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© TEATRO MEDIEVAL por Marcia Lima INTRODUGAO A Idade Média foi um periodo entre os séculos V ¢ XV da nossa era. Também conhecido como a “Idade das Trevas”, por causa da estagnagdo cultural da sociedade. A Igreja monopolizava toda e qualquer manifestacio de pensamento, como por exemplo, a literatura; a filosofia: a ciéncia e as artes, O teatro era utilizado como instrumento da Tgreja para arrebanhar figis e para catequizar 0 povo. As pegas eram de cunho religioso ou profano. Satirizavam o catequético, o Cristianismo, ou eram instrumento de propaganda destes, mas sempre sobre 0 mesmo tema: a religiosidade Era subdividido em trés fases: “Alta [dade Média”, “Plena Idade Média” e “Baixa Idade Média”. As primeira: manifestagdes teatrais ocorreram na Plena Idade Média, seguidas de um grande floreseimento na Baixa Idade Média No pice do sistema de dominagio encontra-se a lgreja Caidlica, Para manter 0 statu quo ela descobre o teatro come fator capaz de disseminar sua ideologia de obediéneia e submissio aos valores estatuidos, Por esse motivo, o teatro é popular, dirige-se a todas as camadas do povo (¢ nio a classe dominante), transformando-se no lugar privilegiado de desejo de ensinar inerente 4 arte medieval, presente no teatro religioso, no cémico € até na poesia narrativa, nos fabliaux. Mas, quando o clero no pode mais controlar as energias sociais que se Ihe contrapdem ¢ que se intrometem na representagdo teatral, ele proibe ento a representago dos mistérios (sée. XVID. Na Alta Idade Média, a Igreja havia vetado igualmente, como manifestagio pag ¢ fator de dissolucio dos costumes, o remanescente teatro latino que ji havia declinado com 0 final do Império Romano Inicialmente as pegas eram encenadas dentro da prépria Igreja, tendo, como uma espécie de ator, 0 padre A vida cotidiana ¢ impregnada pela piedade e pelo temor a Deus, bem como pela imposigao das regras e convengdes de uma sociedade altamente normatizada. teatro medieval deriva do rito religioso (a missa erist®), do mesmo modo como, na Antiguidade, a tragédia grega. Ele se formou aos poucos, e surge da liturgia, isto é, da dramatizagao do texto da Biblia fido durante o oficie divino. ponto de partida é o canto antifonado, estabelecido pelo Papa Gregério (século VI), altemando solista € coro, ¢ dif undid pelos beneditinos. No século IX, 0 monge Tutilon, da comunidade suiga de St. Gall, eria pardifrases do texto sagrado - 08 “tropos” - didlogos que dramatizam o encontro das Santas Mulheres com 0 anjo, na sepultura de Jesus. Eram executados sobretudo no oficio da Ressurreigio (Piscoa) e no dos Pastores (Natal), Esta cena inicial va sendo ampliada e enriquecida, ocupando mais tempo que a fundamental. Esses esbogos de representagao dio origem a um drama litdrgico, que permanece ligado ao ritual da missa cantado em latim e mantido a cargo do sacerdote. Essas representagdes tendem a ser faladas nas linguas locais, na medida em que vai crescendo a necessidade de entendimento e de participagio das populagdes simultaneamente devotas 4 divindade e encantadas pelo luxo progressivo dos acessérios da missa e dos paramentos sacerdotais. E bom ressaltar que a religido ndo era um espetaculo, por conta das encenagdes, mas o teatro & que veio auxiliar a religiao. Considere-se que, a partir do século XI, a Igreja vive um grande enriquecimento, Entao, sobram ouro cores vistosas nas roupas dos clérigos e nos acessérios da missa. Isso ja devia produzir encantamento e atragdo. Seria natural que, a partir de determinado instante, as populagdes se interessassem, cada vez mais, vivamente, por aqueles dramas, quisessem entendé-los e até participar deles. Este movimento é coerente com a devogao e 0 fervor religioso. Como a Igreja tinha o controle da sociedade, todas as outras instituigdes de poder estavam a seu servigo © a ajudavam a controlar a sociedade e as criagdes artisticas. Havia censura de ordem religiosa, judiciaria e politica. A adogao dos idiomas locais aumenta 0 entusiasmo coletivo em relagao as representagdes. O publico 6 cada vez maior. Uma série de episédios paralelos a narracao biblica comegam a ser inseridos. O elemento cémico-burlesco passa a integrar as representagdes, que tendem a se deslocar do interior para os porticos e os patios das igrejas, libertando-se da liturgia, Os atores deixam de ser os sacerdotes. Ou, pelo menos, passa a ser necessirio um outro tipo de intérprete para certos personagens, como os diabos, € para as passagens cOmicas ¢ licenciosas. No periodo nao se construiu edificio teatral proprio. Este percurso vai desembocar, ao final da Idade Média, nos grandes espeticulos dos mistérios e dos milagres, das farsas e das moralidades apresentadas nas pracas. Mas a apresentagao de pegas devotas ou burlescas nos palicios, nos conventos ou nos colégios nao deixa de ocorrer. Na rua, 0 teatro & assistido, muitas vezes, por milhares de pessoas Os atores, na sua maioria, no so profissionais. Sao estudantes ou clérigos e fazem parte de determinadas associagdes chamadas confrarias, que se responsabilizam pela representagao. Os iinicos atores profissionais da idade Média eram os saltimbancos, que realizavam, desde sempre, suas exibigdes, a maior parte das vezes, individuais, nas feiras e nas pragas. Os artistas ambulantes, os bobos, 0 bufbes e os histrides de toda ordem também eram mobilizados, principalmente para as representagdes das partes cémicas e burlescas, das cenas licenciosas e grotescas, das diabruras que faziam a festa do homem medieval, durante a apresentagdo dos mistérios. Surgem aos poucos varios textos em latim, de autores andnimos, representados por padres, ou clérigos no coro das igrejas. O Sponsus (século XT ou primeira metade do século XID, parabola sobre as virgens loucas ¢ as virgens sibias, 0 mais antigo texto que mistura o latim com uma lingua popular (0 francés). O primeiro texto inteiramente em lingua popular (franeés) € 0 Jeu d'Adam (Auto ou Mistério de Adao), feito por um clérigo anénimo do século XII, cm dialeto anglo-normando, em diélogos com versos cantados e recitados, mas mantendo o latim nas indicagdes cénicas. Ja exige cenario proprio, o que implica numa representagao fora do prédio do templo. A dramatizagao é crescente: 1- O ritual da missa é enriquecido por reflexdes sobre o texto bil responsérios. 2 Aas poucos deste coro se destacam os personagens que vo ilustrar 0 texto do Evangelho, numa transigdo da atitude narrativa para a teatral. 3 - Quando estes “quadros” se acentuam, e 0 drama litargico nao é mais apresentado por clérigos, na igreja ou no claustro, e sim por cidadaos da cidade, a “pega” sai da igreja e deixa de ser um prolongamento do oficio religioso. O espetculo tomna-se semi-litirgico e vai para o adro ou pértico da igreja. Ao separar- se da liturgia conquista as linguas nacionais, abandonando o latim. 4 - Mais tarde, a agao ja nao se limita mais as cenas de Péscoa e do Natal, mas apresenta-se a vida de Jesus, com numerosas “estagdes”. Os temas das Escrituras vao sendo alargados ¢ enriquecidos, sempre com muito realismo. O que leva ao cémico e ao profano. No entanto, esta hipotese é contestada pelos que defendem a autonomia do teatro cémico/profano. Para estes, cle surge independentemente da Igreja, gracas ao desenvolvimento da burguesia ¢ a incorporacdo de artistas populares tradicionais e, em seu apogeu, vai influenciar o teatro liturgico/religioso, intrometendo-se nele. 5 - Na fase final a encenagao é feita nas pragas e com cendrios complexos. Os palcos eram extremamente largos ¢ comportavam varios cenarios. Os dois tipos de paleo mais comuns eram, por um lado, os carros que se sucediam, parando um depois do outro, para a representagio das diferentes partes do espeticulo, e, por outro, o longo palco simultineo das mansdes, que eram espécies de estagdes, por onde passavam os personagens do drama apresentado. A cena simultdnea podia ter até cinquenta metros de extensdo e era disposta de modo a que todos os lugares da aco, todos os elementos da cenografia se encontrassem justapostos, antecipadamente, diante do piiblico. Os cenérios eram diversificados; contavam com truques técnicos e também com maquinarias que permitiam tanto o deslocamento aéreo de anjos, como o surgimento de deménios, saindo de algapdes. ‘Nao se tratava de representar, realisticamente, as personagens, como se elas estivessem diante de nés, vivenciando um determinado conflito, com toda a carga de emocao verdadeira que isso acarreta. lico, comentérios litico-épicos CARACTERISTICAS GERAIS © teatro medieval & eminentemente épico: deseja narrar tudo, desde a Criagao do Mundo até o Juizo Final. No entanto, inicialmente, até 0 século XIV, nos mistérios, ndo se mostra toda a histéria do ‘mundo, mas s6 partes, em pegas do Natal e da Pascoa, conforme a liturgia, J4 no caso dos milagres, c se a vida do Santo desde 0 seu nascimento, 2 - Por esse motivo, ha uma ruptura, ou melhor, ignordncia total das regras teatrais da Antiguidade. Assim, desconhecem-se as unidades de lugar, tempo e agao, pois, para ilustrar a vontade de Deus, o lugar © universo Cristo (Terra, Céu, Inferno), 0 tempo é agora sempiterno da histéria da humanidade e a agao, sempre repetida, é a queda do homem e sua salvacdo, ou seja, a Histéria Sagrada 3 - Além disso, numa visio propria do cristianismo medieval, ha misturas de tons e de estilos, fundindo-se os contririos: elevado e popular; excelso e rude; sublime e humilde; passado, presente e futuro, Desse modo, o teatro se opde a antiga retérica pré-conizadora da separacdo dos estilos, porque ele se baseia em categorias ético-teoldgicas e nao estético-estilisticas. Por isso, a conexiio entre os eventos s6 pode ser compreendida pela ligagao vertical com a Providéncia divina. Dai a importancia da interpretagao figural. 4 ~ Para difundir as verdades da fé, 0 objeto da mais alta importincia e sublimidade deve-se converter num acontecimento da realidade mais simples e quotidiana. Por esse motivo um tema elevado - 0 pecado original - deve ser tratado num estilo simples e baixo, na lingua do povo e no seu nivel de compreensio, com realismo (essencial na arte cristi medieval, ja aparecendo antes do século XII). No entanto, tal realismo nao repele anacromismos, desde que ligados ao catolicismo. Isto porque Adio jé conhece a Redengao futura. O realismo do teatro medieval popular se contrapde a fantasia e ao irrealismo da literatura feudal da Corte. Alias os excessos, realistas, especialmente grotescos e farsescos, introduzidos no drama religioso através da farsa, possivelmente por influéncia da tradigao subliterdria do mimo, foram con- denados pela Reforma (1548). 5 - Outra caracteristica do teatro medieval é 0 fato de ele se basear na oposigao litirgica X profano, e nao na do tragico X cémico. Isto porque as duas tltimas categorias estao presentes na dramatizagao religiosa: © tragico repousa na visio do homem decaido ¢ 0 comico se intromete a partir do proprio realismo. 6 - O apogeu do teatro medieval situa-se entre os séculos XIII e XV, iniciando-se na Franca. As primeiras pegas, surgidas a partir do século XII, tém ainda 0 nome genérico de jeux, autos, sé se diferenciando e se multiplicando os tipos a partir do final da Guerra dos Cem Anos, Aos poucos os autores saem do anonimato, com a adogao das linguas nacionais, bem como vao surgindo as grandes colegdes de pecas religiosas, como os 42 Miracles de Notre Dame (século XIV) e os volumes de Les Mystéres du Vieil Testament (século XV), na Franga, ao passo que a Inglaterra contribui com os 48 Miracles Plays de York (1350/1440) € as 32 pegas do ciclo Wakefield (+ 1450), também chamadas Towneley Plays, dentre as quais duas famosas Shephherd’s Plays para o Natal. CONTRIBUICOES DO TEATRO DA IDADE MEDIA ‘+ Técnicas de encenagdes desenvolvidas pelos atores: + Técnicas de cenério, iluminagao e sonoplastia; + Riqueza de figurino e maquiagem; + Autos (ex.: de Natal, de Pascoa), representados até os dias de hoje MISTERIOS, MILAGRES E MORALIDADES Mistério Reconstitufa passagens da Biblia. Nao se trata de um dogma no qual a Igreja se apéia, mas de historias de Natal, Assun¢ao, Ressurreigao, etc. No Mistério entrava tudo: 0 bom e o falso, 0 sério e o burlesco, 0 veridico e o lendario. Tinha como finalidade edificar a alma, mas também distrair 0 piblico, ndo havendo respeito 4 verossimilhanga. Os papéis femininos eram representados por homens. Sua apresentacao, em seu apogeu, comovia uma cidade inteira, que pagava para assistir varios ciclos de apresentacdes que duravam até quarenta dias para dar continuidade a uma historia Foi o apogeu do teatro medieval quanto & perfeigao dos meios empregados e a decadéncia quanto ao seu valor literério. Estrutura do Espeticul ‘+ Prélogo: explicagio do que itia ocorrer; + A peca em si: em versos (346 a 61.908 versos); Nao era dividida em atos e cenas, mas em jornadas, que podiam durar um dia inteir apenas para as refeigdes. ‘+ Epilogo ou Prélogo final: que resumia os acontecimentos e convidava os espectadores a voltarem, Nao sobreviveu as guerras religiosas e a crise econdmica, Outras causas de sua morte foram a ordem moral (0 sarcasmo, a intimidade do divino com o profano) e a ordem técnica (nao se adaptou aos novos tempos, sendo morto pelas idéias modernas). , com. pausa Milagi E uma pega de durago bem mais curta que 0 mistério, Baseado na vida dos santos. E a encenagdo de uma intervengio de um santo ou da Virgem Maria, Produz-se geralmente em favor de uma personagem repugnante — sogra que matou o genro; religiosas que abandonam o convento, ete. A intengio é mostrar que niio ha crime, por maior que seja, que niio possa ser redimido pelo fe. Milagre era estritamente ligado a religido, mas tratado livremente, comportando sempre um sermao encaixado no curso da aco. Era escrito em versos, variando seu comprimento de 1.000 a 3.000 versos. Aproximadamente quarenta milagres chegaram aos nossos dias. Desapareceu no decorrer do século XVI, sendo conservado apenas na Espana. Moralidade E um género ora grave ora alegre, que era representado mediante alegorias. Provam uma verdade de ordem moral, fazendo dialogar personagens alegéricos. Tinha intencdo didética: ensinar algo. Quando seu objetivo era religioso distingui porque moralizavam em vez de contar. jos ae eye awe i Grande ecce homo. Gravago em cobre de Lucas van Leyden, 1510. PE Paleo de rua francés, e. 1540, Desenho (Ms, 126, Cambrai, Bibliotheque Municipal ) = represents santa Apolonia. A direita, magister ludens envergando uma longa batina ¢ segurando na mio esquerda o libreto aberto c na dircita a batuta de regente. Ao fundo, 0 Céu com uma escada encostada ¢ dois anjos sentados nos degraus mais altos; 4 dircita Boca do Inferno povoada de deménios, Miniatura de Jean Fouguet, c, 1460, para o Livro das Horas de Etienne Chevalier (Chantilly, Musée Conde). Fontes Bibliogra BERTHOLD, Margot, Historia Mundial do Teatro, Sao Paulo: Perspectiva, 2000. Revista Tempo Brasileiro. Ligia Vassalo. Impresso nas Oficinas da Folha Carioca Editora LTDA, Janeiro-Margo de 1983.

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