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PENSAR O ESPACO José Jiménez Universidad Auténoma de Madrid, Espanha 1. O espaco é uma abstraccao A primeira vista, o espaco é transparente, invisfvel: vemos as coisas, as pessoas, 0s objectos, mas no o espaco. Perceber o espaco pressupde um processo de abstraccao. Assim surge a geometria, a partir de uma visdo abstracta da natureza e das suas formas. Nesta quest4o, como em tantas outras da nossa tradicao cultural, a concep¢ao do espago é um produto da mente grega. um princfpio adquirido que 0s conhecimentos astronémicos dos Gre- gos nao eram superiores aos das civilizagées orientais vizinhas, em parti- cular a dos Babildnios. E, no entanto, ao desenvolverem uma perspectiva racional, ao lograrem chegar além dum pensamento mitol6gico ou astro- légico, os Gregos fundam a cosmologia € a astronomia, as disciplinas do estudo cientifico do universo. Essa concep¢ao racional do conhecimento, que tem o seu fundamento naquilo a que os Gregos chamavam logos (pensamento-linguagem), impli- ca a substituicdo de um sistema simbélico de representagdes por um siste- ma numérico, matematico e, em ultima insténcia, geométrico. Por exem- plo, enquanto as cosmogonias gregas arcaicas concebiam a Terra fundada ‘em ratzes que descem sem fim, ou colocada no interior de uma grande va- silha, para 0 filésofo milésio Anaximandro (618 / 610-548 /545 a. C.) a Ter- ra é uma coluna truncada que se encontra no seio do cosmos. Comparan- do ambas as representagées, o helenista Jean-Pierre Vernant (1973, p. 187) refere que «Assistimos ao nascimento de um novo espaco, que ndo ¢ j4 0 espaco mitico com as suas raizes ou a sua vasilha, e sim um espaco de ti- po geométrico. Trata-se, em principio, de um espaco definido essencial- mente por critérios de distancia e de posigao, um espago que permite fun- dar a estabilidade da Terra com base na definigéo geométrica do centro nas suas relagdes com a circunferéncia.» Com efeito, foram os gregos da Antiguidade quem, para além das no- Ges miticas de lugar (topos) e de casa, da casa humana (primeiro palacio, RCL (2005) 34: 45-54 46 José Jiménez depois mansao dos heréis, finalmente residéncia familiar do cidadao) ¢ da casa dos deuses (0 templo), cunhou a ideia de espago, destinada a converter-se numa das categorias com maior peso e relevancia do pensa- ‘mento ocidental. ‘A ideia de espaco requer a actividade configuradora, operativa, da mente racional e matematica. Apenas a partir desse principio sao depois possiveis — um depois «cultural», concebido como tradi¢ao antropologi- ca — 08 usos literérios, plasticos ou musicais, isto é, estéticos da mesma. (© conceito surge no processo de constituigao da filosofia-ciéncia na Grécia, e possivelmente pela primeira vez em Pitégoras (570-497 a. C.), 0 que em si mesmo é algo de relevante, dado o papel central que o nuime- ro € as mateméticas tém no pensamento pitagérico. Posteriormente, do- mina a ateng&o de Zendo de Eleia (c. 490-485 a. C.), como é patente nos seus paradoxos légicos sobre o movimento. E adquire, por fim, uma for- mulagdo categorial precisa num dos ultimos, e com o tempo o mais in- fluente, dos didlogos de Platéo — o Timeu —, cuja data provavel de re- dacgao se situa por volta da segunda metade do século Iv a. C. Como se produz a génese do mundo? £ nesse contexto cosmolégico que Plat&o estabelece um uso categorial bem definido do termo espaco [khéral, ao afirmar que «ha ser, espaco e devir, trés realidades diferencia- das, ¢ isto ainda antes de nascer o mundo» (Timex, 52d). O ser corres- ponde, em Plato, as Formas paradigmaticas ou Ideias, que define como «a espécie imutavel, nado gerada e indestrutivel», e também como «invisi- vel e, mais precisamente, nao perceptivel por meio dos sentidos». Pelo contrario, o devir é «perceptivel através dos sentidos: gerado, em cons- tante mutagdo» (Timeu, 52a). Entre os dois pélos extremos — o das Ideias-Formas, que estéo por principio «para além» do mundo, e o do devir, que coincide com o mun- do sensivel — existe também, diz Platao, «um terceiro género eterno, o do espago, que nao admite destruigao, que proporciona um fundamento a tudo o que tem uma origem, apreensivel por um raciocinio hibrido que prescinde da ajuda da percepgao sensivel, dificilmente credivel e, quan- do o olhamos, sonhamos e afirmamos que necessariamente todo o ser es- t4 num lugar e ocupa um determinado espaco, e que aquilo que nao estd num determinado lugar na terra ou no céu no existe» (Timeu, 52b). ‘Aconcepgao platénica do espaco nao sé faz deste uma espécie de «me- diador» entre a imutabilidade essencial do ser e o devir mutavel do mun- do sensfvel, mas também, com o seu cardcter eterno e indestrutivel, «pro- porciona um fundamento a tudo o que possui uma origem», isto é, actua como receptéculo ou reservatério a partir do qual todas as coisas ou seres se situam e tém o seu lugar. Apenas pode apreender-se «por um racioci- nio hibrido», e assim se diferencia das Formas, as quais se chega unica- mente através do «raciocinio verdadeiro», do uso estrito da razao. Mas «sem a ajuda da percepgao sensfvel», o que implica também a sua dife- Pensar 0 espago a7 renga em relagdo ao devir, captado pelos sentidos e nao pela razao. As- sim, em ultima instancia, numa situagao intermédia entre a razdo e os sentidos e, ao mesmo tempo, exterior a ambos 0s planos, o espago é uma ideia tao abstracta que, como 0 préprio Platéo admite, resulta «dificil- }. mente credivel». ale ———E “¥-—Certamente que esta ideia abstracta de espaco apenas pode ser sus- tentada com base numa reflexdo cosmolégica, ¢ tornar-se apreensivel através de um tipo de raciocfnio eminentemente numérico e formal, o das mateméticas e da geometria. Mas, precisamente por carecer de «fi- gura», de forma, o espaco actua categorialmente como 0 marco concep- tual que permite distinguir e delimitar qualquer forma ou figura. E tam- bém como o contexto que nos permite estabelecer distingdes entre 0 va- zio e 0 cheio, estes ultimos aspectos centrais nas reflex6es cosmolégicas gregas anteriores a Plato, particularmente em Parménides e em Dem6- crito. E 6bvio, por outro lado, que a formulagao dessa categoria abstracta se realiza a partir da experiéncia e do impulso propiciados pelas formas de construcao, pela arquitectura. Em todas as sociedades humanas, desde as €pocas mais remotas ou arcaicas, a solugao da habitagao ou do habitat per- manece uma questado central. A nogao de «casa» — destinada ao uso hu- mano ou a diversos usos rituais (sagrado, de poder, etc.) — implica a pas- sagem da utilizaco de um espaco «natural», mais ou menos condiciona- do, a de um espaco «artificial», construfdo segundo as determinagdes ma- teriais do ecossistema e aos fins a que se destina. Ora, 0 que é interessante no caso grego é que as diversas formas de construgao — a casa, o templo e a cidade —, apresentam entre si uma re- lagfo de unidade, de «unidade plastica», que deriva precisamente da existéncia de um sistema organico de estruturagao do espaco: «0 tinico factor comum cuja esséncia ndo é suscept{vel de modificagdo material ou de variagio pratica é o sistema de estruturacao do espaco que esté por trés de todas as manifestagdes da arquitectura na Grécia» (Martienssen, 1956, p. 145). As varidveis construtivas derivam dos requisitos da finali- dade especifica, ao mesmo tempo que encontramos, como constantes, 0 elementos da medicfo e da organizacdo espacial, o que permite perceber a «subtil graduagao do abstracto como elemento constitutive da arquitec- tura da Grécia» (idem, ibidem). Medico e organizagao, ou medida e ordem, so precisamente duas das categorias estéticas centrais nao s6 na cultura grega mas também no mun- do romano e helenistico. Contudo elas, em si mesmas, s6 aparecem no proceso construtivo como procedimentos de materializacdo de um pres- suposto abstracto que actua como substrato ou fundamento. Dito de ou- tra forma, a medida e a ordem sfo as vias que tornam vistvel 0 espaco, de modo a delimit4-lo num uso humano concreto. 48 José Jiménez 2. O espaco plastico A concepgio grega do espago como uma entidade abstracta nao s6 per- mite uma fundamentagao matemitica, geométrica, das teorias do univer- so, como também confere unidade as formas plasticas de representagao. Nao apenas a arquitectura: a estatudria e a pintura participam também dessa colocagéo num plano abstracto de experiéncia que torna possivel a sua autonomia e o seu desenvolvimento. Mas hé uma grande diferenga entre a versao geométrica e cosmolégica do espago e a stia versdo plastica: o espaco plastico concebe-se como uma imagem do espago césmico e geométrico, que pressupde, mas situando-se numa ordem mental e de existéncia distinta. A versao plastica (e literaria e musical) do espaco no mundo grego antigo estabelece-se segundo os principios da representacdo sensfvel, como mais um dos aspectos da mi- mesis: essa capacidade ou destreza de produgao de imagens que, com o tem- po, se tornard central na nossa ideia de arte. O artista — 0 escultor, o pintor e, de alguma forma, 0 arquitecto —, in- troduz um corte, uma fissura, no substrato abstracto que concebemos co- mo receptaculo de todas as formas e coisas, tornando-o assim visfvel: quando Ihe da um suporte sensfvel, quando delimita a sua forma, a obra de arte converte-se numa espécie de eco, de materializagao dessa ideia abstracta que nos permite pensar cientificamente o desenvolvimento. do cosmos. ‘A ordem classica da representagao — que na Grécia e no mundo anti- go em geral apresentava j4 como um dos seus objectives centrais atingir a ilusdo figurativa — acabaria por estruturar-se no quattrocento gracas a0 aperfeicoamento da perspectiva geométrica como um universo artistico que confere maior verosimilhanca as suas figuras pela ilusao de enquadramen- to espacial que, entao, se torna em absoluto possfvel. A proximidade e a distancia convertiam-se em elementos de um processo que privilegiava 0 cardcter fixo e estdvel do espaco plastico, determinando ao mesmo tem- po uma posicao estrita do ponto de vista do observador. Mesmo que a perspectiva geométrica seja uma convengao plastica e simbélica (cf. o estudo classico de Erwin Panofsky, 1927), ela acabaria por converter-se no critério exclusivo e excludente da representagao do espa- 0 na tradicao artistica do Ocidente até ao momento da crise do classicis- mo no tiltimo terco do século xix e principios do xx. ‘Talvez seja apropriado estabelecer uma relacdo entre essa tendéncia a fixar como absoluto plastico, o que a partida deveria ter sido considera- do como uma opcao entre tantas outras, e o cardcter também excludente da geometria euclidiana, que lhe servia como base cientifica. A questao serd ainda mais aguda quando, no processo de desenvolvimento da cién- cia moderna, Isaac Newton (1687, p. 33) formula o que se conhece como a teoria do «espaco absoluto»: «O espaco absoluto, tomado na sua natu- reza, sem relagio com nada de externo, permanece sempre idéntico e imével.» Esta ideia do espaco é, como se tem dito, a contrapartida em fisica do espaco euclidiano em matemdtica. O espaco cdsmico converte-se numa espécie de grande «cendrio»: «Pode conceber-se como um imenso cenério pelo qual passam os acontecimentos que constituem o universo: estrelas eternas, pequenas particulas, nés mesmos.» (Gray, 1992, p. 244) Com efei- to, nao estamos longe da concep¢ao platénica do espaco como receptacu- Jo eterno, mas, naturalmente, com Newton é possfvel uma fundamenta- do matemética e cosmolégica dos seus delineamentos que no mundo grego nao tinha sido ainda possivel. Estas quest6es servem-nos para encontrar um paralelo interessante no campo da arte. Se na fisica de Newton 0 espaco e o tempo sao entendidos como magnitudes «absolutas», no Laocoonte (1766), de Lessing — um dos pontos altos da teoria das artes do periodo classico —, as nogdes de es- Pago e de tempo sao os referentes que permitem estabelecer uma dife- renga semitica em termos também «absolutos» entre as artes plésticas, de um lado, e a literatura e a rmisica, do outro. Como € sabido, no nticleo da obra de Lessing est a necessidade de es- tabelecer uma critica rigorosa das formulagdes humanistas da identidade, da indistingao, das artes. Fixar com preciso os limiares das diversas «lin- guagens» ou géneros artisticos 6, sem qualquer dtivida, algo fundamen- tal para a estabilidade da ordem estética cléssica. Nesse contexto, e a par- tir de Arist6teles, Lessing formula de modo magistral uma teoria ndo nor- mativa, mas semistica, da diferenca entre as artes visuais («pintura», diz ele metonimicamente) ¢ a literatura (na sua formulacdo, igualmente me- tonimica, «poesia»). Pintura e poesia, afirma Lessing (1766, p. 106), servem-se de meios ou sinais completamente diversos para imitar a realidade. Enquanto a pri- meira utiliza «figuras e cores distribuidas no espago», a segunda empre- ga «sons articulados que se sucedem ao longo do tempo». Daf também, ainda segundo Lessing, que a representacio dos «corpos» seja 0 objecto préprio da pintura, enquanto as «acces» — isto é, a denominagio dos ‘objectos que se sucedem ou as suas partes sucessivas — constituem, pelo contrério, o objecto da poesia. Lessing (1766, pp. 106-107) concede, nao obstante, um grau de «entrecru- zamento» entre os objectos da poesia e da pintura. Dado que as acces nao tém uma existéncia independente, pois s4o as acces de seres determinados, ena medida em que estes seres so corpos, a poesia «representa também cor- pos, mas 56 de um modo alusivo, por meio de acgSes». Esta representacdo corporal apenas alusiva implica uma escolha, j4 que, ao ser uma arte tem- poral, a poesia «s6 pode utilizar uma tinica qualidade dos corpos; daf que te- nha que escolher a que de um modo mais plastico suscite na mente a ima- gem do corpo do ponto de vista que, para os seus fins, interessa a esta arte». 50 José Jiménez E como os corpos existem nao s6 no espago mas também no tempo, co- mo duram, a pintura, por seu lado, «pode também imitar acg6es», ainda que, uma vez mais, «sé de uma forma alusiva, por meio de corpos». De forma paralela ao que sucedia com a poesia, as caracteristicas dos signos que emprega fazem com que a pintura sé possa utilizar, ao representar acgdes, «um tinico momento da acgao; daf que tenha que escolher 0 mais intenso de todos, aquele que permita assumir, da melhor maneira possi- vel, o momento que precede e o que se segue». Embora encontremos no Laocoonte algumas linhas de fuga, que permi- tem vislumbrar a jé iminente crise do classicismo e o emergir da revolu- go rom4ntica, particularmente pelo papel central que Lessing (1766, p53) concede a imaginagao na percepgao da beleza, a delimitagao estru- tural entre as artes «espaciais» e as artes «temporais» resulta demasiado rigida. E ignora, além disso, que a mistura de suportes e de procedimen- tos expressivos numa tnica proposta estética foi uma constante ao longo da histéria da representagao sensfvel na nossa tradicao cultural, como su- cede, por exemplo, no caso do teatro, ou na integracéo do canto, da mu- sica e da gestualidade nas formas mais antigas da poesia na Grécia. 3. O espaco ¢ indissocidvel do tempo Na nossa época, com o desenvolvimento da técnica moderna e, no campo especifico das artes, com a invengao do cinema — que torna pa- tente a fusdo num mesmo universo expressivo das dimensées espaciais e temporais —, a separacdo estética, semistica, entre as representacées do espaco e do tempo nao podia deixar de colocar-se de forma cada vez mais intensa como algo de inadequado. Nesse novo clima cultural, as van- guardas artisticas recusavam, também, a ideia cléssica dos limites entre 0s distintos géneros ou linguagens artisticas, procurando justamente na transgress&o desses limites um novo ideal estético, o da convergéncia na unidade da obra de todo o tipo de procedimentos e de materiais. Um ideal que havia jd sido proposto por Richard Wagner, com a sua teoria do «drama musical» e a sua formulagao da categoria da «obra de arte total» [Gesamtkunstwerk] como maxima expressao da vontade de transgressao dos limites cldssicos e de fusao na unidade da obra de todo o tipo de ma- teriais e procedimentos. Paul Klee (1920, p. 4), por exemplo, que na sua juventude foi um leitor apaixonado do Laocoonte, expressa de maneira muito clara a recusa da distingdo de Lessing: «No Laocoonte de Lessing, em que outrora disperdi- ¢dmos juvenis ensaios de Pensamento, faz-se muito alarde da diferenca entre arte temporal e arte espacial. E isso, analisado com maior precisao, resulta nao ser mais do que um delirio erudito. Porque o espago é tam- bém um conceito temporal.» Klee concebe 0 movimento como a base de Pensar o espaco 51 todo 0 acontecer, e isto implica situar a dimenso temporal na génese do espaco. Naturalmente, Klee refere-se ao espaco plastica, e nao a esse es- Pago abstracto, concebido como receptaculo do acontecer, que Platdo ca- racterizara como «eterno», Além disso, é preciso ter presente que, desde a Antiguidade, e mesmo no sentido comum, o espago e o tempo eram consideradas entidades re- lacionadas entre si. A expressao latina spatium temporis («espaco de tem- Po») é disso um bom exemplo. A sucessdo pode também ser concebida como extensao. $6 as formulagées abstractas, cosmolégicas, da fisica newtoniana, com as nogGes de um tempo e de um espaco «absolutos», considerados magnitudes independentes, podiam justificar, conceptual- mente, uma separacdo to completa das duas categorias. Mas © desenvolvimento, j4 no século xIx, das geometrias nao- -euclidianas e o aparecimento, posterior, das novas teorias fisicas, como a mecdnica ondulatéria ou a teoria da relatividade, significativamente na mesma época da emergéncia das vanguardas artisticas, levariam ao ques- tionamento profundo das concep¢ées absolutas do espaco e do tempo, e a diferentes formulacées cosmolégicas, todas elas sustentadas na ideia do continuo espaco-tempo. Sao conhecidas as resisténcias ao abandono dos princfpios da fisica newtoniana até mesmo na comunidade cientifica: «O que era estranho a maioria das pessoas era o completo abandono do espaco absoluto. A exis- téncia de um mundo exterior independente do observador tinha sido as- sociada a crenga nas propriedades absolutas dos objectos no espaco. Os objectos movem-se, os objectos esto af, quer gostemos ou nao.» Apesar disto, e num primeiro momento por razes filos6ficas e estéticas (ua sua elegdncia e beleza», um aspecto determinante na aceitacdo das teorias cientificas), os principios da nova fisica foram abrindo caminho: «Einstein demonstrou, no entanto, que a descric&o que oferecemos depende do que estejamos a fazer e de onde estejamos, de uma forma mais subtil do que qualquer outra que tivéssemos esperado, e mais subtil do que muitos es- tavam preparados para aceitar.» (Gray, 1992, p. 254) As afirmagées proferidas pelo grande matematico Hermann Minkows- ki, numa conferéncia realizada em 1905, estabelecem de forma clara ¢ precisa 0 novo uso das categorias de espaco e de tempo na fisica contem- pordnea: «Espaco e Tempo devem perder-se nas sombras e apenas existi- r4 um mundo em si mesmo.» E também: «Ninguém observou, ainda, ne- nhum lugar excepto num tempo, nem ninguém observou nenhum tempo ‘excepto num lugar.» (cit. em Gray, 1992, p. 255) Mesmo que seja preciso ter em conta que a nogao do espago-tempo que prevalece na fisica, e es- pecialmente na teoria da relatividade generalizada, formulada por Eins- tein em 1916, néo deve confundir-se com uma imagem intuitiva de uma «realidade» ou parametro nos quais o tempo estivesse «fundido» com 0 espaco, no hd diivida de que a superagio da concepgio do espago e do 52. José Jiménez tempo «absolutos» no ambito do conhecimento cientifico contemporaneo iria ter uma repercussdo notével, tanto no terreno da prética e da teoria artisticas como até mesmo no do senso comum, pouco a pouco habitua- do a confrontar-se com «versées» filmicas ou literérias mais ou menos bem sucedidas dos paradoxos da relatividade einsteiniana, nos dias de hoje tao familiares a todos nés. 4. Da representagao @ construgao do espaco ‘Aarte do nosso tempo foi realizando, gradualmente, um percurso de alcance revolucionério, cujo eixo poderia situar-se na ideia da passagem da representagiio plastica do espago a sua construgio. Passagem. determinada, de modo intenso, pela nova sensibilidade que o desenvolvimento da tee- nologia tornou possivel. Novos mecanismos de visao, apoiades e™ mé- quinas de grande preciso e, sobretudo, a fotografia ¢ 0 cinema, liberta- tam as artes plasticas do compromisso figurative e ilusionista que tinha marcado o seu destino desde a Antiguidade Classica. ‘A ideia plastica do espaco, 0 trabalho artistico de delimitacao sensivel da imagem, resultava assim emancipada de uma representagao conven- Sonal dusionista para dar lugar a uma possibilidade plenamente auto- senna de estruturacdo espacial, de construgto do espaco plistico, concebido como uma entidade sensivel e intelectual completamente autonoma. © «modelo» que marca esse novo horizonte das artes € Les demmoisel- les d’Avignon (1907), de Picasso, com a sua destruigéo definitiva da repre” sentagao clissica e a integragao numa mesma obra de diversas conven goes representativas. Posteriormente, viriam o Cubismo ¢ a5 distintas propostas construtivistas que tém lugar a0 longo de todo 0 século xx até a actualidade. Enesse contexto que se situam as propostas que comecei por mencio- nar antes, de Paul Klee (1920, p. 4) na sua «Confissao Criadora», sobre a integracdo de espago e do tempo na obra plastica: «Quando um ponto se far taovimento e linha, isto requer tempo. O mesmo ocorre quanclo uma Iinha se desloca para converter-se em superticie. Da mesma forma, 0 mo- _vimento de superficies cria espagos.” ‘Obviamente, estas propostas «Sao ja perceptiveis» em Ponto, Linha, Pla- no (1926), um dos textos tedricos mais importantes de Vasily Kandinsky, que conviveu com Klee na Bauhaus a partir de 1922. Interessa-me desta- car, em particular, a contraposicao que Kandinsky (1926, pp. 109-110) es- tabelece entre o trabalho artistico € 0 trabalho técnico, e a sua reivindica- cdo de uma «arte puray: «as ‘obras “construtivistas” dos uiltimos anos sao em grande parte, especialmente na sua forma primitiva, “pura” ou abs- tracta construgao no espaco, sem utilidade pratica, o que diferencia estas ‘obras das de engenharia e nos obriga a situé-las no campo da “arte pura’. Pensar 0 espago 53 Algo tinha mudado, de forma radical e irreversivel, no universo da ar- te, e nessa mudanga fundamental a nova concepgao emergente do espa- ¢0 plastico desempenha um papel fundamental. Quando Kandinsky fala de pura ou abstracta construgio no espaco, esta a fixar com precisio 0 novo horizonte das artes plasticas, definitivamente emancipadas da mera re- produgo ilusionista de um «fragmento» espacial. A arte do nosso tempo entrou num territério completamente distinto, 0 da construcéo dindmica, temporal, de um espaco plenamente auténomo relativamente a qualquer refe- réncia prévia. Em lugar de reprodugao, construgao. Isto é 0 que progra- maticamente, e com outros termos, expressou também Paul Klee (1920, Pp. 2) na primeira frase da «Confisséo Criadora»: «A arte nao reproduz 0 visivel, mas produz que algo seja visivel.» Tudo o resto fluiria ao seu pr6prio ritmo. Com Brancusi, a escultura ini- ciaria um processo de emancipagao do pedestal e de expansdo formal, ce- nografica, que chegou aos nossos dias. E, pelo menos a partir de El Lis- sitsky, com as suas construgSes «Proun» (acrénimo de «Projecto para a afir- magao do novo») no infcio da década de 20, a proposta plastica apresenta- -se como articulagao global de um conjunto de elementos diversos. O conceito de «instalagao» plastica deriva dai, desse micleo construti- vista que emancipa de forma definitiva 0 trabalho artistico de qualquer fundamento representativo, orientando-o para a produgdo de um espaco. Que pode integrar os suportes ¢ técnicas plasticas tradicionais: desenho, pintura, escultura,... mas também os «novos» meios, da fotografia e do cinema ao video ou aos suportes digitais. E, o que é mais importante, também os meios e suportes «nao plasticos» segundo a mentalidade clas- sicista: a linguagem, o som, a gestualidade, a cenografia... ‘A arte abre-se a um proceso gerador de universos auténomos, com o seu tempo e espaco préprios, estejam eles integrados ou em ruptura com a experiéncia quotidiana ou com os usos praticos da tecnologia. Mundos @ parte. Neles, pareceria soar um eco do que, como jé antes recordei, Her- mann Minkowski formulou no terreno teérico da fisica: «Espago e Tem- po perder-se-4o nas sombras e sé existira um mundo em si mesmo.» ‘Tradugao de Ant6nio Alves Martins e Ana Marquez Gray, Jeremy 1998 das fe Espacio tradusho castelhana de F. Romero, revista por J. Ferris, Madrid, Mondadori. Kandinsky, Vasily 1926 Punto y Linea sobre el Plano: Contribucién al Andlisis de los Elementos Pictdrices, tradu- 40 castelhana de R. Echavarren, Barcelona, Barral, 1971. 54 José Jiménez Klee, Paul 1920 «Confesi6n creadora», tradugao castelhana [existem outras versdes] no catélogo Klee: dleos, Acuarelas y Dibujos, Madrid, Fundaci6n Juan Marcha, 1981, PP- 27. Lessing, Gotthold Ephraim 1766 Lzocoonte, introdugao e tradugéo castelhana de Eustaquio Barjav, Madrid, Tecnos, col. «Metrépolis», 1990. ‘Martienssen, R. D. 1956 La Idea del Espacio en la Arquitectura Griega, teadugao cas Aires, Nueva Visién, 1980. Newton, Isaac 1687 Principios Matematicos de la Filosofia Natural, estado preliminar, traducdo castelhana ‘e notas de Antonio Escohotado, Madrid, Tecnos, 1987. Panofsky, Erwin 1927 La Perspectiva como Forma Simbélica, traduca Tusquets, 1973. ‘Vernant, Jean-Pierre 1973. Mito y Pensamiento en la Grecia Antigua; traducao castelhana de J. D. 1 6pe7 Bonillo (a partir da versio corrigida de Mythe et pensée chez les Grecs, Paris, FE. Maspero, 1965), Barcelona, Ariel. telhana de E. Loedel, Buenos ‘0 castelhana de V. Careaga, Barcelona,

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