou:
- Eh, Nadji-Murat ! Entrega-te ! Somos muitos e vós sois poucos !
Hadji-Murat 121
tanto , o seu corpo forte continuava a agir. Juntou as últimas forças , le
vantou-se do aterro , disparou a pistola contra um homem que se acer
cava dele e atingiu-o . Depois saiu por completo do buraco e lançou
-se em frente , com o punhal na mão , coxeando pesadamente , ao
encontro dos inimigos . Soaram vários tiros , ele cambaleou e caiu . Vá
rios milicianos precipitaram-se , com guinchos rejubilantes , para o
corpo caído . Porém, o que lhes parecia um corpo morto de repente
mexeu-se . Primeiro levantou a cabeça rapada ensanguentada, sem
gorro , depois soergueu o tronco e , agarrando-se a uma árvore , pôs-se
completamente de pé . Parecia tão pavoroso que os atacantes pararam .
Ele , porém, estremeceu de repente , afastou-se da árvore e , como um
cardo cortado , caiu sobre a cara e não se mexeu mais .
Não se mexia, mas ainda sentia. Quando Agá Gadji, o primeiro a
acorrer, lhe bateu com um grande punhal na cabeça, pareceu a Hadji
-Murat que lhe estavam a dar marteladas no crânio , e não percebia
quem o estava a fazer nem porquê . Foi a sua derradeira consciência
da ligação com o seu corpo . Não sentia mais nada e os inimigos es
pezinhavam e cortavam um objecto que já não tinha nada a ver com
ele . Agá Gadji pisou-lhe as costas , decepou-lhe a cabeça com dois
golpes e , com cuidado , para não sujar os tchuviakes com o sangue , ro
lou-a para o lado a pontapé . Inundando as ervas , o sangue vermelho
jorrou das artérias do pescoço e o sangue negro da cabeça.
Kargánov, Agá Gadji, o Cão Akhmet e todos os milicianos , como
caçadores ao pé de um animal abatido , juntaram-se sobre os corpos
de Hadji-Murat e dos seus homens (Khanefi , Kurban e Gamzalo fo
ram amarrados) e, parados no meio dos arbustos envoltos no fumo da
pólvora, conversavam alegremente , rejubilando com a vitória.
Os rouxinóis que se haviam calado durante o tiroteio voltaram a
chilrear, primeiro um mais próximo , depois outros , no extremo dos
arbustos .
* * *
- A Polónia, disse? [ . . ]
.
- Oh, sim, foi um golpe de mestre de Maetternich ter-nos deixado este dissabor.
40 Tchikhir - vinho tinto caseiro caucasiano que não se deixa fermentar até ao fim.
4 1 Mutalim - aluno de uma escola corânica.
42 Iakchi - está bem; bek iakchi - muito bem.
43 Namázi - oração que os muçulmanos devem fazer cinco vezes ao dia.
44 Bairam - nome turco para as duas festas principais do islamismo, a «Festa do Sa-
crifício» e a «Festa do Açúcar>> .
45 Kunak bulur - vou ser o teu amigo.
46 Adat - costume
47 Ulan - rapaz.
48 Gurda - o expoente máximo de arma no Cáucaso.
49 Tulumbaz - antigo nome russo (proveniente do turco) dos instrumentos de percus
são timbale e tambor.
NOTA
Pré-História
7. História da publicação
Anna Karénina
A Morte de Ivan Iliitch
O Diapo e Outros Contos
NESTA COLECÇÃO